Hilda Hilst: uma literatura menor?

June 14, 2017 | Autor: Mason Hiatt | Categoria: Gilles Deleuze and Felix Guattari, Minor Literature, POESIA, HILDA HILST,, Hilda Hilst
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Hilda Hilst: Uma literatura menor?

Acadêmico: Mason Hiatt Professor Orientador: Antônio Marcos V. Sanseverino

Porto Alegre Abril 2008

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Hilda Hilst: uma literatura menor?

Mason Hiatt 1

RESUMO: O presente artigo busca os elementos característicos de uma literatura menor em um conto da Hilda Hilst chamado O Unicórnio (1969). Nesta linha de pesquisa, uso conceitos criados por Gilles Deleuze e Félix Guattari no seu estudo da literatura de Franz Kafka. Alguns dos conceitos são arranjamento maquínico do desejo e coletivo de enunciação, palavras de ordem e maioria/minoria. Hilda Hilst, com sua escrita, se relaciona com incontáveis fluxos e arranjamentos. Então, uma leitura amorosa, como escreve Deleuze, é parecida: “Esta maneira de ler em intensidade, em reportação com o fora, fluxo contra fluxo [...] é uma maneira amorosa.” (DELEUZE, 1997, p. 18) 2 . O importante nesta leitura são as ramificações: como funciona a escrita em relação ao arranjamento heterossexual hegemônico no Brasil, por volta de 1969? Em relação ao arranjamento capitalista? Hilst desestabiliza essa maioria? PALAVRAS-CHAVE: Hilda Hilst, literatura menor, homossexualidade, 1969, arranjamento, pederasta, maioria, minoria, Abstract: This article looks for the characteristic elements of minor literature in a short story by Hilda Hilst entitled The Unicorn (1969). In this line of research, I use concepts created by Gilles Deleuze and Félix Guattari in their study of Franz Kafka’s literature. A few of these concepts are machinic assemblage of desire and collective assemblage of enunciation, order-words, and majority/minority. In her writing, Hilda Hilst creates relationships with innumerable flows and assemblages. For this reason, an affectionate reading, in Deleuze’s words, should follow the same lines: “This manner of reading, in intensities, in rapport with the outside, flow against flow […] is an affectionate way. (DELEUZE, 1997, p.18). What is important here are the ramifications: how does the text function with reference to the hegemonic heterosexual assemblage in Brazil, circa 1969? With reference to the capitalist assemblage? Does Hilst destabilize the capitalist assemblage? Keywords: Hilda Hilst, minor literature, homosexuality, 1969, assemblage, pederast, order-word, majority, minority

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Acadêmico do Pós graduação - Curso de especialização em Literatura Brasileira/UFRGS – 2008/1. DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Lês Éditions de Minuit, 1997. A tradução para o português é de Nilza Silva, não publicada. Por sua vez, a tradução para o inglês, de Mason Hiatt, foi feita desta. A paginação corresponde à edição Minuit.

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3 A coleção de prosa “Fluxo-Floema” foi o primeiro livro de Hilda Hilst que li. O que captou minha atenção de imediato era a constante dúvida que se tem sobre quem está se expressando em determinado momento e para quem seria o interlocutor. Não é um fluxo de consciência. São múltiplos fluxos constituindo ligações rizomáticas. Mais não foi somente isso, é que a leitura do texto flui – facilmente consigo ouvir as vozes plurais e suas entonações – sem precisar saber qual personagem fala. Ver que isso funciona é gratificante – em especial para aqueles como eu que lembram menos as personagens individuais de uma história que as relações entre essas personagens e os eventos em que elas estão envolvidas. Para quem afirma como Deleuze e Guattari que “não existe enunciação individual nem mesmo sujeito de enunciação” (D & G, 1980/1995, v. 2, p. 17), os textos de Hilst oferecem trechos preciosos. Ora ela vai longe em desterritorializar a escrita, abolindo o sujeito, ora ela a reterritorializa fortemente, constituindo o sujeito. A contradição é uma marca da literatura Hilstiana. Ao mesmo tempo em que os textos tratam de assuntos polêmicos para a época em que foram escritos – homossexualidade, sexo, pedofilia – e criticam diretivas conservadoras da igreja católica, eles também se apóiam freqüentemente

em

maiorias

reacionárias,

como

a

da

hegemonia

heterossexual e a da homofobia. Mas essas contradições reforçam a heterogeneidade destes textos recheados de influências literárias, filosóficas e religiosas. Em 1969, quando Hilda Hilst publicou “Fluxo-Floema” pela primeira vez, a revolução sexual já havia trazido a discussão gay/lésbica para o primeiro plano, internacionalmente. Se o amor romântico entre dois homens ou duas mulheres ainda não fosse amplamente aceito pela sociedade brasileira, as últimas duas décadas viram mudanças graduais: já existiam boates e saunas que, mesmo sendo clandestinos, representaram um território importante para manifestações culturais. James Green (2001), em seu livro, “Além do Carnaval” 3 descreve que, na época, a censura por parte do regime militar brasileiro focava mais as expressões literárias e artísticas críticas e/ou ditos “imorais” que os lugares de encontro de gays e lésbicas. Mesmo assim, estes

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GREEN, James N. Beyond Carnival: Male Homosexuality in Twentieth Century Brazil. Chicago: University of Chicago Press, 2001. Este livro foi traduzido para o português pela Editora UNESP em 1999.

4 foram alvos de constante repressão policial, a mesma que provocou o motim de cinco dias no bar gay e transexual, o Stonewall Inn, em Nova Iorque, também em 1969, considerado como um marco histórico pelos movimentos internacionais para direitos de gays, lésbicas e transexuais. Se o regime militar brasileiro foi responsável por uma censura governamental sistemática das artes, também participavam voluntariamente na discriminação críticos literários, editoras, diretores de teatro e escritores, da esquerda e da direita. João Silvério Trevisan descreve esse procedimento na parte IV de seu livro, “Devassos no Paraíso” 4 . Cita o romance brasileiro “Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha (1895), conhecido internacionalmente como o primeiro romance a retratar com simpatia (embora ainda com bastante preconceito racial) uma história de amor entre dois protagonistas gays. O livro foi condenado por seu tema, primeiramente por José Veríssimo. Em 1941, Valdemar Cavalcanti nem quis comentar o livro “em nome de outras contingências que não as literárias”. Nos anos 1950, a crítica Lúcia Miguel Pereira o criticou por descrever o amor entre os dois homens “com pormenores de todo desnecessários” ao mesmo tempo em que ela reconheceu sua “terrível grandeza” enquanto literatura. Em 1983, na ocasião de sua reedição, uma resenha do livro foi rejeitada pelo Jornal da Tarde porque o tema não agradava os donos. (TREVISAN, 2007, p. 254-255). Cavalcanti e Pereira avaliaram as qualidades literárias do romance separadamente de seu tema, mas ainda concluíram que o tema acabou por desmerecer o livro como um todo. Green contextualiza assim: A crítica literária brasileira sobre o conteúdo homossexual no Bom Crioulo, de Caminha, na última análise, fundara seus argumentos numa teia intrincada de discursos religiosos, legais e médicos sobre homo-erotismo que criou uma noção coletiva do homem afeminado como um ser imoral e degenerado. 5

Contemporânea à publicação de “Fluxo-Floema”, Trevisan relata sua própria busca por uma editora que publicasse sua primeira coleção de contos. Encontrou um editor socialista que se propôs a publicar só os contos estimados por ele como “políticos”. Os contos com temas homoeróticos não 4

TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraiso: A Homossexualidade no Brasil, da Colônia à Atualidade. Rio de Janeiro: Editora Record, 1986/2007. 5 “Brazilian literary critique of the homosexual content of Caminha’s Bom Crioulo ultimately based their arguments on an interwoven web of religious, legal, and medical discourses about same-sex eroticism that created a collective notion of the effeminate man as an immoral and degenerate being.” (GREEN, 2001, p. 39) Tradução de Mason Hiatt.

5 seriam “enfocados ‘de uma maneira revolucionária’”. Depois, o primeiro romance de Trevisan foi descrito por outro editor como: “uma obra-prima, um eventual best-seller, mas homossexual demais” (TREVISAN, 2007, p. 279). O Unicórnio foi publicado numa época em que parte da esquerda não levava em conta a relevância das lutas políticas por direitos de gênero, sexualidade, raça e etnias. Em alguns momentos, o debate sobre a homofobia, patriarcalismo e racismo aflorava nos movimentos de esquerda como no resto da sociedade. Essas lutas se secundarizavam como relativamente triviais, em comparação com a luta contra o regime militar. A análise de que todas as opressões são interligadas e de que não existe uma mais relevante que outra estava incipiente. Um romance expressa esse contexto: é “Nivaldo e Jerônimo” (1981) 6 , escrito por Darcy Penteado (1929-1987) artista plástico e militante pelos movimentos GLS. Conta a história de um militante político que luta na guerrilha do Araguaia. Ele se apaixona por um estudante que também acaba se envolvendo com a luta armada. Jerônimo às vezes sente remorso por trazêlo para uma luta que Nivaldo não escolheu, senão por amor a Jerônimo. Ainda aí, a luta pelos direitos sexuais não é prioritária: Ah temos a luta maior na qual os outros nos colocaram; uma luta em que os interesses das maiorias estão em jogo e estas são mais importantes que nós, uns poucos: “as reivindicações minoritárias não são prioritárias, desculpem”. Plaft, fecham o guichê de reclamações nas nossas caras. (PENTEADO 1981, p.139)

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PENTEADO, Darcy. Nivaldo e Jerônimo Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1981.

6 “Isso tem importância?” Naquela tarde eu dizia uns poemas na biblioteca da cidade, em memória de um amigo poeta. Ela disse: é bonita sua poesia. Eu fiquei comovida, eu me comovo com tudo. É, vê-se, vê-se. Combinamos que ela iria à minha casa. Foi. O irmão também. Vi que ele amava os homens. A irmã era lésbica e o irmão pederasta? Isso tem importância? Não, não tem mas parece muita coisa numa estória, numa única estória. Mas é assim. (148-149) 7

Nas primeiras páginas do conto O Unicórnio, da coleção de prosa “Fluxo-Floema”, Hilda Hilst já levanta uma questão provocativa: Por que seria muita coisa ter uma lésbica e um pederasta numa estória? Será que existe algum limite implícito nas normas de literatura para personagens gays e lésbicas nas estórias? O que acontece quando ultrapassa esse limite?

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proveniência destas perguntas está no contexto da maioria heterossexual que descrevi acima. Para Gilles Deleuze e Félix Guattari, maioria: “implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada”. A maioria não pressupõe um número maior, mas um “estado de poder e dominação” imposto à minoria, qualquer que seja sua quantidade. A minoria exerce sempre uma variação do padrão majoritário. Consequentemente, cada um ganha um potencial minoritário conforme seu distanciamento do padrão: “Suponhamos que a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer” (D & G, 1980/1995 v. 2, p. 52) 8 . O personagem Jerônimo, de Darcy Penteado, trata maiorias e minorias em termos de quantidade. Cuida dos interesses das massas de trabalhadores brasileiros – do campo e da cidade – considerando-as maioria. Nisso, se distingue do conceito maioria de Deleuze e Guattari, para os quais as massas despossuidas se constituem minoria, na medida em que exercerem a desestabilização do status quo. A narradora de O Unicórnio não pensa em lutar contra a maioria heterossexual hegemônica pelos direitos sexuais do irmão pederasta e a irmã lésbica. Pelo contrário, ela a apóia, o que não deve ser uma surpresa. Na ficção de Hilda Hilst, não podemos esperar uma narradora da espécie humana 7

HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo Editora, 2001. Daqui para frente, as citações deste livro serão feitas com apenas a página consultada. 8 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrênica, Vol.2. Traduzido do francês por Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995.

7 confiável. Em entrevista de 1999, ela compara o humano com o animal: “Acho que os animais são puros, não têm consciência. Já o homem, não: é safado.” (I.M.S., 1999, p. 34) 9 . Os narradores de “Fluxo-Floema” são como Osmo, o protagonista do conto do mesmo nome, um assassino misógino de sangue frio com pretensões a escritor que chama “grande ato” ao evento matar suas namoradas: E depois do grande ato peguei o corpo de Mirtza, levantei-o acima dos meus ombros e o sol bateu nas coxas de Mirtza, suave, um sol suave, um sol perfeito para depois do grande ato. (p. 96)

E como o Ruiska, um escritor machista e arrogante por excelência: Dou três gritos e ponho minha mulher fora do escritório. Ela está chorando agora, está chorando sentada no meu belíssimo pátio de pedras perfeitas. Fecho a porta de aço do meu escritório. (p. 22)

A narradora de O Unicórnio é apresentada por sua amiga, uma outra narradora, como safada e angélica: Olha, essa estória é muito boa para o teatro, você deveria escrever a estória de uma mulher muito boazinha, estúpida e safada... Safada? Safada sim. Uma mulher que resolve dar tudo para os amigos porque os amigos são uns anjos e depois ela fica na merda e os amigos com o saco cheio daquela presença angélica mas na merda, matam-na e enterram-na no jardim da casa que não é mais dela, e sim deles. (161-162)

Ela defende seu direito de incluir os irmãos “lésbica” e “pederasta” simplesmente porque “é assim”. Não pensa em defendê-los, afinal são eles que vão traí-la. Insiste em repetir “pederasta” – em minha opinião, um termo anacrônico, pejorativo e sonoramente feio – como um epíteto e sintoniza os mesmos discursos conservadores sobre o homossexual como um ser imoral e degenerado. Ao lembrar o contexto descrito por Green e Trevisan, especialmente a “teia intrincada de discursos religiosos, legais e médicos”, de Green, percebem-se quantos outros discursos, quantas outras vozes falam em concerto com a narradora nas suas asserções. Para Deleuze e Guattari: “não existe enunciação individual nem mesmo sujeito de enunciação.” (D & G,

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INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira: Hilda Hilst. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1999.

8 1980/1995, v. 2, p. 17) Tudo que é dito expressa algum arranjamento, 10 do qual Hilda Hilst é uma emergência. Um arranjamento tem duas faces: é coletivo de enunciação e maquínico do desejo. Um arranjamento é coletivo de enunciação no âmbito dos eventos (expressão) e é maquínico do desejo no âmbito dos corpos, dos estados de coisas (conteúdo). (D & G, 1980/1995, v. 2, p. 29) Nenhuma das duas faces do arranjamento pode existir independente da outra e a mudança de uma necessariamente resulta na transformação da outra. A literatura se constitui especialmente da face arranjamento coletivo de enunciação. Porém, é importante não esquecer de sua face conteúdo: o conto O Unicórnio é um arranjamento que funciona como peça do livro-máquina “Fluxo-Floema” e dentro de uma máquina literatura brasileira. Freqüentemente, expressa um arranjamento majoritário homofóbico. A narradora e sua amiga são peças do conto e também de uma máquina abstrata que regula corpos humanos, sancionando a troca de amor romântico heterossexual e proibindo a homossexual. Hilda Hilst faz do irmão pederasta uma emergência de um arranjamento quando diz: Existir com esse meu contorno é ferir-se, é agredir as múltiplas formas dentro de mim mesmo, é não dar sossego às várias caras que irrompem em mim de manhã à noite, levante-se, comece a ferir esse rosto, olha, é um rosto que tem uma boca e essa boca está lhe dizendo: não se esconda de mim, olha como você é torpe, torpe, olha a tua boca escura repetindo palavras, gozando palavras (172)

Ele luta com as vozes do arranjamento do qual ambos fazem parte – aquele que julga severamente seu “amor pelos homens”. Trata-se da pluralidade de vozes de um arranjamento coletivo de enunciação, incompatível com um rosto apenas “tripartido à procura de sua primeira identidade” (p. 176). É ele que um escritor expressa quando mancha o papel, mesmo que não pareça ou interesse ou não adiante dizer. E olha as tuas mãos agora manchando de preto o branco do papel, mas você pensa seriamente que alguém vai se interessar por tudo isso? Você pensa que adianta alguma coisa dizer que quando você fala da terra, não é do teu jardim que você fala mas dessa terra que está dentro de todos, que quando você fala de um rosto você não está falando do teu rosto mas do rosto de cada um de nós, do rosto que foi estilhaçado e que se dispersou em mil fragmentos, do 10

Em francês, agencement. Na tradução da Editora 34 é traduzido por agenciamento. Neste trabalho, uso arranjamento, tradução apresentada por Nilza Silva porque expressa a noção de arranjo, disposição, composição, organização, invenção que agenciamento não oferece.

9 rosto que você procura agora recompor. Você pensa que falar sobre tudo isso adianta alguma coisa? Hi, hi, hi, há, ho, hu. (172-173)

A narradora retorna ao julgamento de “pederastia”: Você sabe que o Proust fazia muitas maldades? Não diga. É, eu li que ele enfiava uma agulha nos olhinhos dos ratos, só para se divertir. Mas você acredita mesmo que os seres humanos façam essas coisas somente para se divertir? Olha, o Proust era um pederasta. Pois é, era o Proust. O Gide também era um pederasta. Pois é, o Gide. O Genet... pois é, é o Genet. Você associa a maldade com a pederastia? Eu associo a pederastia com um defeito físico e o defeito físico com a maldade. Todas as pessoas com um defeito físico são más. (156-157)

Ela aproxima o conceito “maldade” (da filosofia e tomado pela religião), à função “defeito físico” (da ciência). Aqui, a pergunta da amiga pede clarificação. Outras vezes, como no diálogo a seguir, há plena concordância sobre a “tristeza” do exercício homossexual: O irmão pederasta dizia que era casto. Acreditei durante muito tempo, ele parecia honesto quando dizia que era casto, ele me confessou que teve uma paixão violenta por um homem, lógico, mas que depois teve medo e pudor. Depois de quê: Depois de pensar muito. Ahn. Você sabe, eu dizia para ele, é muito bonito quando dois amigos se querem bem, nós falávamos da Morte em Veneza, que é belíssimo, você conhece? Lógico, mas nem tudo acaba como a Morte em Veneza, tira da cabeça, acabam mesmo é abaixando as calças e aí vem o pedaço pior. Ah, isso é verdade. Não vale a pena meu amigo, você vai ficar muito triste depois de tudo, não, não, não faça. (151-152)

“Morte em Veneza” (1912) é um romance de Thomas Mann (1875-1955). Conta a história de um escritor de aproximadamente cinqüenta anos que resolve viajar para Veneza e lá se deixa absorver, de longe, pela beleza de um garoto. Embora o escritor perceba por sonhos dionisíacos a natureza de sua atração, os dois sequer conversam, a relação é casta. O diálogo mostra a admissão de certo grau de intimidade num romance homoerótico e uma aversão ao contato físico, principalmente sexo anal. Assim, é afirmada a concepção de uma maioria heterossexual e homofóbica. A troca contínua de perguntas e asserções fortes é um dos traços estilísticos mais marcantes do conto. Exemplifica um aspecto de linguagem que Deleuze & Guattari descrevem no ensaio Postulados da Lingüística: A unidade elementar da linguagem – o enunciado – é a palavra de ordem. Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras

10 de ordem. A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer. (D & G, 1980/1995, v. 2, p.12)

Uma palavra de ordem não é somente um comando no imperativo, podendo ser qualquer enunciado: uma pergunta, uma promessa, uma afirmação. A palavra de ordem se cumpre dentro do enunciado que emana de um arranjamento coletivo de enunciação onde plurais vozes se fazem ouvir. Não se fala sozinho e a linguagem não serve a uma mera troca de informação: Dizem que todos os pervertidos sexuais têm mau caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim. (147)

Para o irmão pederasta estudar a narradora emprestara o próprio apartamento. Abrimos a porta e ele estava lá com um adolescente bonitinho pederasta. Mas você tem realmente alguma coisa contra os pederastas? Se os meninos queriam dar a bunda o que é que você tinha com isso? Não, mas ele me fez de besta, espera um pouco, ele nunca me falou da bunda. Mas ninguém fala muito da bunda, fala? [...] Ele disse que o adolescente era um aluno dele, ele dava aulas, você compreende, Parmênides, Pitágoras. Aí é que está, o moço tinha logicidade, os gregos e a bunda, você não vê que é muito lógico? Que estória. Ele posava para mim. Um santo. Ele tinha medo de você, ele achava que você ia implicar, ia começar a fazer os teus discursos, não dê a bunda, não dê. Um santo, ah. Mas por que é que um santo não pode ser pederasta? Olha o Genet, você é uma tomista. (152-153)

Talvez se baseando na biografia de Jean Genet, de Jean-Paul Sartre, “Saint Genet, ator e mártir” (1952) a amiga afirma que Genet é prova que um santo pode ser pederasta e acusa a narradora de ser uma adepta de Tomás de Aquino (1225-1274), um santo canonizado pela igreja católica e um dos mais importantes pensadores católicos. As inúmeras perguntas e respostas já são palavras de ordem nada sutis. Deleuze e Guattari escrevem que uma palavra de ordem pode se submeter a uma hegemonia majoritária, como a de heterossexualidade, mas ela também pode combatê-la. Não é sempre tão fácil saber qual dos dois eventos – submissão e combate - um enunciado expressa: “Mas de todas maneiras, há regras que são as regras da desmontagem [da máquina], onde não se sabe mais muito bem se a submissão não esconde a maior revolta e se o combate não implica a pior adesão.” (DELEUZE e

11 GUATTARI, 1996, p. 147) 11 Ao ler O Unicórnio, esta pergunta vem seguidamente. Em quais momentos é revolta, em quais, adesão? A narradora freqüentemente cita obras literárias e autores. Às vezes ela cita nomes: Marcel Proust, Jean Genet, Andrés Gide, Santa Teresa D’Ávila, Gertrude Stein. Outras vezes cita o nome e a obra, como nesta comparação de estilos literários: Eu estava pensando que este relato é muito fragmentado. Eu gostaria de escrever como o Pär Lagerkvist 12 . Sei Barrabas. Não. O Verdugo. O Verdugo deve se sentir muito sozinho, não? (160)

Ainda outras vezes, apenas a obra é citada: “A Metamorfose” (1915), “Os Rinocerontes” (1959), “Retrato do Artista Quando Jovem“ (1916), “O Poço da Solidão” (1928). A narradora não confia na escrita da irmã lésbica: Se eu deixasse a rédea solta para a irmã lésbica, o máximo que sairia... vejamos, talvez ‘O Poço da solidão’. Dizem que é um bom livro, você não ficaria contente? Não, não, por favor, e depois não seria a minha verdade, eu não sou Estevão, eu sou o que todos nós somos, eu sou um rosto tripartido à procura de sua primeira identidade. (p. 175-176)

A autora de “O Poço da Solidão”, Radclyffe Hall (1880-1943), era uma importante difusora dos direitos de gays e lésbicas de seu tempo. Baseando-se nos últimos estudos científicos, ela usa o conceito de “inversão 13 ”, agora em desuso, para pleitear a igualdade e lutar contra a discriminação. Católica, ela traz também Deus para a defesa, misturando a religião e a ciência. A personagem principal de “O Poço da Solidão”, Estevão Gordon, uma jovem lésbica aflita, acha a explicação para sua “condição” num livro que ela encontra no estante do pai falecido. Trata-se de “Psychopathia Sexualis” (1886) do psiquiatra Richard Freiherr von Krafft-Ebing (1840–1902). Krafft-Ebing mantinha que a atração homossexual (ele usava os dois termos) nasceria biológica ou psiquicamente da masculinização de uma mulher ou da afeminação do homem. Estevão clama pela ajuda divina: 11

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Minuit, 1996. As traduções são de Nilza Silva, não publicadas. A paginação corresponde à edição Minuit. 12 Pär Lagerkvist (1891-1974) ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1951 para Barrabas (1950) Há o filme Barabbas (EUA, 1961, 137 min., cor) baseado no livro. Em 1969, Hilst escreveu uma peça de teatro intitulada O Verdugo (1933). 13 O termo “homossexual” foi cunhado em 1869 pelo húngaro Károly Mária Kertbenny (1824-1882). De acordo com James N. Green, Adolfo Caminha, ao defender “Bom Crioulo” em 1896, registrou um dos primeiros usos literários do termo no Brasil, um termo muito a frente de “invertido” em termos de simpatia.

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Quanto tempo continuaria essa perseguição? Quanto tempo o Deus ficaria quieto, suportando esta ofensa proferida à sua criação? Quanto tempo toleraria a afirmação absurda que a inversão não faz parte da natureza? Já que existia, o que mais podia ser? Todas as coisas que existem fazem parte da natureza! 14

Uma das muitas contradições da narradora de O Unicórnio é que ela despreza “O Poço da Solidão” pela sua superficialidade, mas se apóia tão claramente, após 40 anos, no mesmo preceito simplista, “inversão”, usada pela Hall. Ela descreve seu rosto tripartido, que inclui um irmão pederasta feminino, uma irmã lésbica hiper-masculina e “esse todo que se expressa e que tem toda aparência de real” (173): É assim: quando eu começo a escrever, a minha irmã lésbica tenta matar o que existe de feminino no seu irmão pederasta e ao mesmo tempo ela revitaliza o seu próprio núcleo masculino. (p.175)

Ela também se submete a critérios para escrever bem cujas constantes de conteúdo e expressão investem num padrão de atributos ditos masculinos e heterossexuais. Se ela não confiava na escrita da irmã lésbica, ela também não deixará “a rédea solta” para o lado esquerdo de seu rosto tripartido, o irmão pederasta. Com a exceção dos grandes autores citados, o autor ideal seria o homem heterossexual e masculino, com sua medida certa de virilidade e compaixão: olhe, a tarefa de escrever é tarefa masculina porque exige demasiado esforço, exige disciplina, tenacidade. Escrever um livro é como pegar uma enxada, e se você não tem uma excelente reserva de energia, você não consegue mais do que algumas páginas, isto é, mais do que dois ou três golpes de enxada. Por isso, nessa hora de escrever é preciso matar certas doçuras, é preciso matar também o desejo de contemplar, de alegrar-se com as próprias palavras, de alegrar o olhar. É preciso dosar virilidade e compaixão. E se você deixasse a rédea solta para o seu irmão pederasta? Não, nunca, veja bem: se ele não é Proust, nem Gide, nem Genet, há o risco de uma narrativa cheia de amenidades. (175)

A amenidade excessiva do irmão pederasta teria por causa sua “inversão”.

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How long was this persecution to continue? How long would God sit still and endure this insult offered to His creation? How long tolerate the preposterous statement that inversion was not a part of nature? For since it existed what else could it be? All things that existed were a part of nature! (Cap. 50, pt. 2) Tradução de Mason Hiatt.

13 Isto não tem importância?

Hilst própria dizia que tudo no seu trabalho era uma busca contínua por Deus e creditou a isso a pouca audiência de seu trabalho. Em entrevista de 1999, ela reclamou que sua única tentativa de escrever um texto que vendesse, que o público gostasse, um texto pornográfico – O Caderno Rosa de Lori Lamby – foi um fracasso. Na concepção de Hilda, e os entrevistadores de Cadernos concordam com ela, era porque mesmo num texto pornográfico, ela não abandonou essa busca: “Dizia que eu era dificílima na literatura pornográfica.” (Cadernos de Literatura 1999, p.30) Em O Unicórnio, um personagem editor sugere que ela deixe de falar do espírito para escrever textos puramente eróticos: “o espírito você sabe, enfim o espírito, o espi... como é mesmo? Enfim, escreve alguma coisa sobre um gigolô, uma puta, ou enfim... a gente de todo dia, sabe?” (214)

Além de ser criticada pelos assuntos que ela aborda, a narradora é rejeitada pelos amigos que imploram a ela assumir “seu verdadeiro rosto”. Culmina em sua transformação em Unicórnio. Até o companheiro a abandona quando isso acontece, dizendo: Olhe minha querida, apesar de todo o meu amor, será preciso afastar-me de você. Cruza os braços, me olha em silêncio, o rosto fica molhado. Caminha até a porta e, antes de abri-la, volta-se: eu fiz o possível para te fazer feliz, mas é inútil lutar com alguém que dissimula e rejeita a cada dia o seu verdadeiro rosto. (190)

No seu processo de transformação e de escrita, a narradora tenta reterritorializar-se sobre uma identidade. Ah, como eu desejaria ser uma só,... (184)

A narradora cita duas autoras santas que ela admira, a Santa Teresa d’Ávila (1515-1582) e a Santa Teresa de Lisieux (1873-1897). Teresa d´Ávila é conhecida pelo seu misticismo e por denunciar a corrupção dentro dos conventos e monastérios. Trabalhou na reforma dos conventos Carmelitas e fundou a ordem das Carmelitas Descalças. Teresa de Lisieux, Teresa d´Ávila e a narradora todas relatam uma inclinação cedo à religiosidade que as diferenciou das outras crianças. Teresa d’Ávila, na sua autobiografia (TERESA,

14 capítulo I) 15 , conta que ela e seu irmão resolveram fugir de casa para se tornarem mártires degolados em terras pagãs. Quando eles percebem que isso seria impossível, mudaram de idéia, sonhando então com uma vida eremítica. A narradora se diz diferente das outras crianças e é acusada de fazer o papel de Santa Teresa de Lisieux “a Florzinha de Jesus”: As crianças são de uma crueldade nojenta. As crianças são nojentas. Você nunca foi criança: Fui sim, mas não fiz uma só crueldade. Ah, deixa disso, não fica fazendo a Teresinha de Lisieux. (155)

Teresa de Lisieux, que morreu com apenas 24 anos, é conhecida por ter padecido muito de doenças desde a infância e por sua prática religiosa que aspirava à inocência das crianças, um “caminho pequeno” 16 . Esse traço da Santa reaparece mais tarde. Depois da sua transformação em unicórnio a narradora aceita a acusação do outro narrador que ela merece o afastamento das pessoas no zoológico, porque: Eu sei que sempre foi muito complicado falar com as pessoas, mas em mim essa dificuldade não foi falta de amor, isso não, foi talvez a memória de certas lutas, a agressão repentina daqueles que eram meus irmãos, mas eu estou certa de que a maior culpa coube a mim, eu tinha uma voz tão meiga, tinha um rosto anêmico, um olhar suplicante e todas essas coisas fazem com que os outros se irritem, afinal ser assim é ser muito débil para um tempo tão viril como é o nosso tempo. (193-194)

A “voz meiga” da narradora que remete à Teresinha, em oposição ao “tempo viril”, relembra o que dizia um amigo de um cristo masculino, homem que usa sexo como uma arma de dominação: Nós somos o Cristo que se cansou de parábolas, o Cristo que nunca mais se deixará crucificar, o Cristo com um pênis deste tamanho na bunda de todos os opressores, esse é o Cristo de nosso tempo. (194)

Na mesma entrevista de 1999, Hilda Hilst diz que leu a obra dessas santas. Lygia Fagundes Telles conta um detalhe de um jantar de 1952 que indica o quanto a Teresa d´Ávila era importante para Hilda:

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CEPEDA Y AHUMADA, TERESA DE. The Life of Saint Teresa of Jesus. London: Thomas Baker, 1904. Edição eletrônica encontrada no site www.gutenberg.org 14, março, 2008. Tradução do espanhol: David Lewis. 16 MARTIN (DE LISIEUX), THERÉSÈ. The Story of a Soul: The Autobiography of Teresa of Lisieux. London: Burns, Oates & Washbourne, 1912. Edição eletrônica encontrada no site www.gutenberg.org, 14, março, 2008. Tradução do francês: Thomas Taylor.

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Tínhamos marcado, Goffredo (Goffredo Telles Jr.) e eu, um encontro com alguns amigos, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Breno Acioli, José Conde... Lá estava a Hilda toda de preto, falando em Santa Teresa d´Ávila, a do ‘amor duro e inflexível como o inferno’. (CADERNOS, 1999, p.15)

E a literatura menor? Gilles Deleuze e Félix Guattari descrevem as diferenças entre uma literatura menor e uma literatura maior no livro “Kafka: Para uma Literatura Menor”: “Uma literatura menor não é a de uma língua menor; antes, a que uma minoria faz dentro de uma língua maior.” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p.29) Do mesmo jeito que uma minoria não diz menos numeroso, menor não diz menos importante. Quanto mais uma escrita se distanciar do majoritário, tornase literatura menor, mais criativa e potente. Mas, como se faz uma literatura menor? Como arte, toda literatura é criação de sensações e, portanto, pode construir vias de ser minoritárias. Para ser menor, uma literatura precisa ter o seguinte: “Os três caracteres da literatura menor são a desterritorialização da língua, a ramificação do individual sobre o imediato-político, o arranjamento coletivo de enunciação.” (DELEUZE E GUATTARI, 1996, p. 33) Primeiramente, literatura, maior e menor, é expressão de um arranjamento coletivo de enunciação. Um dos arranjamentos que se expressa em O Unicórnio é um arranjamento heterossexual majoritário e homofóbico, com seus corpos e eventos. O órgão língua se desterritorializa quando, além do paladar e deglutição, assume a fala. Outro elemento de uma literatura menor é a desterritorialização da língua-idioma. Em uma literatura menor: “A linguagem cessa de ser representativa para tender para seus extremos ou seus limites.” (D & G, 1996, p.41-42). Chamam-se “intensivos” ou “tensores” esses elementos lingüísticos que ultrapassam os limites da língua. Um exemplo deste tratamento é o uso da língua alemã por Kafka, que cria uma língua estrangeira, alterando e inventando a sintaxe de suas frases. Ele dizia: “A palavra, eu não a vejo, e a invento” (D & G, 1996, p.52). Também, Samuel Beckett respondeu a um estudante sobre a sua escrita em francês: “Parce qu’en français c’est plus

16 facile d’écrire sans style” (ESSLIN, 1961, p. 8) 17 e cujos diálogos são cheios de tropeços, tensões, frases que desterritorializam o francês, num sentido inusitado. Gherasim Luca (1913-1994), poeta romeno radicado na França, no seu poema Passionement, desconstrói o título (apaixonadamente) em pás (auxiliar negativo francês e também passo), passio (palavra nonsense), e passioné (apaixonado), entre outras. Todos estes artistas fazem gaguejar a língua. Desterritorializam-na. Hilda Hilst o faz quando dificulta a percepção de quem está falando. Um exemplo forte é na primeira página. Quem é “a coisa”? Quem é esse jesuíta? Saberemos depois? EU ESTOU DENTRO DO QUE VÊ. Eu estou dentro de alguma coisa que faz a ação de ver. Vejo que essa coisa vê algo que lhe traz sofrimento. Caminho sobre a coisa. A coisa encolhe-se. Ele era um jesuíta? Quem? Esse que maltratou a Teresa D’Ávila? Sim, ele era um jesuíta. (147)

Sessenta e cinco páginas depois, coisa reaparece como um “existir de anêmona”: Tudo isso, todo esse grande amor me estufando as vísceras, todo esse silêncio feito de alfinetes, essa contração dolorosa no meu estômago, esse encolher-se e depois largar-se como um existir de anêmona, essa língua que devora e que ao mesmo tempo repele o mais delicado alimento, esse olho liquefeito, esse olho de vidro, esse olho de areia, esse olho esgarçado sobre as coisas, tudo isso em mim é simultaneidade, é infinitude, é existência pulsando e convergindo para Deus não se sabe onde, para o mais absoluto, ou o mais vazio, ou o mais crueldade, o mais amor, ai de mim expulsando as palavras como quem tem um fio de cabelo na garganta, ai ai ai. (212)

Quanto à ramificação do individual sobre o imediato-político, considera como o texto funciona politicamente dentro de um dado arranjamento. “O segundo caráter das literaturas menores é que tudo nelas é política”. (DELEUZE E GUATTARI, 1996, p. 30) Aqui, política supõe um movimento para se distanciar de um determinado padrão majoritário e não uma aproximação. Estes três elementos precisam estar juntos num texto para se ter uma literatura menor. Então, como funciona O Unicórnio em termos do arranjamento heterossexual e homofóbico, 1969, no Brasil? Com tantas afirmações preconceituosas, será que O Unicórnio desestabiliza essa maioria? Deleuze e Guattari escreveram que um artista menor pode expressar um povo que ainda 17

ESSLIN, Martin. The Theatre of the Absurd. New York: Doubleday, 1961. “Porque no francês é mais fácil escrever sem estilo”. Tradução de Mason Hiatt.

17 não existe, antecipando arranjamentos por vir. Kafka mostrou o incipiente fascismo europeu, nas suas historias com relações opressivas, burocracia sem rosto, julgamentos intermináveis. Não é o caso de O Unicórnio, pois não oferece novidades nesse ponto e reforça conceitos homofóbicos. Em uma literatura maior, o escritor busca uma expressão hegemônica para um dado conteúdo, busca um equilíbrio, uma convergência entre os dois. Em uma menor, a expressão interfere no conteúdo, o desequilibrando. (DELEUZE E GUATTARI, 1996, p. 51-52) Em O Unicórnio, os irmãos lésbica e pederasta e a amiga sábia, agora a superintendente e dois conselheiroschefes da companhia de petróleo, viram máquinas abomináveis com cabeças peludas de lebre. O som de seus corpos de metal e a ação de suas línguas, enquanto falam, mostram toda a violência das armas de destruição em massa, da tecnologia a serviço do terror e da guerra. Os irmãos sobem as escadas. Seus corpos fazem um ruído: tec-ter, tec-ter, tec-ter, tecnologia e terror, tecnologia e terror, param nos degraus de aço, olham os reservatórios cilíndricos, vestem os capacetes, as mãos são hastes de metal, os dentes são de ouro, o céu da boca é de platina, a língua é de vidro e a cada palavra essa língua se estilhaça e novamente se recompõe. (179)

As hastes de metal me remetem àquelas dos helicópteros de guerra que estavam sendo usados para massacrar milhares na guerra do Vietnã, a bombas incendiárias, napalm e agente laranja, para o que o domínio tecnológico e de propriedade do petróleo são decisivos. Há um discurso fortemente capitalista nesta cena. A narradora lembra o que a irmã lésbica dirá sobre o túmulo dela: meus amigos, esta era minha irmã que arranjou para mim um emprego numa refinaria de petróleo, mas eu era poeta e apesar de ser hoje superintendente da companhia, nunca mais pude escrever com honestidade. Eu escrevo. AÇÕES, PRODUÇÃO, SALÁRIO, QUOTAS, SIGLAS, MÁXIMO DE RENDIMENTO. (179)

Estas são algumas das palavras-cacos que ferem a narradora. É no evento discurso dos irmãos que vemos a segunda característica de uma literatura menor, a ramificação do individual sobre o imediato-político. As outras duas coordenadas do arranjamento, que é tetravalente, são a desterritorialização e a reterritorialização. (D & G, 1980/1995, p. 29). O arranjamento - o conteúdo e a expressão - é ou arrebatado ou estabilizado por

18 essas coordenadas. No arranjamento capitalista do discurso, o órgão língua sofre uma desterritorialização de suas funções de saborear ou engolir, para tornar-se capaz de articular palavras. Os órgãos línguas de vidro, ao estilhaçarem com as palavras, se recompõem, falam mais uma palavra, estilhaçam e cospem vidro e voltam a se recompor, num ciclo contínuo. O corpo vidro, nas palavras que ferem, atinge o corpo narradora e ela sangra. Hilda opera, aqui, uma nova desterritorialização do órgão língua ao mostrá-la vitrificada e cuspidora de palavras de ordem, que alegram e inspiram os empregados: E viva a refinaria, companheiros Vivaaaaaaaaaaaaaaaaa responderam todos. (181-182)

lebres!

Depois, a narradora é convidada pelo irmão pederasta a expressar um arranjamento do capital monopolista. Não esquecemos que o trabalho com a companhia causou a perda de honestidade da irmã: Mas veja bem, queridinha – o conselhero-chefe continua – você parece distraída e esse é um assunto que deveria te alegrar, afinal você não quer escrever? Você não quer se comunicar com o outro? Escreva sobre a nossa organização, sobre a nossa limpeza, você viu como tudo funciona com precisão? (186-187)

A narradora rebate: Estou com os olhos cheios de lágrimas: olhem o que vocês fizeram, olhem os cacos de vidro no meu corpo.

Ela não se submete às palavras de ordem do arranjamento capitalista. O conselheiro-chefe ou não vê os cacos ou finge de não vê-los. Você não está enxergando bem, não são cacos de vidro, nós já lhe dissemos, é sarna, queridinha não se coce, é pior, coma alguns biscoitos, tome um copo de vinho, descontraia-se, não fique franzindo o focinho assim, não coce as orelhinhas tão compridas, fique lá no canto, vamos, vamos. Saíram. (187)

Agora, além da narradora se transformar em coelho em vez de uma lebre – o discurso louvara as qualidades fortes da lebre e desprezara a vulnerabilidade dos coelhos – ela tem sarna. Pouco antes, um alto-falante anunciara que a “sarna de coelhos” era contagiosa e motivo para sacrificação. É o primeiro sinal de que a trajetória da narradora, como escritora, a está

19 distanciando do discurso majoritário do “capital monopolista”. E ela grita para os empregados que começarão a se aproximar perigosamente: Por favor, senhores, tenham um pouco de caridade, me deixem falar com a superintendente, ela é minha amiga, talvez ela não se lembre de mim mas eu vou fazer o possível para que ela se lembre, eu vou dizer: irmã eu não faço parte desses teus amigos do capital monopolista, eu sou aquela que convivi com você, aquela que te ensinou a amar (183)

Durante o processo de transformação e de escrita, a narradora e seu deviranimal (coelho-unicórnio) segue fluxos de constituir-se plural com múltiplos rostos. Disto pode-se propor ao menos dois percursos. O devir-animal da narradora – sua transformação em coelho e unicórnio e seu afastamento para o zoológico – pode expressar a singularização, a diferenciação de uma escrita menor. Contudo, o devir-cristo da narradora – sua transformação em coelho e unicórnio, sua presença “angélica mas na merda” e seu afastamento para o zoológico – pode expressar uma religiosidade maior baseada no culto ao sofrimento e na ascensão à glória por paixão/padecimento. Torna-se, então, literatura maior.

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REFERÊNCIAS CEPEDA Y AHUMADA, TERESA DE. The Life of Saint Teresa of Jesus. London: Thomas Baker, 1904. Edição eletrônica encontrada no site www.gutenberg.org 14, março, 2008. Tradução do espanhol: David Lewis. DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Lês Éditions de Minuit, 1997. A tradução é de Nilza Silva, não publicada. A paginação corresponde à edição Minuit. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrênica, Vol.2. Traduzido do francês por Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Minuit, 1996. As traduções são de Nilza Silva, não publicadas. A paginação corresponde à edição Minuit. GREEN, James N. Beyond Carnival: Male Homosexuality in Twentieth Century Brazil. Chicago: University of Chicago Press, 2001. HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo:Globo Editora, 2001. Daqui para frente, as citações deste livro serão feitas com apenas a página consultada. INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira: Hilda Hilst. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1999. MARTIN (DE LISIEUX), THERÉSÈ. The Story of a Soul: The Autobiography of Teresa of Lisieux. London: Burns, Oates & Washbourne, 1912. Edição eletrônica encontrada no site www.gutenberg.org , 14, março, 2008. Tradução do francês: Thomas Taylor. PENTEADO, Darcy. Nivaldo e Jerônimo Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1981. TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraiso: A Homossexualidade no Brasil, da Colônia à Atualidade. Rio de Janeiro: Editora Record, 1986/2007.

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