Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial

June 13, 2017 | Autor: Peter Trawny | Categoria: Martin Heidegger, Antissemitismo, Cadernos Negros - Martin Heidegger
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Copyright © Vittorio Klostermann GmbH, Frankfurt am Main, 2014 Título original: Heideggers und der Mythos der jüdischen Weltverschwörung, Peter Trawny 3ª edição revista e ampliada, 2015 Publicado no Brasil em 2015 Direitos desta edição reservados à: MAUAD Editora Ltda. Rua Joaquim Silva, 98, 5° andar – Lapa Rio de Janeiro – RJ – CEP 20.241-110 Tel.: (21) 3479-7422 – Fax: (21) 3479-7400 www.mauad.com.br [email protected] Projeto Gráfico: Núcleo de Arte/Mauad Editora Tradução: Soraya Guimarães Hoepfner

Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte sindiCato naCional dos editores de livros, rJ.

T713h Trawny, Peter, 1964Heidegger e o mito da conspiração judaica mundial / Peter Trawny; tradução Soraya Guimarães Hoepfner. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mauad X, 2015. 152 p. ; 14 x 21 cm. (Sapere aude ; 12) Tradução de: Heidegger und der Mythos der jüdischen Weltverschwörung Inclui bibliografia e índice ISBN 978.85.7478.756-5 1. Heidegger, Martin, 1889-1976. 2. Judeus. 3. Antissemitismo. 4. Judaísmo - História - Filosofia. I. Título. II. Série. 15-22591

CDD: 305.892 CDU: 316.347(=411.16)

Sumário

Prefácio à edição brasileira

9

Introdução – A necessidade da revisão de uma tese

15

A paisagem historial de Ser

23

Tipos de antissemitismo onto-historial

37

O conceito onto-historial de “raça”

63

O estranho e o estranho Heidegger e Husserl

73

Vida e obra

83

Exterminação e autoexterminação

95

Após a Shoah

101

Uma tentativa de resposta

113

Posfácio à 2ª edição

129

Posfácio à 3ª edição

135

Notas sobre a tradução – Soraya Guimarães Hoepfner

141

Prefácio à edição brasileira

Traduzir envolve no mínimo duas perguntas: a primeira é, naturalmente, como traduzir a forma do texto, o seu modo de dizer, de uma língua (a alemã) para a outra (o português brasileiro) – e como dizê-lo diferentemente; a segunda é como se pode traduzir o seu conteúdo, o dito. Mesmo que este livro encontre um pequeno grupo de leitores, na maioria de cunho acadêmico, coloca-se a questão se até mesmo esse grupo compreenderá em sua totalidade a discussão sobre as passagens antissemitas de Heidegger nos Cadernos Negros. Na Alemanha e na França, tais passagens representam tanto um problema para a pesquisa em Heidegger, como um problema para a história da intelectualidade e, assim, para a filosofia dos séculos 20 e 21. Os Cadernos Negros de Heidegger dizem respeito não somente ao interesse acadêmico. O problema desse antissemitismo atinge a história da Europa, no modo como ela se forma a partir e em torno da Shoah. A Shoah, a exterminação dos judeus europeus, é a dimensão em que devem ser lidas as ideias de Heidegger sobre um “Judaísmo mundial” ou “autoexterminação do ‘judaico’”. Ela constitui essa singularidade da exterminação de um mundo, sem a qual não se pode compreender a história da Alemanha e da Europa após 1945. Que a filosofia mais influente da Europa esteja provavelmente inscrita nessa exterminação é o problema doloroso, a ferida, que atingiu a filosofia (europeia) après-coup. Dor, sim. Há uma dor nessas discussões sobre os Cadernos Negros de Heidegger, sobre um antissemitismo que eu chamo de onto-historial. Mas o que significa dizer que a questão da tradução de um texto ou de um problema está conectada com a dor? Também a dor precisa ser traduzida? Algo assim é possível? Sem dúvida, há eventos históricos que têm um significado universal. A Revolução Francesa ou Russa, por exemplo, liberou movimentos emancipatórios em todo o mundo (também no Brasil, como ainda, a seguir,

veremos). Não há mais sociedade que, de um modo ou de outro, não tenha sido tocada pelo espírito revolucionário de liberdade. A Shoah, porém, é um evento de outra natureza, de uma natureza própria. Nela se cristaliza uma longa história de antijudaísmo e antissemitismo que, num desprezo tecnopragmático pelo que é moral e, ao mesmo tempo, através da hipertrofia dessa mesma mentalidade tecnocrática, inventa para si uma maquinaria de extermínio até então inimaginável. Quando, durante a Conferência do Lago Wansee em Berlim em 20 de janeiro de 1942, o chefe da Agência Central de Segurança do Reich (RSHA), Reinhard Heydrich, informou em jargão técnico alemão para os 15 participantes (entre os quais, Adolf Eichmann) que Göring (por sua vez, Hitler) o havia encarregado de planejar e executar a “solução final da questão judaica”, ou seja, de exterminar sistematicamente “cerca de 11 milhões de judeus”, uma nova página na história mundial foi virada: nunca antes um Estado havia se decidido e se prontificado a realizar em tal extensão a exterminação organizada de seres humanos. E esse continua a ser o caso até hoje. As declarações antissemitas de Heidegger nos Cadernos Negros surgem entre os anos de 1938 e 1945/46, anos de perseguição, deportação e exterminação de judeus. Naturalmente, não há consentimento em relação ao que estava se passando. Heidegger não admite a perseguição. Ao mesmo tempo, porém, não há também o menor sinal de uma resposta sua, seja ela moral ou empática, para esse evento. O silêncio posterior sobre a Shoah, mantido até o final da vida de Heidegger, ganha com isso um tom amargo. O Brasil, durante e depois da Segunda Guerra, como outros países da América do Sul, recebeu refugiados, como Stefan Zweig, ou como Franz

10

Peter Trawny

Stangl. O primeiro, que em 1940 emigrou para o Brasil e festejou o país, mas que em 1942 se suicidou em Petrópolis1; o segundo, que desde 1942, enquanto comandante do campo de concentração em Sobibor I e Treblinka, participou da exterminação dos judeus e, em 1951, emigrou para São Paulo, onde trabalhou para a Volkswagen do Brasil até ser preso e deportado para a Alemanha em 1967. É possível que, culturalmente, uma atitude sobretudo amigável para com os alemães tenha gerado algumas consequências 2 . Parece-me, no entanto, difícil localizar o antissemitismo teutotecnocrático no Brasil. O que se passou em Birkenau, a mais perfeita de todas as fábricas de matança, talvez escape ao universo da história brasileira. Falta a experiência – e essa seria transmitida apenas de uma geração à outra. Falta a dor. Marcia Sá Cavalcante Schuback fala em um ensaio, a ser publicado em breve na Alemanha, sobre uma “lógica” da “exterminação da exterminação” que domina a “Europa” 3 . Essa “exterminação da exterminação” é pensada – também por Heidegger – como uma “autoexterminação”. A “Europa” teria, por sua vez, na sua universalização e globalização, exercitado por toda parte um efeito exterminador. Ela teria liberado sua própria racionalidade na globalização, partindo do pressuposto de que a Europa não seria outra coisa do que a própria descoberta dessa racionalidade. Nesse sentido, o Brasil teria sido também tocado por essa racionalidade exterminante da Europa. Assim, não seria condizente aqui a observação de Berthold Zilly, no posfácio à sua tradução para o alemão de Os Sertões de Euclides da Cunha, ao dizer que: “em nome da república e do progresso, até mesmo em nome da revolução de 1789, os adeptos de Antonio Conselheiro” foram rotulados de “loucos, criminosos e inimigos do Estado, para que com isso se pudesse questionar propagandisticamente seu direito pela vida” 4 e,

1

Ver Stefan Zweig: Brasil, país do futuro. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1941. O título indica um pathos europeu – que ressoa na máxima da bandeira brasileira.

2

Sobre antissemitismo no Brasil, ver Maria Luíza Tucci Carneiro: Antissemitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração 1930-1945. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

3

Marcia Sá Cavalcante Schuback: Heidegger, die Juden, Heute. In: Heidegger und die Juden. Ed. Andrew J. Mitchell, Peter Trawny. Frankfurt: Vittorio Klostermann. (No prelo.)

desse modo, assassinar e escravizar os vinte mil a trinta mil habitantes da cidade de Canudos? No começo da República brasileira se dá um massacre: “Ordem e Progresso” sobre o abismo. Qual história aqui se conecta? E, ainda assim, é difícil que as exterminações emanadas da Europa e a sua autoexterminação na matriz universal da Técnica-Capital-Meio sejam experienciadas como exterminação – tanto na Europa quanto também no Brasil. A descoberta dessa matriz permanece um sucesso; imperceptível é a perda por ela engendrada. Seria então a perda dessa experiência, a experiência da perda que se faz evento na Shoah, uma perda universal? O problema da tradução do conteúdo de um livro que só pode ser compreendido em face à Shoah não se sustenta? Não falta justamente a dor? Sim e não. Por um lado, a Shoah pertence a uma história europeia da exterminação que começou muito antes do século 20. Ela perdura até os dias de hoje e continuará no futuro. A autoexterminação de uma Europa da filosofia e da poesia encontra lugar também no Brasil. Por outro lado, a experiência linguística da história é quase sempre impossível de se traduzir. A sincronia da linguagem heideggeriana abissal e os jargões indiferentes abissais dos exterminadores, que na Shoah encontram sinais difíceis de serem suportados, formam um enigma experienciado que parece escapar à própria tradução. Nenhuma tradução transmite a dor, que, aliás, não pertence a ninguém. A dor que a ninguém pertence, da qual ninguém pode se assenhorar, permanecerá, não obstante, ligada aos nomes. Mas, com isso também se daria a possibilidade de que a experiência traduzida dessa ferida do pensamento tenha um eco, lá onde o pensamento está pronto para aceitar a dor que somos? A dor – a dor que a partir da tentativa de exterminar os nomes – nasce e nascerá – é a passagem sobre a qual essa inominada memória da Shoah chega até você. Peter Trawny 25 de fevereiro de 2015

______________ 4 Euclides da Cunha, Berthold Zilly: Krieg im Sertão. Frankfurt am Main: Suhrkampf, 2013.

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