HINDUTVA: O FUNDAMENTALISMO NACIONAL-RELIGIOSO NA ÍNDIA CONTEMPORÂNEA

May 21, 2017 | Autor: Gino Battaglia | Categoria: India, Nazionalismo, Induismo, Fondamentalismo
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HINDUTVA: O FUNDAMENTALISMO NACIONAL-RELIGIOSO NA ÍNDIA CONTEMPORÂNEA Gino Battaglia

L. K Advani, notável expoente do nacionalismo hindu, afirma que Hindutva (principal conceito da ideologia nacional-religiosa indiana, do qual recebe o seu nome) é a resposta à pergunta: quem somos nós? Advani, a partir do pensamento de V.D. Savarkar e de Deendayal Upadhyaya, autores dessa ideologia nacionalista, afirma também que Hindtva não é uma ideia religiosa, mas se refere à cultura e à identidade do povo indiano. Para ele, ‘hindu’ tem a ver com ‘ser indiano’ e “se a Índia for desindiunizada, ela não será mais a Índia” (ADVANI, 2008, p. 864). Roberto Catalano, por outro lado, em um de seus ensaios, analisa a questão da bramanização do hinduísmo. Ele entende que esse processo, iniciado ao tempo dos Vedas, seguiu dois caminhos principais: o primeiro deles refere-se à integração de experiências religiosas mais antigas, diferentes ou locais na religião védica; o segundo refere-se à criação, na cultura e na psique indiana, da unidade entre religião e sociedade, metafísica e vida social, por meio da filosofia Advaita (não dualidade) e da estrutura das castas. Segundo ele, no final, estas duas perspectivas tendem a confluir (CATALANO, 2009, p. 437-471). Tudo isso, embora se tratem de processos históricos e culturais, que remontam ao segundo milênio antes da Era Comum, não são aspectos estranho à Índia atual porque a afirmação da ideologia Hindutva pode ser entendida como a perpetuação de um projeto hegemônico na sociedade indiana. A questão sobre a definição da palavra ‘hindu’ ou ‘hinduísmo’ não é apenas um problema de caráter semântico ou epistemológico. Identificar uma religião sob este conceito não foi só uma preocupação dos estudiosos europeus, por mais impregnados que estivessem pela ideologia que E.W. Said (1977) chamou de o ‘orientalismo’, mas também uma postura das clas-

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ses dominantes na sociedade indiana. Essas buscavam reconduzir toda riqueza e pluralidade de tradições locais, de devoções particulares, de ciclos épicos, de cultos, de figuras divinas, de produções artísticas e de pensamento, a uma única matriz. Atualmente, o Hindutva (exatamente ‘ser hindu’ ou ‘hinduidade’) representa uma retomada em chave identitária e, certamente, simplificada do imenso patrimônio cultural, religioso e espiritual da Índia. Com base em numerosos estudos, parece que o fundamentalismo pode ser entendido como uma forma de nacionalismo. E, de forma geral, o conflito religioso é sempre um conflito político relacionado à conquista ou à preservação do poder. Como bem observa Enzo Pace, as religiões entram em guerra quando pretendem se tornar ‘a linguagem pública das políticas identitárias’. Isto é um repertório de símbolos utilizados pelos atores sociais, étnicos ou políticos para falar do ‘inimigo’ (PACE, 2004). Parece que, nessa perspectiva, se possa compreender melhor o fundamentalismo hindu. Katharina e Sudir Kakar observam que um hindu “se identifica como tal somente em relação ao muçulmano, do contrário, as argumentações sobre as pertenças se fazem valer mais em termos de casta” (S. e K. KAKAR, 2004). Nesta linha de pensamento, o ser Hindu emerge somente diante do muçulmano ou do cristão. Este é um dado antropológico, cultural e psicológico. A partir disso se compreende a difusão do Hindutva que envolve, ainda hoje, não só uma massa de marginais, facilmente fanatizáveis, mas também as classes médias indianas emergentes e, ao mesmo tempo, desorientadas pela modernidade, deslumbradas pelo bem-estar ou assustadas com a complexidade do mundo globalizado. Os Antecedentes Ilustres do Fundamentalismo Hindu O fundamentalismo hindu possui seus ilustres antepassados e, também, uma história longa e complexa. Esta história remonta à luta pela independência e até mesmo antes dela (entre os séculos XIX e XX) as tentativas dos indianos para se redefinirem frente à civilização dos colonizadores europeus. Até então, a hegemonia política e também cultural pertencia aos sahib (senhores) brancos, enquanto que o Raj britânico (conjunto das possessões e das áreas controladas pelos ingleses na Índia) representava a expressão político-militar-administrativa da dominação. Para reafirmar a identidade e o valor da civilização indiana, as classes cultas do subcontinente tiveram que

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fazer um grande esforço criativo. Além disso, até então, a Índia nunca havia sido uma entidade política unificada e muito menos tivera um momento na história passada no qual pudesse se inspirar. De fato, a Índia era uma realidade muito complexa e grande para chegar a se constituir em um espaço político unitário (e para ser totalmente dominada por um único agente externo). Somente a partir do patrimônio cultural religioso bramânico foi possível perceber o núcleo sólido de uma identidade compartilhada. É claro que, em um primeiro momento, os muçulmanos indianos se sentiram desconfortáveis quando a disputa prolongada com o poder colonial britânico foi acompanhada por uma proposição da identidade indiana em chave religiosa (BATTAGLIA, 2015). Esta luta pela independência, embora Gandhi tenha trabalhado, incansavelmente, pela unidade hindu-muçulmana, encontra sua referência em um líder de alto calibre espiritual hindu, cujo pensamento e cuja ação eram a expressão madura de pelo menos um século de busca espiritual e tentativa de renovação do hinduísmo. V. D. Savarkar, líder do movimento de independência, pensador que deu início à ideologia do Hindutva, dedica as primeiras páginas do seu trabalho fundamental para a discussão do termo hindu (SAVARKAR, 2005). Este autor diz que a identidade hindu não se reduz apenas ao aspecto religioso. O Hindutva é, de fato, uma identidade comum a todos os indianos, incluindo budistas, jainistas e sikhs, e excluindo os muçulmanos e cristãos, que segundo ele, se colocaram fora da nação hindu e da herança de civilização. A controvérsia sobre o hinduísmo e a degeneração histórica é o ponto nodal também na reflexão, na obra e nos escritos de grandes reformadores como Swami Dayananda, cujos argumentos são incorporados na bagagem ideológica do Hindutva contemporâneo. Em 1914, tem lugar a Akhil Bharatiya Hindu Mahasabha (Grande Conferência Hindu Pan-Indiana) com o objetivo de defender os direitos dos hindus na Índia britânica, após o surgimento da Liga Muçulmana (1906). Tratava-se da primeira organização do hinduísmo político, ou seja, do nacionalismo e se colocava claramente como uma organização confessional. A Hindu Mahasabha entendia que era preciso lutar pela unidade política dos hindus, tendo em vista o progresso cultural e econômico, bem como a conversão dos muçulmanos1. 1 A Arya Samaj (sociedade dos arianos), fundada por Dayananda Saraswati em 1875, se envolveu com o movimento da shuddhi, ou seja, movimento para a conversão dos muçulmanos indianos. A Hindu Mahasabha, mais tarde, terá papel importante nesta tarefa. Hindutva: o fundamentalismo nacional-religioso na Índia contemporânea  |  35

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Nos anos vinte, quando aconteceu a primeira grande crise do movimento de não cooperação gandhiano, o declínio da aliança hindu-muçulmana, desejada por Mahatma, como também uma série de confrontos intercomunitários cada vez mais sangrentos, a Hindu Mahasabha foi fortemente influenciada por Savarkar, que falava dos hindus, como sendo os habitantes da terra santa da Índia (Hindusthan), uma ‘raça’, unida pelo sangue, por uma cultura comum (e também por uma língua comum, o sânscrito), pelas mesmas instituições, por uma mesma geografia sagrada e, finalmente, por uma história comum de resistência às invasões. Muçulmanos e cristãos indianos são estranhos a esta raça, uma vez que as referências identitárias são outras. O crescimento das organizações nacionalistas hindu é impressionante (OZZANO, 2007). Em 1925, surge a Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), a União Nacional dos Voluntários, que após dois anos teria o seu “batismo de fogo” nos confrontos intercomunitários de Nagpur. Em 1932, a União contava com dez mil membros. Em 1951, os ‘voluntários’ eram cerca de seiscentos mil e, atualmente, são pelo menos três milhões, apesar das estimativas controversas, com cinquenta mil centros em todo o país. Em 1964, foi criado em Bombay o Vishva Hindu Parishad (VHP), o Conselho Mundial dos Hindus, com a finalidade de integrar os religiosos (sadhu) e os ascetas (sannyasin), de dar uma conotação religiosa e uma identidade marcadamente hindu à campanha da RSS. Em 1994, o VHP contava com três mil seções e cem mil adeptos. Em 1966, ainda em Bombay, nasce Shiva Sena, por iniciativa de Balasaheb Thackeray, um partido com base étnica que encarnava o nacionalismo maharathi. Tratava-se de um movimento urbano, xenófobo. Mesmo estando radicado no Maharashtra (importante estado da Índia, cuja capital Bombay hoje chamada Mumbay), com o novo milênio, o partido conhece uma expansão, em nível nacional, acolhendo as posições do nacionalismo hindu. Em 1984, foi fundada a Bajrang Dal (Armada do Forte), ramo juvenil do VHP, que tinha a função de ‘serviço de segurança’, isto é, proteger as manifestações para a ‘reconquista’ do lugar sagrado de Ayodhya (veja abaixo). Esta organização se tornou logo o braço armado do nacionalismo hindu e tem, atualmente, duas mil e quinhentas seções2. 2 Bajrang é um dos epítetos de Hanuman (o ‘Forte’), o deus parecido com o macaco, que está ligado a Rama por meio de uma devoção amorosa. Com a transformação de Rama em um deus guerreiro, ponto central do culto popular criado pelo nacionalismo, também a representação de Hanuman se modifica. Rama se transforma, mais que Kali ou Durga, no deus

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Surge, assim, uma ‘família’ de organizações (a Sangh Parivar), que reforça e alimenta sindicatos, centros culturais, instituições educativas, diferentes iniciativas centradas na cultura, nas brincadeiras (as crianças também foram envolvidas), no esporte e nas artes marciais. Durante os anos da Índia independente surgiram também partidos políticos que representaram o Hindutva no parlamento: em 1951 surge o  Bharatiya Jana Sangh  (BJS), União Indiana do Povo, que foi substituído, em 1980, pelo Bharatiya Janata Party (BJP), o Partido Popular Indiano. Estes partidos são a expressão política do nacionalismo hindu e, ao mesmo tempo, seus reféns, pois este movimento, ou seja, o nacionalismo hindu, tem o poder de influenciar totalmente as decisões e as escolhas do partido. Dessa forma, o movimento garante votos ao partido e o partido lhe oferece cobertura política (NOORANI, 2000). A Subida ao Poder de um Partido Hindutva Depois de dez anos de oposição, em 2014, o BJP sobe novamente ao poder com uma maioria no parlamento, o que lhe permite governar sem muita preocupação durante a sua gestão. No entanto, a vitória eleitoral do BJP revela o declínio, talvez irreversível, do Partido do Congresso e a influência do Hindutva na sociedade indiana. Se a Índia é considerada a maior democracia do mundo, ela é um exemplo positivo da exportação da democracia fora do Ocidente, hoje é também considerada uma democracia dominada por uma força política centrada, explicitamente, no fundamentalismo. A Índia surgiu como estado laico e pluralista3 e, ao contrário do Paquistão que surgiu como nação dos muçulmanos no subcontinente indiano, dos hindus revoltados. Por conseguinte, a figura de Hanuman, representada na iconografia tradicional com a imagem de Rama no coração vai perdendo as conotações fraternas, devotas e afetivas para privilegiar o aspecto violento, a força, os músculos, a estatura gigantesca, o bastão que agita, de maneira combativa em sua mão, contra seus inimigos e aqueles da Índia. No preâmbulo da Constituição, a Índia é definida como uma república “soberana, democrática, socialista e laica (secular)”. É importante fazer algumas considerações acerca da palavra inglês secular. A laicidade do estado indiano não corresponde de fato ao secularismo de alguns estados europeus. Não é, para compreensão, uma laicidade francesa como veio definida por meio dos séculos. A laicidade indiana é, ou pretende ser, respeito a todas as religiões e não uma atitude hostil, que limita às expressões religiosas ou a presença das religiões no cenário público. Ao contrário, representa um papel ativo do Estado: garantir a todas as comunidades religiosas a mais alta expressão da sua identidade e a possibilidade de realizar seu estilo de vida. 3

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ela não é o Hindusthan, sobre o qual confabulavam Savarkar e seus seguidores. Na era de Nehru, o inimigo era considerado de direita, o nacionalismo hindu. A isso o Pandit (mestre), como foi afetuosa e respeitosamente chamado Nehru, desde os tempos pela luta da independência, responde enfatizando o caráter laico do Estado e a proteção das minorias. Aqui, como lembra Marta Nussbaum, há certa fraqueza na reflexão nehruviana: ele considerou a religião uma espécie de fardo do passado e, com isso, dedicou pouca atenção aos aspectos ligados a essa dimensão. Porém, esses aspectos tiveram e ainda têm uma grande influência na vida dos indianos. Ele acreditava que apenas uma cultura cívica nacional pudesse servir de base para o pluralismo e a tolerância (NUSSBAUM, 2009). Isto é exatamente o que o fundamentalismo hindu critica ao se pensar na Índia: o projeto de se construir uma identidade nacional isenta e até mesmo contra o hinduísmo. Esta visão iluminista e aristocrática de Nehru acabou por deixar livres as organizações do Hindutva em seu trabalho meticuloso de doutrinação de massa e de propagação incessante do medo dos muçulmanos. O medo é outro fator que explica o contínuo crescimento do fundamentalismo hindu. De fato, outro elemento, que colocou a comunidade hindu em posição defensiva e hostil foram os censos que a administração colonial organizava, desde 1871, a cada dez anos. A sensação que os hindus tinham de serem assediados pelo proselitismo cristão e islâmico foi acentuado no momento em que os membros das diferentes comunidades tiveram acesso aos resultados dos censos e puderam perceber as respectivas evoluções demográficas. U.N. Mukherji, em 1909, publicou uma série de artigos, que suscitaram bastante interesse, cujo título era: Hindus: a Dying Race (SARKAR, 2002). No entanto, foi com Nehru e, mais tarde, com Indira Gandhi, que se difundiu a sensação de que ser hindu significava ser discriminado, enquanto aos outros era garantido um lugar ao sol. Ficava, dessa forma, aberta a discussão sobre como a igualdade de tratamento, prevista pela constituição, era garantida às diferentes comunidades religiosas pelo estado laico. As escolhas dos governos indianos foram organizadas sob alguns critérios norteadores: o primeiro é que os cidadãos são todos iguais, isto é, que a população do estado é composta por indivíduos e não por grupos, por castas, tribos, categorias sociais, grupos étnicos ou por comunidades religiosas. A aplicação deste princípio nem sempre é linear, sobretudo, quando se aplicam outros princípios, em particular o da discriminação positiva (para promover as castas e grupos mais desfavorecidos), gerando certo descon-

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forto social. Uma separação absoluta, referente ao estado e às confissões religiosas era impensável na Índia e, portanto, estava fora de cogitação. No fim, há sempre certo pragmatismo que, ao procurar resolver um problema, se esquece de outros mais urgentes. Na resolução dos problemas religiosos foram abertas diversas negociações que procuravam trabalhar sobre o coeficiente de disponibilidade (ou de indisponibilidade) das diversas comunidades. Enquanto aos muçulmanos foi consentido manter o direito civil de origem corânica, o direito hindu foi reformado com critérios mais modernos ou progressistas, esperando o surgimento de um código civil comum para todos (SEN, 2010). Seria de se esperar uma ‘simetria’ na intervenção do Estado em relação às diversas comunidades religiosas. No entanto, sabe-se que é difícil estabelecer tal simetria mesmo em nível teórico. No plano prático a realização é parcial. O sociólogo indiano Partha Chatterjee, a quem não pode ser imputado simpatias nacionalistas, observa que o princípio da igualdade foi quebrado no momento em que escolheram intervir sobre questões referentes à maioria hindu, adiando por tempo indefinido as intervenções referentes às minorias (CHATTERJEE, 1997). Até mesmo os representantes das oposições de esquerda consideraram que não se podia proceder com tanta parcialidade, e que nem mesmo a argumentação de Nehru de que os muçulmanos não estavam prontos para tal reforma era convincente. O tema poderia dar lugar a todo gênero de controvérsia e a prova disso são os grandes “casos” (judiciários, mas também políticos) da Índia contemporânea, como o da viúva Shah Bano (sobre direito da família islâmica) ou como o da mesquita de Ayodhya, a Babri Masjid, que, entre outros, foi o lugar de confronto e de crescimento privilegiado dos movimentos fundamentalistas e da BJP. Os Acontecimentos da Mesquita de Ayodhya Os acontecimentos de Babri Masjid de Ayodhya (Uttar Pradesh) tiveram seu momento crucial durante a sua destruição, em dezembro de 1992, e durante os sucessivos confrontos entre os fundamentalistas e as forças da ordem e, especialmente, entre hindus e muçulmanos, espalhados em todo país, com milhares de vítimas. Do ponto de vista do nacionalismo hindu, estes acontecimentos possuem uma relevância histórica e até mesmo cósmica. Advani afirma que este foi o momento em que “a alma da Índia falou”. Ele

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conecta o acontecimento em Ayodhya ao templo de Somnath (Gujarath), um dos doze santuários ditos jyotirlinga (em que Shiva é venerado na forma particular de lingam4 de luz), espalhados por toda a Índia. O templo de Somnath surge na costa do mar Arábico e é famoso por suas grandes riquezas. Por isso, foi objeto recorrente de saques pelos invasores muçulmanos. Sua última reconstrução remonta à independência nacional. Advani sintetiza o quanto este monumento significa para os nacionalistas hindus: na conjuntura da Partition (a divisão entre a Índia e o Paquistão) e do derramamento de sangue que a acompanhou, era natural que “a reafirmação cultural do espírito nacionalista da Índia encontrasse apropriadas linguagens e símbolos hindus para se expressar” (ADVANI, 2008, p. 842). Em suma, o templo é o símbolo da “fé nacional”. No mesmo sentido, houve uma grande mobilização para recuperar a posse do lugar onde fora levantada a mesquita de Ayodhya. Este era o lugar onde Rama nascera, segundo a tradição, mas depois se tornou o lugar da batalha política e judicial, a fim de se reconstruir o templo. Em um momento de crise de identidade da Índia, foi necessário que a alma da nação voltasse a se manifestar. Pelo que foi dito, pode-se entender a importância desta batalha que teve como estopim o culto a Rama. A estes eventos em Ayodhya, e ao movimento dos devotos da/e para a cidade santa em Uttar Pradesh, ligam-se um dos episódios mais graves entre as duas maiores comunidades religiosas da Índia: o incêndio de um dos vagões do Expresso Sabarmati, no qual viajavam militantes e peregrinos que retornavam de Ayodhya. Este incêndio aconteceu em 27 de fevereiro de 2002 fazendo cinquenta e nove vítimas. A este incêndio seguiu-se um massacre antimuçulmano, que fez centenas e, talvez, milhares de vítimas, incluindo um grande número de crianças e mulheres. O Hindutva entre a Renovação e o Conservadorismo Não é fácil enfrentar as contradições de uma sociedade complexa ou a coexistência entre diferentes comunidades religiosas. A Índia é um país complicado. Diante de contradições, de fraquezas internas, de problemas, parece mais fácil criar um inimigo e encontrar falhas em vez de soluções. 4 Lingam é o símbolo da divindade em forma fálica que representa seu poder criador.

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Tudo isso, talvez, explique o medo dos hindus de serem oprimidos ou escravizados, a suspeita do complô, o terror do crescimento demográfico incontrolável do inimigo, a síndrome de uma maioria assediada e até mesmo discriminada, o pesadelo da extinção da comunidade e até mesmo os medos contemporâneos diante do terrorismo Jihadista (lembrando que o fundamentalismo hindu se aliou às teses do choque de civilizações). Segundo alguns autores, o Hindutva é um movimento que pretende acabar com a lógica das castas. Savarkar relativizava as castas e tinha uma visão instrumental delas, consideradas como instituições da nação. Para ele o que contava não era a casta, mas a nação e a realização daquilo que pensadores como Deendayal Upadhyaya, ideólogo do BJS e do BJP, definiria chiti, ou seja, o ethos da Índia. A maioria dos pesquisadores acredita que o Hindutva seja um movimento de caráter conservador do ponto de vista social. A relativização das castas é, portanto, de natureza ideológica e se inscreve na tentativa de unir os hindus, de serrar fileiras, de fornecer uma única identidade hindu que, necessariamente, deve ter uma referência nacional e não mais territorial ou de castas. No entanto, ninguém sabia exatamente o que era ser hindu até que Savarkar tentou dar uma resposta. Aquilo que se chama fundamentalismo religioso é um fenômeno eminentemente contemporâneo, caracterizado por uma busca identitária face à desorientação causada, antes pela modernidade, e mais recentemente pela globalização. Por isso, a religião é utilizada como um elemento identitário. Trata-se, muitas vezes, de movimentos com inspirações religiosas de caráter global. Paradoxalmente, embora nascendo de um incômodo face à modernidade e à globalização, o fundamentalismo não é por nada um retorno às tradições ou às origens (ROY, 2009). Trata-se, muitas vezes, de simplificações, que se apossam das pessoas que se encontram subjugadas pelos conflitos cotidianos e são confrontadas com a diversidade e complexidade em um mundo que muda rapidamente. Tais pessoas anseiam por respostas tranquilizadoras. A tentativa, conduzida pelo hinduísmo político, de mobilizar a massa indiana parece com um sincretismo simplificado. Aquilo que aos poucos vai se impondo, por meio do percurso histórico e cultural, que é acenado aqui, é uma visão limitada e sequer consegue justificar a grande civilização que se pretende preservar. E a vítima principal que o nacionalismo hindu procura há décadas, a religião, se encontra aprisionada por uma espécie de ideologia da raça e da terra e por um sincretismo que tenta reconduzir a

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multiplicidade das religiões da Índia a uma identidade monolítica de tipo racial e cultural. Os cristãos e os muçulmanos indianos se apresentam como hindus convertidos, geralmente pela força, pois precisam, idealmente, ser recuperados pela religião da maioria. O fato de ter passado muitos séculos é, para a mentalidade e para a concepção histórica indiana, totalmente irrelevante. Por outro lado, é típico de todo revanchismo perpetuar a memória dos erros históricos. Isso também faz parte do aparelhamento de todo fundamentalismo. Tudo o que foi dito até agora leva, em modo de conclusão, a considerar o aspecto mais problemático sobre o fundamentalismo e o nacionalismo hindu: a relação com a violência. Nem toda prática fundamentalista implica em uso da violência e na justificação em termos teológicos ou moral. Fato é que, em muitos casos concretos e, inegavelmente, o nacionalismo hindu está entre estes, os fundamentalismos religiosos conduzem à intolerância, à segregação, ao medo, à agressividade e, também, a ataques violentos contra os monumentos, edifícios de culto, e contra as pessoas, consideradas ‘inimigas’. A história recente da Índia é recheada por episódios mais ou menos graves (alguns gravíssimos) de violência, que remontam a uma matriz fundamentalista. Aqui parece ser o ponto nevrálgico: a violência, extrema ou sem proporção, é sempre justificada em termos de reação ou de defesa. A prática do associacionismo inspirada no Hindutva possui características autoritárias, paramilitares, de forte militância e, às vezes, até de quadrilhas. Para muitos comentaristas, bem como para os adversários políticos, houve a tentativa de se aproximar o nacionalismo hindu do fascismo ou do nazismo. No entanto, Koenraad Elst tem se empenhado em sua importante pesquisa em rejeitar fortemente qualquer ligação histórica entre Hindutva e o nazi-fascismo, mesmo se ele acaba por atribuir toda responsabilidade da violência intercomunitária na Índia aos muçulmanos (ELST, 2001). O RSS é, atualmente, a maior organização não política do mundo, embora essa afirmação seja, na realidade, algo a ser discutido. Concordo com Alberto Pellissero, quando escreve que o nacionalismo hindu tem mais a ver com a política do que com a religião (PELISSERO, 2003). Lê-se em inglês no website oficial da Sangh o seguinte: “Em palavras simples afirmo que o ideal da Sangh é levar a pátria ao topo de sua glória por intermédio da orga-

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nização de toda sociedade e da proteção do Hindu Dharma”5. É recorrente nos textos do Hindutva contemporâneo a ideia fixa pela organização, pelo enquadramento, pela disciplina e pelo caráter. M.S. Golwalkar, segundo presidente do RSS e artífice do espetacular crescimento das organizações da Sangh Parivar, afirmava: “o nosso objetivo não é desenvolver uma pequena organização ao interno da sociedade hindu. O nosso objetivo é organizar a inteira sociedade hindu”. É provável, como sustenta Christophe Jaffrelot (1999, 2014), autor de um dos mais profundos estudos sobre o fenômeno, que sem as dominações, antes moghul e depois britânica, o Hinduísmo não teria adquirido uma identidade ideológica militante. Os hindus não tinham uma verdadeira e própria ortodoxia, não eram organizados de maneira centralizada e hierárquica, não eram conscientes o bastante da existência do ‘outro’ para terem consciência de si mesmos. Foi, portanto, a epifania do ‘outro’, poderosa e antagônica, que criou a tensão que conduziu ao nascimento do nacionalismo/ fundamentalismo hindu. Neste contexto, pode-se compreender a elaboração de uma nova imagem de um hinduísmo autêntico, racional, puro, desprovido de idolatria e práticas aberrantes, que pode ser considerado como sendo a ‘Idade de ouro’, ou seja, a época védica. O RSS e a Sangh Parivar nascem e se desenvolvem como uma reação às ameaças à identidade hindu, ou às práticas e aos usos da vida religiosa e social, que vinham de dois sujeitos um tanto secularizados: a administração britânica do Raj e o Congresso de Nehru. Nesta perspectiva, compreende-se a criação da VHP, organização com uma identidade religiosa mais preponderante. Essa organização, ao esboçar uma definição vaga e genérica de ‘valores’ hindus, pretende superar as muitas diferenças internas do mundo hindu para reagrupar as fileiras dos devotos, atrair os secularizados, recuperar os dalit (os intocáveis) e as tribos e, eventualmente, reconverter os muçulmanos e cristãos. A estratégia da organização prevê a difusão de uma versão moderna e coerente do hinduísmo com o objetivo de dar à religiosidade dos indianos uma ‘espinha dorsal’, que lhe permita resistir aos ataques que sofrem por parte do Islã, do cristianismo e do secularismo. Neste sentido, a religião deve ser forte, porque os seus inimigos são percebidos como poderosos e potencialmente destrutivos. 5 Dharma é muito mais que religião. É a lei eterna, a realidade última das coisas e por isso mesmo a sabedoria e o conjunto dos deveres das pessoas.

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