História de Rubem, história da salvação: uma análise do pensamento de Alves a partir de Vattimo

May 22, 2017 | Autor: Danilo Mendes | Categoria: Gianni Vattimo, Teologia, Rubem Alves
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História de Rubem, história da salvação: uma análise do pensamento de Alves a partir de Vattimo1 Danilo Mendes2

Introdução Rubem Alves pode ser considerado o maior teólogo protestante brasileiro de todos os tempos. Pensar que de dentro das rígidas estruturas do protestantismo, mais especificamente da Igreja Presbiteriana, surge a genialidade de Rubem, é aguçar a própria curiosidade: como isto foi possível? E mais: olhar para todo o sistema frio e engessado construído pelas religiões (descrito de maneira magistral por Alves) e ver brotar sobre estas correntes lindas flores é perceber que há esperança e libertação para toda prisão religiosa. Olhar para este movimento de êxodo representado por Rubem Alves é olhar para ele próprio, para sua história, para a história de seu pensamento. Justamente neste olhar nota-se a salvação. Pela força da memória dos escritos dele (que hora devem ser lembrados e hora esquecidos), pode-se dizer que a história de Rubem é uma História da Salvação. Não no sentido grego-metafísico de que os homens e mulheres devem ser salvos deste corpo e desta realidade, mas a afirmação de que, pela libertação neste corpo a vida pode ser mais. Nesse sentido, as fases que perpassam os escritos de Alves são diferentes fases do mesmo processo salvífico. Aqui, insere-se a leitura do filósofo italiano Gianni Vattimo sobre os escritos medievais de Gioacchino da Fiore e suas ideias acerca da História da Salvação. Em Vattimo, esta História tem seu ápice numa era de profunda liberdade, difundida, sobretudo, por meio das interpretações sem pretensões totalizadores: leituras e falas baseadas numa espécie de pensamento fraco (débil). Mais do que apenas correlacionar a história do pensamento de Rubem Alves com a História da Salvação em Vattimo, realiza-se aqui o esforço por pensar a salvação como fio condutor da obra alvesiana. Mais do que apresentar uma leitura sobre as fases do pensamento de Rubem, apresenta-se o caminho por ele percorrido como caminho de salvação para todos e todas. Para isso, começa-se com um breve estudo sobre as fases do pensamento de Rubem Alves; segue-se com uma breve exposição acerca da História da Salvação em Vattimo e, por fim, uma aproximação comparativa entre estas duas histórias.

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Comunicação apresentada no II CONACIR, 2017 (UFJF) no GT 42: Variações sobre Rubem Alves. Mestrando em Ciência da Religião na UFJF, bacharel em Teologia pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

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As fases do pensamento de Rubem Alves Dentre os esquemas de periodização das fases do pensamento de Alves, sobressaem duas propostas: a de Leopoldo Cervantes-Ortiz em A teologia de Rubem Alves (2005) e a de Antônio Vidal Nunes em O que eles pensam de Rubem Alves (2007). Tentando uma aproximação entre estas duas divisões, pode-se dizer que a fase teológica (Nunes) coincide com a primeira fase de Cervantes-Ortiz , 1956-64, a fase filosófico poética perpassa os quatro momentos posteriores, indo de 1964-82, e o último período de cada divisão também coincide. Apesar de ter como marco do início da fase poético-filosófica o nascimento de Raquel (1975), pode-se dizer que esta última fase se dá após o "processo de conversão" ocorrido durante o nascimento de Raquel - possivelmente estendido até meados da década de 80. A fase teológica de Alves diz respeito ao período depois de sua formação no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas (SP), até a sua volta do Mestrado no Union Theological Seminary, em Nova Iorque, onde escreveu a dissertação A theological interpretation of the meaning of the revolution in Brazil. Durante este tempo foi pastor em Lavras (MG) e, para Nunes, tinha como ponto de partida de toda reflexão a Revelação - partindo, especialmente, de Barth, Bonhoeffer e Tillich. Esta fase se caracteriza por "um certo otimismo ingênuo do jovem teólogo que [...] tinha por objetivo estabelecer uma rede simbólica que pudesse motivar os cristãos a uma participação efetiva na vida da sociedade" (Ibid. pp. 21s). Para CervantesOrtiz, "Alves enfatizava dois temas principais: a atividade de Deus na sociedade [...]. Em segundo lugar, a natureza provisória da revolução" (CERVANTES-ORTIZ, 2005. p. 44). Esta primeira fase caracteriza-se, sobretudo, pela postura crítica com a igreja sem, entretanto, sair de seu escopo teológico. Em outras palavras, mesmo que árida, sua obra ainda é presa aos modelos tradicionais eclesiais. A fase filosófico-poética (1964-82) começa com a perseguição de Rubem pela ditadura civil-militar no Brasil: ele é denunciado pela própria Igreja Presbiteriana. Volta, então, para os Estados Unidos a fim de fazer seu doutorado, que completa em 1968 com a tese Towards a Theology of Liberation. Neste ponto, "Rubem abandonara completamente a ilusão de que a teologia pudesse ser um conhecimento de Deus. [...] Assim, em um trabalho inovador e corajoso, tratou da opressão de diversas maneiras, em especial a étnica, a social e a religiosa." (JUNIOR, 2015. p. 259). Começando com este trabalho, ele segue com uma vasta produção que trata sobre a repressão e a linguagem religiosa, o problema (e salvação) do corpo na (da) tradição. Este período pode ser entendido, sobretudo, como período de luta pela libertação da teologia (sem, entretanto, esquecê-la). Alves interpreta o mundo e a religião através de um

cabedal teórico mais filosófico do que propriamente teológico. Para tal, parte de Nietzsche, Marx, Feuerbach e Freud. Aqui, "o otimista foi substituído pelo esperançoso"( NUNES, 2007,. p. 32.) e Rubem dá início a seu humanismo.

A última fase, poético-filosófica, é uma fase de libertação total, caracterizada pela preocupação com a estética. Sem abandonar o rigor do pensamento intelectual por trás de seus escritos, Rubem escreve de forma leve, despreocupado com a academia, dedica-se à beleza da literatura e torna-se ainda mais reconhecido por meio de suas crônicas. "O que no período anterior era somente busca e intuição manifesta-se em concreções muito próximas da literatura, pela conjunção de elementos simbólicos, poéticos, teológicos, religiosos e autobiográficos." Em 1983 sua principal forma de escrita já é a crônica.

A História da Salvação em Vattimo É preciso esclarecer, antes de tudo, que o conceito aqui apresentado de História da Salvação é um conceito do filósofo medieval Gioacchino da Fiore e não de Gianni Vattimo. Entretanto, este filósofo é quem retoma, rele e se apropria dos estudos daquele sobre História. Assim, a leitura das ideias de Gioacchino é realizada a partir da interpretação de Vattimo usada, sobretudo, para o aprofundamento da tese de que na tradição cristã e - mais ainda - na pósmodernidade encontra-se o locus possível para a epistemologia do pensiero debole (pensamento fraco/débil). A ideia de Gioacchino acerca da História é que esta é coincidente com a História da Salvação, isto é, estas duas se confundem pois "ele concebe a história como sendo o movimento da criação do cosmo por Deus para o instante do retorno triunfal de Jesus Cristo à terra" (SANTOS, 2008). Assim, a História pode ser divida em três etapas ou idades: a primeira é a Idade do Pai, a segunda do Filho e a terceira do Espírito Santo - coincidindo com as pessoas da Trindade. Três são os estados do mundo que os símbolos dos textos sagrados nos prospectam. O primeiro é aquele em que vivíamos sob a lei; o segundo, aquele em que vivemos sobre a graça; o terceiro, cujo advento está próximo, aquele no qual viveremos em um estado de graça mais perfeito. O primeiro transcorreu na escravidão, o segundo é caracterizado por uma servidão filial, o terceiro acontecerá sob a insígnia da liberdade. O primeiro é marcado pelo temor, o segundo pela fé, o terceiro pela caridade. O primeiro período é aquele dos escravos, o segundo dos filhos, o terceiro dos amigos. (FIORE APUD VATTIMO, 2004. p. 43)

Pode-se dizer que os três estágios da história também correspondem às Escrituras: o primeiro ao Antigo Testamento (sob a lei), o segundo ao Novo Testamento (sob a graça), e o terceiro estágio ao futuro porvir. Vattimo salienta que para Gioacchino, o terceiro estágio ainda não chegou, portanto, pertence ao campo das profecias. Argumenta também que esta "Idade do Espírito" pode ser interpretada como a própria pós-modernidade, tempo de liberdade através de uma hermenêutica ontológica niilista (sobretudo por pensar o Ser como evento e fugir da metafísica, isto é, a presença do Ser como estrutura estável). Assim, "a história da salvação acontece ou se dá somente como história da interpretação" (Ibid., p. 76.), de forma que a liberdade hermenêutica só pode ser real partindo do fim da modernidade e seu paradigma "objetivo" e chegando na pós-modernidade: a Idade do Espírito. Embora os ensinos de Gioacchino sejam apenas um exemplo na obra de Vattimo, o tema da religião é central em livros como Acreditar em acreditar (1998).

Rubem e a Salvação Falta, então, realizar uma aproximação entre a história de Rubem (ou as fases de seu pensamento) e a história da salvação de Vattimo. Tendo já sido apresentadas, a correlação entre estas parece clara. Entretanto, não se pode dizê-las perfeitamente coincidentes e convergentes. Isto seria trair e forçar, de certa forma, tanto a História de Rubem quanto a leitura feita por Vattimo. Com esta ressalva já feita, continua clara a possibilidade aproximativa entre tais histórias. A fase teológica mostra-se próxima da primeira etapa da história de Gioacchino à medida em que se percebe que, por mais revolucionária e progressista que já fosse, a produção intelectual de Rubem estava presa ao paradigma teológico-moderno. O próprio esforço por interpretar teologicamente a revolução no Brasil já pode ser enxergado como sinal de "cativeiro", de ligação forte com o arcabouço teológico oferecido pela racionalidade intrínseca a um protestantismo moderno. Este esforço racional de partir da Revelação como campo fundamental mostra Rubem preso à lei. Não à lei-religião, mas à lei-razão em que encontra-se ainda presa grande parte das academias. Daí, também, percebe-se o temor e o amor à instituição igreja e a busca por, ao criticá-la, mostrar como a revolução pode ser profética e apontar novos caminhos. Apontar Alves como escravo da lei, ou cativo num sentido extremamente trágico, mesmo nesta primeira fase, é não ser justo com sua história e sua obra. Portanto, tais afirmativas se dão no sentido dele estar preso a um paradigma dogmático, mesmo sem ser ele próprio um dogmático em seu sentido estrito.

Partindo para a fase filosófico-poética, podem ser percebidas diversas aproximações com a segunda etapa da história da salvação. Nesta fase de seu pensamento, Alves se dedica, ao mesmo tempo, a uma obra mais crítica da linguagem religiosa e da modernidade e a escritos esperançosos sobre a religião. Em O enigma da Religião (1975), por exemplo, ele escreve diversos ensaios tratando, até biograficamente, sobre as diferentes faces da religião e suas possibilidades. Nesta fase, a religião é tratada como sonho humano e também como dogmatismo. Todo este período mais crítico é escrito ainda com certa formalidade acadêmica - ainda que em forma de ensaios e não de artigos propriamente ditos. De certa forma, Rubem entra no jogo do cientificismo para criticá-lo. Não se apresenta como detentor de uma verdade última o que seria incoerente -, mas continua no que pode ser chamado de "servidão filial", já com graça (incompleta). Ele continua apostando na própria base científica - recorrendo, por exemplo, diversas vezes aos grandes filósofos - como possibilidade de destruição do próprio modelo. Como no Novo Testamento, Rubem, pela crítica, anuncia a possibilidade de um novo tempo por vir, declara que a luta pela libertação já está inaugurada, mas pouco conhece da liberdade. É somente na terceira fase, a poético-filosófica, em que, de fato, Alves conhece vive a libertação que anunciava em sua segunda fase. A Idade do Espírito chega na história de Rubem quando este foge totalmente às regras do jogo em que havia se colocado. A salvação tem seu ápice quando ele acha a literatura como caminho de existência. Ao se tornar cronista, Alves vive a libertação que proclamara. Mais: Alves acha o caminho apontado por Vattimo como "fim da metafísica"; encontra a possibilidade para além da racionalidade que vê na experiência kenótica, isto é, de esvaziamento da transcendência, a realização da libertação humana. Possibilidade tão livre que o permite voltar à religião, mas com outros olhos, como em Pai nosso (1987). A motivação estética de Rubem parece ser a libertação da metáfora de que trata Vattimo. O cronista liberta-se do legado racionalista moderno ao escolher a linguagem literária como modo de expressão: esta é a sua salvação. Liberdade, caridade, amizade. Está clara a realização do porvir na última fase de Rubem.

Considerações finais Tendo percebido de que forma aproximam-se a história de Rubem e a história da salvação, pode-se concluir que a trajetória deste autor é uma busca de libertação. Libertam-se o corpo e as ideias, a educação e a linguagem, os homens e mulheres, a religião e a imaginação. O itinerário da obra alvesiana é salvífica no sentido de que aponta um caminho palpável, possível e belo de se seguir. Largar o lugar que privilegia a teologia como local de fala do/sobre o

sagrado parece ser o primeiro passo. Perceber que a dura realidade permanece misteriosa por maiores que sejam nossos esforços científicos em descrevê-la pode ser apontado como o segundo - parafraseando o pregador, "linguagem de linguagem: tudo é linguagem". Abrir-se, enfim, à experiência literária como lugar privilegiado (não por sua objetividade, mas por sua beleza) parece ser o fim e o ápice do processo de salvação pelo qual passa Rubem. Reconhecer a teopoética alvesiana como plenitude dos tempos é o desafio proposto por este estudo. Em vez de criticar o racionalismo em prol da liberdade, voltar-se, a exemplo de Rubem, para viver a libertação das amarras racionalistas. Desta forma, a vida dele não é só reconhecida como exemplo de um homem que, apesar de ter a gênese de seu pensamento em estruturas engessadas, salvou-se. Rubem Alves revela um caminho de salvação humana em si mesmo - além do já apontado por sua obra. A história de Rubem é uma história de salvação. Salvação para além de si.

Referências ALVES, Rubem. O enigma da religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975. ALVES, Rubem. Pai nosso. Meditações. São Paulo: CEDI; Paulinas, 1987. CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de Rubem Alves: Poesia, brincadeira e erotismo. Campinas, SP: Papirus, 2005. JUNIOR, Gonçalo. É uma pena não viver: uma biografia de Rubem Alves. São Paulo: Planeta do Brasil, 2015. NUNES, Antônio Vidal (org.). O que eles pensam de Rubem Alves e de seu humanismo na religião, na educação e na poesia. São Paulo: Paulus, 2007. SANTOS, Ivanaldo. Joaquim de Fiore e os novos círculos joaquinistas. Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura, São Paulo,

Ano IV, n. 19, 2008. Disponível em:

. Acesso em: 24 de Agosto 2016. VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Rio de Janeiro: Record, 2004. VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar. Lisboa: Relógio D'Água, 1998.

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