Hieróglifos e Enigmas: Reflexões sobre a construção e o enquadramento da memória da esquerda clandestina

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Hieróglifos e Enigmas: Reflexões sobre a construção e o enquadramento da memória da esquerda clandestina LUCAS ANDRADE SÁ CORRÊA1

Esta apresentação pretende esboçar algumas questões sobre a memória da esquerda clandestina que atuou durante o período da ditadura militar (1964-1985). A hipótese que norteia essas reflexões é a de que a forma como foi dada a abertura política favoreceu um discurso de ruptura entre uma velha e uma nova esquerda. Esse processo consolidou uma imagem de uma esquerda clandestina por um lado “romântica”, “vanguardista”, “marxista”, composta por jovens universitários radicais – acusações que recaiam sobre a Política Operária (Polop), Ação Libertadora Nacional (ALN), Ação Popular Marxista Leninista (APML), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), entre outras; ou ainda “burocrática”, “pelega”, “reformista”, “distante das bases” – acusações endereçadas principalmente ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nos dois casos as organizações teriam incorrido em “desvios”, não tendo sabido orientar suas ações de acordo com a realidade.

Apesar das diferenças e disputas entre o PCB e as demais organizações de esquerda, tendo estas aderido às diferentes vertentes da luta armada ou não, o término da ditadura não parecia fortalecer nenhuma delas. O processo de transição articulado como conciliação, a partir de uma “ampla aliança” das forças democráticas contra a ditadura, coincidiu com o surgimento de “novos atores” em cena, atores que criticavam fortemente o “reformismo” e “peleguismo” do Partido Comunista, assim como o “vanguardismo” e o “intelectualismo” das demais organizações. Ao surgirem como nova alternativa da esquerda, as correntes majoritárias do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) precisaram se distanciar e se afirmar diante das tradições anteriores.

No final dos anos 1970 as organizações que aderiram à luta armada estavam praticamente liquidadas, com dirigentes e militantes desaparecidos, presos ou exilados. O fim da Guerrilha do 1

Mestre em História, CPDOC/FGV.

Araguaia (1975), com o assassinato de militantes históricos do PCdoB e a operação Radar (19731976) que matou muitos dos principais dirigentes do PCB, são apenas exemplos dramáticos de um processo de liquidação física da esquerda clandestina.

A derrota traz consequências para a memória, para a construção da narrativa da luta travada. Os militantes exilados, a partir de “autocríticas”, tentavam entender e conviver com o passado. Ingressando nas fileiras de novas organizações faziam coro aos que acusavam o “romantismo”, o “doutrinarismo” e o “desvio” da esquerda clandestina. Aqueles que buscavam ainda suas referências nos programas destas organizações pareciam obsoletos na nova conjuntura aberta pela democracia.

Um caso sintomático dessa situação é a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Muitas vezes criticados pela esquerda durante o período de transição por estarem colocando em risco a abertura ao fazerem a acusação dos crimes de Estado cometidos no período, ele eram tratados como “redundantes”, como “portadores de segredos” inconvenientes, coisas que deviam ser vistas como já superadas, esquecidas.

A acusação, as denúncias, os relatos de tortura, as listas de mortos e desaparecidos, demonstravam a fragilidade de uma democracia que era construída sobre a ideia de “reconciliação”, mantendo a institucionalidade existente e sem a punição dos crimes cometidos pelos agentes do Estado. As inúmeras investigações, manifestações, livros, processos que exigiam não só memória e verdade, mas também justiça denunciavam um projeto de transição para a democracia que excluía e silenciava uma parcela importante dos que lutaram e sofreram durante a ditadura.

Outro caso é a da tentativa de rearticulação da Política Operária. Este caso é esclarecedor pois na segunda metade da década de 1970, alguns militantes que ainda reivindicam o “nome e o programa” da organização – e publicavam o periódico Marxismo Militante, entraram em um debate público no exílio com os dirigentes exilados do MR-8, da APML e com antigos dirigentes da própria Política Operária, organizado em torno da publicação Brasil Socialista, editada na França. Um dos principais pontos de divergência era sobre o apoio ou não de candidatos do MDB nas eleições como forma de enfraquecer a ditadura. Está presente nesses debates também a discussão sobre a natureza da democracia e a forma sobre como as organizações de esquerda agir no processo de transição. A

manutenção do antigo programa da Polop pelos editores da Marxismo Militante, levou-os ao isolamento e, por fim, à dissolução.

Os dois exemplos não devem ser vistos como resultados naturais da conjuntura. As vitórias ou derrotas de um programa ou organização se dão através de lutas políticas cujos resultados não estão determinados à priori. Olhar para o passado para julgar os erros dos derrotados pode prejudicar a compreensão da complexidade das lutas políticas que se travam em cada momento. Pode também criar um discurso culpabilizador do vencido ou justificador do vitorioso. Fórmulas como “a esquerda era também golpista”, “o PCB poderia ter evitado o golpe”, ou a “luta armada já nasceu condenada” repetidas e reelaboradas de diferentes maneiras por pesquisadores, ex-militantes e adversários, revelam mais sobre a luta política atual do que sobre aquelas por eles narrada.

Para entendermos a forma como algumas narrativas venceram ou ganharam mais visibilidade do que outras se faz necessária uma discussão conceitual sobre a forma como a memória é construída e cristalizada na sociedade.

Hieróglifos e enigmas: como os fatos se tornam coisas.

Discutindo a natureza da mercadoria e do valor, Karl Marx afirmou que: “o valor não traz escrito na fronte o que ele é. Longe disso, o valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social” (Marx, K. 2011 p.96). Dessa forma, quando, ao trocarem mercadorias, os agentes igualam o produto dos seus trabalhos, “o fazem sem saber” (Idem). No fenômeno chamado pelo autor de “fetichismo da mercadoria”, a relação entre produtos esconde a relação entre produtores, isto é, esconde o processo social que a criou. Como acontece com a mercadoria, as demais relações sociais escondem o seu processo na medida em que o realizam. Para acessá-lo é preciso recuperar os significados destes “hieróglifos sociais”.

Assim é com a memória. Não a entenderemos se buscarmos apenas a informação factual, o monumento construído. Os fatos da história e as imagens da memória, as grandes narrativas, personagens e comemorações são “hieróglifos” que precisam ser investigados, escondem e revelam as relações das quais resultam.

No mesmo sentido, Flora Tristan, em suas próprias memórias, chama atenção para que “apenas os fatos não são suficientes para fazer conhecer o homem”. Se as “paixões que foram seus móbiles não nos são mostradas, os fatos não nos chegam se não como enigmas (...)” (Tristan, 2000 p. 36). Para a autora, a vivência e o sofrimento são necessários para decifrar estes enigmas. Tristan critica, assim, a história que narra apenas os seus grandes acontecimentos e faz uma defesa do depoimento, da narrativa memorial, da denúncia como fator fundamental para a compreensão histórica e para a atuação política: “Que todo indivíduo, enfim, que viu e sofreu, que teve de lutar com as pessoas e as coisas, conceba o dever de contar, em toda a sua verdade, os acontecimentos dos quais ele foi autor e testemunho, e que nomeie aqueles de quem tem de se queixar ou elogiar; pois repito-o, a reforma não pode se operar e não haverá probidade e franqueza nas relações sociais senão pelo efeito de semelhantes revelações” (Idem, p. 41).

Sem a narrativa memorial, portanto, os fatos podem se tornar incompreensíveis, ou a “memória oficial” ser reproduzida de forma acrítica, sem que se perceba as possíveis inconsistências e “enquadramentos”, colaborando, assim, para manter oculta a disputa pela memória sempre presente nas sociedades.

Seguindo as indicações de Marx e Tristan, é preciso desvendar as relações que construíram esta memória no tempo, reconhecer a natureza enigmática dos fatos para revelar os conflitos que neles se escondem. Como aponta Pollak, mais que pensar o fato social como coisa, é preciso investigar “como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade” (Pollak 1989, p 4).

Ao pensarmos a memória em seu processo de construção, podemos perceber o seu caráter conflituoso. Mesmo quando há uma memória oficial, hegemônica, existem “memórias clandestinas”, “subterrâneas”, coexistindo em uma disputa às vezes aberta, outras, latente (idem).

Se a memória é construída ela é, também, seletiva. A construção da memória envolve o trabalho de esquecimento, isto é, da “dissolução de nexos, não reconhecimento de sequências lógicas, isolamento de recordações” (Freud 2010, p 149). O esquecimento não significa apenas eliminar de forma deliberada acontecimentos históricos vividos direta ou indiretamente. Os sujeitos reproduzem, “sem saber”, as relações sociais ocultas sob hieróglifos, o esquecimento trabalha neste ocultamento. Dessa forma, torna-se possível entender o caráter da memória como simultaneamente coletivo e individual, potencialmente crítico, mas também conservador e justificador, compartilhado e conflituoso.

Na história do Brasil a memória da ditadura é um campo de fortes disputas, que envolvem visões antagônicas, “silêncios”, “esquecimentos” e “trabalhos de enquadramento”. A presença, nos dias correntes, de agentes que participaram deste período – sejam agentes da ditadura, do MDB, da esquerda clandestina ou outros – e de instituições que mantiveram seus quadros e estruturas, cria uma disputa delicada e desigual, permeada de interesses atuais. Uma disputa que envolve o Estado, movimentos sociais, partidos, famílias, indivíduos.

A memória da ditadura no Brasil enfrenta ainda outros obstáculos. O uso sistemático da tortura, do assassinato e da ocultação de cadáveres dificultam o tratamento público e aberto da memória da ditadura. Como aponta Sironi “a tortura faz calar” (Sironi apud Arantes), ela impõe o silêncio, não apenas dos torturadores e daqueles que participam do sistema da tortura – militares, policiais, médicos, enfermeiros, políticos, empresários, que direta ou indiretamente sustentavam e davam suporte às torturas –, ela “faz calar” também a vítima e o conjunto da sociedade, que entre a culpa e o descrédito, prefere “enterrar” o passado. Como mostra Pollak – abordando a memória do nazismo e do holocausto – “para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa, antes de mais nada, encontrar uma escuta” (Pollak, 1989 p.6). Se, em um primeiro momento, houve espaço para esta escuta, em seguida, o esforço de reconstrução “exauriu a vontade de ouvir a mensagem culpabilizante” (Idem). Levi relata um sonho, frequente entre os prisioneiros dos campos de concentração, no qual estavam livres e tentavam contar aos parentes e amigos o que lhes haviam ocorrido no campo, estes, entretanto, os ignoravam ou não

acreditavam em suas histórias. Para o autor, “as vítimas e os opressores, tinham viva a consciência do absurdo e, portanto, da não credibilidade daquilo que ocorria nos Lager (...)” (Levi, 2016 p. 8).

Silenciamentos: a luta dos familiares, a esquerda clandestina e a dissolução da Polop.

No caso da memória da ditadura brasileira a necessidade de denunciar a “experiência de sofrimento passada” foi contraposta pela “proposição de que era necessário criar uma ampla aliança contra a ditadura visando obter seu desgaste político”. O que relaciona fortemente o processo de transição com a ideia de "conciliação” (Teles, 2010 p. 282). A trajetória de luta e organização dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e dos ex-militantes de organizações clandestinas apresenta elementos reveladores deste processo. A “longa transição” pode ser pensada como um período importante para o “trabalho de enquadramento” da memória coletiva sobre a ditadura.

Fez parte deste trabalho silenciar e ocultar os crimes da ditadura, assim como proteger juridicamente aqueles que os haviam cometido no período. O “enquadramento da memória” não pode ser, entretanto, feito arbitrariamente, mas exige continuada justificação para sua manutenção (Pollak 1989, p. 9). Como aponta a ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Iara Xavier Pereira, em audiência pública do Comitê pela Verdade, a tentativa de usar o esquecimento para “eliminar do cenário histórico determinado período sempre foi desmascarada, pois a história não pode ser sepultada como indigente sob nome falso” (Pereira, 2011).

Nesse sentido, a transição é um processo não superado da história do Brasil, como mostrou a contínua necessidade do Estado de re-elaborar a memória da ditadura e re-negociar os seus significados2. Essa re-elaboração, entretanto, sempre encontra resistências e limites, especialmente 2

Além da Comissão Nacional da Verdade – sancionada em novembro de 2011, instalada em maio de 2012 e concluída em dezembro de 2014 – pode-se considerar parte deste processo de re-elaboração e renegociação a tentativa de Revisão da Lei da Anistia, a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153 apresentada pela OAB, em 2010, a Comissão da Anistia criada em 2001, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e a Lei 9140, de 1995.

quando se tenta trazer o tema da “justiça”, isto é, do julgamento e punição aos torturadores e seus mandantes.

A própria Lei da Anistia, promulgada em 28 de agosto de 1979, tem seu significado disputado. Resultado de fortes pressões da sociedade civil, a Lei foi, igualmente, resultado da derrota de dois projetos do MDB, tendo sido aprovado no Congresso o projeto proposto pelo então presidente, o general João Figueiredo (Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, 2009 p. 23).

A lei promulgada não atingiu parcela importante dos presos políticos. Como afirma a historiadora e ex-militante da ALN, Jessie Jane Vieira de Souza: “Vários companheiros permaneceram presos mais um ano após a Anistia. Na verdade fomos anistiados muito agora, recentemente, na comissão da Anistia” (Souza, 2014). A lei, portanto, não anistiou os opositores da ditadura que haviam sido acusados de “terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal” e foi usada como justificativa para não se investigar e julgar os crimes cometidos pelos agentes do Estado, como assassinato, tortura e ocultação de corpos. Para a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil “a anistia representou o silêncio e o esquecimento sobre os envolvidos nas ações repressivas após o golpe de 1964” (Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil, 2009 p. 23). Desde então, aqueles que lutam por justiça contra aqueles que cometeram estes crimes são frequentemente acusados de “revanchismo”3 (Idem p.24). A acusação de “revanchismo” é uma das defesas da memória da transição como “conciliação”. A sociedade, na democracia e pela democracia, teria resolvido seus conflitos deixando-os no passado. 3

O termo “revanchismo” tem sido usado frequentemente por políticos, militares, jornalistas e organizações para acusar ou defender ações do governo com relação à memória da Ditadura. Em 2009, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim declarou que a ideia de punir militares seria “revanchismo”. (Ver em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2009-06-11/ideia-de-punir-militares-e-revanchismoafirma-jobim ); o governo se defendeu em diversas ocasiões da acusação de revanchismo (http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/05/comissao-da-verdade-nao-e-movida-por-odio-ourevanchismo-diz-dilma.html.

Mas o caráter parcial da lei de Anistia, revela o igualmente parcial sentido da “conciliação” – isto é – uma conciliação assimétrica, imposta e mantida pelo Estado. A Anistia – interpretada como recíproca – “foi concedida individualmente”, os nomes tendo sido divulgados no Diário Oficial e na imprensa. “Os torturadores, mandantes ou responsáveis pela tortura, nem mesmo foram julgados ou indiciados em processos criminais” (Idem p.4), seus nomes, dessa forma, foram preservados e seus crimes continuaram sendo negados após o fim da ditadura.

Essa imposição e manutenção pelo Estado não prescinde, entretanto, da participação e omissão da sociedade civil. O enquadramento precisa de “justificação” e “coerência”, precisa também encontrar uma “escuta” na sociedade. Nesse sentido, o trabalho de jornalistas, historiadores e empresários cumprem papel central neste processo. O trabalho de transformar a ditadura em “ditabranda”4, afirmar que existiu ditadura apenas a partir do AI-55, ou culpabilizar o radicalismo de esquerda pelo golpe de Estado de 1964, complementa e apoia a estrutura jurídica que ampara a memória da transição como conciliação. Ampara a narrativa de que haviam dois lados travando uma guerra, sem vítimas ou algozes, os crimes que por ventura ocorreram nessa guerra, teriam sido crimes individuais. As organizações de esquerda que atuavam na clandestinidade – seja com estratégias de luta armada ou não – não viam possibilidades de negociações com a ditadura vigente no país. Nas palavras da historiadora e ex-militante da ALN Dulce Pandolfi: “Não havia comunicação ou negociação possível entre aqueles dois mundos: o meu e o deles” (Pandolfi 2013). Dessa forma, o processo de 4

Conforme termo usado no editorial da Folha de S.Paulo em seu editorial de 17 de fevereiro de 2009. Ver: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm acessado em 20/11/2015

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Datar a ditadura a partir AI-5 é silenciar a memória dos que foram atingidos pela ditadura entre 1964 e 1968. Sobre isso Jassie Jane – no depoimento citado – é enfática: “Eu costumo sempre dizer para as minhas amigas, minhas companheiras, que a ditadura não começa em 1968 como há uma narrativa geracional que tende a essa... na verdade a sacralizar essa narrativa, o golpe foi em 1964 e 1964 para a minha família foi uma tragédia e nós vivemos uma tragédia na medida em que todas as pessoas com as quais convivíamos foram atingidas por isso”.

conciliação (ou reconciliação) não poderia prescindir completamente da criminalização desta esquerda. Ao fim do longo período de transição, a resistência à ditadura não poderia sair como vitoriosa.

Na construção da memória dessa esquerda, um elemento parece desaparecer ou aparecer de forma apenas secundária, os programas das organizações. Mesmo quando homenageados os militantes da esquerda clandestina dificilmente são vistos como políticos que com uma estratégia para o Brasil ou teóricos capazes de alguma contribuição. Acredito que o processo de dissolução da Polop é revelador acerca de uma disputa entre modelos de organização. Na dissertação de mestrado “O nome e um programa: Érico Sachs e a Política Operária”, investiguei o isolamento e o silenciamento a que foi relegado o militante austríaco Érico Sachs. O dirigente da Polop que influenciou importantes militantes e intelectuais como Moniz Bandeira, Eder Sader, Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra, passa a ser acusado pelos antigos companheiros como “doutrinarista”, “marxólogo”, “teoricista”.

Sachs, juntamente com outros militantes da Polop, busca manter as fórmulas e programas da organização: necessidade da conquista da independência política da classe operária a partir da liberdade sindical e de um partido revolucionário de orientação marxista, com a finalidade de luta pela revolução de caráter socialista. A organização, especialmente seu núcleo chamado P.O. Exterior sediado na Alemanha trava debate com os militantes do MR-8, APML e com os antigos dirigentes da P.O., Ruy Mauro Marini e Eder Sader que editavam, em Paris, entre 1974 e 1977 a revista Brasil Socialista.

A recusa de apoiar candidatos do MDB, por acreditar que as organizações diluíam as bandeiras da classe operária nas bandeiras democráticas valeram fortes críticas dos editores da Brasil Socialista. Em seu texto Para um balanço da P.O., Éder Sader aponta que a partir do crescimento das lutas democráticas “o sectarismo doutrinário [da Polop] atinge sua culminação caricatural” (Sader, 1976).

Para a Polop apoiar candidatos do MDB era negar o seu programa original, suas estratégias e práticas. Para muitos dos militantes que viveram também derrotas e exílios, era a chance de se ter

contato com as massas. A diferença entre os objetivos iniciais da Polop e as estratégias que começavam a aparecer mais fortemente entre exilados pode ser observada na resposta de Sachs:

em toda a sua existência até agora, [a Polop] não passava e não podia passar de uma organização de propaganda de uma linha revolucionaria no seio do proletariado. Essa era a sua função natural, que podia enfrentar sem perder senso da realidade. As ações que realizamos e as lutas que travamos não dão para mudar esse quadro. A quantidade ai é tão modesta que não chega a dar o ambicioso salto para a qualidade.

Após 1980 os militantes que ainda se organizavam em torno de Sachs e da sigla Polop decidiram sob influência deste se integrar ao PT. As conversas, entretanto, não eram fáceis. Sachs e o núcleo da Política Operária estavam isolados no interior do partido. O ex-militante da Polop durante o período, Samuel Wrath, afirma que, durante as reuniões:

“a escuta era uma coisa que existia com muito pouca reciprocidade. Não adiantava falar dois ou três pontos, na verdade você tinha posições muito alinhavadas antes daqueles fóruns, isso é um método de domínio dos aparelhos (...)”.

A entrada no PT tinha como objetivo influenciar o partido atuando na periferia, formando núcleos de base de trabalhadores e apoiando candidatos operários nas eleições. A organização, entretanto, já não conseguia manter sua estrutura. Em entrevista ao autor, Sérgio Paiva, militante do período explica que: “O PT dava uma perspectiva de militância, dentro do PT você tinha liberdade de fazer o que quisesse e em uma escala muito maior (…) Na prática a gente foi digerido pelo PT, pela prática do PT e acabou a organização ficando sem uma função”.

A pesquisa de como se deu a dissolução ou transformação das organizações da esquerda clandestina no pós-ditadura pode nos ajudar a entender as diferentes percepções do processo de transição. Um processo que construiu e solidificou “fatos sociais”, assim como destruiu programas, organizações, trajetórias. Um processo de disputa entre agentes, instituições e narrativas, que só pode ser entendido se olharmos atentamente não só para os que nos parecem vitoriosos, mas também para aqueles que foram derrotados, silenciados, mas cuja narrativa memorial permanece subterrânea, nos sobreviventes.

Ao naturalizar a vitória dos vitoriosos perdemos o processo, sempre conflituoso e tenso, e transformamos os fatos em hieróglifos, em enigmas, cujo significado se perde na sua própria realização.

Bibliografia:

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LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política: Livro 1. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 29a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

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TRISTAN, Flora. Peregrinações de uma Pária. Trad. Maria Nilda Pessoa, Paula Berinson. Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000.

Entrevistas e depoimentos:

Pandolfi, Dulce. Depoimento para as comissões estadual e nacional da Verdade. Rio de Janeiro, 28/05/2013. https://www.youtube.com/watch?v=ZwyKtFdZrKk.

Pereira, Iara Xavier. Audiência Pública realizada pelo Comitê pela Verdade, Memória e Justiça do Distrito Federal em 18/10/2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nbx6VXBUPBU.

Souza, Jessie Jane Vieira de. Depoimento na Audiência Pública: O papel das igrejas na ditadura militar. Comissão Nacional da Verdade, Rio de Janeiro. 18/09/2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MapYsV2xrbE.

Warth, Samuel. Entrevista ao autor. Rio de Janeiro, 15/01/2013.

Paiva, Sérgio. Entrevista ao autor, no Rio de Janeiro, 03/10/2011.

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