Henrique Moreira: O Escultor Público ou o Ofício como Cânone. Anos 20.

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Henrique Moreira. O Escultor Público, ou o ofício como cânone, por José Guilherme Abreu 3. Os Anos 20 e os primeiros monumentos Foi no início da década de vinte, embora não se conheça a data exacta, que Henrique Moreira criou o seu primeiro monumento público, o qual não passou da fase de estudo. Destinando-se a homenagear o Dr. António Granjo, funestamente assassinado durante os dramáticos acontecimentos da madrugada de 19 de Outubro de 1921, encontra-se no espólio documental do escultor uma fotografia que reproduz a maqueta de um memorial erguido ao malogrado Presidente do Ministério, barbaramente fuzilado na sequência de uma tentativa revolucionária, de resto, frustrada, que ficaria registada para a História com a sinistra designação de “Noite Sangrenta”. Trata-se de um memorial (fig. 20), concebido à maneira de um monumento funerário e com cabeceira rudemente talhada sobre uma eminência de pedra que afunilando-se no topo, se organizando de maneira a formar o busto de uma figura feminina: uma Pátria pesarosamente curvada sobre a efígie do homenageado, esculpida em baixo-relevo sobre um medalhão em bronze, que é respeitosa e gravemente coroada com um ramo de flores, dispostas em arco. Evidenciando vincada gravidade expressiva e apurado sentido estético, do ponto de vista formal este monumento denota um hábil cruzamento de influências, onde a presença de Teixeira e Lopes se insinua na modelação tipicamente fin-de-siècle da figura feminina, que contrasta com o mais livre e expressivo tratamento da eminência pétrea, que de novo lembra o cinzel de Teixeira Lopes no tratamento do soco do monumento Flora (fig. 21), dedicado a José Marques Loureiro, implantado no Jardim da Cordoaria, em 1904, no Porto, embora transcendendo o puro naturalismo do seu mestre, ao parecer atribuir aos valores plásticos das texturas graníticas um subtil recorte metafórico, que alude à crueza do assassinato politico e, ao mesmo tempo, ao que é mais sólido e duradouro sobre a Terra, como se sugerisse a perenidade de uma memória que, apesar de dolorosa, o tempo não logrará apagar. Não encontrámos outra informação sobre este primeiro trabalho de feição monumental de Henrique Moreira, pelo que para lá da análise formal e estética da obra, torna-se ingrato avançar algo mais. Unicamente podemos afirmar que o monumento não chegou a ser erguido nem em Lisboa, nem mesmo em Chaves, donde António Granjo era natural, e para onde os seus restos mortais seguiram, logo em 1922, sendo o corpo sepultado no Cemitério Municipal de Chaves, aonde repousa em campa rasa (fig. 22). Eventualmente, poderá ter sido enunciada a intenção de monumentalizar o seu túmulo, em Lisboa. Mas a decisão de sepultar o corpo na sua terra Natal, terá decerto inviabilizado a sua construção, e nem mesmo é possível saber se Henrique Moreira alguma vez chegou a receber uma encomenda formal. Outra obra que não passaria à fase de execução foi o Monumento Comemorativo da Travessia Aérea do Atlântico, que se destinava a ser implantado na Praça de João Gonçalves Zarco, ao Castelo do Queijo, no Porto, e cuja maqueta (fig. 23) esteve em exposição no átrio do Teatro de S. João e no Salão Nobre do Ateneu Comercial do Porto. Datado de 1922, trata-se de um projecto relevante, e por isso importa transcrever o texto da Memória Descritiva, que vem assinado, por esta ordem, pelos seus autores: o escultor Henrique Moreira e o arquitecto João Queiroz. O projecto é uma síntese de toda a gloria de Portugal, iniciada nas lutas que no solo pátrio criam e consolidam a nacionalidade, que depois a levam n’um sonho de expansão atravez dos mares, e finalmente a coroam na epopeia das nuvens, perto das estrelas. Em volta da terra-mater quedam-se oito figuras que simbolisam as oito províncias históricas, que constituem a metrópole.

Cada uma d’essas figuras tem a atitude contemplativa do feito glorioso que se comemora. Do seio da metrópole, criada, pelo heroismo da raça, a onda marinha ergue-se alterosa e forte como se erguera diante das fustas e barineis de Portugal, e das suas agua tenebrosas e salsas se forma e sae a figura do Adamastor. Das mãos do Gigante, que lhe procura a morte, escapa-se e foge a caravela das Descobertas superior á fúria, á tormenta e igual á gloria. Vencido pelo esforço dos portugueses, o infortunado semi-deus acurva-se sob a onda marinha, mas a onda do heroismo lusitano que passa criando o mundo moderno. Erguendo-se acima d’esse mundo que criara, a mesma vaga sobe nos ares e faz-se luz e faz-se nuvem e transforma-se na águia heroica do triunfo. O pensamento geral do monumento é assim uno e íntegro: é a vaga simbolisante do esforço da Raça, que tendo sido a alma da terra e o sonho dos mares, é finalmente a apoteose das nuvens. A sua construção seria em granito, mármore e bronze destinada á grande rotunda da Avenida Brazil ao Castelo do Queijo. Junho de 1922 Henrique Moreira, escultor João Queiroz, arquitecto

O facto de o projecto ter autoria conjunta de um escultor e de um arquitecto, e mais ainda, a presença de uma memória descritiva, faz supor inserir-se o mesmo num concurso aberto para a erecção de um monumento. Contudo, em nenhum lugar aparece a notícia de ter sido aberto qualquer concurso em Junho de 1922, isto é, no mesmo mês em que Gago Coutinho e Sacadura Cabral completavam o raid aéreo entre Lisboa e o Rio de Janeiro, sucedendo que somente na edição de 5 de Julho, o Diário de Lisboa refere pela primeira vez a intenção se erguer um monumento à Travessia Aérea do Atlântico Sul, excluindo-se assim dever-se este projecto à iniciativa de um concurso de âmbito nacional. Sempre atento a estes factos, José-Augusto França não faz alusão a qualquer concurso nem mesmo a qualquer subscrição pública, referindo apenas que a intenção anteriormente manifestada, “não teria seguimento”.1 Também Joaquim Saial elencando os monumentos erguidos em Portugal aos heróicos Aviadores, não faz referência ao projecto de Henrique Moreira e João Queiroz, afirmando que “o primeiro monumento comemorativo da viagem transatlântica de Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922) de que temos conhecimento, é o de Cascais, lançado logo em 1923 e erigido em Abril de 1927, simples construção em pedra, hoje coberta pela hera, sobre o qual uma águia, de asas abertas, olha a baía”2, monumento de pequena dimensão que representa um versão miniaturizada e simplificada do de Henrique Moreira e de João Queiroz. (fig. 24) Resta a possibilidade de o mesmo dever-se a um concurso local, não sendo de excluir a hipótese de se tratar de uma iniciativa independente dos autores, hipótese que nos parece, no fim, a mais provável, em virtude de este ser um projecto único que esteve em exposição, no Porto, em dois lugares diferentes: o Teatro de S. João e o Ateneu Comercial, o que denota o objectivo de emprestar visibilidade pública aos seus autores. Importa salientar que Gago Coutinho esteve presente na inauguração do Café Majestic3, inicialmente designado Café Elite, em 17 de Dezembro de 1921, no Porto, café esse cujo projecto de arquitectura é da autoria de João Queiroz, co-autor do monumento, sendo verosímil que uma aproximação entre o heróico aviador e o arquitecto se tenha estabelecido nessa ocasião, e que no ano seguinte essa aproximação tenha dado origem ao projecto 1

FRANÇA, José-Augusto, Os Anos Vinte em Portugal, Presença, 1992, Lisboa, p. 65

2 SAIAL, Joaquim, Estatuária Portuguesa dos Anos 30 (1926-1940), Bertrand, 1991, Lisboa, pp. 105-106. Na verdade, porém, o monumento mais antigo situa-se em, Lisboa, junto à Doca do Bom Sucesso, e foi colocado em 1922, assinalando o 1º aniversário da Travessia Aérea, no local donde partiram os aviadores. 3 MENDES, Nuno Fernando Ferreira, Cafés Históricos do Porto. Na demanda de um património ignoto, Dissertação de Mestrado, FLUP, 2012, Porto, pp. 208-209

conjunto de João Queiroz e de Henrique Moreira, este provavelmente autor da ornamentação escultórica (fig. 25), por similitude com outras obras de carácter decorativo, como as cariátides do Teatro de S. João, embora não seja possível comprová-lo. A corroborar esta atribuição, importa referir a águia de bronze que aparece a encimar a máquina de café, cuja iconografia remete para a travessia do Atlântico-Sul. (fig. 26) Analisando a proposta, importa salientar a forte mensagem narrativa e patriótica do projecto, que encontra adequada ressonância plástica no desenho sóbrio do pedestal, acentuado pela solene religiosidade das poses e das atitudes das figuras que simbolizam as províncias de Portugal curvadas perante o glorioso feito, em notório contraste com o vigoroso, expressivo e quase informe modelado da parte superior, onde se agiganta a figura do Adamastor, erguido entre uma caravela e a esfera armilar, que carrega sobre o dorso, acima da qual irrompe, dominadora, a águia que parte à conquista dos céus, elevando-se nos ares e coroando a glória dos descobridores quatrocentistas, numa retórica apologética de clara feição republicana. Apesar de não ter sido construído, este projecto interpretava de forma particularmente bem conseguida e eficaz, aquele que viria a ser o modelo usado para a monumentalização da proeza dos aviadores portugueses, cuja celebração conheceria esporádica difusão pública nos anos vinte, sendo o primeiro aquele que viria a ser erguido no local por iniciativa da Armada e do Club Militar Naval, em Lisboa, junto à Doca do Bom Sucesso, em 1922. A título de mera curiosidade, assinalamos que uma versão algo informalista do monumento de Henrique Moreira e João Queiroz, de maior dimensão que o monumento de Cascais e cujas massas e volumes apresentam um muito maior dinamismo, viria a ser implantada em Cabo Verde, Ilha de S. Vicente, na cidade do Mindelo, em 1922. (fig. 27). No referido monumento, existe uma placa que exibe a data de 5 de Março de 1922 (fig. 28), data algo insólita, já que o início da travessia ocorreu em 30 de Março de 1922, tendo a viagem, em virtude das suas peripécias sido concluída unicamente em 17 de Junho do mesmo ano. Pode no entanto verificar-se por um postal de 1965, que nesta data se encontrava implantado o “monumento da águia”, no Mindelo, Cabo Verde. (fig. 29). Recapitulando, verifica-se que as primeiras incursões de Henrique Moreira pela escala monumental não foram coroadas de êxito, e perante estes malogros, o escultor decidiu ingressar no mundo empresarial, associando-se à Industrial Marmorista, cuja oficina laborava (e continua a fazê-lo) junto ao Cemitério de Agramonte, onde o vemos activo em Março de 1926, de acordo com uma notícia do Comércio do Porto: Esta casa fundada em 1918, sob competentíssima direcção do Snr. Domingues Fernandes e com a preciosa coadjuvação do conceituado artista, o esculptor Henrique Moreira, tem conseguido um logar de incontestável superioridade entre as demais, o que esta suficientemente demonstrado pela preferência que lhe vem sendo dispensada. Actualmente trabalha-se alli afanosamente no Monumento a António Nobre, encantador monumento onde a lyra privilegiada do poeta sob uma grinalda de rosas e cravos – as suas flores predilectas.4

Como refere Joaquim Costa Gomes, a partir da sua associação à Industrial Marmorista “a vida passou a sorrir-lhe, graças à sábia gerência do seu sócio. Infelizmente, este veio a falecer e, apesar dos seus filhos pedirem a Henrique Moreira para continuar, ele preferiu renunciar com receio de vir a ter prejuízo nos orçamentos que teria de apresentar”5

4

A Indústria de Marmores, In, Commercio do Porto, 30 de Março de 1926, p. 2.

5

GOMES, Joaquim Costa, Três Escultores de Valia…, p. 54

Ano de viragem seria, no entanto, o ano de 1924, em virtude de nessa data Henrique Moreira ter beneficiado do apoio de Bento Carqueja que para além de director do jornal O Comércio do Porto e de professor catedrático de Economia Política na Universidade do Porto, era uma figura muito prestigiada, pela sua influência, pela sua cultura e pelo respeito que granjeava à sua volta, em virtude da acção humanitária com que à frente do Comércio do Porto contribuiu para resolver alguns dos problemas sociais mais prementes da cidade, nomeadamente com a construção de bairros sociais e creches para os mais desfavorecidos. E como é que Bento Carqueja apoiou Henrique Moreira? Uma vez mais, por intermédio de uma campanha lançada pelo Comércio do Porto que colocava sob a coordenação do jornal a comemoração do centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, desta forma desbloqueando o impasse em que havia caído a comemoração anteriormente lançada pelo jornal O Primeiro de Janeiro, a Câmara Municipal do Porto e a Renascença Portuguesa. Por meio de uma hábil manobra, Bento Carqueja alargava o centro da celebração do Porto para Famalicão, multiplicando assim o impacte da mobilização cívica e da respectiva subscrição pública organizada pelo jornal. De acordo com o programa6, constituíam momentos altos da comemoração a inauguração de dois bustos do escritor, o primeiro em Famalicão (fig. 30), e o segundo, no Porto (fig. 31), sendo ambas as obras encomendadas, pelo jornal O Comércio do Porto, a Henrique Moreira. Apesar de ter estudado com alguma minúcia este processo, não cabe aqui descrevê-lo. Se houver curiosidade em conhecer esses meandros, pode a história ser reconstituída a partir da minha tese de mestrado7, sendo que uma versão reduzida da mesma foi publicada nos números 27, 28, 29 e 30, deste mesmo boletim. Como resultado desta dupla comemoração, ao longo de vários meses, o nome de Henrique Moreira apareceu citado quase diariamente na imprensa, à medida que se aproximavam os dias da dupla inauguração, significando que, para o público do Porto, Henrique Moreira deixou de ser um ilustre desconhecido, para se tornar alguém cujo nome começava a ser tão familiar, como o de Teixeira Lopes. O busto de Camilo, ou melhor, os bustos, visto não serem iguais, apesar da sua singeleza, constituem dois enunciados académicos, é verdade, mas de um academismo diferente do estrito naturalismo de Teixeira Lopes, como o demonstra a interpretação que este último fez de Camilo, para cujo centenário viria a modelar um gesso, intitulado Lux (fig. 32), cujas imagem enviou para os jornais e revistas, também nos começos de 1925, com a informação de que se destinava a ser reproduzido em pequena escala, para que aquele grupo escultórico pudesse ser adquirido pelos “apreciadores da verdadeira arte.”8 6

O Programa da comemoração era noticiado como se segue: “Deposição de uma placa de bronze no tumulo de Camillo, no cemiterio da Lapa / Cortejo civico de homenagem a Camillo partindo da Praça do Infante D. Henrique / Coroação do busto de Camillo em uma das praças da cidade / Esta solemnisação liga-se com a que se realizará, no mesmo dia, em Vila Nova de Famalicão, para a inauguração do monumento á memória de Camillo, alli construído por iniciativa de O Commércio do Porto, com a cooperação da Camara d'aquelle Concelho. A inauguração será, como já dissemos, uma bella festa local. Haverá um cortejo cívico em que tomará parte, além das pessoas que forem do Porto, auctoridades, agremiações, professores e creanças das escolas do concelho, lavradores, etc. Tanto no Porto como em Famalicão, será executada pelas bandas de música e pelas creanças das escolas a bella cantata “Honra a Camillo” do nosso querido collega de redação Mateos Angra. O illustre Comandante de divisão snr. Coronel Souza Dias, recolheu com o maior applauso a iniciativa de O Commercio do Porto, respeitante á celebração do centenário a Camillo” In, O Commercio do Porto, 11 de Janeiro de 1925, p. 1 7

ABREU, José Guilherme, A Escultura no Espaço Público do Porto. Classificação e Interpretação, Universidade Católica Editora, 2012, Porto.

8

O centenário de Camillo, In, O Commercio do Porto, 4/3/1925, p.1

Compõe-se o monumento do Porto (fig. 33) de um busto em bronze de patine esverdeada assente sobre elevado plinto de mármore branco formado por dois pilares que se encaixam formando uma cruz. O frontal, saliente e mais alto, sustenta o busto cuja configuração em “V” lhe confere leveza e dinamismo, enquanto sobre o transversal repousa uma coroa de louros que posteriormente envolve a base do busto, compensando as diferenças de altura. O retrato, de contornos pouco vincados, representa o escritor envergando uma capa lançada vigorosamente para trás sobre o ombro esquerdo, em contraponto com a gola que estaticamente repousa sobre o ombro direito, formando assim uma composição assimétrica, responsável por uma certa tensão na representação. Junto à base, um friso em baixo relevo de ornatos fitomórficos, circunda o plinto. Na frente, abaixo do busto, também em baixo relevo, uma inscrição de caracteres estilizados, em lettering art déco9, consagra-lhe a memória. O busto de Famalicão (fig. 34), presentemente instalado no parque de S. Miguel de Seide, junto à Casa de Camilo, reproduz de um modo geral o mesmo esquema, muito embora aqui tudo seja bastante mais convencional e antiquado, a começar pelo próprio retrato que reproduz uma imagem algo agastada do escritor, representado de rosto magro e olhos e escavados, dominado pelos fartos bigodes nietzschianos, que enchem um rosto pensativo e cansado que encima um tronco cortado a direito pelos ombros, e que se alarga na parte inferior conferindo imobilidade e peso ao busto, ficando aqui depreciada a figura do aventureiro e apaixonado escritor cuja novelística teve o mérito de retratar “com flagrante realismo tipos populares burgueses, restos de desagregação dos morgadios de Entre Douro e Minho”10, pondo em evidência as contradições da sociedade do seu tempo, bem como as suas: por um lado, as de um libertino e franco-maçom e, por outro, episodicamente, as de um seminarista e absolutista. Camilo, importa aqui referi-lo, seria o primeiro escritor, em Portugal, a viver da sua pena, e por isso, a esse título, representava o alter-ego literário de Henrique Moreira, que foi um dos poucos escultores que viveu, exclusivamente, do produto do seu cinzel, constituindo este encontro de Moreira com Camilo não só um momento de viragem da carreira artística do escultor, mas mais do que isso um encontro com uma figura que se tornaria para Henrique Moreira uma inspiração assaz duradoura, como o demonstra aquela que será talvez uma das melhores, senão a melhor, obra de Henrique Moreira: a estátua sentada de Camilo, onde se descobre uma plasticidade quase rodiniana, rara e excepcional na sua produção. (fig. 35) Com a erecção do monumento-busto a Camilo, inicia-se assim a primeira fase da afirmação de Henrique Moreira como estatuário, sendo que ao longo desta fase, que decorreu durante os Anos 20, a sua carreira de escultor público não deixou de se reforçar, encontrando-se logo a seguir o seu nome associado ao Monumento a António Nobre, inaugurado em 1927, cuja parte arquitectónica tinha o risco do arquitecto Correia da Silva, viria a ser construída na Industrial Marmorista, de que já falámos, enquanto a parte escultórica resultava da ampliação da cabeça do Poeta, da autoria de Tomás Costa, que se encontrava na posse da família, tendo Henrique Moreira modelado a lira e as grinaldas de flores, fundidas em bronze. (fig. 36) Erguido no mesmo ano de 1927, foi o monumento ao Conselheiro José Guilherme, que figura no Jardim homónimo, em Paredes: uma estátua pedestre em bronze assente sobre um plinto de acentuada elevação (fig. 37), o mesmo remete-nos para o modelo oitocentista da estatuária comemorativa. No ano seguinte, seria a vez de Henrique Moreira cinzelar as oito estátuas de granito que encimam os pilares do edifício-sede do jornal O Comércio do Porto, actual Banco Internacional 9

Fonte usada: Mostra Regular.

10

SARAIVA, António José e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 15ª Edição, Lisboa, 1989, p. 849

do Funchal, “representando as oito províncias de Portugal: Minho, Douro, Trás-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa, Estremadura, Alentejo e Algarve, com os brasões das respectivas capitais”11. (fig. 38) Cinzeladas com apurado sentido estético e plástico art-déco, as estátuas do Comércio do Porto, integram-se harmoniosamente na inspirada arquitectura de Rogério de Azevedo, emprestando uma nota de modernidade que o traçado culturalista da mesma não favorecia. Não era obviamente a consagração da sua carreira, mas doravante o nome de Henrique Moreira surgirá associado à escultura urbana, e progressivamente vai assumindo a natureza de artista da cidade, desempenhando com escrupulosa sobriedade, o papel que Teixeira Lopes nunca logrou alcançar: o de suceder a Soares dos Reis como estatuário do Porto, coisa que efectivamente nunca foi, apesar de não ter sido outro o seu desejo. 4. Os Primeiros Concursos Públicos A condição de estatuário do Porto, Henrique Moreira garanti-la-á, a seguir, com duas inspiradas peças: o Monumento aos Mortos da Grande Guerra e a Menina Nua. Começando pelo Monumento aos Mortos da Grande Guerra, tal como com o Monumento a Camilo Castelo Branco, também aqui a intervenção de Henrique Moreira teve a capacidade de resolver um impasse, já que logo em 1924 tinha sido inaugurado na Praça de Carlos Alberto um primeiro monumento, erguido por iniciativa da Junta Patriótica do Norte, o qual tomava a configuração de um pequeno padrão cujo risco, da autoria do arquitecto Francisco de Oliveira Ferreira, configurava uma singela e coluna de feição ecléctica sobrepujada por um padrão com as armas de Portugal, encimado por uma Cruz de Cristo (fig. 39). Tendo sido adoptado como modelo para os monumentos concelhios aos Mortos da Guerra, o padrão do Porto viria a receber um inesperado adereço escultórico da autoria do escultor José de Oliveira Ferreira, por sinal irmão do arquitecto que desenhara o padrão. Interessantíssimo caso de estudo, para o conhecimento da história da construção e demolição deste monumento deve consultar-se o resumo da minha tese de mestrado publicado no nº 28 desta revista, sendo que para uma mais cabal compreensão do caso, pode ainda consultarse a edição integral do texto original.12 O aspecto mais relevante deste caso tem que ver com a inadequação da estética do monumento relativamente à solenidade do tema que se pretendia homenagear: os militares portugueses mortos durante a Grande Guerra (fig. 40). É que, perante o realismo dos horrores da Guerra, a utilização de um simbolismo alegórico tornava-se absurdo e obsoleto, sendo o monumento inicial, inaugurado pelo presidente da República em 11 de Novembro de 1924, impiedosamente rejeitado pela imprensa e pela população do Porto, terminando a Câmara Municipal do Porto, a quem a Junta Patriótica do Norte entregara o monumento, por dar ordem de demolição do mesmo, e posteriormente resolveu abrir um concurso para que um júri seleccionasse o modelo do novo monumento a erigir. Coube a Henrique Moreira resolver o problema, já que das duas maquetas apresentadas, figurava o nome do jovem escultor, sendo de sua autoria a maqueta vencedora, com a sigla “Sentinella” (fig. 41), e em segundo lugar ficou a maqueta “Chi-lo-sa” (fig. 42), cuja autoria era também, de Henrique Moreira, em parceria com o arquitecto Correia da Silva, com o qual já havia trabalhado na Industrial Marmorista, na construção do Monumento a António Nobre, a que já nos referimos.

11

ABREU, José Guilherme, A Escultura no Espaço Público do Porto…, p. 205.

12

ABREU, José Guilherme, A Escultura no Espaço Público do Porto…, 2012, pp. 175-187.

Moderno pela simplicidade formal e pela rigorosa fidelidade da figura humana, do traje e do equipamento militar relativamente à realidade, o Monumento aos Mortos da Grande Guerra do Porto, inaugurado em 9 de Abril de 1928, foi manifestamente do agrado geral, designadamente dos militares, que pela altura da inauguração se encontravam na administração da Câmara Municipal, no âmbito da chamada Ditadura Militar. Harmoniosamente implantado na Praça de Carlos Alberto (fig. 43), cuja espacialidade se adequava às cerimónias de homenagem aos mortos, inicialmente realizadas bianualmente em 9 de Abril, data da funesta Batalha de La Lys, e em 11 de Novembro, data da assinatura do Armistício, o Monumento aos Mortos da Grande Guerra do Porto, constituía-se como um verdadeiro cânone estatuário para um grande número de monumentos erigidos no País, nos quais é homenageado o “Soldado Desconhecido”, versão portuguesa de um culto que começou por se celebrar na Inglaterra e na França, e que viria a ser introduzido em Portugal pelo poeta-capitão Augusto Casimiro que lançara, logo em 1919, a ideia de se erguerem em todos os Concelhos do País monumentos de homenagem aos mortos da Grande Guerra. Igualmente feliz, foi a implantação de duas esculturas decorativas na placa central da Avenida das Nações Aliadas, implantação essa que de novo viria ser decidida por concurso, com Henrique Moreira a arrebatar sem dificuldade o primeiro prémio, nos dois casos. O primeiro elemento decorativo a ser implantado foi a elegante e charmosa “Menina Nua”, oficialmente designada “Juventude”, representando um sorridente nu feminino esculpido em mármore (fig. 44), a encimar uma fonte de calcário de apurado e requintado recorte art-déco, primorosamente desenhada pelo arquitecto Manoel Marques (fig. 45). Inaugurada em 1929, a Menina Nua viria constituir uma das mais notáveis esculturas decorativas da cidade, emprestando uma nota de beleza e de graça à Avenida do Aliados, onde ainda hoje se destaca como o enunciado mais conseguido da modernidade novecentista, acertando-se de resto com as tendências europeias, importando referir que existe em Barcelona uma estátua homónima (Joventut), cinzelada no ano de 1928 pelo escultor catalão Josep Clarà, e inaugurada em 1929, na Plaza de la Catalunya, frente ao Passeig de Gracia, em implantação algo equivalente. (fig. 46) Em virtude do primeiro concurso para o segundo motivo escultórico a implantar na placa central da Avenida das Nações Aliadas ter sido anulado, a nova escultura foi inaugurada apenas em 1931, depois de Henrique Moreira ter vencido o segundo concurso com a maquete (fig. 47) “Abundância”: um grupo escultórico de bronze dourado representando três meninos nus a segurar uma taça a transbordar de frutos (fig. 48). Beleza e prosperidade representavam pois a imagem com que Henrique Moreira decorava a sala de visitas da cidade, imagem consensual, portanto, e convincente. Mas antes de se fechar a década de vinte, Henrique Moreira viria a conhecer a sua primeira consagração internacional, ao receber a medalha de ouro da Exposição Ibero-Americana de Sevilha, em 1929, com execução de quatro relevos decorativos em terracota para o salão de festas do Pavilhão Português (fig. 49), representando os trajes e danças folclóricas de quatro Províncias portuguesas: Minho, Douro Litoral, Ribatejo e Alentejo regiões do País (fig. 50), (fig. 51), (fig. 52), (fig. 53). A década seguinte seria, portanto, a década da afirmação de Henrique Moreira como o mais importante estatuário do Porto, e um dos mais sólidos, versáteis e competentes escultores novecentistas em Portugal, assumindo-se eminentemente como um prolixo e activo artista de continuidade. Para essa afirmação e presença muito contribuiu aquele que foi o grande passo que Henrique Moreira viria a dar logo no início da década de trinta: a instalação do seu atelier no edifício

que antes havia alojado a máquina a vapor que fazia movimentar o elevador dos Guindais (fig. 54), inaugurado em 1891, e encerrado em 1893, devido a um grave acidente. A ocupação do atelier dos Guindais aparece pela primeira vez documentada num pedido de licença de obras, existente no Arquivo Histórico Municipal do Porto, datado de 23 de Fevereiro de 1933 (fig. 55), que visava adaptar o edifício à função de atelier de escultura, de acordo com o projecto que acompanha o pedido de licença de obras, assinado pelo prestigiado arquitecto Januário Godinho. (fig. 56) Datada de 4 de Outubro de 1934, uma carta destinada a aceitar a encomenda de um “retábulo” (sic) de bronze para o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular de Arrifana, é já enviada a partir da morada atelier dos Guindais, o que prova que o mesmo por essa altura já se encontrava em uso. O estabelecimento de Henrique Moreira no atelier dos Guindais representou um salto marcante na sua carreira artística, não sendo indiferente a sua localização no centro histórico do Porto, na medida em que permitia ao escultor não só autonomizar-se definitivamente da figura tutelar de Teixeira Lopes, como inclusivamente substituir-se a ele como destinatário natural das encomendas de obras de estatuária promovidas pela Câmara do Porto, as quais pretendiam conferir um novo fácies menos retórico e historicista – numa palavra menos beauxartiano – à estética urbana, tornando-a, por assim dizer mais demótica, como convinha à actualização da imagem do Porto como cidade industriosa, económica e financeiramente pujante, no problemático período que se seguiu à Grande Guerra. Por um lado, se a instalação de Henrique Moreira no atelier dos Guindais constitui um sinal de que o mesmo é aceite e reconhecido como um competente e profícuo estatuário, capaz de apresentar soluções adequadas e despretensiosas, bem adaptadas ao período de penúria orçamental que se seguiu ao final da Grande Guerra, por outro, o facto de Henrique Moreira ali se ter instalado, iria permitir-lhe arrebatar a maior parte das encomendas e concursos de estatuária de carácter regional e cívico, designadamente ao nível dos monumentos aos mortos da Grande Guerra que se foram erguendo de Norte a Sul no País. Se a década de trinta virá a constituir o período mais marcante da produção escultórica de Henrique Moreira, foi no entanto na década de vinte que o escultor do Porto produziu as suas obras mais conseguidas e apuradas, assumindo-se como um dos escultores novecentistas portugueses mais notáveis, a par de António de Azevedo e de João da Silva. Permanecendo fiel à estética naturalista, e não questionando os métodos ou a prática do academismo, note-se por outro lado que Henrique Moreira não foi um adepto das grandiloquências heróicas nem da escala monumental da estatuária do Estado Novo, mesmo se é verdade que não a rejeitou, sempre que uma ou outra encomenda, esporadicamente, sobrava para ele. Continua no próximo número

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