Hans Gumbrecht: contribuições para pensar no exterior da clausura hermenêutica

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ENSAIO Ciências & Cognição 2015; Vol 20(2) 238-251 © Ciências & Cognição Submetido em 03/07/2014│Aceito em 31/07/2015 ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30/09/2015

Hans Gumbrecht: contribuições para pensar no exterior da clausura hermenêutica Hans Gumbrecht: contributions to thinking outside the clausura hermeneutics

Ângela Mastella Coradini (1), Dolores Cristina Gomes Galindo (2), José Carlos Leite (3) (1) Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. (2) Departamento de Psicologia, Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. (3) Departamento de Filosofia, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Resumo

Abstract

A pretensão maior da obra de Hans Ulrich Gumbrecht é virar a substancialidade do Ser contra a tese da universalidade da interpretação. O autor parte de uma crítica ao paradigma sujeito/objeto e concentra seus estudos no que ele nomeia de campo não hermenêutico, buscando pensar e alcançar a relação do homem com o mundo e com os outros homens, em uma dimensão que, não, exclusivamente, a do sentido. Os esforços de Gumbrecht se traduzem no que ele chama de sujar as mãos a sério, desenvolvendo uma série de conceitos para uma produção de presença, com base em uma leitura particular do conceito de ser no mundo, de Martin Heidegger. A partir dessa produção de presença, há desdobramentos, e outras noções emergem de suas argumentações – momentos de intensidade e Stimmung – com foco, sempre, em uma leitura da dimensão material, procurando restabelecer o contato do homem com as coisas do mundo.

The biggest pretension of Hans Ulrich Gumbrecht with his work is to turn the substantiality of the Being against the thesis of the universality of interpretation. The author begins in a critical paradigm subject/object and concentrate your studies in what he calls “nonhermeneutic field”, trying to thinking and reach man’s relationship with the world and with other human beings, in a dimension which, is not exclusively, the dimension of the sense. Gumbrecht efforts is translated in what he calls “get the hands dirty to heart”, developing a series of concepts for a “production of presence”, based on a particular reading of the concept of “being in the world”, by Martin Heidegger. Based on this “production of presence”, exist consequences, and other notions emerge from the arguments “Moments of intensity” and Stimmung - always focusing on a read of “physical dimension”, trying to restore contact between the man and “the things of theworld”.

Palavras-chave: Gumbrecht; campo não hermenêutico; produção de presença; dimensão material; Stimmung.

Gumbrecht; non-hermeneutic field; production of presence; material dimension; Stimmung. Keywords:

Autores de Correspondência: A. M. Coradini – E-mail: [email protected] D. C. G. Galindo – E-mail: dolorescristinagomesgalindo@ gmail.com J. C. Leite – E-mail: [email protected] Endereço para correspondência: Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Rua Fernando Corrêa da Costa, 2367 – Cuiabá - Mato Grosso - Brasil. CEP: 78060-900. 238

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(...) [C]reio que nossa relação com qualquer objeto cultural, e provavelmente com qualquer objeto em geral (no sentido meta-histórico e transcultural), é invariavelmente duplicada: não se pode evitar atribuir sentido ou significado aos objetos com os quais nos deparamos – mas também não é possível evitar o estabelecimento de uma relação de cunho espacial, corpóreo e tangível com eles. (Gumbrecht, 2005b) A obra de Hans Ulrich Gumbrecht mantém interlocução com diferentes áreas das Humanidades, num movimento que, além de fazer reflexões sobre a dimensão material dessas áreas, tem em seus escritos quase um manifesto pela presença, que nos leva a uma relação física com as coisas do mundo, sem cair numa deriva fenomenológica. As obras evidenciam o questionamento da centralidade hermenêutica e emprenham-se por um caminho difícil em torno de uma perspectiva substancialista de análise. O autor defende, em A Tarefa das Ciências Humanas Hoje, que a universidade deva ser um lugar dedicado a um “pensamento de risco” e a uma “tarefa de produzir complexidade” (Gumbrecht, 2005a, p.83). Para acompanhar alguns dos argumentos centrais do autor, que busca tecer um pensamento exterior à hermenêutica sem negá-la, em nossas considerações ao longo do manuscrito que se segue, recuperamos aspectos das obras Production of Presence (2004), In Praise of Athletic Beauty (2006), Stimmungen Lesen (2011) e Graciosidade e Estagnação (2012), onde estão apresentados as noções e conceitos de: campo não hermenêutico, materialidade da comunicação , produção de presença, momentos de intensidade Stimmung. De acordo com Gumbrecht, a interpretação é necessária, mas não é a única forma de nos relacionarmos com o mundo. A obra de Gumbrecht está intensamente direcionada a uma crítica à obsessão de procurar significado atrás ou além das superfícies, uma obsessão, para ele, especificamente ocidental e moderna (pós-medieval), uma pretensão de exclusividade da hermenêutica, que permeia a cultura contemporânea. Propõe o que chama de “sujar as mãos”: atrever-se a pensar e desenvolver conceitos que não estejam ligados a uma visão hermenêutica do mundo, que se oponham a uma visão do sentido como absoluto nas humanidades – eis o que é arriscado no pensamento de Gumbrecht. Nos tópicos a seguir, apresentamos noções de Gumbrecht que são centrais na construção de um pensamento não hermenêutico. Recuperamos, também, alguns autores brasileiros que partilham do seu legado, para abordar aspectos da vida contemporânea cujos trabalhos têm se voltado aos campos da comunicação, artes e literatura. É importante frisar que se trata de um pensamento e prática em curso, cujos desdobramentos podem ser acompanhados pela fértil, e continuada, publicação de Gumbrecht. 1. Um campo não hermenêutico Na trajetória de Hans Ulrich Gumbrecht, os estudos em torno da proposição de um campo não hermenêutico têm suas raízes numa série de cinco colóquios internacionais e interdisciplinares realizados entre os anos de 1981 e 1989, em Dubrovnik, na atual Croácia, os quais inicialmente estavam interessados em pensar uma reformulação das Humanidades, partindo de uma discussão sobre sua história acadêmica. Segundo Gumbrecht, os colóquios causaram marcas na geração de humanistas alemães, à qual pertence o autor, e tiveram grande êxito, mas numa perspectiva diferente da intencionada no começo, pois, num primeiro momento, o projeto não lograva sair da “velha batalha entre sujeito e objeto”, pendendo em relação ao segundo polo, mantinha-se a dicotomia e a estabilidade dos dois termos que a formam (Muzi, 2011). Frequentados em grande parte por acadêmicos da literatura, os colóquios passaram pela abordagem da Histórica Geral, no primeiro encontro, História da Periodização nas Disciplinas, no segundo, e Usos que a Crítica tem Feito do Conceito de Estilo, no terceiro encontro, todos sem grandes descobertas. No ano de 1985, surge o título Materialidades da Comunicação, que parecia prometer uma alternativa à abordagem dos estudos literários. (...) a palavra “comunicação” era promissora, pois deixava para trás aquilo que considerávamos 239

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uma atenção demasiado restrita e tradicional dos estudos literários sobre a “literatura” (estávamos, afinal, numa época em que muitos de nós, nos estudos literários, havia deixado de acreditar que os esforços quase seculares para encontrar uma noção meta-histórica e transculturalmente viável de “literatura” pudessem gerar resultados satisfatórios). (Gumbrecht, 2004, p.27). Para os acadêmicos dos colóquios, os conceitos de materialidade e comunicação apresentavamse como alternativa à narrativa e à interpretação. O encontro nomeado Materialidades da Comunicação acontece em 1987 e, em 1988, é editado o volume Materialität der Kommunikation, organizado por Gumbrecht e Karl Ludwig Pfeiffer, como a primeira sistematização do pensamento (Andrade & Felinto, 2005), e já trazendo o conceito de Materialidades da Comunicação, como “todos os fenômenos e condições que contribuem para a produção de sentido sem serem eles mesmos, sentido” (Andrade & Felinto, 2005, p.28). Materialidade e comunicação prometeram ser conceitos melhores para trabalhar as questões, com mais exatidão e rigor científico, saindo da prática das interpretações repetidas e fartas. A busca de um novo discurso foi motivada por um cansaço com as teorias antigas, ou seja, a teoria crítica, o marxismo, o estruturalismo, o pós-estruturalismo, o desconstrutivismo, e já em 1987, o pós-modernismo (Gumbrecht 1988, p. 911 apud Hanke, 2005, p.4). Discursos baixos é o título do resumo do colóquio de Gumbrecht; e o fato de que a noção de paradigma foi evitada neste contexto merece destaque para caracterizar uma certa modéstia do projeto. (Hanke, 2005, p.4). De acordo com Gumbrecht, os questionamentos quanto à centralidade da hermenêutica que guiaram os estudos foram iniciados antes da década de 1980, pois, desde 1968, havia impulsos para a reformulação das Humanidades. As movimentações nos estudos do grupo de acadêmicos, dedicados a esses simpósios, eram ainda estimuladas pelas obras de vários filósofos, seja de anos anteriores, seja de mesma data, os quais traziam questionamentos próximos ou apenas tangenciais. Gumbrecht cita a obra de Walter Benjamin, que tentava celebrar o “toque físico imediato dos objetos culturais”; o estudo de Friedrich Kittler, que oferecia uma tese “psico-histórica para o domínio do paradigma da interpretação nas Humanidades”; e o abandono da abordagem semiótica da literatura, pelo medievalista Paul Zumthor (Gumbrecht, 2010). Além destes, o autor lembra que se sentiam motivados pelo trabalho de vários filósofos os quais não haviam aceitado o convite para a participação dos simpósios, como Jean-François Lyotard, que, na época, apresentava a exposição Les Imatériaux, com a tese de que “a revolução dos meios eletrônicos dera início a uma desmaterialização cada vez mais veloz da vida humana”; e Jacques Derrida, que, no princípio de seu trajeto filosófico havia defendido que “a indiferença sistemática da exterioridade do significante era uma das principais razões para o predomínio devastador do logo-fonocentrismo” (Gumbrecht, 2004, p.30). As questões que discutiam mudanças epistemológicas e, também, nas disciplinas das Humanidades e o passo dado em direção às materialidades da comunicação proporcionavam um horizonte de temas para serem explorados, os quais eram resumidos, na época, nos conceitos de história dos media e cultura do corpo. Assim, o fascínio principal dos estudos era saber como os diferentes meios, as diferentes materialidades de comunicação afetariam o sentido que transportavam. Os acadêmicos não acreditavam mais que o complexo de sentido pudesse estar separado da sua medialidade. Sentíamo-nos secretamente muito felizes por poder culpar novamente a hermenêutica pela redução do âmbito conceitual e discursivo das nossas disciplinas àquilo que era requerido para a análise dos fenômenos relacionados apenas com o sentido. (Gumbrecht, 2010, p.33).

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Concentrando-se na contestação da centralidade da hermenêutica, Gumbrecht passou a explorar novas perspectivas de reflexão e pesquisa, denominando essa reunião de perspectivas de campo não hermenêutico, ou seja, um campo de convergência da problematização do ato interpretativo. O campo não hermenêutico buscaria a possibilidade de uma descrição do mundo que não se baseasse unicamente em processos interpretativos, mas tornaria mais complexa “a tarefa da crítica ao incluir na própria existência a sensualidade de estar-no-mundo” (Cardoso Filho & Martins, 2010, p.152). No artigo Cascatas da Modernização (1998) e, também, na introdução do livro Modernização dos Sentidos (1998), ao tratar dos diferentes conceitos de modernidade – início da modernidade, modernidade epistemológica, alta modernidade e pós-modernidade – e as substituições sequenciais de um conceito por outro, Gumbrecht aproxima a crise existente na centralidade da hermenêutica ao conceito de pós-moderno. Segundo ele, a noção de modernidade passa por transformações: no início da modernidade, emerge um padrão ocidental de subjetividade, tendo o homem no papel de “observador de primeira instância” e de produtor de conhecimento; na modernidade epistemológica, o homem é um “observador de segunda instância”, ele observa a si próprio, ao observar o mundo; na alta modernidade, há um momento de desregulação entre significante e significado; e, na pósmodernidade, a conjuntura e efeitos dos modernismos antecessores é desfeita, neutralizada e transformada. Por conseguinte, a “pós-modernidade problematiza a subjetividade e o campo hermenêutico, o tempo histórico e inclusive a crise da representação, radicalizando-a” (Gumbrecht, 1998b, p.31). A mesma noção de pós-modernidade e a aproximação mencionada aparecem no discurso de Gumbrecht, já em 1992, durante uma conferência realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, quando o autor expõe os motivos de uma crise na tradição hermenêutica. Para ele, a situação pós-moderna é caracterizada pela destemporalização, desreferencialização e destotalização, dando-nos uma sensação de que um mundo menos estruturado é mais viscoso e flutuante. E, se a centralidade da interpretação – tanto nas sistematizações do campo hermenêutico de Wilhelm Dilthey como nas de Martin Heidegger – tem como fundamento as premissas de temporalidade, totalidade e referencialidade, “e se hoje esses conceitos entraram em crise, então se pode supor que a crise atinge de fato a centralidade da interpretação” (Gumbrecht, 1998a, p.143). Na mesma conferência, em 1992, Gumbrecht procura elaborar o que ele chama de uma “cartografia” do campo não hermenêutico, partindo da teoria semiótica de Louis Trolle Hjelmslev, mas propondo uma distensão e afastamento entre os quatro campos que a formam – processo contrário ao feito por Hjelmslev de aproximação dos campos. A intenção do autor é a “possibilidade de tematizar o significante sem necessariamente associá-lo ao significado” (Gumbrecht, 1998a, p.145). Seu empenho resulta na formulação de quatro associações: substância de conteúdo, forma de conteúdo, forma de expressão e substância da expressão. A substância do conteúdo é, para o autor, “uma esfera anterior à estruturação do conteúdo” (Gumbrecht, 1998a, p.145); forma do conteúdo refere-se às “estruturas articuladoras da substância do conteúdo” (Gumbrecht, 1998a, p.145); forma da expressão conjuga as formas “materiais” dessa expressão, “a materialidade do significante” (Gumbrecht, 1998a, p.146); e, por substância da expressão, entendemos “uma materialidade ainda não estruturada” (Gumbrecht, 1998a, p.147). 2. Um parêntese É interessante observar que Gumbrecht procura em obras de autores hermenêuticos, como Hjelmslev e Heidegger, esteios para embasar seus estudos. Na obra de Hjelmslev, a partir de uma realocação de conceitos, é elaborada uma cartografia do campo não hermenêutico, como já mencionado. E, em Heidegger, com base em uma leitura singular da obra Ser e Tempo (1927), Gumbrecht estrutura uma proposição de conceitos específicos aos quais chama de produção de presença (Gumbrecht, 2010). Essa proposta de conceitos, ou discurso específico para a dimensão material, tem a denominação de produção de presença em oposição a uma produção de sentido (hermenêutica). 241

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É importante deixar claro que Gumbrecht, ao interessar-se pelas materialidades da comunicação, pelo campo não hermenêutico e pela produção de presença, ao considerar a existência mútua de uma produção de sentido e de uma produção de presença, não propôs uma lógica que eliminasse o sentido. Segundo Erick Felinto (2012), Gumbrecht, ao contrário, menciona que é através da história da cultura, que existiram sempre contextos culturais, nos quais era mais forte o tema da materialidade e da presença, e outros, nos quais era forte a questão do sentido e da imaterialidade. Ou seja, nenhuma cultura é só de presença ou só de sentido, mas sempre, em um determinado tempo histórico, uma dessas vertentes predomina. Exemplo dessa variação é a transição da Idade Média para o Mundo Moderno, em que a cosmologia medieval (cultura de presença) dá lugar ao paradigma sujeito/objeto e ao campo hermenêutico (cultura de sentido). Esse campo hermenêutico é uma das premissas fundadoras do mundo moderno, ou seja, o domínio da visão cartesiana de mundo no início da modernidade e a hermenêutica desde o século XX. O que podemos chamar de campo hermenêutico (interpretação e expressão) é, conforme Gumbrecht, uma união de dois eixos: no horizontal, está o homem, sujeito, observador e excêntrico em oposição ao mundo, e, no eixo vertical, o ato de interpretar, no qual o sujeito mergulha no mundo para retirar dele conhecimento e verdade. Podemos ver essa mudança na relação dos seres humanos com o mundo, de uma cultura de presença para uma cultura de sentido, nos exemplos do teatro da Idade Média e na transição entre a teologia eucarística medieval (Católica, atualmente) e a protestante (originária do início da Modernidade). No teatro medieval, os atos comunicacionais eram fundados no corpo e, de acordo com manuscritos que relatam essa atividade, a existência de uma narrativa não era perceptível. Os corpos dos atores entravam em um espaço e o compartilhavam com os expectadores, e, ao que tudo indica, nos manuscritos, o contato com o público era improvisado e dependia de cada situação, em que os corpos de atores e espectadores não estavam separados por uma cortina. Não existia um sentido separado que devia ser interpretado pelo público, prova disso é que, nas representações da paixão de Cristo, alguns corpos chegavam a ser executados verdadeiramente. Já no século XVII, o estilo de teatro de Corneille e Racine trazia quase unicamente uma carga semântica: os atores ficam posicionados em semicírculo no palco, enquanto recitavam textos muito abstratos. Noutro exemplo, enquanto na teologia eucarística medieval (Católica, atualmente) a presença do corpo e sangue de Cristo era tangível, ou seja, acreditava-se que o pão “funcionava como um ato mágico, um ato por meio do qual uma substância distante no tempo e espaço se tornava presente”; na protestante (início da Modernidade), o corpo e sangue de Cristo são apenas evocados, “assim, o ‘é’ na expressão ‘este é meu corpo’ passou a ser entendido como significa ou ‘quer dizer’ o meu corpo” (Gumbrecht, 2010, p.52). No artigo A presença realizada na linguagem, com atenção especial à presença do passado, Gumbrecht argumenta e propõe uma ponte entre sentido e presença, frisando que esse movimento seria essencial aos teóricos da história, pois a presença seriam “instâncias nas quais as coisas podem se fazer presentes empregando-se o dêitico, o poético, e o potencial encantatório da expressão linguística” (Gumbrecht, 2009b, p.10). 3. Uma Releitura de Heidegger na construção da produção de presença É no livro Produção de Presença (2010), tradução de Production Presence (2004), que Gumbrecht desenvolve conceitos e destrincha a fórmula. Produção de presença parte do significado etimológico de ‘produção’ (producere) como “empurrar para frente”, “trazer para adiante”, e de ‘presença’ como uma referência espacial, como aquilo que “está à nossa frente, ao alcance e tangível para nossos corpos”. Logo, produção de presença (...) sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades de comunicação é também um efeito em movimento permanente. Em outras palavras, falar de “produção de presença” implicaria que o efeito de tangibilidade (espacial) surgido com os meios de 242

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comunicação está sujeito, no espaço, a movimentos de maior ou menor proximidade e de maior ou menor intensidade. (Gumbrecht, 2010, p.39). Se qualquer forma de comunicação toca os corpos com seus elementos materiais de maneiras específicas e variadas, e se as materialidades como coisas que ocupam um espaço e são tangíveis ao nosso corpo podem ser experimentadas tanto dentro como fora da linguagem, temos como exemplos de materialidades o som de um instrumento musical, as cores de um quadro, um golpe de boxeador, os efeitos de presença da rima, da aliteração, do verso e da estrofe. A palavra presença não se refere (pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos. Uma coisa presente deve ser tangível por mãos humanas – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos humanos. (Gumbrecht, 2010, p.13). A construção argumentativa de Gumbrecht é intensamente permeada pelo pensamento de Heidegger, pois, segundo Gumbrecht, Heidegger caracteriza a existência humana como “ser-nomundo”, criticando de forma contundente Descartes e o seu fundamento “da existência do homem no pensamento (e só no pensamento) e as subsequentes dissociações entre a existência humana e o espaço, e entre a existência humana e a substância” (Gumbrecht, 2010, p.91). Gumbrecht dedica várias páginas ao que ele chama de “um confronto com o conceito heideggeriano de Ser”, por acreditar que o conceito de Ser ajudaria a pensar além dos limites de uma tradição metafísica (Gumbrecht, 2010). Elabora quatro diferentes teses sobre o que seria o Ser de Heidegger, concluindo, ao fim, que esse conceito estaria muito próximo a uma presença, e Ser e presença, por conseguinte, implicariam substância; nesse sentido, estariam relacionados com o espaço e poderiam associar-se a movimento (Gumbrecht, 2010). Na visão de Pedro Ribeiro (2012), Gumbrecht faz uma leitura audaciosa da obra A origem da obra de arte (1977), de Heidegger, ao entender a expressão desvelamento do Ser como um processo não hermenêutico. O paradoxo dessa leitura, segundo Ribeiro, estaria em Heidegger ser considerado um dos pais da escola hermenêutica, e Gumbrecht usar sua obra para fundamentar um campo não hermenêutico. Assim, tentando apreender fenômenos de presença, Gumbrecht propõe uma tipologia binária de 10 conceitos correspondentes: de um lado, os conceitos que formam a cultura de sentido (mais próximos da cultura moderna) e, de outro, conceitos que constituem uma cultura de presença (mais próximos de uma cultura medieval), trazendo os seguintes argumentos centrais • Primeiro: enquanto a autorreferência humana na cultura de sentido é o pensamento (consciência), na cultura de presença, seria “o corpo”. • Segundo: na cultura de sentido, os seres entendem-se como excêntricos ao mundo, ao passo que, na cultura de presença, como “parte do mundo” (espacial e físico), de sorte que essas coisas do mundo “são materiais” e têm “um sentido inerente”, não apenas algo que é dado por meio da interpretação. • Terceiro: enquanto, na cultura de sentido, o sujeito produz conhecimento ao interpretar o mundo, em uma cultura de presença, o conhecimento é revelado e não depende de uma intenção do sujeito, “é conhecimento revelado pelo(s) deus(es) ou por outras variedades daquilo que se poderá descrever como ‘eventos de autorrevelação do mundo’, (...) o conhecimento revelado ou desvelado pode ser a substância que aparece, que se apresenta” (Gumbrecht, 2010, p.108). • Quarto: na cultura de sentido, o signo é a junção de um significante puramente material e um significado (sentido) puramente “espiritual”, e o significante deixa de ter atenção, quando o significado é revelado. Já na cultura de presença, o autor alude a um “signo-conceito”, a uma definição aristotélica, que é a “junção de uma substância (algo que exige espaço) e uma forma (algo que torna possível que a substância seja percebida)” (Gumbrecht, 2010, p.108). 243

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• Quinto: enquanto, na cultura de sentido, a transformação (como o embelezamento, a melhora) do mundo é vista como principal vocação do homem, ou seja, o homem é motivado a transformar o mundo por suas “ações”, na cultura de presença, há o desejo dos seres humanos de se relacionarem com a cosmologia envolvente, por meio da inscrição de seus corpos no ritmo dessa cosmologia, sem alterá-lo. Ao contrário, alterar ou desviar “esses ritmos (até mesmo o acaso de provocar tal mudança de maneira não intencional) é visto como sinal de inconstância humana, ou, pura e simplesmente, como pecado” (Gumbrecht, 2010, p.109). O correspondente à “ação”, na cultura de sentido, seria, numa cultura de presença, a “magia”, isto é, “a prática de tornar presentes coisas que estão ausentes e ausentes coisas que estão presentes” (idem p.109), resultado de movimentos imutáveis da cosmologia onde estão integrados os seres humanos. • Sexto: enquanto, na cultura de sentido, o “tempo” é a dimensão primordial, pois é no tempo que ocorrem as relações entre humanos e mundo, na cultura de presença, o “espaço” é a dimensão que se constitui ao redor dos corpos, é onde acontecem as relações entre os diferentes seres humanos e sua relação com o mundo. • Sétimo: devido à dimensão do espaço ser onde se dão as relações, numa cultura de presença, a “violência” pode ocorrer durante a ocupação e bloqueio dos espaços por outros corpos. Diferente de uma cultura de sentido, em que a violência é adiada e transformada em “poder”. • Oitavo: na cultura de sentido, o “evento” vem acompanhado do valor de inovação e surpresa; já na cultura de presença, o conceito a ser pensado é de “eventidade”, ou seja, há uma descontinuidade, mas sem inovação e surpresa. • Nono: enquanto, na cultura de sentido, a ficção e o lúdico ocupam o lugar das motivações em momentos de interações, nos quais a seriedade do cotidiano é suspensa, nas culturas de presença, não há o lúdico e a ficção, porque não há a motivação para ser substituída por estes. Na cultura de presença, para que haja uma exceção nos ritmos de vida fundados na cosmologia, a cultura de presença tem de ser suspensa por tempo determinado (estrutura esta chamada de carnaval). • Décimo: os rituais. Enquanto os debates parlamentares são rituais adequados à cultura de sentido, visto que são realizados a partir da qualidade intelectual do argumento e de visões em confronto, a Eucaristia (não na teologia protestante) é um ritual de cultura de presença, um ritual de magia, pois torna o corpo de Cristo fisicamente presente. Assim, a realização da Eucaristia é uma intensificação da presença do corpo de Cristo, e essa noção de intensificação mostra que, na cultura de presença, o que não é quantificável passa a ser, como as “emoções, impressões de proximidade, escalas de aprovação e de resistência” (Gumbrecht, 2010, p.112). 4. O desejo de presença e os momentos de intensidade Por que desejaríamos tanto a presença? Ao tentar responder à questão de seu entusiasmo com a presença, Gumbrecht usa a expressão ‘dia perfeito’. Um dia perfeito seria o resultado do preenchimento, desse dia, por um breve momento de alegria intensa que possa ter atingido o corpo, um momento efêmero que é desejado, mas não pode ser apreendido. Os momentos de intensidade, por terem seu potencial desligado das normas éticas, dos padrões de comportamento e de ação, e provocarem sensações não presentes no dia a dia (França, 2011) seriam um contato com as coisas do mundo, uma presença, e nossa intenção final, ao desejá-los, seria a sensação de estar em sintonia com as coisas do mundo, um grau extremo de serenidade ou Gelassenheit, e que não significaria uma harmonia perfeita, “mas um vislumbre do que podem ser as coisas do mundo” (França, 2011, p.78). Gumbrecht nos descreve essa sensação no trecho a seguir. Sei agora que nunca me permitirei chamar a um “dia perfeito” sem ter a certeza que o que foi bom nele para mim conquistou meu corpo – ao ponto, de fato, de me dar a sensação de que, de algum modo, eu fui a corporificação daquele dia perfeito. Se esta frase parece estranha e perigosamente tautológica, posso dar, como descrição alternativa, a minha impressão de 244

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que quando falo, tantas vezes com demasiada ênfase e entusiasmo, sobre presença refiro-me principalmente a essa sensação de ser a corporificação de algo. Do mesmo modo que um lago é progressivamente preenchido pelo movimento de uma onda, um dia perfeito, penso, pode muito bem parecer perfeito, pelo menos em retrospectiva, por ter sido preenchido por aquele breve momento de alegria intensa que me atingiu, incluindo o meu corpo, em determinado instante. (Gumbrecht, 2010, p.168). Devido à impossibilidade de prolongar ou apreender esses momentos, o autor menciona uma alternância entre intensidade e perfeito apaziguamento. Redenção seria a palavra para nomear o regresso que tornaria possível esses momentos de intensidade e apaziguamento. Gumbrecht não restringe a experiência estética à interpretação e atribuição de sentido, mas trata de um alargamento das formas tradicionais potenciais para a experiência estética. Deixa explícito que o conceito de experiência estética, como é conhecido, não seria suficiente para abrigar todo o potencial que um campo da experiência estética possa reunir (proposição do autor). Na experiência estética, o autor inclui momentos que causam sensações, como uma jogada de futebol, a beleza de um corpo, as notas de uma música, entre outros. Para exemplificar, o autor recorre a algumas memórias. (...) a doçura quase excessiva e exuberante que às vezes me arrebata quando uma ária de Mozart aumenta em complexidade polifônica e quando acredito, de fato, ser capaz de ouvir na pele os sons do oboé. (...) o momento de admiração que me sobrevém ao admirar o belo corpo de uma jovem que esteja sentada perto de mim diante de um dos computadores de acesso ao catálogo da biblioteca – um momento que, aliás, não se diferencia muito da alegria que sinto quando o quarterback da minha equipe favorita de futebol americano ergue os braços, perfeitamente esculpidos, para celebrar um passe bem feito. (...) a emoção, a respiração subitamente profunda e os olhos envergonhados e lacrimejantes com que devo ter reagido precisamente àquele passe (...) sensação de profunda depressão, e até talvez de humilhação, que experimento ao ler “Pequeño vals vienés”, meu poema favorito de Poeta en Nueva York, de Federico García Lorca, (...) ilusão de força letal e violência, como se eu fosse um deus antigo, que me trespassa o corpo no momento da estocada final, numa tourada espanhola (...) (Gumbrecht, 2010, p.126). As sensações da experiência estética em Gumbrecht não teriam necessariamente um caráter edificante, distanciando-se de qualquer viés moralista ou universalizante. Os momentos de intensidade – experiência vivida – referem-se a “concentrados em”, ou, “tematizações de”, “objetos que, em nossas condições culturais, oferecem graus específicos de intensidade sempre que os chamamos de estéticos” (Gumbrecht, 2010, p.128). Para se referir a esses concentrados de intensidades, o autor usa momentos de intensidade, onde une a fragmentação temporal de momento – porque não está ao nosso alcance prolongar – e a dimensão quantitativa de intensidade – porque conjuga “o funcionamento de algumas de nossas faculdades gerais, cognitivas, emocionais e talvez físicas” (Gumbrecht, 2010, p.127). A fim de expor sua argumentação sobre a produção de presença, o autor propõe oito camadas que coexistem, uma complementando a anterior e abrindo os pressupostos para a próxima, ao mesmo tempo em que fecham um círculo, no qual a oitava argumentação acaba por remeter à primeira. Gumbrecht inicia sua argumentação pontuando que: 1) os momentos de intensidade não têm a pretensão de ser edificantes e deixam uma nostalgia ou sentimento de perda; 2) essa perda, ou nostalgia, é devido à segunda camada de argumento, pois esses momentos não estão disponíveis nos mundos histórica e culturalmente específicos do cotidiano; 3) esses momentos de intensidade não carregariam uma carga ética, porque, se feito isso, a dimensão intensiva seria diluída ou normalizada; 4) os momentos de intensidade teriam uma disposição específica, seja um arrebatamento pela relevância imposta, seja uma preparação por meio de uma disposição serena; 5) os momentos de intensidade ocorreriam de uma tensão entre efeitos de presença e efeitos de sentido; 6) os momentos são efêmeros, uma epifania, a qual surge do nada, tem uma articulação espacial e sua temporalidade pode ser descrita como um “evento”; 7) os momentos de intensidade trazem uma violência, uma vez 245

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que nos ocupam ou bloqueiam nosso corpo; e 8) os momentos de intensidade nos impedem de perder por completo uma sensação ou uma recordação da dimensão física nas nossas vidas e um estar em sintonia com as coisas do mundo. O autor ainda complementa, afirmando que, assim como a experiência estética (momentos de intensidade), a experiência religiosa também não estaria acessível nos mundos cotidianos, porém, existiria uma diferença entre as duas que as singularizaria: enquanto a experiência estética seria algo que almejamos e desejamos, a experiência religiosa nem sempre seria almejada, mas, em algumas vezes, impostas – Gumbrecht cita como exemplo a conversão de Paulo, no caminho de Damasco, descrita na Bíblia. Já em outro texto, de 2006, Pequenas Crises: Experiência Estética nos Mundos Cotidianos, que compõem a organização Comunicação e experiência estética, escrito dois anos após Production of Presence, Gumbrecht busca tratar dessa mesma experiência estética (momentos de intensidade) como contrafluxos nos mundos cotidianos. Nesse texto, o autor nos dá uma possibilidade de vivenciar o belo e o sublime na experiência estética no cotidiano, como pequenas crises, exceções que despertam “o desejo de detectar as condições (excepcionais) que as tornaram possíveis” (Gumbrecht, 2006, p.51), porque essas exceções se opõem ao fluxo do cotidiano. Diferencia três “constelações diferentes” para a ocorrência de experiências estéticas em mundos cotidianos: a) uma interrupção dentro do fluxo de nossa vida cotidiana; b) uma adaptação máxima da forma de um objeto a sua função; e c) a mudança dos moldes situacionais de abordagem de objetos. Ao estender a experiência estética além das formas canônicas e incluí-la em ocasiões corriqueiras, o autor não só aumenta o leque de potenciais, mas aproxima a experiência estética de um acontecer que não está subjugado a um esforço hermenêutico. 5. O toque da Stimmung Dando continuidade à discussão sobre a presença, Gumbrecht traz outra noção que faria parte dessa dimensão material: Stimmung (atmosfera). Essa noção é mencionada, pelo autor, primeiramente, no artigo Lendo para Stimmung: Sobre a ontologia da literatura hoje (2009), que, posteriormente, em outra versão, é colocado como introdução do livro Stimmungen Lesen (2011). Stimmung não seria um conceito, pois a palavra foi usada por vários autores ao longo dos tempos sem que houvesse uma definição específica. Segundo Gumbrecht (2008), para Freud, por exemplo, a Stimmung relacionavase com um (ou algum) tipo de “esperança”, ou espécie de otimismo ou pessimismo presente em situações específicas. Para Heidegger, a descrição de Stimmung passa por uma temporalidade, como uma modalidade que, em constante mudança, molda comportamentos e sentimentos no cotidiano. Em Gumbrecht, a Stimmung não possui um objeto intencional, pode ser produzida (percebida, sentida) pelo céu, temperatura, música, entre outras possibilidades, as quais sejam capazes de “tocar”. O autor alude a duas dimensões da Stimmung: uma primeira que diz respeito à tradução e ao etimológico, e uma segunda que pertence à semântica do som e do ouvir. Na primeira dimensão, e pensando pela tradução, Gumbrecht explica que, para Stimmmug, duas traduções poderiam ser encontradas no dicionário: humor [mood] e clima [climate”. Humor [mood] seria “um sentimento tão interior e subjetivo que não pode ser transmitido por conceitos” (Gumbrecht, 2009a, p.107), e clima [climate] “como o que às vezes parece nos cercar e nos influenciar como indivíduos ou grupos” (idem). Douglas Pompeu diferencia mood de climate: Enquanto uma refere-se a uma sensação interna e subjetiva, onde nenhuma descrição exata seria possível, a outra refere-se a algo objetivo que envolve indivíduos ou um grupo, exercendo influência física sobre eles. Com essas duas palavras, Gumbrecht parece encontrar uma ligação imediata entre sujeito e objeto. (Pompeu, 2012, p.257). Ainda na primeira dimensão, e pesando pelo lexical, Stimmung relaciona-se ao substantivo Stimme (voz) e ao verbo stimmen (afinar um instrumento); “como associação, aponta para a experiência de que Stimmungen tendem a se desdobrar como um continuum, em um espectro de 246

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diferenças graduais e nuances que frequentemente colocam provocações produtivas à nossa linguagem descritiva” (Gumbrecht, 2009a, p.107). A segunda dimensão pertence à semântica do som e do ouvir. Som, porque, ao ouvir uma música, não escutamos apenas com os ouvidos, mas também com nossa pele e com todo nosso corpo – sistema háptico – ou seja, apesar de invisível, o som é uma realidade física, uma realidade material, que afeta e cerca nosso corpo. O autor também se refere a clima [weather] como uma realidade material, assim como a música. Stimmung, portanto, apesar das várias traduções possíveis, estaria mais próxima a um som e um clima [tradução de weather], estes dois, realidades materiais que afetam, atingem, cercam e envolvem o corpo (Gumbrecht, 2009a). Além disso, “(...) os toques do som e do clima são os mais leves, os menos opressivos, e ainda assim, são encontros concretos que nossos corpos podem ter com seu ambiente material” (idem). Nesse sentido, propõe que som e clima poderiam ser metáforas para o que poderíamos chamar de tom, atmosfera ou sabor e estes tons, atmosferas ou sabores não se desdobram (não são sentidos) independentemente de componentes materiais. E se a Stimmung tem essa potência de afetar corpos, influencia-nos e teria a ver com a impressão, usando uma frase de Victoria Saramago Pádua (2011), “de estarmos integrados ao mundo em que vivemos” (Pádua, 2011, p.126). Erick Felinto endossa Gumbrecht, ao afirmar que não é possível traduzir em discurso o que é a Stimmung, e que esta deve ser, unicamente, sentida. O que importa é “se ela toca o observador, e se este tocar tem realmente um sentindo material. Você tem que sentir seu corpo tocado por essa Stimmung, por essa disposição” (Felinto, 2012.). Para exemplificar, Felinto menciona os encontros entre os corpos e a arte, explicando que, ao ver uma obra, ler um livro, experimentar uma pintura, não é somente o “pensamento interpretativo, discursivo e racional” que é acionado. Muitas vezes, a arte provoca sensações e atmosferas, colocando-nos “naquele universo onde temos que pensar sobre a relação entre material e imaterial” (Felinto, 2012). Ainda, segundo Felinto, para Gumbrecht, a leitura da Stimmung está inscrita nas fórmulas de articulação no nível da experiência estética. E já que a experiência estética está sempre tensionada entre efeitos de sentido e efeitos de presença, ao ouvir um poema, tendemos a interpretar o poema, mas também a “sentir a prosódia, a materialidade fônica do poema” (Felinto, 2012). Aqui conseguimos visualizar a conexão entre Stimmung, inserida nas fórmulas de articulação no nível da experiência estética, com a Produção de Presença. Por ser oriundo dos estudos literários, Gumbrecht propõe um “ler para a Stimmung”, o que ele menciona ser “um potencial dentro de uma ‘ontologia’ da literatura” (Gumbrecht, 2009a, p.108). Dessa forma, a dimensão da Stimmung seria uma alternativa para leituras e releituras literárias, pois os textos teriam condensados, em si, Stimmungen (plural) com substância física, porque a literatura acompanharia a tendência de falência de nossa relação física com o mundo e, em consequência dessa falência, haveria em nós uma “ansiedade” por um contato material, de maneira que a Stimmung trataria, por conseguinte, dessas substâncias físicas. A leitura orientada pela Stimmung seria uma opção às duas posições já difundidas na literatura – Desconstrucionismo e Estudos Culturais – que exploram o texto interpretativamente, quer dizer, a leitura pela Stimmung estaria direcionada à dimensão textual da forma “(principalmente o som, através de aliterações e assonâncias, por exemplo, na leitura de um texto) que envolvem nosso corpo enquanto realidade física potencial e que podem provocar um sentimento interno” (Pompeu, 2012, p.257). No livro Stimmung Lesen (2011), Gumbrecht desenvolve sua noção de Stimmung, pautando-se filosoficamente em Martin Heidegger, assim como faz no livro Produção de Presença (2010). A noção de Stimmung, a qual é desenvolvida pelo autor, seria uma continuação em sua busca e defesa de um espaço de relação com o mundo corporal e não interpretativo, porque ele apresenta diferenças com os conceitos de Stimmung formulados anteriormente por outros pensadores. O próprio autor menciona as diferenças entre as descrições que a Stimmung recebeu, ao longo do tempo. Para Gumbrecht, a Stimmung que adentrou o século XX não se iguala às primeiras ideias do 247

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termo, elaboradas a partir de 1776, quando as Stimmungen remeteriam a uma “harmonia” (Goethe), a uma “harmonia recíproca” (Kant) e a “uma forma de experiência da harmonia que parecia não ter lugar no presente” (Nietzsche). Foi Nietzsche que colocou a Stimmung junto aos fenômenos da vida humana que escapam do controle da racionalidade. Já para Heidegger, as Stimmungen estariam em constante mudança e acabariam por moldar comportamentos e sentimentos de nossa existência, sem que pudéssemos escolhê-las. A partir da Segunda Guerra Mundial, o poeta alemão Gottfried derruba a noção de “harmonia” da Stimmung, apontando que, naquele tempo, a “harmonia ou o espírito de mediação” não podiam ser mais considerados a Stimmung, e que “a rudeza era o tom favorito do momento”. Assim, Gottfried, influenciado pela ideia de Alois Riegl, da Stimmung como um “princípio de nostalgia”, afirma que “a impossibilidade das Stimmungen era a Stimmung de seu tempo” (Gumbrecht, 2009a, p.10), ou seja, a atmosfera daquele tempo era, justamente, a impossibilidade de uma atmosfera de harmonia. Nesse sentido, a Stimmung de Gottfried aproxima-se mais da noção de Gumbrecht. Se a presença é uma relação física, corporal e imediata entre materialidades e os sujeitos, a Stimmung dos textos, no caso, seria uma chave para uma presença substancial do passado, isto é, envolvendo uma camada física de fenômenos, a Stimmung pertenceria a uma parte presencial da existência que “nos liga com seu tempo (sempre passado) e o torna vivo e vivenciável no agora” (Pompeu, 2012, p.258). Uma leitura orientada pela Stimmung seria que não há um método específico, porque essa forma de leitura seria um tanto individual e subjetiva. Apesar de a Stimmung ser histórica e culturalmente singular, Gumbrecht aposta em um pensamento contraintuitivo, (...) um pensamento que não receia divergir das normas dominantes da racionalidade e da lógica tem muito a ganhar ao se valer de intuições, pois o que primeiro chama a atenção em uma leitura orientada pela Stimmung é uma fascinação ou irritação provocadas por uma única palavra ou detalhe, o fragmento de um som ou um ritmo. (Pompeu, 2012, p.259). Gumbrecht complementa que podemos ter nossa atenção chamada por uma palavra ou uma imagem, um ritmo ou um som, que precisamos nos manter desejosos de uma Stimmung e que, por meio dela, podemos ter de volta “um contato com as coisas do mundo”, com o mundo material, com o qual muitos de nós já perdemos o contato. O autor não tem a pretensão de que esse convite seja um princípio universal e aplicável a toda e qualquer obra, visto que, assim como as observações feitas no livro Produção de Presença (2010) sobre existirem culturas “mais de sentido” e culturas “mais de presença”, haveria igualmente obras que seriam mais pautadas no sentido e acessíveis mais pela interpretação, e outras mais pautadas em presença e acessíveis por um “ler para Stimmung”. Gumbrecht nos dá vários exemplos de Stimmung em obras literárias, nas quais enredo e narrativa passam a ser secundários e onde saltam a nós os elementos materiais. É assim que, ao comentar a obra literária Morte em Veneza, de Mann, o autor enfatiza uma complexa impressão de decadência; e sobre a obra Memorial de Ayres, de Machado de Assis, salienta imperar uma saudade como convergência de situações sociais e destinos individuais. Já sobre o teatro parisiense, no século XVII, argumenta que os versos alexandrinos eram “pesadamente encantatórios” e deviam refletir uma “parte substancial do mundo material no qual eles viviam”, ou seja, “ao invés de ‘representar’ significados ou objetos de referência, o tom destes versos é uma partícula de passado, encapsulada no texto, que ressuscitamos quando quer que recitemos monólogos e diálogos escritos por Coneille e Racine” (Gumbrecht, 2009a, p.111). Em Neveu de Rameau, de Denis Diderot, as mudanças frequentes de clima (weather), mencionadas pelo autor, antecipariam o humor e a graciosidade de um dos personagens do romance. A propósito dos versos do poeta Walther Von der Vogelweide, o autor afirma que o tom nervoso das estrofes teria a ver com o clima (climate) de instabilidade política e insegurança religiosa. Mas acharíamos os ritmos de Walther “nervosos” se não pudéssemos entender suas palavras baseados em nosso conhecimento histórico de seu tempo? Difícil dizer – mas a questão não 248

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vem ao caso. Pois tudo o que quero dizer sobre nossa relação com autores como Vogelweide e Racine é que o tom que produzimos quando recitamos seus versos traz de volta uma realidade física de um passado específico com efeito de imediatismo. Isso acontecerá independentemente de conseguirmos entender o que pode ter motivado a forma de suas canções e poemas. É como tocar as pedras de um velho edifício. O que tocamos e o que nos toca é uma presença substancial do passado – não seu significante. (Gumbrecht, 2009a, p.111). 6. Considerações Finais Ao acompanhar a obra de Gumbrecht, podemos perceber que esta vai adquirindo uma densidade, ao passar por diferentes conceitos e noções, os quais apontam para uma reflexão teórica, ao invés de revelar um empenho puramente empírico. A potencialidade de suas argumentações está, muito mais, numa abertura de modos de se pensar o mundo e de confrontar aquilo que, repetidamente, é consumado em nosso cotidiano, do que numa aplicabilidade de seus conceitos e argumentações. Pensar com Gumbrecht é intensamente mais engrandecedor do que aspergir de seus conceitos e noções uma verificabilidade. As proposições do autor trazem um recurso para pensar a dimensão material, concedendo um vislumbre de reconexão com a materialidade do mundo: uma alternativa de relação de nossos corpos com outros corpos e com o mundo que nos cerca. E é justamente porque, para o autor, ler a dimensão material é algo instintivamente natural, pois há porções do mundo que, independentemente, de um processo hermenêutico, são sentidas: chegam aos nossos corpos e nos envolvem, antes mesmo que possamos interpretá-las. As porções da obra de Gumbrecht, focalizadas neste texto, são uma tentativa de atenuar as barreiras hermenêuticas, em favor de uma materialidade que quer vazar. O desejo por presença – mesmo que às vezes não percebido – é uma forma de reação à saturação da busca do sentido, e a contrapartida dessa busca incessante pelo sentido, instaurada nas relações, é a perda do mundo e da potência de ser afetado pela irrupção dos momentos de intensidade, seja frente a uma obra, seja nas pequenas crises no cotidiano. Os conceitos e noções de Gumbrecht desenham um traço teórico que se adensa conforme o percorremos. Inicia mencionando uma dimensão material relegada em favor do sentido, apresentando: a) os efeitos de presença concretizam-se nas porções de materialidades; b) os elementos materiais de qualquer forma de comunicação tocam os corpos de maneiras específicas e variadas; c) as materialidades como coisas que ocupam um espaço e são tangíveis ao nosso corpo e podem ser experimentadas tanto dentro como fora da linguagem; d) os momentos de intensidade (experiência estética) estão em nossa intenção de alcançar a sensação de estar em sintonia com as coisas do mundo; e e) a Stimmung, por estar inscrita nas fórmulas da experiência estética, é desenvolvida por Gumbrecht, a princípio, como uma opção de leitura de textos direcionada à dimensão textual da forma, mas que nos fornece também possibilidades de leituras de outras materialidades. Essas materialidades do mundo são potenciais, quer para os momentos de intensidade, quer para a evocação da Stimmung. E Gumbrecht nos conduz por entre os conceitos até às descrições de diferentes Stimmung – ele proporciona possibilidades de leitura a atmosferas distintas e, depois disso, retira-se, sem estabelecer um método para as leituras das atmosferas. A Stimmung de Gumbrecht não funciona como uma ferramenta analítica. As pistas deixadas pelo autor nas obras exploradas neste manuscrito apontam para uma sensibilidade aos toques e sensações que fluem entre o homem e o mundo. Gumbrecht pede apenas para que nós prestemos um pouco de atenção àquilo que nos toca, que busquemos amenizar o peso excessivo que a atribuição de sentido tomou, nas relações com o mundo.

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