Hierarquias e questões geracionais na escola: Algumas considerações sobre as falas de jovens estudantes

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SUBJETIVIDADES E TEMPORALIDADES Diálogos impertinentes e transdiciplinares Organizadores

Ariane Ewald Jorge Coelho Soares Maria de Fátima Vieira Severiano Cássio Adriano Braz de Aquino Amana Mattos

HIERARQUIAS E QUESTÕES GERACIONAIS NA ESCOLA Algumas considerações sobre as falas de jovens estudantes Amana Mattos

Introdução Pensar a dimensão da temporalidade implicada nos processos de subjetivação contemporâneos exige, em alguma medida, que compreendamos como sujeitos se produzem e são produzidos na escola hoje. Essa instituição, que se coloca como dispositivo central da socialização infantil e juvenil modernas, vem sendo problematizada em relação ao seu papel, projetos e mesmo seu futuro nas sociedades ocidentais. Em especial para nós, que nos inserimos como pesquisadoras e pesquisadores no campo da psicologia social e da juventude, entender os processos de subjetivação que se dão na escola envolvendo estudantes e suas relações com outros personagens escolares, como professoras e professores, diretoras, coordenadores, funcionários, nos permite mapear como esses sujeitos se localizam e pensam os lugares que ocupam, as relações de hierarquia e a função que “a escola” desempenha na vida de crianças e jovens. Emprego o termo entre aspas porque, por mais que este eventualmente apareça assim, no singular, nas falas de nossos sujeitos de pesquisa e mesmo no campo da psicologia em geral, sabemos que nesse significante se insinuam inúmeras possibilidades de vivência escolar, de vínculos afetivos e de concepções de escola distintas. Neste capítulo, procuro discutir questões que venho observando no trabalho de campo da pesquisa que realizo com minha equipe do Instituto de Psicologia da Uerj. Nessa pesquisa, buscamos entender de que forma jovens estudantes de escolas públicas do 371

Rio de Janeiro pensam e significam a experiência de liberdade em suas vidas, e para isso partimos da inserção desses estudantes em um contexto hierarquizado como a escola. Muitas questões vêm se colocando nesse trabalho de intervenção, mas é surpreendente como os conflitos geracionais têm se destacado, fazendo-nos refletir sobre a condição de jovens dos participantes, sobre o lugar que a escola (e, com isso, os adultos) demarca para esses jovens, os conflitos que surgem com os adultos no cotidiano, além de questões mais específicas da instituição em que estamos atuando no momento, que discutirei mais adiante. Proponho um recorte para discutir tais aspectos geracionais na relação que os estudantes estabelecem com professoras e professores. É importante frisar que, como as falas foram produzidas em grupos de reflexão, elas põem em cena como esses sujeitos se pensam na escola, e a análise não pretende atribuir a elas nenhuma representatividade ou “verdade última”. Antes de trazer as falas dos participantes da pesquisa, entretanto, proponho uma breve reflexão sobre a concepção de tempo que está presente na constituição da infância e da juventude como objetos de estudo da psicologia do desenvolvimento. Tal concepção pauta as linhas gerais que orientam os currículos e programas da escola moderna, bem como as práticas institucionais que demarcam os espaços de fala e de silenciamento para crianças e jovens até hoje. Ser estudante é estar remetido, invariavelmente, a um lugar de tutela e de aprendizado, e as expectativas dos adultos (de professoras e professores, dos pais, da direção da escola) vão no sentido, muitas vezes contraditório, de que crianças e jovens reconheçam a autoridade dos adultos e, ao mesmo tempo, abandonem esse lugar tutelado rumo a uma condição de sujeitos desenvolvidos. Como veremos mais adiante, os jovens participantes de nossa pesquisa reconhecem as inconsistências das falas e das demandas dos adultos na escola, e levantam questões importantes para pensarmos o lugar da educação em nossa sociedade. 372

O tempo da infância na psicologia do desenvolvimento Com o surgimento da psicologia moderna em fins do século XIX, e com sua orientação científica marcada pelo projeto moderno de cientificidade compartilhado com as demais ciências humanas, a psicologia toma, em seu nascimento, o período da infância como objeto de investigação de destaque. Seu intuito nessas pesquisas exaustivas do objeto-infância era poder explicar a formação do pensamento racional. Uma vez que o pensamento racional é entendido enquanto característica do homem adulto, a questão colocada pelos psicólogos do desenvolvimento foi: quais são as condições e as etapas de formação do adulto? Vale dizer que a psicologia deste momento não estava interessada em estudar “qualquer” adulto, mas o adulto capaz de viver em sociedade, de agir politica e eticamente, de conviver com outros adultos segundo as leis vigentes. Enfim, ela estava interessada – e esse interesse perdura até hoje – nos processos que levarão à formação do cidadão, pelo estudo científico da infância e da adolescência/juventude. A psicologia do desenvolvimento segue, assim, a orientação das ciências humanas no que diz respeito ao objetivo de seu conhecimento: entender, explicar e predizer o processo de formação do cidadão/adulto normal. O papel que a psicologia do desenvolvimento exerce na construção do “objeto criança” para o estudo científico não seria possível sem a incorporação da estatística e sua aplicação em testes, experimentos e interpretação dos resultados. A ordenação da infância em categorias, etapas e fases se dá diante do pano de fundo da normatização dessa faixa etária (Castro, 1998). Pela ordenação da diferença, a psicologia reduziu as idiossincrasias a características que deveriam ser compartilhadas por toda criança “normal” de determinada idade. Para que a psicologia pudesse explicar essa “normalidade”, pesquisou-se, pelo método científico, como se constitui a personalidade do homem adulto, e como é possível contribuir para a formação de cidadãos capazes de conviver democraticamente com os demais. Como bem destaca Burman (2008, p. 4), é preciso ter 373

claro que as descrições normativas oferecidas pela psicologia do desenvolvimento deslizam para prescrições naturalizadas, através de todo um vocabulário biologizante e evolucionista. Por meio da objetificação da infância, as contribuições da psicologia para o campo da educação foram inúmeras, e visaram planejar o melhor modo de se levar a criança de seu estado de natureza para o ponto de chegada máximo da civilização moderna: o cidadão pleno de suas capacidades cognitivas e morais, e de seus direitos. A criança e o jovem são pensados na psicologia do desenvolvimento partindo-se da exclusão de temáticas como o conflito, o descentramento, a não identidade e a ambivalência: como etapas anteriores às competências necessárias para a convivência coletiva no mundo público, como sujeitos ainda não prontos para o exercício político. Além disso, da perspectiva desenvolvimentista, a experiência de liberdade do sujeito criança e do sujeito jovem, por não se tratarem de cidadãos formados, só pode ser uma experiência tutelada e controlada por sujeitos responsáveis (pais, educadores, psicólogos, instrutores, enfim, adultos). Uma das principais características da organização do percurso da vida humana proposta pelas teorias desenvolvimentistas é a concepção de tempo que a sustenta. Concebida como linear e cumulativa, a passagem do tempo traz em si a ideia de maturação, de evolução. A cada nova aprendizagem (progresso) da criança, é possível marcar, em sua linha da vida, um passo dado em direção ao ponto de chegada, e um afastamento de seu estado original de total dependência, vulnerabilidade e ignorância. Revelando a inspiração darwinista que está presente desde a formulação da questão central (“como o ser humano se desenvolve?”) da psicologia do desenvolvimento, é possível reconhecer a noção de progresso pautando seus experimentos, relatórios, descrições de fases e etapas, que tomam o desenrolar do curso da vida humana de forma previsível e sequencial, proporcional aos eventos que se sucedem na maturação biológica do organismo. Como afirma Patto (2010, p. 128), “os con374

ceitos de maturação biológica, evolução, sobrevivência do mais apto e hereditariedade como determinantes das diferenças individuais, grupais e étnicas de capacidade estão nas origens dessa ciência”. A confluência das teorias desenvolvimentistas com as teorias evolutivas do homem teve repercussões consideráveis nos métodos e instrumentos desenvolvidos pelos psicólogos do início do século XX. A mensuração de habilidades, inteligência e comportamentos, com seus resultados aplicados à comparação, regulação e controle de grupos e sociedades está intimamente relacionada com o estabelecimento de normas a respeito da infância e de seu desenvolvimento. A preocupação com a melhor adaptação possível do indivíduo ao meio (sociedade) está em consonância com a noção de evolução darwinista, e a criança é colocada no lugar de início do que futuramente será o ser humano desenvolvido, acabado. Segundo Burman (2008, p. 20), “a emergência tanto do indivíduo quanto da criança como objetos do olhar social e científico foram simultâneas”. O campo da educação foi, sem sombra de dúvidas, uma das áreas que mais se nutriu dos estudos conduzidos pela psicologia do desenvolvimento. Em sociedades como a europeia e a norte-americana, em que a educação básica compulsória é uma realidade desde fins do século XIX, as preocupações acerca de como ordenar esse processo – que inclui a seriação do ensino, a divisão dos alunos em turmas separadas por idade, a padronização das tarefas e a constante avaliação dos alunos – demandam uma vasta produção de pesquisas sobre a infância e seu desenvolvimento. No Brasil, a educação compulsória surge no início do século XX, inspirada pelos valores iluministas de racionalização, aliados à necessidade de formação de mão de obra capacitada para o trabalho cada vez mais especializado oferecido nos grandes centros urbanos. Em cada um desses contextos, a definição de currículos e programas demarcava a orientação que as escolas davam para que crianças se tornassem cidadãos ao final do percurso escolar. Vale ressaltar, como nos lembra Patto (1996), que a pedagogia que surge no Brasil no início do século XX, aliada à psicologia 375

científica, tem forte inspiração liberal. Isso significa que ambas estão orientadas pela ideia de concorrência e seleção natural, independentemente das origens sociais e raciais dos indivíduos. Patto afirma que, se a viabilidade dessa concorrência é questionável em países de economia capitalista consolidada, a aplicação desses princípios na escola compulsória num país de economia e população majoritariamente rurais e familiares, como era o caso do Brasil no início do século XX, acarreta desigualdades que irão se perpetuar por muitas décadas. Assim, a escola moderna que se consolida em nosso país oferece aos seus estudantes um percurso marcado pela inferiorização da condição de aprendiz, da hierarquização dos mais novos em relação aos mais velhos, pela acumulação progressiva de conteúdos e pela manutenção da ordem e da disciplina dentro da escola. Como afirma Silva, ao falar da construção dos currículos escolares no início do século XX, “a existência do objeto é inseparável da trama linguística que supostamente o descreve” (2011, p. 12). Assim como Silva entende que a suposta “descrição” do que deve ser ensinado e estudado na escola é, na verdade, a “criação” de um currículo, a própria descrição (por parte da psicologia e de outros saberes, como a medicina) de uma infância a ser educada, tutelada e acompanhada em seu desenvolvimento, organiza as sociedades modernas em torno da produção dessa infância. Não há criança na modernidade sem referência à escola (nem que seja para que determinadas infâncias serem marcadas por estarem “fora da escola”). A transmissão dos valores da cultura será feita a partir dessa instituição. Esta, por sua vez, é marcada profundamente pelas hierarquias e desigualdades da sociedade em que se encontra, e as práticas que têm lugar na escola majoritariamente irão ressoar, reproduzir esses valores em seu cotidiano.

Hierarquia e conflitos na escola pela voz de jovens estudantes Fazer pesquisa-intervenção na escola hoje significa adentrar um espaço esquadrinhado pelas questões que levantamos acima, um 376

espaço disciplinar e hierarquizado, que deve ser frequentado por crianças e jovens regularmente. Mas estar na escola pesquisando é também perceber que essa dimensão normativa apresenta incontáveis rachaduras, contradições e desestabilizações. Suspeito, inclusive, de que essas outras experiências da escola sempre estiveram aí. Mas a psicologia tradicional não se debruçou sobre essas falas dissidentes, optando por teorizar sobre processos e tipos normais, desviantes ou muito gerais, aos quais, como afirma Patto (2010), sobra abstração e falta contexto. Os casos, as histórias que não passam pela voz do adulto professor ou especialista, em que crianças e jovens são os protagonistas, os recolhemos da literatura, do cinema, de histórias contadas cheias de saudade e estranhamento por adultos, ou de nossas próprias lembranças desse período tão extenso de nossas vidas. Animada por essa curiosidade em ouvir outras vozes na escola, e interessada em explorar outras entradas para os estagiários de Psicologia nesse espaço que não o de promoção e fiscalização da norma, contatei, junto com minha equipe, três escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, onde realizaríamos oficinas com os estudantes para discutir questões relacionadas às suas experiências cotidianas naquele espaço. Estávamos especialmente interessadas em ouvir sobre sua relação com a autoridade e a hierarquia presente de maneira tão explícita em suas relações com os adultos. A escola é esse lugar para o qual as crianças vão, desde muito pequenas, aprender coisas importantes para o futuro, para “serem alguém na vida”. Mas na maior parte do tempo, esse aprendizado se dá, pedagogicamente, através da divisão embrutecedora do mundo em dois mundos, duas inteligências, como afirma Rancière (2007): uma inferior, que deve ser educada e ensinada, e uma superior, a do mestre. A trajetória escolar por que alunas e alunos passam, pela qual todos nós passamos, é uma trajetória de adiamentos e de alienação da inteligência. Diz Rancière: Fragmentos se acrescentam, peças isoladas de um saber do explicador que levam o aluno a reboque de um mestre que ele jamais atingirá. O livro nunca está inteiro, a lição jamais acabada. O mes377

tre sempre guarda na manga um saber, isto é, uma ignorância do aluno (Rancière, 2007, p. 41).

Portanto, foi preciso nos descolarmos desse vínculo com a pedagogia e com a psicologia escolar para que pudéssemos entrar nas escolas com uma proposta de escuta distinta. Que não hierarquizasse previamente nossos saberes em relação às falas das e dos estudantes. Mas essa tarefa não foi tão simples assim. A entrada institucional de um projeto de pesquisa, vindo de uma universidade pública, já demarca previamente lugares de fala e de reconhecimento. Não teríamos conseguido acessar estudantes e professoras da maneira como o fizemos sem nos apresentar como acadêmicas, pesquisadoras, psicólogas. De saída, já estamos situadas e de algum modo mapeadas em relação a nossos interlocutores. Sem dúvidas, nos esforçamos para não responder a demandas que são frequentemente direcionadas a profissionais da área psi que chegam à escola: de diagnóstico, de aconselhamento, de atendimento individual de alunos com problemas. Mas as falas que nos eram endereçadas pressupunham ser esse o nosso lugar. Num episódio emblemático, um grupo de estagiárias aguardava a professora da turma na sala de professores. Um funcionário da escola entrou na sala e perguntou, em tom inquisidor, o que as alunas estavam fazendo ali, e para piorar, sem uniformes! As estagiárias explicaram que eram universitárias e estavam ali para conduzir uma oficina. Imediatamente o tom do funcionário mudou, ele se desculpou e perguntou se “as psicólogas” já sabiam em que sala iriam ficar. Ao sermos identificadas a um lugar de saber específico, uma série de falas e ações nos são remetidas, ainda que não desejemos ser vistas desta ou daquela maneira. Começar as oficinas foi decisivo para que pudéssemos construir e negociar esse lugar de fala dentro das escolas. Neste capítulo, farei um recorte analítico do material produzido nas oficinas que vimos realizando desde 2011 em uma escola pública de formação de professores. Nessa escola, a proporção de estudantes do sexo feminino 378

é de nove para um do sexo masculino, e os grupos com os quais trabalhamos mantiveram essa característica. Também é um aspecto importante que essas jovens estejam estudando para, no máximo em três anos, se formarem professoras, isto é, serão colegas de profissão daquelas e daqueles educadores que no momento dão aulas na escola. Entretanto, como veremos, as relações entre mestres e estudantes se estabelecem por marcações bem diferenciadas. De maneira geral, os participantes das oficinas se queixaram de que, apesar de existir um discurso por parte da escola para que estudantes sejam críticos e autônomos, na prática (ou seja, no cotidiano da instituição) eles não são estimulados a manifestar sua opinião, não só em relação a professoras e professores, como também em relação à coordenação e organização da escola como um todo. Uma joven, em uma das oficinas realizadas, chega a afirmar não ter liberdade de questionar, não poder argumentar com ninguém na escola porque os estudantes estão “em último lugar” na hierarquia ali definida, e que dentro da escola “o diálogo não vale”. Uma série de relatos se referiram à pouca troca entre professoras, professores e estudantes durante as aulas, numa experiência de ensino-aprendizagem baseada no depósito de informações passadas unidirecionalmente para a turma. Uma jovem contou, em um dos encontros, que ao tentar criticar o modo como um professor estava dando sua aula, o ouviu se negar a discutir com a aluna seu método de aula, sinalizando que ela não teria condições de debater essa questão com ele. No entanto, o grupo questionou que essa mesma aluna, dentro de alguns meses, terá ela mesma que construir uma metodologia didática para suas aulas. Assim, a discussão sobre os métodos ali empregados não poderia ser uma maneira legítima de instruí-la? Essas falas nos remetem ao distanciamento que a estrutura hierárquica da escola provoca na relação entre crenças e práticas em todas as instâncias da instituição. As jovens afirmaram que muito se fala na escola da formação do futuro professor, crítico e capaz de ar379

gumentar e discutir sobre sua atuação, porém na prática aquela ou aquele que será em breve professor, é tida(o) como sendo inferior e, em certa medida, incapaz de discutir o que ocorre em sua própria escola. A percepção dos grupos em relação às diferenças de tratamento dispensado a professores e alunos também se mostrou muito aguçada. Durante os encontros, ficou evidente que o que mais os incomoda são os “privilégios” que os professores da escola teriam em relação aos alunos: poder almoçar fora da escola, sentar-se sobre a mesa e falar alto em sala de aula seriam atitudes permitidas aos professores e proibidas aos estudantes, e aqueles que transgridem são alvo da fiscalização dos coordenadores de turno. Segundo os estudantes, a escola justifica esses “privilégios” afirmando que os professores ocupam um lugar mais alto na organização da instituição, ou seja, são superiores. O que parece realmente incomodar, entretanto, não é a existência da hierarquia em si, mas as inconsistências evidenciadas por esses privilégios – e os discursos usados para validá-los. Durante uma das oficinas, as estagiárias perguntaram se tem alguma coisa que professores podem fazer e alunos não. Uma aluna responde: “Claro! Almoçar fora da escola!”, e a outra complementa: “Mas aí vem a hierarquia! É errado a escola falar tanto sobre cidadania e liberdade e proibir a gente de sair [do prédio da escola, para almoçar e lanchar]!”. A primeira pondera: “Mas eu acho que eles pensam na nossa segurança...”. A outra jovem discorda, irritada: “Na segurança? Se chegamos atrasados eles deixam a gente do lado de fora [da escola]! Como eles cuidam [da segurança]?”.

Muitos foram os relatos sobre situações em que uma regra é imposta sem que haja um porquê. Para os participantes das oficinas, essa arbitrariedade se mostrou uma das maiores questões colocadas aos estudantes. Aceitar algo porque “tem que ser assim” surge como um contrassenso, pois entendem que estão num lugar em que é exigido deles a argumentação e o exercício do pensamento. A hierarquia – palavra que apareceu incontáveis vezes nas falas dos estu380

dantes – aparece ao mesmo tempo como algo que se impõe e é parte natural da escola. Essa percepção não se dá apenas em relação aos professores, mas também em relação às turmas mais velhas. É o que podemos depreender do comentário de uma aluna sobre a questão: “Bem que tem professor que fala que o que vale aqui na escola é o peso da estrela!”, referindo-se ao broche de estrela que vai sendo acrescentado no uniforme da turma ao final de cada ano concluído. Quando iniciamos as oficinas nessa escola, nem todos os funcionários sabiam quem eram as estagiárias ou o que nossa equipe faria ali. Além disso, o próprio funcionamento do encontro já destoava do modo como as aulas são dadas: cadeiras em roda, espaço para alunas e alunos falarem e debaterem, uso de dinâmicas, além, é claro, da condução ser feita por duplas de estagiárias de psicologia – figuras estrangeiras na escola. Tudo isso, somado às temáticas extracurriculares que eram discutidas, gerava uma agitação e animação nas turmas bem compreensível. Numa ocasião, a oficina estava acontecendo e em determinado momento entra na sala a inspetora da escola, sem bater na porta ou se reportar às estagiárias. Ela entra gritando, manda que um dos alunos se sente na cadeira (o jovem estava sentado em cima da carteira), e diz que ia informar a direção sobre “aquela bagunça” que estava ocorrendo ali. Após sua saída, as estagiárias ainda estavam um tanto atordoadas, e os jovens criticavam o que tinha acabado de acontecer: “Eu sei por que elas [as inspetoras] fazem assim. Querem mostrar uma autoridade, uma hierarquia que não existe! Querem dizer que podem mandar à vontade”. As estagiárias perguntaram se esse tipo de coisa acontece com frequência, e os alunos confirmaram que sim, demonstrando-se muito incomodados com a situação. Um aluno dá sua opinião: “O problema aqui é que é muito chefe. Todos com o mesmo poder, e aí um quer mandar no outro e não consegue. Para mostrar a autoridade que não conseguem ter, eles fazem essas coisas com a gente”. Foi interessante perceber que os participantes têm suas próprias teorias sobre como se dão as dinâmicas entre as gerações mais ve381

lhas e as mais jovens na escola. Os incômodos com a falta de escuta e de conversa foram recorrentes, e em muitas ocasiões nossa equipe se questionou se esse mal-estar dos jovens não chegava de alguma maneira aos professores e à coordenação. Como, até esse momento, nosso campo tem sido junto aos estudantes, o que temos percebido é que eles não se sentem levados em consideração em boa parte dos conflitos e embates, e entendem que a hierarquia professor-aluno é uma maneira de resguardar os mais velhos de terem que lidar com as queixas e as insatisfações dos mais jovens. Num dos encontros, uma jovem disse algo curioso e ao mesmo tempo bem significativo. Ela disse que a porta da sala da direção é “à prova de som”. A porta dessa sala é de madeira, como todas as outras da escola, mas há também uma porta de vidro, que é a que permanece fechada. Assim, a direção ficaria “isolada” do barulho externo. As colegas complementam a fala da jovem: “Para você ver que não querem nem que o aluno chegue perto!”, “Não querem escutar a gente...”. O entendimento de que “é assim que as coisas funcionam” – ou que acabam funcionando – me parece ser um dos “aprendizados” mais consistentes que a instituição escolar proporciona. A naturalização da ideia e do sentimento de que aqueles que ocupam os lugares hierárquicos superiores gozam de uma posição intangível, inabalável, e que os que estão abaixo nada podem fazer para sensibilizá-los ou para serem escutados. Isso não significa que não existam professoras, professores, coordenadoras, diretoras que se empenhem em se relacionar com os mais jovens, escutá-los, compreender seus pontos de vista, mesmo não concordando com eles. Nos quinze anos em que venho fazendo pesquisa em escolas, encontrei educadoras e educadores muito sensíveis, cientes das dificuldades do cotidiano escolar e do processo educativo, e disponíveis ao diálogo com as gerações mais novas. Entretanto, é preciso reconhecer que são minoria. O próprio funcionamento da escola faz com que essas vozes sejam por tantas vezes engolidas pelas exigências disciplinares, didáticas, dos órgãos e secretarias que verticalizam e perpetuam as 382

hierarquias cegas e inquestionáveis na educação. Se nós, pesquisadoras, percebemos isso em nossas idas à escola, é claro que os estudantes que ali estão todos os dias compreendem isso muito bem. E também naturalizam essa situação, com o passar dos anos. Problematizar essa questão é sempre uma tarefa árdua. Como discuti inicialmente, toda a estrutura escolar moderna está alicerçada sobre muitos tipos de subordinação. Como afirma Castro (2012), as relações de aprendizagem implicam sempre alguma relação de subordinação, em que aquele que aprende está submetido ao que ensina. Segundo a autora, essa condição da aprendizagem poderia conduzir a um “impasse alteritário”, em que é necessário submeter-se à presença do outro adulto e deixar-se perturbar por essa relação. Entretanto, essa subordinação pode ser experienciada de maneiras distintas. Como possibilidade para a mobilização e participação, ou como uma situação de opressão e injustiça paralisante. Muitas falas nas oficinas apontaram para o que seria uma socialização escolar “bem sucedida”, isto é, para a internalização por parte dos estudantes da necessidade de que a regra escolar seja obedecida, e que essa é a melhor referência para os jovens. Num encontro, uma aluna afirma que acha a escola importante. Ela diz: “A escola é um lugar de educação. Estamos aqui para ter valores melhores que a dependência química, por exemplo”. Ao ser questionada por uma das estagiárias sobre o fato de alguns professores fumarem dentro da escola, enquanto os alunos não podem fumar (pois alguns participantes deste grupo são fumantes e se queixaram disso), essa mesma aluna responde: “Ah, o ideal era a regra valer para todo mundo, mas eu acho que o adulto já tá formado, e a escola tem que ensinar a quem tá se formando. A escola é lugar de formação”. Vale sinalizar que esse grupo era de uma turma de 3º ano, o último antes da formatura. Foi sensível a diferença que percebemos entre as turmas de 3º ano e de 1º ano. Os grupos do último ano traziam falas mais “em conformidade” com o funcionamento da escola, ainda que mantivessem suas críticas. Já os grupos do 1º ano se incomodavam profundamente 383

com as regras arbitrárias, as imposições e obrigações. Um dos grupos, inclusive, desistiu da oficina no meio do processo – o que foi acatado pela equipe, uma vez que a participação era voluntária. Os efeitos desse empuxo à normatização presente na escola pode ser observado em seus estudantes com o passar dos anos, como ressaltei, sendo a naturalização das regras e da obediência aos mais velhos seu efeito mais visível. Retomando a questão da normatização promovida pela psicologia do desenvolvimento, estou de acordo com Burman (2008) quando ela afirma que o processo de normatização da infância posto em prática pela psicologia e seu aparato psicométrico promoveu uma naturalização do desenvolvimento infantil. É nesse sentido que afirmo que a pesquisa em escolas de uma perspectiva crítica implica enfrentar o desafio de desnaturalizar práticas e regras que estão profundamente arraigadas em seu funcionamento. Convidamos os estudantes que participaram das oficinas para esse exercício, mas a tarefa não foi fácil para nenhuma de nós. A seguir, trago um excerto de relatório das oficinas feito pelas estagiárias: Ansiosos por expor suas opiniões, os participantes tiveram muita dificuldade em se escutar, não esperando os colegas pararem de falar e nem mesmo parando muito para ouvir o que nós tínhamos a dizer. Falando quase todos ao mesmo tempo, nosso registro se tornava bastante complicado. E o nosso papel de facilitadoras – com uma postura diferenciada da dos professores – ficava cada vez mais difícil de ser exercido. Em muitos momentos de barulho excessivo, foi necessário pedir silêncio e assumir uma postura mais de controle, justamente para preservar aquele espaço de escuta, para que todos pudessem ter o direito de se colocar e expor seus pontos de vista. Ainda assim, é importante pontuar que a oficina foi muito rica, pois os alunos estavam muito interessados e engajados na discussão. Como discutimos em várias supervisões, não basta querer estarmos na escola de maneira a não ocupar o lugar de quem dita as regras ou que ensina, pois somos permanentemente remetidas 384

a esse lugar, seja pelos educadores, seja pelos estudantes. Entretanto, ao longo das oficinas pudemos exercitar alguns distanciamentos desse lugar demarcado, sustentando silêncios ou produzindo espaços para que os participantes se escutassem. Quando os jovens se apropriavam desses espaços, falando uns com os outros e conosco, o que pudemos observar é que alguns deslocamentos em relação aos lugares naturalizados se produziam. Nos encontros finais, de avaliação das oficinas, os jovens destacavam que o exercício de serem ouvidos tinha sido importante, pois as estagiárias não agiam como professoras. Considero que essas falas, assim como a valorização de uma maneira de agir e de estabelecer vínculos na escola diferente de como é maciçamente oferecida para os estudantes, nos oferecem um rico material para problematizarmos como as relações entre as diferentes gerações se produzem na escola hoje.

Considerações finais Se as possibilidades de troca ou conversa entre as gerações – e entre os lugares de professor(a) e estudante – são tão escassas, isso certamente se deve, em boa parte, à estrutura escolar profundamente hierarquizada e autoritária, mesmo que o dia a dia da escola possa parecer caótico ou confuso. Quando ocorrem, essas trocas podem permitir que algumas posições já muito cristalizadas se deixem perturbar pelo estranhamento do olhar ou da perspectiva do outro. Os exercícios que colocamos em prática nas oficinas apontam para essa possibilidade, e nos mostraram que os estudantes estão dispostos a repensar aquilo que parece já ser tão estabelecido e imutável. Além disso, problematizar a verticalidade e a arbitrariedade das relações hierarquizadas na escola não serve apenas para pensarmos uma escola melhor e mais democrática para os estudantes. Nos últimos anos temos visto como se multiplica na educação a lógica de que aqueles que mandam não podem ser questionados, em políticas públicas administrativas e gerenciais que priorizam os números e resultados (falaciosos) em detrimento da qualidade da infra estru385

tura e das condições de trabalho e estudo para professores e estudantes da rede pública. Recentemente, nas greves que têm mobilizado professoras e professores das redes estadual e municipal do Rio de Janeiro, temos visto a postura autoritária e arbitrária de nossos governantes ao se colocarem frente às demandas justas e urgentes dos educadores. É possível perceber muitas analogias entre as situações que presenciamos nas oficinas e as que temos acompanhado nas últimas greves na educação pública. Quando ocorre a desqualificação da fala dos que estão em posições hierarquicamente inferiores, a mensagem passada é a de que o que eles pensam, sentem ou querem não importa, em última instância. Entretanto, formar pessoas, educar para que pensem por si mesmas, exige a perturbação dessas hierarquias naturalizadas. Em nossa pesquisa, temos visto que essa é uma possibilidade na escola, e que jovens estudantes já problematizam muitas das situações que presenciam. Lidar com as vozes dissonantes e possibilitar que elas de alguma forma dialoguem parece um dos principais desafios da escola hoje.

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