HARUN FAROCKI E O PÓS-MODERNISMO: Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra

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HARUN FAROCKI E O PÓS-MODERNISMO: Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra

Louis Allen Thomas Mingoti Poague

Belo Horizonte 2016

Este pequeno estudo refletirá sobre algumas relações que se estabelecem entre imagem e a memória, quando inclinadas por um prisma pós-moderno (ou desconstrucionista) do pensamento. O objetivo consiste em demonstrar como as suas premissas não se diferem muito de um conflito iniciado pelo Iluminismo, sendo vistas como uma consequência lógica do movimento ocorrido. A saber, o Iluminismo inverteu o foco da abordagem filosófica, deslocando-se de uma teoria do ser ligada a religião (qual é o lugar do homem? Como o mundo é estruturado?) para uma teoria do conhecimento, da epistemologia (como podemos saber? Como obtemos o verdadeiro conhecimento?). A partir do Iluminismo, os pensadores estarão interessados em como entender a realidade excluindo elementos da metafísica, atendose aos sentidos e razão humana para essa construção. Assim, “ideias externas ao homem já não são verdadeiras nem tem validade alguma como princípio normativo” (ROOKMAAKER, 2015, p.56). Essa problemática ressoará no campo da memória, rompendo com uma tradição grega que a considera imutável, pura por assim dizer, e de completo domínio pelo indivíduo. Faremos uma rápida consideração desses elementos no filme Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra (Bilder der Welt und Inschrift des Krieges, Alemanha, 1988), de Harun Farocki, no qual o autor parte desses pontos para relacionar seu discurso com os demais elementos fílmicos, como a montagem, por exemplo. Que características se encontram em um discurso pós-moderno? Usaremos a definição de Aylesworth (2015, tradução nossa):

[...] ele pode ser descrito como um conjunto de práticas críticas, estratégicas e retóricas, empregando conceitos como a diferença, a repetição, o traço, o simulacro e a hiper-realidade, a fim de desestabilizar outros conceitos como presença, identidade, progresso histórico, certeza epistêmica e a univocidade de significado.

O pensamento pós-moderno parte de uma negação das metanarrativas, narrativas capazes de agregar todo o conhecimento e de nos apontar verdades absolutas sobre a realidade. Para este, os valores humanos são construções históricas, culturais, e que expressam uma ideologia e um regime de visibilidade da informação. Abordam-se registros históricos e de memória sob a premissa de que suas construções foram motivadas por alguma busca, pergunta ou questão a investigar, tornando instável a relação entre o ficcional e o que de fato aconteceu no passado (FALCI, 2014). “O que surge, doravante, como memória de um fato passado, é um conjunto de elementos que, mais do que apresentar efetivamente o passado, apresenta a maneira como esse passado foi construído” (FALCI, 2014, p.85). A descrição das palavras nesse sistema, por exemplo, só se formaria quando considerada a

estrutura na qual está inserida, permitindo a diferenciação entre seus elementos. No entanto, o máximo que essas premissas podem oferecer são as categorias que as palavras/objetos se inserem, e não o que são os objetos per si ou como eles se relacionam com a realidade (BONEVAC, 2013). No campo das imagens técnicas, por exemplo, as interfaces são vistas como filtros específicos, que contorcem os eventos a determinadas configurações narrativas, moldando a forma como um indivíduo se lembra destes acontecimentos (pois uma história em livro não fornece a mesma experiência do que uma história em foto) (DJICK, 2007). Em suma, a memória não é mais objetiva, confiável, mas está em uma constante reimaginação, mediada pelas imagens e pelos regimes de poder. Descreveremos agora algumas das abordagens presentes no filme Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra e que expressam o discurso pós-moderno. O autor alcança isso pela montagem, ao justapor as aparências, os traçados gráficos que formam os conteúdos das imagens. À medida que Farocki desenvolve seu discurso, ele reitera as mesmas imagens, gerando novas camadas de interpretação sobre elas. Por exemplo, ao longo da obra somos expostos a diferentes lógicas de produção, entre elas estão imagens fotográficas, vasilhas de aço, inspeções eletrônicas de uma produção automobilística, ilustrações, entre outras. Justapondo estes elementos, Farocki torna ciente para um espectador o que dissemos anteriormente sobre as interfaces, que elas mediam as experiências e, consequentemente, torcem o modo como os dados se organizam em informação. Uma das cenas mais interessantes, talvez, é a de um jovem trabalhando na fotogrametria de uma janela. Um close na superfície de uma máquina expõe a imperfeição das linhas traçadas pelo dispositivo, dando-lhe um espaço para que esse não humano demonstre sua subjetividade. Mais tarde, a reprodução dessa janela é sobreposta ao modelo original, porém a uma distância maior da câmera. De longe, a reprodução/cópia se assemelha muito ao modelo original, porém há um discurso oculto, pelo qual nossa visão falha em se aperceber (FIG.1). Já em outro momento, Farocki nos expõe a fotografias de identidade, porém recortadas por uma faixa preta ao longo dos olhos. Utilizando o que parece ser um efeito ótico da lente da câmera, ele consegue misturar estas imagens, gerando novas pessoas e dificultando o nosso olhar para as fronteiras, os recortes que permitem diferenciar uma imagem da outra (FIG.2). Diante das inscrições apresentadas ao público, a mensagem proferida é: suspeite das imagens.

Figura 1

Acima, o aparelho e a reprodução torta das linhas. Abaixo, as janelas lado a lado. Nossos olhos já não conseguem perceber as distorções das linhas feitas pela técnica.

Figura 2

Essa reiteração de conteúdos aparentemente desconectados também se revela carregados de um poder bélico e político quando a narração nos instrui acerca de uma foto aérea do campo de Auschwitz, durante a Segunda Guerra. A voz em off também nos informa que não era da intenção dos Aliados a procura pelos campos de concentração. Somos revelados, pelo artista, a uma realidade até então oculta pelos discursos do cotidiano.

A falta de princípios éticos problematizada pelo pós-modernismo também aparece na posse que Farocki faz de imagens dos campos de extermínio da Segunda Guerra. Três momentos apontam para a realidade enquanto um absurdo, um lugar onde séries divergentes, como a guerra e o entretenimento, coexistem em harmonia. No primeiro, a voz que diz “a fotografia que conserva, a bomba que destrói, estão ligadas agora" sobrepõe-se a uma foto aérea de um instante que se bombardeia uma cidade. O segundo ocorre durante a ficcionalização de uma foto de uma jovem judia, capturada por um soldado alemão dentro de um campo de extermínio. Ouvimos também a frase: “Como formam um conjunto, o conservar e o destruir!". Pela ironia, Farocki parece nos informar que a violência é um bem necessário para que o futuro exista ou para que o ser humano continue produzindo informação. Seria isso uma decorrência natural da exclusão da metafísica? Como lutar contra a opressão que um regime ideológico impõe através dos arquivos se a opressão sugere ser um elemento necessário para a construção dos sentidos, para a criatividade ou para o desenvolvimento social? Lembramos-nos aqui da figura do anjo descrito por Walter Benjamim. Não seria o pós-modernismo esse personagem que, sabendo pelos pressupostos de que não pode haver valores que dignifiquem o ser humano, continua a olhar para o passado sob um falso otimismo?

Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1985, p.226)

O terceiro momento ocorre já ao final do filme. No meio da narrativa, Farocki introduz o público a um conjunto de números que mais se parecem a um conjunto de coordenadas matemáticas, usadas para programas computacionais. Agora, no final, esse mesmo conjunto é reiterado, informando ser na verdade mensagens codificadas de prisioneiros de Auschwitz que se rebelaram e colocaram fogo em uma das câmaras de gás, realizando o que os Aliados não tiveram coragem de fazer. Farocki termina o filme anunciando ao público o trágico destino destes prisioneiros: o ato seria transformado em uma imagem. No entanto, a imagem que vemos se reduz a uma forma abstrata, distante do cotidiano, irreconhecível. A imagem que assistimos é somente um recorte de uma fotografia aérea, anteriormente demonstrada. Todavia, ao realizar um primeiríssimo plano, Farocki nos chama a atenção para os seus

menores elementos constituintes: pequenos pontos pretos. Se há verdades universais, elas estão sempre escondidas diante daquele que vê a imagem, em uma espécie de misticismo. No lado da imanência, somos capazes apenas de identificar as estruturas, mas nunca o que esses pontos pretos de fato significam. A tradução de uma experiência em imagens sempre excluirá o que há de humano nelas, deixando uma incógnita aberta para a história defini-la. (FIG.3)

Figura 3

Acima, à esquerda, temos o conjunto de números e a direita sua tradução (o último plano do filme). Abaixo, à esquerda, temos o quadro ‘Círculos em um círculo’ (1923) de Kandisnky, e à direita uma estrutura em rizoma. Seriam elas tentativas semelhantes de alcançar um universal? Fonte: Wikipédia1; Philosophical Disquisitions2.

1

Disponível em: 2 Disponível em:

Terminaremos este estudo falando um pouco sobre o problema epistemológico do pósmodernismo, dito como uma consequência natural da posição adotada pelo Iluminismo. Porque uma consequência natural? Para isso, precisamos saber qual foi o pressuposto adotado por este movimento, sendo ele o da uniformidade das causas naturais em um sistema fechado (SCHAEFFER, 1974). Aqui o universo se torna uma caixa fechada, sendo o conteúdo dessa caixa a única realidade permitida pela ciência. Isso significa que toda mudança que acontece dentro do cosmos só pode vir do próprio cosmos. O homem se torna uma máquina determinada, buscando respostas em um escuro que nunca se ilumina. E, visto as suas ações serem determinadas, o homem torna-se incapaz de dizer qual é a ordem dessa realidade, por estar sempre um passo atrás do universo. Kant sintetizou esse pensamento da seguinte forma: visto que partimos dos nossos sentidos na construção da realidade, e visto que elas são filtradas em uma configuração pelo cérebro, a realidade em si não pode ser de fato real. Significa dizer que é impossível dizer qual é a realidade objetiva. Este mundo aparente, criado por uma percepção enganosa, Kant denominou de fenomênico, enquanto que a realidade em si, intocável, ele a chamou de numênico, onde existiria a liberdade humana. Uma consequência que podemos tirar dessa base é a de uma supressão das distâncias entre imagens, obras de arte e os objetos da realidade enquanto tal, ou como fora dito no início deste estudo, a instabilidade entre a ficção e o objetivo dos arquivos. Aqui as imagens não devem mais representar a realidade, como a tradição da pintura perpetuou ao longo dos séculos, pois elas passam a ser a realidade. Elas passam a carregar uma presente práxis política, tal como afirmado por Walter Benjamim (1975), no momento que a fotografia destitui a aura dos objetos artísticos com a reprodução automática. Isso pode explicar porque a imagem exerce atualmente um papel proeminente na sociedade, e porque há tanta suspeita nos conteúdos circulados por ela: é porque não há outro lugar para se olhar a não ser para as imagens. Nesse sentido, a abordagem filosófica que se iniciou com o Iluminismo acaba se inclinando para uma tautologia, para um pensamento que só serve para apontar para ela mesma, para tornar ciente a necessidade de suspeitar dos arquivos. Ela abriu uma ferida no pensamento sem conseguir solucioná-la. “Os princípios básicos do Iluminismo mostraram ser falsos deuses, mas não havia outros novos para ocuparem o lugar deles” (ROOKMAAKER, 2015, p.148). Por esse ângulo, o pensamento pós-moderno pode ser visto como uma tentativa de se preencher essa brecha. Entretanto, sabemos que ela nunca se fechará, “pois ainda se ouve o eco das palavras de Isaías: “Homem, não seja tão néscio a ponto de se curvar diante de imagens que você mesmo fez”. É praticamente impossível que o homem aceite agora uma religião que ele inventou.” (ROOKMAAKER, 2015, p.148). O movimento intelectual que

colocou a razão humana em um pedestal é ela mesma a responsável por associá-la ao irracional, onde a preservação e a destruição devem coexistir para impelir um futuro. Semelhantemente, é também o Iluminismo um dos pontos de partida para o ensaio de Farocki.

REFERÊNCIAS

AYLESWORTH, G. Postmodernism, 2015. Disponível em: < http://plato.stanford.edu/entries/postmodernism/ > BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Trad. José Lino Grünewald. In: CIVITA, Victor (Org.) Os Pensadores - XLVIII. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975. p.9-34. BENJAMIN, W. Teses Sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985 , 253 p. BONEVAC, D. Postmodernism. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=we6cwmzhbBE> DIJCK, J. V. Mediated Memories in The Digital Age. California: Stanford University Press, 2007. 256p. FALCI, C.H.R. A poética dos metadados e dos relatos de espaços – memórias de lugares imaginários. In: MEDEIROS, Afonso; ROCHA, Maurilio Andrade. (Org.) Fronteiras e alteridades: olhares sobre as artes na contemporaneidade. Belém: PPGArtes UFPA, 2014. p.81-91. ROOKMAAKER, H.R. A arte moderna e a morte de uma cultura. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2015. SCHAEFFER, F. A morte da razão. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2014. 104p.

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