História da Psicanálise

June 4, 2017 | Autor: M. Neto Silva | Categoria: Psychoanalysis, History Of Psychoanalysis
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História da Psicanálise Marcus Vinicius Silva1 Quando aceitei o convite para dar essa aula, logo me dei conta de que minha tarefa aqui não seria meramente a de um narrador de fatos que são facilmente acessíveis nos diversos livros de história da psicanálise já publicados. Mas também não é possível evitar fazer isso em alguma medida. Tomei então a decisão de dividir nosso percurso em duas partes. A primeira é uma reflexão breve sobre os desafios e problemas que enfrentamos ao tentar narrar a história da psicanálise (e tentaremos também apontar algumas soluções). A segunda é fornecer efetivamente uma narrativa que possa ser enquadrada nessa proposta, ou seja, produzir um relato sobre a história da psicanálise.

O problema de uma história da psicanálise Há mais de uma forma de abordar esse tema. Poderíamos ter como foco a cultura da Viena na virada do século, para pensar que influência ela teve sobre a produção freudiana. Poderíamos, alternativamente, pensar na história da medicina e como a rejeição da histeria pelos médicos abriu espaço para o surgimento da psicanálise. Poderíamos, ainda iniciar nosso estudo com a criação da psicanálise e acompanhar seus desenvolvimentos até os dias de hoje. Esse caráter múltiplo da história é sua maior riqueza, e também sua maior limitação. Não há forma absolutamente correta de construir uma narrativa histórica; não há uma versão definitiva. O que fica claro é que toda história é uma narrativa que tem, ela própria, uma história. Um exemplo, para clarear esse argumento. A primeira biografia de Freud já escrita foi publicada em 1923 (com uma tradução para o inglês em 1924) por Fritz Wittels. O autor, que esteve por um período breve em contato com Freud e depois se afastou, decidiu publicar um relato da vida de seu antigo mentor. Ele supunha que sua proximidade inicial e posterior afastamento permitiria que ele conseguisse ser suficientemente imparcial. Imediatamente após a publicação, porém, o próprio Freud escreveu ao autor, dizendo que não esperava e nem desejava a publicação de tal livro. 1

Graduado em Psicologia (Newton Paiva), especialista em Teoria Psicanalítica (UFMG), mestre em Estudos Psicanalíticos (UFMG), doutorando (UFMG). Autor de “Pré-história da pulsão freudiana” (2010) e “A construção da pulsão de morte freudiana: um estudo histórico da formação do conceito a partir de suas fontes” (2015).

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Mesmo assim, tece alguns elogios. Como complemento, anexa também uma lista de pontos em que Wittels forneceu informações equivocadas e pede a ele que as corrija em uma futura nova edição. Wittels tinha, portanto, acesso bastante restrito a dados e informações sobre a vida de Freud, tendo que confiar unicamente nos trabalhos científicos publicados e também em suas próprias experiências com Freud. Era virtualmente impossível para ele produzir um relato profundo e detalhado da vida de Freud, ainda mais se levarmos em conta que esta ainda não tinha terminado. A biografia de Freud escrita por Jones na década de 50 foi produzida num contexto muito particular. O autor, um dos poucos psicanalistas ainda vivos na época que fez parte do movimento quase desde seu início, teve que submeter-se em alguma medida a exigências da família de Freud, que, compreensivelmente, não queria ver a imagem dele manchada de algum modo. O próprio Jones, tendo também estado em contato direto com Freud por tanto tempo, não parecia capaz de emitir muitos comentários críticos a respeito de seu mentor. O resultado é uma biografia em sua maioria carregada de elogios e reverência, onde vemos com freqüência termos como “heróico”, “épico”, “hercúleo”, etc. Se avançarmos algumas décadas e lermos a também consagrada biografia de Freud escrita por Peter Gay, o cenário é bem diverso. O autor é um historiador, o que de imediato já o diferencia de Jones. Ele não conheceu Freud pessoalmente, e na década de 80, quando publica a primeira edição da biografia, já existia um enorme volume de material adicional sobre Freud (inclusive textos questionando a biografia escrita por Jones). Gay se aproxima do problema de um modo em geral mais objetivo. Com isso, seu livro é, em sua maioria, menos carregado de referências como as de Jones, que enaltecia sempre que possível as características magníficas de Freud. Isso não significa que seu texto é melhor que o de Jones. São autores que escrevem em períodos diferentes, sob pressões diferentes e com motivações internas diferentes. Essa combinação de fatores produz um relato que deve ser lido como uma versão da história, e não como a história. Tudo isso foi dito apenas para demonstrar que a história da psicanálise é bastante fragmentada e parcial. Se perguntar a um lacaniano, ele talvez coloque ênfase na psicanálise francesa, no retorno a Freud realizado por Lacan e nos desdobramentos disso. Um kleiniano possivelmente tentaria mostrar como Klein avança a partir da produção freudiana, dando continuidade à obra dele, ao mesmo tempo em que refina

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alguns conceitos. E assim também se daria se perguntássemos a um laplancheano, winnicottiano, ou qualquer outro psicanalista. Todos acabariam colocando ênfase no modo como sua escola toma a teoria freudiana e faz algo original com ela, ao mesmo tempo que negam as produções dos outros grupos (alguns de forma mais incisiva, outros menos). O que todos parecem concordar, porém, é que o ponto de origem é a obra de Freud. Estas diferentes versões construídas por grupos distintos podem ser pensadas a partir do que Mezan chama de uma dispersão tríplice: geográfica, doutrinária e institucional. Geográfica: ao ser transplantada (para usar um termo também de Mezan) para outros países, é inevitável que a psicanálise sofra o impacto da cultura do local, ao mesmo tempo também que produz um impacto nela. Ou seja, se narrarmos a história da psicanálise no Brasil, teremos de atentar para as particularidades do nosso contexto cultural, pois isso terá efeitos no tipo de psicanálise que é aqui produzida e praticada. Doutrinária: ao longo do tempo certos autores começaram a produzir teorias e conceitos que, embora ainda dentro do campo psicanalítico, os colocam um pouco distantes de outros autores. Ou seja, há vários desdobramentos da teoria de Freud que eventualmente deram origem a escolas que trabalham com conceitos e que tem visões sobre a prática muitas vezes inconciliáveis com outras escolas também psicanalíticas. Institucional: aqui está em questão o fato de que já não há uma única organização psicanalítica; há várias e elas se multiplicam a cada ano. Só em Belo Horizonte já devem estar na casa das dezenas. Cada instituição se filia essencialmente a uma maneira de pensar a teoria e a prática, e tem ainda procedimentos para regular o ensino da psicanálise. Apesar dessa constatação de uma clara multiplicidade no interior da Psicanálise há, por uma série de motivos, fortes resistências a se produzir uma história da teoria psicanalítica que reflita esse caráter de dispersão que Mezan descreve tão bem. Isso gera, portanto, versões parciais e distorcidas da história, que tem o efeito que já tínhamos apontado: afirmar a verdade de uma escola e negar a das outras. Por essa razão é que um curso como esse, que pretende apresentar uma variedade de autores sem colocá-los em qualquer tipo de classificação hierárquica, é tão importante. Mas voltando a nossa proposta. Já afirmamos que toda história é uma narrativa e já vimos que há diversos fatores operando na formação destas narrativas. Isso 3

contudo, não coloca a história totalmente no campo da ficção, da fantasia, apesar de aproximá-la disso. Essa forma de ver a história já aparece no próprio Freud, por exemplo quando ele comenta de passagem, no caso do Homem dos Ratos, que o historiador vê o passado à luz do presente ou, de forma ainda mais enfática, quando compara o historiador a um neurótico que preenche as lacunas de memórias com fantasias, projetando-as no passado. Com isso em mente, ao abordarmos a história da psicanálise, faremos bem em nos manter alertas a esse tipo de mecanismo. Para os fins dessa aula, tentaremos discutir principalmente o período inicial da produção freudiana. Reparem que mesmo nos mantendo apenas no campo da psicanálise freudiana, ainda temos o problema de que o desenvolvimento da teoria, da técnica e do movimento psicanalítico não é uniforme. Seria até mesmo possível traçar a história de cada um separadamente (apesar de estarem interligados). Faremos algo próximo disso, abordando a fundação da psicanálise (teoria e técnica) e em seguida a fundação do movimento psicanalítico (organizações e instituições).

A fundação da teoria e técnica psicanalíticas Nosso objetivo de apresentar a história da psicanálise começando pelo momento em que foi criada já nos coloca diante de um problema. Autores diferentes vão apresentar datas diferentes e argumentos diferentes. Andersson (2000), por exemplo, estabelece como momento de fundação da psicanálise o ano de 1896. Para isso, se baseia no fato de que, segundo ele, Freud já havia nessa data determinado o papel das experiências infantis (de natureza sexual) na etiologia das neuroses e também já se valia da noção de defesa. Para além disso, 1896 é o ano da primeira ocorrência do termo “psicanálise” em uma publicação de Freud. Outros vão argumentar que a data de referência deveria ser 1900, ano da publicação de “A Interpretação dos Sonhos”. Apesar de essa data ser aceita por muitos, ela se baseia num pequeno equívoco: o livro foi publicado em 1899, apesar de trazer impresso na folha de rosto a data de 1900. Há ainda aqueles que localizam o nascimento da psicanálise em 1895, com a publicação de “Estudos sobre a Histeria”. Suponho que nesse caso o argumento esteja baseado no fato de que é aqui que Freud demonstra que se afastava dos métodos hipnóticos e inaugurava uma nova forma de escutar os pacientes. Mas em termos 4

conceituais, talvez ainda não seja um trabalho em que a psicanálise estivesse plenamente desenvolvida. O que acontece é que essa data vai depender do critério que adotarmos. O próprio Freud afirmou, em “A História do Movimento Psicanalítico”: “não tem grande importância que a história da psicanálise seja considerada como tendo início com o método catártico ou com a modificação que nele introduzi”. (Freud, 1914/2006, p. 19) Se tomarmos esse trecho, poderíamos iniciar em 1895, ou talvez antes. Curiosamente, no mesmo texto, ele aponta ainda que “a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose”. (Freud, 1914/2006, p. 26) Pelo visto, nem mesmo Freud sabe exatamente onde iniciar. Vamos optar então por algo que tente atender aos diversos critérios. Vamos considerar que a psicanálise não nasceu em uma data específica, mas que foi sendo criada durante um período, e essa criação se baseou em avanços tanto na técnica quanto na teoria. Não vamos recuar tanto no tempo e narrar a infância e adolescência de Freud, essas informações podem ser facilmente encontradas em suas diversas biografias e, apesar de interessantes, não contribuiria muito com nosso argumento. Nosso relato se inicia com o contato de Freud com Breuer. Freud o conheceu ainda em 1876-7. Entre 1880 e 1882, Breuer realizou o tratamento de Anna O., se valendo de seu método catártico. Segundo diversas fontes, ele relatou esse caso a Freud logo após o término do tratamento, causando grande impressão. Isso, porém, não conduziu Freud diretamente ao tratamento das neuroses. Apenas alguns anos mais tarde, quando ele abandona o laboratório de fisiologia onde trabalhava e decide se dedicar ao trabalho clínico, é que vai retomar esse método e também modificá-lo. Mas antes disso, ele viaja em 1885 a Paris, para estudar com Charcot. Nesse lugar, aprende o que havia de mais avançado em termos de tratamento da histeria e, quando retorna a Viena no ano seguinte, passa a se dedicar de fato ao tratamento de pacientes neuróticos. Nessa altura, porém, ainda fazia uso da hipnose. Freud chega a usar a hipnose para realizar curas através de uma espécie de contra-sugestão, mas ele também recorria a diversos métodos vigentes na época, como mudanças na dieta, envio de pacientes a sanatórios onde podiam relaxar, etc. Eventualmente (não é possível precisar uma data, mas é em algum momento do início da década de 1890) passa a usar a hipnose conforme o modelo de Breuer. Hipnotizava

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as pacientes e levava-as a recordar dos eventos traumáticos para com isso descarregar o afeto que se encontrava ligado à experiência, produzindo a cura. Temos aqui uma explicação da histeria como resultando de um trauma, sendo que o afeto (ou a excitação) se encontrava estrangulado, preso a esse momento traumático. Através do uso da hipnose era possível fazer com que essa carga de afeto pudesse ser redirecionada e dispersa através da fala. Há também aqui um pressuposto de que o sistema nervoso procura eliminar as excitações ou mantê-las constantes, e que todo acréscimo não descarregado tem efeito patológico. Nesse período, Freud ainda está trabalhando em cooperação com Breuer (estamos aqui às vésperas da publicação de “Estudos sobre a Histeria”), mas já começaram a se distanciar. Parte disso deve ser atribuída a divergências teóricas, já que Freud vinha desenvolvendo a idéia de que as neuroses eram causadas por uma defesa contra uma representação intolerável ou incompatível e que essa idéia era geralmente de natureza sexual. Isso pode ser visto, por exemplo, em “As Neuropsicoses de Defesa” (1894). Também é efeito da noção de defesa a valorização do inconsciente, que viria a ser um ponto central na psicanálise. Freud vai então gradualmente abandonando a hipnose, mesmo da forma como Breuer a utilizava, por reconhecer que isso ocultava o fenômeno que veio a ser conhecido como resistência. Através disso é levado a considerar que a mesma defesa que eliminou a representação intolerável do acesso à consciência, agora atuava para mantê-la afastada. Aqui Freud recorre a um método intermediário entre a hipnose e a associação livre propriamente dita, a chamada técnica da pressão. Ele pedia ao paciente que se deitasse e relaxasse, fechasse os olhos e dissesse o que viesse a sua mente no momento com relação ao sintoma em questão. Caso ele não chegasse a nenhuma lembrança ou não lhe ocorresse nada, Freud pressionava sua testa e afirmava que quando fizesse isso, algo iria necessariamente surgir na mente do paciente. Por vezes era obrigado a repetir esse procedimento algumas vezes, até que o paciente revelava o conteúdo, geralmente dizendo que a idéia já havia surgido da primeira vez, embora parecesse tão desconexa que ele não julgava que era o que procurava. Esse método já não se vale da hipnose, mas ainda faz uso da sugestão, e o passo seguinte é o abandono também dele. Podemos ver essa transição de modo exemplar exatamente em “Estudos sobre a Histeria” (1895). Com relação à teoria, vemos Freud dando ênfase cada vez maior à sexualidade. Em boa parte dos casos relatados na época, era possível localizar uma 6

experiência de sedução ocorrida na infância, que figurava como ponto principal na causa da neurose. Também através de uma mudança gradual, Freud é levado a reconhecer que não era possível sustentar que toda neurose era fruto de uma experiência traumática desse tipo, o que culmina na famosa carta 69, em que ele comunica a Fliess que já não é capaz de acreditar na teoria da sedução. O efeito disso é que ele passa a colocar mais peso nas fantasias, e, portanto, o campo psíquico ganha mais espaço. Paralelamente a isso, vemos Freud também tentando produzir algum tipo de descrição do aparelho psíquico. No “Projeto de uma Psicologia Científica” (1895) ele faz isso recorrendo a grupos de neurônios que teriam funções diferentes, embora todos estejam submetidos a uma exigência de descarga das quantidades de excitação. Pouco depois, na já famosa carta 52, apresenta uma versão que consiste em marcações que são traduzidas de um registro para outro, essencialmente um sistema de memória. Isso culmina de certa forma no modelo que ele apresenta no capítulo VII de “A Interpretação dos Sonhos”, em que a excitação flui do sistema de percepção em direção à extremidade motora, passando pelo sistema inconsciente e pré-consciente. Parte desses avanços que relatamos brevemente tem lugar não só na clínica de Freud, mas no que se convencionou chamar de sua auto-análise. Em algum momento da década de 1890, Freud começou a se interessar pelos sonhos e lapsos e tentava empreender uma análise de seus próprios sonhos através de sua técnica. Assim, ele vai aos poucos se aproximando de temas que futuramente viriam a desempenhar papel importante. Através desse procedimento é que vemos surgir formulações como “os sonhos são a realização de um desejo” ou as primeiras referências a Édipo (não ainda tomado como um complexo). Assim, uma combinação do trabalho clínico de Freud com sua auto-análise (que curiosamente também coincide com a morte de seu pai) resulta num reordenamento da teoria, culminando em “A Interpretação dos Sonhos”. Reparem que nesse período de 1890 a 1900, já há muito do que viria a ser considerado central na teoria psicanalítica, embora boa parte dos conceitos ainda se encontrasse em um estado embrionário. Temos, por exemplo, uma espécie de teoria pulsional (princípio de constância, descargas e mobilidade das cargas de afeto, etc.), uma espécie de descrição dos processos dinâmicos (noção de defesa, resistência, etc.) e uma espécie de tópica (carta 52, o projeto e o esquema do aparelho descrito em “A Interpretação dos Sonhos”). 7

Infelizmente não é simples ordenar estas diferentes contribuições em um relato linear, de modo que nossa apresentação teve de ser bastante resumida.

Alguns comentários sobre mitos fundadores na história da psicanálise Tomando esse relato, vamos destacar inicialmente dois pontos para discutir em detalhes: a participação de Breuer na criação da Psicanálise e a auto-análise de Freud. Com relação ao primeiro ponto, as versões divergem bastante. O próprio Freud, ao explicar a criação da psicanálise, ofereceu versões diferentes e, em certa medida, contraditórias. Em “Cinco Lições de Psicanálise” (1909), afirma: “se algum mérito existe em ter dado vida à psicanálise, a mim não cabe, pois não participei de suas origens”. (Freud, 1909, p.27) Se o acompanharmos nesse raciocínio, teremos de compreender a psicanálise como um desdobramento direto do método catártico e Breuer como seu fundador. Já em “A História do Movimento Psicanalítico” (1914), afirma que “a psicanálise é criação minha” e “ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise”. (Freud, 1914, p.18) Segundo Freud, o término do tratamento de Anna O. por Breuer foi na verdade uma interrupção, ou quase uma fuga. Ele afirma que após livrar a paciente de boa parte de seus sintomas, ele foi confrontado com a motivação sexual da histeria, ou seja, que ele não foi capaz de compreender a “natureza universal” do fenômeno da transferência e abandonou qualquer esforço posterior de investigação das neuroses. Jones (1953/1989) afirma que “não tem sido fácil estimar a importância de Breuer para Freud e seu trabalho”. (Jones, 1953/1989, p.229) Mesmo assim, logo em seguida avança num relato um tanto tendencioso ao apontar que nas ocasiões em que Freud se referiu a Breuer como fundador da psicanálise “estava por alguma razão transferindo, modestamente, esse título de si próprio para ele”. (Jones, 1953/1989, p.229) Prossegue indicando que “os fundamentos da psicanálise – tanto o método quanto as descobertas – pertencem inteiramente a Freud e foram estabelecidos numa época em que os dois já se tinham separado definitivamente”. (Jones, 1953/1989, pp.229-30) Minimizando a participação de Breuer, Jones ainda alega que as contribuições dele eram comuns a ambos e que ele “teve considerável importância para Freud em termos pessoais”, mas “suas contribuições intelectuais foram de menor importância”. (Jones, 1953/1989, p.230) 8

Como sabemos por declarações do próprio Freud, Breuer foi o primeiro a tratar uma paciente pelo método catártico (que ele mesmo desenvolveu). O tratamento dessa paciente, conhecida como Anna O., ocorreu em 1880, muito tempo antes de qualquer investida freudiana no tratamento de neuroses. Independente disso, Jones decide fazer eco a afirmações de Freud e declara que o tratamento foi incompleto e a paciente permaneceu doente, já que Breuer abandonou seus esforços terapêuticos ao perceber a natureza sexual da ligação da paciente a ele. Ele vai ainda mais longe ao dizer que no encontro final entre Breuer e Anna O., a paciente teve um ataque em que encenou uma espécie de parto, fruto de uma gravidez histérica e que seu médico a hipnotizou, a acalmou e fugiu para uma segunda lua de mel com sua esposa. Não satisfeito, afirma ainda que como resultado dessa viagem nasceu uma filha, que viria a se suicidar anos depois. Se compararmos a versão de Jones a de Kramer (2006) ou Breger (2009), teremos a imagem oposta de toda a questão. Estes autores, ferozes em suas críticas, concluem que a motivação que guiou Freud por toda a vida foi uma busca incansável pelo sucesso. Freud teria, de acordo com eles, tomado o método catártico de Breuer, se apoiado em sua reputação como médico respeitado em Viena, para em seguida descartá-lo e propagar boatos que denegriam a imagem de seu mentor ao mesmo tempo que o colocava como um herói. Roudinesco (1989) aponta que “a história de Anna O. tornou-se lendária e funciona hoje como um dos mitos fundadores da história da psicanálise”. (Roudinesco, 1989, p.25) Ela prossegue comparando a versão de Jones com a de outros autores e parece concluir que há pouca base para as afirmações deste. Mesmo assim, afirma: “nessa história, não podemos acusar Jones de falsificação. Ele inventou uma ficção, mas essa invenção testemunha uma verdade histórica à qual não podemos opor a argumentação simplista de uma ‘realidade’ dos fatos”. (Roudinesco, 1989, p.25) Curiosamente, o que ela considera uma ficção em Jones encontra apoio exatamente nas versões divulgadas por Freud, principalmente em “A história do movimento psicanalítico”. O que Jones parece ter feito é na verdade enfatizar certos pontos e ignorar alguns outros, e essa seleção acaba gerando uma versão dos fatos com esse caráter de ficção. Em meio a relatos tão contraditórios, por sorte encontramos trabalhos como o de Hirschmüller (1978). Em sua biografia de Breuer, o autor dedica um espaço 9

considerável ao contato entre ele e Freud, revelando com isso algumas inconsistências na versão de Jones. Analisando relatórios de pacientes, cartas de Breuer a outros médicos e registros de internação de alguns sanatórios da época, Hirschmüller tenta demonstrar que “o relato de Freud-Jones do término do tratamento deve ser considerado um mito”. (Hirschmüller, 1978, p.131) Após encerrar o tratamento de Anna O. em 1882, Breuer a encaminhou para o sanatório de Bellevue em Kreuzlingen. Ela recebeu alta no mesmo ano com melhora em sua condição. Nos anos subseqüentes voltou a ser internada em outras ocasiões, situação que se prolongou até 1887. Outro ponto levantado por Hirschmüller que ajuda a questionar a versão de Freud e Jones é o fato de ser possível comprovar que Breuer tratou de outros neuróticos após encerrar o tratamento de Anna O. Isso coloca em dúvida as afirmações de que ele teria ficado tão abalado com os elementos sexuais do caso que abandonou em definitivo a clínica das neuroses. A versão desse autor, portanto, considera que a relutância de Breuer em publicar o caso não se devia a rejeição da etiologia sexual ou evitação de reviver o término traumático desse tratamento. Ele propõe que havia, na verdade, boas razões para isso: Breuer esperava poder tratar mais pacientes antes de extrair suas conclusões e também não concordava inteiramente com o modelo teórico de Freud. Avancemos agora ao segundo ponto, a auto-análise de Freud. Mais uma vez nossa fonte principal é Jones, que afirma que “no verão de 1897 (...) Freud empreendeu seu feito mais heróico – uma psicanálise de seu próprio inconsciente”. (Jones, 1953/1989, p.322) Novamente, ele é bastante enfático e não se cansa de destacar o caráter inovador desse acontecimento. De acordo com ele, “Freud não teve auxílio, ninguém que o ajudasse um mínimo que fosse no empreendimento”. (Jones, 1953/1989, p.322) Que nesse período a correspondência de Freud com Fliess tenha se tornado ainda mais volumosa parece importar pouco para ele. Num relato bastante resumido, Jones tenta demonstrar que esse período foi marcado por progressos e interrupções, mas que após esse “trabalho hercúleo”, uma alteração significativa se produziu na personalidade de Freud, que se viu “livre, daí pra frente, para prosseguir seu trabalho com imperturbável serenidade”. (Jones, 1953/1989, pp.322-3) Curiosamente, ele encerra a discussão da auto-análise com a seguinte afirmação: “Freud me disse que jamais parou de analisar-se, dedicando a última meia hora do dia a esse propósito”. (Jones, 1953/1989, p.330) 10

Em seu livro “Freud – uma vida para nosso tempo”, Gay (2012) é mais crítico ao afirmar que “auto-análise podia parecer uma contradição nos termos”. (Gay, 2012, p.112) De toda forma, segundo ele, “a aventura de Freud se converteu na menina dos olhos da mitologia psicanalítica”. (Gay, 2012, p.112) Ele analisa de forma mais cuidadosa esse período, dando bastante atenção à correspondência entre Freud e Fliess, e parece supor que na verdade Fliess ocupava um lugar similar ao de um analista para Freud, que relatava incansavelmente seus progressos e dificuldades ao amigo, fornecia análises de seus sonhos e comentários sobre seus estados variáveis de humor. Se confiarmos apenas nos relatos do próprio Freud, também não teremos uma idéia clara da questão. Se tomarmos, por exemplo, sua carta a Fliess de 14 de novembro de 1897, ele afirma: “só consigo analisar-me com o auxílio de conhecimento adquirido objetivamente (como um observador externo)”. E completa: “a verdadeira auto-análise é impossível; não fosse assim, não haveria nenhuma doença [neurótica]”. (Freud, 1897/1996, p.322) Porém, ao recordar esse período em “A História do Movimento Psicanalítico”, relata ter se dado conta “da necessidade de levar a efeito uma auto-análise”, que realizou com uma série de seus próprios sonhos. Ele conclui que “essa espécie de análise talvez seja o suficiente para uma pessoa que sonhe com freqüência e não seja muito anormal”. (Freud, 1914/2006, p.30) Desse modo, não fica totalmente clara a natureza e a profundidade de uma análise desse tipo, e nem se ela foi feita sem qualquer auxílio ou com o apoio de outras pessoas. Sabemos apenas que ela ajudou Freud a produzir sua teoria e técnica e que boa parte desse trabalho resultou na publicação de “A Interpretação dos Sonhos”, onde muitos dos sonhos analisados são do próprio Freud.

A fundação do movimento psicanalítico Até aqui discutimos alguns aspectos da teoria e da técnica psicanalítica, mas não fizemos qualquer menção às organizações psicanalíticas. Isso se deve em parte ao fato de que, de início, não havia nenhuma instituição e Freud era o único a realmente exercer a psicanálise. De acordo com o próprio Freud, nos anos iniciais de seu trabalho, ele esteve completamente isolado, referindo ao período inicial de seu trabalho como “splendid isolation”. (Freud, 1914/2006, p.31) Segundo ele, desde seu retorno de Paris, em 11

1886, quando começou a comunicar o que havia aprendido com Charcot, não foi bem recebido. Alguns médicos que o ouviram discorrer sobre histeria masculina diante da Sociedade de Medicina taxaram sua apresentação de inacreditável e Meynert o desafiou a encontrar casos em Viena que correspondessem ao relato. Quando finalmente o fez, pouco tempo depois, não se sentiu satisfeito com a recepção. Segundo Freud: “Dessa vez fui aplaudido, mas não adquiriram mais interesse por mim. A impressão de que as altas autoridades haviam rejeitado minhas inovações permaneceu inabalável”. (Freud, 1925/1996, p.23) E completou: “Afasteime da vida acadêmica e deixei de freqüentar as sociedades eruditas”. (Freud, 1925/1996, p.23) Num tom semelhante, declara que nos anos seguintes à publicação dos “Estudos sobre a Histeria” (1895), chegou a ler artigos sobre o tema em várias sociedades médicas, mas se deparou apenas “com incredulidade e contradição”. (Freud, 1925/1996, p.32) Como Freud afirma, em “A História do Movimento Psicanalítico”: Considerava minhas descobertas contribuições normais à ciência e esperava que fossem recebidas com esse mesmo espírito. Mas o silêncio provocado pelas minhas comunicações, o vazio que se formou em torno de mim, as insinuações que me foram dirigidas, pouco a pouco me fizeram compreender que as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses não podem contar com o mesmo tipo de tratamento dado ao comum das comunicações. (Freud, 1914/2006, p.31)

E nesse mesmo rumo afirma, repetidas vezes, que ninguém dava atenção a suas obras ou quando davam, “era para serem rechaçadas com expressões desdenhosas ou de superioridade compassiva”. (Freud, 1914/2006, p.32) Exemplos desta mesma espécie brotam em toda a correspondência com Fliess, em quantidade tão grande que seria trabalhoso demais enumerá-los. Jones em grande medida reproduz a versão freudiana, mesmo fornecendo alguns indícios de que a recepção de Freud não foi assim tão negativa. Ele também apresenta objeções às afirmações de Freud sobre ter se afastado da vida acadêmica, já que há registros da participação de Freud em diversas sociedades médicas até, no mínimo, 1904; além de suas conferências na universidade, que prosseguiram até 1917. (Jones, 1953/1989, p.239) Outra fonte muito rica e que coloca em dúvida a impressão de Freud sobre a recepção de seus trabalhos nesse período inicial é o livro de Decker, “Freud in Germany” (1977). Embora a autora se concentre na entrada das idéias de Freud na

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Alemanha, ela levanta uma quantidade considerável de dados (resenhas, artigos, etc) que demonstram que, por mais que tenha parecido assim a ele, Freud não foi exatamente ignorado. Certamente não ocorreu uma aceitação unânime e elogiosa, mas boa parte da literatura apresentada por Decker nos mostra que os médicos estavam debatendo as hipóteses de Freud de modo similar ao que fariam com as de outras pessoas. Mezan argumenta, de forma similar, que “o isolamento de Freud não é tão completo quanto se poderia imaginar à leitura de seus escritos autobiográficos”. (Mezan, 2006, p.127) E como evidência disso, lembra que “o simples fato de poder publicar seus artigos (...) mostra que seu direito à palavra não foi cassado”. (Mezan, 2006, p.127) Dada essa diferença tão gritante entre os registros e documentos da época e a impressão pessoal de Freud sobre seu isolamento, ficamos inclinados a supor que talvez ele tivesse, mesmo que não intencionalmente, fornecido um relato um bocado distorcido dos fatos. Curiosamente, é possível ler, numa carta que enviou a Fliess em 21 de maio de 1894: “há algo de curioso na incongruência entre o apreço que se dá ao próprio trabalho intelectual e o valor que os outros lhe atribuem”. (Masson, 1986, p.74) Há ainda outros elementos para colocar em dúvida o isolamento de Freud. Há registros de que ao menos uma de suas pacientes, Emma Eckstein (que ficou imortalizada no sonho da injeção de Irma) havia resolvido aplicar o método psicanalítico por conta própria a outras pessoas e chegou mesmo a publicar um texto de cunho psicanalítico. Também há indícios de que Freud já estava em contato com médicos interessados em seu método de tratamento. Por exemplo, numa carta a Sadger datada de 1902, faz referência à lealdade dele e o orienta a ter alguma cautela na tarefa de propagar a psicanálise. Apesar disso, mesmo se considerarmos estes casos isolados, não havia, é verdade, nenhuma organização psicanalítica formal e nem um local de treinamento de psicanalistas. A situação começou a se alterar em 1902, quando, a partir da sugestão de Stekel (também um ex-paciente) um grupo de médicos interessados em psicanálise passa a se reunir às quartas feiras na casa de Freud. É esse o grupo que veio a ficar conhecido como Sociedade Psicológica das Quartas-feiras, e que era o embrião do movimento psicanalítico posterior.

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Esse pequeno grupo era composto de Freud e mais quatro médicos, entre eles também Alfred Adler. Os outros eram nomes de menor destaque, como Max Kahane e Rudolf Reitler, além do já referido Stekel. Nos anos que se seguiram, o número de membros cresceu lentamente, e grande parte dos novos membros chegavam após assistir as conferências de Freud na Universidade de Viena. (Ele havia sido indicado em 1897 para o cargo de Professor Extraordinarius, mas só foi nomeado em 1902) Em 1903 Paul Federn se junta ao grupo, seguido em 1905 por Eduard Hitschmann. Curiosamente, após a publicação dos “Três Ensaios...” o grupo começa a crescer de forma mais acelerada e ao final de 1906 já contava com 22 membros. Nesse mesmo ano, Otto Rank foi nomeado secretário e passou a manter registros dos encontros, que podem ser lidos em sua versão publicada, “Minutes of the Vienna Psychoanalytic Society”, em quatro volumes. Podemos notar que esse grupo, inicialmente formado apenas por médicos, passa a contar com escritores, filósofos, músicos, e intelectuais em geral, o que levava os debates a temas muito mais amplos do que o tratamento de neuroses, e também a uma maior diversidade de opiniões. Em 1907 o grupo passa a ser chamado oficialmente Sociedade Psicanalítica de Viena. Curiosamente, a maior parte dos membros não praticava psicanálise clinicamente. Entretanto, nessa data, Viena não era o único centro para estudo da psicanálise. No final de 1900, Bleuler era o diretor do hospital psiquiátrico Burghölzli em Zurique e havia acabado de contratar Carl Jung como médico assistente. Foi nessa época que Jung começou a ter contato com a obra de Freud, tendo lido “A Interpretação dos Sonhos” e “Estudos sobre a Histeria” a pedido de seu superior. Nos anos que se seguiram, Bleuler encarregou Jung e Riklin (também médico assistente) de estudar testes de associação de palavras. Eles realizaram uma pesquisa detalhada, que teve seu resultado publicado em 1906, em que argumentavam que era possível comprovar cientificamente as hipóteses de Freud. O estudo consistia em apresentar a um sujeito uma palavra estímulo, orientando-o a comunicar o que lhe ocorresse. Eles avaliaram diversos fatores, como tempo de resposta, respostas que se aproximavam da palavra estímulo não devido ao tema, mas à sonoridade, reações ocorridas durante o teste (eles mediam alguns fatores fisiológicos), etc.

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Este tipo de estudo, realizado por um grupo reconhecido de um grande centro psiquiátrico, contribuiu muito para chamar a atenção da comunidade científica às idéias de Freud, o que resultou também em um aumento no número de pessoas interessadas em estudar psicanálise. Foi através do grupo de Zurique que vários médicos entraram em contato com a psicanálise, alguns dos quais viriam a desempenhar papéis importantes na história do movimento. Só para citar alguns nomes, Karl Abraham trabalhou no hospital entre 1904 e 1907; Sabina Spielrein esteve internada entre 1904 e 1905, e em seguida ingressou na universidade de medicina onde concluiu o curso com um estudo psicanalítico da esquizofrenia; Sándor Ferenczi estudou o teste de associação no local em 1907; Ernest Jones também passou pelo local; a lista é bastante grande. Em 1907, portanto, existiam dois grandes centros psicanalíticos: Viena e Zurique. O primeiro era um grupo heterogêneo que usava a psicanálise para tratar neuroses, interpretar obras de arte, pensar questões culturais, etc. O segundo aspirava ser um lugar de ciência, no interior de um hospital psiquiátrico, comprometido com a compreensão e tratamento das doenças mentais. No ano seguinte foi realizado o primeiro congresso internacional de psicanálise e é fundado o primeiro periódico psicanalítico, com Jung como editor. Uma prova do crescente interesse pela psicanálise veio em 1909 quando Freud foi convidado para uma série de conferências nos Estados Unidos, junto com Jung. Viajaram acompanhados também por Ferenczi. Até aqui existiam apenas associações locais em Viena e Zurique, apesar de um crescente número de praticantes em outras localidades. Em 1910, durante o segundo congresso internacional de psicanálise, foi fundada a Associação Internacional de Psicanálise, com Jung como presidente. Também foi fundada a Sociedade de Berlin e um novo periódico psicanalítico, sob direção de Adler e Stekel. O desenvolvimento do movimento, entretanto, não era pacífico. Seus primeiros discípulos, os vienenses, se sentiam colocados de lado com a nomeação de Jung para presidente da IPA. As tensões aumentaram e não foram superadas, mesmo com a nomeação de Adler para a presidência da Sociedade Psicanalítica de Viena. De fato, como o próprio Freud relata em “A História do Movimento Psicanalítico”, seu plano era de fato transferir o centro do movimento de Viena para Zurique e fazer com que a psicanálise deixasse de ser vinculada exclusivamente a seu

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nome. Como os anos seguintes comprovaram, essa foi uma escolha que teve efeitos sérios para o movimento. O que ocorreu nos anos seguintes foi, ao mesmo tempo, uma ampliação do movimento (com a fundação de ainda outras sociedades locais filiadas à IPA) e uma de suas mais sérias crises até então. Primeiro foi Adler a se separar da psicanálise. Já há algum tempo, suas teorias vinham tomando uma forma e empregando conceitos e pressupostos que as colocavam um pouco distantes das de Freud. Adler, entretanto, parecia convencido de estar ampliando ou aperfeiçoando a teoria psicanalítica. As tensões atingiram um estado tal que em 1911 a Sociedade Psicanalítica de Viena decidiu discutir em detalhes as proposições de Adler, o que foi feito nos encontros dos meses seguintes. Ao final desse debate, foi concluído que seus pensamentos tinham se afastado de tal forma da psicanálise que não seria adequado que recebessem esse nome. Ele foi, dessa forma, retirado da presidência da sociedade e eventualmente renunciou a participação nela. O mais grave efeito dessa dissidência foi o de vários membros, solidários a Adler, terem decidido também abandonar o grupo. O grupo de Adler passou a se referir a si mesmos como “Sociedade de Psicanálise Livre”, mas nos anos seguintes ele rompeu totalmente com a psicanálise e passou a chamar sua escola de “Psicologia Individual”. A outra dissidência séria foi a de Jung. Ele também já vinha gradualmente se afastando de certas noções que Freud considerava centrais para o pensamento psicanalítico, em particular o papel central que a sexualidade tinha na teoria. Freud discute esse afastamento, que refere pelo nome menos elogioso de “deserção” em detalhes em “A História do Movimento Psicanalítico” e atribui esse fato essencialmente à negação de Jung da importância da sexualidade e as alterações que ele introduz no conceito de libido. O caso pode ser um pouco mais complicado, especialmente se considerarmos que já havia alguns indícios dessa forma de pensar nos primeiros trabalhos de Jung, datados de 1906 (Psicologia da Demência Precoce). Certos autores atribuem um papel a Sabina Spielrein na separação de Jung e Freud. Como se sabe, Spielrein teve um envolvimento com Jung, que havia sido primeiramente seu analista, depois colega e afinal amante. Não é possível comprovar o quanto isso de fato foi decisivo na ruptura, mas sabemos que mesmo após a separação de Jung, Freud recebeu Spielrein em Viena na sociedade psicanalítica e até

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mesmo se prontificou a analisá-la. Esse projeto não veio a ser realizado, já que a russa acabou efetivamente se casando e mudando, deixando Viena definitivamente. Com todas estas turbulências no interior do movimento, e com o choque de “deserções” de duas de suas figuras principais, ocorreu algo que não é tão conhecido de boa parte dos psicanalistas, mas que já foi revelado há algum tempo. Por sugestão de Ernest Jones reuniu-se um grupo de psicanalistas em torno de Freud, no que veio a ser conhecido como o Comitê Secreto. Os membros iniciais eram Jones, Ferenczi, Rank, Abraham e Sachs, além de Freud, obviamente. A tarefa desse comitê era conduzir a psicanálise através das linhas freudianas, defendendo-a dos desvios e ataques, ao mesmo tempo em que evitavam que Freud precisasse entrar em cena em qualquer conflito. O comitê se comunicava por cartas circulares e era desconhecido de todos que não faziam parte dele, operando nos bastidores do movimento. Ele foi fundado em 1912-3 e sua configuração se alterou ao longo do tempo, mas mesmo essa sociedade secreta não esteve livre de conflitos e dissensões. De toda forma, encerraremos nosso relato nesse ponto, já que nosso objetivo era apenas relatar a fundação do movimento e não seguir todos os seus desdobramentos. Há apenas um ponto a destacar ainda, antes de concluirmos. Mesmo com a formação das diversas sociedades de psicanálise, não havia muitas formas de regulamentar a sua transmissão. Isso também ocorreu de forma processual. Por exemplo, apenas com a criação, na década de 20, de clínicas gratuitas de psicanálise em Berlin e Viena (posteriormente também em Londres e Budapeste) é que se formalizou um programa de estudos de psicanálise num molde similar a de um curso de medicina, com aulas, conferências e acesso ao atendimento de pacientes pelos candidatos em treinamento. Um outro ponto que hoje é tido quase como unanimidade, o de um analista ter de se submeter à análise, também tem uma longa história, sendo efetivamente implementado como regra em 1925, após longos debates e discussões. Isso se deveu ao fato particularmente curioso de que quase nenhum analista da primeira geração havia sido analisado formalmente, o que colocaria em questão a capacidade deles de analisar os colegas mais jovens. De toda forma, acho que devemos nos interromper nesse ponto por questões puramente práticas. Incluí uma bibliografia que contém textos que podem esclarecer os diversos pontos que apenas tocamos aqui de passagem, e espero que mesmo com

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todos os saltos que realizamos no nosso relato, algo tenha sido produzido em termos de compreensão da nossa história.

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