HIDRELÉTRICA NO RIO TROMBETAS E POSSÍVEIS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS NAS TERRAS INDÍGENAS NHAMUNDÁ-MAPUERA E TROMBETAS MAPUERA

June 4, 2017 | Autor: Alba Simon Simon | Categoria: Justica Ambiental, Hidrelétricas, Conflitos Ambientais, Impactos Socioambientais, Terras Indígenas
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XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, 20 a 23 de Julho de 2015, Porto Alegre (RS)

GT04 - Conflitos socioambientais

HIDRELÉTRICA NO RIO TROMBETAS E POSSÍVEIS IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS NAS TERRAS INDÍGENAS NHAMUNDÁ-MAPUERA E TROMBETAS MAPUERA MADEIRA FILHO, Wilson Professor Titular da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF) [email protected] SIMON, Alba Pós-Doutoranda no PPGSD-UFF Bolsista Capes [email protected] ALCÂNTARA, Leonardo Alejandro Gomide Doutor pelo PPGSD-UFF com bolsas Capes [email protected] AZEVEDO, Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo Doutoranda do PPGSD-UFF Bolsista Capes [email protected] LOBATO DA COSTA, Rodolfo Bezerra de Menezes Doutorando do PPGSD-UFF Bolsista Capes [email protected] ROCCO, Rogério Doutorando pelo PPGSD-UFF [email protected] MARTINS, Maria Morena Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestranda do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Bolsista Capes [email protected]

Resumo Percorrendo de barco os rios Trombetas e Mapuera, no final de 2014, com uma tripulação multidisciplinar (pesquisadores de direito, biologia e ciências sociais), com integrantes e adjacentes ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, pretendemos desenvolver um olhar sobre os conflitos socioambientais nas comunidades indígenas Wai Wai. Como destino dessa viagem dávamos consequência a um projeto institucional de implantar um Centro de Assistência Jurídica e um Laboratório de Justiça Ambiental em Oriximiná (PA), para atender às comunidades tradicionais que vivem às margens do rio, agora ameaçadas pela construção de uma hidroelétrica. Neste artigo serão reunidas as impressões, advindas dos diferentes diários de bordo (cadernos de campo), conversas, gravações e dados sobre as comunidades indígenas Wai Wai no Rio Mapuera. Palavras-chave: Justiça ambiental; Comunidades indígenas; Wai Wai; Atingidos por barragens; Conflitos socioambeintais

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Introdução As reflexões desenvolvidas no presente texto visam compartilhar preocupações acerca dos impactos socioambientais, advindos de possível futura construção da Hidrelétrica Cachoeira Porteira na Bacia do Rio Trombetas, no Pará, sobre as comunidades indígenas do Médio Trombetas, localizadas próximo à foz do rio Mapuera. As terras indígenas Nhamundá-Mapuera e Trombetas Mapuera ficam localizadas na fronteira tríplice dos estados do Pará, Amazonas e Roraima. São compostas por grupos pluriétnicos e perspectiva multicultural - Wai Wai, Katuena, Xerew, Mawayana, Tunayana, Hixkaryana, Parikwoto, Tirio, Cikyana, Manakayana, Wapixana e Yunayana. A maioria das comunidades fica localizada às margens do Rio Mapuera, afluente do Rio Trombetas. Devido ao grande potencial hídrico dessa região, foi retomado o empreendimento do período militar para instalação de hidroelétrica, o que poderá impactar as terras indígenas. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) recebeu autorização dos órgãos ambientais estadual e federal para iniciar os estudos para a construção de hidrelétrica, sem realizar consultas prévias às comunidades. O trabalho da EPE poderá afetar, além dos indígenas do Mapuera, comunidades quilombolas em processo de titulação e unidades de conservação. A investigação que resultou no presente texto foi realizada em novembro de 2014 por uma equipe formada por pesquisadores e alunos do Curso de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense no âmbito do Projeto “Laboratório de Justiça Ambiental/ CAJUFF Oriximiná” junto à Unidade Avançada José Veríssimo da Universidade Federal Fluminense, em Oriximiná.

1. A complexidade da questão indígena Wai Wai No final da década de 1960, assolados por doenças trazidas pelas frentes de colonização, os Kaxuyana, índios que habitavam o Rio Cachorro (Kaxuru), tributário direto do médio Trombetas, localizado na porção brasileira da Amazônia Setentrional, dividiram-se entre duas frentes de dispersão, rumando, por um lado, para o rio Paru de Oeste e, por outro, para o rio Nhamundá. Ao promoverem casamentos interétnicos com os índios Tiriyó no 2

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Paru de Oeste, e com os índios Hixkaryana no Nhamundá, a população kaxuyana voltou a crescer. Depois de quatro décadas separadas, estas duas frentes voltaram a se reunir no seu lugar de habitação tradicional. As duas terras indígenas somam mais de 5 milhões de hectares e sua população gira em torno de 2600 pessoas (CARDOZO; VALE JÚNIOR, 2012). As razões para essa dispersão e posterior concentração, segundo Queiroz e Girardi (2012) são múltiplas e agem segundo o contexto local vivido por cada grupo. Meio ambiente, frentes de colonização, epidemias, empreendimentos

missionários,

tudo

isso

se

articula

(na

forma

da

complementariedade ou do confronto) com a estrutura social e a cosmologia própria a cada grupo, que, por sua vez, são compostas por meio de uma rede de relações indígenas (no tempo e no espaço). A história da etnia Wai Wai é cercada de lacunas que dificultam sua precisa compreensão. Segundo Ivaneide Bandeira Cardozo e Israel Correia Vale Júnior (2012), nas terras indígenas estudadas, Trombetas-Mapuera e NhamundáMapuera, habita um complexo grupo pluriétnico e multicultural que por força de acontecimentos históricos se viram numa situação de agrupamento e unificação. Um povo formado pela agregação e acolhimento de vários grupos distintos que antes viviam, mesmo que imersos em relações sociais entre si, em separado (CARDOZO; VALE JÚNIOR, 2012, p. 26).

Os autores, em suas pesquisas, chegaram à conclusão de que a denominação Wai Wai, trazendo citação de Ruben Caixeta Queiroz, “não é um etnômino, mas um termo criado pelos Wapixana para designar àqueles índios que, segundo eles, tinham uma pele mais clara” (QUEIROZ, apud CARDOZO; VALE JÚNIOR, 2012, p. 26). E, portanto, completam afirmando que: A denominação mesmo que equivocada prevaleceu e serviu para mais uma generalização que caracterizou a ‘união’ dos diversos povos do complexo Tarumã/Parukwoto atraídos para a base de evangelização na então Guiana Inglesa, alfabetizados em um novo idioma que também fora denominado de Wai Wai e que surgiu de uma mistura da língua Parukwoto com a do povo originário, formando uma língua franca com alto índice de falantes em potencial. (CARDOZO; VALE JÚNIOR, 2012, p. 27).

Há quem afirme que a unificação das aldeias e etnias tenha sido promovida pelos militares durante a ditadura, a fim de facilitar a interlocução com as populações indígenas da região. Porém, Cardozo e Vale Júnior (2012) afirmam que foi uma ação da UFM – Unevangelized Field Mission -, originária 3

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da Guiana Inglesa, que doutrinou os povos indígenas locais e promoveu processos de hegemonização moral e cultural, desconstituindo valores e modos de vida dos indígenas. Os Wai Wai não escaparam ao processo e foram formados no Evangelho, possuindo uma grande igreja montada no centro da aldeia, na qual são frequentes e semanais os cultos promovidos por pastores e caciques, com grande frequência da comunidade. O projeto foi tão audacioso que a UFM levava lideranças para serem formadas na Guiana Inglesa, já que sofreram restrições em sua atuação no Brasil por parte dos governos militares. Imprimiram, ainda, bíblias inteiras na língua Wai Wai, assim como, segundo depoimentos dados no local, conseguiram impedir que os Wai Wai falassem português até o ano de 2000 – quando um novo pastor enfrentou a restrição e abriu a comunidade para o ensino da língua portuguesa. Os indígenas, em geral, vivem da roça, da caça e da pesca, com pequenas atividades alternativas, como a dos barqueiros e dos produtores de artesanatos. A maior aldeia da região possui escola pública de ensino fundamental construída em alvenaria, assim como uma pequena pista de pouso para o transporte de alimentos e os servidores da educação e saúde que passam períodos na comunidade. Figura 1 – Mapeamento das aldeias dos povos indígenas dos rios Mapuera e Cachorro

Fonte: CASAI (Centro de Atendimento da Saúde Indígena) em Oriximiná PA

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Todavia, a Constituição de 1988 foi expressa em reconhecer e determinar à União a competência para demarcar, proteger e fazer respeitar as terras indígenas, tidas como àquelas por índios “habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.” (Art. 231, § 1º, CF/88). Não se fala em Nações Indígenas. Entretanto, o debate que envolve movimentos sociais na construção de políticas públicas em defesa dos direitos indígenas há muito inclui o conceito de nação indígena. Não obstante haver muitos que considerem fundamental a definição de nações indígenas no Brasil – eis que uma inúmera diversidade de etnias existe há séculos em território brasileiro, muito antes da chegada e da colonização dos europeus, possuindo línguas, culturas e sistemas políticos próprios –, há também uma grande resistência de quem associe dito conceito a estratégias de dissolução de frações do território brasileiro. Não obstante a hipotética hegemonia reativa à formação das nações indígenas no Brasil ao longo das décadas que constituíram o atual Sistema Republicano Liberal há que se ter em vista que o País é signatário da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas1, que expressamente reconhece o direito dos povos e pessoas indígenas a uma nação indígena. Ou seja, apesar da larga resistência a uma política de reconhecimento oficial de direitos dos povos originários às suas tradições, seus modos de vida, suas terras e seus sistemas jurídicos no Brasil, alguns avanços são passíveis de registro, como a referida Declaração, assim como o instituto da consulta prévia disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras normas jurídicas pontuais – que mantém atual a disputa conceitual a respeito das regras sociais de convivência entre a cultura dominante e as culturas tradicionais. 1

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas foi aprovada na 107ª Seção Plenária da ONU, realizada em 13 de setembro de 2007. Em várias de suas passagens, ela afirma a necessidade de fortalecimento da associação entre povos indígenas e Estados Nacionais.

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2. A Amazônia na construção do “território nacional” O cenário amazônico é visto como um território de grandiosas dimensões, que tomam conta do imaginário a partir de múltiplas percepções. Pedro de Rates Henequim, milenarista do século XVIII, acreditava com tanta veemência que estas terras haviam sido a morada de Adão e onde se encontrava a Árvore da Vida, sendo a Amazônia o Paraíso Terreal e o Amazonas o maior rio do Éden, que, ao voltar a Portugal, deixou-se processar e executar – “afogado e queimado” em 1744, por ordem de um Tribunal do Santo Ofício, pelo crime de heresia e apostasia, sem jamais ter pedido clemência2. Foram atribuídas à Amazônia as características da inacessibilidade, insalubridade e dificuldade de exploração econômica, considerando-a como uma das áreas mais subpovoadas do globo, um verdadeiro inferno verde, impenetrável e protegido pelas doenças tropicais que acometeriam os intrusos. A região seria a última fronteira econômica do mundo, com riquezas vegetais, minerais e hidráulicas incalculáveis. Inobstante as dificuldades de se penetrar na região, os mais diversos governos demonstraram preocupação em promover a ocupação e a integração da Amazônia com o território nacional. E isto foi realizado por meio da atuação de diversos atores sociais. O resultado disso nem sempre foi satisfatório, acarretando temores como o do ecólogo Robert Goodland e do botânico Howaed Irwin (1975, p. 46) de que o “inferno verde torne-se um deserto vermelho” (resultado das queimadas e dos desmatamentos. A vasta extensão do território brasileiro, a existência de áreas com baixa densidade demográfica e baixo aproveitamento econômico fizeram com que as terras do norte do país figurassem em um processo de constante “colonização” e ampliação das fronteiras. Moraes (2005) salienta que o processo gerado na exploração colonial possui o sentido de um formato exógeno, concebendo o território como um “espaço a se ganhar” – pautado em um processo extensivo. Por esta via, temos uma ação degradadora dos lugares e dos homens, pois, ambos são colocados como recursos do território a ser explorado. No Brasil, a conquista de espaços está na gênese fundante de nosso território: 2

ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

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Uma ideia-eixo que se vai perpetuar ao longo de nossa história é a de construir o País. Tal ideia tem por pressuposto uma ação colonizadora, isto é, a ocupação dos fundos territoriais não explorados vai ser alçada à condição de projeto nacional básico. Tal formulação serviu, primeiramente, para aproximar elites regionais desconectadas economicamente numa iniciativa política unitária, isto é, forneceu-lhes um cimento comum que os interesses econômicos imediatos não propiciavam. Em segundo lugar, essa ideia em si mesma legitima a existência de um Estado forte e ativo, pois caberá fundamentalmente a ele a condução desse processo (MORAES, 2005, p. 14)

A ideia de construir o país é sobrelevada nas políticas públicas e nas práticas expansionistas. A formação do Estado leva em conta a busca por garantir a soberania do território, marca de uma geopolítica de domínio. Interessante, sobretudo, é perceber a colocação de Moraes no sentido de que a ocupação do território nacional até o presente momento ainda não se encerrou, o que torna a questão mais dramática, porque permanece o dilema colonial até o presente. Tal ideia tem seu embasamento no prisma de que vivemos “a modernidade e o passado em um movimento conjunto” (MORAES, 2005, p.14). Atualmente, tendo em conta os recursos naturais e a potencialidade de sua conversão em exploração econômica, ganha cada vez mais robustez os projetos de instalação de empreendimentos hidroelétricos na região. Isso porque a demanda por produção de energia no país é crescente, diante do fluxo de crescimento produtivo e populacional. Não apenas no Rio Trombetas, mas também em outras bacias amazônicas estudos do potencial hidroenergético estão em andamento, conforme caderno de Ações e Programas da EPE: PROGRAMA 2033 - ENERGIA ELÉTRICA Ação 20LF: Estudos de Inventário e Viabilidade para Expansão da geração Hidrelétrica Desenvolvimento de estudos com vistas ao conhecimento do potencial hidrelétrico de bacias hidrográficas e estudos de viabilidade técnica e econômica de empreendimentos novos, visando à ampliação da capacidade de geração de energia elétrica. Esses estudos integram o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e no período de 2012 a 2015 estão previstos os estudos de Inventário das Bacias Hidrográficas dos rios Trombetas e Negro, bem como, os estudos de Viabilidade da UHE São Simão Alto, UHE Salto Augusto, UHE Paredão, UHE Castanheira, UHE Bem Querer, UHE Chacorão, UHE Carecuru, UHE Urucupatá e UHE Jardim do Ouro e

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Estudos Complementares ao Aproveitamento Hidrelétrico da bacia do Rio Tapajós. (Grifos nossos)3

A

matriz

energética

brasileira

volta-se

para

a

construção

de

hidroelétricas, o que envolve nesse plano de expansão, o rio Trombetas, um dos principais afluentes do Rio Amazonas, e o Rio Mapuera, que desagua no Trombetas. O que se questiona dentro deste modelo expansionista é que, para alimentar os centros urbanos com a energia necessária para o seu incessante crescimento, as áreas externas a serem domesticadas são concomitantemente desfiguradas em seu ambiente e modos de vida de seus habitantes, ambos relegados ao plano do que pode ser sacrificado em nome do bem maior, o progresso assim concebido.

3. Subindo o Mapuera Para a expedição do PPGSD chegar à principal Aldeia Wai Wai, no Alto Mapuera, foram necessários dois dias inteiros de navegação pelo Rio Mapuera, através de canoas motorizadas, que transportavam três pessoas cada, além dos dois índios que faziam a condução. Além das bagagens de cada passageiro, conduzimos ainda 400 litros de gasolina, 30 litros de diesel, 20 litros de óleo combustível, 50 litros de água mineral, 1 botijão de gás e alimentos para uma estadia de cinco dias. A gasolina e o óleo eram necessários para alimentar os motores das duas canoas nos trajetos de ida e volta, haja vista que no caminho não há qualquer estabelecimento que comercialize combustível. O diesel era necessário para alimentar o gerador para a iluminação do local de nossa estadia e o botijão para o fogão que produziria nossa alimentação. A breve viagem foi bastante cansativa para o grupo, mas foi apenas uma. O Cacique, em geral, viaja com uma grande frequência e costuma depender de carona do avião que conduz os professores da rede pública que passam períodos na aldeia. Os custos de voo até a sede do Município de Oriximiná, segundo apuramos, gira em torno dos R$ 5 mil. No dia 09/11 o grupo subiu até a Aldeia Inajá, que tem o Cacique Marciano como liderança. No dia 10/11 o grupo seguiu subindo com as duas canoas até chegar à Aldeia Mapuera, que tem o Eliseu como Cacique Geral e o 3

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA . Ações e Programas. EPE 13/06/2014. Disponível em: http://www.epe.gov.br/acessoainformacao/Paginas/acoeseprogramas.aspx. Acesso em: 08/12/2014.

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Paulo Wai Wai como Coordenador. Na região, há ainda a Aldeia Kwanamari, liderada pelo Cacique Aldo e a Aldeia Tacará, que tem como liderança o Jonas - pai do Marcos e tio-avô do Vilson, que nos conduziram nas canoas. Durante os seis dias em que a expedição do PPGSD-UFF esteve pelas Terras Indígenas Trombetas-Mapuera e Nhamundá-Mapuera,

pudemos

levantar empiricamente dados e informações sobre a região, seus modos de vida, suas demandas sociais e seus sistemas jurídicos e políticos. Porém, o principal momento de coleta de informações se deu num encontro que realizamos com o Cacique Eliseu – que é cacique geral de todas as aldeias da região, dois outros caciques que formam uma espécie de tríade no comando da aldeia principal, bem idosos e que não se comunicam em português, além do Paulo Wai Wai – que é uma espécie de embaixador da região, com grande fluência em português e com domínio relativamente alto sobre a cultura. O Cacique Eliseu fala português, mas tem uma relativa dificuldade na pronúncia e aparentemente uma dificuldade ainda maior na compreensão. Portanto, apesar dele ter passado alguns momentos sozinho com nosso grupo, o diálogo era praticamente um monólogo – no qual ele acabava respondendo positivamente para todo tipo de pergunta que fazíamos. O encontro foi cercado de certa desconfiança das duas partes. Ou pelo menos nos pareceu assim. Esses grupos são frequentemente visitados por pesquisadores, em geral antropólogos, mas também por representantes de governos e de empresas com interesses em suas áreas e seus elementos naturais. Tentamos, então, levantar suas demandas e apresentar o projeto para a implantação do Centro de Assistência Jurídica da UFF (CAJUFF) em Oriximiná, em construção pelo PPGSD. Demonstramos que nosso interesse era entender suas necessidades, assim como dos quilombolas de Oriximiná, a fim de formatar da melhor maneira a estrutura do projeto. Talvez esse tenha sido um diferencial que aumentou um pouco o interesse daqueles velhos índios ao grupo de Niterói que se apresentava a eles. Entretanto, a conversa não foi franca e aberta por ter sido a primeira e única naquele formato entre os dois grupos, assim como pelas dificuldades linguísticas que limitavam a ampla compreensão das falas – que eram simultaneamente traduzidas pelo Paulo Wai Wai. 9

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Nosso grupo de seis pessoas4 era igualmente dividido entre os gêneros. Por perceber uma subjetiva – ou, quem sabe, declarada – hegemonia masculina nas estruturas de comando e relacionamento externo na aldeia, entendemos que seria melhor apenas os três homens participarem da reunião com os três caciques e o Paulo Wai Wai. Nada foi dito a esse respeito para nós, mas onde as regras não são escritas a intuição é uma ferramenta importante do comportamento humano. Mas nosso grupo circulou por toda a aldeia. O cacique autorizou o amplo contato com a comunidade, o registro fotográfico, a visita à escola etc. A única restrição imposta foi o consumo de tabaco e álcool. Em nossas andanças, conversamos com nativos, com as professoras da rede pública que passavam períodos lecionando para os indígenas, com o médico cubano do Programa Mais Médicos, com enfermeiros e agentes de saúde indígena. Em todas as conversas, tentávamos levantar informações a respeito das culturas locais e seus modos de decisões. Em razão desse conjunto de fatores, os dados coletados não são precisos e, no permanente exercício sociológico da desconfiança, as informações levantadas apresentam antes um esboço geral a ser melhor trabalhado em novas expedições.

3.1. Das regras de comportamento Como são organizados os grupos indígenas brasileiros em geral, suas estruturas de comando são exercidas por um ou mais caciques. Devido à formação evangélica da comunidade indígena Wai Wai, relatam que as estruturas de comando da Aldeia envolvem também os pastores, que são ao todo sete. Porém, junto aos caciques aparentemente apenas um participa dos processos decisórios. Débora Duprat (2014) analisa a complexidade das fórmulas de organização das comunidades tradicionais e da dificuldade de compreendê-las com a lógica das sociedades dominantes. Isto é, a frequência com que se constroem modelos para o que ela chamou de índio hiper-real, o índio-modelo, apenas embaça a visão externa sobre seus sistemas jurídicos e políticos: 4

Dos autores, apenas não estava presente, na expedição Mapuera, Rodolfo B. de M. L. da Costa, que coordenou o retorno para Porto Trombetas da equipe de estudantes de graduação.

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Aqui é importante retornar à questão de que, quando se fala em grupos, comunidades e povos, não se está diante de totalidades homogêneas. Essa é uma visão externa, simplificadora e essencialista. As coletividades reais vivem conflitos, dissensos e disputas de várias ordens. De modo que, também internamente, é preciso tempo para construir eventuais consensos. Também há grupos que distribuem o tempo em ciclos, cada qual adequado a determinadas finalidades. Tampouco há uma fórmula única para a tomada de decisões. Alguns grupos as reservam aos caciques, anciões, professores; outros, à totalidade do grupo ou a instâncias representativas. O que é fundamental reter é que não se pode subverter esse processo mediante uma solução externa (DUPRAT, 2014, p. 66).

Quanto a seus sistemas de decisão, os caciques afirmam que possuem regras – que não estão escritas. São, em geral, regras de costume. Em nossa reunião, afirmaram que em geral não aplicam punições quando ocorrem violações às regras locais. Mas que se reúnem com o infrator, junto do pastor, e impõem no diálogo a manutenção das condutas consideradas compatíveis com a vida dentro dos valores morais formadores dos indígenas da etnia Wai Wai. Na aldeia é proibido o consumo de drogas em geral, mesmo as lícitas como tabaco e álcool. Os que são de fora da aldeia, como foi o nosso caso, são orientados a usá-las em espaço privado, fora da vista dos indígenas. Orientaram-nos, inclusive, a não deixar bitucas de cigarro pela aldeia, pois os indígenas podem coletá-las e consumi-las. Há o caso de outros de fora, como as professoras, os enfermeiros, o médico cubano. Para eles aplicam-se as mesmas regras, caso tenham o hábito do tabaco e do álcool. Um dos maiores problemas que eles enfrentam, segundo alegaram, é o de gravidez indesejada. Relataram que os jovens têm relações sexuais e eventualmente as meninas engravidam acidentalmente e que isso tem se tornado um problema. Nesses casos, informam que anteriormente obrigavam o jovem a casar com a gestante. Porém, têm encontrado resistências eventuais, quando os jovens alegam que não são os pais. Pensaram em recorrer a testes de DNA, mas constataram que os valores dos testes são inacessíveis. Como parece imperar uma lógica masculina, a punição para o jovem que não aceita o casamento, seis meses de trabalho, é inferior à punição por brigas, que pode

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chegar a um ano. As penas impostas seriam trabalhos na roça, assim como a proibição de frequentar eventos e atividades na aldeia pelo mesmo período. O adultério também não é admitido. Quando se dá entre os índios, afirmam que a solução é a reunião com caciques e pastores, na qual buscam solucionar o litígio de forma amigável. Porém, afirmam que têm dificuldade quando ocorre com pessoas externas à aldeia, como com quilombolas ou com brancos – pois sobre estes eles não teriam comando hierárquico. Sobre casamentos, possuem algumas regras. Como a aldeia não é muito populosa é relativamente comum a união entre membros da mesma família. Portanto, não há uma proibição absoluta para esse tipo de casamento. No caso, os primos que são filhos de irmãos homens não podem se casar. Mas se os irmãos são de sexos diferentes, os primos podem se casar. E os primos de irmãs mulheres também estão proibidos de se casarem. Vale dizer, parece imperar o eixo patrilinear, não se considerando como parentes os filhos de mulheres de um mesmo tronco familiar. As relações matrimoniais, portanto, se assemelham bastante ao modelo praticado nas sociedades dominantes. Todavia, para os Wai Wai, só é possível o homem casar se ele for capaz de manter o sustento da família. No modelo de união Wai Wai não se admite mais a bigamia, que ocorria até a chegada da missão evangélica. Também são formais em relação à sexualidade. O caso de uma professora que, ao que narraram, queria ter relações com homens da comunidade, parece ter causado um constrangimento traumático. Na aldeia, sequer as mulheres podem deixar o corpo à mostra – como é comum em várias outras etnias e localidades da Amazônia, tendo em vista os valores evangélicos que passaram a presidir a cultura local. O casamento com pessoas de fora da etnia não é proibido, mas também não é recomendado. Alegam que foge a seus sistemas de decisão a possibilidade de impor regras de comportamento a brancos ou quilombolas – o que deixaria o cônjuge Wai Wai desprotegido por sua comunidade. Todavia, a noção de tempo que relataram como de um casamento rápido e sem sucesso, dizia respeito a uma esposa quilombola que vivera na aldeia por oito anos. Perguntados se havia punição para homicídio responderam que nunca houve um assassinato na aldeia. 12

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Com relação a roubos, admitiram que eles ocorrem eventualmente. Em conversa informal com as professoras do ensino médio, soubemos que houve uma ocorrência naqueles dias, quando alguém subtraiu da casa delas as latas de alimento que haviam levado para a comunidade. Nessas ocorrências, afirmam que atuam no sentido de identificar e resolver a ocorrência reunindo o infrator com caciques e pastores, quando determinam a devolução do que foi de outrem subtraído. O modo de solução de conflitos, como defendido no encontro com os caciques, portanto, é fundado numa lógica de permanente controle – em virtude da qual são mantidos os hábitos e costumes que dão os contornos à sua ordem política. Pudemos perceber que a luz natural ainda dita os parâmetros de ação social. Ao escurecer, os mais velhos se recolhem, enquanto os homens mais jovens rodam o centro da aldeia, geralmente em duplas, às vezes de mãos dadas. As meninas que saem são poucas e ficam em grupos, perto da casa das professoras. A diversão não dura muito, pois cerca das 22h, após a novela da rede Globo, o gerador é apagado e cachorros ferozes, que ficaram trancados o dia todo, são soltos, colocando em perigo qualquer um que não se recolha. Um fato curioso foi um jovem que tinha um smartfone. Como lá não existe sinal de telefonia, o aparelho era válido, sobretudo, em suas funções de jogo. E o um dos jogos instalados, o Show Do Milhão, parodiando o programa do apresentador de televisão Silvio Santos, era um sucesso nas rodas de jovens à noite, e seu dono, de forma surpreendente acertava a quase totalidade das perguntas, sobre os mais diferenciados temas. Portanto, numa realidade na qual não há televisão – senão na casa das professoras, rádio, telefonia fixa ou celular, dentre outras tecnologias que produzem entretenimento, o convívio com o grupo é um valor social com extrema importância. Portanto, o mais grave da pena é o isolamento social – que parece ser motivo de vergonha e arrependimento. Se o problema de comportamento tiver ocorrido em outra aldeia, os caciques pedem ajuda uns aos outros e tentam resolver juntos a questão.

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Nas aldeias Wai Wai, aparentemente, não há instalações para a privação física do convívio. Portanto, é uma privação social praticada por toda a coletividade.

3.2. Do sistema político Quanto à escolha do cacique, afirmam que é por voto em assembleia – que reúne membros de várias aldeias da região. O voto, segundo eles, é universal: votam homens e mulheres com idade a partir dos 15 anos. Em conversa informal com outro membro da aldeia, este teria informado que somente homens acima de 30 anos votam e que os mandatos são idênticos aos nossos, de quatro anos. Porém, os caciques não confirmaram a duração de mandato, dizendo que o Cacique Eliseu foi eleito em 2005 e foi confirmado para ser mantido no comando em votação ocorrida em maio de 2014. Nessa ocasião foi feita avaliação de sua gestão, a fim de que as pessoas indicassem se desejavam continuar a tê-lo como cacique geral das aldeias da região. A eleição do Cacique Eliseu, segundo eles, se deu por votação, com um candidato adversário. Na ocasião, em 2005, a assembleia teria reunido mais de 500 indígenas com idade a partir dos 15 anos. Mas afirmam que antes dele houve eleições por aclamação. Além do processo de eleição geral, cada aldeia da região promove processo próprio para eleição de seu cacique. 3.3. Perspectiva feminina: conversas com as profissionais do CASAI A enfermeira Marinete está na comunidade desde fevereiro de 2014. É responsável pelas aldeias de baixo: de Paraíso a Tauaná, em verdade, por toda a área indígena do baixo Mapuera. E já trabalhou com os Saterês em Manaus. Informou que houve dissidência de técnicos de enfermagem devido ao acesso difícil à aldeia Mapuera, em razão das inúmeras cachoeiras existentes no trajeto. Segundo ela, são funções da enfermeira: pesar, medir, vacinar, aferir o perímetro abdominal, orientar quanto à colocação de sulfato ferroso na água, indicar o pré-natal etc. Disse que culturalmente há uma prática das gestantes esconderem que estão grávidas, pois, preferem ter o filho em casa. Poucas preferem ir para cidade, mesmo em caso de risco, pois os exames são muito 14

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demorados e é preciso ficar muito tempo fora de casa. Além disso, a CASAI em Oriximiná não é adequada para receber os indígenas, na medida em que local é quente, sem estrutura e as gestantes ficam embaixo “de lona” quando são atendidas e internadas. Quando chove, a lona que cobre a CASAI vai literalmente por água abaixo. Figuras 1 – Casa das professoras na aldeia Mapuera; 2 – Grande Oca, local das festas, aldeia Mapuera; 3 – crianças na Escola Municipal na aldeia Mapuera; 4 – Oficina da Fundação Pró-Índio com indígenas e quilombolas, em Oriximiná

Fotos de Wilson Madeira Filho

Os idosos da comunidade, segunda a enfermeira, são largados e esquecidos. Os filhos mais jovens ficam e usufruem do cartão de aposentadoria dos idosos. Essa situação foi levada ao cacique Eliseu, que teria feito uma reunião com a comunidade. Além disso, o assunto também é tratado pela equipe de saúde quando das visitas às residências. Na comunidade, a pesca é mais praticada do que a caça. O cacique proibiu a caça de tartarugas. Não há resistência em utilizar remédios por parte dos indígenas, pelo contrário, o conhecimento tradicional dos mais velhos já não é mais tão valorizado, distanciando-se da medicina tradicional. A comunidade quer trazer a Faculdade de Santarém para a aldeia, para evitar a ida da comunidade para fora, evitando assim o consumo de bebidas alcoólicas, fugas etc. Há esforços para não perder a língua e o artesanato, que são passados de pai para filho. 15

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Já a agente de saúde Elza nasceu na Guiana Inglesa, vindo para o Mapuera aos 10 anos de idade. Hoje tem 47 anos. Até a primeira gravidez, Elza só falava inglês. O português veio devido à necessidade, quando foi internada em Manaus e se viu obrigado a se comunicar em português, sem mesmo saber quase nada. É casada e tem sete filhos, sendo seis mulheres e um homem. É agente de saúde desde 2000. Sua função é visitar as casas, ajudar as enfermeiras, lavar, limpar a sede, interpretar, traduzir, orientar a não jogar lixo etc. Estão sob sua responsabilidade 32 famílias. As pessoas da comunidade não têm o hábito de ir ao posto de saúde e esperam que o agente de saúde vá às suas casas. Porém, quando vão pela primeira vez, acabam voltando sempre. Elza disse que as mulheres indígenas, em geral, não falam português. As crianças falam só a língua Wai Wai até o ensino fundamental, mas depois aprendem português. Essa situação ocorre porque a missionária Irene (americana) – que atuava na comunidade - os obrigava a falar apenas a língua tradicional. Houve um desentendimento entre os caciques e a missionária sobre essa questão e, a partir daí, todos começaram a aprender a falar também o português. A missionária saiu da aldeia. Irene tem hoje cerca de 80 anos, 50 deles dedicados ao Mapuera. O português virou língua oficial somente a partir do ano de 2000. As mulheres hoje em dia não querem mais ter tantos filhos, querem ter no máximo quatro. As principais festas são as do fim do ano, que vão do dia 23 ao dia 31/12, e a de abril, que celebra a Páscoa, assim como as de encerramento do ensino fundamental. Sobre os principais problemas ou ações que eventualmente necessitem de apoio, Elza mencionou a falta de remédios no posto, a instalação inadequada do posto - cuja casa é de madeira e, segundo ela, deveria ser de alvenaria. Em conversa com a técnica de enfermagem Keila, que tem 26 anos e está na aldeia desde 2011, ela relata que os anos de 2013 e 2014 foram anos de muitos investimentos na saúde indígena, embora não o suficiente. Antes, não haveria motor, freezer, medicação, nada. Afirma que o posto é procurado

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pelas mulheres e que os homens só vêm ao posto se estiverem acometidos de mal grave. Os jovens querem cada vez mais ir para a cidade, às vezes vão para estudar e não querem mais voltar. Na aldeia ocorrem muitos casos de violência contra a mulher, praticada pelos maridos. Devido à falta de alternativa e à resistência em ter muitos filhos, as mulheres estão abortando - utilizando métodos invasivos, tais como introdução de um ferro, utilização de chás abortivos etc. O número de abortos chamou a atenção do Ministério da Saúde, que estaria investigando os casos.

4. Da gênese ao atual conflito da Usina Hidrelétrica de Cachoeira Porteira Na

gradação

de

projetos

governamentais

para

a

Amazônia

experimentados no regime militar, iniciados com a Operação Amazônia, seguidos da Ação do Governo Federal na Amazônia, Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento entre outros, algumas áreas foram selecionadas enquanto prioritárias de serem contempladas pelo programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia – POLAMAZÔNIA5. Com mais de 85.000 Km2 o Polo Trombetas, em sua área de abrangência, abarcou parte dos municípios de Monte Alegre, Alenquer, Óbidos e Oriximiná. Por ter sido eleita enquanto polo de desenvolvimento, a Região do Trombetas foi cotada para receber maciços investimentos em infraestrutura com fins de formar na área um complexo industrial, principalmente ligado a produção de energia e a bauxita. Em 1976 o Ministério do Interior/SUDAM promulga o “II Plano Nacional de Desenvolvimento – Programa de Ação do Governo para a Amazônia – II PND”, consolidando a “nova era de expansão desenvolvimentista” que recaiu sobre a região com a fórmula: “manutenção de altas taxas de crescimento do PIB, através de ampla contribuição em relação ao setor de comércio exterior” 6. O foco central do Polo foi a produção da bauxita a partir do capital nacional e internacional que deu origem à Mineração Rio do Norte – MRN. Por outro viés o II PND estudava para a consolidação do Polo Trombetas o potencial hidro-energético em que se atribuía ao rio a

5

GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Síntese do POLAMAZONIA. Belém. 1975 GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimento – Programa de Ação do Governo Para a Amazônia. Belém, 1976. p. 52 6

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possibilidade de geração de 16.000MW. A partir daí surge um projeto de hidroelétrica planejada para atender o beneficiamento da bauxita da MRN, estimando-se produção de 800MW na área da Cachoeira Porteira7. A hidroelétrica estava prevista juntamente com a criação de um complexo industrial no Trombetas. A legislação permitia a participação direta das grandes indústrias consumidoras nas obras de geração de energia, possibilitando um ambiente favorável para os investidores se instalarem durante um breve e transformador período na Cachoeira Porteira. Essa região estava se conectando à malha rodoviária nacional pela BR163, sendo construída pelo consórcio Andrade Gutierrez, Noberto Odebrecht e Estacon Engenharia. Por sua vez a hidroelétrica UHE Porteira era responsabilidade da ELETRONORTE e ENGE-RIO. O início das obras para a construção das Barragens da Cachoeira Porteira se deu em 1986, com intervenções mais significativas a partir de 1987. Em abril de 1988 é apresentado novo projeto básico da UHE Porteira – Planejamento da rede hidrométrica da Bacia Trombetas/Mapuera8. Pouco depois, na eminência de aprovação do projeto em 1989, ainda condicionada à aferição dos seus impactos ambientais e sociais, a Comissão da Pastoral de Direitos Humanos da Prelazia de Óbidos, convida a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPISP), a Central Única dos Trabalhadores do baixo amazonas e a Comissão dos Atingidos por Barragens para auxiliarem na luta dos direitos dos quilombolas, ribeirinhos e indígenas. Como os principais atingidos eram os índios do Mapuera, além dos quilombolas, a chegada da CPISP vai redimensionar o movimento, vai ligar o Norte com o Sudeste e depois com o mundo. Para deter o avanço da hidroelétrica e dar coesão ao movimento são organizados

três

seminários

sequenciais

em

Oriximiná,

amplamente

panfletados, destacando-se o primeiro, realizado entre os dias 13 e 15 de outubro de 1989, na sede da Igreja de Santo Antônio – Oriximiná. O seminário promovido pela CUT do Baixo Amazonas e a Comissão dos Atingidos por Barragens tinha como tema Hidrelétricas e Meio Ambiente. A construção da

7

O projeto da hidroelétrica da Cachoeira Porteira, anos depois, vai ser um dos estopins para a organização política dos remanescentes de quilombo. 8 CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S.A. Usina Hidroelétrica Porteira: Planejamento da Rede Hidrométrica Bacia Trombetas Mapuera. Abril de 1988.

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Hidrelétrica de Cachoeira Porteira no Rio Trombetas, prevista para o ano de 1990 foi o principal alvo dos debates. Os impactos do empreendimento já começavam a ser sentidos pelos locais antes mesmo do início das obras, pois para a realização dos estudos para a implantação da Hidrelétrica, os técnicos da empresa responsável (ELETRONORTE) invadiram lotes de terras sem o consentimento dos moradores e abriram mais de cem clareiras dentro do território indígena da área Mapuera para a instalação de uma base de apoio. Preocupados com essa situação, os organizadores propuseram o seminário com o objetivo de “mobilizar as entidades sindicais, movimentos populares, população atingida e população em geral para se questionar a viabilidade ou não da construção das barragens.” Após o Seminário, a Comissão Pró-Índio busca apoio junto a diversas entidades internacionais, no Canadá, USA, Holanda e Noruega, às quais possuíam sede nos países de origem das empresas acionistas da MRN, o que se cogita ter logrado algum êxito nesta contensão, pois o projeto paralisou. Apesar de paralisado o projeto nunca deixou de dar sinais de que se mantinha vivo e que viria a tona novamente. O projeto ressurge publicamente na proposta do Governo Federal apresentada no Programa 2033 – Energia Elétrica - Ação 20LF: Estudos de Inventário e Viabilidade para Expansão da geração Hidrelétrica. A proposta, integrante do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, consegue autorizações dos órgãos ambientais estadual e federal obtidas pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável para realizar os estudos de viabilidade da hidrelétrica na Bacia do Rio Trombetas, com cronograma de construção da barragem previsto para até 2021. Contudo os estudos “oficiais” se iniciaram sem realizar consulta prévia às comunidades atingidas. A partir de denuncia apresentada pela CPISP e com a identificação de inúmeros pontos controversos no andamento dos trabalhos, o Ministério Público Federal recomenda a suspensão dos estudos9. 9

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Recomendação. 3º ofício/PRM/STM nº 4. Santarém, 18 de agosto de 2014, p. 6: “Que, em razão dos fatos e argumentos apresentados determine, em razão da urgência e do relevante interesse público, a SUSPENSÃO DAS LICENÇAS OU AUTORIZAÇÕES EXPEDIDAS NA REGIÃO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO TROMBETAS, especialmente a AUTORIZAÇÃO 2329/2013, expedida pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA). Abstenha-se, ainda, de RENOVAR OU CONCEDER QUALQUER TIPO DE LICENÇA OU DE AUTORIZAÇÃO NESTA REGIÃO à Empresa de Pesquisa

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Considerações finais Como historicamente a hidroelétrica na Cachoeira Porteira já foi palco de um amplo conflito que serviu para reafirmar o movimento de luta dos grupos minoritários da região e integrá-los, a organização política dos mesmos para combate-la parece ressurgir quase que espontaneamente. Foi possível observar em Oriximiná, em reunião na Paróquia da cidade, a integração entre indígenas e quilombolas na defesa de seus territórios, orientados e supervisionados pelos mesmos atores exógenos que contribuíram no passado para sua organização política: a CPISP e representantes da pastoral da Terra/Diocese de Óbidos e paróquia de Oriximiná, além de novos apoiadores. Apesar da opressora marcha avante do modelo de desenvolvimento e sua expansão quase irrefreável, os indígenas de Oriximiná, assim como os remanescentes de quilombo, possuem uma bagagem política e de integração que os possibilita a visibilidade e a adesão de novos grupos de apoio que viabilizam maior difusão de suas demandas. Contudo, para que se faça questão de direito é necessário somar interesses suficientes para inverter o peso do ideário desenvolvimentista em expansão e, neste caso, o papel da academia pode assumir significativa importância.

Referências CARDOZO, Ivoneide B.; JUNIOR, Israel C. V. (orgs.). Etnozoneamento da porção paraense das terras indígenas Trombetas-Mapuera e Nhamundá-Mapuera. Porto Velho: Edufro, 2012. CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S.A. Usina Hidroelétrica Porteira: Planejamento da Rede Hidrométrica Bacia Trombetas Mapuera. Abril de 1988. DUPRAT, Deborah. A Convenção 169 da OIT e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada. In: Revista Culturas Jurídicas. Vol. 1, Núm. 1. Niterói: UFF, 2014. EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA . Ações e Programas. EPE 13/06/2014. Disponível em: http://www.epe.gov.br/acessoainformacao/Paginas/acoeseprogramas.aspx. Acesso em: 08/12/2014. GIANNOTTI, José Arthur. Acabou o capitalismo, é a barbárie? (Entrevista). In: Revista Presença, n. 3. São Paulo: Editora Caetés, 1984

Energética (EPE) e qualquer outra empresa, subcontratada ou não, que almeje pesquisar ou realizar estudos para inventário hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Trombetas, até que haja a realização de consulta prévia, livre e informada da Convenção 169 da OIT, às populações tradicionais existentes na área, tais como indígenas, ribeirinhos, quilombolas, povos extrativistas, bem como consulta aos Conselhos Gestores e Consultivos das unidades de conservação federais e estaduais da aludida região”.

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GOODLAN, Robert e IRWIN, Howard. A selva amazônica: do inferno verde ao deserto vermelho? Itatiaia SP: Universidade de São Paulo, 1975, p. 46. GOVERNO FEDERAL/SUDAM. Síntese do POLAMAZONIA. Belém. 1975 GOVERNO FEDERAL/SUDAM. II Plano Nacional de Desenvolvimento – Programa de Ação do Governo Para a Amazônia. Belém, 1976. p. 52 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Recomendação. 3º ofício/PRM/STM nº 4. Santarém, 18 de agosto de 2014 MORAES, Antônio Carlos Robert. Meio ambiente e ciências humanas. São Paulo: Annablume, 2005, p. 58. QUEIROZ, Rubens Caixeta de; GIRARDI, Luisa Gonçalves. Dispersão e concentração indígena nas fronteiras das Guianas: análise do caso kaxuyana. In: Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Brasil, Vol. XIII, nº25, Jul-Dez 2012, p. 15-42. ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

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