Hegel e a relação entre ceticismo e filosofia (Projeto de Mestrado)

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Projeto de Mestrado Pesquisador: Lucas Nascimento Machado Orientador: Vladimir Pinheiro Safatle Hegel e a relação entre ceticismo e filosofia Resumo: O projeto propõe o estudo da relação entre ceticismo e filosofia, tal como ela é trabalhada por Hegel, tanto em sua juventude, quanto em sua maturidade. Por meio dessa pesquisa, esperamos poder investigar alguns dos modos centrais segundo os quais a temática aqui explorada estaria intimamente ligada à problemática da possibilidade de fundamentação da filosofia. Introdução Filosofia e ceticismo sempre tiveram uma relação conturbada. Com efeito, a tradicional distinção entre ceticismo e dogmatismo, estabelecida frequentemente pelos próprios céticos (tais como os pirrônicos e os acadêmicos) tenderia a indicar não haver nenhuma conciliação possível entre uma filosofia que não se mantenha nos limites da suspensão do juízo e a posição cética. Como se ultrapassar os limites dessa suspensão significasse, necessariamente, ser dogmático, asseverando-se aquilo que não se pode asseverar, julgando conhecer aquilo que não se conhece, ter provado aquilo que não se pode provar, decidido sobre aquilo que não se pode decidir. Entre a indecisão da suspensão de juízo cética e a decisão das demais filosofias passaria uma nítida linha divisória. Nessa divisão, toda filosofia que ultrapasse os limites da suspensão de juízo seria dogmática, não havendo possibilidade de conciliar a posição cética com qualquer posição filosófica que não tenha como resultado e fim a suspensão de juízo. Ora, não parece absurdo afirmar que um dos esforços mais presentes na filosofia é de se estabelecer um discurso filosófico que, sem se limitar à suspensão de juízo, não seja, entretanto, dogmático. Nesse sentido, uma das exigências centrais a um discurso ou sistema filosófico é que seja capaz de demonstrar que não é dogmático, ao menos no sentido de não partir de proposições e princípios injustificados, cuja verdade ou legitimidade não pode ser

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demonstrada ou garantida. Em outras palavras, é necessário a um discurso filosófico que não se limite à suspensão de juízo demonstrar por que é possível fazê-lo sem ser dogmático, o que significa questionar a legitimidade da disjunção que supõe que a única alternativa ao ceticismo seja o dogmatismo. Ou, pura e simplesmente, significa questionar a necessidade de se limitar à suspensão de juízo. Tal questionamento pode ser feito de diversas formas. A mais simples e evidente pareceria ser, com efeito, refutar o ceticismo – expor a falsidade pura e simples da sua posição, de sua aderência à suspensão de juízo e dos modos, argumentos e raciocínios pelos quais ele chega a ela. Porém, muitos filósofos tentaram questionar a necessidade da suspensão de juízo não pela refutação pura e simples do ceticismo, mas sim por meio de sua incorporação ao seu próprio discurso filosófico. Nesse último caso, não se busca atribuir ao ceticismo a mera falsidade, mas sim reconhecer nele o que há de verdadeiro e o que há de falso, incorporando os momentos de verdade da posição cética à sua própria filosofia e abandonando aquilo que há de falso nela. Nesse caso, não se trata de refutar o cético; antes, trata-se de interpretá-lo corretamente, como se a interpretação correta do que há de verdadeiro por trás da posição cética já bastasse por si mesma para mostrar que não é necessário suspender o juízo indefinidamente para não ser dogmático. Essa incorporação do ceticismo à própria filosofia, de fato, parece ter desempenhado um papel central na constituição dos discursos de alguns dos filósofos mais proeminentes da modernidade. Quer falemos de Descartes e sua dúvida metódica, quer de Kant e seu despertar do ‘sono dogmático’ graças a Hume, o recurso ao ceticismo parece ter se configurado em um dos instrumentos mais valiosos – e talvez mesmo necessários – da filosofia moderna para constituir a si mesma e dar conta das questões que lhe são centrais. Como se, para se pensar a filosofia, fosse necessário pensar também a sua relação com o ceticismo, o seu modo de relacionar-se com essa forma de pensamento e o que ela significa ou pode significar para a filosofia. Nesse sentido, talvez Hegel tenha sido um dos filósofos que mais levaram a sério a necessidade de se pensar a relação entre ceticismo e filosofia para que o próprio discurso

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filosófico possa ser pensado e compreendido. Quer na sua juventude, por meio, sobretudo, de seu artigo Sobre a relação do ceticismo com a filosofia, quer em sua maturidade, em sua Fenomenologia do Espírito, Hegel insiste na indissociabilidade do verdadeiro ceticismo da verdadeira filosofia, concebendo a genuína atividade cética como inseparável do modo de operar próprio à filosofia e como indispensável para que uma verdadeira apreensão filosófica seja possível. Assim, tendo em vista a relevância da relação entre ceticismo e filosofia para a reflexão sobre a própria filosofia e suas possibilidades, bem como o modo particular e rico de Hegel de trabalhar essa relação em diferentes momentos de seu percurso intelectual, parece-nos de grande interesse investigar mais a fundo os modos pelos quais Hegel relaciona filosofia e ceticismo. Objetivos Nesta pesquisa, estudaremos a relação entre ceticismo e filosofia, tal como ela é trabalhada por Hegel tanto em sua juventude (em seu Sobre a relação do ceticismo com a filosofia) quanto em sua maturidade (na introdução e no capítulo sobre a consciência de si da Fenomenologia do Espírito). A partir desse estudo, esperamos poder contribuir para a discussão de problemas filosóficos que nos parecem permanecer atuais e que envolvem a própria problemática da fundamentação da filosofia, problemática na qual, a nosso ver, a relação entre ceticismo e filosofia desempenha um papel chave, que Hegel destaca trabalha e traz à superfície em uma série de aspectos fundamentais. Justificativa Em seu artigo Sobre a relação do ceticismo com a filosofia (Verhältnis des Skeptizismus zur Philosophie), publicado em 1802 na Kritisches Journal der Philosophie, revista que editava juntamente com Schelling, Hegel faz o review do livro de Schulze, Crítica da Filosofia Teórica (Kritik der theoretischen Philosophie). Nesse livro, Schulze, um dos mais proeminentes céticos modernos de sua época, faria a exposição de seu próprio ceticismo, por meio da crítica daquilo que ele chama de ‘filosofia teórica. A filosofia teórica, tal como ele a compreende, seria “a ciência das mais elevadas e incondicionadas causas de todas as coisas

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condicionadas das quais temos certeza da sua atualidade.” 1. Mas, como essas causas incondicionadas e as coisas condicionadas de que são causa devem ser compreendidas, de acordo com Schulze? Para Schulze, as causas incondicionadas, se devem ser verdadeiramente incondicionadas, devem, por esse mesmo motivo, ser objetivas. Isso porque, caso contrário, aquilo que elas são seria condicionado àquilo que elas são para outro, quer dizer, elas seriam meramente subjetivas, não algo que é em-si e independentemente de qualquer condição que lhe é imposta, mas sim para outro e condicionado por essa relação com o outro. Em outras palavras, as causas incondicionadas devem ser objetivas na medida em que, caso fossem o que são não em-si, mas sim para outro, ou, em outras palavras, para um sujeito cognoscente, precisamente por isso não seriam incondicionais, mas sim algo que só é tal como em sua relação com o sujeito para o qual ela é, sendo dependente, portanto, dessa relação. Precisamente por esse motivo, as coisas condicionadas não são senão aquelas que são o que são apenas na relação com o sujeito cognoscente, quer dizer, tal como aparecem para ele. Sendo assim, aquilo que a filosofia teórica busca conhecer são as causas incondicionais, o fundamento objetivo das coisas condicionadas, quer dizer, das coisas tal como elas são para o sujeito cognoscente, tal como elas são na consciência. Em suma: a filosofia teórica busca conhecer o em-si das coisas, quer dizer, aquilo que elas são independentemente de como aparecem para a consciência e que, no entanto, é condição e causa da sua aparição nela (pois é necessário que elas existam como algo independente do sujeito para que possam afetá-lo e assim aparecer para ele). Compreendendo desse modo a filosofia teórica, Schulze afirma a impossibilidade de ela alcançar o seu objetivo: afinal, tal filosofia, na medida em que só tem acesso àquilo que se dá na consciência e só pode se valer daquilo a que tem acesso por sua consciência para conhecer as coisas, só poderia tentar conhecer as causas incondicionadas por meio das coisas condicionadas (ou, mais especificamente, dos conceitos com os quais tenta construir uma ponte para coisa em-si2), ou, o que é o mesmo, inferir a causa a partir do efeito. Entretanto, toda

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Schulze, 1801, vol. I, pp. 26-27. Cf. Hegel 1986, p.219

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inferência da causa a partir do efeito seria necessariamente incerta – de tal modo que nenhum conhecimento definitivo e seguro das causas incondicionais das coisas condicionadas poderia ser atingido. Por esse motivo, o ceticismo de Schulze recusa a filosofia teórica em suas pretensões, inatingíveis, e faz dessa recusa e negação de tal filosofia o seu aspecto negativo. Entretanto, o seu ceticismo não se limitaria ao aspecto negativo, de rejeitar a filosofia teórica em suas pretensões metafísicas. Lembremos a definição que Schulze nos fornece da filosofia teórica, como aquela que quer conhecer ‘as mais elevadas e incondicionais causas de todas as coisas condicionadas das quais temos certeza de sua atualidade’. Ora, por essa definição, vemos que se Schulze, por um lado, rejeita a possibilidade de se conhecer as causas incondicionadas daquilo que se passa na nossa consciência, dos fatos da consciência, precisamente desses fatos, no entanto, podemos ter certeza de sua atualidade, sua existência, sua verdade enquanto conteúdos da consciência. Por esse motivo, aquilo que se dá no interior da consciência possui

“certeza inquestionável; já que desde que está presente na consciência, não podemos duvidar da sua certeza mais do que podemos duvidar da consciência ela mesma; e querer duvidar da consciência é absolutamente impossível, porque qualquer dúvida deste tipo destruiria a si mesma desde que não pode ocorrer à parte da consciência, e portanto não seria nada; o que é dado na e com consciência, nós chamamos um fato atual da consciência; segue-se que os fatos da consciência são o que é inegavelmente atual, aquilo ao qual todas especulações filosóficas precisam ser relacionadas, e o que será explicado ou feito compreensível por meio destas especulações.”3.

Sendo assim, o ceticismo de Schulze possui também um lado positivo: se, por um lado, nega a possibilidade de conhecer as coisas tal como elas são fora da consciência e em-si, por outro, afirma a possibilidade de conhecê-las efetivamente e com segurança tal como são na consciência, na medida em que a certeza da existência desses fatos, enquanto algo de consciente e que se dá na consciência, seria inquestionável. Dessa forma, se por um lado, esse ceticismo duvida dos “julgamentos peculiares à filosofia, ou seja, aqueles os quais definem os fundamentos absolutos ou ao menos supra-sensíveis de algo que está presente de uma maneira 3

Schulze, 1801, vol. I, p. 51.

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condicionada de acordo com o testemunho da consciência, ou seja, os fundamentos presentes fora da esfera da consciência” 4, por outro, não julga razoável duvidar dos fatos da consciência enquanto tal, e das ciências que dissertam sobre eles. Por isso, julga que sua dúvida seja mais racional e apropriada do que a dos céticos antigos, que não teriam reconhecido com clareza o âmbito e o alcance de suas dúvidas e teriam mesmo chegado a duvidar daquilo que não seria razoável duvidar. É precisamente essa pretensão desse ceticismo moderno de se colocar como o ceticismo mais racional que Hegel pretende atacar em seu artigo. Para tanto, confrontará essa figura moderna do ceticismo com as suas figuras antigas, a fim de mostrar como sua figura mais recente, muito antes de ser um aperfeiçoamento, é uma degeneração do ceticismo, não apenas por aderir dogmaticamente aos assim chamados ‘fatos da consciência’, mas também por enxergar apenas filosofias céticas e dogmáticas, como se não houvesse outra alternativa. Tratase, portanto, de mostrar como o pretenso ceticismo de Schulze seria dogmático, diferentemente do ceticismo genuíno, e como não existem apenas filosofias céticas e dogmáticas; muito pelo contrário, as verdadeiras filosofias, ainda que não sejam puramente céticas (no sentido de se resumirem ao seu aspecto cético) têm o ceticismo, ao menos o genuíno, como uma parte absolutamente indissociável de sua filosofia e do que a torna, ela mesma, genuína 5. Para demonstrar o primeiro ponto, Hegel nos lembra que o ceticismo antigo nunca atribuiu àquilo que se dá na consciência, ou, em outras palavras, às aparências o valor de uma certeza teórica inquestionável, como se julgasse conhecer efetivamente as aparências 6 . As aparências não eram um critério teórico para os céticos antigos; antes, eram um critério prático 7

de ação ; e, se eles afirmavam não poder duvidar das aparências, isso não se devia a possuírem um conhecimento objetivo e certo delas, mas sim porque não podem impedir que as coisas apareçam para eles tal como aparecem. Enquanto, para o cético moderno, as aparências das coisas têm certeza indubitável, na medida em que existem necessariamente na consciência

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Idem ibid., vol. I, p.585. Cf. Hegel, 1986, p.227 6 Cf. idem, ibidem, pp. 223-224 7 Cf. Empírico, 2006, p.25 5

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enquanto seus conteúdos, para o cético antigo, as aparências, precisamente porque são aparências, não têm nada de certo e inquestionável de um ponto de vista teórico. Pelo contrário, elas não são nada que se possa conhecer de modo seguro porque não têm nada de seguro e certo elas mesmas. Antes, a aparência das coisas está sujeita à constante mudança: não apenas não sabemos se as coisas são tal como aparecem ou de outro modo, mas elas também aparecem para a consciência de modos distintos em momentos distintos, o que impossibilita mesmo conhecer como as coisas aparecem para a consciência, na medida em que a aparência das coisas se altera de acordo com a situação 8. Desse modo, se o cético moderno se aferra aos ‘fatos da consciência’ como algo de certo e indubitável, a respeito do qual podemos ter um conhecimento igualmente seguro, para Hegel, o alvo principal das críticas do ceticismo antigo (enquanto este não comete o equívoco de voltar-se contra a filosofia) não seria outro senão essa crença, tão característica do senso comum, na segurança das aparências como algo por meio do qual podemos ter algum conhecimento certo e seguro 9. Afinal, é o senso comum, ou, nas palavras de Hegel, a consciência ordinária comum, que toma as aparências das coisas, o mundo sensível e o modo de conhecimento próprio a ele como algo que possui certeza inquestionável, como algo de seguro e permanente. É ele que tem a ilusão, em outras palavras, de que aquilo de que tem experiência e conhece por meio dos sentidos possa ser verdadeiro e certo por si mesmo, algo cuja existência pode ter ‘certeza inquestionável’ não obstante o fato de ser mera aparência. E é essa ilusão que o cético antigo busca desfazer. De que maneira, no entanto, o cético busca desfazer a ilusão de que por meio das aparências possamos ter qualquer conhecimento seguro? De nenhum outro, senão por meio da habilidade definidora do cético, a “habilidade para dispor oposições entre coisas que aparecem e sobre as quais se pensa de qualquer modo que seja, uma habilidade por meio da qual, devido à equipolência nos objetos e explicações opostos, chegamos (...) à suspensão do juízo.” (Sexto Empírico 2000, I, seção iv). Frente a todo argumento que busque dizer da coisa o que ela seja, o

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Cf. Hegel, 1986, p.232 Cf. idem ibidem, p.238

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cético produz uma argumentação no sentido oposto e igualmente persuasivo, afirmando que a coisa é o contrário do que se buscava estabelecer pela primeira argumentação. Desse modo, frente a duas argumentações contrárias de igual peso sobre a mesma coisa, chega-se ao resultado inevitável de não se poder decidir sobre aquilo que a coisa é, ou, em outras palavras, decorre como conseqüência necessária e inevitável a suspensão de juízo. Para Hegel, se é possível ao cético operar desse modo, isso se deveria ao fato de que, sobre as coisas do mundo sensível, é possível dizer tanto que são algo quanto o seu contrário, e por aparecerem tanto de uma forma quanto da forma contrária: o mel não é mais doce que amargo, e pode aparecer de formas distintas para sujeitos distintos, ou mesmo para o mesmo sujeito em momentos e condições diferentes

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. Quando estamos no domínio dos objetos

sensíveis, não é possível obter nenhum conhecimento seguro, nem alcançar nenhuma verdade incondicional. Isso porque nesse domínio tudo pode ser tanto de uma forma quanto da forma contrária, nada é definitivamente de uma forma ou de outra, mas, antes, pode ser concebido tanto de um modo quanto do seu contrário e pode igualmente aparecer de modos opostos, mudando constantemente. Dessa forma, não podemos dizer que porque algo aparece de um modo ele é desse modo (pois nada impede que possa ser pensado com igual persuasão do modo contrário) e nem mesmo que porque algo apareceu de um modo que aparecerá sempre da mesma maneira (podendo aparecer em momentos distintos de formas opostas). Poderíamos dizer, em poucas palavras, que, para Hegel, se o cético pode operar no interior do mundo sensível de modo a produzir a eqüipolência de argumentos, isso se deveria ao fato de que tudo da ordem do sensível e do seu conhecimento é marcado pela oposição, ou, colocado de outra forma, pela finitude, na medida em que aquilo que é da ordem do sensível é da ordem do determinado. Mas, qual seria a relação mais exata entre finitude, oposição e determinação? Para responder essa pergunta, precisamos esclarecer antes de tudo o que significa, aqui, determinar um objeto. Para Hegel, assim como para Espinosa, determinar é negar, (Omni determinatio est negatio), quer dizer, determina-se um objeto, se define o que ele é por meio da operação de 10

Cf. Hegel, 1986, p.238

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negação daquilo que não pertence ao seu conceito. Determina-se um objeto, em outras palavras, pondo-se o seu limite, e é apenas pelo seu limite que o objeto adquire a sua determinação própria. Determinar o mel como doce significa negar que ele seja amargo, e vice-versa. Assim, para determinar o objeto de acordo com uma determinação, um conceito específico – doce ou amargo, por exemplo – é necessário negar a determinação oposta. O que nos permite dizer que toda determinação se define essencialmente como negação da determinação oposta, ou, pura e simplesmente, toda determinação é a negação da determinação oposta. Determinar um objeto significa, portanto, excluir daquilo que o define aquilo que é oposto à sua determinação, e que só por meio dessa exclusão que ele adquire sua determinação própria. Ora, mas se é assim, tudo que é da ordem do determinado é marcado pela oposição. Mais do que isso, é definido e dependente dela, não subsistindo para além da oposição pela qual se define. O amargo não é amargo se não se opuser ao doce, e vice-versa. Sendo assim, aquilo que é determinado só existe enquanto tal em uma relação de oposição, por meio da qual se põe o limite que o define em sua determinação. O que significa que tudo que é da ordem do determinado depende da sua relação com o seu oposto e é definido por ela, de tal modo que tudo que é determinado, para sê-lo, deve ao menos admitir a possibilidade da determinação que lhe é oposta. Caso contrário, não haveria nada a se opor e não seria possível determinar-se por meio dessa oposição. Dessa forma, aquilo que é determinado pressupõe o seu oposto como um momento interno a sua própria determinação e só subsiste na sua relação com o seu oposto. Mas o que subsiste apenas no interior de uma relação só pode ser relativo e, por isso, não ter nenhuma verdade, nenhuma subsistência por si mesmo. Tudo que tem um limite, na medida em que este é posto apenas por meio de uma relação com aquilo que exclui, não subsiste por si mesmo. Sendo assim, tudo que é finito, tudo que carrega consigo a marca da finitude não subsiste por si mesmo, antes, sendo marcado pela oposição que o define e é condição de sua determinação. Assim, para Hegel, se é possível ao cético operar, no interior do mundo sensível, a produção de argumentos contrários de igual persuasão, isso se deveria ao fato de que a igual necessidade de ambos os polos de toda e qualquer oposição já estaria dada no interior do

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próprio mundo sensível, já que ele a pressupõe para que os objetos sensíveis possam se constituir – com efeito, poderíamos dizer que a determinação é a marca do sensível, na medida em que é no mundo sensível que as coisas se dão de uma forma e não de outra, são determinadas como uma coisa e não outra. E a consciência ordinária comum, sem se dar conta de como cada coisa determinada pressupõe o seu oposto é por isso só existe no interior de uma relação, sendo meramente relativa, toma como absolutamente verdadeiro e incondicionado aquilo que é meramente da ordem do determinado, aquilo de que tem experiência e conhece por meio dos sentidos. Nesse sentido, ela é dogmática, precisamente por tomar como verdadeiro e como verdade incondicionada aquilo que é relativo e precisamente por isso condicionado 11. Ou, em outras palavras, é dogmática ao querer por injustificadamente algo como absoluto e incondicionado, querer impor algo como absoluto sem justificar ou ter meios de justificar essa imposição, na medida em que aquilo que impõe não é senão relativo, condicionado, dependente do outro a que se opõe e se relaciona por essa oposição e sobre o qual pode se afirmar com igual direito a necessidade. E é dessa igual necessidade da determinação oposta àquela que a consciência ordinária comum gostaria de por como absoluta que o ceticismo antigo, nos lembra. Por isso, o cético antigo, naquilo que há de genuíno em seu ceticismo, isto é, na denúncia da finitude das ‘verdades’ da consciência ordinária comum, é “racional nesse sentido, de que ele permite que o [momento] oposto, do qual o dogmatismo havia abstraído, suba ao palco contra o [momento] finito do dogmatismo” (Hegel, 1986, p.246). Com efeito, quando o cético critica aquilo que o dogmático toma por absoluto, é a “Razão [que] mostra com respeito a esse Absoluto, que ele tem uma relação com aquilo que está excluído dele, e apenas existe por meio dessa relação com o outro” (Hegel, 1986, p. 245), sendo, portanto, meramente relativo. Mais do que isso: quando o cético afirma que “tudo o que é atual [quer dizer, tudo aquilo que é da ordem do que é experienciado por meio dos sentidos] é condicionado por outro”, ele expressa “um princípio da Razão” (Hegel, 1986, p.240). Ora, mas é precisamente sobre as coisas condicionadas em sua atualidade, sobre os ‘fatos da consciência’ que Schulze julgava poder ter certeza e conhecer com segurança, como se 11

Cf. Hegel, 1986, p.245

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esses ‘fatos’ pudessem ter algo de certo e seguro em si mesmos. Nessa medida, Hegel afirma que o seu ceticismo moderno é tão dogmático quanto a consciência ordinária comum, na medida em que essa se aferra às suas ‘verdades finitas’, a esses fatos da consciência como se eles tivessem em si e por si mesmos algo de verdadeiro. Sendo assim, o ceticismo de Schulze não é mais racional que o antigo, não duvida com mais propriedade do que ele; muito pelo contrário, precisamente na medida em que se aferra aquilo que é da ordem do sensível, aos fatos da consciência e ao conhecimento que temos deles, como algo que possui em si mesmo alguma verdade e certeza, esse ceticismo moderno seria tão afim ao dogmatismo que seria impossível distingui-los completamente. Em outras palavras, ao buscar algo de certo nas coisas condicionadas, sem perceber, no entanto, que ser condicionado significa precisamente não ter nenhuma certeza em si mesmo

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, Schulze não elevaria o ceticismo para um novo nível de

racionalidade, mas sim o rebaixaria ao dogmatismo já presente no senso comum. Se o ceticismo seria racional e genuíno na medida em que expõe e denuncia as verdades finitas da consciência comum em sua finitude, isso se deveria, de acordo com Hegel, ao cético (o genuíno, pelo menos) encontrar o fundamento de suas críticas na Razão. Afinal, se o cético enxerga o finito em sua finitude, isso só é possível por vê-lo do patamar do infinito, do incondicionado, da Razão, unicamente por meio da qual tudo o que é finito pode ser reconhecido em sua finitude. É a Razão, por ser ilimitada e ir para além dos limites do finito, que mostra que o finito possui um limite. As críticas céticas à consciência ordinária comum, portanto, só possuem fundamento se decorrem da Razão, se nela se baseiam. O ceticismo que se volta contra a Razão volta-se contra o seu próprio fundamento, e torna-se, assim, inconsistente 13. Se o cético volta-se contra o senso comum, é porque reconhece que, por meio das ‘coisas condicionadas’ da ordem do sensível, nenhuma cognição efetiva, nenhuma verdade absoluta e incondicional pode ser atingida. Em outras palavras, o cético reconhece que, por meio desses ‘fatos da consciência’, não se pode ter nenhuma cognição do

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„Wenn aber jede Tatsache des Bewuβtseins unmittelbare Gewiβheit hat, so ist eine Einsicht, daβ etwas nur bedingterweise existiere, unmöglich; denn bedingterweise und für sich nichts Gewisses sein, ist gleichbedeutend.“ (Hegel, 1986, p.221) 13 Cf. Hegel, 1986, p. 246

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Absoluto. Porém, se o cético se volta contra a Razão, e sua cognição do Absoluto – ou, em outras palavras, sua cognição de si própria – nisso volta sua crítica, que diz respeito apenas àquilo que é da ordem do finito, do determinado, àquilo que é da ordem do infinito, do indeterminado, degenerando-o e subvertendo-o a algo de finito

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. Pois o que está em questão

nessa auto-cognição não é uma cognição do incondicionado por meio de um condicionado, como uma tentativa de obter um conhecimento certo e seguro através dos assim chamados ‘fatos da consciência’; antes, é a cognição do incondicionado por meio de si próprio que se dá pela Razão, já que unicamente por meio dele podemos ter uma cognição efetiva dele mesmo – só o incondicionado pode fundamentar a cognição de si próprio. Se Hegel considera a Razão em sua auto-cognição a auto-cognição do Absoluto, isso se deve precisamente a considerá-la como o incondicionado que é condição de todo o condicionado – quer dizer, é unicamente por meio dela que o condicionado pode vir a ser, é ela que o possibilita e o gera, é o seu fundamento e condição de sua possibilidade. Mas, como vimos anteriormente, o condicionado, o finito é justamente aquilo que subsiste apenas no interior da relação de oposição com o seu oposto. Em outras palavras, é a relação de oposição que é a condição de possibilidade de tudo aquilo que é determinado, finito. Ora, mas a relação ela mesma, justamente na medida em que é condição de todo condicionado, não é ela mesma condicionada; e, na medida em que não é um dos termos da oposição, que subsiste apenas nessa relação de oposição e é por isso meramente relativo, a relação não é, ela mesma relativa. Afinal, nada é oposto a ela, mas, antes, ela que estabelece a oposição entre os termos determinados 15 e que, por ser a união deles enquanto aquilo que os relaciona, contém ambos os termos da oposição no seu próprio interior 16. Mas se é assim é essa relação – a qual, justamente, Hegel chama de Razão – que é o incondicionado, o Absoluto que se buscava apreender. Por isso, a cognição do incondicionado deve ser a auto-cognição da Razão, que intui a si mesma como

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Cf. Hegel, 1986, p.247 „Es kann vom Vernünftigen (...) nicht gezeigt werden, daβ es nur im Verhältnis, in einer notwendigen Beziehung auf ein Anderes ist; denn es selbst ist nichts als da Verhältnis.“ (Hegel, 1986, p. 246) 16 (...) denn das Vernünftige hat kein Gegenteil, - es schlieβt die Endlichen, deren eines das Gegenteil vom anderen ist, beide in sich.“ (Hegel, 1986, p.247) 15

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relação que é condição de possibilidade de toda e qualquer coisa determinada, o infinito que é condição e fundamento do finito. Deste modo, o ceticismo genuíno seria indissociável da auto-cognição da Razão enquanto seu lado negativo17, na medida em que esta só pode ser atingida se a Razão não for concebida como nada de determinado – ou, ao menos, como nada que se fixa em uma única determinação e pode ser subsumida nesta. Muito pelo contrário, a Razão, o Absoluto deve ser concebido na indeterminação que lhe é inerente. Por isso, para que a cognição da Razão por si mesma se dê, é necessário reconhecer a finitude daquelas ‘verdades’ do senso comum, da consciência que se mantém dentro dos limites do sensível e dos moldes pelo qual ele é pensado, isto é, dos moldes da determinação. É preciso enxergar o finito em sua finitude, quer dizer, enxergar que aquelas ‘verdades’ determinadas que a consciência ordinária comum toma por absolutas e incondicionadas são, na verdade, condicionadas, relativas. E é precisamente a skepsis do cético que permite enxergar a finitude do senso comum, tomar o finito por finito e reconhecer que o senso comum toma, equivocadamente, o finito por infinito. O verdadeiro ceticismo é, portanto, indissociável da verdadeira filosofia. E o ceticismo que se volta contra a auto-cognição da Razão, buscando criticá-la por meio da operação de oposições que lhe é característica, perde a legitimidade de sua crítica, não apenas por voltá-la àquilo que não é da ordem da finitude, unicamente à qual ela pode ser aplicada, mas também por voltar-se justamente contra o fundamento que legitima e possibilita a crítica cética da finitude da consciência ordinária comum. Por isso, Schulze, com o seu ceticismo moderno, não apenas subverte o ceticismo por tomar o finito – os fatos da consciência – como infinito, mas também por tomar o infinito – o Absoluto, o incondicionado, a Razão – como finito – como algo que é determinado como causa e oposto ao seu efeito, ou como algo que é determinado como coisa em-si em oposição àquilo que é pensado sobre ela, quando, muito pelo contrário, ele deveria ser apreendido como a identidade entre causa e efeito, entre a coisa e o que é pensado sobre ela 18.

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„Dieser Skeptizismus macht nicht ein besonderes Ding von einem System aus, sondern er ist selbst die negative Seite des Erkenntnis des Absoluten und setzt unmittelbar die Vernunft als die positive Seite voraus.” (Hegel, 1986, p.228) 18 Cf. Hegel, 1986, p.250

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Se esse artigo já parece bastar para mostrar como, no Hegel de juventude, a relação do ceticismo com a filosofia desempenhava um papel fundamental para pensar a filosofia e sua tarefa, devido ao modo próprio do cético de operar e significar a determinação e a indeterminação, essa relação será talvez ainda mais significativa na Fenomenologia do Espírito. Com efeito, ainda que, por um lado, o ceticismo apareça como apenas uma das figuras da consciência de si, sua aparição na introdução da Fenomenologia revela que ele possui ainda um papel mais profundo, e mesmo fundamental para a possibilidade do percurso dialético percorrido nesta obra. Assim, tendo em vista a necessidade da “apresentação da consciência não verdadeira em sua inverdade” para que o Absoluto possa ser atingido pela consciência, vemos Hegel fazer, na introdução de sua Fenomenologia, a crítica da consciência natural, da consciência naturalizada, que “geralmente tem uma visão unilateral (...) sobre este movimento” (Hegel 2007, p.76), supondo que ele seja “um movimento puramente negativo” (Hegel, 2007, p.70). A consciência natural, não importa para onde olhe, enxerga apenas a oposição, a diferença de opiniões, de sistemas, de filosofias, a diferença e a dissociação absoluta entre os diversos saberes e as suas consciências correspondentes. Desse modo, não enxerga como seja possível relacioná-las senão pela oposição irreconciliável entre elas, a qual não poderia gerar nenhum resultado positivo. Ora, “um saber que faz dessa unilateralidade [de enxergar apenas a diversidade absoluta nos diversos saberes fenomenais] é uma das figuras da consciência imperfeita que ocorre no curso do itinerário e que ali [na apresentação da consciência não verdadeira em sua inverdade] se apresentará. Trata-se precisamente do ceticismo, que vê sempre no resultado somente o puro nada”(Hegel, 2007, p.70) 19. Aqui, cabe lembrar que a habilidade definidora do cético seria de produzir oposições entre argumentos, de tal forma que seja impossível decidir entre eles, dada a sua eqüipolência. 19

Um dies begreiflich zu machen, kann im allgemeinen zum Voraus bemerkt werden, daβ die Darstellung des nicht wahrhaften Bewuβtseins in seiner Unwahrheit nicht eine bloβ negative Bewegung ist. Eine solche einseitige Ansicht hat das natürliche Bewuβtsein überhaupt von ihr; und ein Wissen, welches diese Einseitigkeit zu seinem Wesen macht, ist eine der Gestalten des unvollendeten Bewuβtseins, welche in den Verlauf des Weges selbst fällt, und darin sich darbieten wird. Sie ist nämlich der Skeptizismus, der in dem Resultate nur immer das reine Nichts sieht, und davon abstrahiert, daβ dies Nichts bestimmt das Nichts dessen ist, woraus es resultiert. (Hegel, 2009, p.70)

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Impossibilitado de dizer seja o que for sobre o que seria a coisa devido à oposição irreconciliável e indecidível entre modos contraditórios de se determinar seu objeto, resta como produto final da atividade cética o nada poder dizer sobre a coisa. Sendo assim, o cético é incapaz de conceber seu objeto de qualquer modo determinado, não podendo, a partir da contradição de termos que opera, ir além do vazio, da indeterminação da suspensão de juízo. Se antes o esvaziamento das determinações do objeto consistia em um momento de verdade do ceticismo e uma operação necessária à apreensão do absoluto, esse esvaziamento agora se torna um momento da falsidade do ceticismo, que, por essa falsidade, é rebaixado a uma das figuras da consciência imperfeita. E, se anteriormente, a visão da finitude da consciência presa aos moldes do mundo sensível era indissociável da dissolução das suas determinações, agora a skepsis do cético tem que ser separada do seu esvaziamento das determinações da consciência, de tal modo que o ceticismo, ao menos enquanto atém-se a esse esvaziamento, não mais pode ser considerado como modo de apreensão da verdade, do Absoluto. É necessário antes que ele seja levado a sua perfeição, quer dizer, que se realize por meio da superação daquilo que possuía de falso, que consistia, precisamente, em seu modo de compreender a contradição entre determinações opostas como produzindo necessariamente apenas um resultado vazio, indeterminado. Em outras palavras, é necessário que a operação cética seja reconfigurada a partir da noção de negação determinada, que não mais se abstraia que o resultado dessa operação, “o nada é determinadamente o nada daquilo de que resulta” (Hegel, 2009, p.70). Um termo de uma oposição não nega o outro por ser opor externamente a ele, mas sim por ser o nada daquilo de que resulta, quer dizer, do termo o qual contradiz e do qual, no entanto, foi gerado. A contradição gerada pela oposição destes termos não é um produto vazio, uma carência de determinação, mas sim o aprofundamento da determinação do termo que é negado, na medida em que essa contradição é produzida como um movimento e conseqüência interna e necessária ao próprio termo, que passa ao seu oposto. Nessa medida, não é uma negação externa ao termo que pura e simplesmente o esvaziaria, mas sim uma negação

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que lhe é interna e que, o aprofundando em sua determinação, é necessária à sua realização 20. Daí porque será unicamente por meio da apreensão do resultado da operação de oposição cética como negação determinada que será possível o desdobramento do percurso fenomenológico por meio do qual a consciência poderá aceder à sua verdade, ao saber absoluto; porque é só por meio do percurso de suas negações internas que ela pode chegar a sua determinação verdadeira no Absoluto. O ceticismo não apenas seria um momento necessário no percurso fenomenológico, mas seu modo de operação, re-significado e levado à perfeição a partir da noção de negação determinada, seria indissociável da filosofia enquanto seu modo próprio de percorrer as figuras do saber imperfeito a fim de alcançar o saber absoluto 21. Pelo exposto, parece claro que a consideração sobre a relação da filosofia com o ceticismo foi fundamental para se pensar a filosofia e sua tarefa, quer em sua juventude, quer em sua maturidade, a partir da publicação da Fenomenologia do Espírito. Com efeito, as transformações na concepção de Hegel sobre o lugar e o papel que a determinação e a indeterminação possuem na filosofia parecem não poderem ser separadas de transformações no modo de conceber as relações entre filosofia e ceticismo. Se isso já nos pareceria o bastante para justificar um estudo mais aprofundado de como Hegel trabalha a relação entre ceticismo e filosofia, o modo como as considerações hegelianas sobre essa relação estão intimamente ligadas com questões que desde Kant foram centrais no debate do idealismo alemão. Afinal, é exaustivamente conhecida a afirmação de Kant de que foi Hume, um cético, que o despertou de seu sono dogmático, levando-o a formular sua crítica precisamente a fim de poder dar conta das objeções céticas levantadas por esse filósofo. E serão em grande parte as críticas à filosofia crítica feitas por um cético moderno, Schulze - o mesmo que Hegel critica em seu artigo de juventude – em seu Aenesidemus22, que levarão Fichte a concluir que a filosofia crítica precisa de uma nova exposição 23 , o que o levará a constituir o seu próprio sistema, no qual as considerações e objeções céticas desempenharam

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Cf. Safatle, 2006, p. 131 Cf. Hegel, 2009, p.69 22 Cf. Schulze, 1996. 23 Cf. Di Giovanni e Harris, 2000, prefácio, p. viii 21

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um papel fundamental, ainda que aqui os céticos em questão sejam Schulze e Maimon, e não Hume24. Quer para Kant 25, quer para Fichte, porém, a necessidade de responder ao ceticismo não implica a necessidade de rejeitar completamente a validade de suas objeções; antes, trata-se de dar-lhes o seu devido limite, no interior do qual não apenas o ceticismo não se oporia à filosofia, mas estaria de acordo e seria mesmo interna a ela. Dar o limite apropriado às objeções céticas estaria, portanto, intimamente ligado à própria condição de possibilidade da fundamentação de um sistema filosófico. Nesse sentido, não apenas o debate constante com o ceticismo, como a reflexão sobre qual seria o lugar e o papel do ceticismo na filosofia têm um lugar fundamental no interior do debate do idealismo alemão. Desse modo, as reflexões hegelianas acerca desses temas também se devem a uma necessidade de situar-se no interior do debate já presente acerca deles e de oferecer uma nova base para pensá-los, a fim de que, por meio de uma compreensão adequada do que está em questão na relação entre ceticismo e filosofia, seja possível compreender-se apropriadamente o que é necessário para se fundamentar um sistema filosófico. Não por outro motivo Hegel dá lugar de destaque para os céticos antigos: como vimos, é por meio deles que se pode compreender, a seu ver, em que consiste o ceticismo genuíno, e de que modo ele deve ser indissociável da filosofia para que ela mesma possa ser genuína

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. Em outras palavras, para

Hegel, Kant e Fichte se equivocavam em considerar o genuíno ceticismo, aquele a que deveria se dar atenção, o ceticismo moderno de figuras como Hume e Schulze; antes, é o cético antigo, com seu modo próprio de operar e significar a determinação e a indeterminação, que deve ser reconhecido como o autêntico cético. E é das objeções desse cético, e não do moderno, que se deve dar conta para que se possa verdadeiramente fundamentar um sistema filosófico. Tendo em vista essas considerações, a pesquisa que aqui propomos nos parece relevante não apenas pelo que pode contribuir em termos de compreensão de um filósofo de tamanha importância para a história da filosofia como Hegel, mas também pelo que pode oferecer para o aprofundamento da reflexão sobre o problema da possibilidade de 24

Cf. Fichte, 1845-46. Cf. Kant, 1998, pp. 644-652 26 Cf. di Giovanni e Harris, 2000, prefácio, p. ix 25

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fundamentação de um discurso ou sistema filosófico. O estudo mais aprofundado dos modos pelos quais Hegel relaciona ceticismo e filosofia nos diferentes momentos de sua experiência intelectual, e de como eles situam-se e servem para Hegel situar-se no interior de um debate central ao próprio idealismo alemão parece-nos ter muito a oferecer não apenas para história da filosofia, mas também para a própria filosofia. Metodologia Devido ao caráter teórico deste trabalho, recorreremos, sobretudo, à pesquisa bibliográfica, realizando a análise e comentário crítico de obras e trechos de obras de Hegel que discutam a relação entre filosofia e ceticismo, bem como de outros autores do idealismo alemão que tenham discutido essa relação e sejam importantes para situar e compreender mais profundamente as considerações de Hegel acerca do tema. Assim, pretendemos seguir aproximadamente o seguinte cronograma: 1º Momento (1º semestre de 2012): Hume, Kant e a filosofia crítica. Leituras centrais: Hume, Investigações sobre o entendimento humano (An enquiry concerning human understanding), seções II-VII Kant, Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft), introdução e doutrina transcendental do método, cap. I, seção segunda, “Sobre a impossibilidade de um apaziguamento cético da razão pura em desacordo consigo mesma”. 2º Momento (2º semestre de 2012): O ataque cético à filosofia crítica por Schulze e sua reformulação por Fichte Leituras centrais: Schulze, Enesidemo (Aenesidemus), Excerto: “A Crítica da Razão realmente refutou o ceticismo de Hume?” Fichte, Review do Enesidemo (Aenesidemus, oder über die Fundamente der von dem Herrn Professor Reinhold gelieferten Elementa-Philosophie. Nebst einer Vertheidigung des Skepticismus gegen die Anmassungen der Vernunftkritik)

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Fichte, A doutrina da ciência de 1794 (Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre: 1794), primeira parte 3º Momento (1º semestre de 2013): Hegel, filosofia e ceticismo (juventude): A crítica do ceticismo moderno de Schulze Leituras centrais: Hegel, Sobre a relação do ceticismo com a filosofia (Verhältnis des Skeptizismus zur Philosophie) Schulze, Crítica da filosofia teórica (Kritik der theoretischen Philosophie), vol. I (excertos) Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas, Livro I 4º Momento (2º semestre de 2013): Hegel, filosofia e ceticismo (maturidade): ceticismo e o caminho do desespero Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas, Livros I e II Hegel, Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie Des Geistes), Introdução e cap. IV Referências Bibliográficas: di Giovanni, George e Harris, H. S. – Between Kant and Hegel: texts in the development of postkantian idealism. Indianopolis/Cambridge, Hackett Publishing Company, 2000. Empiricus, Sextus – Outlines of Scepticism. Editado por: Julia Annas e Jonathan Barnes. Cambridge, Cambridge University Press, 2007. Empiricus, Sextus – Against the logicians. Tradução: R. G. Bury. Cambridge, Harvard University Press, 2006. Fichte, J.G. - Aenesidemus, oder über die Fundamente der von dem Herrn Professor Reinhold gelieferten Elementa-Philosophie.

Nebst einer Vertheidigung des Skepticismus gegen die

Anmassungen der Vernunftkritik (Review). In: Johann Gottlieb Fichtes sämmtliche Werke, vol I. Berlin, Veit & Comp., 1845-46. Hegel, G.W.F - Fenomenologia do espírito. Tradução: Paulo Meneses. São Paulo: Editora Vozes, 2007. ____________ - Phänomenologie Des Geistes. Stuttgart, Reclam, 2009.

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____________ - Verhältnis des Skeptizismus zur Philosophie. In: Jenaer Schriften 1801-1807. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986. Kant, Immanuel – Kritik der reinen Vernunft. Darmstadt, Wiss. Buchges, 1998. Safatle, V. P. – Linguagem e negação: sobre as relações entre pragmática e ontologia em Hegel. In: doispontos, ISSN: 1807-3883, Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos. Curitiba, 2006, vol. 3, pp 109-146 Schulze, G. E. – Aenesidemus. Hamburg, Felix Meiner, 1996. Bibliografia Básica: Empiricus, Sextus – Outlines of Scepticism. Editado por: Julia Annas e Jonathan Barnes. Cambridge, Cambridge University Press, 2007. Fichte, J.G. – Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre: 1794. Hamburg, Felix Meiner, 1961. _________ - Aenesidemus, oder über die Fundamente der von dem Herrn Professor Reinhold gelieferten Elementa-Philosophie.

Nebst einer Vertheidigung des Skepticismus gegen die

Anmassungen der Vernunftkritik (Review). In: Johann Gottlieb Fichtes sämmtliche Werke, vol I. Berlin, Veit & Comp., 1845-46. Hegel, G.W.F – Phänomenologie Des Geistes. Stuttgart, Reclam, 2009. ___________ - Verhältnis des Skeptizismus zur Philosophie. In: Jenaer Schriften 1801-1807. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986. Hume, David – An enquiry concerning human understanding. Oxford, Oxford University Press, 1999.

Kant, Immanuel – Kritik der reinen Vernunft. Darmstadt, Wiss. Buchges, 1998. Schulze, G. E. – Aenesidemus, oder über die Fundamente der von Herrn Prof. Reinhold in Jena geliefertem Elementarphilosophie. Hamburg, Felix Meiner, 1996. ____________ - Kritik der theoretischen Philosophie. Vol. I. Hamburg: C. E. Bohn, 1801. Reimpresso, Aetas Kantiana. Brussels: Culture et Civilisation, 1968.

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