Herança e migração em A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy

September 2, 2017 | Autor: Agnes Rissardo | Categoria: Franz Kafka, Literatura Brasileira Contemporânea, Migração E Literatura
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Herança e migração em A chave de casa de Tatiana Salem Levy Jacques Fux* Agnes Rissardo**

Resumo Este artigo apresenta uma reflexão acerca da dicotomia mobilidade/imobilidade desenvolvida pela autora brasileira Tatiana Salem Levy no romance A chave de casa, tendo como pano de fundo o resgate da memória de sua família. Da migração dos avós judeus para o Rio de Janeiro, passando por seu nascimento no exílio até a viagem empreendida à Europa, autora e narradora se confundem nesta narrativa autoficcional em que o processo de busca pelas origens é a chave para a construção da própria identidade. Palavras-chave: Herança. Migração. Feminino. Kafka. A chave de casa.

Introdução Tatiana Salem Levy é tradutora, escritora e doutora em Estudos Literários pela PUC-Rio. Publicou o livro A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze, fruto de suas pesquisas de mestrado, e diversos contos em antologias e revistas literárias. Em sua tese de doutorado, escreveu seu primeiro romance A chave de casa. Esse livro foi o vencedor do prêmio São Paulo de Literatura em 2008 e finalista dos prêmios Jabuti e Zaffari & Bourbon, nesse mesmo ano. Sua família sempre esteve em constantes migrações. Seus avós, judeus da Turquia que possuem o rastro indelével do estrangeiro e da diáspora, emigraram para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Tatiana Levy, por sua vez, não nasceu no Brasil, apesar de ser filha de brasileiros. Devido ao exílio de seus pais durante a ditadura militar, nasceu em Lisboa e foi trazida para o Brasil aos nove meses de idade. Muitos anos depois, tomada por uma paralisia, resolve empreender uma viagem à Turquia e Portugal em busca de sua herança e de sua história. Esses fatos são descritos de uma forma não-linear em sua narrativa e podem, muitas vezes, ludibriar o leitor quando se pensa na possibilidade de uma autobiografia. Tal artifício foi bem observado por José Castello, que assim apresenta o livro: * **

Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e Docteur en Langue, littérature et civilisation françaises pela Université de Lille 3. Professor da PUC-MG. (E-mail: [email protected]). Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 25-38, jul./dez. 2011 Disponível em:

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O leitor abre as primeiras páginas de A chave de casa e logo supõe que o livro seja uma confissão. Os dados biográficos da narradora coincidem com seus dados biográficos, apresentados na orelha e no material de divulgação. A descrição que ela faz de si se repete em sua fotografia estampada na orelha do livro: olhos de azeitona, nariz comprido, boca pequena. E lá vai o leitor – lá fui eu – certo (ou desejando acreditar) que lia uma confissão. Mas logo essa certeza se estraçalhou. Já na página 18, a mãe, que estaria morta, fala. As certezas começam a se deslocar. A narrativa vacila. A narradora conserva nas mãos sua chave. Deverá tomar a sério o pedido do velho, de que volte para a Turquia e reabra seu passado? Será mesmo um pedido que ele lhe faz, ou só uma provocação, uma armadilha? (CASTELLO apud TARRICONE, 2011, p. 6).

Nem genuína autobiografia, nem puramente romance. A rasteira no leitor é provocada por um recurso que vem sendo utilizado por muitos autores brasileiros contemporâneos: a autoficção. Cunhado pelo francês Serge Doubrovsky, em 1977, para definir o seu livro Fils, o termo designa uma construção literária que, ao misturar a escrita do eu a um outro eu ficcional, produz um gênero híbrido que se situa entre a autobiografia e a ficção, entre a memória e a imaginação (FIGUEIREDO, 2007). Assim, ao trabalhar estrategicamente seu ímpeto autobiográfico pelo viés ficcional, Levy recorre ao que se convencionou chamar de autoficção. A história de A chave de casa é uma tentativa de encontrar e resgatar os caminhos de seus antepassados. Essa viagem seria uma busca pela própria identidade. A chave abriria e explicaria também todo o sofrimento de imigrantes brasileiros judeus que largaram suas vidas, seus amores e sua casa para enfrentarem um país e uma cultura desconhecidos. De acordo com o livro, a migração e a carga herdada são traumas que causam a imobilidade e o sofrimento da personagem. A literatura é uma tentativa de trabalhar essa dor, já que “a história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real. A incapacidade de simbolizar o choque determina a repetição e a constante ‘posterioridade’, ou seja, a volta après-coup da cena” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 49). A viagem da personagem é, portanto, uma tentativa de acabar com essa repetição enfrentando seus fantasmas, de acordo com Jacques Derrida. Voltando ao seu passado e às suas origens, ela deseja ser capaz de recomeçar e de sair de sua imobilidade. Mas, diante da impossibilidade de recuperar exatamente a história de seus antepassados, como em qualquer tipo de relato ou testemunho, Tatiana Levy recria e reinventa suas próprias veredas migratórias no romance. Assim prossegue Castello: A história da chave é uma forte provocação. Um homem abandona a casa, em Esmirna, na Turquia, e migra para o Brasil. Décadas depois, já velho, entrega a chave da casa, que nem sabe se existe mais, para uma neta. A moça, sua narradora, Tatiana, decide usar a chave para descer26

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rar a história do avô e, em consequência, a sua própria. Faz, sozinha, uma viagem de volta a Esmirna. É nesse retorno que avança. Ocorre que o passado, justamente por ser passado, não existe mais. Tudo o que lhe resta, então, é a chance de reconstruí-lo. Seu romance é essa reconstrução (CASTELLO apud TARRICONE, 2011, p. 6).

Como escreveu Leon Tolstoi, “canta tua aldeia e serás universal”, Levy canta e reacende em seu romance os processos migratórios judeus, o exílio na época da ditadura e o sentimento estrangeiro em relação ao seu país, amado e escolhido para se viver. Mas tudo, além de ser invenção ou autoficção, é também literatura, já que, de acordo com Derrida, “o testemunho tem sempre parte com a possibilidade ao menos da ficção, do perjúrio e da mentira. Eliminada essa possibilidade, nenhum testemunho será possível e, de todo modo, não terá o sentido de testemunho” (1998a, p. 28). O testemunho de sua personagem, que tenta expiar seu sofrimento, é um testemunho de dor, de limitação e de somatização em relação a um passado que herda e que deve aceitar. Seus ombros suportam todas as histórias de prazer e dor de seus antepassados (e elas pesam muito mais do que a mão de uma criança). Apesar de trabalhar temas já muito discutidos, Tatiana Levy provoca e reformula novas discussões e novas vozes de um testemunho migratório de segunda ordem. Assim escreve Jucimara Tarricone: Seu romance reascendeu a discussão da ficção atual ao compor um quadro em que “velhos temas”, como a busca da identidade, o conflito amoroso e político, a perseguição aos judeus, a viagem em busca da origem, o defrontar com a morte são compostos em camadas que provocam uma nova experiência de leitura, já que exigem do leitor um novo olhar interpretativo. Isto porque, ao criar diferentes vozes narrativas, amarradas por uma escritura fragmentada, dilatada pela memória, avessa a uma ordenação de tempo e de espaço, Tatiana Salem Levy concebe um texto, ou melhor, um mundo no e do texto causador de um estranhamento que só a investigação atenta possibilita adentrar (2011, p. 6).

Assim, apesar das muitas migrações de sua família, a verdadeira viagem, a única e possível viagem, é a viagem pela própria literatura, pela própria ficção e pela autoficção, diante das suas possibilidades, impossibilidades e de toda a sua arte. Castello ressalta que essa viagem pelo imaginário não está, necessariamente, ligada ao deslocamento físico: Você (ela) fez uma viagem para fora, ou para dentro? A literatura, isso eu sei, é uma viagem para dentro. Para escrever sua obra, Machado não precisou sair do Rio de Janeiro. Tornou-se assim, como disse Luciano Trigo, um ‘viajante imóvel’. Nenhum escritor precisa se mover para escrever. Não se trata de mover-se, mas de abalar-se. Agitar-se diante da força das palavras (apud TARRICONE, 2011, p. 6). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 25-38, jul./dez. 2011 Disponível em:

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A obra é, portanto, a viagem e o testemunho de uma personagem em busca de suas origens e de sua herança indelével. É, no entanto, a partir dessa viagem para fora que tem início a “viagem para dentro” mencionada por Castello, em que mobilidade e imobilidade se alternam e se complementam para darem sentido ao passado e ao presente da narradora.

1 O corpo migratório, Kafka e a herança A protagonista de A chave de casa é acometida de uma paralisia e de um sofrimento somatizado em seu corpo. A chave dessa dor seria a carga do seu passado, de sua herança, da diáspora e da migração que a personagem deve suportar. A narradora pode ser relacionada a alguns personagens presentes em Franz Kafka e Samuel Rawet que também somatizam esses mesmos processos migratórios em seus próprios corpos. Como assinala Levy (2011), “Samuel Rawet e Franz Kafka constroem personagens cujos corpos apresentam curvaturas, doenças, pesos, estranhezas que de alguma maneira falam de um passado ou uma herança”. A dor, o sofrimento, o peso e a imobilidade são questões levantadas pelo livro e que motivaram a autora a escrevê-lo. Segundo ela própria diz: Na verdade, tudo começou com uma experiência pessoal de doença que, se não paralisou de fato meu corpo, sem dúvida me deixou paralisada. Foram meses sem conseguir sair da cama, o pescoço rígido, os ombros feito pedra e uma insônia sem fim. Em meio a médicos, remédios e, sobretudo, nomes nunca ouvidos, dei início a uma busca do sentido, uma busca de meus próprios nomes. Afinal, o que significa ser neta de quatro imigrantes, fazer parte de uma família que ao longo dos séculos – ao que se sabe desde o XVII – teve de deixar sua terra natal inúmeras vezes e procurar em terra estranha algum acolhimento possível? Ou ainda: o que significa crescer entre lembranças de viagens e não conseguir sair do lugar? Fechada em casa, eu diria até mesmo na minha casa assombrada, vasculhei meu arquivo doméstico. Fotos, cartas, diários. Em Esmirna, Lisboa, Florença, Paris, Istambul, Rio de Janeiro. Pessoas às vezes estranhas, casas desconhecidas, papel descolorado, lugares que nunca vi. Eventualmente, alguma anotação no reverso da fotografia: “vovô na Turquia”; “mamãe na ótica”. Sempre alguém em algum lugar, mas raramente alguém em casa. Quase nenhuma foto no interior. O que mais me chamou a atenção foi o relato de uma prima-avó, escrito a mão, em que ela conta a história da família na Turquia, a viagem para o Brasil e o estabelecimento no novo país. Não cheguei a conhecer praticamente nenhuma das pessoas citadas, mas enquanto lia o texto tinha a sensação de que estavam todos vivos em mim, como se nos conhecêssemos há longo tempo. Então, ficou claro que era esse o caminho que eu precisava seguir, que, antes de mais nada, eu precisava dialogar com meus antepassados, com os fantasmas que rondavam a casa (LEVY, 2011). 28

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Para Derrida (1994, p. 11), “é preciso falar do fantasma até mesmo ao fantasma e com ele”. Assim, é preciso falar do passado, dos processos migratórios e da herança para tentar enfrentar e superar esses fantasmas. A narradora de A chave de casa faz isso muito bem. No começo da trama, ela descreve sua paralisia e imobilidade diante desses fantasmas: Com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre meu dorso. Por mais estranho que possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. Não falo de aparência física, mas de um peso que carrego nas costas, um peso que me endurece os ombros e me torce o pescoço, que me deixa dias a fio – às vezes um, dois meses – com a cabeça no mesmo lugar. Um peso que não é de todo meu, pois já nasci com ele. Como se toda vez em que digo “eu” estivesse dizendo “nós”. Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse sopro que me segue desde o primeiro dia. Um sopro que me paralisa. Uma espécie de fardo. Pesado. Mais do que isso: bruto, acimentado, capaz de me tirar todas as possibilidades de movimento (LEVY, 2008, p. 9).

O fantasma deve ser combatido. O tempo não é remédio para expiar o passado e esse conflito já fica bem claro no início da obra (e da tese) quando a autora utiliza uma epígrafe de Emily Dickinson: Dizem que o tempo ameniza. Isto é faltar com a verdade. Dor real se fortalece Como os músculos, com a idade. É um teste no sofrimento Mas não o debelaria. Se o tempo fosse remédio Nenhum mal existiria. (DICKINSON apud LEVY, 2008, p. 7)

Assim caminha a narrativa, como um enfrentamento que busca combater a paralisia e as chagas do corpo. No fim da trama, a personagem mata metaforicamente um de seus maiores fantasmas com o intuito de seguir vivendo e de romper o luto: Em seguida, peguei a faca que havida buscado na cozinha e, segurando-a com as duas mãos, atravessei seu ventre. Senti o metal rasgando sua pele macia, perfurando a carne, o estômago. Senti o metal roçando os ossos da sua costela, e então larguei a faca. [...] No centro do seu corpo, a faca com a qual eu rasgara a sua pele. No centro do seu corpo, o seu corpo era vermelho, o lenço era vermelho. E era esse vermelho que me reforçava a certeza, que me garantia não haver outro final possível para a nossa história (LEVY, 2008, p. 202). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 25-38, jul./dez. 2011 Disponível em:

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Como já dito, a narrativa apresenta diferentes vozes em diferentes épocas. Uma das vozes que mais nos chama a atenção é a da mãe da personagem que está morta. Aqui o romance dialoga com Kafka em Carta ao pai. Tanto em Kafka quanto em A chave de casa, a herança está sempre presente, e os personagens escolhem a influência do pai (no casa de Kafka) e da mãe (no caso de Levy) para direcionar suas vidas. Assim escreve Kafka: “nem eu era livre nem, no melhor dos casos, ainda não o era. Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de você; só que ela, apesar de imposta por você, corria na direção definida por mim” (1997, p. 52). A ficção em Kafka recria o pai e o coloca como personagem central de seu livro. Já em A chave de casa é a mãe, a mulher, que se coloca como interlocutora. É com a mãe que a personagem se relaciona em uma das muitas vozes presentes na narrativa. Levy supõe que essa carga e essa história são herdadas de sua mãe, apesar de questionar tal peso literário e histórico. “Dispor de um conceito antecipadamente, ter segurança do percurso da fala e da escrita, é supor uma herança fechada, definida, como se o que herdamos fosse um objeto pronto e estabelecido (como é, em certa medida, o caso da herança material). No entanto, a verdade é que mal sabemos o que herdamos” (LEVY, 2011, p. 3). Logo, se é necessário “saber herdar sem herdar, de reinventar o pai e a mãe” (DERRIDA, 1998b, p. 75), Kafka e Levy reinventaram suas origens e suas dores por intermédio da literatura. A relação de Levy com seu corpo migratório é o mesmo sentimento estrangeiro que muitos sentem em um país e uma cultura aos quais não pertencem. Assim escreve Imre Kertész (2004, p.86) sobre essa condição: O que pode fazer neste ponto o escritor? Escrever e procurar não se importar com a utilidade da obra. É natural que ele se encontre num profundo conflito com o país que o rodeia. Mas pode ser diferente? O lugar acanhado onde passamos nossos dias não é um símbolo de todos os lugares, do mundo, da própria vida? Aqui, nesta terra, talvez eu ainda possa conquistar o direito, ao menos, de conservar minha condição de estrangeiro. Pátria, terra natal, país? – talvez se possa falar de tudo isso também de um modo diferente, ou não falar mais de modo algum. É possível que os homens de repente se deem conta de que estes são todos conceitos abstratos, e que aquilo de que de fato precisam na vida não passa de um lugar habitável. Um lugar assim talvez valesse todos os esforços. Mas esta já é uma questão para o futuro, ou melhor, do meu ponto de vista, utópica. “Wer jetzt kein Haus hat, baut sich keines mehr” – “Quem hoje não tem casa não a constrói mais” –, ouve-se um verso de Rilke. Às vezes sinto que ele o escreveu para mim.

Levy, Kertész e Kafka são judeus que chegaram a países culturalmente e historicamente muito diferentes. Além disso, o judeu, por definição, sempre viveu na diáspora e por isso possui a carga cultural das constantes migrações. Tal herança é bem exposta na obra de Levy quando 30

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a autora trabalha com a dicotomia imobilidade/mobilidade. A sua imobilidade seria a carga de sofrimento herdada. Já a sua mobilidade refletiria a vontade e a tentativa de combater os fantasmas e as migrações do passado, enfrentar e tornar-se novamente errante. Assim é a relação da personagem de Levy no Brasil, seu próprio país. Um paralelo pode ser traçado com a posição de Kertész em relação ao seu país: Para falar agora sem rodeios e com clareza sobre o “meu próprio país”: existe um país, onde nasci, em cuja belíssima língua eu falo, leio, e escrevo meus livros; porém, esse país nunca foi meu, eu é que pertenci a ele, e durante quatro décadas ele foi muito mais minha prisão que minha morada. Se quisesse designar o colosso pelo seu verdadeiro nome, com a forma como sempre me vi diante desse país, eu o chamaria de Estado. O Estado, entretanto, nunca pode ser nosso (2004, p. 81).

Levy nasceu em Lisboa, mas fala e escreve em brasileiro. O lugar da literatura de Levy, Kertész e Kafka comporta certo grau de desterritorialização e de “estrangeiridade”. Como relata a própria narradora: “Nasci no exílio: e por isso sou assim: sem pátria, sem nome. Por isso sou sólida, áspera, bruta. Nasci longe de mim, fora da minha terra – mas, afinal, quem sou eu? Que terra é a minha?” (LEVY, 2008, p. 25). Jeanne Marie Gagnebin, analisando Walter Benjamim, escreve que o trabalho literário de Kafka habita “o terreno solapado de uma tradição morta e de uma identidade em migalhas” (1994, p. 75), que pode muito bem se relacionar ao trabalho e às teorias apresentadas no livro de Levy. Em A chave de casa há uma herança estrangeira e uma desterritorialização somatizadas no corpo da personagem. Ela se move (e permanece imóvel) com o intuito de carregar e suportar esse passado que não é dela: Deitada na cama, entre insônias e fantasmas, comecei a entender que havia gravada em meu corpo a lembrança de acontecimentos dos quais sou herdeira, mesmo se eles se deram antes de mim. Porque não há antes que não seja também agora. A memória da experiência de gerações anteriores estava presente em mim mesma, no meu corpo, fazendo dele uma espécie de bloco de cimento, tão duro que eu mal conseguia carregá-lo (LEVY, 2011, p. 4).

Se até o corpo passa a ser incerto, como bem escreveu Kafka (1997, p. 54) – era natural que até a coisa mais próxima, o próprio corpo, se tornasse incerto para mim; cresci e espichei para cima, mas não sabia o que fazer com isso, o fardo era pesado demais, a coluna ficou encurvada; mal ousava me mover, menos ainda fazer exercícios, e permaneci fraco –,

o que se pode dizer da herança migratória? Há, portanto, uma imobilidade fundamentada e bem construída em Levy. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 25-38, jul./dez. 2011 Disponível em:

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Entrar no livro de Levy é revisitar Kafka. O que escreve Gilles Deleuze e Félix Guattari (2002, p. 19) sobre Kafka pode muito bem ser aplicado a Levy: Como é que se entra na obra de Kafka? É um rizoma, uma toca, esta obra. [...] Donde, entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio, mesmo se é quase um beco, uma ruela ou em curva e contracurva, etc. Poder-se-á apenas procurar com que pontos se liga aquele por onde se entrar, por que cruzamentos e galerias se passa para ligar dois pontos, qual é o mapa do rizoma e como é que este, de repente, se modifica se se entrar por qualquer ponto. O princípio das entradas múltiplas só impede a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar uma obra que, de facto, só propõe a experimentação.

Assim Levy cria seus precursores e eles são os mesmos precursores de Kafka. Discutir processos migratórios em Kafka ou em Kertész é também discutir A chave de casa.

2 A força dos personagens femininos Mesmo que aparentemente recuse um binarismo universal entre o masculino e o feminino, Levy constrói uma narrativa na qual os personagens femininos são bem mais trabalhados e profundos do que os masculinos. A voz principal de sua narrativa é a de uma mulher (ela?) em busca de suas origens e de sua história. Porém, outras mulheres são também muito importantes na trama: sua mãe, sua tia-avó e a ex-namorada de seu avô. O avô fugira da Turquia com o falso motivo de escapar do exército e de tentar a sorte em outro país. Segundo a narradora, “vida melhor sempre se pode conseguir onde está, mas fugir, não; para isso é preciso pegar um navio, ir bem longe, principalmente se for de um grande amor, impossível de tão grande, como era o seu” (LEVY, 2008, p. 35). Era costume na época que a família escolhesse com quem se casaria sua filha. O avô da personagem havia se apaixonado por uma mulher que não poderia ter. Rosa era filha do dono da loja em que ele trabalhava e o pai da moça não aprovava o romance, escolhendo outro marido para ela. Não suportando tamanha dor, o avô da personagem decide fugir. Durante sua estada no Brasil, o avô recebia notícias periódicas de sua família e também de Rosa, por intermédio de sua irmã. Até que um dia soube, por uma carta, que Rosa não aceitara a decisão imposta pelo destino e resolvera se matar: 32

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Você se lembra de Rosa, filha do seu antigo patrão da sapataria? Pois é, parece que andava apaixonada por um rapaz que o pai não aprovava. Inventaram-lhe um casamento arranjado, às pressas, pois o pai tinha medo de que ela fugisse com outro. Ela, por sua vez, não aceitava a decisão da família, não queria outro homem senão aquele que amava. Mas você conhece os procedimentos da nossa comunidade, Rosa nada podia contra a decisão paterna. Sabe qual foi a maneira que encontrou para não ficar em silêncio, meu irmão? [...] Com uma pedra amarrada ao pé, ela se atirou no poço da praça. Matou-se, meu irmão (LEVY, 2008, p. 53).

Decisão forte, sobretudo, em uma cultura que não aceita o luto em caso de suicídio: “A família proibiu o luto” (p. 53). O avô é tomado por um sofrimento enorme e se prostra na cama (como faria anos depois a personagem central do livro). A dor é somatizada no corpo. “Seu corpo paralisou, não conseguia se mexer, o coração querendo atravessar a garganta, o medo da resposta tomando conta do corpo petrificado. [...] Ele tremeu, sentiu o estômago revirar, as pernas incapazes de lhe sustentar o corpo, a dor” (p. 53). A irmã, por sua vez, desejava se casar por amor. Após enfrentar bravamente a imposição da família, encontra um amor com quem decide se casar. Porém, a dor sempre ronda o romance. A irmã de seu avô contrai tuberculose e acaba morrendo. Amor e morte, prazer e dor estão sempre polarizados ao longo dos capítulos. Mas a relação da personagem central com sua mãe é a mais importante do romance. A ligação entre as duas, o amor e o sofrimento são muito bem construídos e trabalhados. O luto e a história das migrações são percebidos no corpo: Conto (crio) essa história dos meus antepassados, essa história das migrações e suas perdas, essa história da chave de casa, da esperança de retornar ao lugar de onde eles saíram, mas nós duas (só nós duas) sabemos ser outro o motivo da minha paralisia. Conto (crio) essa história para dar algum sentido à imobilidade, para dar resposta ao mundo e, de alguma forma, a mim mesma, mas nós duas (só nós duas) conhecemos a verdade. [...] Fui perdendo a mobilidade depois que você se foi. Depois que conheci a morte e ela me encarou com seus olhos de perda. Foi a morte (a sua) que me tirou, um a um, os movimentos do corpo (LEVY, 2008, p. 62).

A mãe, apesar de não participar efetivamente da luta contra a ditadura, casou-se com um grande militante: Humberto estava entre os líderes e era procurado, vivo ou morto. Mas, novamente, a dor se apresenta no corpo, principalmente no das mulheres. Sua mãe é presa pela ditadura e sofre inúmeras torturas. Delicada e sensível, é sempre capaz de enfrentar a vida e encontrar o lado feliz e gratificante. Tais características são sempre mostradas por meio da dicotomia construída por Levy ao apresentar os questionamentos de dor e sofrimento de sua personagem central em relação aos sentimentos positivos e alegres de sua mãe morta. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 25-38, jul./dez. 2011 Disponível em:

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Mas, talvez, a relação mais forte que se apresenta no romance seja aquela estabelecida entre a narradora e seu amante. Levy desenvolve com maestria as relações de prazer e dor que o amor e o sexo podem construir. Além disso, a autora expõe uma tensão entre estranhamento e preenchimento que o homem poderia representar para a mulher. A personagem se coloca em uma posição de submissão em relação ao prazer e à dor que o amante lhe proporciona. Repleta de cenas de sexo, delicadamente descritas, a narrativa de Levy mostra a evolução da paixão, do prazer e da dor vivenciados pela personagem. A mulher, aqui, é devastada pelo amor, arrebatada por uma paixão, deslumbrada tanto pelo prazer quanto pela dor. Inicialmente a relação é somente prazerosa, o que é evidenciado em muitas cenas sensuais: Foi você quem se levantou e pôs-se também a tirar a roupa. Quando afrouxou o cinto, senti meu sexo esquentar, as mãos cheias de desejo de tocá-lo por dentro da calça. Você tirou a camisa por último, logo após a meia. Seu sexo estava duro, de pé, e eu gostava de olhá-lo assim, como se ele também me olhasse. [...] Você ainda me olhava, cada vez com mais vontade, e seu olhar me tocava da mesma maneira que seu corpo nu separado do meu. Ficamos distantes um do outro durante algum tempo, até o momento em que nossos sexos quentes já não puderam suportar a solidão, até o momento em que os nossos sexos quentes exigiram a presença de nossas mãos, de nossas bocas e de nossos sexos quentes (LEVY, 2008, p. 61).

Mas uma relação tão carnal e tão profunda só poderia levar ao sofrimento. Em uma das cenas mais duras do livro, Levy mostra o desencontro, a profanação e a violação vividos por sua personagem. Seu segredo, o segredo do corpo em dor, de uma das muitas dores, é revelado: Preciso falar com você, eu disse. [...] Segurei a sua mão e comecei a discorrer, num rompante, tudo o que havia planejado e decorado fazia mais de uma semana. Falava sem pausas, sem lhe deixar qualquer brecha para me interromper. Você sabe o quanto eu te amo o quanto você é importante para mim tudo o que me ensinou tudo o que aprendi com você você sabe bem que me apaixonei desde o primeiro instante que seu olhar me capturou você sabe melhor que ninguém que nenhum homem antes havia me dado tanto prazer [...] você também deve pensar como eu que apesar de todo o amor que sentimos um pelo outro infelizmente não dá mais nunca conseguiremos ser felizes talvez porque o nosso amor seja grande demais [...] você também quer a separação assim como eu você também deve achar que precisamos nos afastar para dar uma chance a nós mesmos para cicatrizar as feridas e sermos felizes ainda que distantes um do outro ainda que impossibilitados de viver o nosso amor. Você me mostrou um sorriso sarcástico. [...] Você não disse uma palavra sequer. Simplesmente arrancou a minha blusa e me empurrou com força no sofá, obrigando-me a esticar o corpo. Arrancou-me a calcinha com movimentos bruscos e penetrou imediatamente seu dedo no meu sexo seco. 34

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No meu rosto, apenas terror. No meu corpo, a impossibilidade de movimento. Abaixou o short e ali mesmo, naquele sofá onde outras vezes nos amamos, deitou-se em cima de mim. [...] Tinha o sexo áspero, e nem sua saliva era capaz de umedecê-lo Você se rejubilava com a minha dor. Você me perguntou: então, não é bom? Não, respondi. [...] Então, como que para calar a minha resposta, você saiu de dentro de mim e me penetrou a boca com uma violência ríspida, eu quase sem conseguir respirar. Você me penetrou a boca até gozar e só retirou seu sexo quanto teve a confirmação de que eu já havia engolido tudo. Depois me segurou o rosto com força e, com olhar transbordando ironia, afirmou: está vendo como podemos ser felizes juntos? (LEVY, 2008, p. 197-198).

A função fálica aqui descrita pode muito bem se relacionar com o que escreve Ruth Silviano Brandão em Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura: Fálica enquanto aquilo que sutura a falta, de forma ilusória, enquanto impede que o narcisismo seja ferido. O falo é aquilo que está no lugar de uma falta, assim ele é um símbolo, e não coisa, não coincidindo com pênis. Se a mulher aceita ser a ilusão da completude alheia, ela aceita um lugar que a imobiliza e mumifica, lugar da morte, enquanto impossibilidade de seguir o trajeto metonímico do seu próprio desejo (2009, p. 24).

Assim, ao aceitar ser a ilusão da completude do homem, a personagem se torna imóvel, mumificada. “No meu rosto, apenas terror. No meu corpo, a impossibilidade de movimento” (LEVY, 2008, p. 197). Tal imobilidade já não é provocada pelas dores herdadas, mas pela submissão da narradora ao narcisismo do amante.

Considerações finais Embora construída por várias vozes que formam uma narrativa não linear, A chave de casa se sustenta em uma espinha dorsal bastante nítida: a dicotomia mobilidade/imobilidade. No primeiro caso, incluem-se os movimentos migratórios apresentados pela trama em diferentes passagens e que, após uma reorganização das “peças” soltas ao longo dos capítulos, compõem uma trajetória familiar. A diáspora dos antepassados judeus da protagonista; a vinda de seu avô da Turquia para o Brasil; a ida de seus pais para o exílio em Portugal e o posterior retorno deles, com a filha recém-nascida nos braços, para o Rio de Janeiro; e, enfim, a viagem dela, já adulta, à Europa, em busca de suas origens, representam a faceta dinâmica da narrativa. Os movimentos podem ser relacionados à própria ideia de vida, em constante impermanência. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 25-38, jul./dez. 2011 Disponível em:

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Entretanto, como que em reação a tantas mobilidades, os personagens são igualmente acometidos pela imobilidade. A outra face da moeda é marcada por toda sorte de impedimentos e refreamentos, que vão desde circunstâncias explícitas, como a doença que paralisa a autora/ narradora em uma cama, a expedientes mais subjetivos, como a submissão da personagem ao amante. Em outras passagens, é a morte, situação extrema de imobilidade, que chega para refrear os impulsos dos personagens. Mobilidade/imobilidade, impulso/refreamento, passado/presente, prazer/dor, vida/morte. Todas essas dicotomias, presentes no cotidiano das sociedades modernas, perpassam o romance de Levy, mas escapam da banalidade pela forma não-linear e fragmentária com que são trabalhadas na narrativa: ora elas se apresentam em polaridades, ora se misturam e se entrecruzam pela própria característica contraditória da vida e do ser humano. Nesse percurso, desvios são descobertos. Um corpo involuntariamente imóvel não pode, com suas forças exclusivamente, migrar para outros países e empreender in loco uma investigação de suas origens. Uma saída possível é reconstruir o passado com os vestígios deixados pela família: velhas fotografias, cartas e diários desvelam rostos, casas e lugares nunca vistos; e dialogam com lembranças vivas e suposições da personagem para comporem um quadro imaginário. Tão logo se vê em condições de andar novamente, a personagem decide cumprir a promessa feita ao avô e parte com espírito investigativo para a Europa. Não obstante, a empreitada se revela uma ilusão: o tempo é outro, os lugares se modificaram, as pessoas morreram. O imaginário é, assim, o fiel da balança entre a mobilidade e a imobilidade no romance de Levy. Somente por intermédio de um híbrido entre memória, imaginação e realidade é possível viajar no tempo e no espaço para reconstruir de fato e por inteiro a nossa ancestralidade. Ao reinventar suas raízes, a narradora abraça e rompe, simultaneamente, com a sua herança e se descobre permanentemente estrangeira. Assim, as portas do passado e da “casa”, aqui uma metáfora da própria identidade da narradora, só podem ser abertas não pela simples mobilidade, mas pela chave do nomadismo intelectual. Recebido em outubro de 2011. Aprovado em novembro de 2011.

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Heritage and migration in A chave de casa by Tatiana Salem Levy Abstract This article presents an analysis of the mobility / immobility dichotomy developed by the Brazilian author Tatiana Salem Levy in her novel A chave de casa, while trying to rescue the memory of her family. From the migration of her Jewish grandparents to Rio de Janeiro, passing by her birth in exile and to the trip taken to Europe, author and narrator are merged in this auto-fictional narrative in which the process of search for origins is the key to the construction of her own identity. Keywords: Heritage. Migration. Feminine. Kafka. A chave de casa.

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