Herberto Helder: A Boca do Mundo.pdf

May 24, 2017 | Autor: Ana Cristina Joaquim | Categoria: Portuguese Literature
Share Embed


Descrição do Produto

A Boca do Mundo: Herberto Helder e as Matérias Vocabulares1 Porquê e como uma ou várias diferença(s) dos ‘sentidos’ em geral, e entre os sentidos sensíveis [sens sensibles] e o sentido sensato [sens sensé]? (Nancy, 2014: 13)

Um recorte temático é bom pretexto de aproximação à leitura, quando não se torna, mais incisivamente, um imperativo determinado pela percepção do leitor que nem sempre consegue precisar as motivações que se escondem naquilo que lhe punge. Tratase de pensar em termos de punctum, tal como formula Roland Barthes (Cf. 1984): um detalhe com força de captura ou uma força concentrada com potencial expansivo. Há entretanto algumas pistas a perseguir, das quais a identificação de recorrências imagéticas e estilísticas são a âncora maior no contato do leitor com o trabalho de um autor, fato que, aliás, garante a comunicabilidade do elo entre leitor e obra, para além do disparo das infinitas e influentes particularidades que a recepção artística/literária contempla. Assim foi e assim é nas leituras e releituras da obra de Herberto Helder, em que me rendo ao impacto das figurativizações do corpo em confluência com as dobras da escrita. A mim interessa pensar de que forma Herberto Helder tenciona a relação entre escrita e subjetividade, tendo em vista o modo como o corpo – entendido, conforme Jean Luc-Nancy, como o ser da existência (o corpo como ontologia) (2000: 16), ou conforme Foucault, como topia implacável (o contrário de qualquer utopia ) (2013:7) – ganha contornos ao ser inserido numa rede discursiva, ou mais propriamente numa poética, em que a atividade de escrita é evidenciada (literal ou metaforicamente) mediante procedimentos metalinguísticos. O sangue, a cabeça, as mãos, a boca: imagens não apenas recorrentes na poética helderiana, mas sobretudo estruturantes; são o esqueleto do seu corpo textual, decorrentes de alguma estranha metamorfose alquímica, em que a transformação das matérias (a carne do corpo na carne do texto) significa uma ultrapassagem das hierarquias delimitadoras da existência, de forma que a noção mesma de existência passa a ser entendida simultaneamente como biológica e vocabular. Operação inversa – 1

O presente ensaio, com modificações e desenvolvimentos circunstanciais, é fruto das reflexões possibilitadas pela pesquisa de doutorado decorrida entre 2012 e 2016 (O corpo, o corpus – poemas e interseções discursivas: Artur do Cruzeiro Seixas, Heberto Helder, Mário Cesariny de Vasconcelos).

ainda assim, equivalente – na qual se dedica Merleau-Ponty, que afirma o corpo como linguagem per si: Dizendo que o corpo é simbolismo (...) o corpo passa no mundo e o mundo passa no corpo: o sentir ou o prazer, porque o corpo é móvel, isto é, poder de estar alhures é desvelamento de algo. Um órgão móvel dos sentidos (o olho, a mão) já é uma linguagem porque é uma interrogação (movimento) e uma resposta (percepção como Erfüllung [Realização] de um projeto), falar e compreender. (2006: 341)

Inversão, eu dizia, supondo que para Herberto Helder o poema decorre do corpo, mas a verdade é que não creio ser possível estabelecer qualquer precedência ou relação causal em sua poética. Mais apropriado é perseguir a ideia de desmonte hierárquico por meio da fusão: corpo e poema confundem-se na atividade escritural. Tal a importância das seguintes palavras de Josette Rey-Debove: “Le langage est susceptible de parler de tout, y compris de lui-même. Cette phrase doit être entendue au sens le plus général de langage, et au sens le plus complexe de lui-même.” (1986: 75). Essa poética encarnada como eixo do que me punge abarca o sentido mais geral de linguagem, possivelmente aquele em que a linguagem se mistura com a própria existência, e o corpo textual é contornado pelo

corpo-sujeito que (se) escreve, ao lapidar as matérias que o

condicionam enquanto existente. “Há uma nova realidade. É o poema. Assim é que se pode dizer possuir o poema existência tão própria, independente e suficiente como um corpo.” (1999: 20), afirma Herberto Helder a respeito da poesia de Edmundo de Bettencourt, em consonância com a sua própria poética. Manifestações como esta, que insistem na estreita vinculação entre atividade escrita e conformação carnal perpassam toda a produção helderiana: quando se pronuncia acerca de outros poetas ou quando apresenta seu ponto de partida criativo; por meio de poemas ou de declarações acerca da poesia. Assim, no prefácio de Edoi Lelia Doura, é evidente a ponte que o poeta traça entre a sua noção de poesia, eivada pela ideia de organicidade/corpo, e os poemas que nela figuram: “(...) o lugar onde a carne é comida, e ressurge, mercê da aliança da linguagem com as formas! Não se discorre. A vitalidade nominal é intrínseca, metabólica (...)” (1985: 7); assim em “auto-entrevista”: Não sou moderno, eu. A ênfase sublinha por um lado o caráter extremo da poesia e por outro a sua natureza extremamente dúbia de

prática destruidora e criadora, e o segredo jubilatório dessa duplicidade; sublinha também, escandalosamente, o sentido nãointelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo racionalismo, a investigação, o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba. (2001: 193)

Assim, ainda, em Photomaton & Vox: O mundo do espírito é uma organização simbólica e o seu fundamento encontra-se na matéria, no corpo. O espírito deve entender-se como apenas o tecido de alusões simbólicas do próprio corpo. A escrita realiza a circulação do símbolo no plano material; é uma simbologia corporal e também uma corpografia simbólica. Na escrita reside o símbolo do corpo, mas o corpo é a última e verdadeira escrita. (2006: 134)

Um salto além e o corpo é evidenciado em recorte, cuja parte destacada do todo é justamente aquela que diretamente se relaciona com a escrita: “A mão pensa (...). Mão está diferente, indiferente. Começa a pensar, primeiro lenta, e depois com mais força e velocidade” (2006: 50), e, ainda: “Eu, esta mão.” (2006: 53). Assim também a boca é destacada em insistentes ocasiões. Jorge Fernandes da Silveira, em ensaio dedicado à poesia de Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão e Gastão Cruz evidencia a boca como lugar privilegiado em que ocorre a interseção entre corpo e poema. Em referência ao título do seu ensaio, “Acolher na boca”, o ensaísta afirma: “(…) em literatura nada se prova, mas dá um sabor especial ao verbo usá-lo em título tão apurado como esta colher, de ouro já, experimentando as suas muitas e variadas ementas.” (2009: 92) e, algumas páginas a seguir: voltar à realidade da poesia, à sua textualidade, é o convite para que o trabalho poético saiba acolher na boca o poema, quer dizer, sinta prazer na sua leitura, e para que «depois no chão dos olhos», quer dizer, no poema (a/re)colhido pela boca, tenha apre(e)ndido que o real tem mais sabor quando passa pela prova de fogo da escrita. (2009: 96)

É mesmo de uma prova de fogo que se trata, tanto mais se proponho emendar pela boca a leitura deste trecho de Flash:

Boca. Brûlure, blessure. Onde Desembocam, como se diz em nome, os canais muitos. Pura consumpção em voz alta, ou num murmúrio, entre sangue venoso, ou traça de lume. Gangrena, músico, uma bolha. Arte medonha da paixão. Um poro monstruoso que respira o mundo. Nele se coroam o escuro, o fôlego, o ar ardido. O ouro, o ouro. Tubo sonoro por onde se coa o corpo. Se escoa todo. (2009: 353) Há um deslocamento de partida: na sequência de um primeiro verso muito sucinto desenhado pelo vocábulo que será motor do desenvolvimento de todo o restante do poema – “Boca” –, o leitor é conduzido ao segundo verso, também sucinto (embora mais de um vocábulo o componha), em que o deslocamento ao qual faço alusão, pode ser lido como um deslocamento espacial: muda-se de idioma, muda-se de verso, mudase, assim, de território. Brûlure, conforme o dicionário francês Le Robert, apresenta as seguintes acepções: “1. Lésion produite sur une partie du corps par l'action du feu, de la chaleur, d'un rayonnement ou d'une substance corrosive. Se faire une brûlure à la main. La profondeur, l'étendue d'une brûlure. Brûlures du premier (➙ érythème), du deuxième (➙ phlyctène), du troisième degré (➙ 1. escarre). « une brûlure enflait sa cloque d'eau » (Colette). Tache ou trou à l'endroit où un objet, une matière a brûlé. Brûlure de cigarette sur une moquette. 2. Sensation de chaleur intense, d'irritation dans l'organisme.

« une

brûlure

lui

tordait

la

poitrine »

(Daudet).

Brûlures

d'estomac. 3. Altération des végétaux due au soleil ou à la gelée”. No dicionário Domingos Azevedo (francês-português), lemos: “queimadura, queimadela; e (fig.) remédio, recurso contra inconvenientes e males”, de modo que uma nova acepção

chama atenção para a ambiguidade presente no vocábulo. Ora, se leio a boca como uma espécie de ferida provocada pelo fogo, leio também como lugar de irradiação da luz e do calor, o que permite supor ferida e iluminação como termos participantes de um mesmo empenho. Em “blessure” temos, segundo o Le Robert: “1. Lésion faite aux tissus vivants par une cause extérieure (pression, instrument tranchant ou contondant, arme à feu; chaleur), involontairement ou pour nuire. Types de blessures : lésion, plaie, trauma; balafre, coupure, écorchure, égratignure, entaille, éraflure, estafilade, estocade, morsure, mutilation, piqûre; bleu, bosse, brûlure, commotion, contusion, distension, ecchymose, élongation, entorse, fêlure, foulure, fracture, froissement, hématome, luxation, meurtrissure. Blessure grave, mortelle. Infliger une blessure à qqn. Être couvert de blessures. Soigner, panser une blessure. Marque, trace d'une blessure. ➙ cicatrice. Blessure en séton*. Condamné pour coups et blessures. Blessures involontaires. 2. Atteinte morale. ➙ coup, douleur, froissement, offense. Blessure d'amour-propre. ➙ humiliation. Rouvrir, raviver une blessure.”. É, portanto, reiterado o sentido primeiro de “brûlure”. Em Domingos de Azevedo, as acepções se confirmam: “Ferida, golpe, chaga”, e no sentido figurado: “ferida, ofensa, injúria, insulto (tudo que ofende o espírito, a inteligência, a honra)” e, ainda, “mortificação, tormento, dor” , de modo que o leitor é levado a considerar a própria anatomia da boca, a sua abertura, como uma ferida, um corte, uma fenda que se abre para o interior do corpo e, ao mostrar a interioridade, mostra, figurativamente, também a intimidade. Como se a exposição redundasse numa ofensa, num insulto mesmo, e digo isso em consonância aos sentidos todos que o vocábulo comporta, mas digo também, tendo em vista a recorrência, na poética helderiana, da escrita como um ato violento ou criminoso: “O amor e a palavra são crimes sem perdão (...) a única graça concedida ao criminoso é o seu próprio crime (...). Escrever é perigoso.” (2006: 32), ou: “É sempre tempo de rebentar, sempre ódio, sempre crime (...)” (2006: 38), e ainda, no pequeno excerto intitulado “(actionwriting)”: “Desejaria que este escrito fosse um puro teorema poético da violência” (2006: 80). Sem perder de vista a ambiguidade inscrita nos vocábulos destacados, importa recuperar a noção grega de pharmakon, mediante a leitura proposta por Derrida, que se debruça sobre o Fedro, de Platão, de modo a evidenciar as dobras do texto clássico, em que o foco consistia em pensar a ambivalência da escrita – à época,

considerada por Platão duplamente: 1) como um contra apelo à memória e, portanto um contra apelo à verdade e 2) como um artifício de garantia da memória, uma vez que seria a memória mesma deslocada para o papel. De acordo com Derrida: Não é suficiente dizer que a escritura é pensada a partir de tais ou tais oposições dispostas em série. Platão a pensa, e tenta compreendê-la, dominá-la a partir da própria oposição. Para que esses valores contrários (bem/mal, verdadeiro/falso, essência/aparência, dentro/fora, etc.) possam se opor, é preciso que um dos termos seja simplesmente exterior ao outro, isto é, que uma das oposições (dentro/fora) seja desde logo creditada como matriz de toda oposição possível. É preciso que um dos elementos do sistema (ou da série) valha também como possibilidade geral da sistematicidade ou da serialidade. E se se chegasse a pensar que alguma coisa como o phármakon – ou a escritura –, longe de ser dominada por essas oposições, inaugura sua possibilidade sem nelas se deixar compreender; se se chegasse a pensar que é somente a partir de alguma coisa tal como a escritura – ou o phármakon – que se pode anunciar a estranha diferença entre o dentro e fora; se, por conseguinte, se chegasse a pensar que a escritura como phármakon não se deixa simplesmente delimitar um lugar no que ela situa, não se deixa subsumir sob os conceitos que a partir dela se decidem, abandona apenas seu espectro à lógica que só pode querer dominá-la procedendo ainda dela mesma, seria preciso, então, curvar a estranhos o movimento, o que não poderíamos chamar, simplesmente, a lógica ou o discurso. Ainda mais que o que imprudentemente acabamos de nomear espectro não pode mais ser, com a mesma segurança, distinguido da verdade, da realidade, da carne viva, etc. (2005: 50-1)

Esse longo trecho é basilar para o entendimento das relações atualizadas pela poética helderiana, assim a ênfase no poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. Ruir o sistema de pensamento que prescreve a oposição dentro/fora é deslocar o centro da existência que residira na lógica – espírito, lugar metafórico situado anatomicamente no cérebro – em direções múltiplas. É, por exemplo, situá-lo na boca: este canal, poro monstruoso, tubo sonoro responsável por centralizar a existência em termos propriamente não opositivos, pois é simultaneamente dentro e fora, um “espaço entre” de trânsitos muitos (ar, ruído, alimento, palavra). Daí uma escrita da abertura, toda ela porosa, a estimular o movimento; daí essa lúcida constatação: “O que está por fora corresponde ao que está por dentro, quando deveria ser: o que está por fora é o que está por dentro” (Helder, 2006: 74). Phármakon. Retomo ainda uma vez os dois primeiros versos. Há neles uma evidência fonética que importa ressaltar em termos de materialidade, corpo textual: os dois

vocábulos franceses se iniciam com o fonema /b/, assim como ocorre com “Boca” e desse deslocamento espacial ou distanciamento que afirmei haver entre os versos e os idiomas, creio decorrer uma aproximação: mudar de lugar (muda-se simultaneamente de verso e de idioma) para tornar mais próximos os sentidos implicados nos vocábulos envolvidos pela boca, e isso ocorre tanto porque a boca é, no corpo, aquela que pode pronunciá-los – daí a sonoridade explosiva implicada pelo fonema inicial ser colocada em relevo – mas também porque o vocábulo “boca” é uma espécie de disparador semântico que acaba por envolver os termos franceses que lhe servem de epíteto. A distância é assim um modo de aproximação. Phármakon. Curioso tomar este poema, em que há uma manifesta ausência do “eu”, como mote de leitura que se desenvolve em termos de subjetividade. O pronome em primeira pessoa é aqui substituído por aquilo que seria um de seus “possíveis encarnáveis” mais imediatos, ou a sua metonímia, se considerarmos a metalinguagem envolvida nesta composição. Explico: a boca como atualização subjetiva para a qual apontaria este “eu”, dêitico que, uma vez suspenso do poema, acaba por enfatizar o teor metalinguístico da expressão subjetiva por meio da imagem poética “boca”. À semelhança da mão que pensa, arrisco uma continuidade: “eu, esta boca que escreve”, numa linha de leitura em proximidade com aquela apresentada por Eliane Robert Moares, em O corpo Impossível, conforme a seguir: “(...) a consciência de si é dispersada em proveito de uma experiência autônoma da mão que escreve, o que também guarda semelhanças com a conhecida expressão de Tzara, ‘o pensamento se produz na boca’” (2005: 55), e ainda: “As ideias deveriam ser testadas na carne; mas não só isso: a mão, a boca, os olhos, os ouvidos, o sexo eram considerados ‘órgãos pensantes’.” (2005: 71). Órgão vital por onde transitam o ar e o alimento que, expandindo aquilo que seria parte do escopo de suas funções vitais, permite a comunicação (mediante a proferição da palavra), entre “os canais muitos” e o mundo: “Um poro monstruoso que respira o mundo”. “Arte medonha da paixão”, causa do medo e causada pelo medo: poema, arte do fogo, incêndio e iluminação. Poema: eixo entre boca e mundo.2 2

A respeito da relação entre linguagem e corpo, é pertinente trazer para o presente contexto a reflexão que Ricardo Vasconcelos desenvolve acerca da poesia de Luís Miguel Nava, tendo em vista a equivalência entre interioridade e exterioridade corporal e interioridade e exterioridade de sentido; esta última, possibilitada pela metáfora (uma vez que a metáfora pode ser entendida como um artifício de linguagem em que a significação literal se deslocaria – para uma suposta exterioridade de sentido – em direção às significações figurativas mediante o contexto poético): “A fragmentação dos limites, nesta

“Tubo sonoro por onde se coa o corpo.”: verso que é a manifestação daquilo que anuncia (com motivações descritivas). A ênfase na sonoridade semanticamente expressa, coincide com a sensação sonora provocada pela leitura mesma do verso: a predominância do fechamento vocálico (notadamente pela frequência com que ocorre a vogal “o”) transforma a leitura do poema por meio das articulações necessárias que a boca deve fazer para efetuar essa leitura, num percurso pelo “tubo” que nós, leitores, somos: boca. Assim, enquanto tubo sonoro, nos reconhecemos mediante o ato da leitura, ou seja, é na pronúncia do verso em que existimos, ecoamos juntamente com os “os”, como há de ser a propagação do som no interior de um tubo. Desse acolhimento se faz o leitor, a quem é imperativo “Acolher na boca”, em movimento de participação que é também, como o é o ato criativo, decorrência da farmacológica fusão exterior/interior. Está o corpo todo à serviço da boca: eis o poema, eis a existência e a atividade de escrita coincidindo. Possibilidade operada pela revolução perceptiva de que o ato criativo é propulsor, em que o poema se apresenta como espaço (Lugar) que torna viável a reinvenção subjetiva – aqui entendida em termos de expansão subversiva dos limites que prescreveriam interioridade e exterioridade – sem que tenha de prestar contas aos possíveis lógicos determinados pela razão funcional. Tal reinvenção, no caso de Herberto Helder, ocorre por meio de uma reorganização dos componentes corporais, em que a hierarquia é atingida pela transgressão da palavra e a boca ocupa posição de destaque, quando se trata de colocar no centro do poema a questão poética mesma. A metalinguagem é presença que não se pode ignorar, conforme a interpretação decorrida, por isso reproduzo as diretrizes teóricas de Josette Rey-Debove: Le mot métalinguistique est ou un mot qui est destiné à parler du langage (ex. adjectif), ou un mot polysémique qui, dans un des ses sens, parle du langage (ex. articuler); tout mot neutre peut acquérir, par le contexte, une valeur métalinguistique (ex. long dans un long discours), mais ce n’est qu’un effet de sens en contexte, non un sens particulier. (1986: 29),

poética, solicitando espontaneamente uma forma de conhecimento erigida sobre a metáfora, põe em xeque a ideia de separação de sistemas fechados. Isto acontece uma vez que essa delimitação de espaços (interior/exterior) vive da permanente dupla possibilidade de ser preservada ou dissolvida, consoante se reconheça mais fácil ou mais difícil o acesso ao que vai dentro de cada um de nós ou a tudo quanto nos rodeia; por outras palavras, conforme concebamos uma barreira entre o nosso interior e o que nos rodeia, ou a recusemos, no pressuposto de que essa barreira entre nós e o mundo é um artifício.” (2009: 31).

Neste trecho de Flash, não apenas há vocábulos especializados que se encarregam de atestar a função metalinguística (“Desembocam, como se diz em nome”; “consumpção em voz alta, ou num murmúrio”, termos que sublinham a performance da escrita, uma vez que estariam vinculados corpo e poema), mas o vocábulo “boca” assume ele mesmo conotação metalinguística neste contexto, uma vez que é o órgão que remete à proferição da palavra: o poema. Manuel Gusmão apresenta percepção semelhante: Há na poesia de Herberto Helder uma poética (…) trata-se em geral de gestos e figurações de uma poética imanente ao poema, que não se diz de fora ou ao lado da poesia, e que se furta a uma suposta e ilusória transparência do pensamento da poesia sobre si própria, antes é movimento do poema fazendo-se e refletindo-se. Por aí, “o poema” mais do que o tema de um discurso é uma “personagem” ou uma figura indissociável do movimento do mundo verbal em que se inscreve (…). (2010: 379)

Tanto mais inverossímil quanto nos pareça o poema que se faz e reflete-se a si próprio, maior será a força da “boca” a conduzir o fazer-se e refletir-se do poema: poro por onde se coa o mundo, ferida aberta, centro de irradiação da luz, a boca é phármakon, já que é poema, sendo ao mesmo tempo o seu motor; é portanto solução para qualquer aporia no tensionamento das reflexões sobre subjetividade e escrita, desde que – na esteira da farmácia de Derrida – o sujeito não seja aquele para quem existam objetos (o que evita a necessidade da drástica diluição do sujeito), mas seja ele próprio o eixo de assimilação interior/exterior (o que possibilita a sua afirmação nas metamorfoses da matéria que o condicionam ao serem por ele condicionadas). Referências BARTHES, Roland. A câmara clara. RJ: Nova Fronteira, 1984. DERRIDA, Jaques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005. FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013. GUSMÃO, Manuel. “Herberto Helder, ‘a estrela plenária;” In: Tatuagem e palimpsesto. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. HELDER, Herberto. Apresentação. Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985.

__________. “Herberto Helder: entrevista” In: Inimigo Rumor. Rio de Janeiro, Lisboa: Cotovia, 7 Letras, Angelus Novus, nº 11, p. 190-197, 2º semestre de 2001. __________. Ofício Cantante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. __________. HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006. __________. “Relance sobre a poesia de Edmundo de Bettencourt” in Poemas de Edmundo de Bettencourt. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. MELEAU-PONTY, Maurice. A natureza. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras: 2005. NANCY, Jean-Luc. À escuta. Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2014. __________. NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Vega, 2000. REY-DEBOVE, Josette. Le metalangage. Montréal: Le Robert, 1986. SILVEIRA, Jorge Fernandes da. “Acolher na boca, depois no chão dos olhos: o poema (Ou o dia em que Herberto Helder de uma queda foi ao chão da mão de Fiama Hasse Pais Brandão)” In: Diacrítica. Braga: Universidade do Minho, nº23/3, pp. 83-100, 2009. VASCONCELOS, Ricardo. Campo de relâmpagos: leituras do excesso na poesia de Luís Miguel Nava. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.