Hetalia e o Retrato

May 31, 2017 | Autor: Jana de Paula | Categoria: Manga and Anime Studies
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA. DISCIPLINA: ABORDAGENS METODOLÓGICAS EM HISTÓRIA DA ARTE E DA IMAGEM. PROFA. DRA. MARIA ELIZIA BORGES. PROFA. DRA. HELOISA SELMA FERNANDES CAPEL. ARTIGO FINAL    

Janaina de Paula do Espírito Santo Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História – UFG

Hetalia Axis Powers: análise do personagem Itália como retrato “Entre um rosto e um retrato, o real e o abstrato Entre a loucura e a lucidez, Entre o uniforme e a nudez Entre o fim do mundo e o fim do mês Entre a verdade e o rock inglês Entre os outros e vocês”. HUMBERTO GESSINGER – A Revolta dos Dandis I (1987)

O presente trabalho se propõe a pensar a composição gráfica dos quadrinhos, especialmente no que concerne a constituição de seus personagens, a partir da análise plástica dos retratos. Isto significa que o texto é movido por um exercício específico em que as imagens dirigem a reflexão, mas, ainda assim, devido a especificidade da fonte e do espaço gerador dessas imagens – quadrinhos e animações japonesas – intentou-se esboçar uma reflexão sobre a especificidade dos quadrinhos, e seu diálogo teórico metodológico, com o universo da história da arte. Considera-se, que os quadrinhos são marcados por uma dupla natureza, que alia o ato de narrar ou contar uma história em relação profunda com a imagem. A leitura, neste sentido, é acelerada pela presença da representação pictográfica. Ainda que genericamente, narrativa gráfica possa ser usada por qualquer narração que utilize imagens para transmitir idéias, como filmes e histórias, propomos, no âmbito deste artigo partir de uma certa identidade da história em quadrinhos enquanto “narrativa gráfica”. O trabalho foi pensado em duas partes: na primeira, como uma reflexão preliminar a partir de noções importantes para o estudo de quadrinhos e mangás, na segunda, das especificidades da fonte escolhida – o quadrinho japonês e a obra “Hetalia: Axis Powers”. 1. Quadrinhos e arte: diálogos possíveis.

Hoje em dia é uma espécie de “ponto pacífico” entre pesquisadores e espectadores, que o universo da arte se aproxime do universo da cultura popular e dialogue com ele, embora ainda exista uma série de distinções entre estes que podem gerar reflexões interessantes. O símbolo na cultura popular contém uma forma de linguagem assim como o quadro, mas há uma distância entre os dois, que está situada no âmbito da representação: Esta, no espaço da produção artística, extrai sentido de si mesma, o que não ocorre de modo tão “automático” na cultura popular. Para Lawn (2007, p. 126), escrevendo sobre Gadamer, “o trabalho de arte, apesar de simbólico, não representa outra coisa, ou ocupa a posição de um significado oculto que precisa ser esclarecido ou explicado”. Temos que nos preocupar, em não transformar a obra de arte em um símbolo em um sentido restrito, uma vez que há a necessidade de atentar para códigos ocultos, que precisam ser decifrados para serem compreendidos. Este deciframento se dá no âmbito e universo da cultura – do código comum. Para Willians, uma definição possível de cultura seria uma espécie de “sistema de significados realizado” (2000, p. 206), que passa a ter um valor em si somente no século XVIII, constituindo um sentido de “cultura comum”, nodal em toda construção cultural da contemporaneidade. Cultura, esta, determinada pelo desenvolvimento das artes nas atuais condições de produção, como diria Benjamin. O penhor dos quadrinhos à indústria cultural e sua associação imediata com o mercado editorial cria uma ruptura, apontada por Gombrich (1986), por exemplo, quando chama os quadrinhos de “sonho manufaturado”. Os espaços de aproximação, entretanto, existem e se apresentam: Eco, identifica, na cultura de massas a manutenção de um espaço de mitificação. Um exemplo da mescla de aspectos populares próprios com arquétipos antigos estaria no espaço da história em quadrinhos, seus personagens figuram como pertencentes à civilização do romance e a uma estrutura narrativa sustentada pela busca da novidade, do que ainda não ocorreu, do futuro. Desta maneira, o processo de constituição dos tipos, o modo como são desenhados, suas roupas e características são elementos formadores de narrativa, que, a espelho dos relatos ancestrais estão fundamentados no processo de repetição. A interação do leitor com a linguagem parte de seus referenciais – sua bagagem – no processo de decodificação das narrativas. Aqui, é interessante tomar como uma posição na constituição de uma diretriz para a questão do quadrinho analisado como arte, sem desconsiderar seu papel na formação de uma indústria cultural. Remete à isto, as reflexões de Benjamin, sobre a “obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, quando este estabelece uma diferenciação entre meio e mensagem, a partir dos quais pode-se construir espaços de critica de uma espécie de “lógica de linha de

montagem” no espaço da própria industria cultural. Assim, se meio não é mensagem, a mensagem

em

quadrinhos

propriamente

dita

é

(pelo

menos

potencialmente)

independente em relação à condição de participante da indústria cultural, inerente a seu veículo. Ao se tornar testemunho de um processo histórico, passa a ter um significado político oculto: Mas, a partir do momento em que o critério de autenticidade, não mais se aplica à produção artística, também a função social da arte terá sido objeto de uma transformação radical. Em vez de se basear no ritual, ela terá agora outra práxis como seu fundamento: a política. (BENJAMIN, 2012 p.16)

Entende-se aqui portanto, que o estudo de quadrinhos parte não de uma ruptura entre estética e comunicação, entre o símbolo e o político mas que a análise de uma narrativa gráfica pressupõe um “círculo hermenêutico” enquanto horizonte no qual essas dimensões se amalgamam em torno do que Gadamer definiu como “pré-conceito”, no sentido que sujeito e objeto fazem parte de um mesmo conjunto de interpretação, conjunto esse formado em um universo “simbólico” comum (pathos) ainda que esta não seja uma relação linear ou livre de conflitos: Pois a íntima unidade da imagem e do significado, que perfaz o símbolo não é per si. O símbolo simplesmente não anula a tensão entre o mundo das idéias e o mundo dos sentidos: Deixa-nos pensar também no desequilíbrio (Missverhaltnis) entre forma e essência, entre expressão e o conteúdo (GADAMER, p. 141).

Para análise do mangá, portanto, propomos essa dupla percepção: de um lado, seu penhor com a indústria cultural e o consumo, de outro, a estrutura de linguagem dupla, textual e imagética e sua ligação com o ícone, especialmente marcante no mangá. Os ícones são expressos em três categorias: Primeiro, através dos símbolos, imagens que representam conceitos e ideias, tais como os sinais de trânsitos ou as representações de uma ideologia. Segundo, os ícones de linguagem, das ciências e das comunicações, que pertencem ao mundo prático, tais como o alfabeto, os algarismos numéricos, o pentagrama musical e as notações científicas. E por fim, as figuras, “imagens criadas” para constituir semelhanças com seus temas. Entretanto, algumas figuras são “mais icônicas” do que outras de acordo com o seu grau de comparação com o objeto real. Estas figuras vão de uma representação icônica mais realista, como a fotografia e as gravuras de retrato, até uma representação abstrata, como o cartum e, segundo McCloud (1995, p. 26-29), também a palavra escrita, que é tão abstrata que não guarda semelhança icônica alguma com o objeto real: A configuração geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavras e imagens, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva,

simetria, pinceladas) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual (EISNER, 1995, p. 22).

Quando se fala de Japão e mangá, por vezes é necessário dar mais um passo nesta direção, tendo em vista que a própria forma de escrita japonesa é feita por caracteres representativos. Tal característica delineia ações nas páginas, as onomatopéias ditam a velocidade com que a cena está se desenvolvendo, ou reforçam os sentimentos exibidos pelos personagens. Outro exemplo de diferença no tratamento gráfico entre o mangá e o comics está nas chamadas transições, existem seis tipos de transições de cena presentes nas histórias em quadrinho. São estas o momento-paramomento, a ação-para-ação, o tema-para-tema, a cena-para-cena, o aspecto-paraaspecto e o non-sequitur. Enquanto para os comics utiliza-se quase que somente os tipos ação-para-ação, tema-para-tema e cena-para-cena, os mangás utilizam, além destes citados, os tipos momento-para-momento e aspecto-para-aspecto (MCCLOUD, 1995). Ainda que isto não se constitua em dogma. Isto evidencia que, na forma gráfica destes diferentes estilos, também manifesta-se um diferente tratamento narrativo e temporal. Ao mesmo tempo em que o mangá se utiliza das linhas sinópticas de velocidade também se caracteriza pelas linhas congeladas, pela disfunção do tempo, com uma ênfase maior na ação psicológica, em detrimento da física, por exemplo. A estética do desenho japonês apresenta um traço mais limpo e simplificado, o que visualmente torna difícil definir personagens masculinos e femininos. A preocupação maior está nas expressões faciais, roupas e cabelos, dispensando até os cenários em grande parte das vezes. Os personagens também tendem mais ao uso do traço da caricatura ou do estereótipo. A composição gráfica também, em grande parte das vezes é guiada pelo que se chama de Notan, que determina uma busca constante por equilíbrio na composição, não só no desenho, mas nas cores, nas características dos personagens e nos usos de claro e escuro (LOPES, 2010). Personagens parceiros ou antagonistas têm a sua concepção ligada a esta regra, o que significa que, se um tem cabelo claro, outro terá escuro, ou que suas vestimentas terão este balanceamento de cor, por exemplo. A estética tradicional dos quadrinhos (com nove quadros e três por linha) também foi abandonada no mangá. Os quadros são substituídos por formas variadas, entre as quais, na maioria das obras prevalece o trapézio. As onomatopéias, frente ao próprio caráter gráfico do idioma japonês, também aparecem de maneira mais concentrada. Assim, quando os mangás são traduzidos para a língua portuguesa, há um trabalho de adaptação, pois muitos códigos próprios da língua japonesa que ao serem traduzidos perdem seu significado original (OKA, 2005, p.88). Nos quadrinhos frases longas são divididas em vários balões, que fazem par com os seus quadrinhos respectivos, nos quais os próprios balõezinhos estão inseridos. Outra especificidade dos mangás é o uso do recurso metalingüístico, a manipulação de alguns elementos cuja representação simbólica busca intensificar sentimentos e emoções. Nos personagens, independentemente do

gênero da história, aparecem caretas cômicas, representações gráficas para socos, pontapés, lágrimas, etc. Deformações também são utilizadas no mesmo sentido. Os mangás foram um mercado consolidado aos poucos, junto a apropriação cotidiana do povo japonês a esse produto. Frente as inúmeras mudanças próprias de seu processo de especialização e industrialização há um grupo de características essenciais que foi mantida e é importante na compreensão das peculiaridades deste produto. São elas: o caráter transitório – ou seja, mangás são revistas produzidas para serem consumidas e descartadas rapidamente, ou trocadas e alugadas; a abertura temática de público e faixa etária – onde, diferente do que aconteceu com o ocidente que tendia a associar a produção de HQs com um público infantil, no Japão a produção de mangás sempre procurou atingir o maior número de público possível, diluindo uma associação bastante comum por aqui, de que a leitura de HQs é infantilizada e simples; e, ligada a característica anterior, a pouca preocupação governamental com uma normatização temática ou controle dos assuntos abordados nas revistas. Nos dias atuais, estas histórias são publicadas principalmente em revistas (Mangashi), em preto e branco, em papel jornal, de baixa qualidade, em volumes compostos por algo entre 200 e 500 páginas, organizados em série (que variam de 15 a 20 por exemplar). Um único volume permite, portanto que se acompanhem diferentes histórias. A leitura, diferente da ocidental, começa a partir do que para nós seria a contra capa e a sequência de quadros e balões de fala são da direita para a esquerda. Estas revistas são comparadas com listas telefônicas e normalmente são consideradas descartáveis. As séries de maior sucesso, são, na medida em que conquistam o público, compiladas e lançadas como gibis, conhecidos como Takonbon, em um papel de melhor qualidade para colecionar. São estes volumes que acabam sendo traduzidos e lançados no ocidente. A segmentação temática do mercado editorial acaba por organizar as publicações dentro de diferentes estilos: o Shogaku para crianças de 6 a 11 anos, cujo perfil é educativo; Shounen para meninos de 12 a 17 anos, em que os enredos são centrados em esportes, sexo, artes marciais, com uma certa dose de violência; Shoujo para meninas de mesma idade, com temas românticos, sobrenaturais e/ ou de relacionamentos; Seinen e Redikomi/Josei, respectivamente, para homens e mulheres adultos, cujos temas são mais maduros. O Japão detém atualmente o maior público leitor e a maior produção de Histórias em Quadrinhos do mundo. Em uma pesquisa feita em 2002, pelo Instituto de Pesquisa de Publicações do Japão, 38,1% do que foi publicado no país correspondia a Mangás, no caso das revistas foram lançadas, em um único ano, 281 títulos diferentes no mercado. Destas, 37,7% eram revistas masculinas; 38,4% eram de revistas para meninos; 8,8%, para meninas e 6,7%, para as mulheres. Cerca de um sexto da receita da indústria de revistas japonesas - 250 bilhões de ienes (cerca de 3 bilhões de dólares) - vem das revistas e mangás. Graças ao seu potencial de gerar grandes lucros, o ramo dos

quadrinhos é o mais competitivo da indústria editorial do país (GRAVETT, 2006, p. 18). O autor também estima que a indústria de Mangás tenha um lucro anual de 5 bilhões de dólares embora tenha somente há pouco tempo se despertado para o mercado internacional (Idem, p. 156). De acordo com uma pesquisa recente do Instituto de Pesquisa Marubeni, as exportações de quadrinhos cresceram 300% entre 1992 e 2002, enquanto outros setores exibiram um crescimento de apenas 15%, o que coloca o mangá como o quinto produto de exportação atualmente. Assim, assiste-se a uma inserção da arte seqüencial nipônica no ocidente, como um novo mercado, o que cria a necessidade de constituir-se uma separação entre o quadrinho, ligado aos comics e o mangá, centrado em suas especificidades, tanto mercadológicas quanto estéticas. 2. “HETALIA: AXIS POWERS”: “Hetalia” é o primeiro mangá no estilo Yon-koma a ser publicado no Brasil – o Yonkoma (também chamado de 4koma) é o nome das tiras japonesas, que diferenciam-se das ocidentais por serem verticais. A história de “Hetalia” foca as relações entre os países do eixo (Itália, Alemanha e Japão). O mangá apresenta diversas pequenas histórias, que supostamente se passariam na época da Segunda Guerra Mundial. No entanto alguns eventos ocorrem em épocas diferentes, sugerindo uma abordagem explicativa do conflito, ou explorando particularidades dos países. A leitura é bem parecida com a dos mangás, mas têm uma peculiaridade: na maior parte das histórias, lê-se em colunas, não em linhas. Estas colunas normalmente exploram piadas e situações que começam e terminam, podendo ou não ter relação com o desenrolar da história maior, no caso, o conflito entre países envolvidos na Segunda Guerra. Seu autor, Hidekaz Himaruya utilizou uma abordagem alegórica, onde cada país é representado em uma pessoa, que “encarnaria” os costumes de cada um destes como “mania”. Assim, descreve conflitos e relações diplomáticas em termos de “intrigas pessoais”, exacerbados por elementos culturais, atritos passados ou simples “implicância”. Ele inicialmente foi concebido como tiras para internet (webcomics) e em sua adaptação vendeu milhões de cópias, chegando ao topo da lista de mais vendidos nos EUA, sendo proibido em alguns países por seu conteúdo politicamente incorreto. No Brasil, os quatro volumes que compõem a versão impressa do mangá foram lançadas no ano de 2012 e ainda estão em processo de publicação, pela editora New Pop. O enredo de “Hetalia”, segundo Himaruya, veio de seu contato com diferentes raças e etnias na cidade de Nova Iorque. O que era, inicialmente, um projeto de mangá sobre os inúteis (Hetare em japonês), transformou-se em uma história baseada em piadas étnicas, tendo com personagem principal “o Itália”. (HIMARUYA, 2012, p. 2). A expressão que dá título a obra, é, portanto, uma junção, da palavra Hetare com Itália e parte de seu argumento cômico está justamente na “inutilidade” da Itália, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial. Embora a questão do conflito bélico apareça como uma

espécie de fio condutor da narrativa pelo autor e pelas editoras de maneira geral, percebe-se que a relação entre os países e a tentativa de produzir humor explorando estereótipos ligados a cada pais acaba sendo o ponto mais presente, tanto no mangá, quanto no anime. A contracapa da edição brasileira define: “vai começar a mais estranha interpretação das guerras mundiais! Acompanhe os conflitos entre os países, com a maioria deles personificada em rapazes bonitos... e totalmente insanos” (HIMARUYA, 2012). Na sua não-lineariadade, aliada a tentativa de relacionar uma série de referências a fatos da história de cada pais, com traços de personalidade dos mesmos, o autor faz uso das fichas de personagens, em que apresenta e define o espaço de cada um deles na trama, ou no desenrolar de situações específicas. Como na representação gráfica dos países do eixo, em que o Itália segura uma bandeira branca e um garfo com macarrão – um dos bordões do personagem – a palavra “pasta”. O Japão, dificilmente é retratado encarando o leitor ou seu interlocutor, bem como o Alemanha sempre está sério, de cara fechada e uniforme. Tais características aparecem também na ficha de personagens que o autor produz de tempos em tempos nas páginas da revista, reforçando sua existência enquanto ícone. FIGURA 1: Países do eixo: Alemanha, Itália e Japão.

FONTE: MEDIAWIKI. Hetalia. Disponível em http://hetalia.kitawiki.net/index.php?title=Category:Media, acessado em 01.02.14.

É interessante que, no processo de constituição narrativa de seus personagens Himaruya se utilize, constantemente de uma construção gráfica sobre a forma de retratos, tanto no anime (animação) como no mangá. Aqui, os representantes dos países do eixo aparecem como que posando, voltados ao leitor. Podemos começar a apontar suas diferenças pelo cabelo. Segundo Lopes ( 2010, p. 77-78): No mangá a arte do hair design desenvolveu-se como em nenhum outro lugar, porque nele os personagens tem as faces muito parecidas uns com os outros. Essa semelhança de rostos, como vimos, deve-se ao alto grau de simplicidade e iconicidade dos mesmos [...] Essa diferenciação pelo cabelo é mais significativa quando nos fala da alma dos personagens. Isso não é nada complicado. Por

exemplo: se uma franja esconde parte do rosto, criando um mistério geralmente indica que o personagem esconde algo sobre o seu passado, ou é muito tímido [...] um topete, que se ergue em desafio a gravidade pode indicar um idealismo obstinado, orgulho, soberba.

Ainda que tais construções possam ser relativizadas a partir de cada obra ou mangaká, no caso da figura 1 as considerações acima são úteis. No canto a direita, o personagem Alemanha aparece como uma espécie de líder para os outros. Isso se dá por ser um pouco maior que os outros dois personagens, por sua expressão fechada, marcada pelas sobrancelhas franzidas e o dedo em riste (pronto para apontar uma falha ou apenas para marcar uma posição pensativa). Fazem parte ainda de sua construção as luvas – graficamente usadas para marcar personagens com segredos, o uniforme militar, a cruz de ferro alemã abaixo da gola e o topete. É o único dos personagens a usar este penteado. Do lado contrário temos o personagem que representa o Japão. Os cabelos negros podem ser tomados como referencia étnica, mas, ainda assim, seu penteado, com uma franja maior do que os demais, marca a timidez que o autor delegou ao personagem. Um ponto a ser ressaltado é olhar obscurecido, marcado pela ausência de uma delimitação gráfica da ,íris, comum no traço do mangá. A falta do “brilho da íris” é uma supressão intencional da expressividade do olhar. Também é um recuso gráfico relacionado a timidez do personagem. Os ombros aparecem um pouco curvados. Seu uniforme é branco, um exemplo do uso do Notan – o equilíbrio entre o claro e o escuro, representados por Japão e Alemanha. No meio, temos o personagem principal da trama: Itália. Graficamente, o Itália é o mais diverso dos personagens. Sua expressão denota alegria, empolgação. Propõe uma certa cumplicidade com o observador, ao aparecer piscando um dos olhos. Seu penteado aparece menos contido, com alguns fios soltos, que marcam a descontração do personagem e um traço característico: um fio solto, mais comprido que termina em uma espécie de espiral. Uma constituição capilar de fios irregulares, que tende aos cachos é um recurso comum para marcar a imaturidade do personagem, uma referencia a sua infância. Seu uniforme é o único de gola dupla e duas cores. Em uma referencia a associação do país ao Eixo, ele usa uma jaqueta militar azul com calças combinando, uma camisa preta e gravata preta, que quase não aparece. Ele continua a usar esse uniforme para a maioria das tiras da Segunda Guerra Mundial. Marcam também seu retrato a pasta (um garfo em que o macarrão forma uma espécie de moldura ao personagem) e a bandeira branca – efetivamente as grandes ações do personagem durante o desenrolar as histórias de “Hetália”: oferecer ou pedir comida aos amigos e bater em retirada, procurando uma rendição – que estaria representada pelas bandeiras brancas. A construção narrativa de Himaruya não se detém ao período da Segunda Guerra Mundial. De fato, no volume um do mangá a história é apresentada da seguinte maneira:

FIGURA 2: HIMARUYA, Hidekaz. Hetália. São Paulo: New Pop, 2012. p. 11-12. O texto é o seguinte: “Muito, muito tempo atrás havia um homem que conquistou o mediterrâneo e levou toda a riqueza do mundo. Seu nome era ‘Império Romano’. Toda riqueza, servos, fama e vastas terras... um dia o homem que obteve todas essas coisas... apenas desapareceu”.

Ao optar pela não linearidade temporal, ao mesmo tempo em que tenta realizar uma exploração do histórico do seu personagem principal – o Itália – o autor o coloca como uma espécie de neto do império romano desaparecido, que com o sumiço do avô cresce no meio de irmãos belicosos, como uma tentativa de explicação “psicologizante”, em que problemas na infância o tornariam um personagem confuso, na sequência da história. Uma mudança de traço é bem marcada para o período, gráfica e textualmente: o Chibitália, parte da história que se dedica a uma época em que Itália e Sacro Império Romano são crianças, brevemente “criadas juntas”, antes de “vovô Roma” leve Itália embora para viver com ele por um período indeterminado de tempo. No momento em que Itália volta ao seu lugar de nascimento, constata que as outras crianças tinham se tornado “valentões”, e o personagem passa por uma série de dificuldades até ressurgir como adolescente, já um pais independente. FIGURA 3: Chibitalia (retirado do blog pessoal de Himaruya):

FONTE: HIMARUYA, 02.11.2013.

Hidekaz.

Chibitalia.

Disponível

em:

http://himaruya.blog61.fc2.com/

acesso

O personagem do Chibitalia parte de uma técnica de desenho comum aos animes e mangás: o Super Deformed (SD) ou Chibis. Essa diminuição do traço é usada especialmente para acentuar aspectos cômicos ou emocionais da história, em uma espécie de construção de caricatura que o artista faz de seu próprio desenho. Um traço marcante dos chibi é que quase sempre não é desenhado o nariz, o traço da boca nem sempre é finalizado e os traços em geral são bem simplificados. Outras vezes, em vez de um corpo humano, o desenhista coloca a cabeça do personagem em um corpo ou com características de gato, cachorro ou algum outro bicho. No mangá, ele aparece com traços mais finos e predominantemente em cinza. Quando trabalha com cores na webcomic, o desenhista acentua o aspecto fluido entre traço e cor, quase como se reproduzisse a pintura em aquarela. Os tons são pasteis. Há também uma confusão proposital no gênero do personagem, de vestido, avental e lenço, acompanhado de animais “fofinhos” como o coelho ou gatos brancos. Essa construção gráfica se dá para acentuar a ingenuidade do “Itália criança” e uma certa personalidade “afeminada”. No mangá, o autor brinca com isso, fazendo seu personagem ser confundido com uma menina algumas vezes. O uso do acabamento em cores remetendo a aquarela é também um recurso que marca uma ruptura no tempo: são lembranças do personagem adulto, então, sua composição de cores tenta criar uma aura onírica ou de memórias. Nota-se que o cacho do personagem adulto já está presente, bem como a expressão sorridente. Os olhos, no caso desta imagem são simples linhas paralelas, uma mais grossa, outra mais fina. Essa referencia a olhos “fechados” são elementos reforçadores da inocência que o autor associa ao personagem, bem como a chamada “beleza kawaii”. Segundo Lopes (2010, p. 31) esse recurso gráfico remete a “beleza dos filhotes

mamíferos. Pequenez, lisura, falta de destreza, fragilidade – por uma estratégia evolutiva somos feitos para adorar essas coisas”. As escolhas gráficas do autor na composição dos personagens tornam claro sua opção por uma espécie de conto antropomórfico da Segunda Guerra Mundial, onde o fascismo, os crimes de guerra, o genocídio são apagados da história da guerra. Assim, chegamos a última imagem, do momento de capitulação do personagem Itália, abandonando seus “amigos”: FIGURA 4: Itália abandona os países do Eixo:

FONTE: Frame do anime “Hetalia”, episódio 28, 1:05 min. (2003).

Nesta imagem, o personagem Itália toma a frente, e o recurso gráfico é novamente o Super Deformed. O corpo do personagem é totalmente apagado, se tornando uma silhueta em branco, associada a bandeira que ele entrega aos países aliados. Seus olhos estão fechados e uma pequena lágrima escorre do canto de seu olho. Mesmo assim, a expressão sorridente do personagem é mantida, como se encarasse o processo como uma espécie de jogo, ou brincadeira. Ao fundo, vemos um braço e uma espada, do personagem Japão, que tem o mesmo tamanho do Itália, como se, na derrota o personagem diminuísse e perdesse seu contorno. A expressão facial é uma espécie de elemento narrativo: como se não tivesse consciência do que lhe ocorre, ou de qual foi sua escolha. Percebe-se que todo o peso argumentativo que o personagem deveria desempenhar na história, o cômico covarde, mas inocente, é bem representado e reforçado em momentos diferentes pelo desenho e pela narrativa proposta, do medroso bonachão, que satiriza, mas define o conflito com seu comportamento – ainda que tal comportamento seja justificado por sua infância. 4. Considerações finais.

“Hetália” é constituído sobre caricaturas “nacionais”, que sintetizariam antropomorficamente o “espírito nacional-cultural” destes países, ou melhor uma representação “nipônica” sobre estes, já que é visível a tentativa do autor em “representar” o todo nacional, expressão falsificada da unidade nacional, que substitui a desigualdade social e cultural real de cada formação social. Esta noção remete ao conceito de pátria, “tão simples na sua figura semântica, porém, tão complexo em seu conteúdo, capaz de estimular não somente a razão mas também a emoção” (THÜNE, 1991. p. 42). Pátria remonta ao lugar de refúgio, de abrigo, de morada, o lugar que se nasce e se tem a infância. Esta “vida no abrigo” corresponde a uma vida onde se guardam “segredos”, se compartilha o que é alheio ao outro, o estrangeiro – os lugares onde se sentem falta destes laços. Ideologicamente seria o “sentimento espiritual das raízes” (Idem, p. 46-17), sensação que apóia-se no princípio de identidade, que, no que se refere ao momento histórico referenciado, a Segunda Guerra Mundial, foi um argumento amplamente utilizado para se estabilizar e domesticar a dinâmica da sociedade.   Ainda que calcado em retratos de dimensão ficcional, em torno da obra “Hetalia: Axis Powers”, o presente texto buscou apontar como a expressão simbólica elaborada pelo artista acabam por explicitar as interpretações e vivências sociais em torno de questões definidoras da obra, especialmente, na acepção de seu protagonista e seu papel na constituição narrativa. Percebe-se que a construção ficcional de Himaruya criou uma espécie de movimento onde a apropriação e o entendimento da segunda guerra se transfiguram coisificados em um universo de Moe. Esta é uma expressão japonesa que descreve o ato das plantas germinarem, criarem brotos. Ao serem apropriadas pelo universo dos fãs de mangás e anime, Moe expressa a afeição e a apropriação de um objeto. Isso ecoa o entendimento de Paul Dale, para quem “essa produção cultural que é ao mesmo tempo o cultura de massas e subcultura, produzido para o lucro (pelos editores) e amor (por fãs), não está preocupado com a precisão em sua releitura da história”1. A busca coletiva de Moe, impulsiona fãs a reelaborarem e se apropriarem das criações da cultura pop japonesa, criando novas oportunidades de sátira. Quando “Hetalia”, e seus fãs , insistem em sexualizar as relações do Estado-nação, por exemplo, eles pervertem, de uma forma divertida, o vínculo fundamental entre o indivíduo e a nação que os discursos nacionalistas procuram naturalizar. Tal apropriação se pauta na abordagem antropomorfizada das nações e tem na figura do personagem Itália, uma espécie de “perdedor adorável”, um de seus elementos catalizadores, constituindo uma linha muito tênue entre o real histórico e o abstrato ficcional.                                                                                                                   “This new style of cultural production, which is both mass market and subcultural, produced for profit (by publishers) and love (by fans), is not concerned with accuracy in its retelling of history”. DALE, Joshua Paul. Axis powers: Hetalia cosplay— another end to history? Conferencia proferida na Modern Language Association 2012. Seattle, Washington. Disponível em: http://www.academia.edu/2385920/_Axis_Powers_Hetalia_Cosplay-_Another_End_to_History. Tradução nossa.

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