História da crise como história da cidade

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17/09/2015 Boitempo

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História da crise como história da cidade 07.04.2012

Revista Sociologia Pedro Aguiar

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O  historiador  da  arte  Giulio  Carlo  Argan,  com  sua  coletânea  “História  da  Arte  como História  da  Cidade”,  inovou  a  análise  estética,  trazendo  para  seus  estudos  uma perspectiva  “urbanística”.  Tinha  conhecimento  de  causa:  foi  prefeito  de  Roma  entre 1976 e 1979 e, antes, trabalhara com restauração de arte e arquitetura histórica. Sua tese  central,  ao  considerar  a  cidade  como  o  local  das  principais  atividades  sociais, propunha uma indissociabilidade entre o espaço e o que nele se produz. Guardadas as devidas diferenças, é algo análogo o que o geógrafo David Harvey sugere em seu novo livro, “O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo”, lançado no Brasil esta semana pela editora Boitempo, com presença do autor em conferências no Rio e em São Paulo. Nele, ao buscar as raízes da atual crise financeira global, o autor esboça uma espécie de “história das crises como história da cidade”.

O enigma do capital 1/1

Harvey, marxista militante assim como Argan, tem uma obra dedicada à compreensão do  “espaço”  como  uma  categoria  central  no  processo  de  reprodução  do  capitalismo. Sua abordagem crítica é referência em estudos interdisciplinares de diversos campos –  ele  próprio  é  catedrático  de  antropologia,  não  da  geografia,  na  Universidade  da Cidade  de  Nova  York  (CUNY).  Mas,  com  paixão  por  sua  ciência,  frequentemente  se queixa em seus livros de como esta categoria é negligenciada em análises críticas em favor do “tempo” – já que muitas abordam os fenômenos do capital pelo viés histórico. Em “O Enigma do Capital”, o geógrafo inglês radicado nos EUA busca demonstrar não apenas  que  crises  são  inerentes  à  natureza  do  capitalismo,  mas  fundamentalmente que nascem de modos muito particulares como o capital organiza (ou produz) espaço para  satisfazer  suas  condições  de  reprodução.  A  ordem  dos  capítulos  não  é cronológica,  mas  didática.  Ele  começa  dissecando  aspectos  objetivos  da  crise  atual, bem embasados com números, fatos e gráficos, além de muitos verbos no imperativo e  tiradas  de  humor.  Em  seguida,  examina  as  várias  condições  de  reprodução  do capital,  explicando  ao  nível  leigo  conceitos  da  economia  política  como  “acumulação primitiva”,  “fluxo  de  capital”  e  “fetiche  da  mercadoria”.  E  desmonta  diversos argumentos  que  tentam  “isentar”  o  capital  –  desde  Malthus  e  os  “limites  do crescimento”  de  Donella  Meadows  até  o  discurso  neoliberal  da  globalização “progressista”  –  para  demonstrar  que  crises  são  da  natureza  espiral  e  dialética  do capitalismo.  “Crises  geograficamente  localizadas  têm  sido  endêmicas  na  história  do capitalismo”,  resume.  “A  fábrica  local  vai  à  falência  por  alguma  razão  e  quase  todos ficam  desempregados.  Tais  crises  localizadas  podem  desencadear  uma  espiral  fora de  controle  e  criar  crises  globais  da  ordem  geográfica  e  econômica?  Sim,  podem.  É exatamente  o  que  aconteceu  quando  uma  série  de  crises  imobiliárias  altamente localizadas  em  2006,  especialmente  na  Flórida  e  no  Sudoeste  dos  EUA,  tornou­se global de 2007 a 2009”. O  “enigma”  do  título  é  desvendado  mais  para  o  meio  do  livro,  quando  Harvey  se aventura  a  mapear  “A  geografia  disso  tudo”.  Ali,  recheado  de  exemplos  e  imagens vívidas,  o  autor  traz  à  tona  a  faceta  mais  humana  da  crise.  É  nesta  parte  que  fica muito clara a imbricada rede de investimentos cruzados que levou o estouro de uma bolha local nos EUA a afetar realidades longínquas em diferentes partes do mundo. “E  é  exatamente  por  meio  dessas  redes  que  agora  assistimos  aos  efeitos  do  crash financeiro  se  espalhando  em  quase  cada  canto  e  recanto  da  África  rural  ou  da  Índia camponesa. A desnutrição e a fome devastam o Haiti na medida em que as remessas dos EUA secam porque as trabalhadoras domésticas em Nova York e na Flórida estão perdendo o emprego”, ilustra o autor. Lembrando que a bolha imobiliária fora criada por artifícios financeiros – as subprimes

http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/news/view/1740

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17/09/2015

História da crise como história da cidade - Boitempo Editorial – para escoar capital, Harvey faz a ponte entre as crises sistêmicas e a forma como a construção  de  moradias  humanas  vem  sendo  historicamente  usada  tanto  para produzir quanto para absorver capital excedente. “As  pessoas  ocupam  espaços  e  têm  de  viver  na  terra  em  algum  lugar  e  de  alguma forma”,  escreve  Harvey.  “A  produção  do  ‘urbano’,  onde  a  maioria  da  população mundial em crescimento agora vive, tornou­se ao longo do tempo mais estreitamente ligada  à  acumulação  do  capital, até  o  ponto  em  que é difícil distinguir  uma da outra. Mesmo  nas  favelas  da  autoconstrução  de  moradias,  o  ferro  ondulado,  as  caixas  de embalagem e as lonas foram primeiro produzidos como mercadorias”. O  autor  enfatiza  dois  momentos  específicos,  em  lugares  emblemáticos:  as  reformas do  Barão  Haussmann  na  Paris  do  Segundo  Império  (tema  que  ele  já  esgotara  em “Paris, capital of modernity”, de 2003, sem tradução no Brasil), que salvaram a França – e boa parte da Europa – da crise de excedentes que deflagrara a agitação social de 1848, mas descambaram em outra crise que levou à Guerra Franco­Prussiana (1870­ 1871)  e  à  Comuna  de  Paris;  e  a  criação  do  modelo  de  suburbia  nos  EUA  do  pós­ guerra,  fortemente  dependente  do  petróleo.  Este  último,  o  geógrafo  atribui  a  Robert Moses,  empreiteiro  responsável  pela reconfiguração  de Nova York  entre as décadas de 1930 e 1960, adaptando a metrópole ao automóvel. Em ambos os casos, Harvey demonstra como as mudanças nas estruturas urbanas e nos modos de vida delas derivados foram promovidas principalmente para a alocação de capital excedente. Estas cidades e suas rotinas socioeconômicas funcionam muito bem até o esgotamento dos recursos necessários à sua sustentabilidade. É a mesma cilada, argumenta o autor, que levou à crise estourada em 2008. Em “O Enigma do Capital”, Harvey não propõe tese nova, mas segue desenvolvendo os  conceitos  de  “destruição  criativa”,  “acumulação  por  despossessão”  e  outros  que constituem  sua  obra  teórica­crítica.  Lá  pela  página  131,  retoma  seu  conceito  original de  “compressão  do  tempo­espaço”  (derivado  de  uma  expressão  de  Marx,  a “aniquilação do espaço pelo tempo”), proposto pela primeira vez em “A Condição Pós­ Moderna”.  É  com  esta  mesma  aniquilação  que  ele  explica  a  própria  formação  da cidade  moderna:  ao  precisar  juntar  no  mesmo  espaço  geográfico  constrito  as condições  necessárias  à  sua  reprodução  –  trabalho,  matéria­prima,  mercado  –  o capital  induz  à  urbanização  (afinal,  foi  nas  cidades  toscanas,  neerlandesas  e hanseáticas que nasceu a classe burguesa, dos mercadores e banqueiros, fundadores da modernidade  e  do capitalismo). Finalmente, há uma proposição deontológica que permeia o trabalho: Harvey está convicto de que o capitalismo, fundamentado no “uso do dinheiro para obter mais dinheiro”, é inevitavelmente amoral e, do ponto de vista de suas  consequências  nocivas,  “incorrigível”.  Como  bom  comunista,  defende  não  a reforma, mas a substituição do sistema. E, assim como outros expoentes da geografia crítica,  como  Edward  Soja  e  Neil  Smith  (orientando  de  Harvey)  e  proponentes  do “direito à cidade”, de Henri Lefebvre, ele entende que, se o capitalismo cria, destrói e modifica  cidades  a  seu  bel­prazer,  também  a  mudança  anticapitalista  deve  começar no bairro, na favela, na esquina.  *  Pedro  Aguiar  é  jornalista,  mestre  em  Comunicação  pela  UFRJ  e  participante  de grupos  de  pesquisa  sobre  economia  política  da  comunicação  e  geografias  da comunicação. Foi sub­editor do website Opera Mundi.

R. Pereira Leite, 373 | Sumarezinho | 05442­000  São Paulo | SP | Brasil Tel.: (55 11) 3875­7285/50  Fax: (55 11) 3872­6869  Política de Privacidade  Copyright 2013 Boitempo

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