HAYDEN WHITE: LIMITES DA REPRESENTAÇÃO HISTÓRICA E O HOLOCAUSTO * * Rascunho não publicado

June 12, 2017 | Autor: Fernando Garcia | Categoria: Narrative and Identity, Hayden White, Holocaust, Metahistory, Linguistic Turn, Historical representation
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HAYDEN WHITE: LIMITES DA REPRESENTAÇÃO HISTÓRICA E O HOLOCAUSTO* *

Rascunho não publicado

Fernando Gomes Garcia Mestrando em História, FAFICH/UFMG (2012/1) [email protected] Resumo: A proposta deste texto é refletir sobre como o giro linguístico afetou o campo da Teoria da História já bem consolidado. Trabalhando com artigos publicados na History & Theory no dossiê comemorativo dos 25 anos da publicação Metahistory e com a teoria tropológica e "relativista" de Hayden White, a investigação se seguirá para os limites da representação na História, uma vez indagando sobre as possibilidades de se narrar o Holocausto. Confrontando-o (além dos artigos citados) com outros autores, tentar-se-á verificar a plausibilidade de tal empresa, em vista da construção do que seria a ideal função social da História. De tal maneira, apresentaremos argumentos que justificam a necessidade de se ter o Holocausto narrado, ao mesmo tempo confrontando os obstáculos que a representação histórica nos impõem, justificando um silêncio historiográfico a respeito do maior genocídio da História. Abstract: This article's aim is to reflect about how the 'linguistc turn' affected and changed the well consolidated field of Theory of History. Using works published in History & Theory 25th years of Metahistory's dossier and Hayden White's tropological theory, the investigation will question the possibilities of narrativity and representation of Holocaust. Confronting Hayden White, his interpreters and critics with other authors who reflected toward this question, I shall analyse the plausibility of this achievement, having in mind the ideal of the function of historiography, as I will present it. Therefore the argumentation will show the urgent necessity of narrativizate the Holocaust, at the same time that yet there is obstacles that justify a genre of discourse about it such as the silence. Palavras-chave (keywords): Hayden White (Hayden White); Holocausto (Holocaust); representação (representation). Charlotte Beradt transmitiu o sonho de uma faxineira , já do ano de 1933, no qual o emudecer aparece como recurso de sobrevivência: "Sonhei que no sonho, por cautela, eu falava em russo (eu não falo russo, nem falo sonhando) para que eu mesma não me entendesse e para que também ninguém me entendesse (...).*

I Não há ainda um ano em que defendi minha monografia sobre o Holocausto partindo de uma perspectiva teórica, a respeito dos limites da representação em História. Parte do título ostentava os dizeres "narrar o inenarrável", que traduzia meu ponto de vista a respeito da *

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contrinuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2006: p.256

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impossibilidade de se narrar o Holocausto, por motivos que exporei mais adiante. Durante a arguição da banca, ao mesmo tempo que me vi forçado a defender esse ponto de vista, naturalmente tive que reconhecer alguns erros. Mas para além da simples argumentação infrutífera onde um tenta provar que seu ponto de vista está certo enquanto outro tenta mostrálo inviável, essa experiência foi uma oportunidade pare receber provocações e colocar em movimento meu pensamento sobre a temática; e é sobre algumas das passagens e estalagens por onde esse pensamento passou e parou, que pretendo dissertar nesta comunicação. † Com apenas poucos meses de pesquisa e sem poder dedicá-la como desejava meu foco, os passos dados ainda são poucos, e talvez a última pegada não esteja tão distante da primeira; ainda assim, espero que as novas leituras e as provocações sejam suficientes para promover uma reflexão nova. Primeiramente farei um apanhado, em linhas gerais, dos argumentos centrais da minha monografia. Tomando Hayden White e Carlo Ginzburg, perguntei se o Holocausto poderia ser narrado e concluí que. Isso porque, temerariamente, tomei partido de Hayden White, coisas que poucos ousariam a fazer. Eis os motivos: Carlo Ginzburg parece não ter compreendido bem o que a teoria tropológica queria dizer, assim como muitos outros, que nos indica Ankersmit. Ele cita um trabalho de Arthur Marwick sobre White, onde o atacava, dizendo que ele "must have injured its author more seriously than it target"‡ (ANKERSMIT, 1998:185). Outros leitores de White também o atacaram, como John Clive e Peter Burke – estes indicando uma "obscuridade" de seu texto, e em revisões sobre Metahistory, muitos evitavam usar a palavra "tropo" para falar em imaginação poética, demonstrando um não entendimento de sua teoria – aliás, teoria de Northop Frye, de quem Hayden White adapta e simplifica.§ Ou seja, pode-se interpretar que o historiador americano não foi compreendido por seus contemporâneos, que ou o leram mal, ou apenas tomaram conhecimento com parte pequena de sua obra, e não podemos descartar aqueles que só entraram em contato com ele indiretamente.** Essa percepção de que White não foi bem compreendido e que, portanto, seus críticos, na realidade, não faziam críticas ferrenhas ao autor, mas sim à caricatura que dele pintavam com seus mais frágeis pincéis e palhetas pobres, sem sequer compreendê-lo †

Agradeço, portanto, aos membros da banca avaliadora, Sérgio da Mata e Alessandra Soares Santos. ANKERSMIT, F. R. “Hayden White Appeal to the Historians.” History and Theory, May de 1998: 185. § VANN, Richard. “The reception of Hayden White.” History and Theory, May de 1998: 150 e seguintes. ‡

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minimamente. O White que eles criticam é um "pós-moderno", "relativista", que desconhece o trabalho do historiador, que ao pôr a narrativa da História como elemento ficcional à qual recorrem os historiadores, desconsidera por inteiro que exista o extratextual. Assim, tudo se resumiria a uma análise semiótica e de sentido que o texto é capaz de prover. Dados, eventos, fontes, pesquisa – a árdua pesquisa seria esquecida ou deturpada, quando posta em escrita, uma vez que pela forma narrativa que se apresenta, em nada se difere das narrativas ficcionais.†† Essa caricatura de White coloca um falso problema, de que a narrativa histórica seria esvaziada de seu conteúdo de verdade, rompendo as barreiras entre ela e as narrativas ficcionais – e mesmo que essa crítica fosse verdadeira para o trabalho desenvolvido por White, ela nem sequer chegou perto de ser discutida profundamente pelos seus críticos, chegando à mímesis, à qual recorrem tanto historiadores quanto romancistas – pois, afinal de contas, a ficção também faz parte do mundo e fala sobre o mundo. Dediquei grande parte Monografia expondo o pensamento de White – que, na verdade, ele não desconsiderava o trabalho arquivístico do historiador, mas que o resultado desta pesquisa era organizado por tropos; metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. A metáfora "ingênua" forma de conhecimento do mundo, onde as coisas são tomadas por comparações, e assim o que é comparado toma o lugar do outro; a metonímia seria uma forma mais refinada de conhecimento, e seu princípio seria tomar a parte pelo todo, exercício contrário do que faz a sinédoque, que toma o todo pela parte. A ironia seria o tropo mais "desenvolvido", onde, tomada a consciência de que a realidade não pode ser representada em sua completude linguisticamente, seria uma negação da própria linguagem, uma negação dos tropos, um reconhecimento de que o mundo é mais complexo daquilo que a linguagem pode apresentar. Assim ele apresenta a teoria tropológica na introdução de Trópicos do Discurso, como se os tropos se movimentassem em direção a uma forma mais refinada de conhecimento, para o que cita vários exemplos que não serão retomados aqui. Em Metahistória, a Introdução que foi escrita posteirormente ao resto do livro, coloca-nos mais dois elementos além dos tropos para se desenvolver um estilo de escrita e de pensamento, aos quais todos os historiadores seriam "reféns", ou melhor, poderiam se servir deles para escrever uma História rica, profunda, destacando-se desde os tempos em que foram escritas, **

Dentro dessa "má compreensão" da obra de White, podemos destacar a ênfase avassaladora dos comentários feitos a respeito de Metahistory, não levando em consideração vários de outros artigos de White e mesmo coletânea de livros. À sua primeira obra, resumiria-se, assim, o autor. †† Principalmente as narrativas modernas, estudadas por Auerbach, que faziam questão de se apresentar realisticamente

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causando impacto até hoje, como são os exemplos por ele tomados: Ranke, Michelet, Burckhardt e Tocqueville. Temos os modos de explicação: formista, mecânico, organicista e contextualista; e os modos de implicação ideológica: anarquista, radical, conservador, liberal. Entrelaçando os tropos com os modos de explicação e implicação ideológica, poderíamos tirar os seguintes estilos narrativos: romanesco, trágico, cômico, satírico. Com sua teorização sobre estilos narrativos, White nada mais faz do que reconhecer o óbvio: cada evento pode ser descrito de múltiplas maneiras, bastando observar a Revolução Francesa e seus autores para disto ter certeza; mas a afirmação polêmica que faz é a de que, sobre essas narrativas, não haveria critério para decidir qual era superior ou inferior ao outro; qual era mais realista e menos realista – isto do ponto de vista documental; as fontes não permite-nos asseverar que determinada História é superior que outra.‡‡ É neste ponto que White torna-se interessante para se pensar a narrativização do Holocausto. Também é aqui o ponto que Ginzburg toma para atacá-lo e aqui reside também a própria defesa de White; se as diversas narrativas históricas não podem ser decididas como mais realistas, melhores ou piores que as outras com base na documentação que usaram, nem a partir do seu estilo de formação de enredo (onde cada autor privilegia um fato em detrimento a outro), a autoridade decisória do juízo pairaria onde? Seria possível, então, formar diversas narrativas a respeito do Holocausto? Dado seu caráter extremo e a sua impossibilidade de historicização§§, voltei-me para um princípio que tanto White, como Ricoeur e o próprio Ginzburg reconhecem – a comunidade de sentido entre o historiador e seu público. Cada sociedade permite a escrita de um determinado tipo de História por comungarem público e escritor valores comuns. Seria, portanto, essa comunidade ética que imporia limites a representação do Holocausto. Nenhuma narrativa sobre ele poderia ser feita por, na tentativa de entender o outro, os perpetradores do Holocausto, estaríamos tentando entender o absurdo, dar sentido ao que não o tem em absoluto; e ao mesmo tempo estaríamos colocando em nossa criação identitária algo do qual gostaríamos de fugir. Para White, a função da História é tornar o não-familiar em familiar; poderia ser o Holocausto considerado familiar? A ausência de um público que se cativasse pela História do Holocausto ‡‡

Um argumento nesse sentido é defendido por Ankersmit, que nos fala de escopo. Para escolher determinada narrativa como melhor do que outra, deveríamos analisar o tanto que ela nos permite ver do passado, assemelhando-se à uma escalada que nos proporciona, a cada momento, uma visão diferente ou mais completa do que foi o passado. §§ O que para mim significa dizer que não podemos compreender o Holocausto por seus próprios termos, como um momento histórico onde determinado tipo de pensamento vigente, com o esforço de os historiadores se

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seria a justificativa para não poder narrar o Holocausto. Para Ginzburg, contudo, seria possível narrá-lo, e as diversas constituições tropológicas de estilo, *** não poderiam formar diversas narrativas do Holocausto, como as narrativas negacionistas, por exemplo. Também, usando termos de White, as narrativas não poderiam ser vazadas de diversos modos, mas sim de um modo específico, o modo verdadeiro. A escapatória dos tropos e da retórica "relativista" que Ginzburg busca fazer é um tanto estranha. Ele desconsidera a Poética de Aristóteles onde a História é colocada como uma forma de mímese inferior à literatura, alegando que o filósofo grego tratou do porblema da História em outro lugar, em sua Retórica. Por quê? O italiano alega que o termo utilizado por Tucídides para falar e escrever sobre a História não encontrava eco na palavra utilizada por Aristóteles, então passa a usar um arsenal de conceitos tirados da Retórica grega, que não estava contaminada pelo relativismo, mas sim formulada como uma investigação policial ou julgamento, onde as coisas podem ser provadas.††† Ginzburg passa então a falar de entimena, semeion e tekméria. Um entimena seria uma prova, semeion, um indício, e tekmeria uma espécie de entimena. Ginzburg usa o exemplo de Dorieu, que "ganhou a coroa de oliveiras", que, para quem estava familiarizado com o contexto, com as "regras inisíveis" de uma cultura, significava falar que Dorieu havia ganho as Olimpíadas. Um saber compartilhado entre historiador e sociedade. Fatalmente, então, Ginzburg se aproxima de White, onde o texto como artefato literário não é algo fechado em si – tem um antes e um depois, tem a pesquisa documental e a recepção de um público. E como a História não é feita apenas de pesquisa nas fontes, ela é dotada de sentido e significado, é concebida para fornecer orientação aos carentes de história, para os que pretendem forjar uma identidade. Portanto, na Monografia, julguei ser imprópria a narrativização do Holocausto, por uma questão ética. Para explicar o silêncio historiográfico a respeito do Holocausto, podemos nos remeter à metáfora de um terremoto avassalador, que deixou suas marcas mas, de tão forte, destruiu os esquipamentos capazes de colocarem nesse momento histórico distinto daquele em que escreve, poderia dar a explicação do fenômeno nazista e da tentativa de extirpar os judeus da Europa. *** Eu tenho por mim que os tropos e a linguagem são uma maneira a priori de ver o mundo. Não podemos perceber o mundo despido de uma linguagem e creio que essa teoria tropológica seja uma teoria válida para apreensão da realidade. Ou melhor dizendo, a realidade é construída linguisticamente. Essa construção, como creio, pode não ser edificada segundo de acordo com a teoria tal como é apresentada por White, mas certamente algo próximo do que ele apresenta nos permite pensar o modo como o homem e a realidade interagem. ††† Desconsidera, portanto, Heródoto com seu termo histor, que significa investigar, e desloca a paternidade da História à Tucídides. Essa simples escolha de Ginzburg fez-me pensar que a História atual deve muito mais aos antigos do que nós pensamos. Para se fazer uma História do conceito de História, ou dos diferentes significados de História na antiguidade até os dias de hoje, é um trabalho ainda a ser feito, apesar e impulsionados pelos esforços de Momigliano

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medir sua intensidade. Sua força que comprovaria sua veracidade é o que nos retira a possibilidade de medí-lo. Esse silêncio, por si só, é uma forma de discurso.

II Então o Holocausto não pode ser narrado? De acordo com Paul Ricoeur, e também Rüsen, toda experiência humana já, de alguma forma, está pré-narrada, toda História tem uma pré-história. A narrativização das experiências humanas é que transforma o passado de uma pré-história em História. Se toda experiência humana já está pré-narrada e precisa ser narrada para, de fato, ser tomada como algo existente, não narrar o Holocausto não seria uma forma de dizer que ele não aconteceu. Assim como todo texto pode ser interpretado de múltiplas formas, esse "silêncio discursivo", também não seria passível de outras interpretações, como, simplesmente, uma inexistência do Holocausto? Nós, como historiadores, não temos o dever de narrá-lo como um dos episódios mais traumáticos da História da Humanidade? Não narrar o Holocausto, inclusive, implica pensar o homem fora de uma Humanidade. Não colocar isso em narrativa deixa o passado como uma latência, e como todo evento traumático, sujeito a recalques, repetições.‡‡‡ A História, funcionando como se fosse uma psicanálise da Humanidade não poderia deixar de fora o Holocausto como evento exemplar, para que nunca mais pudesse acontecer. O passado é bastante singular: já passou e no entanto ainda está presente (...). Constantemente, apropriamo-nos do passado ou repudiamo-lo (...) divinizamolo e demonizamo-lo (...). Ainda que o esqueçamos, o passado permanece (...) como um fator de inquietação§§§ .

Não narrar o Holocausto pode ser uma forma de esquecimento do mesmo e tentativa de retirar algo que está presente, pois o passado nunca se apaga, mesmo que assim insistamos. Podemos construir memórias e esquecimentos, mas em nosso ser, constituído historicamente, dentro de um grupo que agiu e sofreu no mundo e tenta representar o passado antes mesmo ‡‡‡

E aqui me aproximo mais da psicologia do que eu gostaria, mesmo com o pouco contato com a obra de LaCapra. O problema dessa aproximação é a diferença fundamental entre minha perspectiva do que é um homem. A psicanálise é filha da metafísica da subjetividade, entendendo o homem como consciência e inconsciência – estruturas prévias e universais do ser. Eu já me aproximo de uma visão "fenomenológica" do homem, que não possui estruturas a priori, e em vez de constituir um ego, está em um constante construir de um eu que não existe préviamente às tentativas de seu desvelamento. Também sustento uma posição cética quanto à possibilidade de uma narrativa do Holocausto ser capaz de impedir repetições de genocídios, posto que esta crença seria uma aproximação demasiada do regime de temporalidade registrado de quando a História era mestra da vida. É preciso um redimensionamento da questão da narrativa de eventos limites com a hermenêutica e a ética. Uma aproximação de Paul Ricoeur será necessária e frutífera para o futuro desenvolvimento da pesquisa. §§§ RÜSEN, Jörn. “Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em história.” In: História, verdade e tempo, por SALOMON, Marlon (org.), 374. Chapecó: Argos, 2011: p. 259-260

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que nós o tentemos, mas o seu fardo pode nunca desaparecer. Não narrar o Holocausto pode ser uma tentativa de tentar escondê-lo e livrar-nos, seja seus perpetradores, seja os homens enquanto comunidade universal, seja nós, os historiadores, de seu peso. Seria uma tentativa frustrada e patética, como a de um homem que carrega sob suas costas uma enorme pedra, e para aliviar as dores que sente e descançar seus músculo, simplesmente imagina que não há pedra nenhuma a carregar – até sucumbir sob seu peso.**** Em Recordação da Casa dos Mortos, Dostoiévsky nos dá um belíssimo exemplo da situação de presos e seus trabalhos forçados. Até o faziam com algum gosto quando era útil, mas quando era apenas para fazer sofrer e não deixá-los desocupados, tomavam-nos uma completa falta de sentido. Comparável ao de destruir um castelo, pedra por pedra, só para ter o "gosto" de reconstruí-lo à 20 metros de distância. Qual o preço podemos pagar o por não narrar o Holocausto. Gerações inteiras sendo criadas, escolarizadas e educadas sem nunca saber que seus pais e seus avós fizeram durante a Guerra, o que aconteceu em seu país; ou, fora da Alemanha, o que aconteceu no mundo? Podemos simplesmente eliminar esse desconforto da familiarização com o Holocausto ao custo de uma ignorância global? Deixar nossa sombra de lado? A exemplaridade do mal nunca deve ser deixada de lado, pelo contrário, deve nos assombrar constantemente. Segundo Oliveira Martins: A História de Portugal consiste numa série de quadros, em que, na máxima parte das vezes, os caracteres dos homens, os seus actos, os motivos imediatos que os determinam e as condições e modo por que se realizam merecem antes a nossa reprovação do que o nosso aplauso. Crimes brutais, paixões vis, abjeções e misérias compõem, por via de regra, a existência humana; e por isso mais de um moralista tem condenado o estudo da história, como pernicioso à educação.††††

A questão se o Holocausto deve ou não ser narrado depende de uma única questão apenas: qual é a função da História, seja epistemologicamente, ética ou politicamente. A História deve narrar os acontecimentos humanos, sua experiência e dar-lhes o status de acontecido. Somente assim o homem pode reconhecer-se na História. Temos que dar satisfação aos que sofreram, mortos ou vivos e condenar os que fizeram sofrer.

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Humanismo do ensino do Holocausto e uma ontologia negativa do Holocausto pela sua não actualização enquanto narrativa. Como se o não-narrar se transformasse em "não existiu". †††† MARTINS, J. P. Oliveira. História de Portugal, v. I. Lisboa: Publicações Europa América, 1989: p.15

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Encerrei a última secção com um paradoxo, que sem muitos problemas posso chamálo do paradoxo central da narrativa da História. Rüsen assevera que sem carência, ou seja, sem a vontade de agir no mundo, que requer uma interpretação do passado, onde, sobre ele, colocamos um "superávit intencional", não haveria motivos para se fazer história, científica ou não. O paradoxo do sentido do conhecimento histórico paira na seguinte questão: como tornar algo passado, seja o que passou positivo ou não, em uma identidade coletiva (e essa coletividade tem diversos patamares). Numa tentativa de construir um conceito geral de História dos antigos até os modernos, podemos encarar essa tarefa da História como a tentativa do homem superar o tempo da morte para conseguir a eternidade. Dessa forma, também o sofrer seria passível de gerar uma identidade. Porém, a respeito do Holocausto, paira-nos a inquietação: é desejável que a sua narração gere sentido? Que nos familiarizemos com ele? Ou simplesmente podemos deixá-lo em latência, deixando o trauma livre para repetir os mesmos atos; ou, retomando nossa comparação psicanalítica, deixando o paciente com uma organização falha dos eventos. São questões que nos fazem pensar sobre o pragmatismo da História, e mais do que sua função identitária como construção de sentido a ser realizado, começamos a vislumbrar seus impactos éticos e políticos. A questão a respeito da narratibilidade do Holocausto se coloca em termos de aceitação ética e de política. Hayden White, seguindo Kermode‡‡‡‡, defende que a narrativização do mundo, seja ela em forma ficcional ou hisstoriográfica, tem por função domesticá-lo. Considerando, pois, essa função entre os historiadores, o que tentamos fazer é dar sentido ao caos do mundo da experiência, que em verdade não possui um fim por ser um devir incessante, para compreender o que se passou; em termos cognitivos seria colocar os nomes, as datas em uma cronologia, fixá-las ao narrá-las e pôr ordem e sentido na agonia do enfrentamento do tempo.§§§§ Sobre a narrativização de nossos atos, Nancy Partner chega a citar um livro de Freud, a A psicopatologia do cotidiano, demonstrando que não conseguimos passar um único dia sem narrá-lo, para dar uma ordem interna e externa a ele, considerando os acidentes que nos acontecem.***** Sendo assim, o anseio moderno por uma verdade história que atravesse uma narrativa não pode desconsiderar os aspectos ficcionais da construção de um texto historiográfico, e temos que ser sensatos o suficientes para compreender que o uso da ficção não significa um esvaziamento da verdade – o problema que White coloca, da linguagem ‡‡‡‡

Autor do aclamado The sense of a ending: studies in the theory of fiction. Isso, naturalmente, feito de acordo com os usos dos tropos e com a ênfase que cada autor põe em determinado fato, ou como constrói a sequência narrativa. §§§§

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como mediadora do homem com sua realidade afeta a sensibilidade de muitos historiadores, mas analisando-a de um ponto de vista sereno, podemos ver que ela não compromete o poder de verdade das narrativas históricas apenas por ser escrita em uma linguagem próxima a usada no cotidiano (mais próxima, ao menos, que as demais ciências). Do contrário, para chegar à realidade do passado, deveriamos aceitar o que Partner chama "piada de Hayden White", quando ele nos fala de um Anais medieval de St. Gall, onde a realidade histórica é encontrada simplesmente nas afirmações do que ocorreu em cada ano, com por exemplo, que no ano "709 – Hard winter. Duke Gottfried died".††††† A História sendo uma narrativa, e através dela querendo dar sentido ao passado, domesticá-lo, nos leva a outro problema, ao do duplo jogo de linguagem que a História possui, e que Crowell chama de "heterogeneidade do discurso histórico". Já que a narrativa é problematizada epistemologicamente, podemos, ainda assim, verificar seu grau de veracidade através de um jogo de linguagem específico: o cognitivo. Cognitivamente uma narrativa é analisada pelo ser real ou ser ficcional. Mover-se dentro desse jogo significa avaliar se a História representa fielmente os fatos ou se ela os ignora, assim podendo separar o que é real do que é ficção. Mas como colocamos a questão da pragmaticidade da História e das condições dela alcançar plenamente seu sentido, devemos analisá-la através de outro jogo de linguagem, o da normatividade. A normatividade implicaria numa situação da construção de dois espaços de poder, o do narrador, do historiador, colocado na posição de autoridade, e a do público que o escuta, na posição de jogadores do mesmo jogo, e moventes dentro das mesmas regras. Crowell enxerga isso ao verificar que toda narrativa histórica possui uum caráter moral que comunga o público com o historiador, bem aos moldes do que foi falado na primeira parte desse trabalho, porém de forma muito mais sofisticada, ao utilizar o vocabulário wittigensteiniano. Enxergando cognição e normatividade como dois jogos distintos, a História, por um lado, poder clamar pela veracidade do seu discurso e pelo lado da normatividade, verificar a construção de um "nós", onde determinadas regras podem ser aceitas ou não. O exemplo que Crowell dá, em princípio, é o da História dos gêneros, onde se fala que no passado a mulher era subjulgada pelo homem, era tratada em relação desigual e que essa relação não poderia ser repetida na atualidade. Isso implica dizer que determinadas formas de tratamento às mulheres eram errados, valorizando, assim, moralmente a História. Significa, também, dizer, que não ***** †††††

PARTNER, Nancy. “Hayden White: The Form of the Content.” History and Theory, May de 1998: 166 PARTNER, Nancy. “Hayden White: The Form of the Content.” History and Theory, May de 1998: 165

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devemos tratá-las do mesmo modo que as havíamos tratados, por ser isto injusto (um construção histórica totalmente partindo do ponto de vista do presente, pois esse tratamento condenado hoje poderia não ser condenado na época, podendo o historiador criar, em comparação com o largo debate sobre a formação das "consciências de classe", forjar uma "falsa consciência de injustiça sofrida pelas mulheres"). "The paradigm of normative discourse, of course, is moral.".‡‡‡‡‡ E segue: "One way of looking at such statments is as reformulated commands – "Do not steal" or "Do not engage unequal treatment" – hence as deriving from de language game of prescription "point" is obedience (...)".§§§§§ Assim, portanto, temos uma comunidade de sentido, pertencente a um jogo de linguagem moral que pode tão bem quanto o jogo de linguagem cognitivo, autorizar ou desautorizar certo discurso histórico. Essa comunidade de sentido pode ser construída pelo próprio discurso histórico, ou, fenomenológicamente, como propõem David Carr, ela já pode existir e basta a historiografia sacramentá-la. Sobre a narrativa enquanto doadora de sentido para a realiadade, ainda há de ser feita uma discussão profunda entre fenomenologia, hermenêutica e as implicações do giro linguístico, a qual ainda não estou pronto para encarar. Crowell, ao referir-se à História como discurso necessariamente heterogênico, adota a postura que chama de "robusta", que retoma Aristóteles e a organização narrativa do tempo com início, meio e, principalmente, fim. Mas há uma tradição que ele chama de "ascética", onde destaca Ankersmit. Como foi citado em uma nota de rodapé, Ankersmit fala-nos de uma maneira de interpretar a uma História simplesmente do ponto de vista cognitivo, para isso utilizando o escopo e a metáfora de que a narrativa mais rica seria aquela capaz de enxergar mais detalhes sobre a realidade histórica. Assim, a snarrativas históricas não seriam concorrentes, mas igualmente verídicas, adequadas para determinado tipo de público, que poderia escolhê-la de acordo como ela representaria sua realidade. Crowell, apesar de ver os méritos desse tipo de pensamento, detecta nele duas falhas. Primeiro, desqualificando a ética como produtora de juízo legítimo de uma historiografia ou outra – logo, podendo nós narrar uma História chauvinista do tratamento às mulheres ou outra que prescreve que elas não devem ser tratadas de maneira desigual (mas cada uma dessas narrativas incorporando um "nós" diferente, um consenso entre público e historiador em relação aos valores morais – poderíamos inclusive narrar uma História onde os dois valores ‡‡‡‡‡

CROWELL, Steven. “Mixed Messages: The Heterogeneity of Historical Discourse.” History and Theory, May de 1998:p. 226

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morais, o chauvinista e o feminista se adequavam como correto, pois os fatos narrados seriam o mesmo, apenas com as "metáforas" destruindo o sentido cognitivo para levá-lo para o âmbito político. Mas seria mesmo uma destruição? Creio, assim como Crowell, que as narratio de Ankersmit, ao construir diferentes escopos, se trai na própria linguagme, sempre carregando metáforas, e essas metáforas voltariam para a heterogeneidade do discurso histórico, onde os jogos de linguagem cognitivo e normativo entram em jogo. Falando, porém, dessa construção do "nós", dessa comunidade ética e de sentido que constitui a elação entre História e seu público. Ao narrar, não estamos apenas fixando temporalmente nomes e eventos, mas também normas. E não seria, pois, possível, encontrar normas éticas diversas, tais como as dos negacionistas, as dos sionistas, as dos que tomam o Holocausto como um evento horrível e entre aqueles que tratam o Holocausto como um evento banal, como qualquer outro da História?****** Minha resposta, infelizmente, é que sim.†††††† Podemos tanto condenar como aplaudir o Holocausto, e portanto, construir narrativas para diferentes "nós" particulares. Porém o desafio da historiografia não é esse. Disse que a não narrativização do Holocausto significa que o homem não existe enquanto Humanidade. Antes é preciso chegar ao topo, a um "nós" mais cosmopolita possível, a um "nós" que represente a Humanidade. Poderíamos formular uma narrativa histórica do Holocausto nesse nível de um "nós cosmopolita" que pode aceitar essa narrativa? Uma frase de Jaspers: "Wherever men become aware of their humanity and recognize man as man, they grasp human rights and themselves on a natural law to wich both victor and vanquished may appeal".‡‡‡‡‡‡ (JASPERS, 2000:31). Esta é uma bela frase que demonstra a necessidade e as condições para que um homem CROWELL, Steven. “Mixed Messages: The Heterogeneity of Historical Discourse.” History and Theory, May de 1998: 227 ****** Sobre a historicização do Holocausto, ver as cartas trocadas entre Martin Broszat e Saul Friedländer no final da década de 1990. †††††† Essa construção de um "nós", a concorrência entre narrativas e as diferenças de julgamentos possíveis foi o que permitiu Goldhagen a escrever seu infeliz livro Hitler's willing executioners, onde tenta culpabilizar todos os alemães, ao estilo como foi feito imediatamente posterior à Guerra. O livro e um grande debate sobre ele data dos finais dos anos 1990. Ele toma um ponto de desconsiderando a universalidade dos acontecimentos históricos de ali, para focá-los como problemas alemães. ‡‡‡‡‡‡ JASPERS, Karl. The Question of German guilt. New York: Fordham University Press, 2000. Essa frase, antes vista por mim como uma condição de pré estabelecimento de uma humanidade, portanto, de um respeito geral aos seres humanos, um reconhecer do direito de todos, transformou-se em um vir a ser. E enquanto vir a ser, mostra sua face maligna, posto que o reconhecimento do homem enquanto humanidade, requer também um reconhecimento de sua vileza e monstruosidade. O homem não nasce dentro de uma humanidade, essa humanidade é uma tarefa a ser cumprida, e quando cumprida, reconhecendo apenas a igualdade e o direito de todos, eliminando assim a possibilidade das vilezas. Essa frase torna-se um grande enigma na medida em que vemos não existir uma humanidade a priori, um nós cosmopolita integrador, mas diferentes homens à margem de um projeto integralizador. Em vez de identidades, ou reconhecimento de alteridades, construímos "outros nãohumanos". A retórica da desumanização. §§§§§

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reconheça-se no outro enquanto humano (e isto é amor). Os direitos humanos seriam nada mais do que a relação de amor comungado entre os homens. Mas relendo essa frase e colocando-a sempre em reinterpretação, notei algo de terrível nela. Reconhecer o homem no outro, significa reconhecer o que de terrível o homem pode fazer. Para chegarmos ao nível de interpretar o Holocausto em escala universal, precisamos reconhecer a capacidade aniquiladora e destruidora dos homens, precisamos reconhecer nosso terror. Enquanto isso ainda não for possível, enquanto existirem diversos "nós" contraditórios, a tentativa de narrar o Holocausto será a mesma de um homem vaidoso, porém de extrema feiúra, olhar-se no espelho e negar aquilo que lhe aparece sua própria imagem. As narrativas do Holocausto, portanto, não podem ser realizadas por não termos uma comunidade de sentido pronta para aceitar essa identidade. Rüsen fala que "O luto é o procedimento mental típicamente empregado no confronto com o passado traumático. De fato, faz sentido falar que, através do luto, se torna melhor o passado experimentado como perda e trauma".§§§§§§ Mas ainda não passamos por esse processo de luto – ele ainda está em andamento e precisamos esperar. "Trata-se de um silêncio******* que aqueles que nascerem depois de nós terão que fatalmente de quebrar".††††††† Chegará ainda um dia que ele poderá ser narrado e poderemos nos reconhecer no terrível tanto quanto no belo, e este será o dia que o Holocausto poderá ser narrado para um "nós cosmopolita".‡‡‡‡‡‡‡ RÜSEN, Jörn. “Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em história.” In: História, verdade e tempo, por SALOMON, Marlon (org.), 374. Chapecó: Argos, 2011: p. 287. ******* Eu tenho tratado, até então, o silêncio sobre o Holocausto, tanto como uma imposibilidade narrativa (devido aos constrangimentos de um evento limite para ser historicizado e sua refratariedade a ser reduzido a um discurso), quanto como um discurso histórico, uma dor que dói tanto e (ainda) não se pode dar voz. Mas talvez seja interessante tratar esse silêncio como uma espécie de stimmung, ou seja, um clima, uma presença sentida e incômoda, uma afetação que a simples não narrativa não pode apagar; muito pelo contrário, alimenta este "silêncio". ††††††† RÜSEN, Jörn. “Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em história.” In: História, verdade e tempo, por SALOMON, Marlon (org.), 374. Chapecó: Argos, 2011: p. 290. ‡‡‡‡‡‡‡ Escrever, reviver o Holocausto através da História, seria o mesmo que matar os judeus novamente, de certo modo. Daí a necessidade de uma nova forma de narrativa, que eu gostaria de chamar de narrativa do fracasso (exemplo de Bruno Shultz e seu pai, que em seu livro de contos "Sanatório", morre em cada conto, para ressuscitar e morrer novamente no seguinte). §§§§§§

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