Henrique Oswald e a música vocal

July 8, 2017 | Autor: S. Igayara-Souza | Categoria: Opera, Opera,Choral And Vocal Music, Choral Music, Brazilian Music, Musica Brasileira
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Utilizamos aqui o texto da segunda edição, de 1947. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo certifica que o texto é uma reprodução literal da primeira edição, de 1908, publicada na Bahia, apenas com correções de revisão.
O artigo, bastante conhecido pela musicologia brasileira, tem o título "Henrique Oswald" e faz parte de Música, doce Música, volume VII das Obras Completas. Em texto escrito logo após a morte de Oswald, Mario de Andrade afirma que é indiscutível que Oswald foi um grande músico, no entanto o critica e mesmo declara-se seu "inimigo", por não ter ele aderido às correntes nacionalistas de composição que se desenvolviam no Brasil.
Henrique Oswald e Alberto Nepomuceno. Música Sacra. Júlio Moretzsohn e Coral Caliope. (Missa de Requiem: Requiem, Kyrie, Dies era, Domine Jesu Christe, Sanctus Benedictus, Agnus Dei, Libera me. Motetos: Ave Maria, Memorare, Magnificat, Veni, Sancte Spiritus, Pater Noster, Tantum ergo.) Selo Rádio MEC. Acervo MEC. Petrobrás. Ministério Da Cultura. 2005.
Editada pela Aliance Music Publication (EUA) na Sérierie de Elaine Quilichini (Composed by Henrique Oswald/ Edited by Susana Cecilia Igayara). SSAA, órgão ad libitum. (2010) Catálogo: AMP 0831 http://www.alliancemusic.com/product.cfm?iProductID=1023


Como citar este artigo:

Igayara, Susana Cecilia. Henrique Oswald e a música vocal. Revista Glosas. Revista do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, v. 9, p. 19-25. Setembro/2013.

Henrique Oswald e a música vocal
Susana Cecilia Igayara

Desde a minha dissertação de mestrado, concluída em 2001, Henrique Oswald tem sido um de meus objetos de estudo musicológico e, ao longo deste tempo, tenho escrito artigos e ministrado palestras sobre diversos aspectos de sua obra sacra coral (IGAYARA, 2001, 2002, 2005, 2006, 2009).
Neste artigo, proponho um olhar mais abrangente sobre a relação do compositor Henrique Oswald com a música vocal, abordando a música sacra, a canção de câmara e a ópera. Alguns aspectos biográficos e históricos, já amplamente discutidos por José Eduardo Martins, serão retomados a fim de analisar o papel e a importância da formação vocal, do repertório e das práticas ligadas ao canto, na época em que viveu o compositor e em sua produção.
Acreditamos que, salientando estes aspectos, algumas perspectivas constitutivas da música vocal poderão dialogar também com a produção instrumental, tais como a valorização do melodismo, as referências às temáticas poéticas e à inspiração religiosa.

Obra coral
Na análise de sua obra sacra coral, um dos aspectos evidenciados pela análise musical é o domínio da escrita vocal, sobretudo nas duas Missas, que são as obras de maior fôlego, com duração aproximada de 25 minutos cada uma delas. É importante ressaltar que a obra sacra analisada concentra-se em dois momentos bem definidos de sua trajetória composicional, o primeiro na década de 10, e o segundo a partir de 1925, como pode ser percebido pela seguinte tabela:


Tabela 1: A Obra Sacra de Henrique Oswald

Obra

Formação vocal
e instrumental
Data da
Composição
Observações
CORO MISTO




Missa em Dó menor (Missa Solene)
coro SATB, orquestra de cordas e órgão
1925
Há um manuscrito para coro e órgão
Missa de Réquiem,
em Mi menor
coro SATB, órgão ad libitum
1925

Pater Noster
coro SATB, harmônio ad libitum
1926

Tantum Ergo
coro SATB, harmônio ad libitum
1930

CORO FEMININO




Três motetos para coro feminino

1913
A proposta de organização dos três motetos de 1913 é nossa
Ave Maria

coro feminino SSAA, harmônio ad libitum


Magnificat
coro feminino SSAA, harmônio ad libitum


O salutaris hostia
coro feminino SSAA, harmônio


O salutaris hostia
Coro feminino SSAA cordas e órgão

Versão com orquestra de cordas da mesma obra para coro feminino e harmônio
Três motetos para coro feminino

1930
A proposta de organização dos três motetos de 1930 é nossa
Tantum ergo

Coro feminino SSA, harmônio


Veni, Sancte Spiritus
Coro feminino SSA, harmônio


Memorare
Coro feminino SSAA, harmônio


CORO MASCULINO




Três motetos para coro masculino

1930
Versão para vozes masculinas dos mesmos motetos para vozes femininas de 1930
Tantum ergo

Coro masculino TTB, harmônio


Veni, Sancte Spiritus
Coro masculino TTB, harmônio


Memorare
Coro masculino TTTB, harmônio



Como conjunto, a música sacra coral de Henrique Oswald deve ser vista como obra de maturidade. Podem-se discutir as motivações que estiveram na origem dessas composições. Em nossa dissertação (IGAYARA, 2001), defendemos a ideia de que tanto motivações pessoais como aspectos conjunturais estiveram na origem das suas obras corais sacras, das quais constam duas Missas e alguns motetos, além dos projetos que Oswald não chegou a realizar, como um Te Deum do qual restou apenas um esboço de uma página.
Entre os aspectos pessoais, além da devoção católica do compositor, cultivada por toda a vida, o fato de seu filho Alfredo ter decidido, em acordo com a esposa Beatriz, que ambos abandonariam o mundo para tornarem-se religiosos reclusos, com certeza foi um episódio de muito impacto na vida de Henrique Oswald, principalmente considerando-se que Alfredo, tido como excelente pianista, era o elo direto de sua herança musical. Em carta, Henrique menciona que as obras sacras têm um destinatário certeiro: o filho Alfredo, que agora só se dedicava à música religiosa.
Mas a composição sacra não é mera inspiração pessoal, apresenta-se também como mais uma alternativa profissional de composição com objetivos de publicação e performance, pois há naquele momento, por parte da igreja católica, um incentivo à produção de novas obras que observassem os preceitos do Motu Proprio de 1903, decreto papal sobre a música sacra que guiará as escolhas estéticas de Henrique Oswald no campo da composição religiosa para coro (PIO X, 1959).
No tratamento das vozes do coro, percebe-se o conhecimento dos limites das tessituras e do centro de cada um dos registros vocais. Oswald pode explorar esses limites, como em alguns momentos da Missa em dó menor, ou escolher trabalhar apenas na região central das vozes, o que acontece no Tantum Ergo a quatro vozes mistas, recurso apropriado à apresentação do hino em sua forma mais simples.
A definição de perfis vocais fica ainda mais nítida em obras para coro feminino a quatro vozes, como Ave Maria ou O Salutaris hostia, a quatro vozes. Oswald faz uso de ataques na região aguda, cria efeitos de espacialização no uso da polifonia imitativa e explora os timbres das diferentes vozes do coro.
Na música sacra, é o tratamento do conjunto coral que prevalece, sem buscar perfis solistas. Exige-se dos cantores, no entanto, grande preparo musical para a perfeição da entoação e boa realização de movimentos cromáticos, intervalos aumentados e dissonantes entre as vozes, sequências de saltos nas linhas melódicas e linhas com perfil modal, das quais o melhor exemplo é o Dies Irae da Missa de Requiem.
Entre as determinações do Motu Proprio de 1903 (PIO X, 1959) há uma recomendação para que se evite, na música sacra, o uso de solos e de instrumentos, associados à música secular. Oswald aceita essa recomendação e, mesmo em momentos em que chegou a considerar o uso de um quarteto solista, em sua Missa de Requiem, termina por optar pelo uso do coro, evitando todo exibicionismo vocal.
O recurso que será valorizado, como alternativa ao virtuosismo solista, é um cuidadoso jogo de texturas corais. Na obra sacra encontraremos: 1) o uso das quatro vozes independentes (O Salutaris hostia, Kyrie da Missa em dó menor, Ofertório da Missa de Requiem); 2) as quatro vozes como conjunto, sem uso de divisi (Magnificat para coro feminino, início do Requiem, na Missa de Requiem); 3) o agrupamento das quatro vozes duas a duas (Pater Noster, compassos 9-23, Sanctus da Missa de Requiem); 4) o agrupamento das quatro vozes em três e uma (Benedictus da Missa de Requiem, Lacrimosa, no Dies Irae da Missa de Requiem); 4) a textura a três vozes, com uma voz ausente (Liber scriptus, no Dies Irae da Missa de Requiem), 5) o uso de uma nota pedal, (Tantum Ergo a quatro vozes, Magnificat).
A construção melódica, na obra sacra, revela um equilíbrio entre as exigências do contraponto e da invenção harmônica, com uma escrita rítmica totalmente em função do texto, sem elaboração independente. Em comparação com as árias das óperas, percebe-se claramente que Oswald concebe a construção melódica em observância a uma concepção mais geral do gênero vocal praticado e a partir de uma coerência estética definida a cada obra, demonstrando um extremo cuidado e rigor no tratamento vocal das partes individuais e do conjunto.
A obra sacra produzida na maturidade mantém, no entanto, relação com a música vocal de câmara e operística, demonstrando que, embora associado prioritariamente à música instrumental, com realizações nos gêneros sinfônico, camerístico e recitalista, o compositor Henrique Oswald também foi um dos compositores brasileiros que se destacou como cultor das formas vocais.
Para que se tenha uma ideia mais clara dos aspectos vocais presentes na formação musical de Oswald, passamos a comentar, sucintamente, alguns aspectos de sua biografia que se referem diretamente à música vocal.

O canto na formação musical e no cotidiano doméstico de Henrique Oswald: um "lirismo multicultural"
Além da formação musical regular, em instituições de ensino ou com professores particulares, a vida musical de Henrique Oswald sempre manteve um componente de sociabilidade musical doméstica que consideramos igualmente relevante como parte de sua formação como músico.
É neste aspecto que podemos ressaltar algumas particularidades de sua aproximação com a música vocal e com o que passaremos a chamar, neste texto, de "lirismo multicultural". Referimo-nos à relação com sua mãe, Carlota, que era italiana e teve grande influência em sua formação, tanto musical como linguística e literária. Em uma estrutura familiar em que o pai estava constantemente em viagem, uma das funções de Carlota foi cuidar da educação dos filhos e incentivar habilidades de fala, leitura e escrita em diversos idiomas: português, francês e italiano, como atestam as cartas escritas pelo jovem Enrico ao pai em francês, por exemplo.
Esta mãe, capaz de auxiliar o filho em diversos idiomas, era também professora de piano. Sabe-se que Henrique nasceu apenas dois anos depois do casal Oswald se fixar no Brasil, o que sugere que o italiano tenha sido, desde criança, o idioma familiar. Não é necessário um grande esforço de imaginação para se perceber que, desde o início de sua vida, Oswald esteve exposto a múltiplas vocalidades, considerando o ambiente familiar, o meio social brasileiro e os contatos do mundo musical, em que a presença de estrangeiros era frequente, bastando o exemplo de seu professor francês em São Paulo, Gabriel Giraudon.
O papel de Giraudon na formação inicial de Oswald, por exemplo, foi destacado por todos os biógrafos e analistas. Em A Música no Brasil, nossa mais antiga produção com caráter de história da música, Guilherme de Melo classifica Oswald como parte da escola paulista e menciona as suas canções, ao referir-se às principais obras, neste texto de 1908:
Dos compositores paulistas citarei em primeiro lugar HENRIQUE OSWALD. Foi muito novo para a Itália, depois de ter gozado do excelente ensino do Sr. GIRAUDON em São Paulo. Estudou em Florença com o grande músico italiano (talvez o mais notável dos modernos) BUONAMICI e se fixou como professor do Conservatório.
Veio este ano visitar a sua pátria depois de 28 anos de ausência. Tem escrito uma Sinfonia, um Concerto de Piano, música de câmara, entre a qual sobressai um quinteto com Piano, e várias peças de piano e canto. É um músico finíssimo, dotado de uma fantasia rica, colorida e cheia de tal harmonia, que dá mesmo aos seus trechos melancólicos uma leve sensação de bem estar. Possui a tal ponto a técnica da composição que as mais complicadas imitações aparecem com perfeita naturalidade. Modula como um mestre. (MELO, 1947, p. 293-294).
Oswald fixou-se em Florença muito jovem, aos 16 anos, acompanhando a família. Lá conheceu e casou-se com Laudomia Gasperini, filha do diretor de um instituto de educação francês que era também cantora e poliglota, filha de pai italiano e mãe francesa. As múltiplas vocalidades a que Oswald já estava acostumado continuavam presentes no convívio familiar, agora no novo núcleo estabelecido pelo casal Henrique e Laudomia.
A estas vocalidades italiana e francesa, além da brasileira, é importante acrescentar o latim, idioma religioso então em uso na comunidade católica, à qual pertence todo o núcleo familiar de Oswald (a esposa Laudomia, de origem protestante, converteu-se ao catolicismo).
A relação afetiva com uma cantora está relacionada, certamente, à composição de canções, principalmente aquelas destinadas ao perfil de mezzo-soprano, que era o seu registro vocal, e a familiaridade com diversos idiomas explica-se facilmente pelas circunstâncias comentadas.
Embora estes aspectos sobre a origem cultural familiar e a vinculação a um grupo às vezes sejam negligenciados nas análises das trajetórias artísticas dos compositores, foram vistos como significativos por autores como Pierre Bourdieu, que via no "capital social" um importante aspecto a ser analisado nos estudos culturais e educacionais, recursos ligados "à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas" (BOURDIEU, 1998, p. 67). Bourdieu dá grande importância às disposições herdadas (familiares, sociais) na construção do habitus, conceito através do qual o sociólogo analisa as escolhas práticas que estruturam as ações e disposições dos agentes sociais em seus movimentos dentro dos campos sociais (BOURDIEU, 1998, p. 114).
No caso de Oswald, essa exposição a culturas múltiplas – brasileira, italiana, francesa e alemã – com forte centro na ideia de uma cultura humanística, religiosa e artística, é com certeza um aspecto a não ser negligenciado. Pode-se dizer mais: aspecto transferido aos descendentes, o que se prova com uma simples leitura da biografia dos muitos artistas da família, a começar pelos filhos Carlos e Alfredo.
Na produção vocal, em que música e texto se tornam um conjunto coeso, as múltiplas vocalidades encontram um meio de expressão próprio, um "lirismo multicultural", expressão que escolhemos para tentar representar este aspecto tão característico da obra vocal de Henrique Oswald.

A canção oswaldiana
É bem sabido, por aqueles que estudam a música erudita brasileira, que o compositor Henrique Oswald foi rechaçado por críticos e musicólogos nacionalistas, por uma suposta ausência de conteúdos brasileiros ou de "caráter nacional" em suas obras. Na música vocal, a discussão sobre as tendências nacionalistas e sobre a valorização de uma cultura brasileira passa, de forma bastante forte, pela adoção do idioma português e pelas escolhas poéticas, sobretudo na canção.
Vasco Mariz, autor de "A Canção Brasileira", chega a afirmar que "não parece haver qualquer preocupação nacionalista ou revolucionária a sublinhar" (MARIZ, 1977, p. 35). Não vendo na obra de Oswald tais preocupações, Vasco Mariz não se preocupa em analisar a obra vocal de Oswald a partir dos parâmetros do romantismo e do simbolismo, em termos das escolhas poéticas, bem como das soluções melódicas, harmônicas e da relação entre voz e piano.
Neste texto, optamos pela abordagem do conjunto de suas canções, editadas ou em manuscrito, a partir da presença da música como elemento de aproximação entre pessoas de seu círculo social. A canção, nesse contexto forjado no romantismo, estabelece-se como um dos muitos laços de sociabilidade musical presentes entre personagens do seu convívio. Mensagens musicais, comentários poéticos, celebração de momentos comemorativos são algumas das situações que podem, no cotidiano do compositor, gerar páginas musicais, dentre elas algumas canções ou hinos dedicados a familiares, amigos ou personalidades públicas.
É neste sentido, por exemplo, que podemos agrupar algumas das canções em italiano que surgem da poesia da esposa Laudomia musicadas em 1879 (Romanza, Stornello) ou do sogro Ottavio Gasperini (Romanza), conhecido intelectual italiano. Reforçando a ideia do lirismo multicultural praticado em família, há também uma Berceuse em francês com texto de Laudomia que, filha da francesa Maria Bombenard, fez seus estudos em francês no Diaconesses de Florence e estudou piano e canto.
Provavelmente, estas canções surgiram ou foram utilizadas em episódios circunstanciais. Ave!, de 1897, com texto italiano de Solone Monti, possui uma dedicatória para Sophia da Silva Prado, provavelmente oferecida como presente de casamento.
Afastando-nos um pouco do lirismo amoroso, encontramos uma atitude semelhante em páginas como o Hino ao Cardeal Arcoverde, para voz e piano, com texto de Affonso Celso, ou ao Canto da Coroação, dedicado ao Monsenhor Antonio Pinto, vigário de Campo Grande.
Na análise da produção artística musical, é comum que estas obras mais circunstanciais sejam enquadradas em um bloco à parte, consideradas suas menores pretensões em termos de elaboração formal. Nessa separação, tais peças são vistas como uma produção sem pretensão artística. Mas pode-se, ao contrário, inverter as premissas e considerar essas canções, justamente, como um corpus privilegiado para a análise da importância do artístico em suas dimensões mais profundas. Pois estas pequenas obras despretensiosas não denotariam, ao contrário, o domínio do artístico trazido para a dimensão cotidiana? Não seriam, em sua singeleza e naturalidade, justamente uma demonstração do papel preponderante do lirismo que penetrava todos os momentos da vida?
Quer tenham sido episódios musicais do cotidiano, quer tenham sido experimentos na composição da melodia acompanhada, as primeiras canções levaram ao poemeto lírico Ophelia, composto em cinco partes em 1901 e editado em 1904 (Genesio Venturini, editor). O ciclo foi bastante executado, tanto em seu conjunto, quanto algumas das partes isoladas. O texto em italiano é de Solone Monti, de quem Oswald já havia musicado Ave!, em 1897. A personagem Ophelia, seu destino trágico e as temáticas da submissão feminina, da loucura e do suicídio motivaram diversas criações artísticas nos campos literários, musicais e visuais. Há uma extensa iconografia de Ophelia, em que se destacam a palidez, as flores, a expressão de desvario, o corpo boiando na água. Das referências poéticas, o poema Ophélie, de Arthur Rimbaud, talvez seja dos mais conhecidos.
A temática shakespeariana de Ophelia, personagem de Hamlet marcada por um destino trágico e pelo amor não realizado, motivou diversas obras musicais durante o século XIX. Para darmos apenas alguns exemplos, citamos a segunda parte de Tristia, de Hector Berlioz (La mort d'Ophélie), a Chanson d'Ophélia, uma das Quatro canções de Shakespeare, op. 28, musicadas por Ernest Chausson e o poema sinfônico Hamlet and Ophelia, de Edward McDowell.
Oswald apresenta sua versão em um ciclo de canções formado por uma introdução (sem título), Ophelia, Il gènio della foresta, L'angelo del cimitero e La Morta, a partir do poema de Solone Monti, uma das muitas versões produzidas no período a partir do original de Shakespeare. Oswald orquestrou Il gènio e La Morta e deixou mais de um manuscrito das várias peças, alguns, inclusive, em diferentes tonalidades.
Note-se que este ciclo de canções foi composto em um período próximo das experiências operísticas Il Neo (1900) e Le Fate (1902-1903). As três obras vocais não se assemelham no caráter, o que demonstra que Oswald não se fixava em um estilo poético-vocal específico, mas experimentava possibilidades entre o conteúdo emocional de Ophelia, a leveza cômica de Il Neo (La mouche), de um ato, e a fábula romântica Le Fate, em dois atos.
Ainda na produção de canções, é necessário citar L'Enseigne, de 1917, para voz e orquestra, em três partes: L'aveugle, Le troubadour, L'enamourée. Apesar do texto em francês, a obra está diretamente ligada ao pensamento intelectual brasileiro da belle époque, que tinha no francês uma língua literária. O texto é de Jacques d'Avray, pseudônimo do senador Freitas Valle que, em sua Vila Kyrial, promovia saraus lítero-musicais, exposições e discussões culturais. Publicou, em 1916 e 1917, os Tragipoèmes, alguns deles musicados por compositores brasileiros.
Ao ser caracterizado como "despaisado" por Mário de Andrade, Oswald foi
alijado da discussão sobe a construção da canção brasileira. No entanto, ao contrário do que alguns poderiam pensar, Oswald foi autor de canções e hinos em português e, tendo se fixado no Brasil, musicou os poetas brasileiros. Participou de projetos com Coelho Neto, autor do texto da Canção de 1903 (Pastora que vens da serra), que faz parte da Pastoral, com o título de Anunciação. Entre suas últimas canções encontramos, em 1916, Aos Sinos! Com texto de Olavo Bilac, que era um dos poetas com maior expressão no momento. Da mesma época são Minha Estrela, dedicada ao cantor Frederico Nascimento (texto de Esther Ferreira Vianna) e Canção Bohemia (texto de Olegário Mariano), que dedicou a Carlos de Carvalho. De 1921, com temática religiosa, é Mendigo!.

Henrique Oswald e a ópera
As três óperas de Henrique Oswald, compostas nos anos de 1872 (La Croce d'Oro), 1900 (Il Neo) e 1902-1904 (Le Fate) ainda esperam pelo dia em que serão mais conhecidas, condição para serem analisadas em relação ao conjunto de sua produção composicional e ao conjunto da produção operística da passagem do século.
Nunca foram editadas, primeiro dos impedimentos para sua presença nos palcos, sobretudo nos dias de hoje, em que uma montagem a partir dos manuscritos está totalmente fora dos padrões dos Teatros que mantém Temporadas Líricas, diferentemente das práticas do início do século XX.
Se a inexistência de edições é a dificuldade primeira, dela decorrem as outras: o desconhecimento da obra pelos maestros, cantores e produtores e, consequentemente, a total impossibilidade de um julgamento estético e do estabelecimento de uma discussão sobre a importância da música vocal (incluindo a música lírica) no conjunto da obra do compositor Henrique Oswald.
O público ouvinte e os estudiosos da música erudita já são capazes de conhecer parte dos repertórios pianístico, camerístico, sinfônico e coral, aqueles em que sua obra vem sendo mais divulgada, através de edições, apresentações públicas, gravações, análises e estudos acadêmicos. A música lírica, no entanto, é uma produção que envolve múltiplos aspectos artísticos e somente pode ser considerada conhecida se chegar à encenação, em que a música cumpre seu papel: o de ser parte de um espetáculo cênico.
Se tratarmos a composição operística de Henrique Oswald comparativamente ao maior compositor brasileiro do gênero, Carlos Gomes, veremos que a primeira ópera surge no momento em que Gomes começa sua consagração, tendo escrito A Noite do Castelo (1861), Joana de Flandres (1863) e Il Guarany (1870), esta última já em Milão. A primeira ópera de Oswald, La Croce d'oro (1872), foi escrita neste momento de transição da grande ópera séria "entre o romantismo heroico de Verdi e o realismo burguês de Puccini" (MAMMÍ, 2001, p. 90). A década de 70 será justamente a de maior triunfo de Carlos Gomes, com as produções de Fosca (1873), Salvator Rosa (1874) e Maria Tudor (1879). As últimas óperas de Carlos Gomes também são todas anteriores às novas experiências de Oswald no gênero: Lo Schiavo (1889), Condor (1891) e o oratório Colombo (1892).
Um aspecto a ser investigado: o que levou Henrique Oswald, que não se desenvolveu como um compositor voltado à cena lírica, a decidir compor novas obras vocais a partir de 1900? Uma possibilidade explicativa poderia ser a reaproximação do músico com o Brasil e a percepção de que "o século começara sob o signo da ópera, para a música brasileira" (AZEVEDO, 1956, p. 2001), avaliação feita por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, que comenta a intensa atividade operística no Rio de Janeiro, com companhias estrangeiras e repertório europeu muito bem aceito pelo público: Mascagni, Leoncavallo, Giordano, Puccini, Massenet e Wagner.
Esse interesse pela música lírica solidifica-se com as inaugurações dos Teatros Municipais do Rio de Janeiro (1909) e São Paulo (1910), o que impulsiona as estreias de óperas de autores nacionais. Em um balanço dessa produção, Luiz Heitor avalia que:
Vinte e nove óperas novas brasileiras foram cantadas na primeira metade do século XX. Estão longe de representar o que há de melhor na música brasileira, que então chegava ao apogeu, produzindo obras verdadeiramente marcantes e dignas de universal apreço. Mas revelam vitalidade e põem em foco, numa resenha histórica como esta, nomes que dela estariam ausentes, se não tivessem ouvido a voz sedutora deste gênio do teatro que enfeitiçou Carlos Gomes e cujo poder também foi sentido por outros compositores maiores, como Leopoldo Miguéz, Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Glauco Velásquez, Villa-Lobos, Lorenzo Fernândez, Francisco Mignone ou Camargo Guarnieri. (AZEVEDO, 1956, p. 216).
Entre essas obras brasileiras, por exemplo, foi estreada Jupyra, em 1900, do amigo Francisco Braga. Além dos ganhos simbólicos como compositor, uma estreia representava um real ganho econômico e talvez a música vocal tenha se apresentado (nesse momento de delicada situação econômica em que se encontrava Oswald) como uma possibilidade a ser explorada. O fato é que, apesar das duas composições realizadas e do estabelecimento de contatos com personalidades que poderiam influir em convites, a ópera não se mostrou um caminho de consagração para o compositor Henrique Oswald.
São encontradas muitas divergências com relação às informações sobre as encenações de suas óperas. Sem pretender definir as informações corretas, uma vez que ainda há muito trabalho de pesquisa a ser realizado, pode-se aqui apresentar alguns dados para os quais há confirmação documental ou depoimentos confiáveis.
Com relação às performances, encontramos referências mais concretas a algumas das representações de Il Neo: em 1925 (da qual encontramos uma nota de imprensa sobre um atraso na transmissão pelo rádio, por um problema de saúde do compositor) e na década de 50, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com o tenor Alfredo Colosimo que cantou, entre outros papéis, Peri de O Guarany e Americo, de Lo Schiavao, ambas de Carlos Gomes, assim como Cavaradossi, de Tosca e Radamés, de Aída, ambas de Verdi.
Colosimo tornou-se primeiro tenor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1950. Encontrarmos menções a apresentações nos anos de 1950 e 1952, mas não pudemos precisar se foram duas temporadas ou apenas uma divergência na data das récitas. Há, também, referências ao ano de 1954, em que teria sido cantada pelo mesmo Colosimo em Minas Gerais, sob regência de Mario de Bruno. O manuscrito que consultamos na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP foi usado por esse maestro e traz, além de seu nome na página de rosto, diversas anotações de performance e nomes de cantores. Encontramos também menção a uma apresentação em 1900, sem comprovação documental, e outra em 1929, que pode ser um engano em relação à apresentação de 1925.
Não foram encontradas referências de performances de La croce d'oro ou de Le Fate, o que indica que provavelmente ainda estão inéditas.
Il Neo (La mouche). Libreto de Eduardo Filippi, a partir do conto La Mouche de Alfred de Musset (1810-1857).
Oswald apresenta a obra como uma Novelletta musicale in tre piccoli quadri (Noveleta musical em três pequenos quadros).
A única das obras para cena que chegou aos palcos tem assunto cômico, chegando a ser caracterizada como uma opereta em menções na imprensa. Na trama, a partir do conto de Musset, um mensageiro burla a segurança do Palácio de Versalhes e surpreende a Madame de Pompadour vestindo um peignoir, com isso termina conseguindo ver uma pinta (a "mosca") que normalmente estaria encoberta pela vestimenta. Em meio a peripécias, estabelece um diálogo com a marquesa e conseguirá realizar os seus intentos, a partir de uma série de acasos e de situações que ele soube provocar.
A música explora as habilidades vocais dos cantores e traz momentos de comentários à música do século XVIII.
Le Fate (As fadas). Fiaba musicali em due parti (Fábula musical em duas partes). Libreto de Eduardo Filippi.
A trama desenvolve-se dentro do ambiente fantástico, em uma gruta perto da ilha de Chipre, reino da fada Ulina. Há coros e grupos de dançarinos formados por fadas, sátiros, bacantes, vampiros, além de guerreiros e marinheiros. As personagens principais são Ulina, rainha das fadas (soprano), Brunello, homem da terra (tenor) e Lurchetto, um sátiro (Barítono).
Há uma grande presença de coros e uso de balé. A abertura traz o coro "Eterna giovinezza allieta il nostro cor/ Evviva ognor l'amor il riso e la bellezza". Na trama, Ulina apaixona-se por Brunello, que não a ama. O encontro amoroso, marcado pelo impossível, dar-se á somente no fim da história, quando Brunello defende Ulina de guerreiros que tentam feri-la, sem que possa impedir sua morte, mas a tempo de declarar seu amor.
A ópera é escrita em duas partes. O manuscrito consultado na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes é um vocal score, em que se percebem dois momentos distintos, inclusive em papéis pautados de diferentes origens. Para a primeira parte, à tinta, foi utilizado papel italiano com timbre de Firenze. Já a segunda parte está escrita, também à tinta, sobre papel brasileiro, com as indicações cênicas em tinta vermelha. No final do manuscrito, vê-se a datação de Oswald (Rio Comprido, 1904). Há ainda uma ária separada de Ulina, em papel brasileiro da Casa Bevilacqua.

Dificuldades a serem vencidas
José Eduardo Martins comentou a dificuldade do pesquisador com relação aos manuscritos de Oswald, que apresentam datações imprecisas e ausência de números de opus (MARTINS, 1995). Com relação à música vocal também pudemos perceber essa dificuldade, que enfrentamos em nossa dissertação de mestrado (IGAYARA, 2001).
Da fábula Le Fate, por exemplo, há um manuscrito datado de 1902-1903, mas ressaltamos aqui ter encontrado em outro manuscrito a data de 1904. O completo estabelecimento da gênese e do desenvolvimento da composição de suas óperas, incluindo o estudo dos diferentes manuscritos e das adaptações, revisões e rascunhos, ainda está por ser realizado, bem como o estabelecimento de um texto musical completo que possa ser publicado.
Das Missas, há edições que foram feitas em trabalhos acadêmicos, mas ainda faltam edições comerciais que possam dar suporte uma divulgação mais ampla. Em minha dissertação, defendida na Universidade de São Paulo, apresentei uma edição crítica da Missa de Requiem, revisada posteriormente, que foi a utilizada na gravação do coro Calíope, sob regência de Júlio Moretzsohn, além de ter possibilitado concertos e gravações não-comerciais no Brasil, Portugal e Estados Unidos. A Missa em Dó menor, por sua vez, foi editada em trabalho de mestrado de Vasti Atique Ferraz de Toledo, defendido na Universidade de Campinas e apresentada em concerto em Campinas e Jundiaí, no estado de São Paulo (TOLEDO, 2009). As peças curtas corais que não haviam sido publicadas também foram editadas por mim (IGAYARA, 2001), além da Ave Maria, que foi publicada nos Estados Unidos da América pela Alliance Music Publishing.
Algumas das canções foram editadas com a supervisão e acompanhamento do próprio compositor, outras têm sido apresentadas a partir de manuscritos e cópias. Um álbum com edições críticas do conjunto e informações sobre os autores dos textos e dedicatários seria muito útil, trabalho a ser realizado.
O legado artístico de Henrique Oswald para o repertório vocal parece depender, nos dias de hoje, da união entre músicos que buscam a renovação repertorial, instituições devotadas à preservação da memória cultural e pesquisadores que desenvolvam projetos de pesquisa em Universidades. Não são obras com apelo comercial e correm sempre o risco do esquecimento ou desaparecimento, mas têm sobrevivido às dificuldades e parecem ter ainda muito a dizer ao mundo musical.

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS

Acervo Henrique Oswald: Partituras em manuscrito e editadas, correspondência, coleção de documentos. Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Acervo Furio Franceschini: correspondência, coleção de documentos. Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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