Helder Macedo: da leitura dos contemporâneos

May 20, 2017 | Autor: Maria João Cantinho | Categoria: Literature, Camões, Literatura Portuguesa
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Helder Macedo: da leitura dos contemporâneos

O poeta, romancista e ensaísta Helder Macedo é um dos autores mais incontornáveis da cultura portuguesa. Apesar de razões políticas o terem levado ao exílio e de viver em Londres desde 1960, a sua ligação à literatura portuguesa manteve-se sempre, sobre a qual sempre leccionou e trabalhou, enquanto scholar, tendo predominantemente leccionado no King’s College. Após as obras de referência que publicou, sobre Cesário Verde (Macedo, Nós, Uma Leitura de Cesário Verde, 1975), a lírica trovadoresca (Helder Macedo S. R., 1976), Camões, ao qual dedicou duas obras (Macedo, Camões e a viagem iniciática, 1980) e (Helder Macedo F. G., Campo das Letras), Bernardim Ribeiro (Macedo, Do Significado Oculto de "Menina e Moça", 1977) e Sá de Miranda, regressa agora com o livro Camões e outros Contemporâneos. A propósito do conceito de contemporâneo diz Giorgio Agamben, no seu ensaio “O que é o Contemporâneo”, que «Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto» (Agamben, 2009, p. 70). Esse elo deve-se, não tanto ao fascínio particular que «as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente», mas sobretudo porque «a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico» (idem). Seja como for, contemporâneo é aquele que «fracturou as vértebras do seu tempo» e que transformou a fractura numa forma de abertura que liga os tempos e estabelece entre eles a sua ligação. Daí que Helder Macedo diga na “Nota introdutória” da sua obra , que «Contemporâneos são todos aqueles com quem vivemos» (Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 11), independentemente de se situarem no passado ou no presente, estabelecendo nessa matriz trans-histórica o ponto de partida do seu conjunto de ensaios. Fala ainda, na mesma nota, numa feliz convergência desta leitura agambeniana, das «muitas vidas dispersas», aludindo a vários tempos vividos, no passado, cruzando a sua biografia – e as relações com os vários escritores portugueses que conheceu – com a sua obra e consequente leitura e interpretação dos seus autores eleitos. Leituras que, como também aqui frisamos, nem sempre foram consensuais e conformes à tradição académica em Portugal. Em parte porque, 1

além da literatura, a sua formação é também histórica, o que lhe permitiu estabelecer essa relação transdisciplinar que permite contextualizar textos de forma menos redutora, sobretudo nas análises da poesia medieval e renascentista e em Camões. Helder Macedo subdividiu assim a sua obra em quatro capítulos, a saber: “Camões e a Modernidade da Tradição”, “História, Memória e Ficção”, “Testemunhos” e “Textos e Contextos”. Se os textos que os compõem são muito diversificados, podemos reconhecer nessa diversidade os seus núcleos temáticos, que se interconectam deliberadamente entre eles, como nos diz o autor, logo no início do livro, e é precisamente nessa matriz do contemporâneo que podemos reconhecer a afinidade que lhes é intrínseca e que percorre os temas e os «seus» autores. O primeiro capítulo da obra é consagrada aos autores da sua eleição como aqueles que trabalhou com Stephen Reckert, no Cancioneiro medieval, Bernardim Ribeiro, autor de Menina e Moça, Sá de Miranda e Camões. Logo no primeiro texto deste capítulo, o autor adverte o leitor para as armadilhas de uma leitura descontextualizada da literatura medieval portuguesa e do próprio Renascimento, ignorando os elos ocultos e a matriz simbólica que suporta as canções de amigo, levando a uma leitura ingénua por parte daquele que ignora o alcance da metalinguagem que é aí utilizada, ignorando ou fazendo vista grossa à incorporação de uma sexualidade que é incorporada simbolicamente na linguagem aí utilizada. O caso paradigmático de Bernardim Ribeiro salta-nos ainda mais à vista, pela «persistente incompreensão dessa obra-prima de um Renascimento ideologicamente medieval que é a Menina e Moça. Terem alguns detectado «loucura» em Bernardim Ribeiro é na verdade um diagnóstico do método de leitura que necessitou de postula-la.» (p. 15). Descortinando sentidos outros que os imediatos, procurando nos contextos e nas referências culturais e históricas da época, Helder Macedo oferece-nos uma interpretação da poesia lírica medieval que se afasta do habitual sentido que lhe era atribuído pela tradição literária e descobre inusitadas, surpreendentes relações, de cariz mais erótico. Bem como ressalta, nessa tradição lírica, a autonomia e o poder da sexualidade feminina que as interpretações mais puritanas não deixavam adivinhar e que abalam os 2

estereótipos que condicionam a sua leitura e a sua compreensão. Como refere, ao abordar as cantigas de escárnio de maldizer de D. João Garcia de Gillade, «O elemento subjacente à agressividade masculina evidenciada em muitas cantigas de escárnio e maldizer é o desconforto do homem em relação à incontrolada sexualidade da mulher, tradicionalmente associada ao orgástico frenesi destrutivo das bacantes.» (Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 35). Se as interpretações da poesia medieval galaico-portuguesa reconheciam nas sua canções uma idiossincrática poética, no sentido em que esta tendia a fugir às convenções da poesia pela sua irreverência, é, no entanto, necessário reabilitar esses autores que foram empurrados para as margens da poesia. Com Stephen Reckert, admirável estudioso da lírica medieval portuguesa, concorda Helder Macedo, descobrindo nessas canções que “a realidade do amor, mesmo nas formas mais cruas, pode ser altamente poética (e matéria de alta poesia) mas que nunca é apenas «literária»” (Idem, p. 39). Uma das relações mais interessantes nesta obra é aquela que é estabelecida entre a poesia de Sá de Miranda e a lírica camoniana, sabendo que Camões se inspirou na sua obra, bem como as influências mútuas de Bernardim Ribeiro (de origem hebraica) e Sá de Miranda: «Mas quanto de Bernardim Ribeiro não tem também Sá de Miranda, de Sá de Miranda não tem Bernardim, e de ambos não têm outros poetas que escreveram sob a sua aura.» (Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 51). O modo como Helder Macedo aborda a lírica camoniana reflecte bem a sua intimidade com a complexidade da sua obra, identificando as afinidades e os elos existentes com os autores que lhe eram contemporâneos e que são reconhecíveis pelo rasto que deixaram na sua lírica. Se muitas das leituras que incidem sobre a lírica de Camões insistem sobre a sua ligação a Petrarca e sobre as fontes clássicas e italianas, no entanto, Helder Macedo adverte o leitor para o não esquecimento da importância da tradição lírica portuguesa e medieval, no universo da poesia camoniana. Renuncia (e denuncia-a) a uma visão estereotipada daquele que foi um poeta maior da nossa língua e do Renascimento, mostrando-o como alguém que «viveu num mundo em transição» (Idem, p. 96). E, apesar das influências eruditas do seu tempo, Helder Macedo reconhece em Camões um «poeta moderno», ao colocar a experiência como «base do conhecimento» (Idem). 3

Integrado numa linhagem da tradição ocidental que inclui poetas como Virgílio, Ovídio, Dante e Petrarca, herdeiro de um neo-platonismo vigente nessa época e de um pensamento e linguagem clássicos, é sobretudo no modo como Camões opera subtis deslocamentos semânticos na linguagem da sua época que se revela a sua originalidade, apresentando metaforicamente uma nova visão do mundo que ainda não conhece uma linguagem que a nomeie. Daí a sua contemporaneidade, no sentido em que foi um poeta da inquietação e da dúvida, consciente dos limites do conhecimento e de que o seu tempo, o de abrir novos caminhos, estava mais próximo da ruptura do que da continuidade, da imanência do que da transcendência, nesse «tactear» que fez a grandeza dos homens do renascimento. Um mundo, também, que se revia mais na fragmentação da realidade e nos escombros do que havia sido uma ideia da totalidade preconizada pelo platonismo. Era, portanto, o poeta que reconhecia a contradição como matriz da própria realidade. E, se à tradição da crítica literária embaraça um Camões boémio, Helder Macedo procura dar a ver que esse Camões é o mesmo homem que escreveu a mais sublime epopeia. Esse é, precisamente, o lado mais fascinante, o que lhe confere, na óptica de Helder Macedo, a «espantosa modernidade da sua obra» (Idem, p.103) que advém do facto de «Camões só poder ser entendido como um desconfortável todo» (Idem). Alguns dos textos que integram o livro são conferências que, como podemos deduzir, retomam os autores estudados por Helder Macedo, mas há também outros que abordam a obra de vários autores portugueses, como Eça de Queiroz, Pessoa, Cesário Verde, Manuel Teixeira Gomes, Herberto Helder, Jorge de Sena, Mário Cesariny, José Saramago, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes, Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís e muitos outros. Um dos mais interessantes capítulos deste livro é, sem dúvida, o terceiro, intitulado “Testemunhos”. Helder Macedo evoca aqui o grupo do Café Gelo, do qual fez parte (e fala/escreve como se nunca tivesse deixado de fazer). As descrições vívidas, e escritas com muito humor; sobre os escritores e artistas que integravam o circuito do Café Gelo, numa época em que os cafés eram pólos culturais que aglutinavam a cultura em Portugal e que diferenciavam, entre si, as diversas tendências artísticas e literárias; constituem um notável fresco de uma época em que a arte, a poesia e a literatura assinalavam esse gesto político e 4

de dissidência, face a um panorama anquilosado pela censura e pela perseguição política, e em que a poesia (sobretudo) se reinventava engenhosamente pelas suas metáforas para poder dizer o que não podia ser dito. Creio que se deve a Helder Macedo, pelo seu testemunho extraordinário, a possibilidade de reconstituir o que foi essa atmosfera, na sua época, e a importância dos movimentos que por ali passaram e que se exilaram, para fugir à guerra e à miséria do país. Helder Macedo fala de Manuel de Castro, um poeta desaparecido precocemente (com 36 anos) e que nos deixou um livro notável, editado pela editora Língua Morta, Bonsoir, Madame, mas também refere outros poetas e artistas que pouco conhecemos hoje, como José Sebag, José Manuel Simões (do qual a Abysmo editou recentemente Sobras Completas), José Carlos Gonzalez, João Rodrigues, mas também autores que se tornaram míticos, como Herberto Helder ou Cesariny. Rimos diante da ida a Londres, em simultâneo, de Jorge de Sena e de Mário Cesariny, que não morriam de amores um pelo outro, comovemo-nos diante da «pureza» de José Manuel Simões, que morreu no exílio, em condições miseráveis. Diz dele Helder Macedo: «foi o mais puro de nós». (Macedo, Camões e outros contemporâneos, 2017, p. 243). Jovens (nem todos), boémios, talentosos, mas também (alguns deles) loucos e suicidas, os artistas e os poetas do Café Gelo exigem a nossa atenção, muito para além do vago culto que se lhes presta hoje e lhes confere uma aura (e uma visão caricatural) de maditos um tanto esvaziada da sua carga política. Mais uma vez retomo a expressão de Helder Macedo, quando refere a necessidade de analisar os contextos que originaram essas poéticas. Não é possível compreender-lhes a grandeza a não ser desse modo. No último ensaio deste livro, a sua virtude é também o seu risco, a atentar logo no seu título: “Oito séculos de Literatura”. O mote é lançado para um texto que se propõe, de modo tão ambicioso quanto a sua curta extensão (ainda que seja o texto maior). Porém, ainda assim, Helder Macedo cumpre o que promete. Só é possível exercer a síntese como arte suprema quando se domina o tema, os autores, o cruzamento entre eles. Uma visão histórica da literatura sem cair num historicismo redutor é provavelmente a maior qualidade deste texto, onde refere a predominância das mulheres no campo da ficção e há espaço, ainda, para falar de autores actuais, como os ficcionistas e poetas Paulo José Miranda, 5

António Cabrita e a poeta Joana Emídio Marques (autora do livro Ritornelos), cujo texto de apresentação do livro também Helder Macedo inclui nos «seus» contemporâneos. Se contemporâneo diz respeito àquele que, aninhado no passado, se revela no presente como intemporal ou, melhor dizendo, como atemporal, pouco importa que ele tenha vivido na Antiguidade Clássica como Homero ou Platão, no Império Romano como Ovídio ou Virgílio, na Idade Média e no Renascimento, como Dante, Petrarca ou Camões, no século XVII como Montaigne ou aainda mais próximos do nosso tempo. O ar que respiramos é o mesmo que eles respiraram, a linguagem que usamos é a mesma, ainda que as formas de dizer sejam diferentes. São profundamente modernos no sentido em que as suas vozes nos habitam, vivem connosco, ainda que mortos, perseguem-nos e nunca nos deixam esquecê-los, pela grandeza que neles mora. Sempre tão próximos, ainda que longe. E ainda assim tão longe, mesmo que perto, na sua «obscura presença».

Bibliografia Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? Em G. Agamben, O que é o Contemporâneo e outros Ensaios. Chapecó: Argos. Helder Macedo, F. G. (Campo das Letras). Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português. Porto: 1998. Helder Macedo, S. R. (1976). Do Cancioneiro de Amigo. Lisboa: Assírio & Alvim. Macedo, H. (1975). Nós, Uma Leitura de Cesário Verde. Lisboa: Plátano. Macedo, H. (1977). Do Significado Oculto de "Menina e Moça". Lisboa: Moraes. Macedo, H. (1980). Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Moraes. Macedo, H. (2017). Camões e outros contemporâneos. Lisboa: Presença.

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