História das artes marciais chinesas - Introdução do livro

September 26, 2017 | Autor: Fabrício Monteiro | Categoria: Martial Arts, Kung Fu, Artes Marciais, Wushu, Kuoshu
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FABRÍCIO PINTO MONTEIRO

História das Artes Marciais Chinesas: tradição, memórias e modernidade

Assis Editora 2014

Para adquirir o livro: http://www.assiseditora.com.br/loja

Sumário

Nota sobre a escrita alfabética das palavras chinesas Introdução Capítulo I Questões iniciais: nomes, ética marcial, mito e tradição Capítulo II Panorama histórico: a construção do “moderno” e do “tradicional” Capítulo III Riqueza social e cultural: o exemplo de Zhong Wudao de Lin Zhong Yuan Bibliografia Entrevista com Lin Zhong Yuan

Introdução Este livro possui como objetivo servir a todo praticante ou interessado nas artes marciais chinesas como um suporte para a reflexão sobre sua história e ética. A iniciativa de preparar e publicar um trabalho como esse é a constatação que mesmo com o grande número de praticantes e simpatizantes de artes marciais no país é surpreendente a falta de obras de pesquisa mais cuidadosas sobre o tema. Sem dúvida encontra-se muita informação disponível aos interessados, em especial na rede mundial de computadores, mas em sua maioria são reproduções mútuas de histórias, afirmações e conceitos inseguros, com características do que hoje chamaríamos de “memes de internet”. Informações de origem incerta e propagação massiva, sujeitas a modificações despropositadas, mas que – este é um ponto interessante, discutido ao longo dos capítulos – podem ganhar tal força de memória entre as pessoas que passam a adquirir um status de “verdade” ou mesmo de tabus, difíceis de ser rompidos posteriormente. Cada um dos três capítulos que compõe este livro foi elaborado tendo em vista problemáticas que me parecem importantes para os praticantes das artes marciais chinesas. Longe de tentar elaborar uma história descritiva e “neutra” (tarefa que ao fim mostra-se uma ilusão, pois todo aquele que escreve também vive a história), tentei sugerir pontos de reflexão para todos nós, chamando a atenção para a historicidade das artes marciais. No Capítulo I iniciamos a discussão sobre alguns nomes ou conceitos utilizados com frequência pelos praticantes dessas artes atualmente, como “kung fu”, “wushu”, “kuo shu”, além do famoso cumprimento gestual jingli (ou kin lai). Minha preocupação maior nesse capítulo inicial é chamar a atenção do leitor sobre o caráter histórico desses conceitos. Os significados das palavras e expressões são tão sujeitos a transformações ao longo do tempo quanto nossas próprias vidas pessoais; mais do que isso, elas podem carregar diferentes sentidos simultaneamente, em uma mesma época. Em síntese, eu gostaria de destacar que as palavras são, de fato, práticas sociais. Por outro lado, é muito comum a crença de que as artes marciais da China, e tudo o que se relaciona a elas, são “milenares” em um sentido de que supostamente praticamos hoje o mesmo que os chineses faziam a centenas e centenas de anos. Muitas vezes a tradição oral que predomina nas escolas e academias cria e quer sustentar uma memória mitológica sobre seu passado, quando, se desejarmos nos aprofundar um pouco no estudo de suas histórias, descobrimos frequentemente construções de “estilos”, treinamentos e técnicas muito mais recentes. Este também é um ponto

discutido a partir do primeiro capítulo através de um dos vários ícones dessa tradição: A Dama de Yue. O Capítulo II foi preparado como uma escrita panorâmica da história das artes marciais chinesas, desde o que sabemos a respeito de suas origens até nossa atualidade. Mais uma vez, o texto foi escrito através de escolhas e questões específicas, que poderiam ser resumidas na seguinte pergunta: o que poderíamos chamar hoje de “tradicional” e “moderno” nas práticas marciais chinesas? Adiantando ao leitor o caminho percorrido durante a discussão do capítulo, vemos que os próprios conceitos de “tradição” e “modernidade” são construções que estão sempre se transformando histórica e socialmente. Mais do que isso, seus significados mudam de forma conflituosa, dado que muitas vezes envolvem interesses de diferentes grupos políticos e sociais ao longo do tempo e de diferentes países e regiões. Para o Capítulo III, minha intenção original era construir a genealogia de uma das várias formas de artes marciais chinesas com o objetivo de demonstrar a riqueza de sua história e as diversas transformações de suas práticas através de um exemplo concreto. Com isso pensei em incentivar cada praticante interessado a investigar e refletir sobre sua própria escola ou “estilo” e não apenas contentar-se em uma prática pontual, vivida apenas no aqui-e-agora das aulas da academia. Esta continua sendo a meta principal do texto, mas soma-se a ela também o anseio de apresentar ao leitor e incitar sua curiosidade a respeito de uma proposta para as artes marciais chinesas extremamente coerente e atual (em meu julgamento): Zhong Wudao, do Mestre Lin Zhong Yuan. Confesso meu envolvimento pessoal com o tema e as questões colocadas – não esperem nada diferente de qualquer parte deste livro! A referida proposta de Zhong Wudao relacionou-se com meus primeiros seis anos de prática das artes marciais chinesas de forma exclusiva e continuou ocupando um local de extrema importância nos anos seguintes. Ao longo desse tempo, porém, muitas dúvidas foram surgindo para mim quanto a suas origens, existência fora de nossa própria academia, composição técnica e curricular, pois Zhong Wudao é pouquíssimo divulgado no mundo e encontrar informações externas sobre ele mostrava-se uma tarefa desanimadora. Sabíamos através de nosso mestre, Huang Yu Sheng, residente hoje em Uberlândia, Minas Gerais, que Zhong Wudao tinha origem na República da China (Taiwan), como uma síntese dos conhecimentos do último de seus cinco mestres antes de migrar para o Brasil: um oficial do exército chamado Lin Zhong Yuan, que, devido a um ferimento em batalha aposentou-se das forças armadas e tornou-se diretor de uma escola básica. Entretanto, restavam muitas outras questões, que o relacionamento fechado e tradicional que nós, seus alunos, mantínhamos com nosso mestre não permitia abertura suficiente para solucionar de forma clara e direta. Então, Zhong Wudao1 é um 1

A grafia utilizada na academia, segundo a transliteração do próprio Mestre Sheng é “Jon Wu Dao”, mas manterei a escrita padrão do mandarim em pinyin.

“estilo” de kung fu? Descobri depois que não, sendo muito mais do que isso. De quais escolas provinham aqueles quantao (rotinas) e técnicas que praticávamos? Tínhamos certa noção sobre a origem de algumas poucas delas, mas de maneira um tanto nebulosa. Havia ainda outros praticantes de Zhong Wudao em Taiwan ou outros países? Eles treinavam através do mesmo currículo técnico que nós? A forma como consegui algumas respostas, inclusive o texto-base de Lin Zhong Yuan utilizado para a composição do terceiro capítulo, foi, no mínimo, curiosa e somente possível a partir da boa vontade de algumas pessoas a quem devo meus sinceros agradecimentos. Gostaria de expor ao leitor esse processo como um exemplo do trabalho da pesquisa documental do historiador.

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Em fins de 2010, após anos de buscas frustradas sobre Zhong Wudao na rede mundial de computadores, deparei-me com uma pequena pista ao mesmo tempo instigante e inconclusiva: em uma breve nota de rodapé de um artigo escrito em chinês havia algo que eu não conseguira encontrar antes em nenhuma outra fonte, os nomes Lin Zhong Yuan (林忠元) e Zhong Wudao (中武 道 ) associados.2 A frase afirmava apenas que Lin Zhong Yuan defendera para as artes marciais chinesas o nome Zhong Wudao em alguma ocasião indeterminada (“林忠元曾主張「中武道」名 詞”...).3 Não era grande coisa, mas um primeiro indício para minhas buscas. Através do artigo, que discutia sobre os usos dos termos wuyi (武 艺 , “arte marcial”) e guoshu (国

术 , “técnica nacional”) na China cheguei a um de seus autores, o professor Zhuang Jia Ren ( 莊嘉 仁 ), ou Roger Jia, do Departamento de Artes Marciais da Universidade de Cultura Chinesa de Taipei, Taiwan. Escrevi-lhe um e-mail expondo minha dúvida sobre a pequena nota de seu texto e, como não me respondeu por esta via, enviei-lhe uma carta formal via correio (para os quais utilizei a língua inglesa – não consigo me expressar satisfatoriamente em chinês!). Logo recebi sua gentil resposta: ele mesmo não tinha grandes informações sobre Lin Zhong Yuan. Sabia apenas que trabalhara em uma escola de ensino fundamental da cidade de Zhongli, na província de Taoyuan, a Neili Junior High School4. Além disso, Professor Zhuang também teve a paciência de digitalizar e enviar-me o artigo de Lin Zhong Yuan – o mesmo utilizado neste livro – que havia sido publicado anos antes, em 1984, em uma revista mensal taiwanesa sobre guoshu. Meu próximo passo foi elaborar uma mensagem no mínimo inusitada para a Neili Junior, algo do 2

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Lin Zhong Yuan não é um nome incomum – e há um nome incomum em uma população de mais de um bilhão de pessoas? - e até então, uma busca através da expressão Zhong Wudao conduzia apenas a informações sobre artes marciais chinesas no Japão, algo longe do que eu procurava. , , , , , . A frase está na nota de rodapé número 32 (p. 9) do artigo . , n° 12, 1986. Website: xoops.nljh.tyc.edu.tw/xoops2/nljh/. Acesso 20/03/2014.

「武藝」代「國術」之名略說 國術研究

郭應哲 莊榮仁 莊嘉仁 楊正隆 陳鴻祥 鄭博應 請以

tipo “sou um pesquisador do outro lado do mundo que pretende escrever sobre as artes marciais de um ex-diretor de sua escola. Alguém aí o conhece?”. Surgiu então mais uma pessoa a quem devo muitos agradecimentos, Anderson Liu, líder do departamento de informações da escola, que se dispôs a questionar outros funcionários da instituição sobre Lin Zhong Yuan e terminou por ir pessoalmente a casa dele para repassar meu pedido de informações. Anderson Liu respondeu-me que Mestre Lin falaria de bom grado a respeito de si mesmo, então formulei nove perguntas como uma entrevista e enviei-lhe novamente. Devo confessar minha surpresa com a abertura e a prontidão com que Lin Zhong Yuan, já em idade avançada, esclareceu meus questionamentos: de próprio punho redigiu a resposta para as três primeiras perguntas e, ainda através de Anderson Liu, enviou-me uma série de documentos (em arquivos de Word e PowerPoint) sobre Zhong Wudao e, principalmente, Sheng Wumen, forma de arte marcial com o uso de cordas que desenvolvia nos últimos tempos. Além disso, cedeu-me também um longo vídeo gravado em 2006 onde ele demonstrava algumas técnicas de amarração de corda, qigong e taijiquan e explicava alguns pontos sobre suas compreensões de arte marcial. Afirmou como um anexo às respostas que se ocuparia em breve das demais perguntas e forneceume o endereço de e-mail de seu filho como meio de contato direto. Alguns dias mais tarde, sua sobrinha, Rebecca Lin – a quem também devo agradecer – enviou-me novamente as respostas formuladas por Lin Zhong Yuan, desta vez digitadas, temendo minha dificuldade em traduzir a grafia manuscrita de seu tio. De lá para cá não consegui novos contatos ou mesmo as demais respostas de meu questionário. Não obtive retorno de várias tentativas de contato através do e-mail fornecido por Lin Zhong Yuan. Tentei diversas alternativas que me pareciam possíveis para escrever novas mensagens ao filho de Mestre Lin, seja através de sua sobrinha ou da escola em que ele trabalha (é professor de ciências do ensino básico, pelo que descobri). Resta-me apenas especular porque uma boa vontade e interesse inicial tão grande em auxiliar-me tornaram-se um silêncio tão pesado... De qualquer maneira, havia já muito material a ser trabalhado e iniciei pelo artigo de Lin Zhong Yuan enviado pelo Professor Zhuang (o mesmo texto estava também em meio aos arquivos repassados por Mestre Lin posteriormente). Sua tradução para o português foi realizada através do inestimável trabalho do professor Tai Sheng Xiu, ou Adriano Tai, frente ao qual eu apenas realizei algo próximo de uma “revisão técnica”. A parte da entrevista enviada por Lin Zhong Yuan, correspondente às três perguntas iniciais de meu questionário, foi-me melhor esclarecida pela ajuda da professora Li Qiu Mei, ou Li-lee – a quem somo os agradecimentos pelas aulas de mandarim ao longo dos anos. A entrevista está anexada integralmente ao final deste livro. As dificuldades de uma tradução satisfatória da língua chinesa para o português são imensas e seus resultados serão sempre questionáveis frente a outras possibilidades de interpretação de

palavras, expressões e frases. Muito mais que em nossa língua, no chinês é necessária a compreensão do contexto mais amplo da sentença para definir-se o sentido de cada palavra; é o caso, por exemplo, do termo zhong ( 中 ), recorrente em diversas passagens do capítulo e que aproveito para esclarecer sua tradução. Em especial no Capítulo III, o leitor notará que em alguns momentos, zhong foi traduzido como “China”, em outros como “meio” em expressões aparentemente iguais como zhongdao ou Zhong Wudao. A palavra carrega em si essa dupla possibilidade de sentidos: zhong, em certas ocasiões, pode ser uma contração de Zhongguo, o nome do país (literalmente “País do Meio”, devido à crença antiga dos chineses da China ser o centro do mundo), em outras pode indicar a posição de algo entre duas outras coisas, o “meio”, compondo a expressão “Caminho do Meio” (zhongdao), discutida no capítulo. Há ainda o zhong (忠) presente no nome de Lin Zhong Yuan, que na realidade tem um valor fonético igual, mas escreve-se e possui significados diferentes (“lealdade”, “fidelidade” entre outros). No Capítulo III tentei sintetizar e interpretar dentro de meus estreitos limites o conteúdo do texto de 1984 de Mestre Lin. Seu objetivo original com essa publicação em Taiwan era apresentar a todos suas propostas para a vivência e organização das artes marciais chinesas como um Caminho (“Dao”), proposta a qual ele batizou Zhong Wudao. Considero que posso contribuir com essa intenção em nosso país, ou, menos forma muito menos pretensiosa, em nossa cidade, tornando acessível tais propostas em nossa língua e cultura. Não me arrisquei a abordar Sheng Wumen, o recente “Modo Marcial da Corda”, de Lin Zhong Yuan, que Anderson Liu definiu como “ramo” de Zhong Wudao. Mesmo tendo quantidade satisfatória de documentação, a falta da mínima vivência pessoal em sua prática e a complexidade de seus objetivos – que me parecem muito voltados à compreensão das relações entre indivíduo e universo e a todo o processo de vida e morte das pessoas – me impedem de fazê-lo. *** Espero que estes breves e despretensiosos estudos sirvam ao leitor como um estímulo à busca pelo conhecimento e reflexão sobre a história, mais remota e mais recente, de sua prática marcial. A consciência de que não somos os primeiros e nem seremos os últimos nas tortuosas linhas de vivência, ensino, desenvolvimento e transformação de nossas artes e escolas é fundamental para mantermos a humildade e sentimentos de gratidão e dedicação, que caracterizam qualquer forma de Caminho Marcial.

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