HILDA HILST EM MÚSICA PARA CONTRABAIXO E CANTO

October 1, 2017 | Autor: Malu Sylvestre | Categoria: Chamber Music, Brazilian Music, XXth century music, Text and Music
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RAY Sonia; MESTRINHO, Malú. Hilda Hilst em música para Contrabaixo e Canto. In: CONGRESSO INTERNACIONAL A LÍNGUA PORTUGUESA EM MÚSICA, 1., Lisboa, 2011. Anais... Lisboa: Universidade Nova Lisboa, 2011. Disponível em .

HILDA HILST EM MÚSICA PARA CONTRABAIXO E CANTO Sonia Ray, EMAC – UFG, Brasil [email protected] Malú Mestrinho, Música – UFMS, Brasil [email protected]

Palavras-chave: Português cantado; Música de câmara para contrabaixo e mezzo-soprano, Hilda Hilst, Rita Domingues. Introdução

O trabalho versa sobre as relações entre texto poético e texto musical, na obra Um Olhar sobre a Morte (1991) de Rita Domingues (n.1963) para duo de contrabaixo e mezzo-soprano. O texto utilizado por Domingues é um poema homônimo da escritora e poetisa Hilda Hilst (1930-2004). A obra foi estreada pela contrabaixista Sonia Ray e pela mezzo-soprano Luciana Lima durante o I CONC – Concurso Nacional de Composição para Contrabaixo (1991) realizado no Instituto de Artes da UNESP em São Paulo, Brasil. O dueto Ray-Mestrinho, autoras do presente texto, executou a obras em várias ocasiões entre 2007 e 2011, o que possibilitou perceber cada vez mais profundamente as sutilezas das escolhas da compositora. Desta forma, as autoras se propõem a lançar um olhar sobre a clareza na compreensão do texto cantado proporcionada por tais escolhas, particularmente na exploração de diferentes regiões das extensões da voz e do instrumento. Como base teórica da discussão utilizaremos estudos sobre o idiomatismo do contrabaixo na atualidade (Ray, 2005, Borém;Ray e Rosa, 2011) e idéias básicas de prosódia musical. Com relação ao idiomatismo do contrabaixo em obras com canto encontra exemplos na literatura do instrumento deste o século XVIII, na área Per Questa Della Mama de W. A. Mozart para voz (baixo), contrabaixo e orquestra. O compositor e contrabaixista vituosi G. Bottesini compôs a ária Une Bouchè Aimè (1823) para soprano e contrabaixo e piano. São muitos os exemplos nos últimos 40 anos, podendo-se destacar algumas obras brasileiras para voz e contrabaixo sem acompanhamento: Música para Voz e Contrabaixo do compositor goiano Estércio Marques Cunha (escrita para o duo Mestrinho-Ray), O Colibri (para soprano e contrabaixo) do compositor mineiro Fausto Borém de Oliveira e as quatro obras vencedoras do III CONC – Concurso Nacional de Composição para Contrabaixo, cujas partituras foram editadas e publicadas (Ray, 2005). O ponto em comum de todas estas obras é que respeitam a extensão dos isntrumento e voz solicitados e exploram articulações que favorecem a projeção e timbre próprios do contrabaixo e da voz e ampliam recursos na medida em que

criam formas diversificadas de performance, a exemplo de uma passagem em Colibri em que a soprano toca pizzicato ao contrabaixo simultaneamente a execução com arco do instrumentista.

Um olhar sobre o Poema Parte da fase mais madura da poetisa Hilda Hilst, Um Olhar Sobre a Morte foi publicado em 1980 em seu livro “Da morte, odes mínimas” de Hilda Hilst. Um olhar sobre a morte

Ah... se eu soubesse de nuvens como te sei no hoje, morte minha, Diria que me perseguem Para me escurecer Essas caras de neve Diria que se detêm sobre a minha casa Para ensombrar a alma... a minha E espalhadas, diria que se avizinha o cerco, a paliçada Que estou nua, no além Num sofrido perfil Nítida, sozinha... Ah se eu soubesse de nuvens como te sei, Não diria o que disse Nem escrevia o poema Olhava apenas (H.Hilst, 1980)

O poema descreve com extrema sensibilidade a dor e serenidade de uma pessoa que se reconhece assombrada com a proximidade de sua própria morte, sozinha e profundamente mergulhada em seus sentimentos, mas ao mesmo tempo presta atenção à simplicidade das coisas que a rodeiam com certo saudosismo do que teria aprendido em sua vida. A morte é um tema recorrente na poesia de Hilst, culminando neste livro, que é uma coleção de 50 pequenos poemas. Na maioria deles, a autora dialoga com a morte como se fosse uma pessoa ou presença inexorável. E em alguns trechos, até como uma amiga. No poema escolhido para a canção objeto deste trabalho, percebe-se a mistura do medo e de uma quase intimidade no diálogo entre a poetisa e sua interlocutora – a morte.

Um olhar sobre a Música

A escolha do instrumento e voz, ambos de tessitura grave faze uma direta associação com a idéia comum em comunidades brasileiras (e em grande parte do mundo ocidental) de que cores escuras e sons graves são próximos do conceito de morte. Entretanto, o contorno melódico na região médiograve com subto movimento rítmico em ambas as vozes revela timbres brilhantes que podem ser associadas com as idéias de novas constatações da personagem. Dois trechos ilustram estas idéias. O primeiro (início da seção A), evidencia a opção da compositora por um contorno melódico grave e escuro: na frase “essas caras de neve”, cujo tema melódico é repetido pelo contrabaixo em seguida, é usado uma frase descendente na região grave, unindo voz e instrumento pelo timbre escuro e grave. O segundo (final da seção A), um súbito movimento rítmico é usado no verso “diria que se avizinha o cerco, a paliçada”. Há uma mudança brusca de andamento (animato) dando idéia da iminência da chegada da morte. Como se ela estivesse em tocaia, cercando e ameaçando. O escolha do uso do accelerando neste momento enfatiza o sentimento do receio de que o cerco se feche e a morte chegue. A compositora amplia tensão implicita ao final da parte B com uma pequena cadência para o contrabaixo e deixa livre para o instrumentista a possibilidade de imporvisação. O Duo gosta das opções de uso da região grave e sequencias intercalando cordas duplas com intervalos nesta cadência criam tensão (como segundas e sétimas e novas) que ajudam a desenvolver a ideia de tensão, seguido de um longo repouso (representado por uníssonos), que preparam o retorno da voz para a finalização da peça (coda). A prosódia é pensada de forma a manter a acentuação gramaticalmente correta da língu aportuguesa. Abaixo, destacamos no poema os acentos tônicos que a compositora fez valer também para os acentos rítmicos na construção das frases.

Ah... se eu soubesse de nuvens como te sei no hoje, morte minha, Diria que me perseguem Para me escurecer Essas caras de neve Diria que se detêm sobre a minha casa Para ensombrar a alma... a minha E espalhadas, diria que se avizinha o cerco, a paliçada Que estou nua, no além Num sofrido perfil Nítida, sozinha... Ah se eu soubesse de nuvens como te sei, Não diria o que disse Nem escrevia o poema Olhava apenas

O trecho em destaque de cor cinza e sem sílabas sublinhadas indicam o uso de spregsand (com métrica e altura livres). A frase em destaque de preto apresenta a única passagem na peça em que o acento musical é deslocado da sílaba tônica, na palavra “ensombrar”. O recurso de deslocamento da

tônica é um efeito que tem licença poética mas aqui não é usado apenas por opção artística. Na verdade, a palavra “para” como anacruzi com compasso que se inicia com a palavra “ensombrar”, envita a contração da letra “a” com a letra “e” e traz mais clareza para o dicção.

Um olhar sobre a interação da voz com o contrabaixo

O Duo Malú Mestrinho-Sonia Ray foi criado a partir de uma pesquisa em formações camerísticas pouco usuais para voz, no programa de mestrado da EMAC-UFG. O trabalho “Música de câmara brasileira contemporânea: a voz em formações sem piano” (SYLVESTRE, 2007) refletiu sobre o relacionamento da voz com outros instrumentos, exceto o piano, que na performance tradicional é o principal companheiro da voz. Procurando estabelecer relação direta entre prática musical e reflexão científica, parte do repertório pesquisado foi estudado e interpretado em recitais. O repertório para esta formação é ainda pouco explorado em português. Dentre as obras levantadas na pesquisa retro mencionada, seis são para voz e contrabaixo, em várias formações camerísticas, sendo apenas três para duo de voz e contrabaixo: O colibri (1985), para soprano e contrabaixo de Fausto Borém; Canto lamentoso (1985), para contralto e contrabaixo de Estércio M. Cunha e a obra objeto deste estudo, Um olhar sobre a morte (1981), para voz e contrabaixo de Rita Domingues. O interesse mútuo entre as pesquisadoras pela performance contemporânea, levou à criação do duo. A partir das performances do Duo Malú Mestrinho-Sonia Ray, dentro do trabalho em questão, foram escritas mais 2 obras dedicadas ao duo: Música para voz e contrabaixo (2006), de Estércio M. Cunha, que teve a primeira audição mundial na III Semana Nacional do Contrabaixo, em Goiania (2007); My Soule is Deepely Wounded (2007), de Edson Zampronha, estreada no VII SEMPEM – Seminário Nacional de Pesquisa em Música da UFG (2007). No repertório para duo de voz e contrabaixo não há harmonia apoiando o canto, demandando maior autonomia da voz, atuando como um instrumento em diálogo com outro. Este repertório “exige preparação diferenciada, por apresentar características distintas daquelas que o cantor está habituado a lidar em sua vivência com o repertório tradicional, geralmente acompanhado por piano.” (SYLVESTRE, 2007, p. 46). Encontrando-se no contexto da música contemporânea, o repertório acarreta maiores dificuldades para o cantor habituado ao repertório tonal. A textura é menos melódica, geralmente politonal ou atonal. No entanto, o contrabaixo proporciona sensação de apoio ao cantor. Como o baixo é base dos acordes, cantar com instrumento grave, mesmo produzindo um som apenas e não um acorde, dá sensação de apoio do que quando se canta com um instrumento agudo. A produção vocal está ligada à percepção auditiva, sendo o ambiente acústico e o timbre do instrumento companheiro na performance determinantes na sonoridade vocal. O contrabaixo, como os

demais instrumentos de corda friccionada, tem a capacidade de sustentar sons de longa duração, bem como de crescer e diminuir a intensidade dos sons. Esta característica comum à voz, possibilita explorar diferenças e alternâncias de dinâmica e textura. No exemplo a seguir, o contrabaixo toca a nota do cantor (si bemol) duas oitavas abaixo, dois compassos antes. No entanto, há uma frase do contrabaixo entre a nota de referência e a entrada da voz, com um si natural, que anula a referência dada anteriormente. O cantor deverá memorizar a altura de sua entrada a partir da frase do contrabaixo, com autonomia suficiente para não ser influenciado pela outra nota.

Exemplo n. 1: Um olhar sobre a morte, de Rita Domingues, compassos 5 a 14 A voz recitada é um efeito bastante expressivo na música de câmara vocal contemporânea. Domingues (1981) utiliza o contraste do contrabaixo sustentando uma nota, enquanto a voz recita um texto, como mostrado abaixo:

Exemplo n. 2: Um olhar sobre a morte, de Rita Domingues, compassos 1 a 4 O uso apropriado dos apoios e acentos das palavras em tempos fortes, faz da canção bastante idiomática para a voz, facilitando a pronúncia e expressão poética por parte do cantor. A prosódia é cuidada com atenção especial de forma a facilitar a articulação e clareza nas palavras cantadas, tornado a letra compreensível ao ouvinte.

Considerações Finais

Foram discutidas e exemplificadas passagens onde o texto cantado ganha clareza pelo deslocamento da acentuação métrica gramaticalmente exigida na língua portuguesa, combinado com idéias musicais subliminares, além de aspectos cognitivos da performance musical. Assim, a música de Domingues cria ambientação ideal para a expressão poética de Hilst. Percebe-se as várias possibilidades que a formação de duo de voz e contrabaixo tem e que a compositora explora de forma criativa.

Referências: BORÉM, F.; RAY, S.; ROSA, A. Manhã de Carnaval: percepções na elaboração e realização de um arranjo para trio de contrabaixos. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 11., Goiânia. Anais... CD Rom. Goiânia: PPG Música da UFG, 2011. RAY, S. (Org.). Música de câmara brasileira para contrabaixo. Goiânia: Editora da UFG, 2005. SYLVESTRE, Maria L. M. Música de câmara brasileira contemporânea: a voz em formações sem piano. Dissertação (Mestrado em Música) - EMAC/UFG, Goiânia, 2007 DOMINGUES, Rita. Um olhar sobre a morte, (Ed. Sonia Ray). Goiânia, 1981 HILST, Hilda. Da morte, odes mínimas. São Paulo: Massao Ohno/Roswitha Kempf, 1980.

Sonia Ray é contrabaixista, pesquisadora e professora Associada da Universidade Federal de Goiás na Escola de Música e Artes Cênicas onde leciona contrabaixo, música de câmara, metodologia de pesquisa e música contemporânea. Sonia é doutora em Pedagogia e Performance do Contrabaixo pela Universityof Iowa (EUA, 1998) e recentemente concluiu estágio de Pos-Doutoramento na University of North Texas (EUA, 2008). Em sua atividade como instrumentista no Brasil e exterior privilegia autores brasileiros e repertório contemporâneo tendo feito estreias nacionais de internacionais.Coordena dois Grupos de Pesquisa cadastrados no Diretório do CNPq e o GEPEM - Grupo de Estudos em Performance Musical da UFG. É presidente da ANPPOM (gestão 2009-2011). Malú Mestrinho (mezzo-soprano) é cantora lírica, atuando tanto em óperas, como em música de câmara. É mestre em Performance Musical, pela Universidade Federal de Goiás, licenciada em música e bacharel em Canto, pela Universidade de Brasília. Foi professora de canto na Escola de Música de Brasília, onde coordenou o projeto Antologia da Canção Brasileira, trabalhando a música erudita brasileira para canto. Foi professora de canto nas cinco últimas edições do Curso Internacional de Verão da Escola de Música de Brasília. Assumiu como docente do Curso de Música da UFMS, em setembro de 2009.

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