Hans Christian Klotz - Subjetividade no idealismo alemão

June 14, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Idealismo Alemão, Subjetividade
Share Embed


Descrição do Produto

Conferência Subjetividade no idealismo alemão1 Hans Christian Klotz2

Resumo: É no idealismo alemão que a questão em torno da estrutura da autoconsciência se tornou um tema central do questionamento filosófico, o que se reflete nos termos “egoidade” e “subjetividade” que surgiram já na fase formadora desse movimento. O presente trabalho visa elucidar a problematização da autoconsciência em Fichte e Hegel, que contribuíram com os elementos mais importantes para a discussão idealista sobre a subjetividade. Argumenta-se se que os conceitos de “eu absoluto” (ou “intuição intelectual”) e de “espírito”, que são centrais para as posições sistemáticas de Fichte e Hegel, manifestam uma divergência fundamental no pensamento sobre a subjetividade dentro do idealismo alemão.

Falar sobre subjetividade no idealismo alemão significa falar sobre como a subjetividade tornou-se um assunto explícito do questionamento   Conferência proferida na XVI Semana de Filosofia da UFG em 05 de Maio de 2009. Hans Christian Klotz é professor adjunto da Faculdade de Filosofia da UFG.

1

2 

134

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

filosófico. Pois foi no idealismo alemão, nos escritos do jovem Hegel, que a palavra “subjetividade” foi pela primeira vez introduzida como um termo da filosofia3. É importante notar que, ao ser introduzido por Hegel, o termo substitui a até então prevalecente palavra “egoidade”, cuja acepção ele absorve. Quando se fala da subjetividade, fala-se da auto-referência que se expressa pelo uso do pronome “eu” (“ego”, no latim). É bem conhecido que esta, e a certeza particular que ela envolve, foi considerada como fundamental para todo o nosso conhecimento já em Descartes e Kant. No entanto, no uso dos termos “egoidade” e “subjetividade” reflete-se o fato de que agora pretende-se explicitar a estrutura interna desta autoreferência, em vez de meramente tomá-la como ponto de partida na fundamentação do conhecimento. Alguns dos conceitos característicos do idealismo alemão pertencem ao contexto desta questão: “sujeito-objeto”, “intuição intelectual”, “auto-exteriorização” e “-alienação”. Estes termos não têm equivalente na fala pré-filosófica, e parecem até paradoxais. É uma tese fundamental dos idealistas que a compreensão filosófica da subjetividade exija a introdução de novos conceitos que ultrapassem a semântica do discurso comum. Pois nosso pensamento comum tem a tendência de distorcer o caráter particular da autoconsciência e, com isso, de nós mesmos como sujeitos. Neste sentido, Fichte diz que a maioria dos homens seria mais facilmente levada a tomar-se por um pedaço de lava na lua do que por um eu4. O caráter incomum, “especulativo” dos conceitos que são introduzidos nas teorias idealistas da subjetividade não se deve então a uma tendência a usar conceitos excêntricos, mas se justifica pelo caráter particular da autoconsciência. Por isso, no que segue buscar-se-á esclarecer em que medida as teses e os conceitos centrais da concepção idealista 3   Cf. Karl Homann, “Zum Begriff Subjektivität bis 1802”. In: Archiv für Begriffsgeschichte, 11, 1967, pp. 184-205. 4  J.G. Fichte, A Doutrina-da-Ciência de 1794 e Outros Escritos, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural 1984 (no que segue: DC), p. 92.

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

Hans Christian Klotz

135

da subjetividade podem ser entendidos como respostas a problemas que se levantam na teoria da autoconsciência. As posições de Fichte e Hegel estarão em foco, por terem contribuindo com os elementos mais importantes para a concepção idealista da subjetividade. Na interpretação de Fichte e Hegel, é necessário levar em conta o fato de que suas abordagens sobre a subjetividade são inseparáveis da orientação monista de seus pensamentos, cujo núcleo é a idéia – inspirada por Espinosa – de que a realidade em toda a sua complexidade e diversidade, no fundo, é o desdobramento do uno. A combinação desta idéia com a da subjetividade espontânea e, com isso, o projeto de um espinosismo póskantiano, pode até ser visto como o projeto fundamental do idealismo alemão. Assim, sempre que Fichte e Hegel abordam a subjetividade, a questão de qual é a relação entre esta e o absoluto monista sempre está em jogo. No que se segue, levar-se-á esse aspecto em conta, mas só na medida em que as respostas diferentes que Fichte e Hegel dão a essa questão afetam diretamente suas concepções sobre a subjetividade. Fichte: subjetividade como auto-constituição Para entender a concepção fichteana da subjetividade, é importante ver que ela formou-se originariamente no contexto da discussão sobre a reconstrução da filosofia kantiana sugerida por Karl Leonhard Reinhold. Reinhold tentara reformular toda a filosofia crítica a partir de um princípio fundamental. Este princípio diz que a consciência é essencialmente um “representar” de algo, referindo-se sempre a algum objeto através de uma representação. Segundo Reinhold, toda a filosofia kantiana pode ser vista como uma abordagem acerca das implicações da estrutura representacional da consciência. Como conseqüência deste projeto, Reinhold analisa também a autoconsciência como um caso particular de representação: na autoconsciência, o sujeito representante representa a si mesmo através de uma representação5. 5  Reinhold expôs sua posição no Ensaio de uma Nova Teoria da Faculdade de Representação Humana (1798).

www.inquietude.org

136

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

Fichte já cedo chegou ao resultado de que a estrutura representacional da consciência não pode ser entendida como o ponto de partida da filosofia. Objeções céticas, que tinham sido levantadas contra Reinhold, mostraram para ele que o caráter representacional da consciência, por sua vez, precisa ser explicado (ou “deduzido”) a partir de uma condição mais fundamental. Conseqüentemente, é preciso ir atrás da estrutura representacional da consciência e partir, na filosofia, de um “conceito superior ao da representação”6. É exatamente neste ponto que a concepção do sujeito e de sua particular auto-referência se torna decisiva para o projeto fichteano. Pois Fichte defende que o modo como o sujeito originalmente é “para si” não tem a estrutura de uma representação, tampouco a de uma representação de si mesmo. Em vez disso, a autoreferência originária do sujeito é pré-representacional, e subjaz a todo o seu representar. Mas como é que se pode conceber uma auto-referência pré-representacional? Na sua primeira exposição dos princípios da “Doutrina da Ciência” de 1794/95, Fichte introduz o conceito de “estadode-ação” (“Tathandlung“) para explicitar o caráter dessa auto-referência, expressando assim a idéia de que um sujeito, ao referir-se a si mesmo, constitui a si mesmo como sujeito. A auto-referência originária do sujeito seria então auto-constituição, e não auto-representação. Assim, é no caráter auto-constituinte que consiste a natureza do sujeito, a “egoidade”7. Fichte justifica a concepção da auto-constituição não só pela assumida necessidade de introduzir um conceito “superior ao da representação”. Além disso, ele considera esta concepção como conseqüência do fato de que a autoconsciência é essencial ao sujeito. Aparentemente, Fichte vê nisso uma verdade conceitual. Por isso, a pergunta “O que era eu antes de chegar à autoconsciência?”, segundo Fichte, não faz sentido8. Não posso falar de “mim”, como sujeito, em 6  “Resenha do Enesidemo” (1794), citada aqui na tradução de Joãosinho Beckenkamp, em BECKENKAMP, Joãosinho. Entre Kant e Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS 2004, p. 76. 7   Ver DC, pp. 44/45. 8  Ver Ibid., p. 46.

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

Hans Christian Klotz

137

relação a uma situação que não envolve ainda nenhuma autoconsciência. E na medida em que a autoconsciência surge por um ato exercido pelo sujeito mesmo, a saber, o seu referir-se a si mesmo, deve-se dizer, portanto, que o sujeito, ao exercer este ato, constitui a si mesmo enquanto sujeito. Esta idéia tem uma conseqüência tal, na medida em que pode ser considerada a principal tese fichtiana acerca do modo de ser, e nesse sentido, pode ser considerada como uma “ontologia” do sujeito: falar de um sujeito não significa falar de um tipo de substância que subjaz a estados mentais e que existe independentemente de qualquer consciência dos mesmos. Em vez disso, o sentido pelo qual existe um sujeito do pensar e representar é interno à consciência, sendo inseparável da perspectiva da autoconsciência. Tal sujeito existe na medida em que há a consciência de si como sendo tal sujeito, e só neste sentido. Portanto, a questão de qual é o substrato real da consciência (ou a sua “causa”), tal como esta é abordada na neurofisiologia, pertence a um outro discurso do que àquele sobre a natureza de um sujeito. Já na segunda exposição de sua teoria, na chamada “Doutrina da ciência novo método”, Fichte substituiu o conceito de estado-de-ação pelo conceito de intuição intelectual9. Pode-se dizer que a esta mudança conceitual subjaz a intenção de enfatizar mais o caráter pré-reflexivo da autoconsciência originária, a idéia de que a autoconsciência, em sua forma originária, não consiste em tornar-se um objeto de seu pensamento. Pois, argumenta Fichte, o mero fato de alguém se tornar objeto de seu pensamento por si ainda não é suficiente para que ele tenha consciência de si. Para isso, é preciso que ele saiba também que o objeto de seu pensamento é idêntico com ele mesmo, o pensante. No entanto, para poder identificar o objeto do seu pensar consigo mesmo, é preciso já estar consciente de si. Portanto, a reflexão pressupõe que haja já alguma consciência de si; explicar a consciência de si pelo modelo da reflexão seria circular10. Ver J.G. Fichte, Wissenschaftslehre nova methodo, organizado por Erich Fuchs, Hamburg: Meiner 1982, p. 34 e “O Princípio da Doutrina-Da-Ciência”, in: DC, pp. 182/83. 10 Cf. a reconstrução do argumento de Fichte no trabalho influente de Dieter Henrich, 9

www.inquietude.org

138

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

Fichte conclui disso que a consciência de si como sujeito do pensar, na sua forma originária, deve ser outra coisa que um “pensar” algo sobre si (que a “reflexão”). Estar consciente de seu pensar originariamente não significa pensar que eu penso. Em vez disso, há uma consciência do pensar como atividade própria que já está incluída no exercício do pensar, antes de qualquer tematização reflexiva dela. Para expressar esse caráter pré-reflexivo da autoconsciência originária, Fichte a caracteriza como “intuição”, distinguindo esta da intuição sensível pela especificação “intelectual”. Assim, é no contexto da teoria da subjetividade que o conceito de intuição intelectual surge na filosofia pós-kantiana e, com isso, a idéia de que todo o pensar se funda numa intuição. No entanto, no projeto fichtiano de uma teoria monista, que reconstrói toda a estrutura da consciência como resultado do desdobramento da autoconsciência, a concepção da autoconsciência préreflexiva só pode ser o ponto de partida. Como é que se pode explicar, a partir da autoconsciência, o fato de que nós nos localizamos num mundo com o qual relacionamo-nos como sujeitos cognoscentes e como agentes? A resposta de Fichte a esta pergunta é que a autoconsciência no sentido próprio envolve mais do que só a consciência de si que surge préreflexivamente. Pois esta não inclui ainda o fato de que compreendemos o que somos; ela não inclui ainda a formação de uma auto-concepção. Para isso, a reflexão é necessária. Assim, a reflexão não dá origem à perspectiva autoconsciente; mas ela é um elemento essencial da consciência de si, na medida em que é em virtude dela que possuímos uma concepção do que somos. Fichte considera a reflexão a origem própria da complexidade da consciência11. Pois a auto-compreensão original não representa meramente um “si” que já está lá como objeto de referências possíveis. Em vez disso, ela traz a objetivação original do sujeito, que na autoconsciência préreflexiva não é ainda objeto no sentido próprio. Na reflexão, diz Fichte, o Fichtes ursprüngliche Einsicht, Frankfurt: Klostermann 1967. 11   Ver DC, pp. 147 ss., e Wissenschaftslehre nova methodo (cf. nota de rodapé 7), pp. 35 ss.

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

Hans Christian Klotz

139

eu torna-se originariamente um objeto, e isso é um ato produtivo; nele, o sujeito gera a si mesmo como objeto. O seu caráter auto-constituinte, que originariamente é atualizado pré-reflexivamente, é submetido às condições que possibilitam que ele seja atribuído a um objeto do pensamento. E a tese principal de Fichte acerca disso é que isso só é possível ao concebermos a nós mesmos como agentes. Porque enquanto agentes somos, por um lado, objetos, entes singulares entre outros com os quais estamos em várias relações, em particular, em relações causais. Mas ao mesmo tempo, enquanto agentes, somos capazes de comportarmo-nos de um modo auto-derminado. Agir significa visar uma causalidade auto-determinada num contexto objetivo que não é resultado da auto-determinação – isto é, o agir é auto-determinação limitada. O fato de que não somos capazes de um agir puramente auto-determinado, sem enfrentar condições opostas à auto-determinação, é, por assim dizer, o preço da auto-objetivação, o que implica que a própria atividade esteja localizada num entrelaçamento de relações e determinações objetivas, dadas independentemente da própria atividade. Num processo potencialmente infinito, buscamos maximizar a auto-determinação sob condições que sempre a limitam, orientados por um ideal de auto-determinação que tem sua origem em nossa essência como sujeitos. Ao falar, na sua análise da auto-referência prática, da “autodeterminação” como característica do agente, Fichte não se refere meramente à escolha arbitrária de fins. Fichte entende a auto-determinação a partir da idéia de auto-constituição pré-reflexiva do sujeito, cuja objetivação ele considera como a vontade. Assim, Fichte defende que o agente, num certo sentido, produz a si mesmo – ele constitui a si mesmo, pelo seu querer e por seu agir, como um determinado tipo de pessoa. No seu plano fundamental, a vontade é auto-referencial; ela consiste em querer ser um determinado tipo de pessoa, em estar engajado num projeto de si mesmo. Só em segundo lugar é que a vontade é dirigida para fins no sentido comum, isto é, para coisas que se quer produzir ou possuir. Com isso, a concepção fichtiana da reflexão é uma concepção www.inquietude.org

140

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

acerca da nossa auto-referência prática – ela diz respeito à questão: como podemos nos conceber como agentes? Por isso, Fichte foi caracterizado como fundador da teoria transcendental do agir12. No entanto, Fichte não viu nisso apenas uma disciplina filosófica entre outras. Segundo ele, tal abordagem é a chave para entender a nossa relação como o mundo. A explicação monista da estrutura da consciência como resultado do desdobramento da autoconsciência é uma teoria sobre as implicações do fato de que entendemos a nós mesmos como agentes. Portanto, enxergamos o mundo originalmente do ponto de vista do agente, como um espaço do nosso agir, e não do ponto de vista do observador teórico. E cabe destacar aqui que o mundo não é só a natureza, mas também o mundo social: Fichte defende que a formação da consciência da própria liberdade é inseparável de relações interpessoais, isto é, de relações nas quais outros nos reconhecem como seres livres. Assim, a teoria fichtiana da subjetividade envolve uma teoria da intersubjetividade, antecipando assim abordagens sobre a vinculação entre a autoconsciência e interpersonalidade, tal como têm sido dadas, mais tarde, por G.H. Mead e Habermas13.

Hans Christian Klotz

141

vista do sujeito”14. A objeção principal de Hegel contra esse projeto é que o conceito de sujeito é essencialmente relacional – quando se fala de um sujeito, fala-se de algo que sempre já está numa relação com objetos, com um mundo ao qual pertence. A tentativa de estabelecer o sujeito como um ponto de partida independente na explicação da nossa relação com o mundo leva a concepções abstratas acerca do sujeito, que não correspondem ao que somos para nós em nossa autoconsciência. Isso significa, em particular, que o conceito de sujeito não pode ser o conceito fundamental de uma teoria monista, conforme defendido por Hegel. Tal princípio deveria referir-se a algo oni-abrangente, e não a algo que é finito no sentido de estar essencialmente relacionado com algo outro. Hegel vai chamar o absoluto oni-abrangente de “espírito”. Com este conceito, Hegel pretende formular um monismo que não considera mais a subjetividade como fundamental.

Para entender a concepção hegeliana da subjetividade, é preciso partir da sua relação crítica com o projeto de Fichte. Foi dito acima que é nos escritos do jovem Hegel que o termo subjetividade pela primeira vez se torna um termo da filosofia. No entanto, nestes escritos Hegel introduz o termo numa intenção crítica, a saber, para criticar o que ele chama de “filosofia da subjetividade”, cujo início ele vê em Locke e Hume, e cujo projeto consistiria em “calcular e explicar o mundo a partir do ponto de

No entanto, a rejeição da concepção fichtiana da subjetividade como princípio absoluto pelo jovem Hegel, não revela ainda como é que Hegel concebe a sua estrutura interna. Nos escritos do jovem Hegel, isso ainda não fica claro. É só na Fenomenologia do Espírito que a contribuição própria de Hegel para a teoria da subjetividade se desenha. Explicitamente, Hegel dedica um capítulo do livro à “consciência de si”15. A imagem da autoconsciência da qual Hegel parte aqui revela que a sua relação com Fichte não é só crítico-negativa. Em vez disso, ela envolve um elemento fundamental da concepção fichteana. Assim, Hegel defende que a autoconsciência refere-se originariamente a um “eu puro”, que pela sua essência está oposto a toda esfera de objetos16. Portanto, Hegel adota a tese fichtiana de que o sujeito consciente originariamente não é um objeto. Esta diferença entre a essência do sujeito e a de objetos dá

Ver BAUMANNS, P. Fichte - Kritische Gesamtdarstellung seiner Philosophie, Freiburg: Alber 1990, pp. 159 ss. 13   Ver, em particular, Grundlage des Naturrechts nach den Principien der Wissenschaftslehre (1796). Cf. HABERMAS, Jürgen. “Individuierung durch Vergesellschaftung”. In: Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufsätze, Frankfurt: Suhrkamp 1988, p. 187-241.

  HEGEL. Fé e Saber. Tradução de Oliver Tolle, São Paulo: Hedra 2007, p. 134.   Ver HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes 2003 (no que segue: FdE), pp. 135 ss. 16   Ver FdE, p. 140. A continuidade entre as concepções fichtiana e hegeliana da subjetividade é abordada em PIPPIN, Robert. Hegel’s Idealism. Cambridge: CUP, 1989, pp. 16 ss.

Hegel: o espírito como fundamento da autoconsciência

14

12 

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

15

www.inquietude.org

142

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

origem à característica da autoconsciência que está em foco na abordagem hegeliana sobre a consciência de si: a autoconsciência envolve um distanciamento de qualquer determinação dada, como não pertencente ao que propriamente somos para nós. Fichte denomina este ato, pelo qual a consciência exclui de si qualquer determinação empiricamente dada, de “negatividade” da consciência de si17. O capítulo “Consciência de si” na Fenomenologia trata das várias figuras que a negatividade da autoconsciência pode adotar. Isso lembra a tese fichteana de que, na medida em que somos sujeitos, não encontramos o que consideramos constitutivo da nossa identidade numa determinação dada, mas somente nas características geradas pela própria atividade. A determinação dada, mesmo que ela pertença num certo sentido a mim, como os próprios impulsos, desejos etc., não faz parte da identidade essencialmente auto-constituída do sujeito. O caráter originalmente não-objetivo, e a relação excludente com qualquer determinação dada, são as duas características que Hegel atribui à autoconsciência em plena concordância com Fichte. No entanto, isso não significa que Hegel apenas retome a imagem fichtiana da autoconsciência com a única diferença de que ele não concebe a autoconsciência como um princípio absoluto. O aspecto sob o qual Hegel atribui ao si consciente um caráter originário que difere de qualquer objeto não é o mesmo que em Fichte. Pois Hegel descreve o eu consciente como “geral” e “abstrato”18. Isso significa que seu caráter particular consiste na capacidade de distanciar-se da sua própria perspectiva enquanto pessoa singular. A generalidade da autoconsciência tem aqui um sentido só negativo; ela consiste só na capacidade de distanciar-se da singularidade, e é por isso que Hegel caracteriza a autoconsciência como sendo originalmente “abstrata”. Um exemplo do exercício dessa capacidade é o ceticismo, que Hegel analisa como uma das figuras da autoconsciência: o cético põe em dúvida o todo das experiências, convicções e avaliações sem as quais ele, como pessoa singular, não poderia existir. Segundo a sua

Hans Christian Klotz

143

própria imagem de si, não é essencial para ele existir como pessoa singular que percebe e age, fazendo parte de um mundo que envolve um diverso de entes singulares19. Assim, a autoconsciência do cético é “abstrata”, distanciada de si como pessoa singular. E é a capacidade de tal (auto-) distanciamento que Hegel destaca na Fenomenologia como característica da autoconsciência e, com isso, da subjetividade. A tese que Hegel pretende estabelecer a partir desta descrição da autoconsciência é que a subjetividade envolve um problema estrutural, que exige “enriquecer-se”, isto é, abandonar o distanciamento que dá origem à auto-concepções abstratas20. No exercício da sua dúvida, o cético concebe a si mesmo como um sujeito abstrato, que não é essencialmente uma pessoa singular que possui um determinado lugar no mundo. No entanto, na medida em que ele é ao mesmo tempo um agente, ele confia nas mesmas percepções, orientando-se pelas mesmas normas que ele, enquanto cético, põe em dúvida. O todo da consciência do cético é incoerente – ele distancia-se da sua perspectiva como agente no mundo, e, ao mesmo tempo, ele é tal agente. Assim, a capacidade do (auto-) distanciamento, inerente à consciência de si, pode gerar uma cisão interna da consciência. É nesse sentido que Hegel fala da “consciência infeliz”, como uma figura da autoconsciência21. Infelicidade aqui não significa que, devido às circunstâncias, desejos importantes para a pessoa não são satisfeitos; em vez disso, trata-se de uma infelicidade estrutural da consciência, de uma cisão interna, cuja superação parece impossível. As formulações de Hegel sugerem que um exemplo de tal infelicidade seria a consciência cristã na Idade Média – sendo essa uma consciência caracterizada pelo desprezo de si mesmo enquanto ser “mundano” e voltada para um “além” como o seu destino próprio. Hegel vê a raiz da oscilação entre o além e o aquém, que caracteriza tal consciência, numa cisão interna da autoconsciência que, por um lado, essencialmente existe em pessoas singulares e, por outro lado,   Ver FdE, pp. 155 ss.   FdE, p. 140. 21   Ver FdE, pp. 159 ss. 19

  Ver FdE, pp. 145/46. FdE, p. 140.

17

18 

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

20

www.inquietude.org

144

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

envolve a capacidade de distanciar-se de tal singularidade (de transcendêla). Portanto, o que Hegel pretende mostrar, em sua abordagem fenomenológica sobre a autoconsciência, é que a estrutura da autoconsciência envolve um problema: a capacidade de distanciar-se da sua perspectiva como pessoa singular pode dar origem a uma cisão interna, na qual a autoconsciência oscila entre dois pontos de vista irreconciliáveis – o do si enquanto pessoa singular, e o do si abstrato-geral. Como é possível exercer a capacidade de distanciamento, formando assim um si geral, de modo tal que a cisão entre os dois pontos de vista seja evitada, que possa haver uma unidade entre os mesmos? Pode-se chamar a este problema como o problema da unidade interna da consciência de si. Um elemento importante de sua solução sugerido por Hegel desenha-se no capítulo da Fenomenologia que trata da “razão ativa”, ou seja, da razão prática22. Como razão prática, a consciência forma uma auto-concepção que está intrinsecamente ligada a um conceito do bem e, com isso, com normas que ela entende como geralmente válidas. Assim, a capacidade de distanciar-se da sua perspectiva enquanto pessoa singular é exercida na formação de um si que está ligado a normas gerais, que podem ser efetuadas no próprio agir. Portanto, a unidade interna da consciência de si consistiria no fato de uma auto-concepção que envolve um ponto de vista geral e que, por estar vinculada a normas gerais, permeia o agir e, com isso, a vida do individuo. Obviamente, em tal unidade os dois pontos de vista continuam sendo diferentes, o que se mostra na possibilidade de auto-crítica e até auto-desprezo, caso as exigências envolvidas na autoconcepção normativa não sejam cumpridas no próprio agir; no entanto, isso não é mais a “infelicidade” da autoconsciência no sentido de uma cisão interna que parece insuperável. Com isso, a questão de como a formação de uma auto-concepção normativa é possível, torna-se central para a compreensão da unidade interna da consciência de si. A tese principal de Hegel acerca disso é que 22 

Ver FdE, pp. 249 ss.

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

Hans Christian Klotz

145

isso não é possível por alguma auto-legislação individual, mas só dentro da prática de uma comunidade. Hegel parece defender que somente tal prática é capaz de estabelecer a diferença entre o correto e o errado. Não discutimos aqui essa tese, que antecipa idéias de Wittgenstein. Em vez disso, cabe destacar aqui a conseqüência dessa tese, segundo a qual, a auto-concepção normativa, que possibilita a unidade interna da consciência de si, é essencialmente uma identidade social. Hegel expressa esse ponto já bem no começo do capítulo sobre consciência de si, ao falar enfaticamente do “Eu, que é Nós“, e do “Nós que é Eu”23. O conceito de espírito, tal como é introduzido neste ponto na Fenomenologia, referese justamente a esse “nós” – o espírito realiza-se numa comunidade, na medida em que essa possibilita uma identidade normativo-geral e, com isso, uma generalidade que é efetuada na vida das pessoas. É só a partir dessa concepção de uma comunidade “ética”, engajada numa prática normativa, que se torna claro qual o lugar da subjetividade no pensamento de Hegel. É notável que, neste contexto, Hegel fale das normas e valores da comunidade, como sendo a “substância” que se efetua no agir dos indivíduos24. Isso significa que o conteúdo das normas sociais é anterior ao querer e ao agir das pessoas; as pessoas “encontram” tal conteúdo como algo que independe do seu arbítrio. Assim, as normas têm o caráter de um “ser” que subjaz ao agir dos indivíduos. No entanto, ao mesmo tempo, as normas são efetuadas só pelo agir concreto deles – e só através deste agir é que a substância está “viva”. E as normas adquirem esta efetuação, esta vida, uma vez que são a fonte da auto-concepção dos indivíduos, que, por exemplo, se entendem como cidadãos da polis, orientando seu agir a partir desta auto-concepção. Assim, no final das contas, Hegel entende a autoconsciência como uma instância através da qual uma generalidade se efetua, mas que – a respeito de seu conteúdo – não é constituída pelo pensamento de nenhuma pessoa particular. A autoconsciência, diz Hegel, é “o meio-termo infinito” que mediatiza a 23  24 

FdE, p. 142. Ver FdE, p. 305.

www.inquietude.org

146

Conferência: Subjetividade no idealismo alemão

Hans Christian Klotz

147

generalidade e a singularidade25.

Hamburg: Meiner 1982.

Com isso, a autoconsciência é concebida sob o aspecto da efetuação da generalidade no singular. A partir disso, não é difícil entender a tese de Hegel na sua Lógica de que a subjetividade é o conceito; pois por “conceito” Hegel entende justamente a generalidade que se efetua no singular. Portanto, pode-se dizer que Hegel “logiciza” a consciência de si. A função finalmente atribuída a ela no seu monismo consiste em tornar autoconsciente a estrutura conceitual da realidade. Comparando as posições de Fichte e Hegel, pode-se dizer que no idealismo alemão a subjetividade não apenas se torna um assunto explícito do questionamento filosófico, mas que ela também é abordada e concebida de modos bem divergentes pelos representantes desse movimento. As divergências não dizem só respeito à questão se a subjetividade é um princípio último, ou não, mas também à questão de qual a sua natureza própria – se a subjetividade se constitui numa atividade pré-reflexiva que antecede e subjaz a todo o pensamento, ou se ela é essencialmente efetuação do conceito e, por isso, deve ser analisada a partir de uma “lógica”.

HABERMAS, Jürgen. “Individuierung durch Vergesellschaftung”. In: Nachmetaphysisches Denken. Philosophische Aufsätze, Frankfurt: Suhrkamp 1988, pp. 187-241. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fé e saber. Tradução de Oliver Tolle, São Paulo: Hedra, 2007. _______. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses, Petrópolis: Vozes, 2003. HENRICH, Dieter. Fichtes ursprüngliche Einsicht. Frankfurt: Klostermann, 1967. HOMANN, Karl. “Zum Begriff Subjektivität bis 1802”. In: Archiv für Begriffsgeschichte 11, 1967, pp. 184-205. PIPPIN, Robert. Hegel’s Idealism, Cambridge: CUP, 1989.

Referências BAUMANNS, Peter. Fichte. Kritische Gesamtdarstellung seiner Philosophie, Freiburg: Alber 1990. BECKENKAMP, Joãosinho. Entre Kant e Hegel, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina da ciência de 1794 e outros escritos. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural 1984. _______. Wissenschaftslehre nova methodo, organizado por Erich Fuchs, 25 

FdE, p. 307.

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

www.inquietude.org

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.