Heidegger, filósofo da técnica moderna. In: In: Róbson Ramos dos Reis; Andréa Faggion. (Org.). Um filósofo e a multiplicidade de dizeres : homenagem aos 70 anos de vida e 40 de Brasil de Zeljko Loparic. Campinas: Unicamp/CLE, 2010, v. 57, p. 53-86.

June 5, 2017 | Autor: André Duarte | Categoria: Technology, Martin Heidegger, Gestell
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Heidegger, filósofo da essência da técnica moderna ANDRÉ DUARTE Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná/CNPq [email protected] Resumo: Dividido em seis partes, o artigo apresenta e discute as principais teses do ensaio “A questão da técnica”, de Heidegger. Estas teses são referidas à hipótese tardia de Heidegger a respeito da história do Ocidente como a história dos envios epocais do ser, aspecto que marca a originalidade dessa análise a respeito da essência da técnica e da ciência modernas, em relação à discussão heideggeriana prévia sobre a ciência e sobre a natureza no âmbito do projeto da ontologia fundamental de Ser e Tempo, de 1927. Palavras-chave: Heidegger, técnica, dispositivo, ontologia fundamental, história do ser Abstract: Divided in six parts, the article presents and discusses Heidegger’s main theses in his 1953 essay, “The question of technology”. These theses are related to Heidegger’s late hypothesis concerning Western history as the history of Being’s epochal sendings. This theoretical frame stresses the originality of Heidegger’s late analysis concerning the essence of modern technology and modern science in contrastto his previous analysis on modern science and nature in the context of Being and Time’s project of fundamental ontology, from 1927. Key-words: Heidegger, technique, dispositive, fundamental ontology, History of Being I. A técnica moderna: nem um bem, nem um mal

Nossa vida é de tal forma circundada pela tecnologia que o mais das vezes nem sequer nos damos conta dela: tudo se passa como se a técnica tivesse se transformado em nossa segunda natureza, decalcando-se sobre nossa pele. Aliás, por isso mesmo talvez já não seja mais adequado falar que a tecnologia ‘circunda’ nossa vida, visto que ela de fato se interpõe e determina previamente nossas relações conosco mesmos, com os outros e com a natureza. Por certo, os avanços e descobertas tecnológicos com os quais vivemos cotidianamente trouxeram consigo a certeza de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ao longo do século XX, a tecnologia nos permitiu encurtar distâncias espaciais e culturais que antes impediam a livre informação e o rápido acesso às mais diferentes regiões do planeta, de modo que hoje podemos finalmente nos sentir em casa no mundo todo. Ademais, com o mapeamento do genoma humano, já estamos inclusive a ponto de encontrar soluções para males que, desde sempre, afligiram nossa condição frágil e mortal.

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No entanto, as notícias a respeito do futuro são perturbadoras. Multiplicam-se as advertências a respeito do aquecimento global, da poluição generalizada, da devastação das florestas e das catástrofes naturais induzidas pela destruição tecnológica da Terra. Painéis de debate antecipam que o futuro será marcado pelo total controle tecnológico da vida; as guerras tornam-se cada vez mais mortíferas e sangrentas; a cada semana um atentado terrorista dizima dezenas de vidas; sem contar os alarmantes índices de violência urbana potenciados pela exclusão de grandes massas humanas das benesses do mundo tecnológico. Surge então a interrogação: como pensar a técnica e seus produtos? Ela é um bem ou um mal? Ou ambas as coisas? Será possível controlar a técnica? O que é, afinal, a técnica? O que Heidegger tem a nos dizer sobre o assunto? A partir dos anos 40, a questão da técnica foi abordada por Heidegger em diversos textos, mas sua principal análise se encontra no ensaio “A questão da técnica” (1997), publicado originalmente na coletânea Vorträge und Aufsätze (1954), cujas teses principais discutimos e situamos no contexto mais amplo do pensamento heideggeriano. Em primeiro lugar, e como condição para começar a pensar a técnica filosoficamente, Heidegger demanda a superação de nossa atitude oscilante entre o louvor das maravilhas da moderna tecnologia e o temor do desastre tecnológico mais sombrio. Um dos aspectos que torna a reflexão heideggeriana sobre a técnica pouco usual e de difícil compreensão é o fato de que o filósofo não considera os próprios aparelhos técnicos em suas benesses ou perigos, mas, antes, procura pensar a técnica moderna em sua essência (Wesen), sem se deixar contaminar por juízos previamente difundidos sobre seus benefícios ou malefícios. Por isso, seu pensamento escapa à oscilação entre os extremos do regozijo imediato e do temor difuso pela técnica, superando tal atitude ambígua e superficial a fim de pensar essencialmente o que significa viver em um mundo científico-tecnológico, quais seus perigos e suas possibilidades. Sua reflexão filosófica a respeito da técnica recusa os estreitos limites da avaliação positiva ou negativa, otimista ou pessimista a respeito dos produtos técnicos, a fim de propor um amplo diagnóstico do presente, elaborado no contraponto da discussão da tradição filosófica. Heidegger não investe contra a técnica, mas considera criticamente nossa falta de reflexão a seu respeito. (Heidegger 1987, p. 124) O que lhe importava, portanto, era o cuidado em pensar aquilo que a ciência e a técnica não podem pensar e nem pretendem pensar, abrindo, desse modo, a brecha para o questionamento da produtividade avassaladora do fazer tecnocientífico, aspecto que o filósofo julgou ser capaz de levar à própria destruição ou desessencialização do ser humano no processo de uma crescente 2

facilitação do existir. Em outras palavras, o que Heidegger pretendeu foi questionar a pretensão tecnocientífica que assume para si a prerrogativa de parâmetro exclusivo de validação e avaliação de tudo o que é, mantendo-se cega para os pressupostos ontológicos que fundamentam seus procedimentos metodológicos, os quais, por sua vez, podem revelar-se como extremamente perigosos para a humanidade. Heidegger jamais propôs que a técnica e as ciências fossem abandonadas, o que seria absurdo; no entanto, para poder pensar as manifestações tecnocientíficas em sua essência, ele julgou ser preciso desvencilhar-se das mistificações midiáticas que envolvem até mesmo a comunidade científica:

o modo como se vê a ciência e a técnica modernas faz a superstição de povos primitivos parecer uma brincadeira de crianças. Quem, pois, no atual carnaval dessa idolatria (ver o tumulto sobre a navegação espacial) ainda quiser conservar alguma reflexão (...) deve saber o que acontece; deve saber onde está historicamente; precisa esclarecer-se diariamente de que aqui está operando um destino antigo do homem europeu; ele precisa pensar de maneira histórica e abandonar a absolutização incondicional do progresso em cujo rastro o ser-homem do homem ocidental ameaça sucumbir. (Heidegger 1987, p. 133) Por meio do questionamento filosófico, Heidegger pretendeu preparar uma “relação livre” com a técnica, abrindo-nos para sua essência. Como de costume, o caminho do pensamento heideggeriano nos leva do presente à Grécia antiga e de lá nos traz de volta ao mundo contemporâneo. Conclui-se assim um percurso de pensamento em que se abalam nossas certezas a respeito da técnica, de modo que sua essência, antes oculta, pode então manifestar-se livremente. Já de saída, Heidegger busca nos desabituar da concepção cotidiana e tradicional a respeito da técnica, ao afirmar que a técnica e sua essência não são a mesma coisa: a essência de uma coisa não se confunde com aquilo de que é sua essência. Propõe-se assim uma distinção entre os produtos da técnica e sua essência que é decisiva para o curso de sua reflexão, visto que também lhe permitirá questionar a própria concepção metafísica da essência, trazendo-a de sua forma substancial à sua forma verbal, a fim de pensar a essência como um acontecer. Em primeiro lugar, essa distinção entre os produtos da técnica e sua essência permite a Heidegger questionar o modo convencional de pensar a técnica, segundo o qual ela seria um conjunto de meios para o alcance de fins, sendo, desse modo, algo

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neutro em si mesmo. Segundo tal concepção, a avaliação do significado de seus resultados dependeria única e exclusivamente do uso humano que dela se fizesse, isto é, da adequada escolha dos fins, concepção de que Heidegger desconfia. Tal concepção da técnica é denominada como instrumental ou antropológica, visto que ao homem caberia articular os meios necessários para o alcance de fins previamente definidos, cabendo a ele julgar antecipadamente a respeito da natureza desses fins. Heidegger não nega que essa concepção da técnica seja correta: o problema é que, a despeito de correta, tal definição da técnica nos impossibilita pensar radicalmente a essência da técnica. Quando concebemos a técnica como meio para o alcance de um fim, somos levados a pensar que o problema da moderna tecnologia se resumiria ao bom controle e domínio de seu uso e emprego. No entanto, quanto mais se quer dominar a técnica, tanto mais ela escapa ao controle e reaviva a vontade humana de controlá-la, produzindo-se uma espiral de conseqüências imprevisíveis. A fim de romper com tal concepção e recolocar a questão acerca da essência da técnica em outras bases, Heidegger propõe a seguinte pergunta: “supondo que a técnica não seja um mero meio, como se coloca a vontade de dominá-la?” (Heidegger 1997, p. 45, tradução modificada). Sutilmente, Heidegger prepara o caminho para a distinção entre a determinação correta da técnica e a consideração da técnica em sua verdade. Começa aqui sua estratégia de estranhamento e desconstrução da concepção antropológico-instrumental da técnica, por meio da qual Heidegger buscará nos despertar para a tarefa do pensamento. A despeito de correta, a definição instrumental e antropológica da técnica não pode ser um ponto de chegada. Antes, ela constitui apenas o ponto de partida para uma interrogação que, partindo do correto, e por meio dele, deve superá-lo e conduzir o pensamento rumo a uma compreensão verdadeira a respeito da essência da técnica, pois “somente o verdadeiro nos leva a uma livre relação com o que nos toca a partir de sua essência”. (Heidegger 1997, p. 45) II. A determinação originária da técnica entre os gregos Ao questionar os limites da concepção instrumental da técnica como articulação de meios para causar fins, Heidegger retorna ao pensamento grego a fim de pensar a causalidade em seu caráter originário. Para os propósitos desse texto, não é possível e nem mesmo imprescindível acompanhar todos os passos da interpretação heideggeriana da doutrina aristotélica das quatro causas, bastando enunciar aqui seu principal 4

resultado. Pensada em sua dimensão originária, a causalidade é um modo de ocasionar (veranlassen) alguma coisa, e este ocasionar deve ser entendido como um deixar surgir e vir à presença (Anwesen), em suma, como um trazer à luz o que se apresenta. Heidegger hifeniza o verbo alemão ver-an-lassen a fim de enfatizar o radical lassen, deixar. Com isso, ele nos conduz a uma concepção da causalidade em que o efeito ativo de trazer algo à existência é pensado como um deixar vir à presença. A idéia é a de que a causalidade não pode ser pensada como a imposição violenta ou arbitrária de meios para gerar resultados, mas como uma conformação, uma adequação entre o que vem à luz e os procedimentos pelos quais isto pode vir a ser. Pensando-a nesses termos, Heidegger afirma que a causalidade age no interior daquela atividade que os gregos denominaram como poiésis, um produzir que é um “trazer-à-frente” (Her-vor-bringen) o que se apresenta. Se a poiésis é um produzir, um trazer à luz aquilo que aparece em função de certos procedimentos, então não devemos pensar tal produção simplesmente como o resultado da articulação de meios determinados para causá-lo. Antes, o que Heidegger quer ressaltar é que todo produzir é um deixar trazer à luz aquilo que foi produzido, arrancando-o “do velamento (Verborgenheit) para o desvelamento” (Unverborgenheit). Para Heidegger, a poiésis é um modo determinado de trazer o ente à presença, processo que ele denomina como um modo do desocultar (Weise des Entbergens). Ao pensar a poiésis como o movimento de trazer o que antes se encontrava oculto para o estado de desocultamento, Heidegger desloca nossa atenção do resultado final, em sua aparente independência com relação aos meios que o fizeram ser o que é, para o próprio processo misterioso do aparecer. A poiésis é, portanto, um modo de fazer aparecer, de trazer o que antes se encontrava oculto à luz do dia, é um fazer ou causar que deve ser entendido como um desocultar. É nesse ponto da argumentação que Heidegger introduz um conceito que, à primeira vista, não parece pertencer ao plano dessa discussão sobre a poiésis: o conceito de verdade. Para Heidegger, a noção de desvelamento (Unverborgenheit) não apenas contem em si as distintas possibilidades dos processos de desocultação (Entbergen) do ente – poiésis, práxis, physis são entendidas como processos ou modos distintos pelos quais o que é veio ao ser – mas é também o termo que melhor e mais fielmente traduz o antigo termo grego alétheia, não-velamento. Para Heidegger, a maneira grega originária de pensar a verdade como desvelamento teria caído no esquecimento a partir do momento em que os romanos a traduziram por veritas, legando a nós a concepção da verdade como adequatio, isto é, a verdade entendida como conformidade ou exatidão da 5

representação em relação à coisa representada. Heidegger não recusa essa concepção da verdade como adequação entre a coisa e o intelecto, mas ressalta que ela impede compreender a essência mais originária da verdade, tal como ela primeiro foi pensada pelos pré-socráticos. Esse é um tema central do pensamento heideggeriano e também um dos mais difíceis e controversos, sobre o qual não posso me deter neste momento. Por hora, basta pensar que a noção de verdade como adequação entre estado de coisas e juízos humanos pressupõe que as coisas às quais os juízos devem se adequar já estejam aí, isto é, que elas já estejam presentes e, portanto, em estado de desocultamento e de vigência. Em outras palavras, a verdade como desvelamento, resultado do processo de desocultamento, é mais originária e ontologicamente anterior à concepção da verdade como adequação entre juízo e estado de coisas do mundo, visto que a verdade como concordância pressupõe o desvelamento e o estado de desocultamento da coisa que, então, pode ou não concordar com uma dada proposição. Mas o que está implicado nessa relação entre a verdade, entendida em seu sentido originário como desvelamento (alétheia), e a poiésis, entendida como um modo de trazer o ente à presença, de desocultá-lo? Segundo a interpretação heideggeriana, a atividade da poiésis não seria um mero fazer que produz objetos determinados ao modelar a physis, a natureza. Ela não seria um fabricar algo por meio da manipulação do ente, mas sim a atividade por meio da qual o ente é trazido à aparição, isto é, um conduzir algo do oculto para o desocultamento, de modo que tal ente possa se manifestar pondo-se a descoberto sob determinado aspecto (eidos) ou forma. Como a técnica (téchne) é o saber da produção (poiésis), então ela tem de ser entendida como o saber trazer o ente à luz da presença, tomando parte decisiva no modo poiético de desocultar o ente em seu ser. O aspecto decisivo nessa etapa da argumentação heideggeriana é o seguinte: alétheia, o desvelamento ou a verdade em seu sentido originário, é o fundamento de toda poiésis, de todo desocultar e trazer o ente à luz por meio da téchne, entendida como o saber que preside tal desocultação. Há, portanto, uma estreita correlação entre a concepção da verdade como desvelamento, por um lado, e o entendimento da técnica como o saber trazer o ente à presença no modo da poiésis, entendida como modo determinado de desocultar o ente. Assim, é por meio da estrita articulação desses conceitos (alétheia, poiésis, téchne) que Heidegger franqueia o acesso a uma nova consideração da essência da técnica em sua verdade. Se a téchne é o saber que conduz a poiésis, e se a poiésis está fundada na alétheia, então a téchne também está fundada na alétheia, na verdade 6

originária compreendida como desvelamento, pois participa do processo de desocultação daquele ente que não se produz por si mesmo, processo que é distinto da desocultação implicada no agir da physis, da natureza. Mas então surge uma questão inevitável: se talvez faça sentido pensar a téchne grega como pertencendo intrinsecamente a um modo determinado do desocultar, isto é, como aquele saber que produziu esculturas e edificações que instauraram um padrão de beleza e harmonia duradouros para o ocidente, será que tal pensamento poderia ser referido também à técnica moderna e seus produtos? III. A essência da técnica moderna como modo particular do desocultamento A resposta a essa questão leva à segunda etapa da reflexão heideggeriana sobre a essência da técnica. Para Heidegger, também a técnica moderna conduz um modo do desocultar, muito embora o desocultamento que aí impera seja absolutamente distinto daquele que se manifestava na antiga poiésis, no produzir originário dos gregos. Seu argumento é o de que o processo de desocultamento que vige e domina na técnica moderna não é mais um pro-duzir no sentido do “levar-à-frente”, do trazer o ente à luz da presença, mas sim um “desafiar (Herausfordern) que estabelece para a natureza a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal”, o que, por si só, implica numa relação totalmente diversa entre homem e natureza, frente àquela que prevaleceu entre os gregos. (Heidegger 1997, p. 57) A técnica moderna não se ocupa mais com o produzir no sentido grego da poiésis, isto é, com o trazer os entes à plenitude da presença, como no caso da estátua de Zeus feita por Fídias ou do templo grego de Apolo, em Delfos. Naquelas obras, a atividade da poiésis sobre a pedra fazia com que ela se mostrasse mais evidentemente como aquilo que ela é, isto é, como pedra reluzente de uma determinada região, de sorte que aquele modo do desocultamento se dava em conjunção com a natureza, reunindo, na obra, a terra e o mundo daquele povo. Para Heidegger, é o templo grego, como obra, que “torna originariamente aberto um mundo e o mantém em vigente permanência”, ao mesmo tempo em que reúne e faz ressaltar a terra daquele povo, “aquilo sobre o qual e no qual o homem funda seu habitar.” (Heidegger 1950, pp. 30 e 28) Por sua vez, a técnica moderna não se conjuga mais de maneira harmoniosa à physis, mas a agride continuamente. Ao passo em que a técnica grega buscava uma conveniência harmônica com a physis, a técnica moderna é uma provocação da 7

natureza, um desafio que se lhe impõe e cujos resultados trazem consigo o domínio planejado e calculado daquilo que assim se desoculta. Em outras palavras, a técnica moderna não se conjuga mais à natureza, mas arranca à natureza as condições de sua perpetuação, ao custo de uma contínua agressão: a técnica moderna não pode produzir sem agredir a natureza, convertendo-a em estoque de reserva ou subsistência (Bestand). Nisso reside a diferença essencial entre o antigo moinho de vento, cujas hélices se encontravam em harmonia com o ar, e a atual hidrelétrica às margens do rio, que extrai energia do curso das águas para estocá-la e reaproveitá-la indefinidamente. No primeiro caso, o vento era captado pelo moinho e assim permitia certo número de atividades, como a moagem. No caso da hidrelétrica, explicita Heidegger, não se trata mais simplesmente da captação de energia para fins determinados e limitados, mas da própria transformação do rio em exclusiva fonte de fornecimento energético para quaisquer fins. Por isso, o filósofo chega mesmo a afirmar, de maneira provocativa, que não é a hidrelétrica que se encontra no rio, mas antes o rio que se encontra instalado no centro da hidrelétrica: o que importa não é o rio, mas a energia que ele pode gerar. Explicita-se aí, também, a diferença essencial entre o trabalho do camponês, cuja preparação do solo implicava um “cuidar e guardar”, e a moderna “indústria de alimentação motorizada”, que faz da natureza uma instância do suprimento alimentício. A técnica moderna não se limita a trazer os entes à presença, mas os descobre já enquanto matéria bruta ou recurso energético que pode ser continuamente reutilizado, transformado, economizado e manipulado em um ciclo supostamente infinito. Nesse ciclo se instala e se perpetua a devastação da natureza, fixada agora em seu ser como fonte de energias disponíveis, algo que ela jamais fora antes. Vejamos como Heidegger descreve a relação entre o homem e a natureza no interior do horizonte essencial da moderna tecnologia: O ar é posto para o fornecimento de nitrogênio, o solo para o fornecimento de minérios, o minério, por exemplo, para o fornecimento de urânio, este para a produção de energia atômica, que pode ser associada ao emprego pacífico ou à destruição. (...) A central hidrelétrica está posta no rio Reno. Ela põe o Reno em função da pressão de suas águas fazendo com que, desse modo, girem as turbinas, cujo girar faz com que funcionem as máquinas que geram a energia elétrica para a qual estão preparadas as centrais interurbanas e sua rede de energia demandada para a transmissão de energia. No âmbito das conseqüências interconectadas da demanda de energia elétrica o rio Reno também aparece como algo demandado. A central hidrelétrica não está construída no rio Reno como a antiga ponte de madeira, que há séculos une uma margem à outra. Antes e pelo 8

contrário, é o rio que está construído na hidrelétrica. (...) O desocultar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado, do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente distribuído e do distribuído renovadamente ser comutado. Explorar, transformar, armazenar e distribuir são modos do desocultar. (Heidegger 1997, pp. 57-59; tradução modificada) IV. Da analítica existencial à essência da técnica moderna: reviravoltas do pensamento heideggeriano Caberia aqui abrir um parêntese e observar que as afirmações de Heidegger a respeito de como se instauram as relações do homem com a natureza na época da técnica moderna excedem e deslocam a órbita das análises de Ser e Tempo. A despeito das aparências, as teses defendidas no ensaio de 1953 não são uma simples retomada tardia, com apenas algumas modificações terminológicas, daquelas enunciadas no § 15 de Ser e Tempo, segundo as quais “a mata é reserva florestal, a montanha é pedreira, o rio é represa, o vento é vento ‘nas velas’”. (Heidegger 1927, p. 70) Já no projeto da ontologia fundamental a natureza aparecia como importante objeto de tematização, mas, em Ser e Tempo, ela ainda não havia se tornado uma questão central para o pensamento heideggeriano. A meu ver, isto somente ocorreria a partir do momento em que o filósofo começasse a formular sua narrativa filosófica da modernidade, a partir da segunda metade dos anos 30. Em Ser e Tempo, o conceito de natureza aparece no contexto da discussão heideggeriana

do

processo

de

“desmundanização

do

mundo”,

implicado

ontologicamente nos comportamentos teóricos do Dasein. Dado que a tradição filosófica ocidental não empreendeu uma discussão ontológico-fenomenológica da lida cotidiana do ser-aí em seus comportamentos junto aos entes intramundanos, os conceitos de mundo e mundanidade teriam caído no esquecimento em prol da concepção, não tematizada explicitamente, que identificou o ser dos entes a certa concepção da natureza. Essa tese é frequentemente afirmada ao longo de Ser e Tempo: a ontologia tradicional teria buscado compreender o ser dos entes intramundanos tomando por base a “substancialidade” das coisas naturais, isto é, tomando como parâmetro de explicação do ser dos entes intramundanos o caráter ontológico que seria próprio ao suposto ser da natureza, a substância, entendida como “fundamento de tudo”. Em uma palavra, Heidegger contestava a validade da velha associação ontológica entre natureza 9

e realidade, a partir da qual o caráter ontológico da presença adiante da mão (Vorhandenheit) teria prevalecido ao longo da história da ontologia. Em síntese, a tese decisiva que Heidegger anunciava já no §6, e que perpassaria todo o projeto da ontologia fundamental, era a de que a ontologia grega interpretara o ser primeiramente a partir do modelo do mundo ou dos entes naturais, determinando, deste modo, a compreensão do ser a partir da dimensão temporal do presente. Em outras palavras, o ser foi interpretado em termos de sua realidade estável e presente, tese que se teria transmitido com variações e transformações importantes ao longo de toda a história da ontologia ocidental: “...a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo ‘mundo’ e pela ‘natureza’ em seu sentido mais amplo, retirando de fato a compreensão de ser a partir do ‘tempo’”. (Heidegger 1927, p. 25) Para a ontologia antiga, a determinação do ser somente poderia ser encontrada no plano da realidade cósmica, permanente e estável, e não no plano daquilo que está sujeito à contínua mudança: “Segundo o conceito antigo do ser, de maneira autêntica somente é aquilo que sempre é”. (Heidegger 1988, p. 241) Ainda nos Prolegômenos ao conceito de tempo, Heidegger também afirmava que a questão do ser foi posta como a “questão da estrutura do ser da natureza, não apenas hoje, após a ciência moderna da natureza, mas em certo sentido já entre os gregos, de sorte que todo o arcabouço conceitual de que dispomos para dar uma primeira característica do ser do mundo provém desta maneira de considerar o mundo como natureza”. (Heidegger 1988, p. 231) Esta teria sido a base ontológica antiga sobre a qual se edificou a ciência moderna matematizada. Para Heidegger, entretanto, mesmo que se pudesse determinar uma “pura explicação do ser da natureza” a partir das teses fundamentais da física matemática, “esta ontologia nunca alcançaria o fenômeno do mundo. Em si mesma, a natureza é um ente que vem ao encontro dentro do mundo e que pode ser descoberto seguindo-se caminhos e graus diferentes”. (Heidegger 1927, p. 63) Ou ainda: “O ser-aí só pode descobrir o ente como natureza num determinado modo do seu ser-no-mundo”. (Heidegger 1927, p. 65) Por certo, Heidegger não pretendeu resolver o problema da determinação ontológica do ente natural ou da própria natureza no interior de Ser e Tempo, questão que permaneceu em aberto e foi retomada, posteriormente, nas preleções de Conceitos Fundamentais da Metafísica, de 1929. (Heidegger 2003; Ramos dos Reis 2004) Em Ser e Tempo, Heidegger chegara apenas até o ponto de afirmar que “a natureza, entendida em sentido ontológico-categorial, é um caso limite do ser de um possível ente intramundano”, advertência com a qual ele evitava reduzir a natureza e os 10

entes naturais ao estatuto ontológico da Vorhandenheit, presentidade ou presença adiante da mão. (Heidegger 1927, p. 65) Outra instância privilegiada da discussão da natureza em Ser e Tempo está relacionada à exigência de compreender como se dá a acessibilidade do ente intramundano ao ser-aí. Nos §§ 15 e 17, por exemplo, a natureza é novamente abordada, agora no contexto da discussão do encontro do ente intramundano enquanto dotado do modo de ser do manual (zuhandenes) no universo significativo da lida cotidiana do ser-aí, bem como no âmbito da discussão fenomenológica dos signos e sinais, isto é, dos utensílios privilegiados nos quais se apreende mais precisamente o fenômeno geral da referência (Verweisung) e, deste modo, o próprio fenômeno do mundo enquanto totalidade referencial. (Casanova, 2006, pp. 11-43) Posteriormente, no § 69b, a natureza será novamente mencionada, então no contexto da discussão da constituição existencial da ciência e de seus objetos de tematização. Ao analisar a estrutura ontológica do modo de ser do ente manual (zuhandenes), cuja serventia (Dienlichkeit) e destinação conjunta (Bewandtnis) referem-se ao todo instrumental e à totalidade dos nexos referenciais que tecem a trama totalizada da significância mundana, Heidegger menciona a natureza como ente que é encontrado pelo ser-aí na lida cotidiana. Em outros termos, a natureza é descoberta pelo ser-aí enquanto referência implicada já nos próprios utensílios de que ele dispõe em seus comportamentos práticos mais corriqueiros: “No utensílio utilizado a ‘natureza’ também é descoberta com o uso, ‘natureza’ à luz dos produtos naturais”. (Heidegger 1927, p. 70) A natureza é descoberta pelo ser-aí, o ente em função do qual (Worum-willen) toda liberação dos entes intramundanos está primordialmente referida, mas em tal descoberta ela não lhe aparece primeiramente como presença adiante da mão (vorhandenes) ou como “força natural” que encanta e assusta, mas já imediatamente no próprio utensílio empregado e como ente intramundano sempre à mão na lida cotidiana no mundo circundante: “Com a descoberta do ‘mundo circundante’, a ‘natureza’ assim descoberta vem ao encontro”. (Heidegger 1927, p. 70) Chama a atenção o fato de que Heidegger mencione a natureza colocando-a entre aspas no § 15, indicando que o fenômeno da natureza mereceria consideração mais detalhada e específica. No § 17, por sua vez, Heidegger mencionava que o vento sudeste não é apreendido em primeiro lugar pelo camponês como mera ocorrência da natureza, mas como sinal, isto é, como utensílio cuja serventia consiste em mostrar algo, por exemplo, a chuva que trará uma boa ou má colheita. O sinal é um utensílio privilegiado para a compreensão da estrutura de 11

referências do mundo compartilhado porque, nele, a serventia, isto é, o seu ‘ser-para’, coincide com a ação de mostrar que lhe é própria. Assim, para o camponês o sopro do vento não é primeiramente ‘objeto’ de investigação nem mera coisa que ocorre no mundo, mas um sinal que orienta seus comportamentos: “A circunvisão própria ao cultivo do campo é que, levando-o em conta, descobre justamente aí o vento sudeste em seu ser”. (Heidegger 1927, p. 81) Já no §69b, momento em que Heidegger discute a gênese existencial do comportamento científico, a natureza é novamente solicitada no exemplo de sua apreensão teórica pela física-matemática, tendo em vista explicitar as modificações que ocorrem na própria estrutura da compreensão ontológica que a descobre teoricamente. Na perspectiva da atitude teórica do físico-matemático, o ente natural não é mais descoberto enquanto manual que se destina a alguma finalidade do ser-aí ou como ente que lhe mostra ou prenuncia algo, mas enquanto ente simplesmente presente (vorhanden). Essa é a transformação hermenêutica fundamental, com base na qual subseqüentes modulações da compreensão projetiva do ser-aí permitirão o acesso à natureza como ‘objeto’ (Objekt) da investigação científica. De fato, já no § 15 Heidegger advertia que “as plantas do botânico não são flores no campo” e que o “‘jorrar’ de um rio, constatado geograficamente, não é ‘fonte no solo,’” argumentos com os quais o filósofo indicava as possibilidades existenciárias do ser-aí que se extasia com o ente natural “que nos fascina com sua paisagem”, sem discuti-las em Ser e Tempo. (Heidegger 1927, p. 70) Na perspectiva do botânico ou do geógrafo que tematizam cientificamente o ente natural, este é necessariamente extraído de seu local no mundo circundante e deixa, portanto, de ser um manual, tornando-se um ente presente adiante da mão por meio de sua projeção ontológica como ente submetido a determinações universais e homogêneas. Isso quer dizer que o ente natural não mais se encontra no mundo circundante do ser-aí, pois seu “local se transforma em posição espaço-temporal, em um ‘ponto do mundo’ que não se distingue de nenhum outro”. (Heidegger 1927, p. 362) Por meio da “supressão dos limites do mundo circundante” em que o ente natural podia se apresentar em sua manualidade, surge agora uma ampla região de entes presentes adiante da mão, os quais podem vir a se tornar objetos da tematização científica. A física-matemática apenas descobre entes do modo de ser daquilo que se apresenta como presente adiante da mão, pois os descobre antecipadamente com base no que Heidegger denomina como “projeto matemático da própria natureza”, isto é, com base na concepção da natureza como matéria passível de 12

ser determinada quantitativamente em seu movimento, força, lugar e tempo. (Heidegger 1927, p. 362) O projeto matemático da natureza “abre um a priori”, isto é, torna possível a descoberta da natureza como uma determinada região de entes presentes adiante da mão, cujo caráter básico de ser radica na sua extensão temporal e espacial, isto é, na concepção do ente como corpo extenso em movimento. Na medida em que qualquer ente só pode ser descoberto no projeto prévio de sua constituição ontológica – aspecto que, por sua vez, nunca é transformado em tema de questionamento pela ciência – o projeto matemático da natureza é aquele no qual a natureza é tematizada como região de entes intramundanos submetidos a determinações legais espaço-temporais, o que, por sua vez, permite descobrir a natureza como objeto (Objekt) científico. Para os propósitos deste ensaio, entretanto, o aspecto que interessa ressaltar é o fato de que, em Ser e Tempo, Heidegger não chega a considerar detidamente os riscos ontológicos inerentes ao modo particular de descoberta do ente natural pelo cientista físico-matemático, nem tampouco compreende tal processo de objetificação do ente natural como um modo historial determinado de descoberta e apreensão da natureza, aquele característico da modernidade. No projeto da ontologia fundamental, Heidegger se restringia a apresentar as modificações hermenêuticas do projeto ontológico com base no qual o ente natural vem ao encontro do ser-aí, seja em seus comportamentos ocupacionais cotidianos, seja enquanto objeto da investigação científica. No entanto, quando Heidegger começou a traçar seu diagnóstico filosófico da modernidade, em sua relação essencial com o fenômeno da técnica e da ciência modernas, então começou a se operar um deslocamento profundo no modo como a natureza havia sido anteriormente analisada. Afinal, a análise heideggeriana da técnica moderna já não respondia mais aos interesses e exigências da anterior abordagem da natureza no âmbito do projeto da analítica existencial. No contexto teórico do ensaio sobre a técnica, sequer seria adequado afirmar que a natureza é descoberta como ente intramundano sempre à mão no âmbito das ocupações cotidianas do ser-aí no mundo circundante. Como observou Hubert Dreyfus, “para o último Heidegger, a totalidade tecnológica já não é de modo algum um mundo”, pois, na verdade, a natureza agora é provocada a permanecer indefinidamente disponível para os mais variados fins, sendo compreendida como subsistência (Bestand) energética. (Dreyfus 1983, pp. 293-294) Na época da técnica moderna, pensa Heidegger, a descoberta da natureza como um vasto reservatório de energia a ser continuamente explorado não depende mais de qualquer projeto ontológico do ser-aí, nem se esclarece por meio de uma análise existencial do modo de ser do ser13

aí. Segundo Loparic, “A técnica assim entendida não é um projeto do estar-aí. Tampouco é um modo de ser ahistórico. Ela é um momento da acontecência do ser ele mesmo, acontecência que se inicia na Grécia”. (Loparic 1996, p. 119) Antes, é sob o impacto desafiador da técnica moderna que a própria natureza já é assim desocultada e fixada, aspecto que não remonta a uma possibilidade constitutiva do modo de ser do seraí, mas ao horizonte do desocultamento no qual o ser-aí se encontra agora lançado, segundo os termos da hermenêutica epocal (Seinsgeschichte) teorizada pelo filósofo. A história da metafísica não é mais a história de concepções enrijecidas e petrificadas a respeito do ser enquanto vorhandenheit, enquanto presentidade ou presença adiante da mão. Agora, é o próprio ser que, em cada um de seus envios epocais, se dá ao mesmo tempo em que se oculta, pois se retrai nos entes que então aparecem e apresentam-se em seu caráter ontológico historialmente determinado. Assim, o ser se oferece e se oculta constitutivamente ao homem na linguagem, em seu próprio essenciar-se. Pensar a metafísica como a história do ser é pensar um conjunto de palavras fundamentais, por meio das quais os filósofos definiram o ser sem jamais pensar o ser em sua proveniência, em seu caráter dinâmico, verbal, enquanto um acontecer ou essenciar. O eidos platônico, a enérgeia aristotélica, o ente supremo da teologia medieval, o subiectum da filosofia moderna e a vontade de poder de Nietzsche são algumas dessas palavras-chave da metafísica, em que se “anunciam as linhas constitutivas da abertura histórica na qual já estamos lançados e dentro da qual apenas se torna possível ‘todo acontecimento histórico’”. (Vattimo 1989, p. 90) Para os propósitos desse ensaio, entretanto, mais importante do que recontar os meandros dessa história é observar que Heidegger a descreve como possuindo um começo e um fim, e que esse fim concerne à nossa própria existência histórica presente, marcada pelo desenvolvimento das ciências naturais e da técnica moderna. Meu argumento não é o de que a filosofia de Heidegger estaria sujeita a uma drástica ruptura interna que a dividiria em duas ou mais etapas. O que pretendo enfatizar é que, em meio à continuidade de sua preocupação constante com o ser, importantes mutações se impuseram a seu questionamento. E como poderia não ser assim? Por outro lado, penso que a reflexão filosófica de Heidegger sobre a ciência moderna depende de uma análise desconstrutiva dos seus pressupostos ontológicos. Esse procedimento filosófico se manifesta em toda sua obra: tanto no projeto da ontologia fundamental, quando Heidegger estabelece o caráter fundado ou derivado do fazer científico por meio da análise ontológica do ser-aí; quanto na fase tardia de sua reflexão, a partir do 14

momento em que o filósofo distingue entre pensamento representativo, científicocalculador, e pensamento meditativo do ser. Assim, quando Heidegger afirmou, para escândalo de alguns, que “a ciência não pensa”, ele apenas queria distinguir entre duas formas de proceder diante do ente na totalidade, a científica e a filosófica. Para Heidegger, a ciência não pensa, pois jamais pode pensar em conformidade ao tipo de seu proceder e de seus equipamentos de auxílio – pensar, isto é, segundo a essência do pensar. Que a ciência não possa pensar não é uma falha, mas antes uma vantagem. É ela que garante à ciência a possibilidade de envolver-se, segundo o tipo de seu proceder, em um campo qualquer de objetos e os estabelecer. (Heidegger 1997, p. 127) Com essa atitude coerente e persistente, Heidegger teria buscado enfraquecer as pretensões absolutistas da ciência na modernidade. No entanto, essa hipótese interpretativa sobre a unidade do pensamento heideggeriano a respeito da ciência não pode desconhecer a importante mutação ocorrida em seu pensamento com o esgotamento das investigações especificamente orientadas pelo projeto da ontologia fundamental. Após a chamada viragem (Kehre) no modo como Heidegger pensou as relações entre ser-aí e ser, iniciada no começo dos anos 30 e concluída por volta do final daquela década, a ciência e a técnica assumiram importância não apenas decisiva em seu pensamento, mas também radicalmente distinta daquela que se pode observar nos textos que circundam o grande projeto de Ser e Tempo. No período de Ser e Tempo, a desconstrução do moderno primado científico visava demonstrar a gênese do comportamento científico em seu caráter derivado, isto é, fundado na compreensão pré-teórica de ser que distingue o ser-aí ôntica e ontologicamente. Naquele primeiro momento, também importava a Heidegger distinguir a tarefa específica das ciências ônticas da tarefa da filosofia enquanto ontologia fundamental. O problema com as ciências ônticas, particularmente aquelas que tematizam o homem, como a biologia, a psicologia e a antropologia, reside em que, a despeito de todos os resultados objetivos alcançados, elas não atingem “uma resposta precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista ontológico, para a questão do modo de ser deste ente que nós mesmos somos.” (Heidegger 1927, p. 50) Nos Problemas fundamentais da fenomenologia, também de 1927, Heidegger esclarecia o dilema que caracteriza as ciências positivas da seguinte maneira: ao mesmo tempo em

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que toda ciência positiva pressupõe a delimitação prévia da constituição ontológica do ente que tematiza, pois tem de distingui-lo dos entes que pertencem a outras regiões, a própria constituição ontológica dessas diferentes regiões sempre permanece inacessível ao cientista. Na medida em que a ciência lida apenas com os entes, e o ser não é nada entitativo, ela jamais acede à tematização ontológica, a qual, por sua vez, requer uma abordagem que apenas a filosofia pode oferecer. (Heidegger 1989, p. 72) As ciências se ocupam com entes e, portanto, não tematizam nem podem tematizar a compreensão a priori de ser que permite tal tematização. Desse modo, as ciências não podem ter acesso à constituição ontológica dos entes que investigam, obtendo resultados verificáveis a despeito de sua cegueira ontológica. (Heidegger 1989, pp. 74-75) As ciências são, portanto, “necessariamente insuficientes” em sua própria estrutura científica e apenas o questionamento ontológico poderia trazer novos impulsos. (Heidegger 1927, p. 45; Ramos dos Reis 1999, pp. 270-271) Como afirmou Loparic, a consequência mais direta desse primeiro procedimento desconstrutivo é a perda, por parte da ciência, de sua “originalidade e exclusividade e, com isso, a [perda de; AD] sua força sobre o existir humano”. (Loparic 1988, p. 28) Nas reflexões posteriores de Heidegger, entretanto, sobretudo a partir dos anos 40 e 50, já em meio à elaboração avançada de sua narrativa filosófica da modernidade, o procedimento desconstrutivo tornar-se-ia muito mais radical. A partir de então, a desconstrução passaria a exigir o ultrapassamento (Überwindung) da ciência e da própria filosofia por meio do pensamento meditativo (Besinnung), não metafísico, aberto à escuta dos envios do ser. O pensamento não calculador, não objetificador do ser, é o pensamento que salta para além das fronteiras da ciência e da filosofia, pois deixa de pensar o ser como fundamento que tenha de ser agarrado e retido de uma vez por todas. O pensamento rememorativo-meditativo escapa aos procedimentos de presentificação (Vergegenwärtigung) representativa do ser, na medida em que pensa o ser como envio já sempre ocorrido, como já sempre acontecido. Tal pensamento “que pensa sempre o seu próprio objeto como diferido, como constitutivamente não-presente, é o Gedächtnis, o Andenken, a memória”, diz Vattimo. (1988, p. 129) A partir dessa perspectiva não metafísica, Heidegger esclareceria e enfatizaria os riscos e perigos do procedimento de objetivação (Vergegenständlichung) intrínseco às ciências, lembrandonos que ele poderia levar à transformação da terra em um lar inabitável e à própria “autodestruição do ser-homem” (Selbstzertörung des Menschseins), aspecto que não teria sido reconhecido pelo filósofo no período da ontologia fundamental. (Heidegger 16

1987, p. 124) Nesse segundo procedimento desconstrutivo, Heidegger já não questiona mais o processo científico da objetivação dos entes no contexto de uma reconstituição da gênese existencial da atitude teórica a partir dos projetos hermenêuticos do ser-aí, como em Ser e Tempo, mas o pensa como resultante do envio epocal do ser que instaurou a época moderna, na qual o ente na totalidade se dá ao homem primeiramente enquanto objeto para as representações do sujeito e, em seu momento tardio, mesmo apenas enquanto subsistência, para além da categoria ontológica da objetidade. Nesse novo contexto de discussão, a objetivação não é mais pensada como o ato hermenêutico por meio do qual o ser-aí institui um determinado campo de ‘objetos’ de análise, pois Heidegger a pensa agora como o procedimento científico que especifica a modernidade enquanto época historial. Segundo Loparic, após a Kehre Heidegger não busca mais tão-somente a origem ontológica do modo de ser do homem em que se fundamenta a metafísica e a ciência, mas o ultrapassamento (Überwindung) definitivo de tais formas de ser. Não se trata mais de definir um conceito ontologicamente verdadeiro da metafísica ou da ciência a partir do compreender pré-metafísico e précientífico. A tarefa, agora, é a de substituir o modo de pensar metafísico e científico em geral por um modo de pensar novo, não metafísico e não científico, e, nesse sentido, ultrapassar a teorização metafísica e científica enquanto tal. (Loparic 1998, p. 28) Mais uma vez, é preciso repetir que Heidegger não era hostil em relação à técnica, às ciências ou à modernidade, como se a exigência de superação da metafísica e do pensamento representacional, calculador-científico, exigissem um abandono ou recusa absolutos e voluntaristas da ciência, da técnica e da própria modernidade. Antes, tratava-se de abrir espaço para formas não metafísicas de pensamento, o que, por sua vez, também poderia favorecer a constituição de disciplinas científicas existencialmente fundadas, as quais escapassem dos dilemas e perigos em que a pesquisa científica tradicional se enreda sem sabê-lo. Embora não a tenha desenvolvido, Heidegger deixou entreaberta a possibilidade de pensar a constituição de uma antropologia existencialmente fundada, capaz de pensar os limites epocais do fazer científico moderno e de inaugurar novas formas de conhecimento do humano, como se observa nos Seminários de Zollikon, do final da década de 50. Neles, Heidegger nos dá algumas breves indicações a respeito da possibilidade de uma ciência antropológica

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existencialmente fundada, capaz de avaliar as patologias oriundas do ek-istir humano em uma civilização técnico-científica e industrial. (Duarte 2004) V. A essência da técnica moderna enquanto destino historial do ser: o dispositivo (das Gestell) Retomemos o fio da meada. Frequentemente se afirma que a meditação heideggeriana sobre a técnica moderna e seus perigos estaria marcada pelo arcaísmo reacionário, no sentido de que ela se limitaria a lamentar, de maneira romântica e nostálgica, a perda moderna do encanto misterioso da physis dos pré-socráticos e a concomitante transformação do Reno poético de Hölderlin em instalação turística e vasto complexo para a geração de energia elétrica. É certo que algo (ou muito) desse sentimento desencantado perante a destruição da Terra está contido na narrativa heideggeriana da modernidade tecnológica. No entanto, esse não é o aspecto central da questão. O que importava a Heidegger não era enfatizar os perigos ônticos da técnica e, assim, recomendar sua recusa ou lamentar a impossibilidade de nos desfazermos dela. Em primeiro lugar, tratava-se de pensar a essência da técnica e, assim, de sublinhar a diferença existente entre o desocultar que é um pro-duzir (Her-stellen), um pôr-adiante e à luz, e o desocultar que desafia, que põe (stellt) a natureza como fonte de recursos disponíveis a serem continuamente demandados (bestellt). A técnica moderna não se satisfaz em trazer os entes à presença, mas os descobre já enquanto matéria ou recurso que pode ser continuamente reutilizado, transformado, economizado e manipulado em um ciclo supostamente infinito, no qual se instala a devastação da natureza e do humano. Na modernidade tardia, o ente que se desoculta tecnologicamente como posto e demandado para seu emprego contínuo, segundo o cálculo preciso da maximização de seus efeitos, assume a posição (Stand) ontológica que Heidegger denomina como subsistência (Bestand): A palavra ‘subsistência’ eleva-se agora à categoria de um título. Ela significa nada menos que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desocultamento desafiante se essencializa. Aquilo que está aí no sentido da subsistência não está mais colocado diante de nós como objeto (Gegenstand). Um meio de transporte aéreo, porém, que se encontra na pista de decolagem, não é um objeto? Com certeza. Podemos representar a máquina desse modo. Mas então ela se ocultará segundo o que ela é e como ela é. Na pista de decolagem ela permanece desocultada apenas enquanto subsistência, na medida em

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que ela é demandada para assegurar a possibilidade do transporte. (Heidegger 1997, p. 61; tradução modificada) Na modernidade tardia, o ente na totalidade já não se desoculta em conformidade com as categorias correlatas do sujeito e do objeto, tal como elas foram constituídas com o surgimento da filosofia e da ciência modernas no século XVII, mas, sobretudo, enquanto subsistência disponível para quaisquer agenciamentos tecnológicos posteriores. Heidegger observa que na modernidade tardia, mesmo a categoria do sujeito do conhecimento capaz de conhecer objetos começa a sofrer uma importante transformação, pois os entes que agora temos diante de nós se nos apresentam como enquanto estoque, fundo de reserva disponível ou subsistência. Ao considerar o avião como item do fundo de reserva subsistente, disponível para fins os mais diversos, Heidegger pretende nos mostrar que a aeronave não é apenas uma máquina ou objeto postado diante de um sujeito, pois, enquanto ente fixado ontologicamente como subsistência, ele é empregável para diversos fins determinados por uma cadeia de demandas que permanece indeterminada. Assim, o avião é transporte de carga e de vida humana ou meio de aniquilação dessa mesma vida, seja porque se trata de um avião de guerra que bombardeia civis inocentes, seja porque foi seqüestrado e lançado propositadamente contra edifícios gigantescos em um atentado terrorista suicida. Pelos mesmos motivos, também a própria natureza agora já não é mais apenas um objeto entregue à investigação por parte dos cientistas, mas, fundamentalmente, se transformou em fonte de recursos econômicos (agronegócio, transgênicos), de recursos biológicos (farmacologia e biodiversidade), em fundo de reservas recicláveis (áreas de reflorestamento e de exploração auto-sustentável), em fundo de reservas energéticas (hidrelétricas, fonte de energia eólica, solar, biocombustíveis), e mesmo em reserva da chamada qualidade de vida nos conglomerados urbanos poluídos e deteriorados pela contínua exploração da natureza. (Acevedo 1999, p. 88) Por esse motivo, Heidegger pode afirmar que O guarda florestal que faz o levantamento da madeira derrubada na floresta e, ao que parece, tal como seu avô, percorre do mesmo modo os caminhos da floresta, é hoje demandado pela indústria madeireira, saiba ele disso ou não. Ele é demandado pela demanda de celulose que, por sua vez, é desafiada pela necessidade de papel, que é fornecido para os jornais e para as revistas ilustradas. (Heidegger 1997, pp. 62-63)

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A partir da segunda metade dos anos 40, durante a pior etapa da guerra, Heidegger compreendeu que as atividades tecnocientíficas já não poderiam mais ser descritas apenas em termos dos procedimentos metódicos de objetivação do ente pelo sujeito do conhecimento, os quais caracterizaram e tornaram possível a atitude científica moderna. Afinal, o que agora importa no âmbito tecnocientífico não é apenas a investigação desinteressada e objetiva do ente em suas propriedades e características, mas assegurar-se de maneira planejada e calculada das mais variadas possibilidades interconectadas de produção, reprodução, incremento e destruição, posto que a ciência, em conjunção com a técnica moderna, se torna cada vez mais intervencionista. Aliás, cumpre observar que a própria relação entre ciência e técnica passou por uma importante transformação no curso da reflexão heideggeriana. Afinal, em sua reflexão madura sobre a essência da técnica moderna, ciência e técnica mecanizada não são mais pensadas como fenômenos coetâneos, tal como o filósofo o afirmara em “A época da imagem do mundo”, ensaio de 1938. Agora, Heidegger inverte o modo como tradicionalmente se pensa a relação entre ciência e técnica, pois se a ciência natural matematizada é entendida por ele como fenômeno moderno, ele se insere no interior de um processo ontológico muito mais antigo, o qual concedeu primazia à poiesis como modo de desocultamento do ente, donde a importância que a técnica assumiu na história ocidental. Em outras palavras, para Heidegger a ciência moderna está inserida no processo historial em que já vinha se desdobrando a essência da técnica moderna, originada, por sua vez, do impulso metafísico que marcou a força do primeiro começo da tradição filosófica ocidental, já com Platão. Vale dizer, pensada em sua essência, a ciência moderna, em seu ímpeto de assegurar-se do ente na totalidade, é apenas uma dimensão interna do processo mais amplo e mais antigo de domínio técnico de tudo o que é, o qual brotou primeiramente na Grécia e ganhou seu contorno mais nítido e definido na modernidade tardia, desde meados do século XIX. Segundo Loparic,

Agora Heidegger sabe também como determinar com precisão a relação entre o saber científico e a técnica. Não foi a matematização da natureza que gerou a técnica. Embora preceda historicamente o desenvolvimento desta, a ciência matematizada, já ao nascer, estava no campo de força da essência da técnica, que existe desde a Grécia. O pensamento representacional da ciência não é o lugar originário da verdade do ser, ele é apenas um modo epocal (‘moderno’) do

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desocultamento do ser como presença constante, constanteada, que já foi prenunciado na téchne dos gregos. (Loparic 1996, p. 128)

Quanto à nova categoria ontológica proposta por Heidegger no âmbito de sua reflexão madura sobre a técnica, a subsistência (Bestand) como o ser do ente desocultado no âmbito da moderna tecnologia, cabe notar que se ela não é contraditória com a concepção da ciência que havia sido proposta em “A época da imagem do mundo”, enfeixada pelos conceitos correlatos do sujeito e do objeto unificados por meio das representações certas e seguras do cogito, ao menos o conceito de subsistência permite que Heidegger vá além daquilo que ele pudera pensar antes da Segunda Guerra Mundial e seus campos da morte. (Duarte 2001) Em textos dos anos cinquenta, Heidegger argumenta que não haveria contradição entre ambas as etapas do desenvolvimento tecnocientífico e, portanto, tampouco haveria uma quebra entre os conceitos ontológicos de sujeito-objeto e o conceito ontológico de subsistência. Antes, entre elas haveria um prolongamento e uma acentuação radical, por meio da qual a própria relação sujeito-objeto se transformaria num fluxo rápido e contínuo de demandas, de sorte que as antigas polaridades se fundiriam no encadeamento do processo de demanda, produção, consumo, desgaste, destruição e reprodução do ente. Desse modo, com a introdução da noção de subsistência as categorias de sujeito e objeto alcançam uma determinação antes incompreendida pelo próprio Heidegger. Nos Vorträge und Aufsätze, ele afirma: Não é possível esclarecer de maneira precisa nesse momento em que medida, na fase mais recente da física nuclear, também o objeto desaparece e, assim, a relação sujeito-objeto alcança pela primeira vez o primado do caráter de simples relação diante do objeto e do sujeito, sendo assegurada enquanto subsistência. A objetividade se transforma na constância da subsistência (Beständigkeit des Bestandes) determinada pelo dispositivo (Gestell). A relação sujeito-objeto alcança agora o caráter de pura ‘relação’, quer dizer, o caráter de demanda, no qual tanto o sujeito quanto o objeto são absorvidos enquanto subsistência. Isto não quer dizer que a relação sujeito-objeto desapareça; antes, pelo contrário, ela alcança agora seu domínio mais extremo, pré-determinado pelo dispositivo. Ela se torna uma subsistência sob demanda. (Heidegger 1997, p. 57)

De qualquer modo, a implicação mais extrema dessa nova determinação ontológica de tudo o que é como subsistência é a previsão da fixação do próprio homem 21

como ente disponível para o agenciamento tecnológico de sua produção, conservação, reprodução e destruição:

Apenas quando, por seu turno, o homem for desafiado a desafiar as energias naturais pode acontecer este desocultar que demanda. Quando o homem assim desafiado é demandado, então também ele não pertence, de maneira ainda mais originária do que a natureza, à subsistência? O discurso corrente sobre o material humano, sobre o material de doentes de uma clínica, testemunha a favor disso. (...) Tão logo o que estiver desvelado (Unverborgene) não mais interessar ao homem como objeto (Gegenstand), mas exclusivamente como subsistência, e o homem, no seio da falta de objeto, for aquele que apenas demanda a subsistência, então o homem caminhará na margem externa do precipício, sendo ele mesmo tomado apenas como subsistência. (Heidegger 1997, pp. 62-63 e 77-79; tradução modificada) Uma vez chegados a esse ponto extremo do diagnóstico heideggeriano dos perigos implicados na técnica moderna, bem parecem se confirmar as avaliações críticas que veem em sua reflexão nada mais que um pessimismo enviesado, sempre disposto a enfatizar a dimensão catastrófica da moderna tecnologia. Recordam-se então as fotografias idílicas de Heidegger, já idoso, retirando água de um poço ou partindo a madeira com um machado para alimentar a pequena caldeira que aquecia a água de sua cabana situada em Todnauberg, na Floresta Negra, sem luz elétrica. Estaria Heidegger nos incitando a abandonar a tecnologia como coisa demoníaca? No entanto, a reflexão heideggeriana sobre a essência da técnica não se esgota aqui. Heidegger deu o nome de dispositivo (Gestell) à essência da técnica moderna. Lembremo-nos de que a essência da técnica não é nada de tecnológico em si mesmo, de modo que não devemos entender o dispositivo como mais um aparato técnico qualquer. Mas como pensar o significado dessa determinação filosófica da essência da técnica como o dispositivo? O que significa que a essência da técnica não seja ela mesma algo técnico? Para responder a essas questões é preciso recordar a anterior articulação conceitual proposta por Heidegger, segundo a qual a téchne, pensada como o saber específico da poiésis, é um modo de trazer o ente à presença, um modo de desocultá-lo e, assim, também um modo de instauração do desvelamento da verdade em seu sentido originário (alétheia). Heidegger pensou a essência da técnica, o dispositivo, como o

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modo determinado pelo qual os entes vêm a ser na modernidade tardia. Daí porque, como já afirmamos anteriormente, a técnica não seja pensada por Heidegger de maneira instrumental e antropológica, como instrumento que o homem controla e emprega para alcançar suas metas. Se pudermos compreender o homem contemporâneo como um funcionário da técnica, isso dependerá de entendê-lo como continuamente demandado pela própria técnica, em vez de pensá-lo como seu agente e controlador. A mesma idéia pode ser formulada de outro modo: não vivemos em uma era tecnológica porque fazemos e desfrutamos de aparelhos técnicos; por outro lado, os produzimos e tornamonos dependentes deles porque vivemos em um mundo no qual o ente vem a ser pela técnica e pela ciência modernas. O homem moderno não controla a técnica e nem pode controlá-la, visto que a técnica, pensada em sua essência, não é um simples conjunto de instrumentos ou meios técnicos, mas configura a abertura ontológica na qual os entes fazem sua aparição em nosso tempo. É nesse sentido que a técnica moderna, pensada essencialmente, não é um mero fazer ou agir humanos. Antes, pelo contrário, as ações humanas na época da técnica são uma resposta ao dispositivo (Gestell), o qual não se confunde com qualquer objeto tecnológico particular, mas constitui o horizonte do desocultamento no qual agimos e orientamos nossos projetos em nossa época. Na filosofia de Heidegger, o dispositivo demarca o contorno historial de nossa época, isto é, seu caráter ontológico próprio, distinto das épocas passadas. As épocas históricas não são determinadas como momentos cronológicos sucessivos ao longo do tempo, mas como modalidades distintas da abertura (Offenheit) ou da clareira do ser (Lichtung des Seins) na qual os entes vem a ser o que são e como são a cada vez na história. Heidegger criou o neologismo ‘historial’ (Geschicklich) a partir da fusão dos substantivos Geschichte (história) e Geschick (destino, envio), e sua finalidade era nomear o modo como o ser se dá, retraindo-se aos homens a cada vez na história. Cada época histórica se constitui como a resposta humana, diferente a cada vez, a um “envio do destino” (Schickung des Geschickes), isto é, a um determinado modo do desocultamento dos entes em seu ser. Assim, o dispositivo é a determinação filosófica da clareira que regula previamente o modo como atualmente nos relacionamos conosco mesmos, com os demais homens e com tudo mais que há em nosso tempo. Pensada em sua essência, a moderna tecnologia não é simplesmente um conjunto de inventos humanos tornados possíveis pela revolução científica do século XVII, mas um acontecimento (Geschehen) da história do ser (Seinsgeschichte), um envio do ser (Seinsgeschick) relativo ao modo do desocultamento dos entes: 23

Denominamos aquele enviar (Schicken) que recolhe e que primeiramente leva o homem para o caminho do desocultar como sendo o destino (Geschick). A partir daqui determina-se a essência de toda história. Ela não é nem somente o objeto da historiografia (Historie), nem somente a ratificação do fazer humano. Este, somente quando é algo historial (geschickliches) é algo histórico (geschichtlich). (Heidegger 1997, p. 73; tradução modificada)

Trata-se aqui de um envio ou destinamento que certamente ocorre e se manifesta no plano das ações humanas históricas, mas cujo controle não está sob o inteiro poder de ação do homem. Afinal, o homem não domina o modo como os entes se lhe apresentam em cada época histórica, não dispõe da abertura ou da clareira do ser por meio da qual a “realidade a cada vez se mostra ou se retrai”. (Heidegger 1997, p. 63) Em uma palavra: somos livres em nosso emprego de aparatos técnicos, mas não poderíamos ter escolhido existir em uma civilização pré-tecnológica. Para Heidegger, portanto, o que importava não era denunciar os avanços tecnológicos como se fossem obras malignas, mas, dentre outras coisas, compreender que não somos apenas utilizadores de aparatos tecnológicos, nem tampouco seus senhores absolutos. Antes, os aparatos tecnológicos nos empregam e utilizam, no sentido de que pré-determinam não apenas nosso ser, mas também o horizonte no qual podemos nos relacionar com tudo o que há no mundo, incluindo-se aí as outras pessoas. Por isso, a técnica moderna não é apenas mais um meio entre outros para produzir o que quer que seja, mas o modo essencialmente determinado de produzir e estabelecer relações com o ente na totalidade, aquele modo do desocultamento no qual predominam as exigências do controle, do cálculo, do domínio e da plena disponibilidade de tudo o que é para seu emprego contínuo nas mais diversas atividades. Não somos seres da era da técnica porque podemos construir aparatos tecnológicos avançados; nós os concebemos porque a técnica moderna define o horizonte historial da abertura do ser na qual os entes se deixam desocultar em nossa época. Assim, a descoberta da natureza como vasto reservatório de energia a ser continuamente explorado, bem como a descoberta da natureza humana como recurso humano ou como capital genético, não dependem de qualquer decisão voluntária do homem. Segundo Michel Haar,

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No ‘mundo’ da técnica toda decisão aparece como já estando de antemão tomada. Não há mais escolha possível, não há mais acontecimento digno desse nome. Apenas se persegue a destruição da terra em nome do movimento perfeitamente circular da produção e do consumo. (...) O ‘mundo’ da técnica tornou-se um ‘não-mundo’ porque a fixidez do projeto tecnológico interdita todo sentimento de uma decisão que faça época. (Haar 1983, p. 348) Por outro lado, foi somente sob o impacto desafiador da técnica moderna, pensada em sua essência como nova forma do desocultar, como nova clareira do ser, que a natureza e a natureza humana puderam ser fixadas ontologicamente enquanto itens do fundo de reserva subsistente (Bestand), permanecendo disponíveis para serem tecnologicamente manipuladas, criadas ou destruídas, como o atestam a engenharia genética e as inúmeras formas de destruição violenta de massas humanas. Essa clareira em que os entes agora aparecem não pode ser pensada como originada das ações humanas, nem pode ser controlada pelo homem, visto que ele não pode regular, controlar ou deter o horizonte do desocultamento no qual ele se encontra agora lançado: isso seria como tentar saltar para fora de sua própria sombra. Por isso, em uma conferência de 1955 pronunciada em sua cidade natal, Heidegger fez as seguintes afirmações: Nenhum indivíduo, nenhum grupo humano, nenhuma comissão de significativos chefes de Estado, pesquisadores ou técnicos, nenhuma conferência das pessoas que lideram a economia e a indústria será capaz de brecar ou direcionar o curso histórico da época atômica. Nenhuma organização simplesmente humana está em condições de apoderar-se do domínio sobre a época. (Heidegger 1959, pp. 21)

Uma vez mais, a sombra do fatalismo antifilosófico parece obscurecer o pensamento heideggeriano. A julgar por suas considerações, estaríamos entregues de maneira inevitável e incontrolável ao destino da técnica moderna, e nada mais nos caberia senão desfrutar de seus benefícios e padecer de seus males. Mas então, como pensar a liberdade humana frente à definição heideggeriana da essência da técnica como um envio do ser que pré-define o modo como nos relacionamos com a totalidade dos entes? A questão é tanto mais urgente pois Heidegger afirma que “o destino da desocultação não é em si qualquer perigo, mas é o perigo. E se o destino predomina no

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modo do dis-positivo (Ge-stell), então se trata do perigo supremo” (die höchste Gefahr). (Heidegger 1997, p. 77; tradução modificada) De que perigo supremo se trata aí se, como vimos anteriormente, Heidegger não foca sua reflexão na discussão dos resultados e consequências da moderna tecnologia? VI. A técnica moderna e o problema da liberdade humana Pensada em sua essência enquanto modo determinado do desocultamento, a moderna tecnologia não é intrinsecamente perigosa. O perigo supremo reside em que o dispositivo, a essência da técnica moderna, pode ofuscar e apagar todos os demais modos possíveis do desocultar, os quais ainda hoje preservam o mistério da própria irrupção, do levar o ente à presença enquanto acontecimento genuíno, no sentido originário da poiésis. A partir dos anos quarenta, Heidegger pensou que a poesia seria uma dessas formas essenciais da poiésis, aquela pela qual podemos nos envolver com a linguagem de maneira a corresponder ao ser e seus envios. Mas Heidegger também considerou outras atividades como modos não-tecnológicos de trazer o ente ao ser na modernidade tardia, como o artesanato, capaz de liberar e aceder à coisidade das coisas, a jardinagem capaz de cuidar da terra, a arquitetura como construção de espaços e lugares nos quais os mortais possam se demorar e habitá-los, a obra de arte, etc. Além disso, o perigo supremo reside em que o dispositivo esconde seu próprio traço fundamental, isto é, o de ser apenas um modo do desocultar e não o único modo possível do desocultamento. Assim, corremos o risco de perder de vista não apenas a concepção da verdade como o acontecer do desocultar, como também nos arriscamos a esquecer que, a cada vez, é sempre o próprio homem que se deixa ser empregado em cada modalidade do desocultamento, na medida em que é chamado a participar livremente do envio que o destina a um modo epocal do desocultar. Estamos destinados a existir num mundo tecnológico. Ainda assim, Heidegger não considera que esse destino seja uma fatalidade que negue a liberdade, desde que a liberdade não seja pensada metafisicamente como total autonomia do indivíduo para decidir sobre o caráter da abertura historial na qual ele foi lançado. Afinal, tomamos parte nesse modo do desocultar historialmente determinado ao cultivarmos a técnica, mas não nos esqueçamos de que, para Heidegger, a clareira do ser que permite que nos pensemos e nos tratemos como matéria bruta ou recurso humano nos é inacessível e não resulta do mero fazer humano, não podendo ser transformada pelo mero fazer humano. 26

Para Heidegger, portanto, a mera ação ou fazer humanos (blosse Tun), entendidos como meios para causar fins, jamais serão capazes de transformar a essência da técnica, pois tal transformação depende fundamentalmente de uma outra relação entre homem e ser. Para o filósofo, essa outra atitude somente poderia ser preparada e esperada na meditação ponderada e desprovida de qualquer certeza quanto à sua realização. Tal atitude humana outra, Heidegger certa vez a denominou como “serenidade para com as coisas”: Poderíamos empregar os objetos técnicos e, simultaneamente, em seu uso próprio, mantermo-nos livres em relação a eles, de modo que pudéssemos abrir mão deles a qualquer momento. Poderíamos tomar os objetos técnicos e usá-los como eles devem ser tomados. Ao mesmo tempo, poderíamos deixá-los repousar como algo que não se infiltra no que nos é mais íntimo e próprio. Podemos dizer ‘sim’ ao uso inevitável dos objetos técnicos, e podemos simultaneamente dizer ‘não’, na medida em que os impedimos de nos reclamar de maneira exclusiva, deformando, confundindo e, por fim, desolando nossa essência. (Heidegger 1959, pp.22-23) À atitude da serenidade (Gelasseneheit), Heidegger associa ainda outro modo de preparar o acontecimento de uma outra relação com o ser. Trata-se do pensamento meditativo (besinnliche Denken), que ele distinguiu do pensamento calculador (rechnende Denken), tecnocientífico: o pensamento meditativo não calcula resultados nem pretende oferecer soluções práticas e aplicáveis para quaisquer dilemas, mas busca pensar o ser em sua verdade, enquanto acontecimento historial. Nossa dificuldade em compreender (e aceitar) o sentido dessas afirmações heideggerianas reside em seu radical antihumanismo filosófico: incomoda reconhecer que todos os esforços bem intencionados no sentido de controlar e regrar coletivamente o uso da moderna tecnologia não são capazes de deter o curso do desenvolvimento científico e tecnológico, nem muito menos logram garantir unicamente seu bom uso e funcionamento. Tais conclusões, a despeito das aparências, não são um convite ao imobilismo, à renúncia ou ao desalento, pois, para Heidegger, impõe-se a tarefa de pensar e continuar a pensar esse destino moderno em que nos encontramos. Desse modo, a radical indisponibilidade dos envios do ser em relação às ações humanas voluntárias não significa que tais envios não possam ser pensados e reconhecidos em sua verdade. Por isso, os argumentos heideggerianos não devem nos levar a compreender o destino do desocultamento que nos domina atualmente como se ele 27

constituísse uma fatalidade que tornaria impossível a liberdade. Se a metafísica é identificada à época da técnica, e se Heidegger pensa a exigência de uma superação da metafísica, tal pensamento não pode se confundir com a proposta de um abandono ingênuo da técnica, nem tampouco com a opinião, também ingênua, de que a metafísica possa ser abandonada, descartada como doutrina à qual não se concede mais adesão. A metafísica como esquecimento do ser não é, pois, substituída por alguma outra concepção ou visão de mundo, por uma nova e melhor concepção do ser, mas é distorcida (verwendet), superando-se o esquecimento do ser no reconhecimento da diferença entre ser e ente. Essa superação ou distorção não se dá na recusa da técnica, mas, de certo modo, por meio da técnica. Tal descoberta não implica um compromisso cego com a técnica e suas demandas, não se dá de maneira passiva, mas de maneira rememorativo-meditativa (andenkend), no pensamento que pensa o domínio técnico incondicional da terra e o assume como um destino, de maneira que o homem contemporâneo deve viver a metafísica e o esquecimento do ser que lhe é constitutivo até o fim. Na formulação de Vattimo, “a única tarefa do pensamento consiste hoje na sua adequação ao destino do domínio desfraldado da técnica, porque só deste modo pode corresponder à Schickung, ao envio do ser.” (1988, p. 122) Para Heidegger, portanto, o homem só se torna livre na medida em que pertence ao âmbito do destino, e tal liberdade, pensada ontologicamente, se define pela atenção solícita, pela escuta meditativa do envio historial em que o homem histórico foi lançado, sendo radicalmente distinta da noção moderna da livre determinação do querer humano por meio da razão. Por isso, Loparic afirma que “a ética originária de Heidegger ... pede o desapego a todo agir causal. Trata-se de substituir a pergunta que, na época da metafísica, era a única urgente: que devemos fazer? pela interrogação: como temos que (müssen) pensar?” (1995, p. 91) Estabelecer, por meio do pensamento meditativo, uma relação mais livre com a essência da tecnologia significa pensar a liberdade humana em sua essência, isto é, como fundamentalmente relacionada ao mistério do regime do desocultamento. Por um lado, a época da técnica é a do maior desespero e da maior devastação do mundo, da natureza e do próprio homem. Por outro lado, pensar o perigo já seria colocar-se no caminho incerto da salvação, pois apenas o pensamento meditativo ‘agiria’ de maneira verdadeira e essencial, contrariamente a toda ação planificada no mundo, sempre arriscada a se converter em ativismo e em complemento do pensamento científico que calcula e visa meios para alcançar seus fins.

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É nesse ponto culminante de sua reflexão sobre a essência da técnica que Heidegger alude à iluminação poética de Hölderlin, cujas palavras colocam seu próprio pensamento na senda incerta de uma esperança: “Mas onde há perigo, cresce também a salvação (Rettung)”. (Heidegger 1997, p. 81) Apenas ali onde surge o maior perigo, torna-se possível pensar o próprio perigo em sua essência e, assim, instaurar uma relação livre com o próprio ser, um deixar-ser que não vise planejar e esquadrinhar tudo o que é: pensar verdadeiramente a técnica em sua essência é, portanto, responder a um apelo liberador, restituindo-se a correspondência rompida entre homem e ser. Nesse sentido, o Gestell seria um “negativo fotográfico” do Ereignis, do acontecimentoapropriador que designa a identidade desigual entre homem e ser, deixando entrever o prelúdio de um outro começo. Este outro começo não significará o abandono da tecnologia, mas demarcará uma nova relação pensante e rememorativa para com o modo de descobrimento técnico do ser dos entes e, talvez, venha a permitir uma nova relação para com os próprios instrumentos tecnológicos. Tal rememoração deve ser entendida como infinita, pois a relação com o ser é sempre uma relação com o passado transmitido pela tradição. Contudo, não se trata de recuperar no passado algum fundamento primeiro que pudesse render a justa causa daquilo que somos no presente, mas apenas de rememorar as palavras-chave por meio das quais a tradição legou a doação-retração do evento do ser: logos, Grund, subiectum, etc. Por isso, tal rememoração é distinta do trabalho de certificação e fundação propiciado pela historiografia da filosofia, já que ela não busca encontrar no passado as condições históricas e filosóficas da nossa condição presente. Como aquilo que se requer rememorar não se expõe à possibilidade de uma plena presentificação, tampouco tal rememoração almeja desalienar a existência presente, superando o esquecimento do ser por meio de uma nova definição do ser, capaz de reunificar pensamento e ser no final da época da metafísica. Este é justamente o sonho de todo pensamento clássico, contra o qual Heidegger se confronta ao incorporar, em sua concepção do pensamento rememorativo-meditativo, “uma concepção do negativo que não [se] deixa incluir ou liquidar na perspectiva de um possível ‘resgate’ final”, como afirmou Vattimo. (1988, p. 138) Também por isso, não se deve ler em Heidegger a tendência (ainda dialética) de elevar o homem a uma reconciliação final com a técnica, por meio de uma plena entrega do homem à técnica planetária. Se a técnica não pode ser recusada ou abandonada, Heidegger tampouco advoga por uma entrega irrefletida do homem a ela. Assim, quando o filósofo repete o verso de Hölderlin, não se deve pensar em uma súbita 29

retomada do pensamento dialético, de uma salvação que nos redimiria de uma vez por todas. Mas então, como pensar a natureza dessa relação entre aprisionamento e liberação na era da técnica? A única resposta possível, descartando-se o ideal clássico da desalienação e o cinismo implicado na redução do pensamento ao cálculo e na entrega passiva à manipulação tecnocientífica, é a de que “a relação do Andenken com a técnica apenas pode ser uma relação oblíqua”. (Vattimo 1988, pp. 140-141) Ou seja, trata-se aí de uma relação não frontal, que não desafia o desocultamento técnico, mas que o atinge por meio de uma distorção hermenêutica que visa extrair as conseqüências liberadoras do próprio advento da técnica. Heidegger mesmo enfatiza que, pensada em sua essência, a técnica moderna mostra ser profundamente ambígua, pois guarda consigo tanto o extremo perigo quanto o poder da salvação. Pensá-la em sua ambigüidade misteriosa é pensá-la em seu caráter historial, como um envio que requer a participação do homem, entendido como aquele que consente em ser empregado para resguardar e proteger a essência da verdade, isto é, o mistério de um modo de desocultar. Nisso justamente, pensa Heidegger, consistiria a liberdade e a dignidade do homem, pensadas em sentido não-metafísico: ... se este destino, o dispositivo, é o extremo perigo, não somente para a essência humana, mas para todo desocultar enquanto tal, pode então este envio ainda se chamar um consentir? Sem dúvida, e muito mais se nesse destino devesse crescer aquilo que salva. Cada destino de um desocultar acontece a partir de um consentir enquanto tal. Pois este somente dá ao homem a possibilidade daquela participação no desocultar que o acontecimento do desocultar emprega. Enquanto alguém assim empregado, o homem está unido ao acontecimento da verdade. Aquilo que consente, que envia deste ou de outro modo para o desocultar é, enquanto tal, o que salva. Pois é isso que permite ao homem olhar e penetrar a mais alta dignidade de sua essência. (Heidegger 1997, p. 87; tradução modificada) Se Heidegger não pretendeu combater a técnica pregando um retorno nostálgico a relações pré-modernas, mais autênticas e não alienadas entre os homens e entre os homens e as coisas, isso também significa que ele não poderia afirmar positivamente a tese que levaria do Ge-Stell ao An-denken. Ademais, para além de sua crítica à violência calculada que rege o desocultamento técnico, ele também parece ter enxergado elementos positivos na própria técnica, a qual não foi pensada exclusivamente como instância de desarraigamento e destruição. Se a técnica moderna guarda um perigo

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supremo, reconhecê-lo ao pensá-la em sua essência poderia abrir a brecha para novas formas de pensamento. Assim, a tese da relação oblíqua ou ambígua entre o pensamento rememorativo e a essência da técnica moderna somente pode levar “‘para o An-denken no e através do Ge-Stell,’” e isso, em todo caso, somente de maneira não dialética. (Vattimo 1988, p. 162) A reflexão heideggeriana não implica nem requer, portanto, a supressão da tecnologia, da ciência ou da modernidade; o que ela pretendeu foi chamar a atenção para a possibilidade incerta e imprevisível de uma relação mais livre para com as determinações essenciais de nossa época, suscitando a coexistência e a emergência de outras formas de desocultamento. Permanece aberta, pois, a possibilidade de que o pensamento meditativo redescubra modos mais originários do desocultamento do ser dos entes e, desse modo, ao colocar-se na clareira aberta do possível, prepare-se em silenciosa expectativa para a mutação de nossa relação com o mundo, com o tempo, com as coisas, com a natureza, com os outros e com a própria tecnologia. A tarefa do pensamento essencial seria a de pensar o esquecimento do esquecimento do ser vigente na época em que o homem apenas se ocupa da caça e controle dos entes, cabendo a tal pensamento rememorativo recuperar o sentido originário da penúria e do desespero como um destino que não se impôs de maneira fatal ao homem, mas no qual ele foi livremente enviado e acolhido. Bibliografia: Acevedo, J. Heidegger y la época técnica. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1999. Casanova, M. A. Nada a caminho. Impessoalidade, niilismo e técnica na obra de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Dreyfus, H.L.: “De la technè à la technique: le statut ambigu de l’ustensilité en L’Être et Temps”. In Cahiers de L’Herne. Paris: Ed. de L’Herne, 1983. Duarte, A. “Heidegger e a possibilidade de uma antropologia existencial”. Natureza Humana. SP: Educ, v.6, n. 1, 2004. ________. “Heidegger, a essência da técnica e as fábricas da morte: notas sobre uma questão controversa”. In: R. T. de Souza; N. F. de Oliveira. (Orgs.) Fenomenologia Hoje. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.

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