Henrique Moreira: O Escultor Público ou o Ofício como Cânone. Primeiros tempos

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Henrique Moreira. O Escultor Público, ou o ofício como cânone, por José Guilherme Abreu O escultor combinando sábias leis A seu gosto, ajeitou a forma surda E concertando a mestria dos cinzéis Ensinou a falar a pedra muda. A Henrique Moreira, A. de Azevedo

1. Introdução Henrique Moreira (fig. 1) tem sido um autor pouco estimado pela História e pela Crítica da Arte. Activo durante cinco décadas e detentor de uma vasta produção pública que se encontra disseminada pelo País, e que inclusive haveria de se estender às ex-Colónias, o estudo monográfico mais credenciado que lhe foi consagrado é a entrada que possui no Dicionário de Escultura Portuguesa, onde, avaliando a sua obra, José Maria da Silva Lopes1 considera que a mesma “manteve-se sempre fiel a uma esfera figurativa de laivos naturalistas onde um certo academismo, que nunca o abandonou, não lhe permitiu maiores voos.”2 Uma observação mais atenta mostra que esta análise falha por simplismo. É que, a obra escultórica de Henrique Moreira sem enveredar obviamente pelas dissonâncias estéticas da modernidade, diferencia-se com clareza do cânone estatuário estadonovista inaugurado pela estátua de João Gonçalves Zarco, de Francisco Franco, de 1928, apresentando-se bastante menos linear e monolítica que as dos seguidores desse mesmo cânone, como, por exemplo, Leopoldo de Almeida ou Álvaro de Brée, cujas produções se circunscreveram à prática de uma estatuária comemorativa que iconografava a retórica oficial de Engrandecimento Pátrio, e ofuscava, quando não fazia eclipsar, as restantes produções, absorvendo, por um lado, a maior e a mais importante parcela das encomendas do Ministério das Obras Públicas de Duarte Pacheco3 e, por outro, repartindo, ente si, a maior parte dos prémios de escultura obtidos nas Exposições de Arte Moderna do Secretariado da Propaganda Nacional, promovidas por António Ferro. Escultura naturalista e académica a de Henrique Moreira? Sim, mas, convém acrescentar, sem cânone. Escultura académica, essencialmente, porque produzida a partir de um método de trabalho artístico específico: aquele que era ministrado na Academia Portuense de Belas Artes, e que por ele foi adoptado, independentemente de paradigmas clássicos ou de pressupostos naturalistas que de forma criteriosa, sistematicamente, o autor perseguisse ou perfilhasse. Pelo exposto, consideramos que a obra de Henrique Moreira merece que a História da Arte lhe consagre um olhar renovado, que logre pôr em evidência os aspectos que a particularizam relativamente aos modelos estatuários e paradigmas monumentais do seu tempo, reconhecendo-lhe o estatuto de caso de estudo pertinente para a construção de uma História Portuguesa da Arte.

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Assistente na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto

2 LOPES, José Maria da Silva, Henrique Moreira, In, PEREIRA, José Fernandes (Dir), Dicionário da Escultura Portuguesa, Editorial Caminho, 2005, Lisboa, p. 412 3 Na Exposição 15 Anos de Obras Públicas, que se realizou no Instituto Superior Técnico, em 1948, apenas se exibiam as produções dos estatuários: Francisco Franco, Leopoldo de Almeida, Barata Feyo, Álvaro de Brée e Canto da Maia. De resto, Diogo de Macedo no texto que escreveu para o Livro de Ouro daquela exposição, fazendo o balanço da implantação de estatuária nas Obras Públicas, até à data, acrescenta aos nomes já citados, unicamente, o seu e os de Martins Correia, João Fragoso, António Duarte e Raul Xavier, pertencentes a uma nova geração de estatuários que então se iniciava, circunscrevendo-se os beauxartianos Costa Mota (sobrinho), Simões de Almeida (sobrinho) e Maximiano Alves, a intervenções pontuais, nas obras do Palácio de S. Bento, iniciadas ainda durante a Monarquia.

Caso de estudo pertinente, primeiro, porque se a obra de Henrique Moreira se diferencia da produção estatuária estadonovista, mais claramente ainda se distingue a mesma da produção oitocentista, na medida em que se define, desde logo, à margem do repertório erudito das alegorias e da retórica pseudo-verista que equivocamente se sobrepunham e se digladiavam na estatuária fin-de-siècle, em simulacros de grandiloquência que, no fim, ironicamente, a desqualificavam, situação da qual nunca haveria de se livrar Teixeira Lopes, tendo sido esse um dos factores que mais decisivamente o impediriam de atingir, como tanto almejava, a excelência estética e o valor artístico da obra de Soares dos Reis. Caso de estudo pertinente, depois, também, porque a obra de Henrique Moreira apresenta um carácter, simultaneamente, diversificado e coerente que respondia a um leque muito alargado de encomendas, que se estendiam da encomenda de pequeno formato de iniciativa particular ou independente de bustos e baixos-relevos, até à participação em concursos de obras de porte monumental, nomeadamente as que resultavam de concursos organizados, a nível nacional, pela Comissão dos Padrões da Grande Guerra, destacando-se aqui o concurso para o Padrão de Luanda, em que Henrique Moreira arrebatou o 1º prémio, da mesma forma como participou, também, em exposições e concursos internacionais, como o que foi organizado para comemorar o V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, em Sagres, sem esquecer o vasto e maioritário registo de encomendas locais e regionais que lhe foram acometidas pelas Edilidades Municipais, principalmente a do Porto, desde logo na decoração da Avenida dos Aliados, bem como a Igreja Católica, na decoração de fachadas e interiores de Igrejas, e ainda agremiações e entidades socioculturais independentes, como por exemplo o Rivoli, e vários cafés e cinemas. Estudo de caso pertinente, ainda, porque àquela diversidade de solicitações não deixou de corresponder também uma assinalável diversidade de expressões plásticas, expressões essas que se estendem das temáticas realistas de caráter social – cujo registo direto e neutro lograva substituir, com vantagem, quer o repertório cansado e obsoleto das alegorias, quer a retórica moralizadora da estatuária fin-de-siècle – até às criações estritamente ornamentais de pendor art-déco, passando pelos apontamentos pitorescos e vernáculos de um folclorismo regional e até colonial. Caso de estudo pertinente, enfim, porque a atividade de Henrique Moreira foi sempre e apenas a de um artista/artífice independente, que logrou manter-se durante todo o tempo autónomo e equidistante das diversas entidades e poderes que integravam o universo da sua clientela, revelando o escultor, neste particular, pautar-se por uma rara e conscienciosa conduta ética, que lhe permitiu granjear o respeito, quando não a admiração dos seus conterrâneos e pares, aparecendo, inclusive, o seu atelier como um lugar de encontro e de convívio, por sinal, assaz frequentado e apreciado, que funcionava, no fim, como um espaço de livre expressão de cidadania em plena ditadura, circunstância que deve ser assinalada e reconhecida, já que esse não é um dos pressupostos conceptuais menores que devem centrar o trabalho de todo o artista e criador que pretenda tomar como escopo da sua atividade a investigação e o desenvolvimento daquilo que constitui, afinal, a identidade diferenciadora da Arte Pública, desta forma fazendo, inesperadamente, aparecer o trabalho de atelier, em Henrique Moreira, não como o de uma atividade realizada no fechamento e no refúgio de uma criação puramente individual, mas contrariamente como uma verdadeira co-criação, para cuja compreensão cabal, muito importa convocar o conceito de esfera pública, tal como o entendeu e teorizou o filósofo alemão Jürgen Habermas, aspecto esse que será mais adiante melhor explicitado e desenvolvido. Serve este preâmbulo, então, para esclarecer a designação algo controversa de “Escultor Público” para qualificar, em honras de subtítulo, o trabalho de um escultor, afinal, considerado menor.

Escultor Público, é claro, sem um conceito de arte pública que lhe pudesse valer, e que lograsse fundar conceptualmente a sua produção. Daí, a necessidade de acrescentar a expressão o “Ofício como Cânone”, pois à medida que íamos aprofundando a análise do espólio documental do escultor, foi-se tornando cada vez mais claro que, em Henrique Moreira, o trabalho artístico não se dissociava, em nenhum momento, do trabalho oficinal, brotando como uma apetência inata e natural para modelar, como o atesta o facto de ele não precisar de recorrer à “máquina de tirar pontos”, para ampliar os seus estudos e esboços. Apesar de disperso e lacunar, o acesso ao espólio do escultor foi o que tornou o presente estudo possível, importando por isso, dirigir uma palavra de reconhecido agradecimento aos familiares do escultor Henrique Moreira, a cuja guarda se encontra o espólio documental do autor, pelas facilidades de acesso e de digitalização concedidas de um manancial de informação bastante rica e multifacetada, de inestimável interesse para o estudo da escultura novecentista em Portugal. Agradecer não só as facilidades de acesso amavelmente concedidas pela Família, mas sobretudo agradecer o cuidado que esta teve em conservar o que hoje resta do espólio documental do escultor, nomeadamente à minha ex-colega Celeste Moreira, nora do Eng. Fernando Moreira, filho primogénito do autor, que lhe imprimiu uma organização preliminar, que não só permitiu manter viva a memória de uma obra que ficou irremediavelmente comprometida com a ordem de despejo de que foi vítima o atelier do artista, pouco depois do seu falecimento, como inestimavelmente, também, contribuiu para que este estudo pudesse efectivar-se dentro dos prazos estipulados. Não poderá, é certo, o presente estudo, pela sua extensão e natureza, ser a monografia que a obra de Henrique Moreira justifica e merece, importando referir que o mesmo não será capaz de elucidar todos os problemas e preencher todas as lacunas que a obra de Henrique Moreira coloca e possui, coisa que unicamente a elaboração do Catalogue Raisonné da sua produção poderia resolver, projecto mais ambicioso esse que requereria um trabalho de outro fôlego, que aqui não é possível empreender, mas cujo interesse esperamos que o presente estudo possa demonstrar, e dar-lhe um contributo válido. É pois com redobrado prazer, que agradecemos à Prof.ª Doutora Lúcia Almeida Matos o convite que nos dirigiu para elaborar o presente trabalho, permitindo assim aprofundar o estudo de um autor cuja relevância para a compreensão da história da Arte Pública em Portugal nos havíamos já apercebido na nossa tese de mestrado, e sobre o qual nos pronunciámos mais de uma vez, em público. O texto que se segue organizar-se-á de acordo com a lógica de um estudo monográfico, centrado no conhecimento do autor em causa, desdobrando-se sobre as duas facetas complementares e, por assim dizer, clássicas, da vida e da obra do artista, sem deixar de em permanência contextualizar a sua produção no tempo que foi o da sua atividade, desdobrando-se esta contextualização em duas outras facetas igualmente complementares, e por assim dizer, dialéticas, da confrontação do tempo português, com o tempo internacional, nomeadamente ibérico e mediterrâneo, onde a sua produção se integra e perante a qual melhor se esclarece, como julgamos. Paralelamente a estes enfoques, serve a presente introdução, também, para apresentar as linhas de interpretação que estruturam este caso de estudo, e que são as mesmas que já enunciámos mais acima, quando nos referimos aos argumentos que justificam considerar pertinente e relevante o estudo cuidado e rigoroso da obra de Henrique Moreira. Constituem essas linhas, porém, teses, por assim dizer, meramente provisórias, que carecem de ulterior verificação e correção, à medida que o conhecimento da obra de

Henrique Moreira e o esclarecimento do lugar e do valor da escultura novecentista for avançando. Enunciemos, então, as referidas linhas ou teses: Em primeiro lugar, a dupla diferenciação da obra de Henrique face à estatuária fin-de-siècle e face à estatuária estodonovista. Em segundo lugar, a sua integração num leque alargado de encomendas e num registo discrepante de formatos e escalas. Em terceiro lugar, a pluralidade de expressões plásticas que se manifesta em diferentes fases e registos da sua obra, não obstante a fidelidade permanente à estética novecentista, de que é um dos mais lídimos representantes, em Portugal. Por último, a concepção do trabalho de atelier como um labor oficinal que não se fecha sobre a individualidade do artista, mas antes se mantém aberto aos valores éticos e estéticos da esfera pública.

Importa, enfim, concluir, que reconhecer a validade destes aspectos, necessariamente leva a considerar sobre uma nova perspectiva a obra de Henrique Moreira, e deve mobilizar esforços no sentido de promover a sua preservação, estudo e valorização. 2. Origens e Trajectória: Os Primeiros Tempos Henrique Moreira nasceu, em Avintes (fig. 2), no dia 9 de Maio de 1890 (fig. 3), no seio de uma família de modestos recursos económicos , cujo pai exercia inicialmente a profissão de tanoeiro e a mãe de toucinheira, tendo o casal, mais tarde, aberto negócio próprio de mercearia. Terra de lavradores, de pescadores e de padeiros, donde era proveniente a maior parte do cereal (e da broa) que abastecia a cidade do Porto, Avintes é, por outro lado, uma Vila que possui longa tradição no associativismo e na actividade cultural, nomeadamente no teatro amador, onde haveria de se iniciar nas artes do espectáculo o jovem estudante Adriano Correia de Oliveira (1942-1982), cuja família se mudara do Porto para Avintes pouco depois do seu nascimento, tendo o futuro cantor de intervenção sido co-fundador, em 1957, da União Académica de Avintes, ainda hoje existente. Henrique Moreira nasceu e cresceu num ambiente rural e periférico, indelevelmente marcado pela tradição, mas detentor, também por isso, de uma vincada identidade comunitária de pendor civil, de que sobrevive como testemunho a “Pedra da Audiência”, cuja origem remonta a 1742, e que constitui monumento único, do género, no País. Tendo frequentado a Instrução Primária, em Cabanões, Henrique Moreira concluiu, o exame da 4ª Classe, em Julho de 1905, na Escola de Santo Ildefonso, no Porto, onde obteve a classificação de Bom (fig. 4). Ouçamos sobre esta fase, o testemunho de Joaquim Costa Gomes: Depois frequentou a Escola de Cabanões, onde se revelou um aluno excepcional no desenho, distinguindo-se de forma superior de todos os outros. Ele mesmo me confessou um dia que, durante a infância, o seu maior prazer era o de ter lápis e papel para fazer bonecos, ou um bocado de barro para modelar o que lhe viesse à cabeça. E foi tão forte essa sua tendência pela vida fora que, vezes sem conta, enquanto estava nas refeições, os seus dedos iam modelando no miolo do pão o que quer que fosse.4

Contrariamente aos seus irmãos Joaquim e Cesário, o negócio familiar não seduzia Henrique Moreira, pois como refere, o mesmo autor no Folheto da Exposição Evocativa 4

GOMES, Joaquim Costa, Três Escultores de Valia: António Fernandes de Sá, Henrique Moreira e Manuel Pereira da Silva, Confraria da Broa de Avintes, 2000, Avintes, p. 47.

que se realizou, postumamente, na Casa-Museu Teixeira Lopes, “desde muito novo que se tornou evidente a sua propensão para o desenho e para os trabalhos manuais de cariz artístico, pelo que sempre detestou o balcão, evidenciando uma natural indiferença pelo comércio.”5 Natural indiferença pelo comércio que importa assinalar, na medida em que a mesma define um traço estruturante do carácter do escultor, manifestando-se nele um sincero desprendimento pelas “coisas do mundo”, desprendimento esse que não cessa, senão parece mesmo intensificar-se, quando se trata da defesa de interesses ou da obtenção de benefícios pessoais, quer no plano profissional, quer no artístico, como se depreende do repetido declinar do convite que Sousa Caldas lhe dirigiu para leccionar na Escola Faria Guimarães. Concluída a Instrução Primária, Henrique Moreira ingressou, com 15 anos de idade, na Academia Portuense de Belas-Artes que funcionava, em 1905, no mesmo edifício da Biblioteca Municipal e do Museu Portuense, tendo como Director o arquitecto José da Silva Sardinha. Para formalizar a inscrição, era necessário não só apresentar o certificado de conclusão do ensino primário, mas também dar provas de “bom comportamento moral, civil e religioso”, tendo Henrique Moreira apresentado, para o efeito, uma declaração assinada pelo padre Joaquim da Silva Valente, da paróquia de S. Pedro de Avintes. Como professores de Desenho, teve os mestres José de Brito e Marques de Oliveira, e em escultura foi aluno de Teixeira Lopes. Ao longo do seu percurso académico Henrique Moreira obteve sempre elevadas classificações, e logo no primeiro ano José de Brito encorajou o aluno a fazer, num só, os dois primeiros anos de Desenho Histórico, coisa que sucedeu também com Escultura, onde teve como colegas Diogo de Macedo, Sousa Caldas e Manuel Martins, entre outros, tratando-se, no caso de Diogo de Macedo, no entanto, de uma segunda inscrição, em virtude deste ter perdido o ano, em 1902, “por desatenção ao estudo”6, após um primeiro ingresso, com 13 anos, apenas, vindo da Escola Industrial Infante D. Henrique, facto que permite diferenciar desde logo o itinerário (e a postura) de ambos, face à Academia, circunstância que não impedirá, no entanto, que se desenvolva entre os dois uma amizade destinada a perdurar por longos anos, na discrepância de dois caminhos, a vários títulos, diversamente traçados. Sobre os colegas de curso de Henrique Moreira, Joaquim Costa Gomês (fig. 5), que deve ser considerado o seu melhor biógrafo, refere: No mesmo curso das Belas-Artes pontificavam alunos que vieram a ser alguém no campo das Artes: Diogo de Macedo, com quem conviveu muitíssimo […]; António de Azevedo, que veio a ser professor da Escola de Guimarães e assinou muitos trabalhos de escultura; Zeferino Couto que exerceu o ensino técnico na Escola de Braga; Sousa Caldas, filho do famoso criador de arte-sacra Fernandes Caldas e vizinho de Teixeira Lopes; e Manuel Martins, que era de Coimbrões e o mais destacável de todos, vindo a morrer novo. Isto na escultura, enquanto na pintura havia o Joaquim Lopes, que era de Vilar do Paraíso e chegou a Director da Escola das Belas-Artes do Porto; Armando Basto, um talento que soube em Paris assimilar a evolução do modernismo; Heitor Cramez e outros mais, enquanto na arquitectura havia, entre outros, o Manoel Marques, e seu irmão Francisco que também eram de Avintes.7

5 GOMES, Joaquim Costa, Algumas Palavras, In, Associação Cultural Amigos de Gaia, Exposição Evocativa de Henrique Moreira, Casa-Museu Teixeira Lopes/Galerias Diogo de Macedo, 1982, p. 3. 6

MEGA, Rita, MACEDO, Diogo de, In, PEREIRA, José Fernandes (dir.), Dicionário da Escultura…, p. 365.

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GOMES, Joaquim Costa, Três Escultores de Valia…, p. 49.

Consultada a documentação (fig. 6) sobre o percurso académico de Henrique Moreira, (fig. 7) registam-se os dados mais relevantes na tabela que se segue. (os valores seguidos de asterisco referem-se a classificações obtidas “com distinção”) Cadeiras Desenho Histórico Desenho Histórico Desenho Histórico Desenho Histórico Anatomia Artística Escultura Escultura Escultura Escultura

Ano 1º, 2º 3º 4º 5º 5º 1, 2 3 4 5

Professor José de Brito José de Brito José de Brito José de Brito Marques de Oliveira Teixeira Lopes Teixeira Lopes Teixeira Lopes Teixeira Lopes

Classificação 16 valores* 16 valores* 14 valores 17 valores* 15 valores 16 valores* 16 valores* 17 valores* 18 valores*

A estas classificações, importa ainda acrescentar a menção honrosa que o autor recebeu, em 1907, no concurso que era anualmente aberto na Academia para prémio pecuniário em Desenho, ao qual tinham concorrido vinte e quatro alunos (fig. 8), havendo sido atribuídos três terceiros prémios e cinco menções honrosas.8 Relativamente aos trabalhos académicos que realizou, infelizmente dos mesmos não resta hoje notícia, excepto uma imagem, juntamente com Diogo de Macedo, do trabalho “Pela Pátria”, apresentado por cada um deles, como resposta ao tema solicitado por Teixeira Lopes, para prova final de escultura: “Execução de um soldado ferido.” (fig. 9) Henrique Moreira termina, em 1911, o curso de escultura, tendo obtido a média de dezassete valores, recebendo a classificação de dezoito valores na prova final de escultura, como vimos. Findo o curso, em vez de se deixar seduzir pelos apelos de Diogo de Macedo de partir (fig. 10 e 11), mesmo sem bolsa do Estado, para Paris, Henrique Moreira aceita antes o convite que Teixeira Lopes lhe dirige para trabalhar com ele no atelier de Gaia, constituindo essa uma decisão que muito contribuiria para determinar o futuro da sua carreira artística. No atelier de Teixeira Lopes, porém, não viria a permanecer mais do que quatro anos, findos os quais, haveria de trabalhar por conta própria, sendo que em 1913, com 23 anos, contraía matrimónio com Adelina de Campos Nunes, tendo como padrinhos de casamento os irmãos Teixeira Lopes, respectivamente António, seu mestre de escultura, e José, então, arquitecto na Câmara do Porto. Provavelmente, em 1914, data em que Diogo de Macedo regressa de Paris, o arquitecto Marques da Silva, autor do projecto vencedor do concurso aberto, em 1910, para a construção do Teatro de S. João, convidou Diogo de Macedo e Henrique Moreira para executarem, juntamente com Sousa Caldas e Joaquim Gonçalves da Silva, a ornamentação escultórica do novo teatro. Joaquim Gonçalves da Silva interveio apenas na fachada exterior lateral, enquanto Diogo de Macedo e Sousa Caldas intervieram na fachada frontal, restringindo-se o contributo de Henrique Moreira ao interior, onde foi acompanhado, também, por Sousa Caldas e por Diogo de Macedo, na ornamentação escultórica dos espaços do foyer e avant-foyer, onde o

8 Eis os resultados: 1º (terceiro) prémio, Gonçalo Caetano Manoel; 2º (terceiro) prémio, José Maria Soares Lopes; 3º (terceiro) prémio, Joaquim d’Araújo Correia; Menções honrosas: Eduardo da Silva Barbosa, Manoel Marques, Manoel Martins Rodrigues, Henrique d’Araújo Moreira e Eurico Alexandre Ferreira.

último “esculpiu duas cariátides”9, estendendo-se a ornamentação escultórica à Sala de Espectáculos, com destaque para as Cariátides e Atlantes que sustentam o hemiciclo do 2º Balcão, as primeiras (fig. 12 e 13) da autoria de Henrique Moreira.10 Estes trabalhos inscrevem-se com clareza, e obediência, na gramática compositiva e na iconografia classicizante que caracterizam o ecletismo beauxartiano, tal como o mesmo havia sido definido na École parisiense, sendo Marques da Silva o seu mais eloquente e bem sucedido representante no Porto, onde praticou uma estética vincadamente finissecular, à imagem do optimismo e da opulência de uma Belle Époque que à data da inauguração do Teatro de S. João, a Grande Guerra se encarregara de abater e de, irremediavelmente, inviabilizar. Em 1916, Henrique Moreira participará na Exposição dos Phantasistas que decorrerá entre 5 e 25 de Janeiro, no Palácio da Bolsa, organizada por Armando de Basto, Leal da Câmara e Diogo de Macedo (fig. 14), retomando a fórmula do Salão dos Humoristas e Modernistas, do ano anterior, que decorrera no Jardim Passos Manuel. De 1916, também, data uma carta do caricaturista republicano Leal da Câmara (fig. 15) que se refere à aquisição de peças de Henrique Moreira, por parte da Câmara Municipal do Porto. Perante estes sucessos, onde avultam a participação na decoração escultórica do Teatro de S. João e a aquisição de peças do escultor pela Câmara Municipal, Henrique Moreira decerto terá visto a confirmação da viabilidade da decisão tomada no ano anterior, de se desligar de Teixeira Lopes, e de tentar a actividade independente. Desta época, datará, também, o busto da avintense Ti Manca (fig. 16), que na opinião de Costa Gomes terá sido “executado nos baixos da sua casa, onde mais tarde veio a ser a sede de ‘Os Plebeus’”11, local onde o dito autor considera que se localizaria o primeiro atelier do artista12. Ti Manca é, por assim dizer, a primeira obra auto-gerada13 de Henrique Moreira, na medida em que não se trata nem de um trabalho de estudante, nem tampouco de uma obra de colaboração em programas ou encomendas de antemão definidos, pelo que a análise da mesma nos permite tirar algumas ilações pertinentes. Em primeiro lugar, verifica-se que a mesma é o retrato de uma “simpática velhinha que morava na Gândara, em Avintes”14, denotando assim uma temática realista. Em segundo lugar, tratando-se de uma figura de origem plebeia, a mesma é tratada com inusitada nobreza, bem patente na serenidade da pose, no tratamento plástico algo solene do traje, assim como na doce expressividade que contrasta com o recorte verista das mãos descarnadas, que introduz uma nota de discreta, mas inequívoca, tensão dramática, revelando-se este retrato 9 Vide, Casa-Museu Teixeira Lopes. Galerias Diogo de Macedo, Diogo de Macedo. Escultor - Museólgo - Escritor, Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 1989, s/p. 10

Não existe referência a estas obras no espólio documental do artista, cingindo-se os dados disponíveis a menções genéricas em descrições sobre o Teatro de S. João do Porto, como por exemplo em CABEÇAS, Maria Conceição e D’ARA, Concha, Porto Monumental e Artístico. Património da Humanidade, Porto Editora, 2001, p. 46, onde se lê: “O interior é de uma opulência clássica, possuindo uma excelente acústica. O tecto foi pintado por Acácio Lino e José de Brito e as esculturas são de Diogo de Macedo, Henrique Moreira e Sousa Caldas.” 11

GOMES, Joaquim Costa, Três Escultores de Valia…, p. 50.

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O Clube ainda existe, situando-se a sede na Rua 5 de Outubro, 572, em Avintes.

13

Introduzimos aqui um conceito usado por Antoni Remesar, para caracterizar o regime de produção artística no qual o controlo da produção é detido pelo autor, conceito esse que será discutido mais adiante.

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GOMES, Joaquim Costa, Três Escultores de Valia…, p. 50

isento dos maneirismos folclóricos e pitorescos, que caracterizavam a retórica e a plástica de mestre Teixeira Lopes. Não iria ser, no entanto, a retratar figuras de plebe (fig. 17) que Henrique Moreira lograria viabilizar a sua actividade independente de escultor, pois nem a clientela burguesa se encontrava interessada em adquirir retratos de plebeus, nem por outro lado essa mesma clientela lhe encomendaria os seus próprios retratos, pois a fazê-lo, coisa que de resto fazia pouco, era a Teixeira Lopes que preferia recorrer, situação que mais se complicava com a difícil conjuntura económica e política gerada pela Grande Guerra, e que mais se agravava, ainda, depois. O espaço de afirmação de Henrique Moreira como escultor independente era, por isso, bastante exíguo, e os primeiros anos da sua actividade não foram nada fáceis, podendo a esse respeito falar-se mesmo de luta pela sobrevivência, obrigado a que foi durante esse tempo a dedicar-se à produção de figuras de barro de pendor vernáculo, destinadas a uma clientela popular. Perante os obstáculos, Henrique Moreira decidiu mudar-se para Lisboa (fig. 18), buscando na Capital melhores oportunidades, e alugou, em 1919, um espaço na Travessa das Freiras, nº1, nas imediações do Campo de Santa Clara, à Feira da Ladra, como se documenta por uma nota enviada pelos Armazéns António do Nascimento, para a dita morada. Eis como Costa Gomes descreve este período da vida do escultor: Um pouco descoroçoado com o ambiente artístico nortenho, onde só pontificava Teixeira Lopes, que era o mais querido do mundo social e artístico, graças a um leque de relações valiosas, e porque ouvia falar do quanto os escultores eram acarinhados em Lisboa, Henrique Moreira resolveu rumar até lá, na esperança de melhores dias. Infelizmente, na capital ele era um ilustre desconhecido, pelo que teve de comer o pão que o diabo amassou. Sem outros recursos para sobreviver, fazia reproduções daquelas pequenas figuras populares que tinha executado e ia de porta em porta oferecê-las a possíveis compradores.15

Confrontado com a indiferença da Capital, Henrique Moreira, por volta de 1920, decidiu regressar ao Norte, e mudou-se para o Porto, vivendo agora numa pequena casa na Rua do Farol, nº 34, na Foz do Douro. O escultor tem agora cerca de 30 anos, e dedica-se a modelar com afinco algumas das peças mais representativas da sua fase realista, onde representa figuras de deserdados da sociedade, que retrata em plena acção laboriosa (fig. 19), ou então, o que sucede muitas vezes, registando momentos de pausa, com as figuras a serem captadas em atitude de recobro de forças, quando não de meditação existencial sobre a sua própria condição, como sucede, por exemplo, com o Cavador (fig. 20). São peças de pequena dimensão que se desviam do naturalismo, pela recusa do folclórico e do pitoresco, e que abraçam o realismo, embora sem assumir a robustez formal e expressiva que a obra do escultor belga franco-maçom Constantin Meunier (1831-1905) viria a registar (fig. 21). Em todo o caso, pode-se com rigor afirmar que Henrique Moreira foi, durante uma fase breve da sua produção, o escultor que em Portugal mais se aproximou dos enunciados formais do realismo escultórico, assumindo uma estética que no fim, episodicamente, se adequava à não menos episódica e contraditória conjuntura republicana. (continua no próximo boletim).

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GOMES, Joaquim Costa, Três Escultores de Valia…, pp. 51-52.

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