Heranças da prática filológica para a crítica literária

May 20, 2017 | Autor: Matheus de Brito | Categoria: Philology, Literary Theory, Literary studies
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Heranças da prática filológica para a crítica literária Matheus de Brito Universidade de Coimbra / Unicamp Resumo: Frequentes têm sido as injunções de "retorno à Filologia" nos estudos literários, que não raro tomam "filologia" como comportamento geral, negando seu caráter disciplinar. Nosso trabalho repensará essas injunções, enfatizando heranças específicas à prática filológica de inquestionável valor para a crítica literária.

Embora a filologia se proponha como disciplina, portanto como conjunto de métodos, e com o rigor que lhes é próprio para a execução de um propósito, é precisamente seu caráter disciplinar que lhe aproxima muito mais ao objeto que tem em vista do que algumas das correntes teorias da literatura, cuja sobreposição conceitual atinge uma absurda desproporção em relação aos seus propósitos cognitivos. A virtude disciplinar da filologia é não tomar seu objeto como uma pura questão de representação, solúvel na interpretação ou pronto a consumir na leitura, mas concebê-lo à partida como algo de estranho, dotado de características e deficiências próprias. Sua disciplina parece envolver uma atenção aos próprios vícios e isso lhe confere uma valia epistemológica que pouco a pouco desaparece do discurso dito teórico. A filologia pode oferecer um conjunto modelar de práticas a partir do qual decalcar a investigação e a crítica literária, na medida em que não se deixa limitar por filosofemas atinentes à relação entre linguagem e mundo. Essa ideia de que o impulso disciplinar filológico partilha de um momento mais afim ao objeto do que o entusiasmo contemporâneo pela literatura é uma reivindicação antiga, primeiro orientada contra a crítica literária do pós-guerra na vibe estruturalista (CARVALHO, 1973), então reabsorvida pela desconstrução demaniana (DE MAN, 1986) como seu impulso primário, mais logo advogada como repositório para um discurso crítico democrático (SAID, 2004)1. Não tendo que fazer a esses comentários, propomos pensar em como a revogação de uma certa ideia de “texto literário” e a reivindicação de práticas filológicas modelares pode cooperar com a correção de um quadro intelectual cujos propósitos cognitivos são tanto mais autorreferenciais quanto mais imprecisos. Segismundo Spina, em sua Introdução à Edótica (1977, p. 75 ss.), fala em três funções disciplinares: substantiva, adjetiva e transcendente. Um modelo disciplinar poder surgir daí.

Uma crítica desses retornos está em “Roots, Races and the Return to Philology” (HARPHAM, 2009). Duas são as referências importantes nessa matéria em sua versão mais recente: uma obra de Hans Gumbrecht (The Powers of Philology, 2002), que enfatiza o apelo estético dessas práticas, e outra, de Suman Gupta (Philology and Global English Studies, 2015), abordando questões disciplinares. 1

1. Podemos começar pelo que Spina chamou função substantiva. Enquanto a ecdótica ocupase da preparação do texto ora para dar-lhe uma edição definitiva (ou interpretativa) ora para dar-lhe uma edição crítica acompanhada do aparato, que permita o estudo pelo confronto de variantes textuais, a investida filológica consiste numa dupla hélice de protocolos e princípios que visam a restituição integral da condição textual2. Com isso cooperam as recomendações de que o filólogo permaneça junto às situações mais complicadas (lectior difficilior), de que se familiarize com o estilo autoral (usus scribendi) e de que não aplique critérios que não se pautem na relação imediata com a obra. Essa doutrina de submissão do sujeito ao objeto é ainda o catecismo das Letras. No entanto, é preciso chamar atenção para o lugar que a leitura ocupa em relação ao texto: da mesma forma a edição definitiva dá cabo das demais cópias ao aprender suas lições, a interpretação ideal põe fim à leitura ao descortinar os sentidos textuais. Em vez disso, seria preferível focar naquilo que precede e orienta essa função substantiva da disciplina filológica, a saber, numa experiência cognitiva a partir da qual refletir sobre a nossa própria relação à coisa. Essa é a primeira recomendação: intuir a cada vez as ferramentas necessárias para pensar no que se tem de fazer para restituir o texto, e não a aplicação instrumental de categorias com vistas a extração do sentido textual. Aquilo que Spina entende por substantivo talvez fosse melhor entender como isso, restituição. É também um pouco nesse sentido que Paul de Man falava num retorno à filologia. Na prática acadêmica, baseada na produção de textos sobre textos, acredito que a forma que um tal comportamento adquire é a do ensaísmo como o concebia Theodor Adorno (ADORNO, 2003): cognitivamente empenhado mas nunca fiado sobre o caráter autoevidente do seu objeto, ou do seu método, ou dos resultados. Não está seguro da semiose, do funcionamento do texto, mas se apega àquele instante em que o contato com a obra literária provocou, fez surgir algo tão diferente do que estava antes, uma mudança de coordenadas do próprio repertório cognitivo. O pressuposto dessa concepção é a força perlocucionária de qualquer artefato cultural, mesmo quando não está a linguagem em jogo, mesmo quando o objeto da ação sumiu. Nós chegamos à conclusão, mas precisamos restituir a premissa. 2

Ao menos na pegada de Karl Lachmann. De um lado, estão os protocolos de recensio e collatio (levantamento das fontes e postulação de um arquétipo), emendatio (a tentativa de reconstruir o original) e originem detegere (produzir uma genealogia e uma história da transmissão). Do outro, os princípios que orientam o juízo do filólogo durante as etapas, como os critérios internos de lectio difficilior (dar preferência à “lição mais complicada,” uma vez que o copista poderia “editar” o texto de modo a torná-lo mais legível) e usus scribendi (familiarização com o “estilo” autoral), além dos critérios “externos” de recentiores non deteriores (“os mais recentes não são piores,” portanto a datação não é critério), eliminatio codicum descriptorum e eliminatio lectionum singularium (eliminar os que por uma razão ou outra não contribuem com o estabelecimento do texto) (SPINA, 1977, p. 66 ss.). Porém, é realmente questionável se o produto final de todas essas boas intenções é dotado de uma legitimidade per se; o que interessa é pensar o comportamento engendrado por essas práticas, não seus resultados.

2. Isso nos leva àquilo que Spina chama de função adjetiva. A função adjetiva implica a produção de explicações, de comentários, sobre o estado do objeto e os procedimentos adotados. A prática do comentário filológico não é, por regra, uma espécie de explicação autônoma de um texto “em geral” ou que saliente este ou outro seu aspecto em conformidade com um recorte prévio. Ao mesmo tempo, embora não se faça essa ideia monolítica do objeto, é preciso resistir ao entusiasmo fácil. A não-exaustão da obra em “verdades interpretativas” deveria ser um horizonte normativo, mas nunca um pressuposto da interpretação. É preciso esclarecer: pressupor a multiplicidade de sentidos de uma obra, como quando se concebe que literatura é condensação semiótica, e então “escavar” o sentido é de uma sofrível petição de princípio. Não se trata de propor uma ou um conjunto de predicações. A função adjetiva implica o seguinte: uma forma de lidar com a obra que não se autonomiza do que é comentado, não lhe parcela, mas segue após ela momento a momento. Um exemplo corriqueiro dessa proximidade está nas referências e nos comentários bíblicos, sejam volumes à parte ou na forma interlinear. Eles não consistem num todo “argumentativo.” Pode-se objetar que qualquer enunciado é argumentativo, mesmo indiretamente. Essa impressão se pauta numa fratura ética que é legítima quando pensamos no todo social, mas que é uma ferida discursiva nas humanidades, na medida em que nos impede de desenvolver uma ética de pesquisa para além do diktat do currículo. Na ética do comentário qualquer argumento deriva e reconduz ao objeto, associada à investigação prática daquela premissa ocluída, da coisa estranha que é preciso encontrar para restituí-lo. Na prática do comentário adjetivo, é preciso pensar ainda que, sendo a produção de um texto uma forma de reconstruir a experiência desencadeada pela obra, o que se quer é intensificar a possível experiência de leitura daquele a quem se dirige. É o que por vezes se associa a uma pedagogia dêitica. O protótipo não-literário para isso está talvez nos paratextos, como as notas – ou Companions – que acompanham obras de acesso relativamente difícil aos leitores contemporâneos devido à disjunção temporal e variação linguística, e as orelhas de livros, prefácios e posfácios. Todos se afastam do fluxo textual inicial e lhe perspectivam, sem lhes sobrepor, e muitas vezes questionam-lhe; essa moldura leva sempre o leitor a questões sobre a validade ou da coisa atacada ou do próprio ataque, ou do atacante. Existe uma cadeia conflituosa que aparece assim. Quando nós dizemos que um autor tal precisa ser lido ou que um outro é menor, por exemplo, o juízo de valor já incide sobre o teor perlocucionário e não sobre a estrutura duma obra. O adjetivo só qualificaria esse teor, engajando o leitor à discussão. Quanto à disciplina, essa é mais diretamente ligada à atividade acadêmica. Hoje nós elogiamos a interdisciplinaridade, como se isso fosse uma virtude. De fato é, quando lembramos

da fragilidade que certa pretensão de ciência imprimiu sobre a humanística. O comentário filológico tradicional pressupõe o vasto estudo das dimensões implicadas no objeto – a história, a linguística, a retórica, a poética e a própria filologia material como método numa autorreferência corretiva (SPINA, 1977, p. 75 et passim). Não é de hoje que os humanistas advogam a naturalização da cultura, no sentido de que seu conjunto de coordenadas não se limita a referências atomizadas, mas constrói o humano. É uma espécie de espontaneidade de segunda ordem3, uma liberdade para responder ao objeto como ele parece solicitar, em vez do desespero por utilizar um catálogo de referências, reivindicar categorias supremas, etc. Se é verdadeiro o lugar comum de que uma larga experiência e honesto estudo cooperam com nossa sensibilidade para particulares, intensificam nossa resposta e ampliam nossa capacidade discursiva, a parafernália conceitual a que nos habituamos não assegura minimamente da possibilidade dessa experiência, nem da crítica. Muitas vezes o processo de semiculturação que a Universidade engendra, sobretudo como resultado da profissionalização dos curricula, acaba por bloquear a capacidade produtiva que se espera desse mesmo conhecimento, senão mesmo lhe reduz ao círculo já demasiado viciado de suas referências. É tudo meio inorgânico, soa bastante sem tato. A especialização do saber sem a necessária complexificação estrutural das faculdades cognitivas, que tornaria esse saber comensurável com a experiência, gera muitos fãs, muitas torcidas, muitos correligionários – mas nenhuma autocrítica. É essa incapacidade crítica que, paradoxalmente, parece se exprimir e se prolongar em muitas reivindicações teóricas. A engrenagem precisa de óleo. 3. A questão, voltando à filologia, se prolonga no que Spina chama de função transcendente. Por transcendente, ele indica a condição em que um texto deixa de ser objeto de estudo para tornar-se instrumento “que permite ao filólogo reconstituir a vida espiritual de um povo (...) em determinada época” (SPINA, 1977, p. 77). Se essa verticalidade histórica foi banida pela Teoria Literária – e.g. quando pensamos em literatura como algo que abarca Shakespeare e Camões –, ela ainda parece ser o mais próximo de uma “certeza” nos estudos literários. Mas a ancoragem histórica, apesar da historiografia ter minguado bastante depois da injeção semiótica no nosso catálogo de referência, já tem seu lugar disciplinar seguro.

A matriz romântica da teoria crítica tinha para isso a expressão “afinidade mimética”. Mimese seria uma faculdade espontânea anterior à consciência de que o sujeito é isso-aqui e o objeto é aquilo-ali, mais ou menos o caráter difuso da intuição. Dado que o sujeito não pode muito simplesmente “retornar” à mimese, a afinidade seria o agens da atividade do sujeito, o princípio conforme o qual o sujeito não apenas “responderá” de modo espontâneo à solicitação do objeto, mas também conforme o qual, num segundo momento, ele atuará racionalmente em torno da coisa se decidir transformar sua experiência numa forma de referência. 3

Poderíamos ousar, pontualmente, dizer mais: quantos sentidos uma obra comporta depende da parafernália interpretativa adotada, mas ainda assim é possível perspectivar essa como sendo uma função transcendente. Afinal, ela “reconstrói” uma certa vida espiritual. Nalguns sentidos, porém, para pior: para pior quando se limita a reconstruir o seu presente imediato às custas do objeto, num narcisismo com ares de escolástica. Jerome McGann, que editou a obra completa de Byron e o arquivo do poeta Dante Gabriel Rossetti, costuma usar uma expressão romântica, desse último poeta, para explicar seu método crítico. McGann diz que devemos ocupar um ponto de apoio interior. Mas interior, como? Não com a pretensão de que nós possamos penetrar o espírito de um povo, mas muito mais humildemente, com a compreensão do presente histórico perspectivado desde a obra, considerando a parcialidade com que nós conhecemos a sua e a nossa história. Essa parece ser a melhor figura para aquilo que a hermenêutica gadameriana chamava de “fusão de horizontes”. Se quisermos introduzir aqui Edward Said, veremos que esse é o sentido de seu retorno: é como se a filologia pudesse reinventar o objeto da perlocução literária. A história, que é mecanismo intrínseco da obra, dános a entender o presente e diz mais do que poderíamos talvez entender por nós mesmos. Essa função transcendente, poderíamos acrescentar, se liga àquele passo aristotélico sobre a superioridade epistemológica da poesia sobre a história, na medida em que ela nos oferece a conhecer coisas que poderiam ter sido. Mesmo a investigação da história, aliás, passa por esse momento de contingência radical, como a teoria atual nos lega (HOOVER, 1992; KOSELLECK, 1997). As práticas da edição, do comentário e da reconstrução oferecem pilares para isso, para uma fantasia histórica que oferece algo à atualidade. Em conclusão, para voltar a dizê-lo, essa fantasia disciplinada que persiste junto à prática filológica parece ser condição sem a qual nada do que se faz nos estudos literários tem fundamento. Referências bibliográficas ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. CARVALHO, J. G. Herculano de. Crítica filológica e compreensão poética. RJ: MEC, 1973. DE MAN, Paul. The Resistance to Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986. GUMBRECHT, Hans Ulrich. The Powers of Philology. Chicago: University of Illinois, 2002. GUPTA, Suman. Philology and Global English Studies. Basingstoke: Palgrave, 2015. HARPHAM, G. Galt. Roots, Races, and the Return to Philology. Representations, v. 106, n. 1, 2009. HOOVER, Dwight W. The New Historicism. The History Teacher, v. 25, n. 3, 1992. KOSELLECK, Reinhart. The Temporalisation of Concepts. p. 16–24, 1997. SAID, Edward W. Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia UP, 2004. SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica. São Paulo: Cultrix, 1977.

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