História do Açúcar na Madeira. Séculos XV-XVII

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ALBERTO VIEIRA

CANAVIAIS, AÇÚCAR E AGUARDENTE NA MADEIRA SÉCULOS XV A XX

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M A D E I R A

CANAVIAIS, AÇÚCAR E AGUARDENTE NA MADEIRA SÉCULOS XV A XX

ALBERTO VIEIRA

CANAVIAIS, AÇÚCAR E AGUARDENTE NA MADEIRA SÉCULOS XV A XX AUTOR: Alberto Vieira TÍTULO: Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira. Séculos XV a XX 1ª Edição Outubro de 2004 COLECÇÃO HISTÓRIA DO AÇÚCAR Nº. 3

ALBERTO VIEIRA

EDIÇÃO

CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DO ATLÂNTICO RUA DOS FERREIROS, 165, 9004-520 FUNCHAL TELEF. 291-214970/FAX: 291-223002 Email: [email protected]. Webpage: http://www.ceha-madeira.net TIRAGEM: 2000 exemplares IMPRESSÃO: Printer Portuguesa DEPÓSITO LEGAL: 214 787/04 ISBN: 972-8263-V3-0

SECRETARIA REGIONAL DO TURISMO E CULTURA CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DO ATLÂNTICO 2004

ABREVIATURAS

ARM-Arquivo Regional da Madeira ANTT-Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Arquivos Nacionais AHU- Arquivo Histórico Ultramarino AF- Afândega do Funchal DA- Documentos Avulsos

Cofinanciado pelo FEDER

A presente publicação enquadra-se nas actividades do Projecto “Atlântica. O Açúcar e a Cultura nas Ilhas Atlânticas”. Programa de Iniciativa Comunitária Interreg III B. Espaço Açores-Madeira-Canárias.

Cx- caixa Sócios intervenientes no Projecto: JRC- Julgado dos Resíduos e Capelas CMF- Câmara Municipal do Funchal Ob.cit.- obra citada RGCMF- Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal PJRFF- Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal

• Centro de Estudos de História do Atlântico • Ayuntamiento de Los Lanos de Aridane • Ayuntamiento de la Villa de El Ingenio • Universidad de Las Palmas de Gran Canaria • Universidad de La Laguna • Saturno • Direcion General de Património Histórico/Viceconsejaria de Cultura y Deportes

Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Índice

Açúcar mascavado a secar. Santa Catarina (Brasil) 2003

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ABREVIATURAS APRESENTAÇÃO

6 15

CAP 1. INTRODUÇÃO- para a história do açúcar Da Papua Nova Guiné à Madeira A Beterraba e o Açúcar Cronologia Bibliografia Fundamental A Historiografia e a questão Açucareira na Madeira Mitos e Teses da História do Açúcar A Madeira e o Açúcar no Mundo Insular A projecção da Madeira no mundo açucareiro A tradição cultural do açúcar

17 19 22 33 36 49 57 63 65 71

AGRICULTURA MADEIRENSE A economia da madeira e a evolução do quadro natural A cana-de-açúcar e meio ambiente Rotas de migração: homens, plantas e mercadorias O madeirense e o meio natural A Cana-de-açúcar devora a paisagem O regime de propriedade da terra e da água O contrato de colonia O poder da água Uso e abuso da água Formas de Exploração e domínio

75 77 82 83 85 88 98 105 109 112 121

DOS CANAVIAIS AO ENGENHO Os canaviais nos séculos XVII e XVIII Os canaviais nos séculos XIX e XX. O Regresso e Nova Esperança Canaviais e Plantação A questão Hinton O Hinton e a Indústria do Açúcar e do Álcool Legislação sobre o Açúcar e Derivados da Cana ANEXOS: João Higino Ferraz

136 143 150 163 173 178 183 193

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CAP. 2. A AGRO-INDÚSTRIA Os engenhos madeirenses As Serras de Água O Engenho O Engenho e a época da Revolução industrial O fabrico de açúcar, álcool e aguardente A Família Hinton: Engenhos e Açúcar O preço do engenho O fabrico do açúcar Organização espacial do engenho ANEXOS: apanha da cana O engenho ou casa de moer Casa das Caldeiras Limpeza e purificação do caldo O cozer e bater do melado O temperar do melado As formas e a purga A Casa de Purgar O tirar, mascavar e secar

197 201 222 224 231 233 249 255 260 261 266 267 271 274 275 276 277 278 280

CAP.4: O MERCADO DO AÇÚCAR, ÁLCOOL E AGUARDENTE O Consumo do Açúcar As Conservas e Doçaria O dispêndio do Açúcar dos direitos As Formas de troca

319 321 336 342 343

CAP. 5 ROTAS E MERCADOS As formas de troca Os preços do Açúcar O Comércio Atlântico e o Açúcar O Açúcar do Brasil Diogo Fernandes Branco - um caso exemplar. O comércio de açúcar com a Europa Os mercadores do açúcar Os Italianos A comunidade Sefardita da Madeira e o Açúcar no Atlântico O Açúcar Madeirense nos séculos XVIII e XX

347 362 363 366 373 381 382 383 387 398 401

CAP.6. AÇÚCAR E PATRIMÓNIO As etapas de povoado a cidade

411 413

CAP.3: AÇÚCAR COM E SEM ESCRAVOS Escravos com e sem açúcar Proprietários de escravos, canaviais e engenhos A evolução do açúcar e dos escravos Trabalho para escravos e libertos ANEXO: Ofícios ligados ao açúcar

285 296 299 304 312

CAP. 7: ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS Finanças Públicas e o Açúcar Encargos fiscais ANEXO: Sumários da legislação

431 439 444 445

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Interior de engenho em Cuba, Cantero y Paplante, 1857

L’índustrie sucrière est une dês plus compliquées et aussi des plus belles que lón puisse étudier, car elle s’étend sur les questions agricoles, chimiques, mécaniques, économiques et commerciales, et qui la connait bien doit savoir toutes les sciences à la fois. (P. Horsin-Déon, Le Sucre et L’Industrie sucrière, Paris, 1894, p.5)

L’industrie sucrière a compris ume des premières tout le parti quélle pouvait tirer de ses usines dês laboratoires pour l’essai chimique dês matières premières dês produits dês différents phases de la fabrication ainsi que dês matières auxiliaires dont elle fait usage. En controlânt scientifiquement toutes ses opérations industrielles, la fabricant de sucre inevitable, à regler les conditions de l’épuration du jus et de la cristallisation des produits concentres. [D. Sidersky, Manuel du Chimiste de Sucrerie, Paris, 1909.]

Moenda a vapor tipo Stewart

La industria azucarera es una industria universal que constituye la base economica de muchos paises, en la cual Libran la subsistencia millares de obreros y técnicos azucareros. [F. A. Lopez Ferrer, Fabricación de Azúcar de Caña Mieles y Siropes Invertidos com su Control Técnico-Quimico, Habana, 1948, p.V]

The sugar industry, like many others of such complex nature, is one of great specialization. [Andrew Van Hook, Sugar its Production, Technology and uses, N. York, 1969, p.III]

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Panela de Vacuo

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Escravos na safra. J. Vilanova y Piera, 1872

APRESENTAÇÃO A Europa sempre se prontificou a apelidar as ilhas de acordo com a oferta de produtos ao seu mercado. Deste modo, sucedem-se as designações de ilhas do pastel, do açúcar e do vinho. O açúcar ficou como epíteto da Madeira e de algumas das Canárias, onde a cultura foi a varinha de condão que transformou a economia e vivência das populações. Também do outro lado do oceano elas se identificam com o açúcar, uma vez que serviram de ponte à passagem do Mediterrâneo para o Atlântico. Daqui resulta a relevância que assume o estudo do caso particular destas ilhas, quando se pretende fazer a reconstituição da rota do açúcar. A Madeira é o ponto de partida, por dois tipos de razões. Primeiro, porque foi pioneira na exploração da cultura e, depois, porque jogou papel fundamental na expansão ao espaço exterior próximo ou longínquo, incluídas as Canárias. A rota do açúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o Atlântico, tem na Madeira a principal escala. Foi na ilha que a planta se adaptou ao novo ecosistema e deu mostras da elevada qualidade e rendibilidade. Deste modo a quem quer que seja que se abalance a uma descoberta dos canaviais e do açúcar, na mais vetusta origem no século XV, tem obrigatoriamente que passar pela ilha. Foi aqui que se definiram os primeiros contornos desta realidade, que teve plena afirmação nas Antilhas e Brasil. A cana-de-açúcar iniciou a diáspora atlântica na Madeira. Aqui surgiram os primeiros contornos sociais (a escravatura), técnicos (engenho de água) e político-económicos (trilogia rural) que materializaram a civilização do açúcar. Por tudo isto torna-se imprescindível uma análise da situação madeirense, caso estejamos interessados em definir, exaustivamente, a civilização do açúcar no mundo atlântico. A história do açúcar na Madeira confunde-se com a conjuntura de expansão europeia e dos momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na sociedade madeirense. Dos séculos XV e XVI ficaram os imponentes monumentos, pintura e a ourivesaria que os embelezou e que hoje jaz quase toda no Museu de Arte Sacra. Do século XIX e do primeiro quartel da nossa centúria perduram ainda a maioria dos engenhos da nova vaga de cultura dos canaviais. Aqui, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora do álcool, aguardente e, raras vezes, o açúcar. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada poncha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha no Brasil. O açúcar é de todos os produtos que acompanharam a diáspora europeia aquele que moldou, com maior relevo, a mundividência quotidiana das novas sociedades e economias que, em muitos casos, se afirmaram como resultado dele. A cana sacarina, pelas especificidades do cultivo, especialização e morosidade do processo de transformação em açúcar, implicou uma vivência particu-

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lar, assente num específico complexo sócio-cultural da vida e convivência humana. Gilberto Freyre1 foi o primeiro em 1971 a chamar a atenção dos estudiosos para esta realidade, quando definiu as bases daquilo que designou de Sociologia do Açúcar: A publicação em 1933 de “Casa-Grande & Senzala” foi o prelúdio de nova preocupação e domínio temático para a Sociologia e a História. A cana-de-açúcar é de todas as plantas domesticadas pelo Homem a que mais implicações tiveram na História da Humanidade. Até hoje são evidentes as transformações operadas na agricultura, técnica, química e siderurgia, por força da cultura da cana sacarina, beterraba e da produção de açúcar, mel, aguardente, álcool e rhum2. O percurso multissecular, desde a descoberta remota na Papua (Nova Guiné) à 12.000 anos, evidência esta realidade. A chegada ao Atlântico, no século XV provocou o maior fenómeno migratório, que foi a escravatura de milhões de africanos, e teve repercussões evidentes na cultura literária, musical e lúdica. Foi também no Atlântico que a cultura atingiu a plena afirmação económica, assumindo uma posição dominante no sistema de trocas. Fernand Braudel define de modo claro a forma de intervenção do açúcar no capitalismo: “Devastadora do antigo equilíbrio, a cana é tanto mais perigosa quanto é apoiada por um capitalismo poderoso, que, no século XVI, Provem tanto de Itália, como de Lisboa ou de Antuérpia, e ao qual ninguém consegue resistir. “3 A isto Vitorino Magalhães Godinho Acrescenta que “a génese do mundo atlântico está pois, em grande parte, ligada àquilo a que Fernand Braudel chama muito apropriadamente dinâmica do açúcar.” 4 Recuperar os momentos de fulgor da cultura dos canaviais e das indústrias subsequentes do açúcar, destilação, ou fabrico de conservas e casquinha, eis o objectivo que presidiu a esta incursão na História do Açúcar no mundo atlântico, que tem na Madeira a primeira expressão. Para tornar mais acessível a compilação reunimos um conjunto de gravuras e fotografias que permitem uma adequada ilustração da realidade.

Escultura com elementos da maquinaria da Fábrica Hinton. Danilo Matos e José João Garcês, 1987

Funchal-Recife-Itu. 2003-2004

1 . “Contribuição Brasileira para uma Sociologia do Açúcar”, in Sociologia do Açúcar, Recife, 1971, pp. 9-12. 2 . Existe um conjunto variado de textos que valoriza o papel da cana como motor do progresso em vários sectores:Luiz del Castilho, A Fabricação do Assucar de Canna. Notas e formulas…, Rio de Janeiro, 1893, p.5; P. Horsin-Déon, Le Sucre et L’Industrie sucrière, Paris, 1894, p.5 ; D. Sidersky, Manuel du Chimiste de Sucrerie, Paris, 1909 ; IDEM, Aide-Mémoire de Sucrerie, Paris, 1936, pp.3 ; F. A. Lopez Ferrer, Fabricación de Azúcar de Caña Mieles y Siropes Invertidos com su Control Técnico-Quimico, Habana, 1948, p.V; IDEM, Maquinaria y aparatos en los Ingenios de Azucar de Caña, La Habana, 1949 ; A. C. Barnes, Agriculture of the Sugar-Cane, Londres, 1954, p. IX ; Andrew Van Hook, Sugar its Production, Technology and uses, N. York, 1969, p.III . 3 . O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico, Lisboa, 1983 [1ª edição em 1966], p.178 4 . Mito e Mercadoria Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, p.478

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CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO para a história do AÇÚCAR

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Da Papua Nova Guiné à Madeira Normalmente associa-se o açúcar à cana sacarina. Foi assim durante muito tempo, mas a partir do século XVIII isto deixou de ser assim com a possibilidade de fabrico do mesmo a partir da beterraba. Já em 1575 François Olivier de Serres (1539-1619) em “Theatre dell’Agriculture” referia a possibilidade de extrair açúcar a partir da beterraba, mas só em1745 Frederico O Grande da Prússia ordenou aos químicos que investigassem a forma de retirar sacarose. Em 1747 o Barão Andreas Sigismond Marggraf [1709- 1782], da Academia de Ciências de Berlim, confirmou que o açúcar existente na Beterraba era igual ao da cana sacarina. E em 1786 Carl Franz Achard a partir de um estudo sistemático sobre a beterraba e montou a primeira fábrica de açúcar de beterraba. A partir daqui a beterraba avança na batalha para suplantar o açúcar o que irá conseguir a partir de 1880. Foi o colapso do mercado do mercado açucareiro que só as duas guerras mundiais do século XX puseram um travão5. 5 . Ware, Lewis Sharpe, 1851-Sugar beet seed; a work for farmers, seedsmen, and chemists, containing historical, botanical, and theoretical data, combined with practical directions for the production of superior sugar beet seed. Chicago, New York [etc.] Orange Judd company [1898]; Ware, Lewis Sharpe, 1851-The sugar beet: including a history of the beet sugar industry in Europe, varieties of the sugar beet, examination, soils, tillage, seeds and sowing, yield and cost of cultivation, harvesting, transportation, conservation, feeding qualities of the beet and of the pulp, etc. Illustrated with ninety engravings. Philadelphia, H.C. Baird & co., 1880; SAILLARD Emile. Betterave et sucrerie de betterave. Paris J.B. Baillère 618 pages illustrées. Encyclopédie agricole 1913 ; Bridges, Archibald. Sugar beet in France, Belgium, Holland and Germany, by A. Bridges and R.N. Dixey. Oxford, The Clarendon Press, 1928 La culture de la betterave, législation, technologie, Cambrai, Imprimerie de ligne, 1900 Palmer, Truman Garrett,, Sugar beets in New England and free sugar bill of the House of Representatives. Letter of Truman G. Palmer... concerning the production in 1837 at Northampton (Mass.) of the first beet sugar produced in America... Washington: Government printing office, 1912; IDEM, 1858Sugar beet seed, history and development, 1st ed.New York, John Wiley & sons, inc.; [etc., etc.] 1918; Palmer, Truman Garrett,,Sugar beets in New England and free sugar bill of the House of Representatives. Letter of Truman G. Palmer... concerning the production in 1837 at Northampton (Mass.) of the first beet sugar produced in America... Washington: Government printing office, 1912; IDEM-Sugar beet seed, history and development, 1st ed.New York, John Wiley & sons, inc. [etc., etc.] 1918.

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A BETERRABA E O AÇÚCAR François Olivier de Serres (1539-1619) em “Theatre dell’Agriculture”, refere que se pode extrair açúcar da beterraba. 1745 Frederico O Grande da Prússia ordena aos químicos que investiguem a forma de retirar sacarose de frutos. 1747 O Barão Andraeas Sigismond Marggraf [1709-1782], da Academia de Ciências de Berlim, confirma que o açúcar existente na Beterraba é igual ao da cana sacarina 1786 Carl Franz Achard fez um estudo sistemático sobre a beterraba e montou a primeira fábrica de açúcar de beterraba 1799 Franz Carl Achard anuncia a obtenção de açúcar em larga escala, construindo uma fábrica na Silésia e presenteou Frederico III da Prússia com um pão de açúcar de beterraba 1812 Construção da primeira fábrica para açúcar de beterraba em França 1866 Jules Robert desenvolveu o processo de difusão para extrair o açúcar da beterraba. 1880 A beterraba conduz a inovações na indústria química, enquanto o seu açúcar, suplanta o da cana e conduz ao colapso do mercado. 1914-19 destruição campos beterraba na Europa, com a guerra 1937-58 Acordo reduziu competição com cana

1575

Beterraba, N. Basset, 1889

Equipamento para fábrica de açúcar de beterraba. Compagnie Five-Lille, 1879

A beterraba conduziu a inovações na indústria e química do fabrico do açúcar. A nova tecnologia usada desintegrou o sistema de fabrico de açúcar. A beterraba conduziu a uma transformação do sistema de produção de açúcar, com o aparecimento das fábricas e laboratórios. O sucesso beterraba deveu-se aos métodos avançados em termos tecnológicos e quimicos. O açúcar está ainda disponível numa variedade de frutos, mas sem valor industrial, apenas no sorgo6 e acer7 se conhecem algumas tentativas de sucesso no fabrico do açúcar. No arquipélago fizeram-se algumas tentativas de plantação no Porto Santo e Norte da ilha da Madeira, mas apenas para fabrico de aguardente. Até 1858, com as primeiras experiências em Barbados, a reprodução da cana para cultivo faziase apenas pelo caule. A segunda metade do século XIX é o momento de afirmação das sementes 6 . H. S. Olcott, Sorgo and Imphee, the chinese and african sugar canes…, Noa York, 1858; Adrien Sicard, Monographie de la Canne à Sucre de la Chine dite Sorgho à Sucre. Culture, employs, etudes diverses, Paris, 1861. 7 . Trelease, William, 1857-1945. The sugar maples, with a winter synopsis of all North American maples. [n.p., 1894], Fox , William F. (William Freeman), 1840-1909. The maple sugar industry / by William F. Fox and William F. Hubbard; with a discussion of the adulterations of maple products. IWashington, D.C.: U.S. Dept. of Agriculture, Bureau of Forestry, 1905; Sugar maple ecology and health proceedings of an international symposium, June 2-4, 1998, Warren, Pennsylvania / edited by Stephen B. Horsley, Robert P. Long ; sponsored by USDA Forest Service, Northeastern Research Station ... [et al.]. Radnor, PA (5 Radnor Corp Ctr, Suite 200, Radnor 19087-4585) : The Station, [1999]

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na expansão da cultura e do aparecimento de novas variedades de cana, fruto da actividade de estações agrícolas experimentais, criadas em Mauritius (1840), Brasil (1860), Puerto Rico (1872). A cana crioula deu lugar uma variedade, como a otaheiti, bourbon, …8 O Açúcar pode muito bem ser considerado uma conquista do mudo islâmico e budista9, tal como o pão e o vinho o são do cristianismo. O factor religioso foi fundamental na afirmação e divulgação do produto, daqui resultará a cada vez maior afirmação a partir dos primeiros séculos da nossa era. A cana sacarina (saccharum officinarum) terá sido domesticada há cerca de 12.000 anos na Papua (Nova Guiné). Entre 1500 AC e 500 DC a cultura espalhou-se pela Polinésia e Melanésia, mas foi na Índia que adquiriu maior importância, expandindo-se entre o século I e VI DC. Foi aí que os europeus tomaram contacto com o produto e cultura, começando o comercio e depois com o transplante da cultura para os vales dos rios Tigre e Eufrates. Aqui, os árabes tiveram conhecimento da cultura e levaram-na consigo para o Egipto, Chipre, Sicília, Marrocos e Valência. Foi no culminar na expansão árabe no Ocidente que a Madeira serviu de trampolim da cultura para o Atlântico, situação que foi o início da fase mais importante da História do açúcar. O açúcar é, entre todos os produtos que no Ocidente se atribuiu valor comercial, o que foi alvo de maiores inovações no seu fabrico. Note-se que no caso do vinho a tecnologia pouco ou nada mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a necessidade de permanente actualização, situação que se tornou mais clara no século XVIII com a concorrência da beterraba. Mesmo assim ainda hoje persistem em alguns recantos do Mundo, na China, Índia ou Brasil, onde a tecnologia da revolução industrial ainda não entrou. O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose era mais elevada. A cana estava pronta para ser colhida e a partir daqui um dia que passasse era uma perda para o produto. Acresce que a cana depois de cortada tem pouco mais de 48 horas para ser moída e cozida, pois caso contrário começa a perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tecnológicas que cobrem o processo de corte esmagamento e cozedura. A isto junta-se o aumento da mão-de-obra, que se faz à custa de escravos africanos. A cana-de-açúcar não está na origem da escravidão africana mas no processo de afirmação a partir da Madeira. Enquanto a cultura se fazia em pequenas parcelas a maior parte das questões não se colocavam, mas quando se avançou para uma produção em larga escala houve necessidade de encontrar soluções capazes de debelar a situação. A viragem aconteceu a partir de meados do século XV na Madeira e deverá ter implicado mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escravatura dos indígenas das Canárias e dos negros da Costa da Guiné. É por isso que se assinala a partir da Madeira importantes inovações tecnológicas no sistema de moenda da cana com a genera8 . Cf. S. Pruthi, History of Sugar Industry in Índia, N. D. 1995, pp.99-126; W. Kelleher Storey, Science and Power in colonial Mauritius, Rochester, 1997, pp.5, 45, 71-151; Daniel Bégot, Le Sucre de l’Antiquité à son Destin antillais, Paais, 2000, pp.55, 58, 138; Dillewijn, C. van. Botany of sugarcane, Waltham, Mass.: Chronica Botanica, 1952; Stubbs, Wm. C. Sugar cane. A treatise on the history, botany and agriculture of sugar cane...[n.p., n.d.]; Zitkowski, Herman E. The seeding method of graining sugar, by H.E. Zitkowski ... Read at the tenth annual meeting of the American Institute of Chemical Engineers, Gorham and Berlin, N.H., June 19-22, 1918. [n.p., 1918] 9 . Sucheta Mazumbar, Sugar and Society in China, Londres, 1998, pp.21-27; Christian Daniels, Agro-Industries: Sugarcane Technology, in Joseph Needham, Science & Civilisation in China, vol. VI, part. III, Nova Iorque, 1996, pp-61-62, 278, 192

Trapiche horizontal, com esteira para deslizar a cana. Cuba, século XIX.

Trapiche hidráulico horizontal, Jean Baptiste Labat, 1722

Moenda de cilindros em triângulo. G. Spencer, 1945

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Engenho mecanizadode Rillieux: máquina a vapor, defecadora, evaporador horizontal, 1845

Evaporador horizontal Rillieux, Eduardo Paplante, 1856.

lização do sistema de cilindros. A história Tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de novas que contribuíram para revolucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico foram portadores de uma cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeirenses foi atribuída uma missão especial nos primórdios do processo. Na Madeira, um dos aspectos mais evidente, da revolução tecnológica iniciada no século XV prende-se com a capacidade do europeu em adaptar as técnicas de transformação conhecidas a circunstâncias e às exigências de culturas e produtos tão exigentes como a cana e o açúcar. O tributo foi evidente. Ao vinho foi-se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado estamos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de aproveitamento das diversas fontes de energia. A tracção animal, a força motriz do vento e da água foram usadas em simultâneo com os cereais e cana sacarina. Por vezes a mesma estrutura assume uma dupla função. Sucedeu assim na Madeira, com o engenho da Ribeira Brava, hoje Museu Etnográfico, onde a estrutura de aproveitamento da força motriz da água servia um engenho de cana e um moinho de cereais10. Também no Brasil, em Santa Amaro da Imperatriz, no Resort & Spa Plaza, fomos encontrar uma estrutura semelhante partilhada por um moenda de cana e um engenho de mandioca. Sabemos que neste município e vizinhos persistem outras mais estruturas idênticas em funcionamento, algumas delas usadas também para o arroz e o café. Já nas Antilhas podemos encontrar idêntica partilha com a força motriz do vento para a cana e os cereais. A dupla funcionalidade dos engenhos revela que no processo de evolução tecnológica estamos perante um processo de adaptação de fontes de energia e técnicas. A prensa que teve uma presença dominate no fabrico do vinho, acaba também por se associar ao azeite e depois à cana-de-açúcar. A mó, a conhecida como mó olearia, surgiu no fabrico do açúcar, mas o mundo açucareiro mediterrânicoadaptou-o à cana sacarina, chegando até à Madeira.Os cilindros começaram por ser usados na laminação de metais e no retirar dos caroços do algodão, passando depois para a moenda da cana. Até ao século XVIII torna-se difícil atribuir a paternidade das inovações que acontecem no fabrico do açúcar. Estamos perante inventores anónimos que apenas se comprazem pelos benefícios económicos da sua capacidade inventiva. Mas, a partir de então tudo parece ter mudado. O espírito nacionalista e independentista favoreceram a paternidade dos inventos. Os Estados Unidos da América foram o principal promotor desta politica e valorização da capacidade inventiva. As patentes sucedem-se em catadupa e os autores são heróis recebidos triunfalmente pela imprensa. O 10 . Jorge Valdemar Guerra, O Hospício Franciscano e a Capela de S. José da Ribeira Brava, in Islenha, nº.19, 1996, 61-94.

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inventor sai do anonimato e afirma-se como um herói na imprensa, como alimenta o ego através de memórias descritivas dos inventos11. É nos Estados unidos da América que encontramos o maior número de patentes, mas foi na Inglaterra e em França que surgiram as grandes fábricas de indústria pesada, especializadas em equipamentos e na montagem dos engenhos de açúcar12. As exposições universais da segunda metade da centúria oitocentista foram momentos privilegiados de exibição destes inventos. As mudanças ocorridas a partir de finais do século XVIII, com a plena afirmação da máquina a vapor, conduziram a uma transformação radical do complexo açucareira que assume a dimensão espacial de uma fábrica, onde todas as operações se executam em série apenas numa planta. A revolução industrial legou-nos a fábrica, fez aparecer o laboratório, uma peça chave no fabrico do açúcar, e obrigou a uma especialização dos técnicos envolvidos. O mestre de engenho dá lugar ao engenheiro químico. Paulatinamente o processo de transformação da cana sacarina em açúcar retirou espaço à presença de mão-de-obra escravo, fazendo-a substituir por emigrantes europeus, indianos e chineses. Note-se que no inventário industrial da Madeira de 1907 é assinalado apenas um químico na fábrica do Torreão, com o salário mais elevado de todos os técnicos. Mesmo superior aos engenheiros e cozedores, mantendo as demais 43 uma estrutura funcional da época préindustrial13. Até ao advento do açúcar de beterraba em princípios do século XIX a tecnologia de moenda e fabrico do açúcar não sofreu muitas modificações. Ao nível da moagem da cana houve necessidade de compatibilizar as estruturas com a expansão da área e o volume de cana moída, avançando-se assim dos ancestrais sistemas para a adaptação dos cilindros. Entre os séculos XV e XVII as inovações mais significativas ocorrem aqui. Os cilindros passam a dominar todos os sistemas, de tracção animal, humana, vento e água, destronando o pilão, o almofariz e a mó. Do simples mecanismo de cilindros duplos horizontais, evolui-se para os verticais, que no século XVII passam a ser de três, o que permite uma maior capacidade de moenda e aproveitamento do suco da cana. Com os dois cilindros poder-se-á aproveitar apenas 20% do suco da cana, enquanto com três até 35%. A

11 STEWART, j., A Description of a Machine or Invention to Grind Sugar-canes by the power of a fire Engine, Kingston, 1768; Basset, Nicholas, 1824- Guide pratique du fabricant de sucre: contenant l’étude théorique et technique des sucres de toute provenance, la saccharimétrie chimique et optique, la description et l’étude culturale des plantes saccharifères, les procédés usuels et manufacturiers de l’industrie sucrière et les moyens d’améliorer les diverses parties de la fabrication, avec de nombreuses figures intercalées dans le texte Paris: E. Lacroix, 1861. Bessemer, Henry, Sir, 1813-1898. Sir Henry Bessemer, F.R.S. An autobiography. With a concluding chapter. London, Offices of “Engineering,” 1905. Bessemer, Henry, Sir, 1813-1898. On a new system of manufacturing sugar from the cane: and its advantages as compared with the method generally used in the West Indies: also, some remarks on the best mode of insuring its general and simultaneous introduction into the British colonies London: Printed by W. Tyler, [1852?]Bessemer, Henry, Sir, 1813-1898. On a new system of manufacturing sugar from the cane: and its advantages as compared with the method generally used in the West Indies: also, some remarks on the best mode of insuring its general and simultaneous introduction into the British colonies London: Printed by W. Tyler, [1852?], BURGH. Nicholas Procter, A Treatise on Sugar Machinery: including the process of producing sugar from the cane, refining moist and loaf sugar, etc., E. & F. N. Spon: London, 1863. Bühler, Friedrich Adolf, 1869- Filters and filter presses for the separation of liquids and solids, from the German of F. A. Bühler, with additional matter relating to the theory of filtration and filtration in sugar factories and refineries, by John Joseph Eastick. London, N. Rodger, 1914. Tromp, Lucas Andreas, 1892- Machinery and equipment of the sugar cane factory; a textbook on machinery for the cane sugar industry, London, Eng., N. Rodger, 1936. 12 . Compagnie de Fives-Lille pour constructions Mécaniques et enterprises. Matériel de Sucrerie, Paris, 1878; John a. Heitmann, the Modernization of the Louisiana Sugar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, p.143 13 . Victorino José dos Santos, Relatorio dos Serviços da Secção Technicos de Industria no Funchal no anno de 1907, in Boletim do Trabalho Industrial, nº.24, 1909, p.19

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técnicas experimentadas na moenda vão no sentido e um maior aproveitamento do suco disponível no bagaço da cana. A situação de Cuba na década de setenta do século XIX pode ser elucidativa da realidade14.

TIPO DE MOENDA

FORÇA MOTRIZ DISPOSIÇÃO DOS CILINDROS

Moenda de animais Moenda de água e vento Moenda de vento Moenda a vapor Horizontais Verticais Prensas hidráulicas

PERCENTAGEM DE APROVEITAMENTO DO SUCO 58,5% 59,3 56,4 60,9 61,2 52,2 61,8

Uma maior capacidade na moenda implica maior disponibilidade de garapa a ser processada para se poder dispor do melado ou do açúcar. Uma situação empurra a outra conduzindo a soluções cada vez mais avançadas. As dificuldades com a obtenção de lenhas ou os elevados custos do transporte até ao local do engenho conduzem a soluções que paulatinamente vão sendo adoptadas por todos. Primeiro reaproveita-se o bagaço da cana e depois através de um mecanismo de fornalha única consegue-se alimentar as cinco caldeiras de cozimento. O sistema ficou conhecido por trem jamaicano, por, segundo alguns, ter tido aí origem, mas na verdade temos informação do seu uso, não tão apurado na Madeira e Canárias, no século XVI. Em 1530 Giulio Landi descreve o sistema de fabrico de açúcar com cinco caldeiras agrupadas. Jamaica esteve na frente das inovações da tecnologia açucareira a partir da segunda metade do século XVIII. São os ingleses que dão o passo definitivo para a mudança radical através da introdução da máquina a vapor. O primeiro engenho horizontal de tipo moderno foi desenhado em 1754 por John Smeaton na Jamaica, recebendo a partir de 1770 o impulso da máquina a vapor. A nova tecnologia, que se aperfeiçoou com o andar dos tempos, poderá acoplar até 18 cilindros em sistema de tambor, tornando mais rápida e útil a moenda. Com cinco cilindros o aproveitamento do suco pode ir até 90%, enquanto que com os tambores de 18 cilindros quase se atinge a exaustão com 98%. Por outro lado nos engenhos tradicionais a média de moenda por 24 horas não ultrapassava as 125 toneladas, enquanto que com o novo sistema a vapor começa por atingir mais de três mil toneladas de cana. Outro factor significativo da safra prendia-se com a velocidade a que o processo da moenda da cana deveria ocorrer, mais uma vez no sentido de se rtirar o maior rendimento da cana através da sacarose. A cana tem um momento ideal para ser moída e depois de cortada os prazos para a moenda são curtos, caso queira evitar-se a fermentação, que é sinónimo de perda de sacarose15. Nos

14 . João josé Carneiro da Silva, Estudos Agrícolas, Rio de Janeiro, 1872, p.94 15 .Cf. J. de Laguarrique d eSurvilliers, Manuel de Sucrerie de Cannes, Paris, 1932, pp. 29.

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avanços tecnológicos tem-se em conta esta corrida contra o tempo, criando-se mecanismos capazes de moer cana como maior rapidez16. Segue-se o processo de fabrico do açúcar que se distribui por quatro momentos: purificação da garapa, evaporação da água e, finalmente a clarificação e cristalização. Até aos inícios do século XIX o processo poderia durar de 50 a 60 dias, mas as aportações tecnológicas, conduziram a que o mesmo se passasse a fazer em apenas um mês em 1830 e apenas 16 horas em 1860, através do novo sistema de centrifugação. As primeiras mudanças ocorrem ao nível do processo de clarificação. Em 1805 Guillon, refinador do açúcar em New Orleans preconiza o uso do carvão para purga xarope, em 1812 Edward Charles Howard constrói a primeira caldeira de vacuum, conhecida como “howard saccharine evaporator”, que veio revolucionar o sistema de fabrico do açúcar. Três anos depois surge em Inglaterra o sistema de filtros de Taylor. O evaporador de múltiplo efeito foi inventado em 1830 por Norbert Rillius [18061894] de New Orleans, sendo usada nos primeiros engenhos desde 183417. Deste modo tornase mais fácil a retirada de cerca de 85% de água que existe no suco da cana e um maior aproveitamento do açúcar. As novidades na clarificação e cristalização ocorrem num segundo momento. Assim, em 1844 o alemão Schottler aplicou pela primeira vez a força centrífuga na separação do melaço do açúcar branco, mas foi Soyrig quem construiu em 1849 a primeira máquina

caldeira de vácuo. Fives-Lille, 1878

16 . Cf. Nilo Cairo, O Livro da Canna de Assucar, Curitiba, 1924, pp. 85-86, 109; A.Bernard, A Evolução das Moendas de Canas, Brasil Açucareiro, XXXVIII, 2, 1951, pp. 73, 76. 17 . Otto Kratz, The Robert Diffusion Process aplied to sugar-cane in Louisiana inthe Years 1873 and 1874. a Report to the President and Directors of the Julius Robert Diffusion Process Co, Nova Orleans, 1975; The Louisiana Planter and Sugar Manufacture, XIII, Nov. 24, 1894; George Mead, Negro Scientist of slavery Days, in Negro History Bulletin, Abril 1957, pp.159-163.

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Cristalizador fechado

Sistema de bombagem

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de centrifugação, que abriu o caminho para o fabrico do primeiro açúcar granulado, em 1859. Este sistema vinha sendo utilizado desde 1843 na indústria têxtil. Os equipamentos contribuíram para acelerar o processo de purga do açúcar permitindo que se passasse do moroso processo de quase dois meses para apenas 16 horas e hoje em apenas alguns segundos. A segunda metade do século XIX foi o momento da aposta definitiva na engenharia açucareira, contribuindo para importantes inovações18. O mercado ocidental foi inundado de açúcar de cana e beterraba. O desenvolvimento da indústria de construção de equipamentos para o fabrico de açúcar, seja de cana ou de beterraba, aconteceu em países onde esta assumia uma posição significativa na economia. Deste modo a França e a Inglaterra assumiram a posição pioneira no desenvolvimento da tecnologia açúcareira. À sua posição no início da indústria do açúcar de beterraba temos a colonial. Os Franceses detinham importantes colónias açucareiras nas Antilhas, enquanto os Alemãs apostavam forte em Java. Os ingleses surgem por força da colonial nas Antilhas e Índia e os Estados Unidos da América com New Orleans e, depois o Havai. Cuba foi um dos espaços açucareiros onde mais se inovou em termos tecnológicos. As primeiras décadas do século XIX foram de plena afirmação da ilha, que se transformou em modelo para a indústria açucareira. Em França tudo começou com o químico Charles Derosne (1779-1846) que montou em 1812 18 . C. Stammer, Traité complet théorique et Practique de la Fabrication du Sucre, guide du fabricant, Paris, 1876; James Stewart, Steam engineering on sugar plantations, steamships, and Locomotive engines, Nova York, 1867; IDEM, A Description of a Machine or Invention to Work Mills, by the Power of a fire-engine, but Particulary useful and Profitable in grinding Sugar-canes, Londres, 1767; Baeta Neves, Luiz M. 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uma fábrica de construção de aparelhos de destilação continua. Nesta empresa passou a trabalhar em 1824 J. F. Cail na qualidade de operário de carvão, que em 4 de Março de 1836 passa à condição de associado. A sociedade Derosne et Cail19 manteve-se até 1850, altura em que passou a chamar-se J. F. Cail et Cie, que em 1861 passou a cooperar com a nova Cie Fives-Lille, especializada no fa19 . Avis de M. Richemond ingénieur - arbitre - rapporteur sur les divers chefs de contestation existant entre MM. Grieninger et Bachoux et MM. Cail et Cie extrait textuellement du rapport de M. l’arbitre, 31 octobre 1867, Paris, impr. de Renou et Maulde: 1869; Cail et Cie: Mesures proposées au Gouvernement pour changer la situation de nos colonies des Antilles, Paris 1860; Cail, F. et C.Derosne: Examen des divers procédés de fabrication de sucre et motifs déterminant de la préférence à accorder aux appareils dans le vide à double effet pour l’application aux colonies. 1843; Cail, F. et C. Derosne: Note sur les avantages à retirer de l’introduction des sucres bruts à un droit modéré, uniforme quelle que soit leur nuance, 1842; Cail, J. F., une réussite exceptionnelle Poitiers, Le Picton: 1984; Cail, J.F. et C. Derosne: De la fabrication des sucres aux colonies et des nouveaux appareils propres à méliorer cette fabrication.1843; Cail, J.F. et C.Derosne: Mémoire sur les usines centrales à la Guadeloupe,1843; Cail, JeanFrançois, Description de l’appareil d’évaporation à triple effet propre à toutes les grandes évaporations de liquides salins et autres, spécialement utilisable dans les fabriques et raffineries de sucre... (Par J.-F. Cail et Cie.) Paris, impr. de Guiraudet et Jouaust: 1852; -Exploitation agricole des plants appartenant à M. J.-F. Cail. Mémoire pour concourir à la prime d’honneur du département de la Charente en 1868, Paris, librairie agricole de la Maison rustique: (1867); —(Circulaire adressée aux fabricants de sucre par A. Périer, L. Possoz et J.-F. Cail et Cie au sujet de leurs procédés d’épuration du jus de betterave.) Paris, impr. de J. Bonaventure: 1868; -A S. E. M. le ministre de l’Agriculture et du Commerce, Paris. (Lettre de J.-F. Cail et Cie, au sujet du décret du 10 janvier 1870, relativement à l’importation jusque dans les usines des matières destinées aux travaux pour l’étranger.) (Paris,), impr. de Haristéguy: (1870) -Tribunal civil de la Seine... Pour la société anonyme des anciens établissements Cail contre les liquidateurs de la Société Cail et Cie. (29 Février 1884.), Paris, imp. de Chaix: 1884; -Notice sur les machines et appareils des établissements Derosne et Cail... figurant à l’exposition universelle de 1865, Paris, imp. de Guiraudet et Jouaust: 1855; Chaussenot, B., Notice sur le calorifère à air chaud, inventé par B. Chaussenot... construit exclusivement par Ch. Derosne et Cail,... (Paris,), impr. de L. Bouchard-Huzard: (1841); Cheilus, L., Discours prononcé par M. L. Cheilus au banquet offert par lui, le 6 janvier 1856, aux gérants et chefs des différents services des établissements Derosne et Cail, Paris, Impr. de Rival: (s. d.,); Conclusions pour la Société anonyme des anciens établissements Cail contre la société de la sucrerie de Pithiviers-le-vieil, Paris, imp. de Chaix: 1893; Debonne, Michel: Jean-François Cail à Grenelle (1844 – 1871) et Histoire de la société Cail. Bulletin de la Société historique et archéologique du XVe arrondissement de Paris, n° 13 et 14, 1999; Derosne, Charles, Tableaux divers sur la densité des jus et des sirops, la quantité de sucre pur contenue dans les solutions sucrées... Extrait de la publication sur la Fabrication du sucre, par MM. Ch. Derosne et Cail,... Paris, impr. de Ve Bouchard-Huzard: (s. d.); -Tableau comparatif de divers brevets fondés sur la condensation par évaporation, montrant les emprunts faits par le brevet Reybaud, du 2 novembre 1833, à ceux antérieurement délivrés. [Signé: Ch. Derosne et Cail. 12 avril 1847.] (Paris,), impr. de Ducessois: (1847.); - Notice sur la machine à vapeur à rotule inventée par M. Ch. Faivre... construite... par MM. Ch. Derosne et Cail... impr. de L. Bouchard-Huzard, Paris, 1839, -De la Fabrication du sucre aux colonies, et des nouveaux appareils propres à améliorer cette fabrication, par MM. Ch. Derosne et Cail,... 2e partie, 2e section. 2e édition... avec un appendice sur la fabrication des sucres de sirops, sur la comparaison des divers systèmes d’appareils qui peuvent être proposés aux colonies, Paris, impr. de Vve Bouchard-Huzard: 1844; Dolabaratz: Rapport à M. Cail et Cie sur sa mission à l’île de la Réunion, octobre 1873; Du Rieux, P. Notice historique sur les filtres-presses, réponse à MM. A. Périer, L. Possoz, J.-F. Cail et Cie adressée à MM. les fabricants de sucre par P. Du Rieux et Cie... Lille, impr. de Mme Bayard: 1866; Dureau, Jean-Baptiste, Jean-François, Cail, sa vie et ses travaux, Paris, Gauthier-Villars: 1872;Dureau: J.F.,Cail, sa vie et ses travaux, Paris, Gauthier Villars, 1872; Etablissements Derosne et Cail... Notice sur les objets admis à l’exposition universelle de 1878, Paris, imp. de A. Chaix: 1878; Fabrication du sucre. Epuration et décoloration des jus sucrés par carbonation multiple. Précédés Périer, Possoz, Cail et Cie. Instance en contre-façon contre MM. Maumené et Théry, Paris, impr. J. Bonaventure: 1867; Griéninger, Note pour MM. Bachoux et Griéninger [fabricants de sucre à Francières (Oise)] contre MM. Cail et Compagnie [constructeurs-mécaniciens à Paris]... Paris, impr. Dubuisson, [1867]. La Mécanique pratique. Guide du mécanicien. Procédés de travail. Explication méthodique de tout ce qui se voit et se fait en mécanique, par Eugène Dejonc, ancien chef d’atelier de l’Ecole des arts et des mines, contremaître des Maisons Cail, Bréguet, etc. Revue et corrigée par M. C. Codron, ingénieur, professeur à l’Institut industriel du Nord, lauréat de l’Académie des sciences. 6e édition augmentée, par René Champly, ingénieur-mécanicien. 755 gravures dans le texte Orléans, impr. H. Tessier, Paris, libr. Desforges, 29, quai des Grands-Augustins: 1924; La Vérité biographique. J.-F. Cail, . (Signé: Louis Clot.) Paris, Impr. de Moquet: (1857); Lantrac, E., Notice sur la vie et les travaux de M. Félix Moreaux, ancien ingénieur en chef de la Société en participation J.-F. Cail et Cie et compagnie de Fives-Lille... : par M. E. Lantrac,... Impr. de Chaix, Paris, 1890; Mémoire pour M. Degrand, contre MM. Ch. Derosne et Cail [qui n’avaient pas respecté dans leurs ventes à l’étranger les clauses du contrat conclu après un procès en contrefaçon de 1834, pour leur laisser fabriquer un condensateur destiné aux sucreries, dont il était l’inventeur, Paris, E. P. E. : [1983]; Note pour MM. Bachoux et Griéninger [fabricants de sucre à Francières (Oise)] contre MM. Cail et Compagnie [constructeurs-mécaniciens à Paris]. Demande en payement de 83, 446 fr. 20 c. à titre de dommages-intérêts pour retard dans la livraison et le montage d’appareils destinés à la fabrication du sucre. [Suivi de:] Conclusions pour MM. Bachoux et Griéninger contre MM. Cail et Compagnie, Paris, impr. Dubuisson : [1867]; Note pour MM. J.-F. Cail et Cie contre M. Allier [, relative à l’enlèvement du matériel de l’ancienne distillerie de betteraves de Petit-Bourg, aux frais de constructions de la nouvelle et aux appointements et notes de frais du directeur, jugés excessifs], S. l., S. n.: 1855; Notice sur la Briche, propriété de M.J.F.Cail à l’occasion de l’exposition universelle de 1867; Librairie agricole de la Maison Rustique, 1867; Payen, Anselme, Société d’encouragement pour l’industrie nationale.... Rapport fait par M. Payen... sur l’appareil de MM. Rolhfs et Seyrig pour l’égouttage et le clairçage des sucres... construit dans l’établissement de MM. Derosne et Cail. Paris, impr. de Vve Bouchard-Huzard: (1851); Possoz, Louis, Participation Périer, Possoz et J.-F. Cail et Cie. Procédés brevetés pour l’épuration des jus de betterave, Paris, impr. de Jouaust et fils: 1863; Proust, Raymond: Le célèbre constructeur mécanicien J.F.Cail, Imprimerie Romain, Chef-Boutonne.1990; Proust, Raymond, [Un ]constructeur mécanicien, Jean-François Cail (1804-1871) Chef-Boutonne, Chassebray-Moncontié: 1955

Caldeira de vácuo. Sistema Derosne

Grupo de 4 centrifugadores, com “malaxeur”. Sistema Weston

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Aparelho de quádruplo-efeito. Sistema Muller

brico de equipamentos para fábricas de açúcar e caminhos-de-ferro20. Os equipamentos, saídos da empresa Cail, chegaram às colónias holandesas, espanholas, inglesas e francesas, México, Rússia, Áustria, Holanda, Bélgica e Egipto. À indústria francesa juntaram-se outros complexos industriais na Europa: Inglaterra (Glasgow, Birmingham, Nottingham, London, Manchester, Derby), Holanda (Breda, Roterdão, Schiedam, Ultrecht, Delft, Hengelo, Amsterdam), Estados Unidos da América (Oil City, Ohio, Denver, New Jersey), Alemanha (Magdeburgo, Zweibruecken, Halle, Dusseldorf, Sangerhausen, Ratingen, Halle), Bélgica (Bruxelas, Tirlemont). Na Inglaterra foi desde meados do século XVII um dos mais importantes centros de refinação de açúcar na Europa. As refinarias proliferam nas cidades de Bristol, Essex, Greenock, Lancaster, Liverpool e Southampton21. Isto justifica o desenvolvimento tecnológico. Aqui, merece destaque a iniciativa de Mirless Watson22. A abertura às inovações tecnológicas, como forma de tornar concorrencial o produto, acarreta algumas consequências para a indústria ao nível nacional. Os investimentos são vultuosos e, por isso mesmo só se tornam possíveis mediante incentivos do Estado. A inovação e recuperação da capacidade concorrencial só se tornaram possível à custa da concentração. Tanto em Cuba como no Brasil a década de oitenta foi marcada pelos grandes engenhos centrais23. A concorrência do açúcar é cada vez mais evidente obrigando as autoridades nacionais a intervir no sentido da defesa das suas culturas e indústrias. A política proteccionista iniciada pelos

20 . Compagnie de Fives-Lille pour constructions Mécaniques et Entreprises. Matériel du sucrerie, Paris, 1878, Reedição Granada, 1999; Vincens, E. Compagnie générale d’électro-chimie.... Rapport du commissaire vérificateur des apports, sur les apports faits à la Société par la Compagnie de Fives-Lille pour constructions mécaniques et entreprises. [Signé: E. Vincens.]; —Rapport du commissaire vérificateur des apports, sur les apports faits à la Société par la Compagnie de Fives-Lille pour constructions mécaniques et entreprises. [Signé: E. Vincens.] (Paris,), impr. de Chaix: 1898; Godefroy, H.-C. Notice explicative sur les tableaux photographiques représentant les usines de Fives-Lille, Paris, impr. de Vves Renou, Maulde et Cock: 1876 21 . John M. Hutcheson, notes on the Sugar Industry of the United Kingdon, Greenock, 1901; Frank Lewis, Essex and sugar, 1976. 22 . STEWART, j., A Description of a Machine or Invention to Grind Sugar-canes by the power of a fire Engine, Kingston, 1768. IDEM, Steam engineering on sugar plantations, steamships, and locomotive engines, New York, Russell’s American Steam Printing House, 1867. Watson, Laidlaw & Co., Engineers, millwrights and machine makers. specialities machinery for the treatment of sugar after boiling ... etc., etc.Watson, Laidlaw & Co.[1892]. 23 . José Curbelo, Proyecto para fomenter y Poner en Estado de Producción seis Ingenios Centrales com alambiques, Havana, 1882; Andrade, Bonifacio.Do bangue a usina em Pernambuco, Recife (PE): UFPE, PIMES, 1975; Andrade, Manuel Correia de Oliveira. Historia das usinas de açucar de Pernambuco, Recife: Fundaçao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, em co-edição com o Ministerio da Ciencia e Tecnologia-CNPq/Comissão de Eventos Historicos, 1989. Arquivo Nacional (Brazil) Engenhos centrais: catálogo de documentos, 1881-1906 / Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, Divisão de Pesquisas e Atividades Técnicas, Seção de Estudos e Pesquisas. Rio de Janeiro: O Arquivo, 1979. Avestruz, Fred S., 1948- Risk and technology choice in developing countries: the case of Philippine sugar factories. Lanham: University Press of America, c1985. Peres, Gaspar. A industria assucareira em Pernambuco, Recife: Imp. Industrial, 1915.—A industria assucareira em Pernambuco / [Gaspar Peres, Apollonio Peres; apresentação, Manuel Correia de Andrade]. [Recife] FUNDARPE, Secretaria de Educação, Cultura e Esportes, Sistema de Bibliotecas Públicas e Documentação, [1991]— A República das Usinas R. J., Ed. Paz e Terra, 1978; Perruci, Gadiel, 1937- A república das usinas: um estudo de história social e econômica do Nordeste, 1889-1930 / Gadiel Perruci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, c1977. SOUZA, Jonas Soares de O Engenho Central de Porto Feliz. Uma empresa pioneira em São Paulo Leis, etc.][organizado por] Jonas Soares de Souza São Paulo: Museu Paulista, [1978?].

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Estados Unidos da América alastrou a todo o mundo açucareiro24. Se o século XIX foi o momento da aposta na tecnologia a centúria seguinte será marcada pela política açucareira. Ao nível internacional reúne-se uma convenção em Bruxelas, em 1902 e 1929, no sentido de limitar o apoio financeiro do estado e medidas de defesa e proteccionistas dos diversos estados produtores de cana e açúcar. Entretanto em 1937 a Sugar Organization procura estabilizar o mercado através do estabelecimento de cotas que acabaram em 1977. Desde a década de setenta persiste o enfrentamento entre o comércio livre e a politica proteccionista dos estados.

Cana. G. Beaudet, 1894

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CRONOLOGIA 9000-8000 AC 8000 AC 6000 AC 3600 AC 3000 AC 2500 AC 2000 AC 1500 AC 1000 AC 700 AC 600 AC 510 AC 500 AC 375 AC 325 AC 300 AC 200 AC 600 DC

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Domesticação da cana na Papua Nova Guiné Introdução em Bengala Descoberta da Sacharum Robustum na Ásia Primeira referência ao sistema de destilação, usado na perfumaria. Domesticação do sorghum na Etiópia saccharum officinarum na Papua Nova Guiné A cultura da cana sacarina faz de forma intensiva na Índia Expansão da cultura na Polinésia e Melanésia Índia, saccharum berberi Difusão da saccharum officinarum na Ásia Introdução da cana nas ilhas do Hawaii, por emigrantes do Pacífico sul Descoberta da cana pelos Persas Fabrico de açúcar na Índia Primeira referência ao açúcar branco O general macedónio Nearchus da campanha de Alexandre o Grande na Ásia refere o açúcar de cana A cana é usada na alimentação na Índia Cultivo da cana no Sul da China As árabes descobrem o açúcar na Pérsia e iniciam a divulgação no Mediterrâneo: 640 - Síria; 644 - Chipre, 650 - Palestina; 655 - Sicília; 682 - Marrocos; 710 - Egipto;

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1000 1285 1319 1425

1456 1470 1484 1509 1532 1533 1640 1651 1700 1751 1765 1768 1780 1788 1791

1798 1794 1805

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714-Al-Andalous; 823- Creta; 870- Malta. O açúcar é uma das mercadorias mais importantes do comércio do Mediterrâneo Marco Pólo refere o fabrico de açúcar na China, Índia e África Oriental. Primeira referência à importação de açúcar em Inglaterra Expansão da cana-de-açúcar ao Atlântico, a partir da Madeira: 1474: Açores, 1483- Canárias, 1484-S. Tomé, 1498: Cabo Verde Primeira referência ao açúcar da Madeira em Bristol Estabelecimento de refinarias em Veneza, Antuérpia e Bolonha Primeira experiência da cultura da cana-de-açúcar em S. Tomé Primeiras plantações de cana-de-açúcar no Brasil Martim Afonso de Sousa leva cana e mestres de engenho da Madeira para S. Vicente (Brasil) Fundação do engenho do Governador em S. Vicente, o primeiro construído no Brasil. Início do cultivo da cana-de-açúcar em Barbados Primeira plantação de cana-de-açúcar em Suriname por Lord Willoughby Invenção do trem jamaicano Introdução da cana-de-açúcar em Louisiana Início da cultura da cana-de-açúcar em St Lúcia Primeira máquina a vapor na Jamaica Cuba adopta o trem francês Introdução da cana-de-açúcar em Cape Colony na Austrália, sendo Thomas Scott quem iniciou a indústria O químico russo, Lowitz, demonstra as propriedades depurativas do carvão, que passará a ser usado na purga do açúcar. O engenheiro Estebam La Faye fabrica a primeira moenda a vapor em Cuba Utilização de caldeiras clarificadoras para eliminar as impurezas John Collinge apresenta inovação do engenho horizontal de três cilindros Início da fabricação em série da moenda a vapor, na Inglaterra Guillon, refinador do açúcar em Orleans preconiza o uso do carvão para purga

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1812

1815 1820 1829 1830 1833 1837 1843 1844 1849 1855 1859 1860 1861 1865

1870 1871 1879 1890 1937 1965

xarope Edward Charles Howard constrói a primeira caldeira de vacuum, patenteado no ano seguinte este método de evaporação O químico Charles Derosne cria a primeira fábrica de açúcar a carvão em Cahillot Em Inglaterra, Taylor estabelecem um sistema de filtros Primeira máquina a vapor no Brasil, de Watt & Boulton Afirmação da máquina a vapor de Fawcett Construção da primeira caldeira a vapor no Brasil, pela Fundição Aurora Norbert Rillius de N. Orleans descobriu a caldeira de vacuum, surgindo os primeiros engenhos desde 1845 Início do uso da máquina a vapor na refinação do açúcar em Cuba Inglês Penzoldt constrói o primeiro aparelho de centrifugação, que em 1843 passou a ser usada na purga do açúcar Norbert Rillieux [1806-1894] introduz na Louisiana o sistema de evaporação de múltiplo efeito. O alemão Schottler aplicou pela primeira vez a força centrífuga na separação do melaço do açúcar branco. Início do uso da turbina na indústria açucareira Construção da primeira máquina de centrifugação por Soyrig Utilização da máquina de vacuum na cristalização do açúcar Primeira fabricação de açúcar branco granulado. Primeira máquina de centrifugação para purificar o açúcar Fundação da Companhia Fives-Lille, especializada no fabrico de equipamentos para as fábricas de açúcar Taylor e Martineau constroem na Inglaterra um aparelho onde a evaporação se fazia com a ajuda do vapor de água a alta pressão, passando as serpentinas no meio do xarope. Instalação da primeira caldeira de vacuum em Pernambuco. Théophile Rousselot, engenheiro na Martinica estabelece o mecanismo do engenho de três cilindros. Constantine Fahlberg regista a patente da sacarina O pão de açúcar cede definitivamente o lugar ao açúcar granulado Michael Sveda descobre a cyclamate James Shlatter Descobre o aspartame

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BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL A bibliografia sobre a temática é vasta. Desde o século XVIII que se sucedem inúmeros estudos que procura aclara a História das culturas da cana sacarina e beterraba, das tecnologias usadas e dos novos processos de transformação do fabrico trazidos pela Química. A incidência desta produção literária tem a ver com o empenho de cada país ou império na produção e comércio de açúcar. É em língua inglesa que encontramos o maior número de publicações, mas também não é desprezível o número no idioma alemão e francês. A maior parte dos que escrevem sobre o tema, mesmo sobre a História, estão de uma forma ou de outra, emnvolvidos profissionalmente com a cultura e industria. É no campo da Engenharia Química e da Agronomia que encontramos o maior número de estudiosos e de estudos. No domínio da História sobressaem dois autrores, como cçássicos da abordagem da matéria. Edmond von Lippmann, químico alemão publicou em 1890 a sua História, que teve várias edições (1929, 1934, 1938) e uma tradução no Brasil (1941-42). Noel Derr ficou conhecido pela “History of Sugar”, publicada em 1949-50, mas não devrá esquecer-se os contributos no âmbito da química e tecnologia. Para períodos mais recentes temos o texto de J. H. Galloway (1989) e os encontros de Motril desde 1992 e do Funchal a partir de 2000, que culminou em 1993 com a criação da Associação Internacional de História e Civilização do Açúcar, com sede no Funchal. O acervo bibliográfico da História da cultura e fabrico do produto é o que assume menor dimensão no conjunto da bilbiografia existente. Maior incidência foi dada a partir de meados do século XIX às questões que se prendem com a Agronomia, Tecnologia e Química. É nos dois últimos domínios que a profusão de estudos surge, tendo como factor dinamiador a beterraba. Foi o uso da nova cultura para o fabrico do açúcar que eu o arranque definitivo para os estudos e avanços tecnológicos e químicos.

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Carta e desenhos de João Higino Ferraz

A Historiografia e a questão açucareira na Madeira 1. Fase séculos XV a XVIII As grandes questões deste período prendem-se com a importância da Madeira com a expansão dos canaviais no espaço atlântico e da afirmação do açúcar no mercado europeu. Durante muito tempo o estudo que teve maior visibilidade internacional foi o de Virgínia Rau e Borges Macedo sobre o livro dos estimos de 1494, em que a abordagem fundamental é sobre a questão da propriedade. A este podemos juntar os textos de Fernando Jasmins Pereira, que como Carlos Montenegro Miguel, Joel Serrão, Ernesto Gonçalves, não tiveram muito divulgação. A incidência temática foi quase só nos aspectos relacionados com o sistema de propriedade e o comércio do açúcar no mercado europeu, ficando esquecidos aspectos fundamentais como a tecnologia dos engenhos e fabrico do açúcar. Nos últimos decénios do século XX, por força da realização de colóquios e da existência de revistas, a temática açucareira voltou a motivar de novo o interesse dos estudiosos. Aqui é de assinalar os estudos de David Ferreira Gouveia, que equaciona alguma problemática de forma inovadora. BRAGA, Paulo Drumond, “O açúcar da ilha da Madeira e o mosteiro de Guadalupe”, in Islenha,

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Desenhos de João Higino Ferraz

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Desenho de João Higino Ferraz

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2. fase. Séculos XIX- XX O segundo momento de retorno da cultura foi marcado pela polémica em torno da chamada “questão Hinton”. A política de proteccionismo sacarino (1895-1914) conduziu ao quase monopólio da indústria açucareira na fábrica do Hinton, a única que até 1986, altura do encerramento fabricou açúcar.

Carta e desenhos de João Higino Ferraz

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Rocha, Francisco Canais, Perfeito de Carvalho contra o monopólio Hinton, História, nº.144, 1991, pp.49-61 RODRIGUES, José Agostinho. As questões vinícola e sacarina da Madeira e os decretos n.°’ 13.990, 14.167 e 14.168 respectivamente de 23 de Julho e 25 de Agosto 1927. Como foram e como devem ser resolvidas estas questões a bem dos superiores e dos legítimos interesses do Arquipélago da Madeira por José Agostinho Rodrigues Coronel-Médico. Lisboa: Tip. Portugal, 1928. SILVA, F. A., “Hinton, questão”, in Elucidario Madeirense, vol. II, pp. 117-118 SILVEIRA, José Marciliano da. A Companhia Fabril de Assucar Madeirense os seus credores o •Athleta• e o Snr. Dr. João da Camara Leme. Por J. M. S.. Funchal: Typ. da Voz do Povo, 1879. TRINDADE E VASCONCELLOS, Joaquim Ricardo da. Resposta aos Fundamentes do Recurso Interposto perante o Conselho de Estado por S. Majestade a Imperatriz D. Arrelia e outros do despacho pelo qual o governador civil concedeo licença para a fundação duma fabrica de assucar e de distiliação d’aguardente na Cidade cio Funchal. Pelo Recorrido o Bacharel Joaquim Ricardo de Trindade e Vasconcellos. Funchal: Imprensa da Revista Judicial, 1867.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Copiador de cartas, 1905-1913, 69 fls. Copiador de cartas,, 1917-19, 100fls Copiador de cartas,1919-1920, 49 fls Copiador de cartas, 1927-1929, s.n., Agenda Portuguesa. 1928 e 1929(notas diárias da actividade) Copiador de cartas,1929-1930, s.n., Copiador de cartas , 1930-1936, sem numeração

Publicação de documentos: Costa, José Pereira da e Fernando Jasmins Pereira, Livros de Contas da Ilha da Madeira. 15041537. I- Almoxarifados e Alfândegas, Coimbra, 1985 - Livros de Contas da Ilha da Madeira. 1504-1537.II. Registo da Produção de Açúcar, Funchal, 1989 Melo, Luís Francisco de Sousa,Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal. 1ª parte, in Arquivo Histórico da Madeira, vols. XV-XVIII, Funchal, 1972-1974 IDEM, Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do Funchal. 2ª parte, in Arquivo Histórico da Madeira, vols. XIX, Funchal, 1990

DOCUMENTAÇÃO FUNDAMENTAL A documentação disponível sobre a temática dos engenhos e açúcar não correesponde à dimensão que assumiram na História do arquipélago. A docuemntação empresarial paree que se perdeu. Até mesmo do engenho do Torreão ignora-se o paradeiro do acervo documental, tão importante para a História contemporânea da Madeira. Felizmentetivemos oportunidade de ter acesso ao arquivo particular de João Higino Ferraz, um homem que teve uma vida inteira dedicada à indústria e que foi o gerente técnico do engenho do Hinton. A correspondência e cadernos de apontamentos são fundamentais para compreender a história do engenho, como da evolução da tecnologia, através das múltiplas experiências no campo da química e da mecânica. A sua importância obriga-nos a pensar para breve na sua publicação.

Livro de Armazém. Conhecimentos úteis do assucar e melaço,…, Desenhos de João Higino Ferraz

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1875/-, 58 fls Copiador de cartas,1898-1905, 200fls Livro de notas sobre a fabricação dassucar e álcool e tabellas de cálculos de João Higino Ferraz, 1903-1910, 207fls.

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Mitos e teses da história do açúcar A cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (vinha, cereais), não se resumiu apenas à intervenção no processo económico. Ela foi marcada por evidentes especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dela se serviu para firmar a sua dimensão económica. A importância a que o sector comercial lhe atribuía conduziu a que fosse uma cultura dominadora de todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os contornos de uma nova realidade social. Foi precisamente esta tendência envolvente que levou a Historiografia a definir o período da afirmação como o Ciclo do Açúcar. Aqui não estávamos perante uma aplicação da teoria dos ciclos económicos, mas pretendia-se subordinar esta tendência para a afirmação da cultura na vida económica e social com o conceito. A omnipresença da cultura, as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada levou alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. Tudo começou em 1929 com Lúcio de Azevedo e foi reforçado em 1933 por Fernand Braudel25 que pretendeu definir para as ilhas dos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias, a que chamou de Mediterrâneo Atlântico. Ainda, em 1949 Orlando Ribeiro esclarecia, que no caso da Madeira não é possível encontrar rastros de monocultura no regime de exploração agrícola madeirense, mesmo assim Joel Serrão insistiu em 1950 em definir o “ciclo dos cereais”. Todavia a mesma teve eco negativo na Península Ibérica, surgindo Orlando Ribeiro26 e Elias Serra Rafols27 a refutar tal hipótese na análise do devir económico, respectivamente, da Madeira e Canárias. Mais tarde os estudos de F. Mauro28 e V. M. Godinho29 reafirmavam a oposição e conduziram a uma nova e diversa visão da estrutura económica: ao regime de monocultura sobrepõe-se ao de produtos dominantes. Deste modo o Ciclo do Açúcar resultava, não da exclusiva afirmação da cultura, mas da dominância, capaz de atribuir uma redobrada atenção no sistema de trocas30. Na Madeira a ideia vingou junto de historiadores e eruditos. Assim, ficou assente o ciclo dos cereais, do açúcar ou ouro branco, do vinho, do turismo, banana e, certamente o da autonomia. 25 La Mediterranée et le Monde Mediterranéen (...), vol. I, Paris, 1949, p. 123. 26 . L’ile de Madère (...), Lisboa, 1949, p. 67. 27 . “El Gofio Nuestro de cada Dia”, in Estudios Canarios, XIV-XV, 1969-70, pp. 97-99. 28 . Le Portugal et l’Atlantique au XVIéme siècle, Paris, 1960, p. 231. 29 . “A Divisão da História de Portugal em Períodos”, in Ensaios II, 1978, pp. 12-14. 30 . F. Mauro, “Conjoncture Économique et Structure Sociale en Amérique Latine depuis l’Époque Coloniale”, in Hommage à Ernest Labrousse, Paris, 1974, pp. 238-240.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Finalmente em 1979 esta forma de ver chegou à análise da História de Arte e urbanismo da cidade, surgindo pela pena de António Aragão a ideia de que a cidade teve dois momentos distintos que definiram diversas formas de concretização artística e urbanística: a cidade do açúcar e a cidade do vinho31. O impacto que o texto teve no meio académico e público interessado conduziu levou a que a ideia, ainda que sem fundamento qualquer, acabasse por se afirmar. Uma análise aturada da economia insular diz-nos que a mesma não se regeu por princípios exclusivistas, de acordo com a premência das solicitações externas. Antes pelo contrário, o desenvolvimento socio-económico processou-se de forma variada, sendo a exploração económica dominada por estes vectores dominadores, que acrescem as condições e recursos do meio com as solicitações da economia de subsistência. É difícil, senão impossível, conseguir definir um ciclo em que impere a monocultura de exportação, num espaço amplo e multifacetado como é o do mundo insular. Alguns dados avulsos referentes à tributação interna e por exportação evidenciam uma realidade distinta daquela que se pretende afirmar. Na verdade, estamos perante produtos dominantes e não exclusivos. Uma breve análise dos rendimentos dos direitos reais para o período de 1581-1586 evidencia, em termos do sector produtivo, apenas a dominância de produtos32. ANOS 1581 1582 1583 1584 1585 1586

QUINTOS Reais 12.683$657 11.114$668 10.560$681 12.909$140 9.702$517 9.479$391

% 46 45 44 47 49 50

DÍZIMAS Reais 9.576$953 8.073$953 8.141$428 9.574$232 4.923$644 5.128$164

% 35 33 34 34 25 27

MIUNÇAS Reais 5.179$191 5.326$690 5.262$100 5.252$309 5.227$059 4.296$869

TOTAL % 19 22 22 19 26 23

27.439$801 24.515$311 23.964$200 27.735$681 19.853$220 18.994$424

O quadro altera-se quando encaramos os valores referentes à dizima de exportação, onde a posição hegemónica, mas não exclusiva, do açúcar se consolida. Anos 1581 1582 1583 1584 1585 1586

Açúcar $ 5.928$131 5.897$116 5.863$345 5.855$236 3.459$344 3.493$511

% 62 73 86 90 86 88

Vinho, remeis e frutos $ % 48$504 0,5 82$379 1 102$000 1,5 74$295 1,1 41$149 1 29$686 0,8

Total $ 9.576$953 8.073$953 6.931$405 6.517$174 4.021$980 3.968$347

31 . Para a História do Funchal. Pequenos Passos da sua Memória, Funchal, 1979. 32 . Joel Serrão, Temas Históricos Madeirenses, Funchal, CEHA, 1992, pp.77-102; Susana Miranda, A Fazenda Real na Ilha da Madeira. Segunda Metade do Século XVI, Funchal, CEHA, 1994, p.160.

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A mesma situação poderá ser evidenciada quando somos confrontados com as cartas de quitação dos Almoxarifes para a segunda metade do século XVII33. ALMOXARIFE

DATA

Cristóvão Faria Cristóvão Valente

1620-24 1645 1652-54 1656-58 Luís Soares Pais 1660-62 Luís Soares Pais 1670-72 Manuel Soares Pais 1677-79

TOTAL

AÇÚCAR

49.264$261 12.738$951 39.292$894 40.532$298 49.546$497 70.178$733 62.389$244

VINHO

Arrobas

Arráteis

52.266 469 3.649 2.390 702 1256 351

261/2 28 ? 21 19 12 24 ? 9?

TRIGO

Pipas Almudes Canadas

791 338 1035 1.035 1.038 ? 1039 ? 1340 ?

9

3

21 21

11 11

1

Moios

Alqueires

141 274 819 814 810 822 941

32 45 15 45 45 3

Para os anos de 1670-167134 temos os dados diferenciados dos diversos produtos: Produto

1670

1671 REAIS

Vinho (PIPAS) Açúcar (ARROBAS) Trigo (MOIOS) Frangos Cabritos Cevada (MOIOS) TOTAL

346 ? 3629 274 12 12

1672 REAIS

346 ? 423 274 12 12 5 21.088$434

REAIS 346 ? 470 274 12 12 5

22.977$937

25.412$362

Os modelos, embora perfeitamente delineados, não se ajustam à realidade socio-económica, que é variada e enriquecida de múltiplas matizes. Embora alguns produtos, como o trigo, o açúcar, o vinho e o pastel, surjam em épocas e ilhas diferenciadas, como os mais importantes e definidores das trocas externas, não são os únicos na economia insular. Na verdade, a dominância sucede apenas no sector da exportação e nunca na realidade global da ilha, onde por vezes é mais evidente a afirmação de outros, como fonte de riqueza familiar e de subsistência. Os ciclos de monocultura são apenas a parte visível das exportações e reduzir a análise económica a isso é uma atitude reducionista uma vez que apenas se limita a reconhecer a importância dos produtos com maior peso nas exportações. A ilha é um microcosmo definido pela variedade de espaços ecológicos que não se compadecem com uma unicidade agrícola. Esta condição dominante levou a uma sistematização do devir socio-económico em ciclos, que se demarca com uma ilusão óptica da complexa realidade que serve de base. Assim, o produto passou a definir a estrutura socio-económica, num determinado momento, esquecendo-se que essa mesma e muito complexa 33 . ANTT, PJRFF, nºs. 396, 965ª, 966, 34 . ANTT, PJRFF, nº.966, fl.5, 24 de Dezembro de 1675

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nos sectores produtivo e comercial. A documentação é unânime na afirmação de que o empenho do ilhéu não se resume apenas ao produto que mais gira nas relações com o exterior. Há em todos uma certa preocupação de auto-suficiência que milita a favor da manutenção das culturas tradicionais que medram, lado a lado, com as dominantes no comércio externo. A polivalência produtiva manteve-se sempre no devir socio-económico insular. A dominância de um ou de outro produto nas relações com o exterior não destrói essa policemia produtiva, nem retira o empenho das gentes laboriosas nesse processo. Atesta-o as posturas Municipais onde, nos diversos sectores económicos, se expressa uma diversidade de interesses e movimento quotidiano de produtos. Em todas as dinâmicas produtivas e comerciais que marcaram e continuaram a definir o processo histórico madeirense e gritante a extrema dependência da ilha em relação ao exterior. Ai a Europa detêm uma posição dominante firmando-se como centro emanador de orientações de política e economia. A situação comum ao mundo insular define uma das principais peculiaridades: a extrema fragilidade e dependência da economia em relação ao velho continente. Para isso em muito contribuiu a posição hegemónica das cidades-capitais dos impérios peninsulares pouca disponibilidade de recursos e meios das sociedades insulares. A dinâmica autonómica desencadeada nestas ultimas décadas, poderá contribuir para o desencravamento da situação e para a afirmação de uma nova realidade insular ou arquipelágica. É evidente que a afirmação de um produto no sector das exportações não é possível sem um sistema de policultura, principalmente em universos restritos como as ilhas. Assim, os canaviais subsistem se for possível assegurar um vasto hinterland de culturas de subsistência. Os ciclos serão a visão mais deformada do processo económico da ilha, a caricatura de uma realidade que é muito complexa. Entender a economia das ilhas, a sua História é reconhecer um estatuto diferenciado aos espaços económicos. Para nós a História, a realidade económica não se compadece com as teorias e tão pouco se lhes deve subjugar. Quem conhece as ilhas sabe que em todas domina a diversidade geoeconómica, fruto da configuração geográfica. A situação conduziu na Madeira a um escalonamento de culturas, impedindo a sobreposição35. O grande erro da Historiografia europeia foi ter encarado a economia açucareira da Madeira ou das Canárias como um retrato em miniatura. O confronto das realidades, coisa que ainda ninguém se atreveu a fazer, comprova que a situação não existe, não passando de mera ficção as análises que

35 . BIBLIOGRAFIA fundamental sobre o tema: Joel Serrão, Temas Históricos Madeirenses, pp.17-20 e 53-75. F. Braudel, Le Méditerranée et le Monde Méditerranéen (...), ed. de 1949, 123. Orlando Ribeiro, L’Île de Madère (...), Lisboa, 1949, 67. Lúcio De Azevedo, Épocas De Portugal Económico. Esboços De História, Lisboa, 1929. António Aragão, Para a História do Funchal, Pequenos Passos da Sua Memória, Funchal, 1979. A tese de Victor MORALES LEZCANO baseada em F. Braudel surgiu pela primeira vez em Sintesis de la Historia Economica, Tenerife, 1966, sendo depois reforçada em Las relaciones Mercantiles entre inglaterra y los archipiélagos atlantico ibericos (...), La Laguna, 1970 e em “Cultivos dominantes y ciclos agricolas en la historia Moderna de las islas Canarias”, in Historia General de las islas Canarias, IV, 11-22. Frédèric MAURO, Le Portugal et l’Atlantique au XVIIe, siècle (...), Paris, 1960, 501; Idem, “Conjoncture Économique et structure sociale en Amérique latine depuis d’Époque coloniale”, in Conjoncture Économique, Sctruture Sociales, Hommage à Ernest Labrouse, Paris, 1974, 237-251; Vitorino Magalhães GODINHO, “A Divisão da história de Portugal em períodos”, in Ensaios II, 2ª ed., Lisboa, 1978, 12-14. IDEM, A Construção de Modelos para as Economias Pré-Estatísticas, Revista de História Económica e Social, 16, 1985. IDEM, “Entender la Praxis de los Negocios”. Esboço de Modelo para a Economia dos Séculos XV e XVI, História das Ilhas Atlânticas, vol. I, Funchal, 1997, 13-39. Felix Goizueta-Mimo, Bitter Cuban Sugar. Monoculture and Economie dependence from 1825-1899, N. York, 1987.

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são colocadas ao nosso dispor. O facto de ambos os arquipélagos terem sido meios de ligação da nova cultura económica do atlântico ocidental, não quer dizer que houve uma transplantação total e igual para os novos espaços. As condições ambientais, os obreiros da transformação eram outros como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tudo isto deverá resultar das ciladas do método de análise do processo histórico de forma retrospectiva, onde, por vezes, o facto surge como a imagem e consequência. Tal como o provaram os estudos recentes sobre a situação da economia açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste espaço é diversa da americana, seja ela insular ou continental. Também não se poderá colocar ao mesmo nível o caso de São Tomé que, embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-se mais da realidade antilhana do que dos arquipélagos da Madeira e Canárias. De acordo com a ideia, de que a civilização do açúcar teve apenas uma forma de expressão no Atlântico Ocidental e Oriental, partiu-se para as afirmações precipitadas na análise da economia e sociedade que lhe serviram de base. Ao açúcar associou a Historiografia, desde muito cedo, a escravatura, fazendo jus à afirmação de Antonil em 1711, de que “os escravos são as mãos e os pés do senhor de engenho”36. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à primeira vista pode parecer. As cruzadas, de acordo com a Historiografia europeia, foram o princípio da expansão da cultura açucareira e da vinculação aos escravos. Nas colónias italianas do Mediterrâneo Oriental surgem os primeiros resquícios da nova dinâmica social que passaria à Sicília e, depois à Madeira, donde se expandiram no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou não, à cultura dos canaviais foi uma invenção do ocidente cristão, não havendo lugar no mundo muçulmano. Diferente é todavia a opinião de Yoro Fall37 que encontra testemunhos evidentes da relação, com o usufruto de mão-de-obra negra, pelas plantações muçulmanas do Egipto e Marrocos. Sucede que a escravatura da Madeira, tal como teremos oportunidade de o afirmar, não assumiu uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto evidente de produção açucareira. Aqui, ao invés daquilo que tem lugar nesses espaços, o escravo não dominou as relações sociais de produção: ele existiu, sob a condição de operário especializado ou não, mas a posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim acresce a hipervalorização do Açúcar na História da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores de teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de acordo com a presença do açúcar. Deste modo ao Funchal do século XVI chamam-lhe, sem saberem e explicarem porquê, “cidade do açúcar”, quando na realidade, a expressão urbanística da cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade38.. O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da ilha. Sucedeu assim até meados do século XVI, mas a partir de finais do século XIX, tudo mudou. A riqueza cumulou os proprietários mas também a arraia-miúda, sendo um factor de progresso social. Com ele ergueram-se igrejas - a Sé do Funchal é um exemplo disso -, amplos palácios que se rechearam

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de obras de arte de importação, testemunhos evidentes estão no actual Museu de Arte Sacra. A arte flamenga na ilha é um dom do açúcar. O progresso sócio-económico da ilha, o protagonismo na expansão atlântica — nos descobrimentos e defesa das praças africanas — só conseguida à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria coroa, lá longe no reino, foi conseguida, por algum tempo, com o açúcar que a coroa arrecadava na ilha.

A MADEIRA E O AÇÚCAR NO MUNDO INSULAR A implantação de canaviais não deriva apenas da disponibilidade de uma reserva florestal e de água abundante para o regadio e laboração dos engenhos, pois deverão juntar-se as condições oferecidas pelo clima e orografia. As ilhas da América Central e do Golfo da Guiné ofereciam melhores condições que a Madeira ou as Canárias. Deste modo em ambos os arquipélagos a orografia estabeleceu um travão à afirmação da cultura extensiva dos canaviais. De acordo com estas condições a produção madeirense dos séculos XV e XVI nunca ultrapassou as 1584,7 toneladas, atingidas em 1510. Apenas no século XX, com a expansão dos canaviais, de novo a toda a ilha, se conseguiu suplantar este valor, tendo-se atingido em 1916 as 4943,6 toneladas. Este incremento da produção açucareira foi travado nos anos imediatos por meio dos decretos de 1934-1935 e 1937 regulamentadores da área de produção. Em S. Tomé os canaviais tiveram melhores condições para se afirmarem e suplantarem a produção madeirense: na primeira metade do século dezasseis a ilha, com uma extensão de 857 m2, (mais que a Madeira com 728) produzia o dobro, cifrando-se, na primeira metade do século XVI, em 950 toneladas. O clima, o solo permitiram que a produção de açúcar em S. Tomé cedo suplantasse a madeirense: aí as canas cresciam três vezes mais que na Madeira e faziam-se duas colheitas. O conjunto das 21 ilhas produtoras de açúcar no espaço atlântico oferece um total de 271.993 2 m , dos quais oferece apenas uma ínfima parcela dedicada à agricultura. Para além da disponibilidade do espaço agrícola adequado, tornava-se necessário a disponibilidade de uma reserva silvícola, sem a qual os engenhos não podiam laborar. O caso da Madeira é paradigmático. A superfície cultivada pouco ultrapassa um terço da área da ilha, sendo o restante espaço constituído pela reserva silvícola. O caso da Madeira é paradigmático. A superfície cultivada pouco ultrapassa um terço da área da ilha, sendo o restante espaço constituído pela reserva silvícola. Não é possível saber mos a área ocupada pelos canaviais nos séculos XV e XVI mas para a segunda fase de afirmação da cultura dispomos de dados concretos sobre isso tendo em conta o volume da cana produzida:

36 . Cultura e Opulência do Brasil (...), Lisboa, 1711, p. 22. 37 . “Escravatura, Servidão e Reconquista”, in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, pp. 303-304. 38 . Cf. Esterzilda Berenstein de AZEVEDO, Arquitectura do Açúcar, S. Paulo, 1990.

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ANO 1815 1865 1895 1906 1907

ÁREA Ha 357 375 800 1000 1100

ANO 1911 1915 1918 1939 1952

ÁREA Ha 1100 1800 1500 1500 1420

Para as duas áreas poderemos enunciar que no século quinze, mais propriamente em 1497 as 1098,6 toneladas deveriam resultar de uma área de 686 hectares de canavial, enquanto em 1510 com a produção de 1584,7 toneladas, os canaviais deveriam ocupar cerca de 990,4 hectares. A situação das ilhas do outro lado do oceano é também diferente da madeirense. As condições semelhantes às encontradas em S. Tomé fizeram com que os canaviais se afirmassem aí, a partir do século dezassete. Deste conjunto de ilhas apenas um reduzido número (S. Cristóvão, Nevis, Antigua, Montserrat) se assemelha à Madeira, em termos orográficos. Aí deparámo-nos com ilhas de superfície menor que a Madeira (Antigua, Barbados, Nevis, St. Vicent, Trinidad) mas com uma produção açucareira superior. Facto evidente sucede com as ilhas de Trinidad, Antigua e Barbados, que dispondo de uma reduzida superfície conseguem produzir mais açúcar que a Madeira. A ilha de Trinidad com apenas 301 m2 produziu entre 1850 e 1940 uma média anual de 57862 toneladas de açúcar, enquanto a Madeira se ficou pelas 1659 toneladas. Em Montserrat e Nevis, com uma superfície total quase igual à da área ocupada pelos canaviais na Madeira, conseguem atingir valores de produção semelhantes. Diversa é também a estrutura fundiária que serviu de base à cultura. Enquanto na Madeira a orografia e o sistema de posse da terra definiram a plena afirmação da pequena e média propriedade, em S. Tomé ou nas Antilhas estávamos perante a grande propriedade, activada pela grande força de trabalho escrava: em Barbados, entre 1650 e 1834, 84% dos proprietários de canaviais era detentor de mais de cinquenta escravos, enquanto na Madeira apenas 2% era possuidor de mais de 10 escravos. Por outro lado a área dos canaviais assumida por cada proprietário era também elevada, pois 64% destes possuíam canaviais cuja extensão ia de 40 a 121 hectares, situação que estava muito aquém da assumida pelos produtores madeirenses. Na Madeira apenas um produtor se aproxima desse valor (Pedro Gonçalves com uma área de 36,9 hectares), sendo os demais com valores inferiores: os lavradores com mais de 22 toneladas de produção e com mais de 14 hectares de terreno representam em 1494 apenas 1,3% e 5% para o período de 1509 a 1537.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

PROPRIETÁRIOS

LOCALIDADE ANO

João Esmeraldo

P. Sol P. Sol

João de França Pedro Gonçalves Bairros Diogo Afonso de Aguiar Benoco Amador João Mendes de Brito João Betencor Gonçalo Fernandes Dona Joana d’Eça João Betencor João Martins

R. Brava Calheta Funchal R. Brava R. Brava Calheta Calheta R. Brava P. Sol

1494 1526 1494 1509 1509 1509 1517 1517 1534 1534 1536 1537

PRODUÇÄO ARROBAS 1370 3277,5 2500 5376 3960,5 2565,5 3339 2455 33707,5 3595 2455 2528

ÁREA Ha 9,3 22,5 17,1 36,9 27,2 17,6 22,9 16,8 25,4 24,7 16,8 17,3

No quadro reunimos os proprietários de canaviais com maior produção de açúcar, para o período de 1494 a 1537. A partir daqui poder-se-á constatar que a dimensão dos canaviais madeirenses era muito reduzida quando comparada com as Antilhas. O caso de Barbados (cuja superfície é menor que a da Madeira) é significativo: a produção de atingiu aí o máximo de 74606 arrobas em 1890.

A PROJECÇÃO DA MADEIRA NO MUNDO AÇUCAREIRO A Madeira afirmou-se no processo da expansão europeia pela singularidade do protagonismo. Vários são os factores que o propiciaram e que fizeram com que ela fosse, no século XV, uma das peças-chave para a afirmação da hegemonia portuguesa no Novo Mundo. Além disso é considerada a primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do oceano que abraça o seu litoral abrupto. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios que iam ao encontro da Europa em expansão. À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras, como “farol” Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões oceânicas. Por isso, nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço privilegiado de comunicações, tendo a favor as vias traçadas no oceano que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas da cana sacarina e vinha. Uma e outra contribuíram para que o isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo. Como corolário disto a Madeira firmou uma posição de relevo nas navegações e descobrimentos no Atlântico. Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da cana-de-açúcar. A cultura não lhe era alheia, pois o navegador tem no curriculum algumas actividades ligadas ao comércio do açúcar na Madeira. O navegador, antes da relação afectiva ao arquipélago, foi, a exemplo de muitos genoveses mercador do açúcar madeirense. Em 1478 ele encontrava-se no Funchal ao

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Alberto Vieira

Paisagem com engenho. Franz Post, 1668

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

serviço de Paolo di Negro para conduzir a Génova 2400 arrobas a Ludovico Centurione. Com esta viagem e, depois da larga estância do navegador na ilha, Colombo ficou conhecedor da dinâmica e importância do açúcar da Madeira39. Em Janeiro de 149440, aquando da preparação da segunda viagem, o navegador sugere aos reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar da Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até a Abril como o melhor momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do navegador pelo Funchal no decurso da terceira viagem em Junho de 1498 podemos apontar como muito provável a presença de socas de canas da Madeira na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Neste momento a cultura dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importante franja de canaviais ao longo da vertente sul41. A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia, a cultura encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Note-se que ainda estão por descobrir as razões que conduziram Colombo, no decurso da Terceira viagem, a fazer um desvio na sua rota para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a primeira área do Atlântico onde se cultivou a cana-de-açúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e continente americano. Por isso mesmo o conhecimento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e Geografia açucareira dos séculos XV a XVII. O açúcar da Madeira ganhou fama no mercado europeu. A qualidade diferenciava-o dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. O aparecimento de açúcar de outras ilhas ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência desenfreada ganha por aquele que estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço. Um testemunho da realidade surge-nos com Francisco Pyrard de Laval: “Não se fale em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé”42. E refere que no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas vendidas como da Madeira. O mais significativo da situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense está indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de rentabilização da cultura através de uma exploração intensiva e de abertura de novo mercado para o açúcar. É a partir da Madeira que se produz açúcar em larga escala que veio a condicionar os preços de venda, de forma evidente nos finais do século XV. Também o íncola foi capaz de agarrar esta opção, tornando-se no obreiro da difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos recantos do espaço atlântico e que os técnicos madeirenses foram responsáveis pela implantação. O primeiro exemplo está documentado com Rui Gonçalves da Câmara, quando em 1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na expedição de tomada posse da capitania fez-se 39 . VIEIRA, Alberto, “Colombo e a Madeira”, Actas III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993., IDEM, “Colombo e a Madeira: tradição e história”, Islenha, 1989, Nº 5, pp. 35-47. 40 . Consuelo Varela, Cristóbal Colón. Textos y Documentos Completos, Madrid, 1984, p.160. 41 . Cristóbal Colón, Textos y Documentos Completos, Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 160; Fray Bartolomé de las CASAS, Historia de las Indias, Vol. I, México, Fundo de Cultura Económica, 1986, p. 497. 42. Viagem de Francisco Pyrard de Laval, Vol. I, Porto, 1944, p. 228.

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Cavaleiro português.Detalhe do painel votivo da Batalha dos Guararapes, século XVII

acompanhar de socas de cana da Lombada, que entretanto vendera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. Seguiram-se depois outros que corporizaram diversas tentativas frustradas para fazer vingar a cana-de-açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira43. Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o Governador D. Pedro de Vera quis tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as socas de cana para que aí surgissem os canaviais. Todavia, o mais significativo estará na forte presença portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço à economia de mercado. Os portugueses, em especial o Madeirense, surgem com frequência nas ilhas ligando-se ao processo de arroteamento das terras, como colonos que recebem datas de terras na condição de trabalhadores especializados a soldada, ou de operários especializados que constroem os engenhos e os colocam em movimento. No caso de La Palma refere-se um Leonel Rodrigues, mestre de engenho que ganhou o estatuto em 12 anos de trabalho na Madeira44. É de referir também idêntico papel para as ilhas Canárias na projecção da cultura às colónias castelhanas do novo mundo. Assim, em 1519 Carlos V recomendou ao Governador Lope de Sousa que facilitasse a ida de mestres e oficiais de engenho para as Índias45. O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da produção, deu-se nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só na última, pela disponibilidade de água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste modo em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à plantação de cana do açúcar. Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de “muitos mestres da ilha da Madeira”46. É, alias, aqui que se pode definir o prelúdio da estrutura açucareira que terá expressão do outro lado do Atlântico. A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé apertou o cerco ao açúcar madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores madeirenses. Sucederam-se queixas junto da coroa, que ficou testemunho em 152747. Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo desenvolvimento da cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato48, remete para uma análise dos interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano, seria tomada uma decisão, que parece nunca ter vindo. A exploração fazia-se directamente pela coroa e só a partir de 1529 surgem os particulares interessados nisso.

43 . Gaspar FRUTUOSO, Livro Quarto das Saudades da Terra, Vol. II, pp. 59, 209-212; V. M. GODINHO, ob. cit., Vol. IV, F. Carreiro da COSTA, “A cultura da cana-de-açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua História” in Boletim da Comissão Reguladora do Comércio de cereais dos Açores, nº 10, 1949, 15-31. 44 Conquista de la Isla de Gran Canaria, La Laguna, 1933, p. 40;José PÉREZ VIDAL, Los Portugueses en Canarias. Portuguesismos, Las Palmas, 1991; Felipe FERNANDEZ-ARMESTO, ob. cit., 14-19;Pedro MARTINEZ GALINDO, Protocolos de Rodrigo Fernandez (1520-1526). Pimera parte, La Laguna, 1982, pp. 67, 84-90; Guilhermo CAMACHO Y PÉREZ GALDOS, “El cultivo de la cana de azúcar y la industria azucarera en Gran Canaria (1510-1535) in AEA, nº 7, 1961, 35-38; Maria LUISA FABRELLAS, “La producción de azúcar en Tenerife” in Revista de História, nº 100, 1952, 454/475Gloria DIAZ PADILLA, e José Miguel RODRIGUEZ YANES, El Señorio en Las Canarias Occidentales..., Santa Cruz de Tenerife, 1990, p. 316. 45. CF. José PEREZ VIDAL, “Canárias, el azúcar, los dulces y las conservas”, in II Jornadas de Estudios Canarios-America, Santa Cruz de Tenerife, 1981, p. 176-179. 46 . Isabel Castro Henriques, O Ciclo do açúcar em S. Tomé nos séculos XV e XVI, in Albuquerque, Luís de (dir.), Portugal no Mundo, Lisboa, sd, vol. I, pp.264-28o47. ARM, CMF, Vereações 1527, fl. 23vº, 26 de Março. 48. ARM, D. A., nº 66: 8 de Fevereiro 1528.

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Enquanto isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arroteamento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os seus obreiros. A coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estruturas necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o primeiro engenho, enquanto em 1555 foi construído por João Velosa, apontado por muitos como madeirense, um engenho a expensas da fazenda real49. A aposta da coroa na rentabilização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a condicionar a força de mão-deobra especializada, que então se fazia na Madeira. Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estão proibidos de ir à terra dos mouros50. O movimento de migração de mão-de-obra especializada do engenho acentuou-se na segunda metade do século XVI, por força das dificuldades da cultura em solo madeirense. O Brasil, nomeadamente Pernambuco, continuará a ser a terra de promissão para muitos. Em 157951 refere-se que Manuel Luís, mestre de açúcar, que exercera o ofício na ilha estava agora em Pernambuco. Muitos mantêm contactos com a ilha, nomeadamente quanto ao comércio de açúcar, é o caso de Francisco Álvares e João Roiz52. Acontece que este movimento de operários especializados era controlado pelas autoridades, no sentido de evitar a concorrência de outras áreas com o Brasil. Sucede que em 164753 Richarte Piqueforte vendera um escravo, “oficial de asucares”, a um mercador francês que o pretendia conduzir a S. Cristóvão. A coroa entendia que a saída não deveria ser autorizada e que o escravo deveria ser adquirido e embarcado para o Rio de Janeiro às ordens do Provedor da Fazenda, para aí ser vendido. Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produção açucareira na ilha, muitos madeirenses foram forçados a seguir ao encontro dos canaviais brasileiros. Em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e proprietários de engenho, pressente-se a forte presença madeirense. Alguns destes madeirenses se tornaram em importantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador de Pernambuco. É a partir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através do trato ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre os que do outro lado do Atlântico via florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem os seus benefícios. Veja-se, por exemplo, o caso

Ilha de S. Vicente(Santos-Brasil). Luís Teixeira, finais do séc. XVI

49 . Cf. Basílio de Magalhães, O Açúcar nos Primórdios do Brasil Colonial, Rio de Janeiro, 1953; David Ferreira de Gouveia, A Manufactura Açucareira Madeirense (1420-1550). Influência Madeirense na Expansão e Transmissão da Tecnologia Açucareira, in Atlântico, Funchal, 1987, nº.10; Maria Licínia Fernandes dos Santos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, 1999, pp.46-60. 50 . Alberto LAMEGO, “onde foi iniciado no Brasil a lavoura canavieira, onde foi levantado o primeiro engenho de açúcar” in B. Açúcar, nº 32, 1948, pp. 165-168; Arquivo Geral da Alfândega de Lisboa, livro 54, fl. 41; Documentos para a História do Açúcar, ed. I, A. A. Vol I, Rio de Janeiro, 1954, pp. 121-123, 5 de Outubro 1555; ARM, RGCMF, T. I, fl. 372vº. 51 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº.711, fls.114-115: 7 de Março. 52 . ARM, JRC, fls. 391-396: 11 de Setembro de 1599. 53 . ANTT. PJRFF, nº.980, fls. 182-183: 3 de Setembro.

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de Cristóvão Roiz de Câmara de Lobos que em 1599 declara ter crédito em três mestres de açúcar de Pernambuco em cerca de cem mil réis de uma companhia que teve com Francisco Roiz e Francisco Gonçalves54. Os dados, embora avulsos evidenciam a presença dos madeirenses em todas as capitanias aonde chegou o açúcar. São eles, purgadores, carpinteiros, mestres, mas também senhores de engenhos55. Muitos arrastaram consigo a família, de modo que algumas se notabilizaram. É o caso dos LEME, flamengos que fizeram da Madeira trampolim para a afirmação no Brasil56.

Na expressão de Gilberto Freire a Madeira é “a irmã mais velha do Brasil… que se extremou em ternuras de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens, mestres da lavoura de cana e da indústria de açúcar, concorreram… para transformar rápida e solidamente em Nova Lusitânia.”57

MADEIRENSES NO BRASIL E A PRODUÇÃO DE AÇÚCAR- séculos XVI e XVII

À expansão da cultura da cana-de-açúcar ligam-se tradições culturais europeio-africanas. Na verdade a cana-de-açúcar propiciou o confronto da cultura europeia com a africana, sendo exemplo cabal as sociedades geradas em seu torno nas Antilhas e Brasil. No último espaço são evidentes os aspectos sincréticos que estão na origem à designação de Afro-brasileira, como provam os estudos de Gilberto Freire58 e Roger Bastide 59. Mas aqui insiste-se nas aportações culturais resultantes do confronto com a população africana, conduzida como escrava para a safra do açúcar. Por outro lado insiste-se que a expansão da cultura da cana-de-açúcar propiciou a divulgação de determinadas tradições lúdicas: representações teatrais e festivas. Está neste caso o “tchiloli” nome dado a peça “A Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno”, atribuída ao madeirense Baltazar Dias60. É uma peça teatral do ciclo carolíngio, muito representada no século XVI, que teria sido levada para S. Tomé pelos plantadores e mestres de engenhos da Madeira. A tradição perpetuou-se e ainda hoje se apresenta o “Tchiloli” para celebrar um acontecimento importante ou um dia santo. Na ilha Terceira persiste na actualidade as afamadas danças do Entrudo, que segundo opinião de alguns estudiosos se filia na tradição do Bumba-meu-boi brasileiro. À volta disso estabeleceu Luís Fagundes Duarte61 uma teoria que aponta para a existência de uma tradição lúdica canavieira, que acompanhou o percurso de expansão do açúcar no Atlântico, marcada por representações e danças de carácter dramático com “sabor” vicentino. A par disso no Brasil algumas das folias que animavam os terreiros do engenho são um misto de tradições europeias e africanas. Destacam-se o Bumba-meu-boi e o fadango. A primeira aproximase da tradicional tourada, surgindo como forma de exaltação do negro e do boi, elementos fundamentais da safra açucareira. A segunda é um auto popular do ciclo natalício que descreve a luta entre o cristão e o mouro, numa clara alusão ao processo de reconquista peninsular. Do lado oposto a estas tradições está a Congada, uma dança de senzala, definida pela coroação do rei do Congo, que tinha lugar em Maio (dia de São Benedicto) e Outubro (dia de Nossa Senhora do Rosário). Ainda no Brasil a economia açucareira gerou uma dinâmica sócio-cultural diversa, que deixou

NOME Manuel Luís Antão Lene Vicente Leme Paulo Dias Adorno Luís e Pedro Góis Francisco de Araújo João Fernandes Vieira Jacinto de Freitas da Silva António de Sá de Albuquerque João de Velosa Gonçalo Rodrigues Egas Moniz Francisco Berenguer de Andrade João de Souto Olinda. Luis Teixeira, finais séc. XVI

Francisco Fernandes

LOCAL Pernambuco S. Vicente S. Vicente S. Vicente Paraíba do Sul Baia Pernambuco Pernambuco Itamaracá Baia Baia Pernambuco Pernambuco Paraíba

SITUAÇÃO Mestre de Açúcar Proprietário de engenho Proprietário de engenho Proprietário de engenho C a r p i n t ea r o i s t d e r n g d h oe g n o P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h C a r p i n t ea r o i d t er n g h oe s g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h P r o p i e t r á o d e r i n g h oe g n h

Perante a situação do mercado açucareiro atlântico e a melhor capacidade concorrencial doutras áreas, o açúcar insular estava irremediavelmente perdido. Os canaviais foram desaparecendo paulatinamente das terras, dando lugar aos vinhedos. Apenas a conjuntura da segunda metade do século dezanove permitiu o retorno. Mas foram efémeras as tentativas para a produção de açúcar e mesmo assim só possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais perderam a função de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida favoreceram uma produção alternativa de mel e aguardente. Hoje não mais se fala do ouro branco das ilhas, mas sim do rum ou aguardente e mel, os herdeiros da cultura na Madeira e Canárias. 54 . Em 1579 (ARM, Misericórdia do Funchal, nº 711, fls. 114-115) Gonçalo Ribeiro refere ser devedor a Manuel Luís mestre de açúcar, “que agora está em Pernambuco”. José António Gonsalves de MELLO, João Fernandes Vieira. Mestre de Campo do terço da infantaria de Pernambuco, Vol. II, Recife, 1956, pp. 201-267. ARM, J.R.C., fls. 391-396: Testamento de 11 de Setembro de 1599. 55 . Cf. David Ferreira de Gouveia, ibidem, p.127. 56 . Cf. John G. Everaert, Les Lem, Alias Leme Une Dynastie Marchande d’ origine Flamande au Service de l´Éxpansion Portugaise, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1992, pp.817-838.

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A TRADIÇÃO CULTURAL E O AÇÚCAR.

Retrato de João Fernandes Vieira, publicado por Frei Rafael de Jesus, Castrioto Lusitano, Lisbpoa, 1679

57 . Na Madeira. Impressões de um Brasileiro, in Alberto Vieira, Gilberto Freire e a Madeira, Diário de Notícias-Madeira, 15 de Julho de 1987, p.2 58 . O texto mais famoso é Casa Grande e Senzala, 25ª edição, Rio de Janeiro, 1987 (1ª edição em 1933); Nordeste, Rio de Janeiro, 1985 (1ª edição, 1937). 59 . As Américas Negras. As Civilizações Africanas no novo Mundo, S. Paulo, 1974; As Religiões Africanas do Brasil. Contribuição a uma Sociologia das Interpretações de civilizações, S. Paulo, 1985. 60 . Albert, Christian, Le Tchiloli de Säo-Tomé un exemple de sbversion culturelle, Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1985. Sep. Les Litteratures Africaines de Langue Portugaise: a la recherche de l’indentite... das Actas do Colóquio, Paris, 28-30 Nov.Dez. 1984 p. 437-444. 61 . Sobre as Danças de Carnaval da Ilha Terceira, in Ethnologia, nº.14, 1984, 49-56.

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Captura de escravos em África.

rastros evidentes na literatura: o caso mais evidente é o de José Lins do Rego (1901-1957), que escreveu um conjunto de romances a retratar o ciclo da cana-de-açúcar: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), o Moleque Ricardo (1935), Usina (1936), Fogo Morto (1943) e Meus Verdes anos 1956). No campo da poesia não podemos esquecer Ascenso Ferreira62 e João Cabral de Mello Neto[1922-1999]63. Na Madeira esta vivência não entusiasmou a veia literária. Apenas na actualidade o tema despertou o interesse de Horácio Bento de Gouveia, em Águas Mansas (1963), e João França em A ilha e o Tempo (1972). Acontece, ainda que o quotidiano gerado pela exploração açucareira não ficou apenas reduzido à Madeira e ao Brasil. Nas Caraíbas a presença da cana-de-açúcar foi assídua, acabando por despertar a atenção de escritores, poetas e cantores. Em Cuba podemos referir o caso de Carolina Garcia Aguilera, com “Bitter Sugar” (NY.2001) e para a Martinica temos Raphael Confiant com “Commandeur du Sucre” (Paris, 1994, 1999). No mundo de língua inglesa o tema foi também constante motivo de inspiração literária, como foi o caso de Barry Unsworth com “Sugar and Rhum” (NY.1988). A safra açucareira teve também implicações na política de urbanização do espaço rural, condicionando uma forma peculiar de ligação do espaço agrícola industrial com as estruturas de mando e controlo social. A célebre trilogia rural, tão bem definida por Gilberto Freire, teve o primeiro aparecimento aqui na Madeira, sendo testemunho actual disso a célebre lombada de João Esmeraldo (Ponta do Sol). Mas outros mais exemplos poderiam ser referenciados na ilha que, lamentavelmente, se estão perdendo. Talvez por estas implicações do açúcar se define ao espaço rural, ou por outras razões que desconhecemos, se definiu para o Funchal epítetos pouco expressivos da realidade. Assim a partir da publicação do livro de António Aragão (1988) sobre a cidade do Funchal ficou estabelecido que ela era a “primeira cidade construída por Europeus fora a Europa” e dentro da malha urbana define uma “cidade do açúcar” e outra “cidade do vinho”. Esta definição não colhe hoje argumentos a seu favor64. Nas pesquisas promovidas nos Açores, Canárias, Brasil e Antilhas, ninguém, até hoje, teve a ousadia de avançar com semelhante perspectiva reducionista da realidade arquitectónica e urbana. Todos são unânimes em afirmar a adaptação do modelo europeu às condições geo-humanas dos novos espaços e a forte vinculação às directivas régias e à mão-de-obra especializada da península. O desenvolvimento económico, assente na produção ou comércio de certos produtos surge em todas as áreas, não como factor definidor da traça urbana e arquitectónica, mas sim como meio65. 62 . Ferreira, Ascenso Carneiro Gonçalves, Poemas (1922-1953), Recife: Nery da Fonseca, 19—; IDEM, Canna caianna: versos, Recife : Empreza Diário da Manhã, 1939. 63 . Poesia completa 1940-1980, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986 64 . Para a História da Cidade do Funchal. Pequenos Passos da sua Memória, Funchal, 1979; IDEM, As Armas da Cidade do Funchal, Funchal, 1984; idem, Alguns Tópicos para a Classificação Urbanística da Madeira, Islenha, nº.9, Funchal, 1991 65 . R. M. Morse, Introducción a la Historia Cubana de Hispanoamerica, in Estúdios sobre La Ciudad Iberoamericana, Madrid, 1983; J. E. Hardoy, El Modelo Colonial Hispanoamericana, Buenos Aires, 1968; Idem, Las Formas Cubanas europeas Durante los Siglos XV al XVII y su Utilizacion en América Latina, in Urbanización y Proceso Social en América, Lima, 1982.

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O açúcar, o vinho surgem na Madeira como produtos catalizadores da actividade sócio-económica madeirense e não como princípios geradores das cidades ou do espaço urbanizado. Foram apenas os suportes financeiros necessários ao desenvolvimento e embelezamento do espaço urbano. Os mestres que orientaram a construção do espaço urbanizado foram recrutados no reino e enquadram-se nos padrões peninsulares de humanização do espaço. Por outro lado os monarcas intervêm com assiduidade na política arquitectónica, enviando regimentos e planos sobre o modo porque se deverá proceder à construção. Tenha-se em atenção as recomendações dadas por D. Manuel para a construção da cerca e muros conforme o sistema delineado em Setúbal. Por outro lado o mesmo monarca ao ordenar em 1485 a construção dos paços do concelho, da igreja, alfândega e praça, pretendia dar ao Funchal uma dimensão peninsular. Terá sido o espaço urbanizado à custa dos proventos do açúcar que conduziu à errada formulação dos princípios geradores do urbanismo funchalense. Se tivermos em conta que a economia açucareira madeirense não assumiu a mesma proporção da brasileira ou mexicana e que nas últimas áreas não se fala de urbanização do açúcar mas sim das implicações sociológicas e arquitectónicas do produto teremos por anacrónica a definição no Funchal de uma cidade do açúcar. Confrontados os estudos sobre a história das cidades das demais ilhas atlânticas e do Novo Mundo, onde a cana-de-açúcar foi dominante, não encontrámos qualquer definição deste tipo para a malha arquitectónica urbana. Tenha-se como exemplo o caso de Canárias onde é evidente no urbanismo também um extremo seguidismo aos cânones peninsulares. Por isso não entendemos a forma despropositada como se tem defendido a existência no Funchal de uma cidade do açúcar. Do produto a única coisa que se poderá dizer é que a imagem ficou apenas nas armas da cidade a partir do século XVI, a que se juntou a videira no século dezoito. Não obstante o facto de aquele espaço, que é hoje o centro da cidade, ter sido no século XV uma área de canaviais (o Campo do Duque), as alterações que se produziram a partir da década de oitenta do século XV conduziram à adequação aos modelos arquitectónicos peninsulares. É a imposição lançada em 1485 sobre o vinho, surgiu única e exclusivamente com o intuito de criar um fundo municipal para o “nobrecimento” da vila. Com isto não queremos excluir a função relevante dos proventos arrecadados pela economia açucareira na valorização do património urbano, mas apenas referenciar que não houve uma ligação directa entre ambas as situações. Em boa verdade se diga, que o recinto urbano, que emerge a partir da década de sessenta entre as ribeiras de João Gomes e Santa Luzia e, depois, para além da última, foi o princípio da futura cidade, dominada pelos mercadores do açúcar. As residências de João Esmeraldo, de D. Mécia, do capitão do donatário, bem como os conventos (Encarnação, S. Francisco e Santa Clara) e igrejas (Sé, Capela dos Reis Magos, Madre de Deus e matrizes de Machico, Ponta do Sol, Calheta e Ribeira Brava) foram erguidas e embelezadas artisticamente a partir dos proventos acumulados com a safra do açúcar. Mas uma coisa é o açúcar ser fonte de receita, participante do processo e outra é o resultar daí implicações urbanísticas e plásticas. Na verdade, a vila que é elevada em 1508 à categoria de cidade, deve apenas ser considerada como a cidade dos mercadores de açúcar e nunca a cidade do açúcar.

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Apanha da cana. 2002

Gravura. Século XIX, Casa Museu Frederico de Freitas.

A ECONOMIA DA MADEIRA E A EVOLUÇÃO DO QUADRO NATURAL Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho, o trigo, e, depois, o açúcar, surgiram como elementos aglutinadores de uma peculiar vivência com inevitáveis implicações políticas e urbanísticas. Os primeiros materializaram a necessária garantia das condições de subsistência e do ritual cristão, enquanto o ultimo encerrou a ambição e voracidade mercantil da nova burguesia europeia que fez da Madeira o principal pilar para afirmação na economia atlântica e mundial. O processo é irreversível de modo que, em consonância com os movimentos económicos, se sucedem em catadupa produtos, com valor utilitário para a sociedade insular, ou com capacidade adequada para activarem as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu à economia agrícola, no segundo, que se aproxima da nossa vivência, reparte-se entre serviços, indústrias artesanais (vimes e bordado) e novos produtos agrícolas. O enquadramento e afirmação económica não são pacíficos, sendo feito de embates permanentes entre a necessária manutenção de subsistência e da animação comercial externa. Do afrontamento resultou a afirmação, num ou noutro momento, do produto que adquire maior pujança e número de defensores na dinâmica. É nesta luta permanente de produtos de subsistência familiar, local e insular com os impostos pela permanente solicitação externa que se alicerçou a economia da ilha até ao limiar do século XIX. Os produtos serão os pilares mais destacados para a compreensão da realidade socio-económica madeirense, ao longo dos últimos quinhentos anos, com reflexos inevitáveis na actualidade. A tradição mediterraneo-atlantica, que define a realidade peninsular, repercute-se, inevitavelmente na estrutura agrária do Novo Mundo e por consequência no impacto ecológico que acompanha a expansão atlântica. Da Europa saíram as sementes, utensílios e homens que lançaram as bases da nova vivência insular e atlântico, mas também aí se situavam as principais solicitações e orientações. A par disso o confronto com as novas realidades civilizacionais americanas e indicas contribuiu para um paulatino desencravamento planetário da ecologia e cardápio dos séculos XVI e XVII, com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. A Europa contribuiu com os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da América e Índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame, o arroz

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e uma variada gama de árvores de fruto. Neste contexto as ilhas atlânticas, pela posição charneira no relacionamento entre os mundos, surgem como viveiros da aclimatação de produtos às novas condições eco-sistémicas. A Madeira deteve uma posição importante, afirmando-se no século XV como o viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo - os cereais, o pastel, a vinha e a cana-de-açúcar. A expansão europeia, que desde o século XV veio revolucionar o cardápio europeu, enriqueceuse, aumentando a gama de produtos e condimentos. A tradição culinária europeia foi destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que acabaram por afeiçoar o paladar. Mas, até que isso se generalizasse, foi necessário conduzir aos locais mais recônditos o cereal e o vinho. Assim, as embarcações que sulcavam o oceano levavam nos porões, para alem das manufacturas e bugigangas aliciadoras das populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. Se o cereal poderá encontrar similar, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho que era desconhecido e incapaz de se adaptar as novas condições mesológicas oferecidas pelas colónias europeias. Desta forma o vinho foi conduzido da Europa ou ilhas, onde se afirma com esta finalidade aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu. Era o inseparável companheiro dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos primeiros servia de antídoto ao escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos servia como recordação ou devaneio hilariante da terra mãe. O vinho é um dos principais traços de união das gentes europeias na gesta de expansão além Atlântico. No imaginário e devir histórico madeirense paira sempre a visão tripartida da faina agrícola: o vinho e o cereal que a tradição impõe como necessários ao quotidiano espiritual e alimentar, o açúcar que se afirma como provento excedentário capaz de atrair a atenção dos mercados europeus e de trazer a ilha as manufacturas que necessita. Esta harmónica trifuncionalidade produtiva pela extrema dependência as dinâmicas e directrizes europeias esteve sujeita a diversos sobressaltos que contribuirão para uma desmesurada desarticulação do quotidiano e economia madeirenses. Assim, a concorrência do aguçar americano lança o pânico na ilha e obriga a uma necessária afirmação da cultura da vinha, cujo derivado, o vinho, se afirmou como a moeda de troca, substitutiva do açúcar. A precariedade da economia madeirense não deriva apenas da posição dependente em relação ao velho continente, mas radica-se também nas diminutas possibilidades de usufruto dos 741 Km2 de superfície da ilha. O lançamento e afirmação de uma sociedade em moldes europeus dependem sempre das possibilidades de afirmação simultânea deste conjunto de produtos, motores da expansão atlântica e da europeização do espaço insular. Todos os autores coevos são unânimes em afirmar a apetência da ilha para satisfazer as expectativas dos primeiros povoadores. Assim o enuncia Gaspar Frutuoso que “a terra foi mostrando seus frutos e dando a fama deles no regno, e enobrecendo-se com moradores ricos”66. Esta inaudita riqueza foi o motor do sucesso do povoamento da ilha, tal como nos elucida o mesmo autor: “crescendo e multiplicando seus frutos, assim iam crescendo as povoações e moradores com a fama de sua fertilidade.”67

Mais do que uma revolução ecológica, assiste-se a uma humana e técnica. Se as condições ecosistemicas favoreceram a transplantação das primeiras sementes, ao homem estava reservada a mais espinhosa e hábil tarefa. Primeiro ergueram os socalcos (poios), depois adaptaram as técnicas e as alfaias agrícolas aos condicionalismos do novo espaço cultivado. A testemunhar tudo isso perduram os poios, ladeados de levadas, que bem podem ser considerados entre as principais realizações do homem sobre a terra. A homenagem deverá ser concedida ao cabouqueiro, colono que recebe das principais gentes da ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que as receberam como benesse. O investimento da capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças, arvores de fruto, latadas, etc. é, assim, o colono que lança as bases da revolução tecnológica e agrícola e um dos principais obreiros da harmoniosa paisagem rural os proprietários preferiam os bulício ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentam erguer, fazendo com que a arquitectura e viver quotidiano se adaptassem a medida volume dos reditos acumulados com o comércio do açúcar e vinho. Estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano, empenhados que estavam nas lides administrativas ou entretidos nos jogos de pela e canas. Um dos aspectos mais salientes das ilhas é estamos perante espaços limitados, que condicionam e são influenciados de forma evidente pela presença humana. O processo económico quando assume uma posição de sucesso mercê da inserção no mercado mundial provoca obrigatoriamente uma forma de exploração intensiva que acabe inevitavelmente por provocar o desequilíbrio entre aquilo que possibilita o quadro natural e o que o Homem exige dele. A exploração económica faz-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações de um mercado exterior, agravando o afrontamento com o quadro natural e arrastando-o para uma situação de total degradação. Um breve relance pelos testemunhos historiográficos dos séculos XV e XVI reforça a realidade. O primeiro a testemunhar esta deterioração dos solos frutos de um cultivo intensivo surge já em meados do século XV com Cadamosto: “As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que presentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia “68. A situação resultou da solicitação do cereal para abastecer as cidades do reino e praças africanas. Rapidamente o cereal cedeu lugar aos canaviais que em pouco tempo dominaram todo o espaço agrícola. A indústria que se promoveu na retaguarda para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro natural, lançando a ilha para um processo de desflorestação de consequências imprevisíveis. A situação arrastou o solo agrícola da ilha para a quase total exaustão. Em 1689 John Ovington testemunha de forma lapidar a realidade: “A fertilidade da ilha decaiu muito relativamente ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, com estéreis. A actual aridez de muitas das suas terras atribui simploriamente ao aumento dos seus pecados”69.

66 . Livro Segundo das Saudades da Terra, P. Delgada, 1979, p. 96. 67 . Ibidem, p. 97

68 A. Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, pp. 36-37 69 Ibidem, p. 201.

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A vinha e o vinho assumem particular destaque na caracterização do processo histórico madeirense ao longo destes quase seiscentos anos de labuta. Desde os primórdios da ocupação da ilha até a actualidade a cultura manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e comércio da ilha. Dos mais não houve capacidade suficiente para resistir a concorrência desenfreada de novos e potenciais mercados, fornecedores aquém e além-mar. Os cereais tiveram saque fácil nos Açores, Canárias, Europa e, depois América, sofrendo, mais tarde, a concorrência do abundante fornecedor americano. Apenas o vinho resistiu a concorrência do dos Açores, Canárias, Europa e Cabo da Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e novo Mundo. No princípio da ocupação da ilha as necessidades do cardápio e ritual cristão comandaram a selecção das sementes que acompanharam os primeiros povoadores. As do precioso cereal acompanharam os primeiros cavalos de cepas peninsulares no processo de transmigração vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do estado virgem e das cinzas fertilizadoras das queimadas, fizeram elevar a produção a níveis inatingíveis, criando excedentes que supriram as necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e praças do norte de África. Até a década de setenta a Madeira firmou a posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois em favor dos Açores que emergem desde então, com uma posição dominante na política e economia fragmentária do Atlântico. Na Madeira inverte-se a situação; a ilha de área excedentária passou a uma posição de dependência em relação ao celeiro açoriano, canário e europeu. O estabelecimento de uma rota obrigatória, a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira, criou as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e coroa na cultura do novo produto conduziu a afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântica e insular. A partir de então os interesses mercantis dominaram a vida agrária madeirense. Na ilha as searas deram lugar aos canaviais, enquanto as vinhas mantiveram-se de modo insistente numa posição de destaque. Se o cereal pouco contribuía para aumentar os reditos dos intervenientes o mesmo não se poderá dizer em relação ao açúcar e vinho que contribuíram para o enriquecimento das gentes da ilha. A própria coroa e senhorio fizeram depender grande parte do financiamento das despesas ordinárias desta fonte de receita. A par disso o enobrecimento da vila, mais tarde, cidade do Funchal fez-se à custa destes dinheiros. O Funchal avançou para poente e adquiriu fama de novos e potenciais mercados. Todavia, a opulência foi de vida efémera. Desde a terceira década do século XVI o açúcar madeirense é destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo a preferência em favor do canário ou brasileiro, de menor qualidade, mas que ais aparecem com preços mais baratos. A persistência de alguns lavradores, a celebridade da superior qualidade e a solicitação pela

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doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura dos canaviais se mantivesse por largos anos atingindo, em momentos de crise nos mercados americanos, alguma pujança. Mas, irremediavelmente condenada a elevada rentabilidade da cultura, o madeirense foi forçado a canalizar todas as atenções para as vinhas, fazendo-as assumir o espaço abandonado pelas socas de cana. Os canaviais deram lugar às latadas e os engenhos aos lagares e armazéns. A mudança na estrutura produtiva provocou alterações na dinâmica económica da ilha. O açúcar definia apenas um complexo industrial, o engenho, onde decorria a respectiva safra. O vinho necessitará de dois espaços distintos. O lagar onde as uvas dão lugar ao saboroso mosto e os armazéns da cidade onde este fermenta e é preparado para atingir o necessário aroma e bouquet. O agricultor, colono ou não, detém apenas o controle da viticultura, ficando reservado ao mercador o moroso processo de vinificação. Por mais de dois séculos a vinha e o vinho surgem como os principais aglutinadores das actividades económicas da ilha, dando ao meio rural e urbano desusada animação. O Funchal cresceu em monumentalidade e as principais famílias reforçaram a posição económica. A conjuntura da primeira metade de oitocentos, demarcada pelos conflitos europeus, guerra de independência das colónias, associada aos factores de origem botânica (oidio-1852, filoxera-1872) conduziu ao paulatino degenerescimento da pujança económica do vinho. Como corolário sucederam-se as fomes, nos anos quarenta, e a sangria emigratória nas décadas de 50 e 80, para o continente americano, onde o madeirense foi substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de setenta anos a confusão institucional e económica alarga-se ao domínio social e alimentar. Assim, sucedem-se novos produtos de importação do Novo Mundo que ganham uma posição de relevo na culinária madeirense. Destes destacam-se o inhame e a batata. A par disso definem-se políticas de reconversão e ensaios de novos produtos com valor comercial (tabaco, chá,...). A emigração oitocentista e no período após a Segunda Guerra Mundial foi responsável por um acentuado processo de desertificação do interior da ilha, o que arrastou muitas terras para o abandono. Era o início de um pousio necessário para aquelas, esgotadas com a exploração intensiva das culturas de subsistência e exportação. As políticas de reflorestação em ambos os momentos permitiram o aumento da mancha florestal, sem conflito com a actividade agrícola. Em pleno apogeu da indústria vinhateira tivemos a afirmação de um novo sector de serviços. Na segunda metade do século XVIII a ilha assumiu um outro papel. Alguém terá dito que os iniciais promotores do turismo insular foram os gregos, mas os primeiros turistas foram, sem dúvida, ingleses. Os gregos celebraram, na sua prolixa criação literária, as delícias das ilhas situadas além das colunas de Hércules. Os arquipélagos da Madeira e Canárias são mitologicamente considerados a mansão dos deuses, o seu jardim das delícias, onde eles convivem com os heróis da mitologia. Foram os ingleses, ainda que muito mais tarde, a desfrutar desta ambiência paradisíaca, reservada aos deuses e heróis, escolhendo-as como rincão de permanência, breve ou prolongada. Diz-se até que a primeira viagem de núpcias, embora ocasional, terá sido protagonizada por um casal inglês. Mais uma vez a lenda que ficou conhecida como de Machim. Na verdade, foi a visão mítica, perpetuada nos relatos antigos ou reavivada nos testemunhos coevos,

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que motivou o desusado interesse do inglês pelas belezas aprazíveis da Madeira. A Europa oferecia ao aristocrata britânico demasiados motivos para o “grand tour” cultural. O ilhéu, autêntico cabouqueiro e jardineiro do rincão, estava por demais embrenhado na árdua tarefa de erguer paredes e arrotear os poios, e por isso mantinha-se alheio às delícias. Para ele a beleza agreste dos declives não passava de mais um entrave na luta contra a natureza. Enquanto o madeirense cavava e traçava os poios o inglês entretinha-se nos passeios a cavalo ou em rede pelos mais recônditos locais da ilha. A verdadeira descoberta da Madeira foi obra dos ingleses. Mas foi o português descobriu apenas o caminho para cá chegar.

A CANA-DE-AÇÚCAR E MEIO AMBIENTE “Islands seem always to have occupied a significant place in the environmental imagination of man” (D. Worster, Nature’s economy. A History of Ecological ideas, Cambridge, 1977, p. 115)

Gravura. Século XIX. Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas

As ilhas são um universo à parte. São resultado do fascínio das lendas e dos sonhos em todos os tempos. Desde a Antiguidade que as ilhas Atlânticas são as protagonistas disso. Ilhas de utopia ou de sonho acabam por se revelar de forma extasiada aos navegadores do século XV. A literatura de Antiguidade clássica mediterrânica fez do Atlântico o lugar de sonho e ilusão. Aí fez nascer ilhas paradisíacas. Os jardins das Hespérides, como também se desfizeram algumas, como a testemunha a mítica atlântica. Foi este fascínio que acompanhou os navegadores peninsulares que desde o século XIV as demandaram obstinados pela conquista e ocupação. O objectivo era trazer o paraíso ao seu mundo e fazer dele a morada. A ilusão, a obstinação do paraíso bíblico domina a chegada dos navegadores portugueses às ilhas, como Colombo às Antilhas e os colonos de Mayflower às costas americanas70. A chegada é considerada um acto de reconciliação. O homem regressa ao paraíso da bíblia71. O mesmo pensamento domina a passagem dos cientistas europeus, nomeadamente britânicos, pela ilha a partir do século XVIII. As expedições científicas imbricam-se de forma directa no traçado das rotas comerciais que ligavam as metrópoles às colónias72. A ilha da Madeira assumiu de novo um desusado protagonismo. O paraíso é sinónimo de conhecimento e investigação. A Europa maculada e perdida pela presença humana procura nestes rincões refazer o paraíso perdido. Repetem-se os epítetos vindos da pena de cientistas e literatos. A ilha conquista-os pelas condições que oferece. O clima ameno faz dela uma escala retemperada para a cura da tísica pulmonar ou na da incessante busca dos segredos que esconde a Mãe-Natureza. Para além do fascínio

70 Barbara Novak, Nature and Culture-american landscape painting. 1825-1875, N. Y., 1980, p.4, 18; Richard Grove, Ecology, climate and Empire. Studies in colonial environmental. History 1400-1940, Cambridge, 1997, p.184. 71 J. Prest, The Garden of Eden: The Botanic Garden and the Re-creation of Paradise, New Haven, 1981. 72 Cf. David Arnold, The Problem of Nature: environment, culture and European Expansion(new perspectives on the past), Oxford, 1996, p.165

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que a ilha oferecia a todos que se deixavam envolver no seio é de salientar a importância que assumiu desde que em princípios do século XV foi revelada aos portugueses. Primeira terra descoberta e revelada em todos os encantos acabou por assumir um papel fundamental no contexto da expansão europeia no Atlântico. Aqui aportaram os primeiros europeus e aquilo que identifica o mundo natural destes bravos aventureiros. A descoberta é também um acto de transformação do meio natural, adaptado às exigências dos novos habitantes. A arca de Noé acompanha os navegadores-povoadores e faz com que tudo se transforme num ápice. O acto dos descobrimentos europeus não é apenas uma forma de afirmação do mundo europeu no novo mundo, que vai do Atlântico ao Pacífico, mas também uma descoberta do meio natural. Flores, plantas, animais exercem um fascínio especial na prosa destes aventureiros e, por vezes, homens de ciência. Primeiro os animais exóticos, que afluem à Europa como troféu. Depois as plantas que assumem valor económico73. Feitas as contas a permuta foi favorável ao europeu. A cana-deaçúcar, vinha, cereal e alguns legumes serviram de troca ao cacau, café, tabaco e a inúmeros frutos, sementes e raízes exóticas que rapidamente nos conquistaram. Em ambos os sentidos os protagonismo das ilhas nesta permuta foi deveras relevante. O chão das ilhas oferece condições especiais para aclimatação. Mais uma vez a posição geográfica e o papel que jogam nos diversos momentos das relações da Europa com as colónias foi fundamental para a função das ilhas como jardins de aclimatação. Conhecer o mundo das ilhas, em mais de cinco séculos de História, é o mesmo que acompanhar a par e passo o devir da expansão europeia e o processo de mundanização da economia que o mesmo provocou. Também deverá ter-se em conta que esse protagonismo atingiu o campo da Ciência, nomeadamente do relacionamento do Homem com o meio envolvente. O interesse pelo conhecimento do mundo envolvente, desde a Fauna à Flora, cativou também os insulares de modo que toda a realização das ilhas está intimamente ligada ao processo.

Gravura de W. Combe, 1821. Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas

ROTAS DE MIGRAÇÃO: HOMENS, PLANTAS E MERCADORIAS. A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu ao traçado de rotas de navegação e comércio que ligavam o Velho Continente ao litoral atlântico. A multiplicidade de rotas resultou das complementaridades económicas e formas de exploração adoptadas. Se é certo que estes vectores geraram as referidas rotas, não é menos certo que as condições mesológicas do oceano, dominadas pelas correntes, ventos e tempestades, delinearam o rumo. As mais importantes e duradouras de todas as traçadas foram sem dúvida as da Índia e Índias que galvanizaram as atenções dos monarcas, da população europeia e insular e também dos piratas e corsários. A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga

73 Cf. José E. Mendes Ferrão, A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1992; António Luís Ferronha, Mariana Bettencourt e Rui Loureiro Alfredo, A Fauna Exótica dos Descobrimentos, Lisboa, 1993; Margarido, As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos, Lisboa, 1994.

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Gravuras.sécu lo XIX. Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas

escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago foi, assim, o centro de irradiação dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Daqui resultou para a Madeira o papel fundamental de difusão das culturas existentes na Europa e que tinham valor para assegurar a subsistência ou a exportação. Com a revelação de novos espaços do Atlântico e Índico tivemos o retorno de novas culturas e produtos que vieram enriquecer o cardápio europeu. E de novo as ilhas da Madeira e Cabo Verde voltaram a assumir papel disseminador74. Em qualquer dos momentos assinalados as ilhas cumpriram o papel de ponte e adaptação da flora colonial. Os jardins de aclimatação foram a moda que na Madeira e Açores tiveram por palco as amplas e paradisíacas quintas. O Marquez de Jácome Correia75 identifica para a Madeira as quintas do Palheiro Ferreiro e Magnólia como jardins botânicos. São viveiros de plantas, hospital para acolher os doentes da tísica pulmonar e outros visitantes. O deslumbramento acompanhou o interesse científico e os dois conviveram lado a lado nas inúmeras publicações que o testemunham no século XIX No traçado das rotas oceânicas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com um papel primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e Canárias surgiram nos séculos XV e XVI como entrepostos do comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animaram-se de forma diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, foram a escala necessária e fundamental da rota de retorno. A posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comércio e navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial. As ilhas foram os bastiões avançados, suportes e os símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento no oceano fazia-se na área definida por elas e atraiu piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares foi a defesa das embarcações das investidas dos corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores foi o principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho continente.

74. Cf, G. Lapus, Les Produits Coloniaux d’Origine Végétale, Paris, 1930; J. E. Mendes Ferrão, Transplantação de Plantas de Continentes para Continentes no Século XVI, Lisboa, 1986; IDEM, A Difusão das Plantas no Mundo através dos Descobrimentos, in Mare Liberum, nº. 1, 1990, 131-142; IDEM, A Aventura das Plantas, Lisboa, 1992. 75. A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.173, 178

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O MADEIRENSE E O MEIO NATURAL Passamos a grande ilha da Madeira Que do muito arvoredo assim se chama Das que povoamos a primeira mais célebre por nome que por fama (…) (Camões, Lusíadas, est.5, canto V, 1613) Da leitura dos clássicos e da produção historiográfica recente releva-se uma situação particular que toca de novo o arquipélago da Madeira. A Madeira não se posiciona apenas nos anais da História universal como a primeira área de ocupação atlântica, pioneira na cultura e divulgação do açúcar ao Novo Mundo. A expansão europeia não se resume apenas ao encontro e desencontro de Culturas, mas também marca o início de um processo de transformação ou degradação do meio ambiente. O europeu carrega consigo a fauna e flora do convívio e com valor económico, que irão provocar profundas mudanças nos novos ecossistemas. Com isto acontece que o espaço vivido e natureza se universalizam. Nos séculos XV e XVI foram as viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e descoberta da natureza, comandadas por ingleses e franceses. A Madeira foi o viveiro de aclimatação nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo que tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta disso. O processo de imposição da chamada biota portátil europeia, no dizer de Alfred Crosby, foi responsável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos. Quem não se lembra da praga dos coelhos do Porto Santo? Que dizer do incêndio que lavrou na ilha durante sete anos? Outro facto, também insistentemente referido, é o da própria ilha da Madeira. O nome foi o atributo para referenciar a abundância e aspecto luxuriante do bosque. Mas em pouco tempo, as queimadas para abrir clareiras de cultura e habitação, o desbaste para fruição das lenhas e madeiras, fizeram-na desmerecer tal epíteto. Da Madeira quase só ficou o nome…! A tradição refere que os navegadores portugueses atearam um incêndio à densa floresta para poder penetrar, mas este ganhou tais proporções que os atemorizou. Foram sete anos de chama acesa, diz a tradição. Todavia, hoje ninguém acredita na versão divulgada por Francisco Alcoforado e repetida em Cadamosto e outros autores da época, que a ser verdade teria reduzido a ilha a carvão. A situação expressa uma realidade que pautará a expansão europeia e que só nos últimos

Gravuras.século XIX. Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas

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anos tem cativado a atenção do historiador. Tudo isto tem origem num produto devorador que conquista a economia de mercado e que pautou a evolução da economia atlântica a partir do século XV. O carrasco é o açúcar. A disponibilidade só é possível com o processo de degradação do meio que viu nascer os canaviais. A Europa parte no século XV à procura do Éden, bíblico ou descrito na literatura clássica grecoromana. Foi um dos motivos do empenho de Colombo, mas também dos navegadores portugueses. O reencontro era encarado como uma conciliação com Deus o apagar do pecado original de Adão e Eva. A imagem persegue quase todos os navegadores quinhentistas e deverá estar por detrás do empenho daquelas que aportaram à Madeira. Tenhase em conta que as duas primeiras crianças nascidas na ilha, filhas de Gonçalo Aires Ferreira tiveram nomes bíblicos de Adão e Eva. Era o retorno ao Éden, que aos poucos foi sendo perdido, tal como sucedera aos primogénitos Adão e Eva. A recuperação desta imagem acontecerá mais tarde no século XVIII em que a ilha é de novo o paraíso redescoberto para o viajante ou tísico ingleses, recuperado e revelado ao cientista, seja ele inglês, alemão ou francês, através das recolhas ou da recriação através dos jardins botânicos.

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Canas.2002

A CANA-DE-AÇÚCAR DEVORA A PAISAGEM “Dificilmente se encontrarão formas de utilização dos recursos dos solos que se possam rivalizar com a agro indústria canavieira quanto à capacidade de condicionar um tipo de sociedade e de economia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo de arranjo económico do espaço”. (Mário Lacerda de Melo, O Açúcar e o homem, 1975) “Já afirmou alguém, com muita razão, que o cultivo da cana-de-açúcar se processa em regime de autofagia: a cana devorando tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, dissolvendo o húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano, do qual a sua cultura tira toda a vida. E é a pura verdade... Donde a caracterização inconfundível das diferentes áreas geográficas açucareiras, com seu ciclo económico, com as fases de rápida ascensão, de esplendor transitório e de irremediável decadência. Ciclo este que se processa tanto mais rapidamente quanto menores os recursos de terras disponíveis. Daí a semelhança de aspectos entre áreas diferentes como o Haiti, Cuba, Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro”. (Josué de Castro, Geografia da Fome, R. Janeiro, 1952, p.73)

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A cana-de-açúcar poderá ser considerada, com propriedade, como a cultura agrícola mais importante da História da Humanidade, pois provocou o maior fenómeno em termos de mobilidade humana, económica, comercial e ecológica. A afirmação como cultura agrícola é milenar e abrange vários quadrantes do planeta. É de todas as plantas domesticadas pelo Homem aquela que acarreta maiores exigências. Quase que escraviza o homem esgota o solo, devora a floresta e dessedenta os cursos de água. A exploração intensiva desde o século XV gerou grandes exigências em termos de mão-de-obra, sendo responsável pelo maior fenómeno migratório à escala mundial que teve por palco o Atlântico: a escravatura de milhões de africanos. Ligado a tudo isso está também um conjunto variado de manifestações culturais que vão desde a literatura, à música e à dança. Foi o Oriente descobriu a doçura, tendo a Papua Nova Guiné como Berço. Os árabes fizeramno chegar ao ocidente e foram os principais arautos da expansão. Genoveses e venezianos encarregaram-se do comércio na Europa. Mas é nas ilhas que ela encontrou um dos principais viveiros de afirmação e divulgação no Ocidente: Creta e Sicília no Mediterrâneo, Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde e S. Tomé no Atlântico Oriental Puerto Rico, Cuba, Jamaica, Demerara (…) nas Antilhas. A realidade sócio-económica que serve de suporte ao açúcar diferencia-se no percurso do Pacífico/Índico para o Mediterrâneo/Atlântico. Assim, no primeiro caso não assume a posição dominante na economia, primando pelo carácter secundário, enquanto no segundo é patente o efeito dominador na economia e sociedade/associação ao escravo, que começa no Mediterrâneo e se reforça no Atlântico. A cana, tal como afirma Josué de Castro, é autofágica. A realidade histórica dos últimos cinco séculos, em que assumiu um estatuto de produção em larga escala, assim o confirma. Aquilo que aconteceu na Madeira dos séculos XV e XVI repetiu-se nas Canárias, Caraíbas e só não atingiu idênticas proporções no Brasil, porque a mata atlântica era extensa. Os problemas, embora surgissem mais tarde, também tiveram lugar. Gilberto Freire afirma que “o canavial desvirginou todo esse mato grosso de modo mais cru pela queimada. A cultura da cana… valorizou o canavial e tornou desprezível a mata”. O processo é simples. Para plantar a cana derruba-se ou queima-se a floresta. Depois para fabricar o açúcar a floresta faz falta para manter acesa a chama dos engenhos, ou construir as infra-estruturas. A cana tem na floresta o maior amigo e inimigo. Um exemplo apenas evidência a dimensão que assumiu o processo. Os arquipélagos da Madeira e Canárias foram os primeiros a sentir os efeitos devastadores da cultura. O espaço limitado das ilhas não permitiu a continuidade da cultura açucareira que rapidamente devastou a sua reserva florestal. A Madeira foi buscar o nome ao denso arvoredo que a cobria à chegada dos primeiros europeus. Cem anos mais tarde a situação da vertente sul era distinta. O processo agrícola em torno da cana sacarina fez abater as árvores de grande porte para abrir caminho aos canaviais. A laboração dos engenhos obrigou ao desbaste de madeiras e lenhas para alimentar os engenhos. Em pouco tempo as encostas sobranceiras ao Funchal ficaram escalvadas. Os reflexos da situação cedo se fizeram sentir obrigando as autoridades a intervir no sentido de limitar o avanço das áreas de cultivo e de controlar o abate de madeiras e lenhas. Em 1466 os moradores do Funchal contestavam o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as

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esmoutar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira76. Perante tal reclamação, o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar77 e, por isso, D. Manuel repreendeu-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. E, finalmente, em 148578, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria79, a única ressalva eram as terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos. As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20 entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascilgo de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existência dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações régias e senhoriais, conduziram à diminuição da área de pascilgo, de usufruto. Saliente-se que o próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o capitão do Funchal distribui-se terras na serra para currais e cultura de cereais e das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto80. Nas ilhas onde o espaço florestal é limitado, o equilíbrio entre os recursos e a agro-industria de exportação é sempre precário. A história do Açúcar revela-nos que o período médio de afirmação das culturas não chegava a um século. Sucedeu assim na Madeira, como em algumas ilhas das Canárias e nas Antilhas, como foi o caso de Jamaica81. O litígio entre as capitanias do Funchal e Machico quanto ao usufruto da floresta foi uma constante no século XVI. Acontece que a capitania do Funchal dispunha da maior área de produção de açúcar da ilha, superior a dois terços, mas era na de Machico que se encontra o mais importante manto florestal necessário a alimentar os engenhos. O Vedor da Fazenda Real determinava em 158182 que a fruição das madeiras destinadas ao fabrico do açúcar fossem de fruição comum. A situação manteve-se nos anos imediatos sendo necessária a intervenção da coroa.83. No sentido de controlar o consumo de lenhas pelos engenhos a câmara nomeava um estimador de lenhas, que através de uma bitolha ”de sinco palmos e meio de largo e de altura dous e meio”84. Tenha-se em conta que muitas das inovações no domínio da indústria açucareira surgem por necessidade de poupar energia. Assim, a partir do século XVII a generalização do chamado trem

76. Ibidem, T. 1, fls. 135-138vº. 77. Ibidem, T. 1, fls. 249-251. 78. Ibidem, T. 1, fl. 51. 79. Ibidem, T. 1, fls. 287-288, 289vº-291. 80. Ibidem, T. 1, fl. 45vº. 81. Cf. estudo exemplar de David Watts, Las Índias Occidentales. Mdalidades de Desarrollo, Cultura y Cambio MedioAmbiental desde 1492, Madrid, 1992. 82. ARM, Documentos Avulsos, cxª.2, nº.214:19 de Maio. 83. Ibidem, caixa 2 nº.222, 4 de Outubro1586; caixa 2, nº234, 26 de Janeiro de 1596 84. ARM, CMF, nº.1328, fl.20: 16 de Maio de 1637.

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jamaicano pode ser considerado um contributo significativo. A solução estava em apenas uma fornalha alimentar as três caldeiras. Assim, o fabrico de um quilo de açúcar deixa de necessitar de 15 quilogramas de lenha, passando para um terço85. No século XIX generalizou-se a máquina a vapor, que veio dar descanso à floresta uma vez que os engenhos passaram a ser alimentados por carvão mineral. A partir de meados do século XV a aposta na cultura dos canaviais e fabrico do açúcar conduziram inexoravelmente à destruição da parca floresta da ilha. Abatia-se árvores para plantar soca nova, mas acima de tudo para poder dispor de madeiras para construir os engenhos e lenhas necessárias ao fabrico do açúcar. A tradição anota que para o fabrico de um quilograma de açúcar era necessários 15 Kgs de lenha.

ANO

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM KGS

LENHA KGS

ANO

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM KGS

LENHA KGS

1455 1472 1473 1474 1493 1494 1497 1498 1499 1501 1504 1505 1506 1507 1508 1509 1510 1512 1513 1516 1517 1518

36.309 220.500 2.94.000 441.000 1.176.000 1.478.290 1.517.187 1.468.191 1.764.000 1.687.236 1.665.774 3.077.621 3.384.175 2.601.679 2.544.452 2.152.080 2.117.755 1.946.662 1.644.018 1.794.899 1.367.173 1.695.527

54.4.635 3.307.500 4.410.000 6.615.000 17.640.000 22.174.362 22.578.805 22.022.878 26.460.000 25.308.549 24.986.619 46.164.321 50.762.628 39.025.192 38.166.786 32.281.200 31.766.332 29.199.933 24.660.279 26.923.491 20.507.602 25.432.911

1520 1521 1522 1523 1524 1525 1526 1527 1528 1529 1530 1534 1535 1536 1537 1581 1582 1583 1584 1585 1586

1.291.659 1.571.238 1.393.618 1.465.090 1.194.477 957.396 848.836 1.020.106 1.242.591 1.050.447 823.023 794.931 760.239 756.947 687.827 539.049 544.620 517.469 632.555 475.427 464.490

19.374.894 23.568.583 20.904.282 21.976.353 17.917.168 14.360.944 12.732.552 15.301.597 18.638.865 15.756.709 12.345.354 11.923.978 11.403.598 11.354.206 10.317.415 8.085.735 8.169.304 7.762.041 9.488.335 7.131.411 6.967.359

85. Warren Dean, A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, S. Paulo, 1996, pp.191-196

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ANO

1637-44 1660-62 1670-72 1677-79 1698

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM KGS

383.376 51.626 92.360 25.798 588.00

LENHA KGS

5.750.640 774.396 1.385.401 386.977 8.820.000

A devastação da floresta foi catastrófica. A situação tornava-se mais evidente nas ilhas onde o hinterland era reduzido. A primeira imagem disto está na ilha de Chipre, onde a construção naval e a exportação levaram a que perdesse o epíteto de ilha verde, dado pelos antigos86. Isto repete-se na Madeira, Canárias e na maioria das Antilhas. Um dos aspectos significativos do recurso à floresta foi a construção naval. A expansão europeia desde o século XV implicou uma revolução no sector. Os séculos XVII e XVIII de forte competência das potências europeias no domínio do mar e do Novo Mundo conduziram ao incremento da construção naval. Até 1862, altura em que se atingiu a idade do ferro, a madeira era a matériaprima da construção naval. O caso mais evidente disto está na Inglaterra que, ao ver perdida a floresta se socorre das madeiras de América do Norte para assegurar o poderio naval. Aliás, este continente foi a principal reserva europeia: a Nova Inglaterra para os ingleses e o Canada para os franceses. A Madeira assume aqui um lugar de destaque. A ilha ganhou o nome do denso arvoredo, mas a presença do homem desde o século XV rapidamente conduziu ao desaparecimento na vertente sul. Tal como afirma S. Pyne87 a Madeira não é uma caricatura do processo de desflorestação, mas a evidência. Tendo em conta as múltiplas funções da floresta os estudos realizados repartem-se em a História da floresta em geral, os múltiplos usos que vão desde o combustível a construção naval. A incessante procura conduziu o homem à busca de medidas da defesa que surgem em circunstâncias e conjunturas de crise deste inestimável recurso. A par do usufruto da floresta como fonte de combustível à de assinalar o aproveitamento das madeiras, consideradas a primeira riqueza dos povoadores, a fazer fé naquilo que referem Zurara, Valentim Fernandes e Gaspar Frutuoso. As madeiras de til, vinhático, aderno, barbuzano, cativaram a atenção de colonos e forasteiros. As serras de água que proliferaram por toda a ilha, com maior incidência da encosta norte, podem ser consideradas o símbolo da busca desenfreada de árvores para abate. É certo que a necessidade de lenhas como combustível para o dia ? dia caseiro, para a indústria de panificação, forjas e engenhos de açúcar levaram paulatinamente à diminuição das reservas florestais. Mas foi sem dúvida o desbaste para a agricultura que conduziu inevitavelmente ao processo destrutivo. A sentença estava dada: “ In all new countries covered with forests the setlers are apt to consider trees as their enemy. They wage an implacable warfare agians them, until the whole

86. J. V. Thirgood, Man and the Mediterranean Forest. A History of resource depletion, London, 1981, p. 125. 87. S. J. Pyne, Fire in America, 1982) p. 124.

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face the land becomes naked, the streams driedun, the summers made hotter, and the winters colder, by opening the earth to the sun and winds. The succeeding generation labours as industriously to produce shade as its predecessors did to destroyed it”88 Perante as contingências do processo de aproveitamento económico da ilha, o espaço florestal desapareceu a olhos vistos perante olhar atónito das autoridades e dos cientistas de passagem pela ilha. Daqui resultou uma situação particular da ilha que é insistentemente evidenciada por todos os visitantes. O Sul escalvado contrasta com o Norte, onde ainda persistia a floresta indígena89. É evidente o perigo de desaparecimento de algumas espécies da flora indígena. Em 1792 J. Barrow refere a situação o cedro, enquanto em meados do século J. Mason junta também o dragoeiro, folhado e vinhático. O processo de desflorestação é evidente para todos os observadores, sejam locais ou visitantes, e mereceu alguns reparos. Em 1817 Paulo Dias de Almeida90 acusa os carvoeiros da situação em que encontra a ilha: “...as montanhas que não há muitos anos vi cobertos de arvoredos, hoje os vejo reduzidas a um esqueleto. O Centro da ilha se acha, todo descoberto de arvoredo, com apenas algumas árvores dispersas, e isto em lugares onde os carvoeiros não tem chegado”. Se a atenção e preocupação dos cientistas estava na descoberta e classificação das novas espécies, o empenho das autoridades incidia na preservação do parco manto florestal necessário à sobrevivência humana e ao equilíbrio da economia. Do século XV até ao presente, é interminável o conjunto de regulamentos, ordenações e posturas sobre o assunto. A legislação florestal madeirense é prolixa, sendo de destacar o regimento das Madeiras de 1562, o mais antigo que se conhece pois faltam notícias sobre o de 1515, o regimento das matas e arvoredos de 1839, o plano de organização dos Serviços Florestais de 1886 e o Regimento do Serviço de Polícia Rural e Florestal de 1913. As regulamentações genéricas tiveram réplica nas posturas Municipais91 e recomendações dos corregedores lavradas nas correições92 completam o quadro das medidas protectoras do manto florestal. Daqui se conclui que não houve esquecimento e falta de regulamentação. As contingências de cada época ditaram, sem dúvida, a sua ineficácia. Estas medidas poderão resumir-se à preservação daquilo que existe através de medidas limitativas do abate de árvores e recuperação do coberto florestal com uma política de reflorestação das zonas ermas ou em abate. A salvaguarda da floresta passava não só pelo estabelecimento de medidas rigorosas que controlassem o abate, que deveria estar sujeito a licenças camarárias, mas também ao ataque em todas as frentes aos agentes devastadores, onde se incluíam o fogo e o gado solto. As queimadas, tão comuns desde o povoamento, foram um dos principais agentes devastadores e por isso insistentemente proibidas. O gado é obrigatoriamente acantonado a espaços circundados 88. A Winter in Madeira, N. York, 1850, p.125 89. Rambles in Madeira, 1827, p.147; R. White, Madeira, 1859, p.69; W. Cooper, The Invalid’s Guide to Madeira, 1840, p.13 90. Rui Carita, Paulo Dias de Almeida e a Descrição da ilha da Madeira, Funchal, 1982, p.53 91. ARM, C. M. Santa Cruz, nª291, novo caderno de posturas; Posturas do Concelho de Santa Anna, Funchal, 1837; ARM, Governo Civil, n1.155, Posturas (1840); Posturas da Câmara Municipal da Cidade do Funchal, 1849 e 1895; Posturas da Câmara Municipal da Villa de Machico, 1856; ARM, C. M. Funchal, n1.239, Registo de posturas (1869-1885); Código de Posturas da Câmara Municipal do Concelho do Porto Moniz, 1890. 92. ARM, C. M. Machico, nº.5-6, livro de correições 1768-1808; ARM, C. M. Funchal, n1168 (1768); ARM, C. M. Porto Santo, nº.54 (1780-1829); ARM, C. M. Santa Cruz, nº.171 (1808-1832).

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por um bardo. A floresta não era um espaço de diversão mas algo fundamental para a economia da ilha. Vedar-lhe o acesso era impossível. Daí as medidas disciplinadoras do uso de acordo com um processo económico harmonioso. Foi com um violento incêndio que os povoadores, segundo Cadamosto, “varreram grande parte da dita madeira, fazendo terra de lavoura”. As queimadas sucederam-se infinitamente e levaram a coroa a estabelecer um travão. Outros violentos incêndios se sucederam. Os que ficaram para a História, fruto da acção humana são de os 180793 e depois em 1910 e 191994. Em 1593 documentase o fogo do céu que causou elevados danos na cidade e manto florestal. Muitos dos incêndios na floresta foram resultado da incúria ou malévola iniciativa dos carvoeiros. Estes são considerados em finais do século passado como os principais inimigos da floresta95. Sobre eles incidiam as culpas dos diversos incêndios que se ateavam com insistência nas serras da ilha. Paulo Perestrelo da Câmara é incisivo nas acusações: “os bárbaros carvoeiros cortam e queimão desapiedadamente, as árvores mais robustas e úteis e quazi todos os annos deixam atear fogos, que por dias e mezes consomem ?s vezes legoas de mato”96. A luta não permitia tréguas. Assim, sucediam-se as medidas que procuravam assegurar a preservação da floresta e a reposição do coberto vegetal. Mas a política de reflorestação da ilha assumiu uma dimensão adequada na segunda metade do século XIX. A primeira indicação é de 1677, altura em que se recomendava o plantio de amoreiras em Machico, Santa Cruz e Porto Santo97. O grande promotor da política foi o corregedor Francisco Moreira de Matos. Em 1769 ele dava conta dos infractores de Santa Cruz quanto à fiscalização das medidas que determinavam a obrigatoriedade de plantar árvores nas terras baldias, o que prova estar já em execução98. Na Ponta de Sol em 1789 explicita-se que o plantio deveria ser de árvores silvestres e de fruto99. A solução tornou-se extensiva a toda a ilha através da carta circular de 25 de Dezembro de 1770100. Em Santa Cruz sabemos que a medida era fiscalizada pelos próprios moradores, nomeando a vereação dois homens por cada localidade. Aos baldios juntam-se as escarpas montanhosas e as áreas de cultivo. Assim em 1791 recomendava-se aos lavradores das meias terras acima eram obrigados a plantar meio alqueire ou uma quarta, dependendo da extensão das terras, de castanheiros, enquanto os outros deveriam plantar pelo menos duas laranjeiras e um limoeiro. Por outro lado as terras escalvadas e do interior deveriam ser semeadas no decurso do mês de Setembro de pinheiros. Outra das propostas era a amoreira, que “alimenta bicho-da-seda e distraem lagartixas não comam uvas”101. Apenas nos dois anos que antecederam a visita do corregedor em 1795 a Ponta de Sol se

plantaram 35.000 árvores102. A salutar medida teve diversas formas de concretização. Assim, em 1800 aquele que cortasse uma árvore era obrigado a plantar outra no lugar103 como testemunha em 1821 W. Combe104. Todas as medidas de defesa e recuperação do meio natural passaram no imediato para o articulado das posturas105. Assim, em Machico (1840) e Funchal (1849) reclamava-se que aqueles que viviam da serra com a lenha e carvão deveriam plantar em Janeiro seis árvores na terra. José Silvestre Ribeiro, como governador (1846-1851) teve uma actuação exemplar na defesa das florestas e de reposição do coberto106. Em 1849 apostou na distribuição de sementes de pinhão e no ano imediato propor à Junta Geral a criação de um viveiro geral para toda a ilha. Na proposta recomendavase o plantio de árvores indígenas: vinhático, loureiro, aderno e perado. Uma das formas de incentivo da política de reflorestamento estava na atribuição de prémios aos que mais se distinguiam na tarefa. A Sociedade Agrícola Madeirense (1849-1880) aderiu à política e afirmou-se como promotora da sementeira de árvores e da preparação de legislação adequada. O Porto Santo é um caso extremo da necessidade de rearborização, dependendo disso a reanimação agrícola da ilha. Pelo menos foi o que se entendeu em 1771 com o Regimento de Agricultura, onde se insistia no plantio, nas montanhas, de pinheiros, zimbreiros, castanheiros e junto das áreas de cultura, de amoreiras e espinheiros. A razão disso estava em que elas faziam “sombra à terra e attrahião a umidade da geada de que a mesma terra hé sumamente estéril”. Os resultados da política são visíveis e testemunhados pelos estrangeiros. Em 1851 Robert White107destaca a expansão do pinheiro face à floresta indígena. Dois anos após Isabella de França108depara-se com uma floresta de castanheiros, loureiros e pinheiros: “no cimo dos montes plantaram uma infinidade de pinheiros, a mais parte nas duas últimas décadas.”. Em 1854 E. Wateley destaca o trabalho e a presença de espécies da China, Austrália e Japão, nomeadamente no Jardim da Serra109. Já no nosso século o Marques de Jácome Correia destaca o esforço de plantio de árvores, de iniciativa pública e privada. No último caso tivemos o Visconde Cacongo e Luiz de Ornelas e Vasconcelos. De acordo com o mesmo em 1823 foram distribuídas por toda a ilha vinte mil árvores de eucaliptos, acácias, carvalhos e pinheiros110. Na verdade as décadas de quarenta e cinquenta foram tempos de reflorestação111. Tal como referia a Junta Geral no relatório de 1864 “a necessidade da arborização nas serras da Madeira, não se demonstra, sente-se”112. Daqui resultou a necessidade da aposta seguindo-se o exemplo dos franceses (1860) e espanhóis (1863). Sucederam-se várias medidas para fazer desta política uma realidade

93. Paulo Dias Almeida, ob. cit. 94. Cf. o testemunho de Assis Esperança, in Ilustração, 1929; Cabral do Nascimento, Lugares Selectos dos autores Portugueses que Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira, Funchal, 1949, p.185. 95. J. Freitas Branco, Camponeses da Madeira, Lisboa, 1987, pp.133-137; A. Marques da Silva, “Preocupações Ecológicas do Estrela do Norte”, in Atlântico, 19 (1989), 203-206. 96. Breve Noticia sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, 1841, 34-35. 97. Excursão na Madeira, 1891, p.83. 98. ARM, C: M. Machico, nº.6, fl. 5vº: 7 de Abril de 1769. 99. ARM, C. M. Ponta Sol, nº.220, fl. 68vº-69: 19 Novembro 1789. 100. ARM, C: M. Machico, nº.5, fl. 16vº: 11 de Maio de 1771. 101. ARM, C. M. Machico, nº. 5, fl.72: 22 de Novembro de 1791.

102. ARM. C. M. Ponta Sol, nº.220, fl.80vº: 29 de Agosto 1795. 103. ARM, C. M. Machico, nº. 5, fl.83vº: 11 de Dezembro 1792. 104.A History of Madeira, p.23 105.Veja-se a compilação da documentação e textos mais importantes de Fernando Augusto da Silva, Manuel Braz Sequeira, João Henriques Camacho e Visconde do Porto da Cruz. 106. Uma época Administrativa da Madeira e Porto Santo, 3 vols, Funchal, 1850-1856. 107. Madeira, p. 69. 108. Journal of a Visit to Madeira, pp. 48-49, 63, 76, 138-139. 109. A Visit to Portugal and Madeira, 1864, p.30. 110. A ilha da Madeira, Coimbra, 1927, pp.155, 173 111. Manuel Braz Sequeira, 1913, p.15

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na Madeira como foi o caso do alvará de 31 de Agosto de 1863 e o decreto de 21 de Setembro de 1867113. A aposta continuou no nosso século, tornando-se mais evidente a aposta com o avanço das encostas escalfadas fruto de desbastes ou dos incêndios que ocorreram. Em face disto a opção estava na arborização como testemunham os estudos de Manuel Braz Sequeira (1913) e João Henriques Camacho (1920). A própria câmara do Funchal deu o exemplo com o montado do Barreiro114. As Canárias foram o segundo grupo de ilhas a receber o impacto negativo da cultura açucareira. Desde finais do século XV que os canaviais trazidos da Madeira tiveram grande incremento nas ilhas de Gran Canaria, La Palma e Tenerife, as únicas do arquipélago onde a reserva de água e floresta foi suficiente para manter a cultura num curto lapso de tempo. A crise açucareira da segunda metade do século XVI não surge apenas como resultado da concorrência do açúcar de novas áreas, mas acima de tudo das dificuldades internas da própria cultura. O espaço da ilha é de recursos limitados que facilmente se esgotam. Sucedeu assim na Madeira como nas Canárias115. Para o Brasil no século XVIII cada quilo de açúcar equivale a 15 kg de lenha queimada, dando média anual de 210.000 toneladas. A cada hectare deverá corresponder 200 toneladas. A evolução recente da mata atlântica no Brasil, passados mais de cem anos sobre o incremento da máquina a vapor nos engenhos, continua a ser tragada por outros agentes. Assim, entre 1985 a 1990 ela perdeu 5.330 km2, ficando em 83.500km2, isto cerca de 8% da floresta encontrada portugueses em 22 de Abril de 1500. Esta continuada acção devastadora é assim descrita: “Durante quinhentos anos, a Mata Atlântica propiciou lucros fáceis: papagaios, corantes, escravos, ouro, ipecacuanha, orquídeas e madeira para o proveito de seus senhores coloniais e, queimada e devastada, uma camada imensamente fértil de cinzas que possibilitavam uma agricultura passiva, imprudente e insustentável. A população crescia cada vez mais, o capital “se acumulava”, enquanto as florestas desapareciam; mais capital então “se acumulava” - em barreiras à erosão de terras de lavoura, em aquedutos, controle de fluxos e enchentes de rios, equipamentos de dragagem, terras de mata plantada e a industrialização de sucedâneos para centenas de produtos outrora apanhados de graça na floresta. Nenhuma restrição se observou durante esse meio milénio de gula, muito embora, quase desde o início, fossem entoadas intermitentes interdições solenes que, nos dias atuais, são contínuas e frenéticas.” A situação, não obstante a extensa mata disponível, provocou alguns problemas. Em 1660 o município de Salvador da Baía definiu um conjunto de medidas, que não foram suficientes uma vez que em 1804 no Recôncavo era evidente a falta de lenhas e madeiras. O desaparecimento 112. Relatório, Funchal, 1864, p.30. 113. A. C. Heredia, Observações sobre a situação económica da ilha da Madeira, Lisboa, 1888, p.26. 114. Abílio Barros e Sousa, Plano de Arborização do Montado do Barreiro, Funchal, 1946. 115. Sobre a Cultura da Cana sacarina veja-se: CAMACHO y PÉREZ GALDÓS, G., “El cultivo de la cana de azúcar y la industria azucarera en Gran Canaria (1510-1535)” in Anuario de Estudios Atlanticos, nº 7, 1961. CASTANEDA DELGADO, Paulina, “Pleitos sobre diezmos del azucar en Santo Domingo y en Canarias “ in II CHCA, Vol. II, Las Palmas, 1979, pp. 247-272, LOBO CABRERA, Manuel, “La técnica de cultivo de la caria de azúcar”, in Islenha, nº8 (l99l, pp.5-l0, LUISA FABRELLAS, Maria, “La producción de azúcar en Tenerife” in Revista de História, n1 100, 1952, pp. 454-475, PEREZ AGUADO, Luis, La caña de azúcar en el desarollo de la ciudad de Telde (siglo XVI), Las Palmas, 1982. PEREZ VIDAL, José, “Las Canarias el azúcar, los dulces y las conservas” in II Jornadas de Estudios Canarios-America, Santa Cruz de Tenerife, 1981, pp. 176-179, RIVERO SUÁREZ, Benedicta, El azúcar en Tenerife (1496-1550), La laguna, 1990. Sobre problema da deflorestação: James O. Percy, Human Influences on the Pine and Laurel Forests of the Canary Islands, Geographical Review, LXXI, nº.3, 1981, 253-271, Antonio Santana Santana, Paisajes Históricos de Gran Canaria, Las Palmas, sd.

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da floresta próxima dos engenhos fazia aumentar os custos de fabrico do açúcar, agora onerados com os da lenha. O processo é similar nas regiões que antecederam o boom do açúcar americano. Em Motril a primeira metade do século XVI foi definida por uma quebra da produção açucareira, atribuída à falta de lenhas, o que levou à tomada de medidas desde 1540. A situação repete-se na Madeira e Canárias, o que provoca uma reacção dos proprietários de engenho, materializada em medidas exaradas em ordens régias e posturas municipais. As ilhas, pela limitação do espaço, são as primeiras a ressentir-se da realidade. Sucede assim em ambos os lados do Atlântico, apontando-se como única excepção as ilhas de S. Tomé e Príncipe. Nas Caraíbas a situação é igual. A ilha de Santo Domingo, hoje Haiti e Rep. Dominicana, a cultura da cana teve um apogeu curto de pouco mais de cinquenta anos, pois que em 1550 a notória escassez de lenha conduziu ao abandono de muitos engenhos desde 1570. Já em Jamaica, a promoção pelos ingleses da cultura, levou à busca de soluções. Primeiro o trem jamaicano que terá sido a solução mais eficaz. Com o sistema de fornalha o aproveitamento de lenha era evidente, pois apenas com uma só fogueira se conseguia manter as três fornalhas. Concomitantemente tivemos o recurso ao bagaço como combustível. Ambas as situações difundem-se primeiro nas Antilhas inglesas a partir da década de oitenta do século XVII e só depois atingem as demais áreas açucareiras. A generalização do sistema aconteceu primeiro nas ilhas, carentes de lenha, e só depois chegou ao Brasil. A entrada definitiva na indústria açucareira do Brasil é de 1806, altura em que Manuel Ferreira da Câmara, na Baía, adaptou o engenho à nova situação. Na época a grande inovação era já a maquina a vapor, que começou a ser usada no Brasil a partir de 1815. Entretanto a Caldeira de vacum, inventada em 1830 por Norbert Rillius de New Orleans, foi a técnica que revolucionou o fabrico do açúcar e que mais contribuiu para a economia de combustível116. Não fica aqui a acção devastadora da cana sacarina sobre o meio envolvente. Acontece que “a canna doce, sendo, como é, imã gramínea, é excessivamente esgotante; empobrece o terreno onde é cultivada, e d’ahi a necessidade de boas adubações, de maneira a restituir à terra os elementos

116. BIBLIOGRAFIA Fundamental: BLUME, Helmut, Geography of sugar cane. Environmental, structural and economical aspects of cane sugar production, Berlim, 1920; BOTELHO, Teresa Maria B., Tecnologia popular e energia no sector residencial rural. Um estudo sobre o fogão a lenha, R. de Janeiro, 1986; CROSBY, Alfred W., Ecological imperialism: the biological expansion of Europe 900-1900, Cambridge, 1986 (edição em Português, S. Paulo, 1993), IDEM, The Columbian exchange. Biological and cultural consequences of 1492, Westport, 1973; DEAN, WARREN, A ferro e fogo. A História e a devastação de mata atlântica brasileira, S. Paulo, 1996: DEER, Noel, History of sugar, 2 vols. London, 1949; FERRÃO, J. E., A influencia portuguesa na expansão das plantas no Mundo, Lisboa, 1980; IDEM, A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses, Lisboa, 1992; FREIRE, Gilberto, Nordeste, Rio de Janeiro, 1985; GALLOWAY, J. H., The sugar cane industry. A historical geography from its origins to 1914. Cambridge, 1990; GROVE, Richard, Green imperialism. Colonial expansion, tropical islands Edens, and the origins of environmentalism, 1600-1860, Cambridge, 1995; MACKENZIE, J. (ed.), Imperialism and their natural world, Manchester, 1990; MALPICA, Antonio, El azúcar en el encuentro entre dos mundos, Barcelona, 1992; MELVILLE, Elinor, A plague of sheep environmental consequences of the History of Mexico, Cambridge, 1994; MINTZ, Sidney W., Sweetness and Power, N. York, 1985; NEEDHAM, Joseph, Science of Civilization in China, vol. VI/3, (C. Daniels and N. K. Menzies), London, 1996; Paisages del azucar. Actas del Quinto Seminario Internacional, Motril, 1995; VIEIRA, Alberto, A Rota do Açúcar na Madeira, Funchal, 1996; IDEM, Do Éden à Arca de Noé, Funchal, 1999; WATTS, D, Environmental Change. Slavery and Agricultural Development in the Caribbean since 1492, Cambridge, 1985 (com edição em castelhano em 1992)8; WHEATLEY, Helen, Agriculture, resource explotation and environmental change, 1997; WHITE, Richard, Land use, environment and social change, Seattle, 1980; WORSTER, D., Nature’s Economy: A history of western ecological ideas, Cambridge, 1985

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que a anterior cultura lhe roubou. O emprego dos adubos químicos que fornecesse á planta a potassa, o phosphoro e a cal seriam da máxima vantagem, tanto mais que o solo da Madeira é pobrissimo d’esses dois últimos elementos; os adubos chimicos associados ao estrume de curral ainda seriam de melhor utilidade, fornecendo este ultimo a matéria orgânica azotada. “117 Esta acção devastadora da cana sobre o solo não é apenas uma evidência do século XIX, pois já no século XVI temos situações resultantes disto. A forte quebra de produção de açúcar madeirense a partir de 1521 é entendida também como fruto do empobrecimento dos solos118. Os solos ricos haviam sido sujeitos durante mais de cinquenta anos a uma exploração intensiva. A situação reflecte-se de forma evidente na qualidade do açúcar produzido, devido à diminuição do teor de sacarose da cana processada. Assim, a quebra generalizada da produção é simultânea com a valorização dos produtos de qualidade inferior. Diminui a quantidade de açúcar branco processado, mas em contrapartida aumenta ou estabiliza o de meles.119

O REGIME DE PROPRIEDADE DA TERRA E DA ÁGUA O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo aturado, assente nas fontes documentais que atestem o sistema de relações estabelecido na posse e produção da superfície arável120. No caso madeirense a historiografia preocupa-se, única e exclusivamente, com as condições jurídicas que regularam a distribuição das terras e depois à degradação do sistema com o alheamento do proprietário da parcela arroteável e à fixação no meio urbano. A situação contribuiu para a definição do conhecido contrato de colonia121. Não interessava conhecer quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade Apanha da cana. Postal antigo

117. Relatório sobre os Serviços Agrícolas e Filoxéricos Relativo ao Ano de 1891, in Boletim da Direcção Geral de Agricultura, Lisboa, no.11, 1892, p.1145. 118 .Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre história da Madeira, Funchal, 1991, pp.201-203, 213 119 . Ibidem, pp.217-218. 120 . Para a Madeira dispomos de alguns livros de tributação do açúcar aos lavradores, enquanto nas Canárias tal só é possível através dos “repartimientos” e protocolos notariais. A documentação resulta da contabilidade organizada para cada engenho, conforme se infere de documento de 1550 (AHM, vol. XIX, nº.98, pp.119-124, 12 de Junho, provisão e regimento para a arrecadação do açúcar). Veja-se José Pereira da COSTA e Fernando Jasmins PEREIRA, Livros de Contas da ilha da Madeira. 1504-1537, Coimbra, 1985, idem, Livros de Contas da ilha da Madeira, Funchal, 1989. Pedro CULLEN DEL CASTILLO (ed.), Libro rojo de Gran Canaria, Las Palmas, 1947; Elias SERRA RÁFOLS e Leopoldo de la ROSA OLIVERA (eds.), Refornación del Repartimiento de Tenerife en 1506 (...), La Laguna, 1963; Elias SERRA RÁFOLS, Las Datas de Tenerife (libros I a IV de Datas Originales), La Laguna, 1978; Francisca MORENO FUENTES, Las Datas de Tenerife, Libro V, de Datas Originales, La Laguna, 1988; idem, Las Datas de Tenerife(Libro Primero de Datas por Testimonio), La Laguna, 1992; Francisco Morales Padron, “Canarias en el Archivo de Protocolos de Sevilla”, in Anuario de Estudios Atlanticos, VII, 1961; Eduardo AZNAR VALLEJO, Documentos Canarios en el Registro del Sello(1476-1517), La Laguna, 1981. Nos últimos anos foram publicados alguns livros de protocolos dos arquivos provinciais de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife.

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condicionou a política de doação e distribuição de terras, qual a evolução da estrutura e as cambiantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável122. O equacionar da problemática em estudo não poderá desligar-se, como é óbvio, da evolução do sistema de propriedade. O povoamento insular mereceu, desde muito cedo a atenção da historiografia nacional que aponta o carácter peculiar do processo evidenciado pela concretização num solo inexplorado com carácter experimental. A ilha da Madeira, porque virgem e desabotada, apresentava as condições necessárias para o primeiro ensaio de colonização europeia fora do continente. E daí partiram os processos, as técnicas e os produtos para as restantes ilhas do Atlântico e Brasil.

DAR E DOMINAR O povoamento e o consequente processo de valorização económica da Madeira surgem, no contexto da expansão europeia dos séculos XV e XVI, como o primeiro ensaio de processos, técnicas e produtos que serviram de base à afirmação dos Portugueses no espaço atlântico, continental e insular. Aqui foram lançadas, na década de 20, as bases sociais e económicas daquilo que será definido como a civilização atlântica. A situação resulta do facto de a Madeira ter sido a primeira área atlântica a merecer o impacto da humanização peninsular. Enquanto nas Canárias tardava a pacificação guanche e se esvaneciam as esperanças da posse henriquina, na Madeira os cabouqueiros europeus lançam-se num plano de exploração intensiva do solo virgem. Ao empenhamento dos tradicionais descobridores juntam-se os interesses da coroa, do infante D. Henrique e da comunidade italiana sedeada em Portugal. A década de setenta é o momento de arranque efectivo do povoamento dos Açores e das Canárias. Ora isto sucede numa altura em que a Madeira surgia já como um importante entreposto de comércio e de apoio à navegação. Para isto haviam contribuído as condições oferecidas pela ilha, a conjuntura atlântica de então, e o forte empenhamento dos promotores e protagonistas do povoamento. Nos dois arquipélagos vizinhos os entraves foram enormes. Dum lado os sismos e os vulcões atemorizam os colonos açorianos, do outro foi a forte resistência dos aborígenes canários à pacificação castelhana. Os testemunhos dos cronistas são evidentes quanto ao facto da inexistência de uma população sob o solo madeirense. Assim, para além das referências à abordagem do Porto Santo por castelhanos, vindos das Canárias, e da presença de Machim na baía de Machico, nada mais indiciava uma preocupação anterior de humanização das ilhas. Cadamosto afirma “que fora até então desconhecida” e que “nunca dantes fora habitada”. Idêntica opinião encontramos em Jerónimo 121. É um contrato regulado pelo direito consuetudinário, em que o proprietário da terra a cede a outrem, tendo este a obrigação de a tornar arável, construindo as bemfeitorias, dando-lhe na altura da colheita a metade da colheita. 122. .A descoberta do livro dos estimos do açúcar de 1494 e, depois, de alguns livros do quarto do açúcar permitem responder a algumas das questões atrás equacionadas. Virgínia RAU e Jorge de MACEDO (Veja-se, O Açúcar na Madeira no século XV, Funchal, 1962) possibilitaram-nos o esclarecimento de algumas interrogações sobre a questão. O aparecimento recente de alguns dos livros do quarto e do quinto do açúcar das capitanias do Funchal e Machico permitem essa abordagem.

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Dias Leite123, que é peremptório em afirmar, que perante os navegadores se deparava uma “terra brava e nova, nunca lavrada, nem conhecida desde principio do mundo até aquela hora”. O empenho das gentes e autoridades peninsulares, aliado ao investimento e experiência italiana, contribuíram para que em pouco tempo na Madeira a densa floresta fosse substituída por extensas clareiras de arroteamento. A acção lusíada na década de 20 foi um processo de povoamento, e nunca colonização, pois estamos perante uma porção de terra inabitada cuja paisagem foi humanizada apenas com a entrada portuguesa124. Além disso, a peculiaridade do processo de ocupação resulta em muito da situação de abandono em que se encontravam as ilhas, o que permitiu o ensaio de técnicas, produtos e formas de organização do espaço sem qualquer entrave humano. Os resultados deste ensaio foram de tal modo profícuos que o exemplo madeirense terá não só um lugar de evidência no contexto da expansão peninsular, mas surgirá também como ponto de referência ou modelo para as outras experiências de povoamento que se seguiram. A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da conjuntura interna do Reino e do espaço oriental atlântico. No primeiro caso, surge como resposta à disputa das Canárias e à ingente necessidade de encontrar um ponto de apoio para as operações do litoral africano. Zurara faz disso eco ao referir que as embarcações portuguesas tinham escala obrigatória na Madeira, onde se proviam de vitualha as ilhas da Madeira, porque havia aí já abastança de mantimentos125. Para os cronistas tudo começou no Verão de 1420. Nesta data o monarca ordenou o envio de uma expedição comandada por João Gonçalves Zarco para dar início à ocupação da ilha. Acompanhavam-no Tristão Vaz Teixeira, Bartolomeu Perestrelo, alguns homiziados a buscar vida e ventura forão muitos, os mais delles do Algarve126. O povoamento da ilha, iniciado na década de 20 a partir dos núcleos do Funchal e Machico, rapidamente alastrou por toda a costa meridional, surgindo novos núcleos em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. As condições orográficas condicionaram os rumos da ocupação do solo madeirense, enquanto a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico implicaram o rápido processo de humanização e valorização socioeconómica da ilha. A costa norte tardou em contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as dificuldades de contacto por via marítima e terrestre. Não obstante, refere-se já na década de 40 a presença de gentes em S. Vicente, uma das primeiras localidades desta vertente a merecer uma ocupação efectiva. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de gente, entusiasmadas com o progresso da ilha. Neste grupo surgem trinta e seis apaniguados da casa do infante, na sua maioria escudeiros e criados, que adquiram uma posição proeminente ao nível administrativo e

123. 124. 125. 126.

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Descobrimento da Ilha da Madeira (...), Coimbra, 1957, p. 9. Confronte-se o que diz a este propósito Carreiro da COSTA em Esboço Histórico dos Açores, Ponta Delgada, 1978, p.53 Crónica da Guiné, cap. XXXII. J. Dias LEITE, ob. cit., 15-16; Gaspar FRUTUOSO, ob. cit., 53.

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fundiário127. Mesmo assim João Gonçalves Zarco sentiu dificuldade em encontrar varões de qualidade para desposarem as suas filhas, tendo solicitado ao monarca o seu envio128. Isto poderá ser o indicativo de que a aristocracia do reino apostava mais nas façanhas bélicas em Marrocos do que num projecto de povoamento. A enxada não lhes era familiar. Por outro lado confirma o fracasso de Zarco no recrutamento de gente nobilitada, que foi suprida com aqueles que pretendiam “buscar vida e ventura”. De acordo com o capítulo de uma carta régia129, João Gonçalves foi incumbido de proceder à distribuição de terras, conforme o regulamento entregue. Estas recomendações são diferentes dos demais que se seguiram, pois para além da demarcação social dos agraciados estabelece um prazo alargado de 10 anos. Assim, os vizinhos de mais elevada condição social e possuidores de proventos recebem-nas sem qualquer encargo, enquanto os pobres e humildes que vivem do trabalho apenas as conseguiram mediante condições especiais, só adquirindo as terras que possam arrotear com a obrigatoriedade de as tornar aráveis num prazo de dez anos. As cláusulas favoreceram a posição fundiária dos primeiros povoadores e contribuíram para o aparecimento de grandes extensões que mais tarde serão vinculadas. A partir de 1433, com a doação do senhorio das ilhas ao infante D. Henrique, o poder de distribuir terras é-lhe atribuído, mas “sem prejuyzo de forma do foro per nos dado aas ditas ylhas em parte nem em todo nem em alheamento do dito foro”130, o que comprova mais uma vez que a primeira iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao monarca. O infante, fazendo uso das prerrogativas, delegou tais poderes nos capitães131. Sabe-se por informações indirectas que o foral henriquino confirma as ordenações régias e estipulava que as terras deverão ser distribuídas apenas por um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse e a possibilidade de nova concessão. Confrontadas estas condições com as do monarca, notam-se alterações significativas no regime de concessão de terras. Assim, desapareceu a diferenciação social dos agraciados e o período para as tornar aráveis é reduzido. A pressão do movimento demográfico, aliada à rarefacção de terras para distribuir, condicionou a mudança. A primeira missão dos capitães foi proceder à distribuição de terras, como testemunha Francisco Alcoforado, ao referir que João Gonçalves Zarco, após a segunda viagem, se empenhou na tarefa. Uma das prerrogativas da função era a possibilidade de reservar para si e familiares algumas das terras de sesmarias. Ainda, segundo Francisco Alcoforado, João Gonçalves Zarco apropriou-se do alto de Santa Catarina, no Funchal e as terras altas de Câmara de Lobos. Mais além, na Calheta, tomou dois Lombas para os filhos João Gonçalves e Beatriz Gonçalves. Desde 1433 e até 1495, a concessão de terras de sesmaria era feita pelo capitão, em nome do

127. Sobre a presença e importância das gentes da casa do infante veja-se João Silva de SOUSA, “A casa do infante D. Henrique e o arquipélago de Madeira (algumas notas para o seu estudo”, in Colóquio Internacional de História da Madeira, Vol. I, Funchal, 1989, 108-127. 128. Saudades da Terra, 217-218. 129. Esta carta foi pela primeira vez referenciada por Álvaro Rodrigues de AZEVEDO sendo, todavia considerada apócrifa por alguns historiadores, como José Hermano SARAIVA (Temas de História de Portugal, vol. II, pp.109-112) 130.A.R.M., RGCMF, T. 1, fl. 282. 131. A.N.T.T., Livro das Ilhas, fl 550vº.

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donatário. A carta deveria ser lavrada pelo escrivão do almoxarifado, na presença do capitão e do almoxarife. No enunciado constavam obrigatoriamente as condições gerais que regulavam a forma de concessão do terreno, capacidade de produção e a cultura adequada à exploração, bem como o prazo de aproveitamento. O colono ou sesmeiro deveria cumprir o clausulado. Findo o prazo estabelecido podia vender, doar, escambar o fazer dela e em ela como sua própria coisa. As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam a pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20 entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascilgo de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existência dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações régias e senhoriais, conduziram a uma diminuição desta área de pasto, de usufruto. Salientese que o próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o capitão do Funchal distribui-se terras na serra para currais e cultura de cereais e das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto132. Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a legitimação da posse geraram vários conflitos, que implicaram a intervenção legislativa do senhorio ou o arbítrio do ouvidor. Em 1461, os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, dizendo que estas eram “bravas e fragosas e de muytos arvoredos”. Contudo, o infante D. Fernando não abdicou do foral henriquino e apenas concedeu a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise circunstanciada de cada caso pelo almoxarife133. Passados cinco anos, os mesmos contestaram de novo contra o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as esmontar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira134. Perante tal reclamação, o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. Em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar135 e, por isso, D. Manuel repreendeo, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. E, finalmente, em 1485136, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria137, a única ressalva eram as terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos. O sistema de propriedade ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e, depois, pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso as situações são idênticas, variando apenas a forma de expressão consoante o processo de povoamento e as peculiaridades de cada ilha. Todas as doações eram feitas de acordo com normas estabelecidas pela coroa e seguiam o modelo já definido para o repovoamento da Península. Para além da condição social do contemplado, das indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo e para erguer benfeitorias, estabelecia-se tam132. Ibidem, T. 1, fl. 45vº. 133. A.R.M., RGCMF, T. 1, fls. 204.209. 134 . Ibidem, T. 1, fls. 135-138vº. 135 . Ibidem, T. 1, fls. 249-251. 136 . Ibidem, T. 1, fl. 51. 137 . Ibidem, T. 1, fls. 287-288, 289vº-291.

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bém o prazo para as arrotear. Assim, dos dez anos iniciais passa-se para cinco a partir de 1433138, o que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que anotavam a dificuldades no arroteamento139. Outra condição imprescindível para quem quer que seja adquirisse o estatuto de povoador com posse de terras estava na obrigatoriedade de residência até cinco anos, o estabelecer casa e, para os solteiros, o necessário casamento. Estas condições revelam que o principal intuito da distribuição de terras era fomentar o povoamento das ilhas. O processo de distribuição das terras gerou inúmeras desavenças que mereceram a intervenção da coroa. Na Madeira o senhorio enviou em 1466 Dinis de Grãa, seu procurador, com plenos poderes para resolver as causas pendentes das reclamações chegadas ao reino, entre as quais as referentes às terras e águas140. São poucas as doações de terras que resistiram ao correr dos tempos e que ficaram a testemunhar e legitimar esta forma de distribuição de terras já na década de setenta do século XV. Apenas referimos a carta de 29 de Abril de 1457 em que é feita concessão de terras a D. Henrique a Henrique Alemão, por prazo de 5 anos141. Noutra de 1470 determina-se que as terras dadas deviam ser plantadas de canaviais142. Aqui estão definidas as condições em que foi estabelecida a posse das terras. Poderá ser considerada uma carta modelo, pois aí juntavam-se todas as recomendações: limites da terra, as benfeitorias a implantar e o tipo de culturas (vinhas, canaviais, horta)143. O arrendamento adquiriu importância fundamental no sistema de exploração agrícola diversas formas de domínio útil da propriedade. Em 4 de Setembro de 1475 João Afonso do Estreito arrendou umas terras no Estreito da Calheta a Vasco Dias Evangelho. As condições do contrato não eram muito pesadas para o rendeiro, uma vez que o proprietário acudia com a despesa da levada que deveria construir e recebia junto com a terra casas e engenho de açúcar. Com contrapartida ficou estabelecida uma renda anual de 30.000 reais144. As mesmas famílias dos capitães estiveram envolvidas nesta nova situação. Em 4 de Julho de 1477 lavrou-se um contrato de arrendamento entre João Gonçalves da Câmara e Álvaro Lopes. O rendeiro ficava com o encargo de explorar umas terras na Ponta de Sol, construindo a levada, plantando a cana e construindo o engenho. Ao arrendatário ficava o direito a 30 arrobas de açúcar de uma cozedura145. A segunda metade do século XVI foi marcada por um forte incremento de diversas formas de domínio útil da terra. Ao mesmo tempo a contrapartida para o proprietário assume uma relação directa com os resultados da colheita, surgindo assim os primeiros contratos de “meias”. A 18 de Novembro de 1558146 Francisco Martins estabelece um contrato de arrendamento de meias por nove anos sobre umas terras em Câmara de Lobos. A terra dispõe de água ficando ao encargo do 138 . António Vasconcelos SALDANHA, As Capitanias o Regime Senhorial na Expansão Ultramarina, Funchal 1992, pp. 187-213. 139 . Conforme reclamação apresentada em 1461, veja-se, A.H.M., vol. XV, 1972, pp. 17-18. 140. AHM, Vol. XV (1972), pp. 32-33, 10 de Maio de 1466. 141. ANTT, Livro das Ilhas, fl. 31vº, publicado idem, ibidem, pp. 541-543. 142. J. M. Silva MARQUES, Os descobrimentos Portugueses, vol. I, nº.356 e 423; vol. III, nº.59, pp.84-85. 143 Este enigmático Henrique Alemão é considerado o Imperador Ladislau III da Polónia. Confronte-se J. Reis GOMES, O Cavaleiro de Sta Catarina de Varna à Ilha de Madeira, Funchal, 1941. 144 . João José de Sousa, A Origem da Colonia, in Islenha, 13 (1993), p.48 145 . ANTT, Convento de Santa Clara, livro 6, fl. 205, citado por João José de Sousa, A Origem da Colonia, in Islenha, 13 (1993), p.48 146 . ANTT, Convento de Santa Clara, livro 6, fl. 266vº, citado por João José de Sousa, A Origem da Colonia, in Islenha, 13 (1993), p.61

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Senhorio de visita ao caseiro, Séc. XIX. [Museu de Photographia Vicentes]

O CONTRATO DE COLONIA “Geralmente as terras cultivadas nesta ilha tem dois proprietários, um do solo, a que chamam senhorio, e outro das benfeitorias, a que chamam caseiro, ou lavrador, o qual fazendo toda a despesa do custeamento, da parte com o senhorio a metade de seus frutos, sendo bem feliz quando a metade, que lhe fica paga a sua despesa e trabalho, do qual tudo depende, (...)” [Doc. 1826, ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, nº.764, pp..95]

Gravura século XIX

“será obrigado o dito caseiro a morar e assistir na dita fazenda com sua mulher como também será obrigado a conservar todo o ano uma horta e a mandar dela todos os sábados à tarde couves e mais hortaliças à casa do senhorio e assim mais será obrigado a receber um porco que o senhorio lhe entregará para lhe criar de meias todos os anos(...) e além de tudo isto fará como bom caseiro dando todas as vezes que ele senhorio quiser ir para o campo um homem ou os que puder para as redes como os mais caseiros costumam fazer”. [Escritura de 11 de Dezembro de 1735, publ. por Jorge Valdemar Guerra, A colonia na Madeira , in Islenha, 9, 1991, pp..99-100]

colono o plantar da cana. A situação de decadência da cana torna impossível a aposta num engenho, podendo então moer a cana em qualquer deles em actividade. As despesas da moenda eram suportadas a meias, sendo o açúcar resultante dividido no estendal. Uma vez que a cultura só se tornava produtiva ao fim de dois anos, os contratos estabeleciam regras quanto às contrapartidas. Assim se as terras eram de pranta ficaria o meeiro isento de encargos por dois anos, caso fosse de soca (= cana de dois anos) ou ressoca (=cana de três e mais anos) a medida não tinha efeito147. Em 1591148 Francisco Lopes recebeu umas terras no Funchal por nove anos, sendo obrigado a meter pranta nova. O Convento contribui com água da levada dos Piornais e comparticipa na soca de cana para a prantar, recebendo em contrapartida metade da colheita partida no tendal do engenho. 147 Cf. João José de Sousa, A Origem da Colónia, in Islenha, 13 (Funchal, 1993), pp.60-62 148. ANTT, Convento de Santa Clara, livro 6, fl. 73-76vº

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A partir da distribuição inicial de terras ficou assente uma forma de domínio da propriedade da terra que iria evoluir ao longo dos tempos de acordo com as condições sociais que dominaram a exploração agrícola e os produtos dominantes e fazedores de riqueza. Se a economia açucareira se ficou no início por um domínio directo do proprietário da terra, à medida que perdeu rentabilidade começaram a surgir formas distintas de exploração. A riqueza dos primeiros anos permitiu que o proprietário perdesse a proximidade com a terra, fixando-se no meio urbano. As terras, de canaviais e cana, foram entregues a arrendatários que evoluíram para a situação especial de colonos. É neste contexto de transformação que se afirma paulatinamente o contrato de colónia. O contrato de colonia demarca-se na história da ilha como um dos aspectos mais peculiares e questionáveis. Ele não deve ser considerada como um contrato de arrendamento, parceria agrícola, uma forma de colonato voluntário ou contrato enfitêutico, mas sim um sistema específico que surge na Madeira na forma mais original nos séculos XVII e XVIII. A especificidade está no facto de existirem duas formas de propriedade útil: da terra e das benfeitorias. A dupla forma de propriedade da terra e benfeitorias guiava-se exclusivamente pelo direito consuetudinário e definia uma peculiar e situação perpétua de interdependência entre ambas as partes. Daqui resultou a perpetuação chegando até aos nossos dias com algumas alterações conjunturais. Estamos perante um compromisso inabalável que nem a morte poderia quebrar. O proprietário do terreno por esta condição recebia uma das partes dos produtos, que variava de local para local, enquanto o colono era proprietário das benfeitorias nele realizadas e receberia por isso e cultivo das terras a outra parte. As opiniões dividem-se quanto à origem do sistema de exploração agrícola. Uns encaram-no

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Gravura de W. Combe, 1821

como o resultado acabado da evolução do regime de sesmarias, outros como fruto das circunstâncias económicas e sociais da conjuntura histórica madeirense149. Ramon Honorato Rodrigues150 (1947) filia a origem na crise açucareira da primeira metade do século XVI, que foi responsável pelo absentismo dos proprietários, o reforço e garantia da posição dos arrendatários ou meeiros em face dos necessários investimentos a lançar para o progresso da nova cultura — a vinha. Deste modo “ o oportuno na época em que os contratos se iniciaram, pode representar o inconveniente do nosso tempo”. Aquilo que no século XVI fora factor de progresso social e económico tornou-se na actualidade num absurdo e factor de retrocesso. Em nosso entender a origem deste peculiar contrato gerado pelo direito consuetudinário não é uma viciação dos sistemas peninsulares para aqui trasladados, nem o fruto da conjuntura social e económica‚ pois deve ser entendido como a simbiose dos dois elementos que se desenrolaram num longo processo de gestação que teve início em 1477 com o primeiro contrato de arrendamento de terras na Ponta do Sol celebrado entre João Gonçalves Zarco, segundo capitão do donatário do Funchal, e Álvaro Lopes. Ao último competia o necessário investimento — tirar a levada da Ribeira da Madalena, plantar o canavial e vinhas, construir o engenho — e ao primeiro o usufruto anual de trinta arrobas de açúcar branco da primeira cozedura. A afirmação na segunda metade do século XVI e duas centúrias seguintes teve uma dupla origem social e económica. Em primeiro lugar o movimento demográfico em consonância com a área agrícola escassa e as dificuldades de recrutamento de escravos geraram a dinâmica de interdependência, depois o rendimento baixo da exploração agrícola resultado da crise do comércio do açúcar com a necessidade do investimento na nova cultura da vinha obrigaram ao processo de mudança da posse útil do domínio fundiário. Assim, em 1649 Maria Góis de Vasconcelos do Porto da Cruz entregou a terra a um colono para que lançasse as necessárias benfeitorias “pois ela era pobre e não tinha possibilidades para isso”. O sistema, síntese das preocu-

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pações sociais e económicas da Madeira de outrora, foi o principal factor de progresso e de afirmação da cultura da vinha na ilha. Na segunda metade do século XVIII inverteu-se a posição, afirmando-se como o principal motivo de retrocesso económico e social, responsável pela forte sangria populacional e o abandono da terra. No imediato surgiu um movimento de debate, pugnando-se pela defesa da exploração directa da terra pelos senhorios como única solução para a crise agrícola da Madeira e Porto Santo. Só se conseguiu avançar com a abolição na última ilha em 13 de Outubro de 1770 como solução para acabar com o abandono a que a ilha estava votada. Note-se que em 1722 se havia avançado com uma maior valorização da posição do colono do Porto Santo com a concessão do usufruto de dois terços da produção como meio de fixação terra. A mesma reivindicação dos madeirenses em 1776 não teve efeito e o sistema foi-se arrastando num lento processo de agonia no século XIX com o movimento liberal. Foi a primeira e mais forte manifestação de repúdio sem nunca se chegar a uma decisiva extinção. A iniciativa do governo miguelista de extinguir o referido sistema em 1828 foi uma opção efémera e não passou de uma aventura demagógica. As soluções não foram consensuais e o regime manteve por mais alguns anos o processo lento de agonia. Apenas em 1916 surgiu a iniciativa parlamentar da autoria de um grupo de deputados chefiados pelo Visconde da Ribeira Brava que não alcançou qualquer resultado nem satisfez as exigências dos colonos, pelo que em 1927 gerou-se um motim na Lombada da Ponta do Sol que forçou o governo a acabar com o referido regime pelo decreto de 26 de Dezembro no qual se expropriou as referidas terras que depois foram vendidas aos colonos por escritura feita em 26 de Janeiro de 1928. O mesmo sucedeu nas Lombadas no norte da ilha, em Ponta Delgada. Mesmo assim o contrato de colonia continuou a ser uma realidade em muitas zonas da ilha e só em 1976, passados mais de duzentos e cinquenta anos sobre o início desta eterna agonia‚ ao moribundo foi passado o estado de óbito pelo decreto legislativo regional nº.13/77/M de 18 de Outubro. O fim do contrato de colonia ficou a assinalar um dos mais lídimos resultados e conquista da AUTONOMIA.

Gravura século XIX

149 . O debate em torno do tema manteve-se por muito tempo. Junta-se a informação bibliográfica mais significativa: António Correia, Herédia, Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgadios na Madeira Offerecidos Á Consideração da Liga Promotora dos Interesses Materiaes do Paiz, Lisboa, 1849. Pedro de Góis Pitta, O Contrato de Colonia na Madeira, Lisboa, 1929. Manuel Soares da Rocha, A Colonia no Arquipélago da Madeira e a questão que gerou, Funchal, 1957. Ramon Honorato Correa Rodrigues, A Colonia na Madeira, Problema Moral e Económico, Funchal, 1947. IDEM, Questões Económicas. A Margem da Colonia na Madeira: Produção. Divisão da Propriedade. Nível de Vida da População Rural e Agrícola. Porto Santo. Condições de Ressurgimento, 1º tomo, Funchal, 1953. Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcellos José António d’Almada, Projecto de Lei Regulamentar do Contrato de Colonia ou Parceria Agricola na ilha da Madeira, Funchal, 1867. Manuel José Vieira, A Questão da Propriedade na Madeira. Discurso pronunciado na Camara dos Senhores Deputados na Sessão de 7 de Julho de 1888 pelo deputado..., Funchal, 1888. Jorge Valdemar Guerra, A Colonia na Madeira. Um Testemunho do séc. XVIII, Islenha, 9, 1991, 93123. João José de Sousa, A Origem da Colonia, Islenha, 13, 1993, 47-73. João Lizardo, Algumas Notas e Várias Dúvidas sobre a Colonia nos dois últimos Séculos, Islenha, 14, 1994, 137-142. 150 . A Colónia na Madeira problema moral e económico, Funchal, 1947; Questões Económicas. A Margem da Colónia na Madeira: Produção e Divisão da Propriedade. Nível de vida da população rural e agrícola, Funchal, 1953.

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Queda de água.século XIX. Colecção Casa-Museu Frederico de Freitas

O PODER DA ÁGUA Um dos aspectos particulares da cultura da cana-de-açúcar na Madeira prende-se com a necessidade de água e da avultada presença de mão-de-obra, escrava ou não. As condições geo-climáticas da ilha fizeram que a cultura fosse de regadio e tornaram todo o trabalho agrícola e industrial extremamente penoso. A solicitação de mão-de-obra foi maior que em qualquer outro sítio. Antes de lançar as socas de cana à terra os primeiros habitantes tiveram de abrir clareiras e traçar os poios, encosta acima. Depois, foi a dificuldade no traçar das levadas e de condução da cana aos poucos engenhos e do açúcar aos portos de escoamento. Tudo isto foi trabalho duro só possível com uma forte presença de escravos. Na Madeira, mais do que em outro qualquer lugar onde se implantou a cultura, a aposta na água e árduo trabalho foi fundamental para a afirmação da cultura. Aqui, as dificuldades foram acrescidas, por isso, o açúcar só conseguiu afirmar-se nos séculos XV e XVI, enquanto foi o único no Atlântico. A concorrência do açúcar de outras proveniências, conseguido com menores custos de produção, veio a prejudicar o madeirense e a provocar inevitavelmente uma descida do preço e o afastamento do da Madeira. A água tem uma função fundamental no curso da História. Ela é a fonte da vida e da História. Aproxima povos e civilizações. Faz medrar as culturas verdejantes nos campos e substitui-se ao homem em algumas das tarefas. Assume um papel fundamental na História material, orientando as formas de vida e desenvolvimento económico das populações que dela se podem servir. A água foi e continua a ser um elemento vital ao progresso e bem-estar do Homem.151 É neste sentido que a historiografia marxista a valoriza152. Mas, a distribuição e uso não foi fácil. Mobilizou povos, monarcas engenheiros e trabalhadores para grandes obras de engenharia. Em alguns casos, estamos perante as sociedades hidráulicas153. E, segundo alguns estudiosos marxistas, definiu uma

151. Confronte-se: L’eau et les hommes en Mediterranée, Paris, 1987; A. LÓPEZ GÓMEZ, Estudios sobre regadíos valencianos, Valência, 1989. 152. Confronte-se: Maria Teresa PÉREZ PICAZO e Guy LEMEUNIER (eds.), Agua y modo de producción, Barcelona, 1990.

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forma peculiar de estruturação de algumas sociedades, que ficaram conhecidas como modo de produção asiático154. É de salientar que na Madeira os grandes empreendimentos hidráulicos são da responsabilidade dos particulares, cabendo à coroa apenas a função de criar as condições para este investimento, com a obrigatoriedade de todos os colonos à permissão de passagem das levadas. A intervenção do estado é recente e surge a partir da década de quarenta com a Comissão de Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira. A Madeira não ficou alheia à situação, uma vez que o progresso inicial se deveu à abundância da água. Hoje, a Ilha da Madeira apresenta-se com duas áreas hidrográficas distintas: as vertentes norte e sul. Isto é, resultado das condições orográficas da ilha mas também da intervenção do Homem no corte da densa floresta que a cobria, aquando do encontro pelos europeus155. Ao contrário do que é habitualmente referido o sistema de regadio madeirenses não tem origem nos árabes, que foram os divulgadores do sistema por elevação. O que ficou definido na Madeira foi o sistema por força da gravidade que já existia no Norte de Portugal, região que não mereceu a influência moura. Note-se que ainda hoje na Serra da Estrela o sistema de distribuição de água fazse por levadas, sendo as actividades e nomenclatura em todo semelhante à madeirense. Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura a safra do açúcar é necessário não esquecer a forma da distribuição e posse. Para regular de forma eficaz a distribuição surgiram os relógios, propriedade dos heréus, de que existe apenas um, em pleno funcionamento na levada do Poiso nos Canhas. A água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas156. É, na verdade, no leito e margens que se joga a História da ilha. Facto significativo é o de também as principais freguesias terem à cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três ribeiras. Todas as terras de canaviais estavam servidas de levadas, dispondo de horas de água suficientes para o seu regadio. Nos contratos de arrendamento e de meias a água está presente, sendo também propriedade inalienável do proprietário da terra. Em finais do século XVI as terras dos Lomelino em Santa Cruz incluíam canaviais com 10 covados, dispondo de 30 horas de água157. Nos séculos XV a XVII a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas158. A maior concentração po-

pulacional e aposta agrícola assim o definiram. Os cronistas são disso testemunho. O caso mais evidente encontra-se em Gaspar Frutuoso, onde vemos que a existência ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores em todo o espaço da ilha. Aliás, a água foi aquilo, juntamente com a densa floresta, que mais despertou a atenção dos portugueses: “...e não viam mais que correntes, ribeiras, fontes e regatos, que, por antre ele, vinham com grande frescura deferir ao mar”159. E é o mesmo quem, depois de uma descrição exaustiva da ilha conclui: “toda ela se rega com grande abundância das águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estyão humedecendo e engrossando e mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa.”160. A partir daqui podemos afirmar que o sucesso do povoamento e valorização económica da ilha são resultado do facto de a ilha ser “toda regada com água”, como refere o historiador das ilhas. As ribeiras exerceram aqui um papel fundamental. Foi por elas que entraram os primeiros europeus que reconheceram a ilha e nelas se assentaram os primeiros núcleos de povoamento. É, na verdade, no leito e margens das ribeiras que se joga a nossa História161. A bravura, tão pouco atemorizou os colonos, como sucedeu com a fixação no local da Ribeira Brava, que foi buscar o nome a isso mesmo162. Note-se que isto causou inúmeros transtornos aos madeirenses, que viveram, a partir do século XVII, sob a ameaça das aluviões. Aqui insiste-se na necessidade de muralhas de protecção no Funchal163 e Ribeira Brava164. Na cidade dá-se conta do dilúvio de 22 de Janeiro de 1605165, que destruiu 130 casas e as três pontes. Facto significativo é o de as principais freguesias terem à cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três ribeiras. É Gaspar Frutuoso quem também o relaciona: “...deleitoso vale ao mar três grandes e frescas ribeiras, ainda que não tão soberbas, na aparência, como a de Machico; eram, porém, muito formosas por todas virem acabar ao mar, saídas deste vale.”166. Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar a água do curso das ribeiras fazendo com que movessem engenhos, moinhos e irrigar os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram km de canais para a condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas167. O sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas tarefas, como sejam, o moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da ilha ao mesmo tempo que

153.Confronte-se A. WITTFOGEL, Despotismo Oriental. Estudio comparativo del poder totalitário, Madrid, 1966. 154. Sur les Sociétés Précapitalistes, Paris, 1970. 155.Confronte-se Orlando RIBEIRO, A ilha da Madeira até meados do século XX, Lisboa, 1985, pp.62-70. 156. Note-se a abissal diferença com as Canárias, onde a água foi sempre escassa e jogou um papel fundamental em todo o processo de ocupação das ilhas. Por outro lado a política estabelecida para a água é semelhante: de património comum passa, a pouco e pouco, para o domínio privado. Confronte-se: J. HERNANDEZ RAMOS, Las Heredades de aguas en Gran Canaria, Madrid, 1954; Antonio M. MACÍAZ HERNANDEZ, “Aproximación al processo de priavatizacion del agua en Canarias, c. 1500-1879”, in AGUA y modo de producción, Barcelona, 1990, pp.121-149. 157 . Jorge Valdemar Guerra, O Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz. Subsídios para a sua História, Islenha, 20(Funchal, 1997), p.135. 158. Note-se a abissal diferença com as Canárias, onde a água foi sempre escassa e jogou um papel fundamental em todo o processo de ocupação das ilhas. Por outro lado a política estabelecida para a água é semelhante: de património comum passa, a pouco e pouco, para o domínio privado. Confronte-se: J. HERNANDEZ RAMOS, Las Heredades de aguas en Gran Canaria, Madrid, 1954; Antonio M. MACÍAZ HERNANDEZ, “Aproximación al processo de priavatizacion del agua en Canarias, c. 1500-1879”, in AGUA y modo de producción, Barcelona, 1990, pp.121-149.

159. Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.46. 160.Ibidem, p.139 161. Confronte-se Gaspar FRUTUOSO, ibidem, pp.48, 88, 109, 115, 117, 119-120, 129. 162 Diz Gaspar FRUTUOSO (ibidem, p.123): “A ribeira é tão furiosa e faz muito dano, por vir de grandes montes e altas serras, e por ser desta maneira lhe vieram a chamar brava”. 163.ARM, C. M. F., nº.1317-1322. 164. Em 1597 (ARM, CMF, nº.1313, fl.41: 29 de Agosto) a câmara do Funchal mandou aplicar vinte mil réis no concerto da Ribeira Brava, de modo a evitar que a mesma levasse a igreja de S. Bento. 165. ARM, CMF,, nº. 1316, fls.14-14vº: 21 de Fevereiro. As aluviões foram uma constante a partir do século XVIII. Veja-se Fernando Augusto da SILVA,”Aluviões”, in Elucidário Madeirense, vol. I, pp.54-58. 166. Ibidem, pp.47-48. 167 . Há quem aponte serem uma adaptação das técnicas valencianas. Veja-se Felipe FERNÁNDEZ-ARMESTO, The Canary islands after the conquest, Oxford, 1982, nota 27, p. 99.

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dificultava a condução da água favorecia o aproveitamento, pela força motriz atribuída pelos declives acentuados. Foi um trabalho hercúleo, referido muitas vezes pelos visitantes e recordado com apreço pelos especialistas, como o Eng.º. Amaro da Costa: “... a levada, de limitadas proporções no início; mas já a denotar arrojo para mais largos voos indo sempre mais longe e mais acima até aos recônditos das serranias; furou as montanhas; riscou as muralhas rochosas talhadas a pique em centenas de metros de altura; debruçou-se nos abismos; venceu as cristas; saltou nos despenhadeiros; dobrou-se nos refegos das ravinas; amansou-se nas chãs; e, por fim, exausta, entregou-se a todos, através de uma rede vascular tão densa, que torna maravilhosa a chegada ao termo. Mas a mingua no fim da caminhada é por vezes tamanha, que dolorosamente contrasta com tanta luta.”168

O USO E ABUSO DA ÁGUA Aguas e nascentes surgem nos primeiros documentos emanados para a ilha, como domínio público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João Gonçalves Zarco onde considerava nesta situação as “fontes, tornos e olhos daugua... prayas e costas do mar, rios e ribeyras”. Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha, pois desde o começo surgiram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva. Em 1461 coloca-se a primeira dificuldade na repartição no que o Duque responde que, o almoxarife mais dois homens ajuramentados, repartam “as auguas a cada hum pera seus açuquares e logares segumdo cada hum mereçeer”. Mesmo assim, continuaram as demandas pelo que em 1466 o duque decidiu mandar à ilha, Dinis Anes de Sá, seu ouvidor, com intuito de resolver esta e outras questões169. Nas áreas de maior concentração populacional e de intensivo aproveitamento do solo, como foi o caso do Funchal, a água das ribeiras não foi suficiente para suprir as solicitações dos vizinhos. Deste modo, em 1485 o Duque D. Manuel recomendava que as águas da Ribeira de Santa Luzia fossem usadas apenas nos engenhos, moinhos e benfeitorias que dela se serviam não podendo ser desviadas para outro fim. Idêntica recomendação repete-se em 1496. A ribeira servia vários engenhos e os moinhos do capitão do Funchal. Foi com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água, que perduraram até ao século XIX. Por cartas de 7 e 8 de Maio estabeleceu-se, de uma vez por todas, que as águas eram património comum sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da câmara, entre todos os proprietários pois que “sem as agoas as terras se não podiam aproveitar”. A partir daqui a água é propriedade pública sendo o usufruto para os que possuíssem terras e dela necessitassem. Todavia, desde finais do século quinze, a água passou a ser negociada a exemplo do que sucedia com a terra. É com o regimento de D. Sebastião em 1562 que se procede a uma alteração no sistema primitivo. As águas podem ser vendidas ou arrendadas, o que permitiu aumentar o fosso entre a propriedade

168. “O aproveitamento da água na Madeira”, in Das Artes e Da História da Madeira, nº.5, 1951, p.14. 169 . Álvaro Rodrigues de AZEVEDO, “nota XXVI” in Saudades da Terra, Funchal, 1873, p. 673: carta de 3 de Agosto de 1461, AHM, Vol. XV, 16-18 e de 10 de Maio de 1466, AHM, XV, pp. 32-33.

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da terra e da água170. Contra isto militaram as medidas pombalinas, levadas a cabo pelo Governador José António de Sá Pereira171. O documento de 1493 determina de forma evidente a importância assumida pelas levadas no sistema de distribuição de águas. As levadas podem ser públicas ou privadas. As últimas eram de iniciativa particular precisando de uma autorização. Temos em 1495 a licença a Pero Fernando para tirar água da Ribeira de Água d’Alto (Ponta Sol)172. Uma das tarefas dos primeiros colonos foi a tiragem das levadas. Por isso elas são os imemoriais testemunhos do labor do homem insular que se perpetuaram na ilha, a exemplo dos imponentes aquedutos peninsulares173. Em 1496174 parece que, ao menos no Funchal, estava delineado o sistema de regadio pelo que na Ribeira de Santa Luzia não se permitiu mais a abertura de novas levadas ou a tiragem da água, acima das já existentes. Isto foi resultado da pretensão de alguns heréus quererem tirar outras mais acima das já existentes no sentido de aproveitar as terras acabadas de arrotear. A coroa insiste na proibição em nova levada em cota superior, punindo os infractores com pesadas penas175. Na verdade, segundo nos conta Gaspar Frutuoso176, a Ribeira de Santa Luzia servia várias levadas, sendo uma delas para os cinco moinhos do capitão e um engenho. O Funchal ficou servido, ainda, por outras como a dos Piornais, do Pico do Cardo e Castelejo. Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso, refere a levada mandada construir por Rafael Catanho que servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil cruzados. Também na Ribeira dos Socorridos temos outras levadas de iniciativa particular: a do engenho de Luís de Noronha que lhe custou 20.000 cruzados; a de António Correia para as terras da Torrinha177. Nos diversos contratos de meias, arrendamento e de colonia, em que os canaviais jogam um papel fundamental, a água está sempre presente. Nas referentes ao Convento de Santa Clara a instituição assume o compromisso de atribuir água necessária178. Outro problema, não menos importante, foi o da partição da água. Desde o início que a coroa recomendara todo o cuidado nisso, ficando com tal encargo o almoxarife, auxiliado por dois homens eleitos para este fim. A distribuição era feita para toda a semana, excepto o domingo que ficava comum a todos, pois tal como refere a coroa em 1493 era “comtra comçiencia”. A 170. Confronte-se AHU, Madeira e Porto Santo, nº 3281, 5 de Novembro de 1813. Publicado por E. C. ALMEIDA, Archivo da Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo, Vol. I, pp. 223-225, 238. Existem livros da distribuição das águas apenas a partir do século XVIII: ARM, Câmara de Santa Cruz, nº.135; Câmara da Ponta de Sol, nº.181; Câmara do Porto Santo, nº.46, 124; BNL, Secção de Reservados, cod. 8391, carta de 19 de Outubro. Em alvará de D. Henrique de 18 de Agosto de 1563 (ibidem) determina-se a criação do cargo de avaliador para determinar o preço da água; J. José de SOUSA, “As levadas”, in Atlântico, nº. 17, 1989, pp.41-47. 171. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.3045: provisão régia de 5 de Março de 1770 e ofício do governador de 8 de Novembro de 1774. 172. ANTT, Livro das Ilhas, fls. 51-51vº. 173. Confronte-se Julio SAMSÓ, Las Ciencias de los Antiguos en el Al-andalus, Madrid, 1992. 174. 29 de Setembro de 1496, AHM, XVII, pp. 348-349. O mesmo já havia sido estatuído a 22 de Março de 1485, AHM, XV, 151154. 175. . Alvará de 22 de Fevereiro de 1515, AHM, Vol. XVIII, 560-561. 176. Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 110. 177. ANTT, Livro das Ilhas, fls. 51-51vº;29 de Setembro de 1496, AHM, XVII, pp. 348-349. O mesmo já havia sido estatuído a 22 de Março de 1485, AHM, XV, 151-154; Alvará de 22 de Fevereiro de 1515, AHM, Vol. XVIII, 560-561;Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p. 110, 78. Em 12 de Junho de 1515 é referenciada a levada de Manuel de Noronha na Ribeira dos Socorridos, ARM, RGCMF, t.I, fl.348-349, in AHM, vol. XIX, p. 20. Vide 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, nº 266, p. 277. 178. Cf. João José Abreu de SOUSA, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, pp.101-112; IDEM, História rural da Madeira. A colonia, Funchal, 1994.

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manutenção foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar conta, conforme ordem de D. Catarina de 1562. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem necessidade das águas que dispunham não as podiam arrendar a ninguém a não ser para se regar os canaviais. Apenas, os que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas. A coroa apoiou a reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e Castelejo com o intuito de incrementar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência na nova redistribuição das águas179. A água das levadas tinha um elevado aproveitamento, pois, para além do uso industrial e do regadio, era canalizada para o consumo das casas e limpeza das ruas da cidade. Os poços existiam um pouco por toda a cidade180, mas não eram suficientes para as necessidades. Destaca-se aquele que servia toda a população em Santa Maria, situado no hoje Largo do Poço, construído por Afonso Fernandes181. Em 1566, após o assalto dos franceses à cidade, as ruas ficaram imundas pelo que “se soltaram depois as levadas, que regam os açúcares, e lavaram toda aquela sujidade”182. De acordo com as posturas sabe-se que o município procedia à limpeza das ruas da cidade entre as tardes de sábado e domingo, ficando proibido o uso das águas das ribeiras da cidade183. Os conventos, como os dos Jesuítas, de Santa Clara e S. Francisco eram servidos por água das levadas. As freiras de Santa Clara tinham um aqueduto próprio que em 1663 foi danificado o que resultou grande prejuízo “por não terem água alguma de que pudessem beber e cozinhar e se servirem para o fabrico de seus doces”184. Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso185, refere a levada mandada construir por Rafael Catanho que servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil cruzados. Também na Ribeira dos Socorridos temos outras levadas de iniciativa particular: a do engenho de Luís de Noronha que lhe custou 20 000 cruzados186; a de António Correia para as terras da Torrinha187. É, ainda, Gaspar Frutuoso quem nos descreve uma das levadas: “Perto da Fonte, onde nasce a agoa desta ribeira dos Acorridos, se tirou a levada della para moer o engenho de Luiz de Noronha; e dizem que do logar donde a começaram a tirar até donde se começão a regar os canaviaes ha bem quatro legoas por se tirar de tão grande fundura da ribeira em voltas que para chegar acima à superfície da terra e começar a caminhar atravessando lombos, fazendas e grandes rochedos por cima pela serra por onde vai esta levada, tem de alto mais de seicentas braças; da qual altura, que he muito íngreme, se tira a agoa em calle de páo em voltas até se pôr na terra feita, e sem falta custou chegar pola em tal 179.Veja-se lista de heréus feitas em 28 de Abril de 1674 (C.M. Machico nº 85, fl. 312vº-316), e 11 de Julho 1677 (Ibidem, fls. 337vº341); 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, nº 266, p. 277; 19 de Outubro, ARM, RGCMF, T. II, fls. 76-77vº . 180. Está testemunhada a existência de alguns poços no recinto da cidade. Veja-se Gaspar FRUTUOSO, ob.cit., pp.112, 117, 396. A casa de João Esmeraldo tinha também o seu poço; veja-se Escavações nas Casas de João Esmeraldo- Cristóvão Colombo. Catálogo, Funchal, 1989. Também são de referir as Fontes de João Dinis, junto da Fortaleza de S. Lourenço (Alberto Artur SARMENTO, Fasquias e Ripas da Madeira, Funchal, 1951, pp.107-123). 181. ARM, RGCMF, t.I, fl.80v1-81vº, publ. in AHM, vol. XIX, p.8. 182.Ob.cit, p.359. 183. ARM, Posturas, nº.685, fls. 7-10; CMF, nº.1311, fls. 21 e 59 (1589). 184. ANTT, Convento de Santa Clara, maço.11, sem número. 185. Ibidem, p. 78. 186. Em 12 de Junho de 1515 é referenciada a levada de Manuel de Noronha na Ribeira dos Socorridos, ARM, RGCMF, t.I, fl.348349, in AHM, vol. XIX, p. 20. 187. 13 de Janeiro de 1493, AHM, XVI, n1 266, p. 277.

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logar passante de vinte mil cruzados, fora o muito mais que fez de custo levala dali quatro legoas, alem de muitas mortes de homens que trabalhavam nella em cestos amarrados com cordas penduradas pela rocha, como quem apanha urzela; porque he tão alcantilada e íngreme a rocha em muitas partes que não se faziam nem se podiam fazer d’outra maneira estancias para assentar as calles sem passar por estes perigos. Tem duzentos e oitenta lanços por onde vai esta agoa que postos enfiados hum diante do outro terão hum quarto de legoa de comprido; são de taboado de til, pella mayor parte tem cada taboa vinte palmos de comprido e dous de largo; e depois de assentadas estas calles na rocha, fazem o caminho por dentro dellas os levadeiros que continuamente tem cuidado de as remendar e concertar, alimpadas também da sugidade e pedras que acontece cahir nellas, e fazer outras cousas necessarias a levada, pelo que tem grossos soldos, por terem officio de tão grande trabalho e tanto perigo. Nesta rocha está huma furna grande que serve de casa para os levadeiros, e para guardar nela munições necessárias de enchadas, alviões, barras, picões, marrões e outras ferramentas; e nella se metem cada anno dez e doze pipas de vinho para os que trabalhão na levada e outras pessoas que a vão ajudar a reformar, quando quebrão alguns lanços de calles; e he cousa monstruosa a quem vê isto com seus olhos a estranha e aventureira invenção que se teve para se tirar dali esta agua”188. A manutenção das levadas foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar conta, conforme ordem de D. Catarina de 1562189. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem necessidade das águas que dispunham não as podiam arrendar a ninguém, não ser para se regar os canaviais. Apenas, os que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas. A coroa apoiou a reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e Castelejo com o intuito de incrementar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência nesta nova redistribuição das águas. A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado em exímios construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as Canárias190 e, depois, na América. A perícia e engenho do madeirense estão evidenciados na reclamação de Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses “que cortavam as serras pera fazerem levadas, com que se regam as cannas de açúcar”, para desviar o curso do rio Nilo191. O plano de levadas da ilha não ficou concluído no século XVII foi apenas adiado pela afirmação da vinha, uma cultura de sequeiro, e, por isso mesmo, quando a cana retornou à ilha, no século XIX, de novo se pôs a questão das levadas para irrigar os canaviais e mover os engenhos. A água adquire de novo uma dimensão económica importante, levando as autoridades a nova intervenção no sentido da regulamentação e do traçar de novas levadas para alargar a área de regadio e, por consequência, dos canaviais. É de salientar que o regime jurídico das águas, estabelecido em 1493 188. Ob. cit., pp.120-121. 189. 19 de Outubro, ARM, RGCMF, T. II, fls. 76-77v1. 190. Filipe FERNANDES-ARMESTO, The Canary Islands after the conquest, Oxford, 1982; Leoncio ALFONSO PEREZ, Miscelanea de temas canarios, Santa Cruz de Tenerife, 1984, pp. 223-268. 191..Comentários de Afonso de Albuquerque, vol. II, Lisboa, 1973, parte IV, cap. VII, p.39.

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por D. João II, perdurou até 1867, altura em que foi aprovado um novo Código Civil. A partir de então água e terra são duas realidades distintas, vindo a agravar a situação, por ser favorável à especulação, situação que foi atacada por leis de 1914 e 1931. Seis anos após o governo avançou com uma política específica da água que chegou à Madeira em 1939. A criação da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (1943) foi o ponto de partida para a mudança na política da água e áreas de regadio na ilha192. As levadas são ainda hoje uma constante na paisagem madeirense, transformando-se em locais aprazíveis para os passeios a pé193. Desde muito cedo, despertaram a atenção dos visitantes, que não se cansam em louvar o trabalho hercúleo do madeirense na construção194.

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ANEXO 1: RIBEIRAS

LOCALIDADES DESIGNAÇÃO

ESTATUTO

Machico Santa Cruz

vila vila

Funchal Funchal Funchal Funchal

cidade cidade cidade cidade

C. Lobos

Freguesia

Ribeira Brava

freguesia

Tabua freguesia Ponta de Sol vila Madalena do Mar freguesia Calheta

Levada do Rabaçal. 1885 Foto Vicentes. Museu Photographia Vicentes

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192. Manuel R. Amaro da COSTA, “O aproveitamento da água na ilha da Madeira”, in Das artes e da História da Madeira, nº.4/5, 11, 1950-1952; Aproveitamentos hidraulicos da ilha da Madeira 1944-1969, Funchal, 1969. Em 1949 Orlando RIBEIRO (A ilha da Madeira até meados do século XX. Estudo geográfico, Lisboa, 1985) refere que existia na ilha duzentas levadas com cerca de mil km de comprimento. Foi após essa data que se fizeram sentir os resultados do plano de aproveitamentos hidráulicos, que fez aumentar a extensão das levadas em mais de trezentos Km e a área irrigada em 13900 Ha. 193. Confronte-se Raimundo QUINTAL, “Veredas e Levadas”, in Diário de Notícias, Funchal, 5, 19 de Março, 14 e 28 de Maio, 23 de Julho, 1 e 29 de Outubro, 12 de Novembro, 24 de Dezembro de 1989, 4 de Fevereiro, 18 de Março e 10 de Junho de 1990. 194. Tenha-se em atenção os seguintes testemunhos: Isabella de FRANÇA, Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal 1853-1854, Funchal, 1970, pp.107-108; José Maria Ferreira de CASTRO, Eternidade, Lisboa, s.d., cap. XI.

vila

Ribeira da Janela Seixal

freguesia freguesia

S. Vicente

freguesia

S. Jorge Faial Porto da Cruz

freguesia Freguesia Freguesia

RIBEIRAS PRINCIPAL

Machico Santa Cruz Boaventura Porto Novo Caniço Gonçalo Aires João Gomes Santa Luzia S. João Socorridos Vigário Campanário Ribeira Brava Tábua Ponta de Sol Madalena Serra de Água da Calheta Calheta S. Bartolomeu Funda Seca Marinheiros Moinhos Cruz Tristão Janela Seixal Inferno S.Vicente Moinhos Boaventura (do Porco) S. Jorge Faial Porto da Cruz

SUBSIDIÁRIAS

Seca, nova, Grande, das Cales e da Ponte

Pedro Lourenço, dos Boieiros, Lajes

Cales Santo António e Penteada Furado e Gomeira Caldeira Furna, Fajã das Éguas, Funda, das Maltas, Nogueira, Pico e Poço Juncal Cova Grande e Caldeirão

Raposo

Cedro, Água Negra, grande e Alecrim

Grande, Seca e Monte do Trigo Ursal, João Fernandes Lombo das Queimadas, Touros, Marques e Grande S. Roque do Faial, Metade e Seca

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ANEXO 2: LEVADAS DA MADEIRA

Queda de Água. Séc. XIX. Colecção Casa Museu Frederico de Freitas

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LEVADA Sta Luzia Piornais Castelejo D.Isabel Moinhos Bom Sucesso Palheiro Ferreiro Cova do Vento Cales Canas Alegria Negra Serra Lombo Paredão Madalena Furado Figueiras Moinhos Rocha Desembarcadouro Chão do linho Morena Roda Pico do Arvoredo Pico dos Eirozes Moinhos da Serra Salgados Azenha Preces Fonte Serrão Curral Castelejo Álvaro Figueira Serra da Tábua Ribeira do Poço Roda Corujeira Marques Teixeira Cabral Paul Pinheiro Moinhos Grande

LOCAL Funchal(R0 Sta Luzia) Funchal(R0 Sta Luzia) Funchal(R0 Sta Luzia) Funchal(R0 Sta Luzia) Funchal(R0 Sta Luzia) Funchal(R0 João Gomes) Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal(Sto António) Machico Machico Machico Machico Machico Santa Cruz Santa Cruz Santa Cruz Santa Cruz Santa Cruz Santa Cruz Caniço Caniço C.Lobos C.Lobos C.Lobos C. Lobos C. Lobos Tabua Serra de Água R.Brava P.Sol P.Sol P.Sol P.Sol P.Sol P.Sol Calheta

PROPRIETÁRIO Luís de Velosa Dória

Rafael Catanho

LEVADA Prata Azenha Raposo Netos Paúl da Serra Azenha Pico da Urze Moinhos Senhora Encumeada da Calheta Encumeada da Calheta Ferreiros Castelejo Ribeiro Frio Agua de Alto Asilo Castanheiro Grande Palheiros Caldeira Velha Nova do Rei Faias Achada Grande Pastel Igreja Grande Cabouco Entre Ribeiras Folhadal Passada Encontro Poio Saramago Barros Vimieiros Soquinhas Feiteirinhas Junca Chão da Ribeira Lombo dos Cedros de Além de Cima Lombo dos Cedros de Além de Baixo Brasileiros Moinhos

LOCAL Calheta Calheta Calheta Calheta Calheta Calheta Arco da Calheta E. Calheta E. Calheta Fajã da Ovelha Ponta do Pargo Calheta Porto da Cruz Faial Faial Faial Santana Santana Santana Santana S. Jorge S. Jorge S. Jorge Boaventura Boaventura Boaventura Boaventura Ponta Delgada Ponta Delgada S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente S. Vicente Seixal Ribeira da Janela Ribeira da Janela Porto Moniz Porto Moniz

PROPRIETÁRIO

Construção da Levada do Norte.1947

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Construção da Levada do Norte.1947

FORMAS DE EXPLORAÇÃO E DOMÍNIO A evolução do movimento demográfico e a valorização das zonas aráveis com as culturas de exportação conduziram a profundas alterações na distribuição e posse das terras. Os mercados condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteável, tornando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura fundiária à nova situação. A lei de 9 de Outubro de 1501 pôs termo à concessão de terras de sesmarias, como forma de impedir a diminuição do parque florestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir deste momento, toda a aquisição de terras só poderia fazer-se por compra, aforamento ou transmissão por via familiar, por meio da herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e venda surgem como mecanismos de concentração da propriedade nas mãos da aristocracia e burguesia enriquecidas com os proventos da primeira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, a herança e dote actuam no sentido inverso conduzindo à desintegração da grande propriedade. A primeira situação documenta-se com a maior acuidade no século XVI e mesmo em finais do século anterior, sendo disso prova a escritura de 28 de Janeiro de 1498 em que João Esmeraldo, fidalgo flamengo, compra a Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, as terras na Lombada da Ponta de Sol. Em consonância com estas mutações tivemos a afirmação do sistema de vinculação da terra, no reinado de D. Manuel, que veio dar origem ao contrato de colonia196. Na Madeira o primeiro grupo de colonos é eminentemente nacional, pois só num segundo momentos surgem os estrangeiros. A situação contrasta com as Canárias, onde o estrangeiro está comprometido com a conquista e início da ocupação das ilhas. João Esmeraldo é um exemplo entre muitos os estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI, fixaram morada nas principais áreas de canaviais da vertente meridional. Todos eles, atraídos pelo comércio do açúcar, acabaram investindo os proventos em canaviais, engenhos e levadas197. Bem relacionados com a alta 195.Por partes do fundo entendia-se nos séculos XV e XVI o espaço agrícola que ficava entre C. de Lobos e a Calheta e que integrava a melhor área de canaviais. 196. Veja-se Fernando A. da SILVA, A Lombada dos Esmeraldos na ilha da Madeira, Funchal, 1933; Miguel Jasmins RODRIGUES, “Os Esmeraldos da Ponta de Sol. Uma família nobre na ilha”, in I CIHM, vol. I, pp.612-666; Alvaro Rodrigues de AZEVEDO, “Anotações”, in Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, Funchal 1873, pp. 471-478; Fernando A. da SILVA. Ibidem, II, pp. 171173. 197 . Destes podemos salientar, para além de João Esmeraldo, Simão Acciaoly, João Bettencourt, Pedro Leminhana Berenguer (o Doutor), João Drumond, António Espindola, António Leme, Urbano e Sixto Lomelino, João Rodrigues Mondragão, João Salviati, Adriano Espranger, João Valdevesso, Micer Batista, Meciote de Bettencourt, André França, Pedro Giralte, Martim Leme, Rui Vaz Urzel e Benoco Amador. João Pedro de Freitas DRUMOND, Documentos Históricos e Geographicos sobre a ilha da Madeira, ms. da Biblioteca Municipal do Funchal, fls. 15vº-17vº. Veja-se Maria do Carmo Jasmins PEREIRA. O Açúcar na ilha da Madeira (século XVI), Lisboa 164, pp. 57-58.

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Pesagem da cana. Foto Vicentes, Museu de Photographia Vicentes

finança europeia e com os principais centros do comércio europeu, cativaram rapidamente a tenção da aristocracia e burguesia insulares com quem se relacionaram por meio de laços de parentesco. O casamento, com o apetecido dote, foi muitas vezes a forma de alargarem os seus domínios e de firmarem a sua posição na sociedade insular198. Assim sucedeu com Benoco Amador que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, viúva de Esteves Eanes Quintal detentor de uma grande quinta em Santo António e terras na Ponta de Sol, e que, por isso mesmo, em poucos anos se transformou num grande proprietário cuja fazenda foi resultado de compra, casamento e arrendamento, por um lado, e o comércio, arrematação das rendas e empréstimos, por outro199. Idêntica situação surge com João Esmeraldo, Simão Acciaioly, Pedro Berenguer, João Drumond, Urbano Lomelino, João Salviati e Micer Batista. O último era casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário na capitania de Machico. Na Madeira, desde a segunda metade do século XV, se generalizaram os contratos de aforamento e meias que evoluem no século XVI para o contrato de colonia. O último é uma situação específica na Madeira, que tem a característica de se orientar pelo direito consuetudinário. Note-se que os diversos contratos de arrendamento que chegaram até nós não são uniformes no compromisso entre ambas as partes, pois o senhorio tanto poderia contribuir com as benfeitorias, ou deixar o serviço para o colono, reservando, no entanto, a posse sem qualquer encargo no fim. A norma era um contrato de duração limitada, obrigando-se o colono ao pagamento de uma renda anual ou a metade da produção. No Convento de Santa Clara conhecem-se vários contratos de arrendamento de meias, alguns referem-se a serrados de canaviais, estabelecendo a forma de intervenção das partes e de tornalos rentáveis. O convento, mercê das doações recebidas ao longo do século XVI, transformou-se no maior proprietário da ilha200. Assim, em 1644 alargou-se a toda a ilha com 408 propriedades declaradas201, transformando-se, por isso mesmo, numa importante empresa agro-pecuária. O aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e provocou alterações na posse por meio de transacções por compra, aforamento e arrendamento. 198. Assim sucedeu com Benoco Amador que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, Viúva de Esteves Eanes Quintal detentor de uma grande quinta em Santo António e terras na Ponta de Sol e que por isso mesmo em poucos anos transformou-se num grande proprietário cuja fazenda foi resultado de compra, casamento e arrendamento, por um lado, e o comércio, arrematação das rendas e empréstimos, por outro (Veja-se João de SOUSA, “Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco Amador”, in “Cidade Campo”, supl. do Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6). IdLntica situaÁ„o surge com Jo„o Esmeraldo, Sim„o Acciaioly, Pedro Berenguer, Jo„o Drumond, Urbano Lomelino, Jo„o Salviati e Micer Batista. Este último era casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário na capitania de Machico. 199. Veja-se João de SOUSA, “Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco Amador”, in “Cidade Campo”, supl. do Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6. 200. CF. João José de SOUSA, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, 1991, pp. 80-83.

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Funchal Câmara de Lobos Campanário a Fajã da Ovelha

Canaviais de renda Número 12 13 27

TOTAL % 8 31 11

142 42 245

Em 1494 generalizou-se o aforamento dos canaviais na capitania do Funchal, com especial incidência nas partes do fundo202 e em Câmara de Lobos. Para o século dezasseis os livros referentes ao quinto dão-nos apenas nove rendeiros na Calheta (1509, 1513-14), Ponta de Sol (1517) e Ribeira Brava (1536). É de salientar o caso da Calheta com sete rendeiros.

PROPRIETÁRIOS DE CANAVIAIS A presença da cultura no solo madeirense conduziu à reestruturação do regime fundiário de modo a adequá-lo às condições específicas que a mesma gerava. Para a plena afirmação dos canaviais foi necessário criar algumas condições para além das oferecidas pelo solo: a água para o regadio e accionar os engenhos, a madeira e a lenha para os pôr em funcionamento, por um período prolongado de tempo. Foi de acordo com a disponibilidade dos factores de produção que os canaviais se expandiram no solo madeirense. Todavia, nunca atingiram a dimensão dos brasileiros ou antilhanos. Enquanto em ambas as áreas a cultura era feita de uma forma exaustiva, estando os canaviais quase sempre associados ao engenho, na Madeira a exploração era intensiva, em pequenas parcelas de terreno (poios), devido às condições definidas pela orografia. Deste modo quando nos referimos à grande propriedade madeirense queremos apenas enunciar a situação interna da Madeira, que não pode ser colocada ao mesmo nível da ilha de São Tomé, do Brasil e Antilhas. Os dados disponíveis no estimo de 1494 e nos livros do quarto e quinto para 1509 e 1537203esclarecem-nos sobre a situação fundiária em torno da cultura. De início as dificuldades no estabelecimento dos poios para o cultivo dos canaviais terão conduzido a que se afirmasse a pequena propriedade que depois avançou, a pouco e pouco, para a de maiores dimensões. A vinculação dos canaviais, a crise que se viveu a partir da década de trinta do século dezasseis, contribuiu para a tendência concentracionista dos canaviais. A situação condicionou o reforço da grande propriedade na Ribeira Brava e Calheta. De acordo com o estimo de 1494 é patente um sistema de cultura dos canaviais organizado em regime de média e pequena propriedade pois que a média de produção oscila entre 117,23 arrobas

201. ANTT, Convento de Santa Clara, lº, 18. Cf. João José Abreu de SOUSA, ibidem. 202. Por partes do fundo entendia-se nos séculos XV e XVI o espaço agrícola que ficava entre C. de Lobos e a Calheta e que integrava a melhor área de canaviais. 203 .V. Rau, O Açúcar na Madeira nos finais do século XV, Funchal, 1962, 23; A. Vieira, o Regime de Propriedade na Madeira. O Caso do Açúcar”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. I, Funchal, 1990.

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Proprietários

Até 100 arrobas Entre 101 e 250 251 a 500 501-1000 1001 a 1500 1501 a 200 Mais de 2000 TOTAL

Funchal 1494

1509

1534

1509

1517

1536

1526

1537

79 36 13 4

28 21 8 10 3 1 1 72

34 19 9 6 1

1 1

3 5

6 2 2

2 5 3 2 14

3 1 2 2 16

7 3 3 4

1

4 5 1 2 1

2 13

2 15

1 18

132

69

Transporte de molhos de cana. 2002

TOTAL

CAPITANIA DO FUNCHAL Ribeira Brava Ponta de Sol

Calheta 1509

1534 2 3 2 1 2

2 2 5 3 3

2 12

Partes Fundo 1494

capitania Machico 1530

15 17 25 22 10 9 3 101

31 14 5 4 1

número

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

%

210 39,5 128 24 68 13 60 11 30 5,5 18 3 18 3 532

55

do Funchal e as 632,73 das Partes do Fundo204, perfazendo no geral 345,28. No período subsequente (1509-1537) atinge-se uma média de 470,27 arrobas nas duas capitanias, sendo de 171,08 na de Machico e de 537,98 na do Funchal. A área definida pela capitania de Machico surge com o valor mais baixo enquanto na do Funchal e, nomeadamente, nas comarcas da Ribeira Brava e Calheta este valor é 9 vezes superior. O aumento não ficou a dever-se à colheita da comarca do Funchal, onde se mantém em 307,96 ou 197,56, mas sim das comarcas das Partes do Fundo. Aí, especialmente na Calheta e Ribeira Brava, chega a atingir, respectivamente 1867,32 e 1376,17 em 1509205.

Participação dos proprietários na produção geral: percentagem CAPITANIA DO FUNCHAL Funchal

Ribeira Brava

Ponta de Sol

CapiPartes tania Fundo Machico

Calheta

Proprietários 5 principais 10 20 30 40 50 Restantes

1494

1509

1534

1509

1517

1536

1526

1537

1509

1534

67 98

75

90

82

68

66 93

88

37 51 64

36 53 76 83

36

17

2

25

7

12

10

18

32

1494 31 52 67 78 85 15

1530 42 60 79

14

204. Entenda-se as áreas dos actuais concelhos da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta 205. Uma arroba é igual a 32,37 lbs.

124

125

Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Apanha da cana. Postal antigo

Da análise da posição dos produtores, no contexto global da produção, a ambiência é inversa. Aí, no caso da comarca do Funchal a alteração do valor de produção é mais baixa nos primeiros 5 proprietários que nos restantes, cifrando-se, respectivamente, em 3865,5 e 4597,5 arrobas. Nas restantes comarcas da capitania do Funchal a situação é variável. Assim, na Ribeira Brava temos uma acentuada subida dos 5 principais proprietários, atingindo 9% entre 1509 e 1517 e 15% entre 1517 e 1536. Idêntica é a situação da comarca da Calheta entre 1509 e 1534 onde o aumento se situa na ordem dos 24%. Apenas a comarca da Ponta de Sol acompanha a do Funchal na queda, mas aqui atinge 14%, isto é, o dobro da similar do Funchal. O decréscimo é contrabalançado por idêntico aumento dos restantes proprietários. A instabilidade da economia açucareira madeirense surge de modo evidente na evolução da média de produção e do número e importância dos proprietários de canaviais. Assim temos, no primeiro caso, uma média anual de 5,26 arrobas no Funchal, 36,22 na Ribeira Brava, 20,18 na Ponta de Sol e 32,57 na Calheta, o que equivale no total da capitania, a uma variante média anual de 23,56 entre 1509 a 1537. As comarcas de maior produção de açúcar, situadas além-Funchal foram as mais atingidas com a crise açucareira. No entanto, a ambiência devocionária não conduziu ao abandono dos canaviais, pois que a diminuição do número de proprietários é reduzidíssima, senão nula. A situação leva-nos a concluir que a crise açucareira conduziu apenas a redução do número de canaviais e à diminuição do grupo dos pequenos proprietários, incapazes de suportarem a depressão. Os grandes e médios proprietários tinham pecúlio suficiente para manter os principais canaviais, dando continuidade à safra do açúcar. No grupo, apenas é de salientar, uma diminuição do número de arrobas de produção por proprietário. Assim, no período em causa os proprietários com produção inferior a 1000 arrobas sofre uma ligeira alteração que se acentua na razão inversa do número de arrobas da produção. Para os que se encontram no nível superior às 1000 arrobas a situação mantém-se estacionária, não obstante o caso da Ribeira Brava e do Funchal. A conjuntura deprecionária da economia açucareira madeirense conduziu a profundas alterações na estrutura fundiária, contribuindo para a concentração dos canaviais nos grandes proprietários. Os de poucos recursos financeiros vêm-se obrigados a abandonar os canaviais, a substituilos pelos vinhedos ou então a penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. A situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente nas comarcas da Calheta e Ribeira Brava. A tendência já acentuara já na transição do século XV para o XVI. A mutação da posse dos canaviais no período de 1494 a 1537 poderá ser aferida pela variância do nome dos proprietários. Entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI verifica-se a manutenção de trinta e dois nomes (11%), enquanto no período de 1509 e 1537 apenas se mantiveram dezanove (6%). Os números poderão significar que a mutação é mais evidente no período de crise que na fase ascendente, por outro lado indicam a maior incidência nas Partes do Fundo, pois que no Funchal permanecem 17 nomes, isto é, 53% do total de nomes em causa. Outro aspecto de particular significado na conjuntura de crise é o estabelecimento de contratos de arrendamento e, depois de colonia, que conduzem ao afastamento do real proprietário da terra

126

Apanha da cana. Postal antigo

127

Alberto Vieira

Apanha da cana. 2002

e dos canaviais. A relação só existirá à beira do estendal para receber o açúcar. Exemplo disso é o contrato de arrendamento de meias de terras em Câmara de Lobos, estabelecido entre o convento de Santa Clara e Francisco Martins em 1558206. Se é certo que o estimo de 1494 confirma a tendência para a afirmação da pequena e média propriedade no Funchal, Câmara de Lobos e, em parte, da grande propriedade nas Partes do Fundo, também é certo que os dados em estudo para os anos de 1509 a 1537 dão conta a grande propriedade nas Partes do Fundo e da média no Funchal e Câmara de Lobos (comarca do Funchal). Em 1494 no Funchal e Câmara de Lobos os vinte proprietários (15%) representavam metade da produção global da área. Apenas dois excediam as 700 arrobas. Nas Partes do Fundo o mesmo número de proprietários (20%) produziu metade do total da capitania. Em 1509, no Funchal, apenas quinze (21%) surgem com metade da produção da comarca, enquanto nas Partes do Fundo apenas os cinco principais (18%) apresentam-se com 65% da produção global. No cômputo geral da capitania contribuem com 55%. A análise em pormenor das diversas comarcas, na primeira metade do século XVI reforça esta posição. Assim em 1509 temos na comarca do Funchal apenas 36%, na Ponta de Sol é de 67% e na Ribeira Brava 66%. Nas Partes do Fundo a tendência é para o aumento da percentagem, nos anos subsequentes, comprovado de modo esclarecedor em 1536 na Ribeira Brava com 90% e em 1534 na Calheta com 88%. Na comarca do Funchal a tendência é para a diminuição em favor da média propriedade. A capitania de Machico, segundo informação disponível de 1530, situa-se a um nível muito baixo, mas superior à comarca do Funchal. A situação comprova que a mesma capitania mantêm um sistema de cultura idêntico ao da comarca do Funchal. O elevado índice de parcelamento da propriedade nas duas áreas não tem a mesma origem, pois enquanto na comarca do Funchal deriva da forte concentração populacional, na capitania de Machico resultará fundamentalmente, das condições orográficas. A explicitação do parcelamento dos canaviais torna-se mais evidente quando estabelecemos uma comparação entre a situação em finais do século XV e da primeira metade do século XVI. Em 1494 surgem, na capitania do Funchal, 40% dos proprietários com menos de 100 arrobas de produção, enquanto entre 1509 e 1537 são 35% na capitania do Funchal e 57% na de Machico. Na primeira temos 26% na comarca do Funchal, 5% na de Ponta de Sol, 4% na da Ribeira Brava e apenas 1% na da Calheta. A grande propriedade quase inexistente em 1494 com grande destaque na primeira metade do século XVI, nomeadamente nos primeiros decénios. Em 1494 apenas surgem proprietários com mais de 1000 arrobas nas Partes do Fundo e em número reduzido (22%) na zona e 10% no global da capitania). No século XVI surgem na capitania do Funchal em número superior com 18% na capitania e 14% no global. Na capitania de Machico é quase inexistente uma vez que apenas há notícia 206. ANTT, Santa Clara, livro 6, fl. 226vº. Neste contrato são estabelecidas algumas condições e recomendações sobre os canaviais: “...prantara todas as terras que forem para isso prantar de quanas e cavara as terras com soquoas e as benefisiara muito bem e a seus tempos reguara e tapara e armara e desbixara... efara as quanas em coallquer engenho que milhor sirva e mais proveitoso de tudo o que ho senhor deus der dasuqar mel e todo o mais prosedido delle partirão pello meio na caza de purgar do engenho donde se fizerem as canas e feitio paguara quada hum sua metade...”. Em 1591 (ANTT, Santa Clara, nº.6, fol.73, contrato de 18 de Agosto) noutro contrato com Fracisco Lopes em S. Martinho refere-se a obrigação de plantar cada ano 200 feixes de canas, dando as freiras metade da pranta. Noutro contrato de 15 de Junho de 1600 (ANTT, Santa Clara, maço 7, nº.24) com colonos em s. Martinho recomenda-se a manutenção dos canaviais

128

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

de um proprietário com mais de 1000 arrobas. A posição da capitania do Funchal deve-se fundamentalmente aos proprietários sedeados nas comarcas da Calheta (35%) e Ribeira Brava (42%). Em 1494, na capitania do Funchal surgem apenas 12 proprietários (5%) com uma produção superior a 1500 arrobas e, no período subsequente (1509-1537) 24 (8%). Os últimos são na maioria, oriundos da Ribeira Brava e Calheta. Para 1494 os valores mais elevados são de James Timor (2270 arrobas) e João de França (2500). No período imediato, do século XVI, duplicam, como sucede com Pedro Gonçalves de Bairros da Ribeira Brava que, em 1509, produziu 5 376 arrobas de açúcar, isto é, 28% da comarca e 8% da capitania. Com uma produção superior a 2000 arrobas temos, no período de 1509 a 1537 quinze proprietários maioritariamente oriundos da Calheta e Ribeira Brava, com um valor global de 37% da capitania, enquanto em 1494 eram apenas três, produzindo 9%. Perante esta evidência será legítimo afirmar que na Madeira dominou o sistema de pequena e média propriedade com a cultura do açúcar? Se a conclusão se torna legítima para finais do século XV o mesmo já não poderá dizer-se para a primeira metade do seguinte. Estamos perante a principal modificação na estrutura açucareira neste lapso de tempo de 43 anos. Segundo Virgínia Rau e Jorge de Macedo, “a produção do açúcar beneficiava camadas amplas da população, encontrando-se entre os produtores, além do pequeno e médio lavrador, sapateiros, carpinteiros, barbeiros, mercadores, cirurgiões, moleiros, ao lado de fidalgos funcionários, concelhios e outros, participando por migalhas nos benefícios desta rica produção, [...]. Toda esta miuçalha de pequenos produtores se aproveitava de um organismo montado na ilha, para tornar rentável a sua pequeníssima produção”207. Vitorino Magalhães Godinho reforça a caracterização da realidade social madeirense apontando a tendência para a concentração dos canaviais num número reduzido de insulares208. A situação da primeira metade do século XVI era diferente pois que o número limitado de proprietários reforça a ideia da concentração dos canaviais nos grupos sociais privilegiados da sociedade insular: aristocracia, mercadores, artesãos e funcionários locais e régios. Em ambos os momentos o grupo de proprietários representava apenas 1% da população da ilha209. A tendência concentracionista acentua-se na passagem do século XV para o XVI, uma vez que houve a redução do número de proprietários nas comarcas circunscritas às Partes do Fundo. Aliás, aqui é notória a manutenção dos proprietários, sendo reduzido a mutação por compra e venda, dote ou aforamento. A imutabilidade da propriedade deve-se fundamentalmente à vinculação da terra. Assim, entre 1509-1537, 18% dos canaviais das comarcas das Partes do Fundo estavam vinculados, enquanto no Funchal são só 17%, representando 38% da produção da capitania do Funchal. A caracterização da realidade social da estrutura fundiária açucareira é igualmente diversa, sendo definida pela forte participação dos estrangeiros, mercadores e funcionários. O grupo de estrangeiros que surgia já em 1494 com a forte participação no sector produtivo açucareiro com 17%

Apanha da cana. 2002

207. Ob. Cit., p. 22. 208. Ob. Cit., IV, p. 81. 209. Para a dedução deste dado tivemos em conta o número de proprietários em 1494 e entre 1509 e 1537. Ao número total da segunda metade do século XVI, subtraímos 19, que se repetem nos diversos anos em análise para cada comarca. Para o computo da população tivemos em conta os dados disponíveis para 1500, com 15000 habitantes e 1572 com 19172 habitantes; Veja-se Fernando Augusto da Silva, Elucidário Madeirense, vol. III, p. 103.

129

Alberto Vieira

reforçará a posição, na primeira metade do século XVI, atingindo 20%. A situação é corroboradada pelo testemunho de Gaspar Frutuoso210. A relativa participação em 1494 explica-se pela xenofobia dos mercadores do reino e ilhas e pela ambiguidade da acção da coroa e do senhorio. Até 1498 altura em que o monarca autoriza a permanência dos estrangeiros na ilha, a posição se mantinha muito precária e os interesses molestados pela oposição da burguesia insular e nacional211. A estabilidade e privilégios concedidos aos mesmos contribuíram para a rápida fixação na ilha, justificando-se de modo preciso à participação no sector produtivo na primeira metade do século XVI.

Ribeira Brava

1494

1509

1530

1509

1517

15

6

3

3

Produção em arrobas 13990

5437

2085

25

17

Número

Apanha da cana. Museu Photographia Vicentes

17

1526

1537

1509

1534

2

2

1

2

2

34

3220

4432,5

3417,5

520

5836

1557,5

40529,5

17

31

38

13

24

13

19,5

Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será de supor a fixação do estrangeiro no burgo e arredores. Assim temos 43% deste grupo na comarca do Funchal e arredores. Na maioria são grandes proprietários, uma vez que mais de 50% detém canaviais com produção superior a 1000 arrobas. A acção alargou-se depois, a algumas comarcas periféricas com forte incidência na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, onde assumem uma posição importante na produção e destacando-se como os principais proprietários, dispondo de extensos canaviais, engenho e numerosos escravos. Salientam-se João de Bettencourt na Ribeira Brava com 2450 arrobas de açúcar, João de França, na Calheta com 3632 arrobas e João Esmeraldo na Ponta de Sol com 3277,5 arrobas. No Funchal, é certo, temos grandes proprietários, como Simão Acciaioly, Benoco Amador e João de Bettencourt mas, em contraste, a posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na Ribeira Brava e Ponta de Sol que apresentam a percentagem mais elevada da produção. Em síntese, podemos afirmar que o estrangeiro avizinhado não se preocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e transporte dos produtos, que os atraíram, mantiveram-se como a actividade principal. Raramente surge na condição de proprietário mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador-prestamista. 210. Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1974, pp.84, 103, 110, 119, 124, 126, 130. 211. Em 1496 os naturais da ilha queixam-se ao monarca contra os estrangeiros, referindo que muitos eram produtores de açúcar o que prejudicava a sua safra: “...e hora Senhor estes estrangeyros sam tomados lavradores e teem grandes arrendamentos em que fasem quantos açuquares querem...”, (ARM RGCMF, T. I, fl. 262vº-269vº, 1496, Outubro, 12, Lisboa, regimento régio, publ. no AHM, vol. XVII, p. 254). Em 22 de Março de 1498, por alvará régio, o monarca autoriza a residência e vizinhança dos estrangeiros da ilha, (ARM, RGMCF, t. I., fls. 291vº-292), publ. in AHM, vol. XVII, 1972, p. 369). Veja-se Henrique de Gama BARROS, História da Administração Pública em Portugal, vol. X, 2ª ed., Lisboa, pp. 149-155; V. RAU, “Privilégios e legislação portuguesa referente a mercadores estrangeiros (Séculos XV e XVI)”, in Estudos de História, Lisboa, 1958, pp. 131-158.

130

PROPRIETÁRIOS 1494

1509 -1534

1509

1517

69

4

21570,5

2969,5

1536

Partes Fundo 1494

Capitania Machico

1526

1537

1509

1534

1530

3

2

5

5

3

12

2152,5

622

886

8372

6421

3159,5

Calheta

% em relação total da comarca

Calheta

TOTAL Ponta de Sol

1536

CAPITANIA DO FUNCHAL Ribeira Brava Ponta de Sol

Funchal

Produção

CAPITANIA DO FUNCHAL Funchal

MERCADORES PROPRIETÁRIOS

Número

PROPRIETÁRIOS ESTRANGEIROS NA CAPITANIA DO FUNCHAL PROPRIETÁRIOS

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A classe mercantil atraída pela opulência do açúcar fixou-se nas principais comarcas de produção e comércio do ouro branco. O Funchal, como principal centro de tráfego açucareiro, apresentará condições propícias à residência. Cerca de 60% tinham os canaviais na comarca. De igual modo sendo a capitania do Funchal definida pela melhor área de canaviais, eles preferem-na às terras de Machico, onde apenas atingem 13% do total. Não obstante, a fraca representação numérica na última capitania surgem com 35% do açúcar enquanto no Funchal ficam-se pelos 20%. O mercador nacional ou estrangeiro não se dedicava em exclusivo ao comércio, pois repartia a actividade por uma multiplicidade de produtos de importação e exportação e alargava-a outros sectores, como o administrativo e produtivo. Assim, são em simultâneo proprietários e funcionários concelhios ou régios, com uma forte presença na exploração dos canaviais onde representavam, na primeira metade do século XVI, 24% do total dos proprietários, comparticipando com 30% da produção. A estrutura administrativa das duas capitanias subordinava-se à febre açucareira, sendo definida pelo almoxarifado e provedoria da fazenda. A própria administração local ajustou-se a esta ambiência, sendo a vereação a tribuna de debate das principais questões ligadas ao produto. Ao mercador ou proprietário interessava deter uma posição nesta complexa estrutura administrativa de forma a fazer valer os reais interesses nas ordenanças ou posturas municipais, que regulamentavam a safra e comércio do açúcar. Não será por acaso que muitos dos principais proprietários são nas duas capitanias como oficiais régios ou concelhios. Destes registam-se pelo menos trinta e três, na maioria da capitania do Funchal, com uma produção de 21%. Sendo a vereação o local de debate e deliberação das principais questões ligadas à safra e comércio açucareiro lógico será admitir a participação com assiduidade nas mesmas, como oficiais eleitos ou homens-bons. No grupo 61% são homens-bons. Os elementos mais influentes da classe possidente madeirense incluíam-se em qualquer dos grupos. O usufruto da dupla situação social conduziu à afirmação no grupo de proprietários de canaviais. Assim, 30% dos funcionários e 19% dos mercadores situam-se no grupo com uma produção superior a 1000 arrobas. A conjugação dos vínculos ou legados pios, do duplo estatuto social com as alianças matrimoniais ou extra matrimoniais poderá ser apontada como o principal mecanismo de reforço da grande propriedade na economia açucareira. É uma conjuntura premente no momento de crise da primeira metade do século XVI. A intervenção da infanta D. Catarina foi no sentido da

Canaviais. 2002

131

Alberto Vieira

manutenção dos canaviais através da regulamentação das heranças. Assim, em 1559212 foi eleito um procurador para tratar da herança dos canaviais que levou à decisão em 1562213 de apostar no regime de morgado para os canaviais. Nos séculos XVII e XVIII a estrutura fundiária apresenta-se distinta. Dominam os pequenos proprietários de canaviais, o que demonstra ser uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras pela necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho da diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense. Ano

Apanha de cana. 2002

Proprietários

1600 1689 1691 1692 1693 1694 1695 TOTAL

109 1 2 1 3 2 3 121

1701 1702 1703 1704 1705 1706 1733 1734 1735 1736 1739 1740 1741 1742 1743 1765 1766 TOTAL

2 1 9 28 102 63 13 27 1 5 28 39 56 48 23 27 69 541

PRODUÇÃO arrobas média 3656 172 256 352 172 120 196 4924 32 152 954 902 5168 2408 20,5 109 10 libras 92 90 33,5 32 9,5 3 2 100 libras(1) 10007

33,54

40,69

106 32,21 50,66 38,22 1,53 4,03 10,40 3,21 0,85 0,57 0,19 0,14 0,07 18,49

1) Acrescem mais 106 onças de açúcar, 58 canadas, 125,5 quartos e 15,5 quartilhos de melado.

Apenas para o ano de 1766 é possível conhecer uma das cambiantes típicas da estrutura fundiária madeirense: o contrato de colonia. O registo do oitavo refere trinta e quatro caseiros, sendo sete dependentes do senhor do engenho, aqui não identificado, 6 do Convento de Santa

212 . ARM, DA, nº.100, 6 de Setembro. 213 . ARM, DA, nº.111, 23 de Setembro.

132

Apanha da cana. Colecção Vicente. Museu Photographia Vicentes

Clara e 3 do capitão João Betencourt. Nos séculos XIX e XX a estrutura fundiária não mereceu qualquer alteração. Apenas com o processo autonómico, iniciado em 1974 foi possível alterar a situação com a abolição do contrato de colónia em 1977. A cultura foi conquistando importância e captando o interesse dos agricultores em toda a ilha, mesmo em terras impróprias. Deste modo os problemas do mercado da primeira metade do século XX levaram o Governo a delimitar áreas de produção, ficando de fora os concelhos de Santana e S. Vicente, que em 1953 reclamavam o direito à mesma. A propriedade, de acordo com os mecanismos do direito sucessório estava extremamente dividida. Os canaviais no fogem à regra. Em 1928 temos um grupo de 3535 proprietários a reclamara junto do Governo a preeservação do decreto nº. 14.168214. Na década de cinquenta parece ter aumentado o número de proprietários e a área de produção. Assim em 1955 as 42.500 toneladas de cana da safra eram produzidas por 8.000 lavradores: oito mil lavradores, dos quais menos de mil são senhorios e mais de cinco mil são colonos, produzem, em média pouco mais de 5 toneladas de cana, cada um”215. Em 1971 temos 35.586 toneladas de cana fornecidas por 10.500 agricultores, mas de acordo com informação do Engenho do Hinton existiam 11.661 produtores, sendo 7.709 produtores de cana destinada ao fabrico de açúcar e 1.000 de aguardente e mel. Isto evidencia que os lotes de terreno dedicados à cana são muito pequenos, para além de provar o excessivo parcelamento da terra. Aqui podemos encontrar proprietários directos, arrendatários ou colonos. 214 . Regime Sacarino da Madeira. Representação em que 3535 proprietários, agricultores e consumidores madeirenses saúdam e apoiam S. Exª o Senhor Ministro da Agricultura, pedindo a conservação do Decreto nº.14168, Lisboa, 1928 215 . Ramon Honorato C. Rodrigues, Questões Económicas. 2º tomo: A Madeira no Plano da Economia Nacional, Funchal, 1955, p.81

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Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Plantio da soca de cana. Postal antigo

OS CANAVIAIS.CUIDADOS E CULTIVO Feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e limpa-se, tirando-lhe tudo o que podia servir de embaraço, e logo abre-se em regos, altos palmo e meio e largos dois, com seu camalhão no meio, para que, nascendo a cana, não se abafe e nestes regos ou se plantam os olhos em pé ou se deitam as canas em pedaços, três ou quatro palmos compridos, e, se for cana pequena, deita-se também inteira, uma junta à outra, ponta com pé; cobrem-se com a terra moderadamente. E depois de poucos dias, brotando pelos olhos, começam pouco a pouco a mostrar sua verdura à flor da terra, pegando facilmente e crescendo mais ou menos, conforme a qualidade da terra e o favor ou contrariedade dos tempos. Mas se forem muito juntas, ou se na limpa lhes chegarem muito a terra, não poderão filhar, como é bem. Começa-se a limpar a cana tanto que tiver monda ou erva de tirar. No Inverno a erva que se tira torna logo a nascer e as limpas mais necessárias são aquelas primeiras que se fazem para que a cana possa crescer e o capim a não afogue, porque depois de crescida vence melhor as ervas menores. As socas também (que são as raízes das canas cortadas a seu tempo ou queimadas por velhas ou por caídas, de sorte que se não possam cortar ou por desastre) servem para plantas porque se não morrerem pelo muito frio ou pela muita seca, chegando-lhes a terra, tornam a brotar e podem desta sorte renovar o canavial por cinco ou seis anos e mais. (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

134

135

Alberto Vieira

Transporte da cana em corça. Postal antigo

DOS CANAVIAIS AO ENGENHO A cana-de-açúcar na primeira experiência além Europa demonstrou as possibilidades de rápido desenvolvimento fora do habitat mediterrânico. Gaspar Frutuoso testemunha isso ao referir que “esta planta multiplicou de maneira na terra, que he o assucar della o melhor que agora se sabe no mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa parte dos moradores da terra”216. Tal evidência catalizou as atenções do capital estrangeiro e nacional que apostou no crescimento e promoção, pois só assim se poderá compreender o rápido arranque da mesma. Nos primórdios da ocupação do solo insular era uma cultura subsidiária, passou de imediato a cultura e produto dominante, situação que manteve por pouco tempo.

A ORIGEM DOS CANAVIAIS MADEIRENSES. Todos estamos de acordo de que as primeiras socas de cana apareceram na ilha por iniciativa do Infante. Nisto corroboram os cronistas que testemunham a acção do Infante na ilha. O testemunho de Cadamosto é claro: “E por ser banhada por muitas águas, o dito senhor mandou pôr nesta ilha muitas canas de açúcar, que deram muito boa prova”217. Já quanto à origem não existe consenso, podendo-se apontar distintas proveniências, como o Algarve, Valência e Sicília. A ideia dominante é de que as primeiras socas têm origem na Sicília, tal como refere Gaspar Frutuoso: O Infante Dom Henrique,… mandou a 216 . Ob. cit., p.113. 217 . António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37

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Sicília buscar canas de açúcar para se prantarem na ilha…”218. Diferente é, contudo a opinião de Valentim Fernandes219 que diz serem de Valência: Ho Iffante mandou a Valença por canas de acucar.”, sendo corroborado pelo Historiador espanhol Herrera220. A favor da última versão está o facto de um dos primeiros mestre de engenho conhecidos, James Timor, ser daí originário. Em documento de 1478 recebeu carta de privilégio que lhe permitia dispor de embarcações de gávea para o comércio com o reino e outras partes, excepto Castela, a identificação é clara: “valemciano meestre daçuquar na jlha da Madeira”221. Depois, no livro dos estimos de 1494222 é referenciado como um dos principais proprietários estrangeiros. Devere ter-se em conta ainda que a costa levantina era em princípios do século XV um destacado centro de produção de açúcar e foi a concorrência da Madeira que arrastou a produção para a crise223. A historiografia Algarvia, baseada em alguns documentos que testemunha a cultura da cana-deaçúcar em Quarteira em terras que pertencia à coroa224, conclui que as socas de cana teriam sido trazidas daí. A ideia, defendida, primeiro, por Lúcio de Azevedo225, mereceu a aprovação de muitos historiadores, nomeadamente algarvios226. A primeira plantação teve lugar no Funchal, num terreno do Infante, conhecido como o Campo do Duque. Daqui os canaviais foram levados para Machico, onde se fabricaram as primeiras 13 arrobas de açúcar, vendidas a cinco cruzados a arroba. O Infante, com objectivo de promover a cultura, permitiu que os povoadores construíssem engenhos para a laboração do açúcar sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produção. Destes temos notícia apenas do de Diogo Teive, conforme autorização do próprio duque de 1452. Rapidamente se iniciou o comércio de exportação de açúcar, pois como refere Diogo Gomes os da ilha “fabricam açúcar em tal quantidade que é exportado para as regiões orientais e ocidentais”227. E, Cadamosto não se enganará no vaticínio que fez: “…pelo que posso perceber, far-se-á deles maior quantidade com o tempo, por ser terra muito própria para isto, pelos seus ares quentes e temperados…”228. E o tempo rapidamente o confirmaria. A segunda metade do século XV foi de incremento da cultura, contribuindo para isso os incen-

Infante D. Henrique

218 . Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.84 219. José Pereira da Costa, Códice Valentim Fernandes, Lisboa, 1992, p.141. 220. Visconde do Cannavial, A Cultura da Canna de Assucar. Os Direitos do Assucar, Funchal, 1885, p.4 221. Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, vol. II, p.178 222. Virgínia Rau. O Açúcar da Madeira nos fins do século XV. Problemas de Produção e Comércio, Funchal, 1962, p.23 223. Cf. José Perez Vidal, La Cultura de la Caña de Azucar en el Levante Español, Madrid, 1973, pp.37-54; A revista Afers-Fulls de Recerca i Pensament, dedicou um número especial, coordenado por Ferran Garcia-Oliver ao açúcar “Sucre i Creixement Econòmic a la Baixa Edat Mitjana, vol. XIV, nº.32, Catarroja, 1999 224. D. João I, por carta de 16 de Janeiro de 1404, refere nas suas Terras de Quarteira que estavam arrendadas a genovês João de Palma tinha plantado canas-de-açúcar [João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, I, 217, doc. 208) 225. Épocas de Portugal Económico, Lisboa, 1929, p.226. 226. Duarte Leite, Coisas de Vária História, Lisboa, 1941, pp.218-223; Alberto Iria, Descobrimentos Portugueses. O Algarve e os Descobrimentos, Lisboa, 1956, vol. II, tomo. I, pp.382-386; António de Sousa Pontes, A Cultura da Cana do Açúcar em Quarteira, in Actividades Económicas. Revista Portuguesa de Informação e Cultura, nº. 22(Lisboa, 1958), pp.27-29; Alberto Iria, O Algarve e a Ilha da Madeira no Século XV (Documentos inéditos), in Studia. Revista Semestral, nº38 (Lisboa, Julho de 1974) ,pp.208-212 227. José Manuel Garcia, Viagens dos Descobrimentos, Lisboa, 1983, p.52 228. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37

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tivos do senhorio e a grande demanda que o açúcar tinha no mercado europeu. Os proprietários da terra insistiam em ver os poios cobertos de canaviais, tal como se pode inferir de uma doação de 1470 a João Dias e Luis Fernandes onde se insistia que era para plantar cana229.

Transporte dos molhos de cana.2002

A PRODUÇÃO DO AÇÚCAR. Na Madeira a cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção

Desembarque a cana no calhau do Funchal. Postal antigo

Apanha da cana. Foto Vicentes, Museu de Photografia Vicentes

do senhorio e coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alísios, onde os canaviais atingem 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a cultura além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira área. A capitania do Funchal agregava no perímetro as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar, ocupando a quase totalidade do espaço da vertente meridional. À de Machico restava apenas uma ínfima parcela área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para a cultura. A diferenciação das duas capitanias torna-se mais visível quando analisamos os dados da produção. Assim, em 1494, do açúcar produzido na ilha apenas 20% é proveniente da capitania de Machico e o sobrante da capitania do Funchal. Em 1520 a primeira atinge 25% e a segunda os 75%. Fernando Jasmins Pereira, numa análise comparada da produção das capitanias entre 1498 e 1537, discorda da relação até então estabelecida (3:1) pois, de acordo com a sua análise, a razão situa-se em 4:1 para os primeiros decénios do século XVI, descendo entre 1521-1524 para 3:1 e recuperando na segunda metade do decénio para 4:1. 230 Na capitania do Funchal os canaviais distribuíam-se de modo irregular, de acordo com as condições mesológicas da área. Em 1494 a maior safra situava-se nas partes de fundo, englobando as comarcas da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta com 64%, enquanto o Funchal e Câmara de Lobos tinham apenas 16%. Em 1520, não obstante uma ligeira alteração, a diferença mantém-se, pois a primeira surge com 50%, e a segunda apresenta 25%, valor idêntico ao total da capitania de Machico, com 25%. Uma análise em separado das diversas comarcas da capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância do Funchal em 33%, seguindo-se a Calheta com 27%. As da Ribeira Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária com 20% cada231. Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura da cana-de-açúcar e comércio de derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da administração local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tornar, por algum tempo, no produto dominante da economia madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico aceleraram o processo expansionista. Assim, em meados do século XV os canaviais são motivo de deslumbramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que os açúcares “deram muita prova”, enquanto o segundo dá conta dos “vales todos cheios de açúcar de que aspergiam muito pelo mundo”232. 229. J. M. Silva Marques, Os Descobrimentos Portugueses, vol. III, pp.84-85, nº.59 230. Veja-se Virginia RAU, Ibidem, p. 15; V. M. GODINHO, Ibidem, p. 80; Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense /.../, p. 95;Veja-se a H. G. de Amorim PARREIRA, “História do Açúcar em Portugal”, in Anais da Junta de Investigação do Ultramar. vol. VII (1952) t. I, pp. 31-32; V. RAU, Ibidem, p. 14; Fernando Jasmins PEREIRA, ibidem, p. 100-101. 231. Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 95 a 155. 232. António ARAGÃO, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p. 37; Crónica de Guiné, Porto, 1973, cap.II, p.17.

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CÁLCULO DA PRODUÇÃO DE AÇÚCAR NOS SÉCULOS XV E XVI EM ARROBAS ANO

Produção de açúcar na capitania do Funchal em 1494

Produção de açúcar na Madeira em 1522

1455 1472 1473 1474 1493 1494 1497 1498 1499 1501 1504 1505 1506 1507 1508 1509 1510 1512 1513 1516 1517 1518

FUNCHAL

80451 82.568 77.609 78463

MACHICO

20.113 20.642 22.268 20.713

TOTAL

ANO

2470 15.000(1) 20.000(1) 25/30.000 80.000 100.564 103.210 99.877 99.176/120.000 114.778 113.318 209362 230.216 176.985 173.092 146.400 144065 132.426 111.838 122.102 93.005 115.342

1520 1521 1522 1523 1524 1525 1526 1527 1528 1529 1530 1534 1535 1536 1537 1581 1582 1583 1584 1585 1586

FUNCHAL

MACHICO

TOTAL 87.868 106.887 94.804 99.666 81.257 65.129 57.744 69.395 84.530 71.459 55.988 54.077 51.717 51.493 46791 36.670 37.049 35.202 43.031 32.342 31.598

(1) mais de A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situava na ordem dos 240% e no período subsequente até 1493 em 1430%, isto é uma média anual de 13% no primeiro caso e de 68% no segundo. No período seguinte após o colapso de 1497-1499 a recuperação é rápida de tal modo que em 1500-1501 o aumento é de 110% e entre 1502-1503 de 205%. A forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá marcar o máximo, atingindo em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Apenas em quatro anos se atingiu valor inferior ao do início do século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes, baixando a produção na capitania de Funchal, entre 1516-1537, em 60%. Na capitania de Machico a quebra é lenta, sendo sinónimo do depauperamento do solo e da crescente desafeição do mesmo à cultura. Mas, a partir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de modo que a produção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior ao registado em 1470. Pela informação disponível parece que na década de trinta consumou-se a crise da economia

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açucareira e o ilhéu viu-se na necessidade de abandonar os canaviais e de os substituir pelos vinhedos, mas ainda tardou muito tempo até que isso sucedesse em definitivo. Giulio Landi, que visitou a ilha na década de trinta, refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza se dedicam “apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores proventos”233. Por outro lado o almoxarife Simão Rodrigues dava conta em 1557234 que a colheita do ano anterior havia sido muito fraca. A historiografia tem apresentado múltiplas explicações para a crise, valorizando, quase sempre, a actuação de factores externos. Fernando Jasmins Pereira contraria a opinião definindo a crise açucareira madeirense como resultado das condições ecológicas e sócioeconómicas da ilha:”...a decadência da produção madeirense é, primordialmente, motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente a capacidade produtiva”. A crise da economia açucareira madeirense não é apenas resultado da concorrência do açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas deriva, acima de tudo, da conjugação de vários factores de ordem interna: a exaustão dos solos, a carência de adubagem, a desafeição do solo à cultura e as alterações climáticas235. Em 1589 a situação era deveras caótica para os administradores de capelas, que reclamavam a redução dos encargos, uma vez que os rendimentos das terras haviam diminuído drasticamente “por cauza das alforas e fraqueza das ditas terras”236. A situação obrigava à tomada de medidas no sentido de rentabilizar a exploração da terra, através da alternância com outras culturas como os cereais e a vinha237. A concorrência do açúcar das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas vieram agravar a situação de queda. A tudo isto acresce em finais do século os efeitos do bicho sobre os canaviais, como é testemunhado para os anos de 1593 e 1602. O último quartel do século foi o momento de viragem para culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A documentação testemunha a mudança. Assim, em 1571238 Jorge Vaz, de Câmara de Lobos, declara em testamento um chão que “sempre andou de canas e agora mando que se ponha de mallvazia para dar mais proveito...”. Depois, em 1583 Álvaro Vieira vende a Diogo Pires no Caniço um serrado que fora de canas “e agora anda de pão”239. Opinião distinta tinham outros lavradores e proprietários de terra que continuavam a apostar na cultura. Em 1576 Tristão Teixeira tinha várias terras de cana no Funchal, avaliadas em 450$000 rs e num outro que era de soca

Produção de Açúcar. Capitanias - 1508-1537

Produção de Açúcar. Capitanias - 1581-1586

233. António ARAGÃO, ob.cit., p.86. 234. ANTT, Corpo Cronológico, maço. 101, doc. 48, de 27 de Maio. 235. Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 158; Em 26 de Março de 1527 (ARM. CMF, nº.1305, fl.23v?) os funchalenses fizeram ver ao Rei o prejuizo que lhes causava a concorrência do açúcar de S. Tomé, mas a resposta evasiva da coroa só surgiu a 8 de Fevereiro de 1528 (ARM. DA, nº.66); Isabel Drumond BRAGA, “A acção de D. Luís de Figueiredo de Lemos. Bispo do Funchal.1585-1608”, III CIHM, 1993, p.572; ARM, JRC, fls. 499vº-500vº, 30 de Maio; fls. 52vº-88, 20 de Agosto. Veja-se João José de Sousa, História de Uma Quinta, Islenha, 7 (Funchal, 1990, pp.111-112; Jorge Valdemar Guerra, O Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz…, Islenha, 20 (Funchal, 1997), p.135 236. Jorge Guerra, Ibibem, p.135. 237. João José de Sousa, A Origem da Colónia, in Islenha, 13 (Funchal, 1993), p.70 238. ARM, JRC, fl. 499vº-500vº: testamento de 30 de Maio de 1571 239. ARM, JRC, fl 52vº-88: 20 de Agosto.

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OS CANAVIAIS NOS SÉCULOS XVII E XVIII Nos séculos XVI e XVII a intervenção das autoridades resultava apenas da necessidade de garantir ao açúcar da ilha uma posição dominante no mercado interno e a situação concorrencial nos mercados nórdico e mediterrânico. A concorrência do açúcar brasileiro será, por algum tempo, o motivo de discórdia entre os vários interesses em jogo. A incidência das medidas é pontual e resulta do incentivo que a cultura mereceu em finais do século XVI. No ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. A média propriedade cede lugar à pequena e, mesmo, de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas. Em 1610 o bicho da cana obrigou ao fecho de muitos engenhos. Até 1640 o movimento descendente agravou-se com a presença, cada vez mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. As dificuldades eram evidentes e conduziram ao abandono de canaviais. Assim sucedeu com um serrado no caminho para a Rochinha de Manuel Figueira Dutra, “que andou de canas he oje estaa em terra balldya”.242 A ocupação holandesa das terras a cultura fez renascer na ilha os canaviais para responder à solicitação na Europa e necessidade das indústrias de conserva e casquinha. Assim o serrado de Brás Pacheco Tavares nos Piornais estava de pranta nova e despertava o interesse de Amaro Couto, mercador, que o comprou por 350.000rs243. Em 1643 o número de engenhos existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais. A conjuntura da década de quarenta da centúria seguinte foi marcada por novo incremento da cultura, sem necessidade de recurso às medidas proteccionistas, uma vez que o mercado do Nordeste brasileiro se encontrava sob controlo holandês. Fechou-se a rota do açúcar brasileiro. A correspondência de Diogo Fernandes Branco refere a ausência destes navios nos anos de 1649 a 1650244. No último ano245 dizia-se que há dezoito anos que o pau-brasil e o açúcar não vinham de Pernambuco, mas em 1657246 já os lavradores se queixavam que o contrato estabelecido com os mercadores não se cumpria. Perante tudo isto os canaviais voltaram a estar verdejantes. Segundo Diogo Fernandes Branco o ano de 1649 foi de grande produção, mesmo assim não foi suficiente para cobrir as necessidades da indústria de conservas, tendo-se importado em Outubro de Cabo Verde247. Mas, sucede que as levadas estavam abandonadas e faltavam engenhos para moer a cana248. A intervenção das autoridades vai no sentido de promover a cultura através de uma polítiApanha cana. 2002

velha era para no ano imediato se põr de pranta240. Entretanto em 1598 a mulher de Joane Mendes de Miranda tinha terras de arrendamento à Misericórdia que estavam de pranta nova.241 As dificuldades sentidas pela exploração dos canaviais, fruto da concorrência de outras áreas, e das dificuldades internas conduziram em finais do século XVI ao colapso dos canaviais. A documentação referente aos encargos por capelas ou aos contratos de meias e arrendamento evidencia de forma clara a realidade. 240. ARM, Misericórdia do Funchal, no.684, fls. 13-20vº, testamento de 4 de Dezembro. 241. Ibidem, nº.40, fl. 166: auto de 5 de Novembro.

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242. ARM, JRC, fls. 126vº-129: 16 de Outubro. 243. Ibidem, fls. 203vº-204vº: 9 de Julho 244. ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19: cartas de 20, 23 de Maio, 30 de Junho, 3 de Agosto, 18, 19 de Outubro, 6 de Dezembro de 1649, 17 de Junho de 1650. Cf. Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira, vol. I. Correspondência Particular do Mercador Diogo Fernandes Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996. 245. ANTT, PJRFF, nº.396, fl.4v1: 15 de Junho. 246. ANTT, PJRFF, nº.965ª, fls.429-429vº: 16 de Agosto de 1663 247. Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira, vol. I. Correspondência Particular do Mercador Diogo Fernandes Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996, pp.45 e segs. 248. ANTT, PJRFF, nº.396, fl.4: 20 de Outubro de 1648; Ibidem, nº.396, fl.7vº: 5 de Dezembro de 1651.

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ca de incentivos, materializada nos apoios à reconstrução dos engenhos. O conjunto de medidas culmina em 1688 com a redução dos direitos que oneravam a produção, passando de um quinto para um oitavo. Nos séculos XVII e XVIII os poucos canaviais pertencem à área da capitania. Em Machico os poucos canaviais que persistiram, principalmente em Santa Cruz, haviam desaparecido por completo em 1674249. Em auto lavrado em câmara refere-se que a lavoura cessara na vila de Machico, sendo as terras semeadas de trigo, cevada e vinhas. A partir dos livros do oitavo disponíveis não é fácil estabelecer as principais áreas de produção, uma vez que poucos são aqueles em que está identificada a localidade. Mesmo assim é possível definir-se áreas produtoras de maior evidência, como sejam, Câmara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta, Canhas. As terras de vinha e searas cederam lugar às socas de cana. Mas pouco ultrapassaram, num primeiro momento, a valoração da área agrícola circunvizinha do Funchal, como prova o livro do quinto do ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um grupo maioritariamente desta área250. O livro é único quanto à produção de açúcar na ilha no século dezassete, pois só teremos novas informações a partir de 1689, com a arrecadação do oitavo251. No ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. Aqui a média propriedade cede lugar à pequena e mesmo de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas. ANO 1620-24 1637-44 1645 1652-54 1656-58 1659 1660-62 1670-72 1677-79 1698

Funchal

Santa Cruz

TOTAL

2630 26.080 2.324 18.248 11.453 2.720 3.512 6.283 1.755 40.000

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, n1. 965-A - 969.

Os anos seguintes foram de promoção da cultura o que propiciou um aumento da produção, mantendo-se a mesma incidência das áreas em questão, sendo de realçar a Ribeira dos Socorridos, onde no século dezoito se manteve em actividade um dos poucos engenhos de açúcar existentes na ilha. 249.ARM, Camara de Machico, nº.85, fls. 312vº-316: auto de 28 de Abril 250. ANTT, PJRFF, nº.980.

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A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia promover de novo o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos, com a isenção do pagamento do quinto por cinco anos ou de metade dele por dez anos252. Usufruíram do apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, António Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques253. A situação favoreceu a cultura, afirmando Diogo Fernandes Branco em 10 de Fevereiro de 1649 que as canas estavam “fermozas”, prevendo-se uma grande colheita254. Em Outubro goraram-se as expectativas, pois o açúcar lavrado era de má qualidade. O progresso continuou no ano imediato, o que justificou a construção de dois novos engenhos. Estávamos perante uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência do brasileiro. Em 1658 procurou-se apoiar o cultivo ao reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável. Aos incentivos referenciados acresce o facto de os direitos do quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que no último ano se recomendou maior atenção255. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688256, a coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para um oitavo da colheita, sendo a medida, mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura. Até 1640 o movimento descendente havia-se agravado com a presença, cada vez mais assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. Com a ocupação holandesa das terras a cultura renasceu na ilha para responder à solicitação europeia e pela necessidade resultante das indústrias de conserva e casquinha. Em 1643 o número de engenhos existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais. O quadro da arrecadação dos direitos pelos almoxarifes evidência de forma clara a situação de crise a partir da década de cinquenta. 251.Idem, PJRFF, nº. 525-539. 252. Usufruíram deste apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, Antonio Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques. ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657, empréstimo ao capitão Pero de Betencourt HENRIQUES; ibidem, nº.966, fl8vº, 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a Inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250. 253 . Usufruíram deste apoio o capitão Diogo Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, Antonio Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques. ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657, empréstimo ao capitão Pero de Betencourt HENRIQUES; ibidem, nº.966, fl8vº, 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a Inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250. 254 . ANTT, Convento de Santa Clara, livro, nº.19, cartas de 10 de Fevereiro e 18 de Outubro de 1649, publicadas por Alberto Vieira, O Público e o Privado na história da Madeira, Funchal, 1996, p.45. 255 ANTT, PJRFF, nº. 396, fl. 63vº. 15 de Novembro 256 ANTT, PJRFF, nº.969, fls. 48-vº

Apanha de cana. 2002

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Alberto Vieira

ALMOXARIFE Cristóvão Faria Cristóvão Valente

Luís Soares Pais Luís Soares Pais Manuel Soares Pais

Apanha da cana. Postal antigo

DATA 1620-24 1645 1652-54 1656-58 1660-62 1670-72 1677-79

total 49.264$261 12.738$951 39.292$894 40.532$298 49.546$497 70.178$733 62.389$244

AÇÚCAR Arrobas Arráteis 52.266 469 3.649 2.390 702 1.256 351

261/2 28 ? 21 19 12 241/2 91/2

O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência. Ainda, em 1658 procurou-se apoiar os canaviais ao reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável. É de prever, contudo, que a produção de açúcar tenha sido alvo de novo incentivo no final do século, pois em1693257 o fogo do céu terá queimado cinco mil pães de açúcar e, passados cinco anos, Governador D. António Jorge de Melo, refere-se a existência de 41 engenhos que rendiam à coroa 8.000 arrobas258. Em finais da década a situação era distinta, como o corroboram dois estrangeiros que passaram pela ilha. Em 1687 Hans Sloane259 é peremptório na caracterização da conjuntura açucareira: “Esta ilha é muito fértil tendo antigamente produzido grandes quantidades de açúcar aqui cultivado e de excelente qualidade. O que agora possuem é bom, mas muito escasso, devido à existência de muitas plantações açucareiras nas Índias Ocidentais (...) Assim, embora consigam um produto de maior cotação, acham que lhes é muito proveitoso dedicarem-se aos vinhos, pelo que apenas produzem o açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil, às suas próprias plantações.” Dois anos após é idêntico o testemunho de John Ovington260: “ o açúcar... raramente é exportado, devido à sua escassez, mal chegando para as necessidades da ilha”. 257 Álvaro Rodrigues de Azevedo, Anotações, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, p.693. 258 .João Cabral do Nascimento, Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1936, p.14 259 . António Aragão, A Madeira vista por Estrangeiros, p.158 260 Ibidem, p.198

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

DATA 1689 1690 1693 1694 1695

1701 1702 1703

Pães

PROPRIETÁRIO Francisco Vasconcelos e Silva Francisco Vasconcelos e Silva Francisco Vasconcelos e Silva Francisco Vasconcelos e Silva Inácio Cabral Catanho Padre André de França Joseph de França Padre André de França Capt. Vicente Andrade Capt. Manuel Freire Andrade Capt. Manuel Freire Andrade Capt. Manuel Freire Andrade Joseph Nunres Manuel de Agrela Capt.Filipe António Lopes Maciel Domingas Ferreira, viúva Capt Joseph de França Berenguier Capt. Manuel Catanho de Aguiar Capt. Visente de Ossuna Andrade

Ribeira dos Socorridos Calheta Ribeira dos Socorridos Ribeira dos Socorridos

Açúcar Peso arrobas Arratéis 200 21?

7 5? 8

68 46 56 84 8

Ribeira dos Sete Passarinhos 12 5 16

Câmara de Lobos Câmara de Lobos

libras

6 7

26

32 152 33 55 70 56 125 210 67 134 123

FONTE: ANTT, PJRFF, nº.525.

No período de 1689 a 1766 deparamo-nos com algumas quantidades de açúcar na Ribeira Brava, Funchal, Ponta do Sol, Santa Cruz e Calheta261. A situação é totalmente distinta daquela que se viveu nos séculos XV e XVI. Na Calheta, por exemplo, iam longe os tempos áureos, agora a produção de açúcar era quase ridícula. Assim entre 1689 e 1705 foram só 29 arrobas e 2 libras262. O recurso a medidas de capacidade de pequeno, que por certo adquiriam muita importância para a época. Era uma agricultura de jardinagem. De acordo com Álvaro Rodrigues de Azevedo263 o ano de 1748 é o marco que assinala o fim da primeira época do açúcar na Madeira: “acabou, por então o assucar na ilha da Madeira. A cana doce, somente como mera curiosidade, continuou cultivada, fazendo-se della pouco mel, para consummo domestico...” Por todo o século XVIII a aposta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais. Mesmo assim tiveram continuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de canaviais e sabe-se que o engenho dos Socorridos se manteve em funcionamento por todo o século XVIII264. A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia promover de novo

Apanha da cana. Colecção Vicente. Museu Photographia Vicentes

261.ANTT, PJRFF, nº.965a. 262.ARM, CMF, registo geral, tomo VII, fl.35. 263.”Notas”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, p.697 264 . Álvaro Rodrigues de AZEVEDO (“anotações”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873) refere a extinção em 1748, o que não é verdade, pois o engenho dos Socorridos foi alvo de beneficiações em 1755 e continuou laborando por todo o período derradeiro deste século. Cf. João Adriano RIBEIRO, A cana de açúcar na Madeira séculos XVIII-XIX, Calheta, 1992.

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Alberto Vieira

Transporte em corça. Postal antigo

o cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos, com a isenção do quinto por cinco anos ou a metade por dez anos. O progresso continuou no ano imediato, sendo testemunhado a construção de dois novos engenhos. Foi no entanto uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência. Ainda, em 1658 procurou-se apoiar os canaviais ao reduzir-se os direitos sobre a produção para um oitavo, mas a crise era inevitável. Acresce o facto de os direitos do quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que no último ano se recomendou maior atenção. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688, a coroa determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para um oitavo da colheita sendo a medida mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura265. A produção de açúcar torna-se conhecida através dos tributos que recaem directamente sobre o produto. Na Madeira tivemos o quarto e, depois, o quinto que oneravam todos os lavradores de cana de acordo com os valores de produção estabelecidos à saída do estendal para os canaviais. Nas Canárias o diezmo da Igreja é o mais importante266. Para a arrecadação dos direitos eram nomeados quintadores paras as diversas localidades. Em 1686 determinou-se a extinção do cargo por que “não tinhão exercício algum por se terem extinguido os engenhos e se não fabricarem nessa ilha os tais asucares…”267. A situação repete-se passados dois anos justificando-se a medida por todos, menos o de Santa Cruz, terem já falecido e “por não haver nesta ilha engenhos nem se fabricarem de novo.”268 No século dezoito a cultura é conduzida para um plano secundário, deixando de ter a real importância que teve na economia madeirense. Em 1746 foi dado provimento ao escrivão dos quintos do açúcar da vila da Calheta, a António Dionísio de Oliveira, o que prova que pelo menos aqui a cultura ainda se mantinham com dimensão para a Fazenda Real se preocupar com a arrecadação269. Para Albert Silbert270 o fim do “ciclo do açúcar” na Madeira tem lugar em meados do século XVIII. Opinião, aliás, corroborada pelo cônsul francês na ilha, que refere para 1777 o abandonado da cultura271. Poderá ter a mesma origem a inexistência de livros do oitavo a partir de 1766. Por todo o século XVIII a aposta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais. Mesmo assim tiveram continuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de canaviais e sabe-se que o engenho dos Socorridos se manteve em funcionamento por todo o século XVIII. 265 . ANTT, PJRFF, nº.965a, fls. 7 de Novembro de 1654, ordem para reposição do quinto pago por António Correia Betencourt; ibidem, fls. 181-182, 21 de Agosto de 1654, fiança do capitão Diogo Guerreiro; ibidem, fl. 222, 24 de Maio de 1657, empréstimo ao capitão Pero de Betencourt Henriques; ibidem, nº.966, fl.8vº: 4 de Novembro de 1680, alvará de privilégio a Inácio de Vasconcelos. Confronte-se F. MAURO, ibidem, pp. 248-250; ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19: cartas de 10 de Fevereiro e 18 de Outubro de 1649; ANTT, PJRFF, nº. 396, fl. 63vº: 15 de Novembro; nº.969, fls. 48-vº 266 . Paulino CASTANEDA DELGADO, “Pleitos sobre diezmos del azucar en Santo Domingo y en Canarias” in II CHCA, Vol. II, Las Palmas, 1979, pp. 247-272; Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit, pp. 179-186. O diezmo não era taxado pela décima parte das canas mas sim uma arroba em cada vinte de açúcar branco. Daqui resultaram alguns conflitos, resolvidos em 1543 com breve do papa Paulo III que estabelece o diezmo ser a décima parte de todo o açúcar antes de divisão pelos lavradores e donos de engenho, 5% do primeiro açúcar branco e purificado e 4% dos demais tipos de açúcar (Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ibidem, p. 183). 267 . ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 446vº-447: 20 de Dezembro 268 . Ibidem, nº.396, fls. 84-84vº: 20 de Novembro de 1688. 269 . Ibidem, nº912, fl.184vº: 12 de Fevereiro 270 . Uma encruzilhada do Atlântico. Madeira (1640-1820), Funchal, 1997, p.89 271 . Ibidem, p.113

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Apanha da cana. Postal antigo

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Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1853 quizeram na Madeira voltar à épocha remota de 1420, grandes difficuldades se apresentaram aos emprehendedores de uma industr ia, que necesssitava de grandes capitaes para organisar fabricas regulares, e que tinha de competir com o progresso industrial desenvolvido em um grande espaço de tempo, durante o qual as artes e as sciencias haviam adquirido novas praticas e novas leis. Pode ainda a Madeira receber grandes beneficios pelo fabrico do assucar, mas não pode viver unicamente d’elle, como vivia do fabrico dos vinhos.”272 Outro facto evidente da centúria oitocentista foi a presença de inúmeros madeirenses em Demerara como mão-de-obra substitutiva dos escravos, cuja situação, entretanto, havia mudado. A última década do século dezanove e as duas primeiras da presente centúria podem ser consideradas de horas amargas para todos os madeirenses. Parte disso é resultado do processo porque passou o açúcar. A generalização do consumo provocou um redobrado empenho na sua reimplantação entre nós. No início, as dificuldades do mercado americano, envolto em guerras pró-independência, e ainda não refeito do impacto do abolicionismo, propiciaram a afirmação da cultura nos primeiros espaços, ou a aposta nas alternativas, como a beterraba, que na ilha nunca resultou. Todavia, num segundo momento a concorrência tornou-se feroz. Entre nós a do açúcar de beterraba açoriano ou de cana de Angola e Moçambique foi bastante evidente e levou ao estabelecimento de medidas restritivas da circulação do melaço e do açúcar, ou de favorecimento da indústria local, enquadrando-se na política europeia definida pelo convénio de alguns países produtores assinado a 5 de Março de 1903. A última situação conduz, por vezes, ao monopólio. A toda a complexa conjuntura junta-se a dificuldade extrema no recrutamento de mão-de-obra barata - o escravo era então coisa do passado - o que levava a um investimento desusado na tecnologia. A intenção era clara: substituir-se ao homem, baratear e facilitar a rapidez do processo de laboração. Uma das grandes questões em debate no segundo momento do açúcar prende-se com as dificuldades em concorrer com outras áreas produtoras, onde os custos eram reduzidos a metade e a qualidade da sacarose da cana também superior273.

Apanha da cana. Colecção Vicente. Museu Photographia Vicentes

O REGRESSO DOS CANAVIAIS. A área de cultura de cana sacarina foi-se reduzindo inexoravelmente a pequenos nichos de socalcos na vertente sul. Todavia, a partir de meados do século XIX a mesma foi paulatinamente conquistando terreno a Norte e a Sul. O testemunho de alguns autores permite acompanhar o evoluir da cultura. Em 1817 Paulo Dias de Almeida274 só dá conta de vinhas, trigais e bananais. O mesmo sucede com alguns textos de autores estrangeiros275. Os canaviais não desapareceram da ilha, mantendo-se a produção de açúcar em um único engenho até 1826. E o resultado era considerado de excelente qualidade276. No ano imediato Severiano Alberto de Freitas Ferraz insiste junto do Governador no sentido de se promover a cultura da cana Apanha da cana.2002

OS CANAVIAIS NOS SÉCULOS XIX E XX - O REGRESSO E NOVA ESPERANÇA. A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso à Madeira, como solução para reabilitar a economia que se encontrava profundamente debilitada com a crise do comércio e produção do vinho. A situação, que se manteve até à actualidade, não atribuiu ao produto a mesma pujança económica de outrora nas exportações. Era algo distinto: “Quando em

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272 .Francisco de Paula de Campos Oliveira, Informações para a Estatistica Industrial publicadas pela repartição de Pesos e MedidaDistrictos de Leiria e Funchal, Lisboa, 1863, p.5 273 Quirino de JESUS, A questão saccharina da Madeira, Lisboa, 1910, p. 19; idem, A nova questão Hinton, Lisboa, 1915, pp. 7-11; Dizia Peres Trancoso (ob. cit. P. 17) “Esta indústria que é na Madeira de característica europeia, com mão-de-obra branca, dificilmente pode competir com o açúcar de origem africana ou brasileira” 274 . Rui Carita, Paulo de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, 1982. 275 . A Guide to Madeira, London, 1801; A Young Traveller, sl., 1815 276 . Na Historical Sketch of the Island of Madeira, Londres, 1819, p.51; Rambles in Madeira, Londres, 1827, p.364

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Alberto Vieira

Produção de cana, 1865

uma vez que a vinha estava condenada por falta de escoamento do vinho277. Dever-se-ia apostar nos canaviais através da isenção de direitos, por um período de dez anos. A partir da década de quarenta o panorama da agricultura começa a mudar. José Silvestre Ribeiro278, Governador Civil entre 1846 e 1848, afirma que: “A cultura da canna de assucar que n’outro tempo se fez em tão larga escala, está hoje redusida a mesquinhas proporções,…”. Os quatro engenhos que laboravam em S. Martinho Ribeira dos Socorridos, Praia e Câmara de Lobos apenas produziam 60 pipas de melaço e 10 de aguardente. A. C. Herédia279 testemunha em 1849 o interesse desusado dos agricultores na plantação de cana. Só que não podia progredir mais por falta de engenhos: “ todos quererão plantar a cana d’assucar, e no curto espaço de quatro annos a Madeira tem uma producção rica…”. A cana parecia ser pouca, mas, no ano imediato, J. Mason280 refere que a cultura se fazia de modo extensivo, ocupando metade da terra arável, produzindo-se melaço e rum. Opinião distinta tem R. White281 que diz ser ainda pouca a área cultivada e apenas usada para o fabrico de mel. Todavia em 1851 são referidos quatro engenhos de moer e fábricas de refinação de açúcar282. Aliás o próprio Robert White testemunha em 1857 que era já muito mais rentável que o vinho283. Mas, à industria depara-se um grande handicap que pautará todo o segundo momento de afirmação, a dificuldade de concorrer em pé de igualdade com as demais regiões284. A cultura era ainda uma auspiciosa esperança para os madeirenses. Nicolau Ornelas e Vasconcellos285, que fora trabalhador de cana em Demerara, diz-nos: “... olha-se para a cultura da cana de assucar como um grande produto agrícola que offerece grandes vantagens, que podem em certo modo adoçar o mal geral, o aspecto aterrador de nossas finanças...” Passados dez anos a cana continua a ser uma aposta forte, mas tardava o momento da plena pujança, de acordo com Eduardo Grande286, ocupava apenas 357 ha (2%), é uma magra fatia do solo arável, que dava 14.688.043 Kg que era laborada em quatro engenhos, mas apenas dois ofereciam condições, pelo que “o preço de fabricação é tão excessivo que mal permitte fazer esta operação em condições lucrativas.” 277 . AHU, Madeira e Porto Santo, nº.10188-10189. 278 . Conhecimentos úteis, in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira, Funchal, 1993, p.174 279 . Breves Considerações sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, Lisboa, 1849, p.7 280 . A treatise on the climate and meteorology of Madeira, Londres, 1850, 243-244. 281 Madeira its climate and scenery, Londres, 1851, p. 54. Na edição de 1857, p. 140, refere já que a cana é mais lucrativa que o vinho. 282 . Edward V. Harcourt, A Sketch of Madeira, Londres, 1851, p.94; Januário de Nóbrega, Breve Memória para a Descripção tipográfica, Económica do concelho do Funchal, in João José Abreu de Sousa, a Patuleia na Madeira 1847, in Islenha, 14 (Funchal, 1994), p.7 283 . …up to the present time the cultivation of sugar cane has been found much more profitable than that of the wine had been for many years previous to the appearance of the disease; but large profits have a tendency to bring about over-production, and it is not likely that the present high prices of the price will be permanently maintained.” (Madeira its climate and scenery, Londres, 1857, p.140). 284 .”No sugar is now made from, the machinery being expsensive, and the produce probably insufficient to render competition with foreign sugar possible.” [Madeira its climate and scenery, Londres, 1857, p.139] 285. Methodo de plantar e cultivar a cana do assucar, Funchal, 1855, p. 4. 286. Relatório. Sociedade agrícola do Funchal, Funchal, 1865, p. 9.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A aposta estava agora na afirmação da cana-de-açúcar, capaz de reabilitar a economia da ilha287. Segundo D. João da Câmara Leme “a cultura da canna é a mais vantajosa para a Madeira nas circunstâncias actuaes”288. Daqui resultava a necessidade de incentivar a construção de novos engenhos289. Em 1879 Henrique de Lima e Cunha290 não duvida em afirmar que “a cultura da canna doce é a mais rica e productiva da Madeira…”. Passados seis anos as dificuldades de desenvolvimento da indústria açucareira eram evidentes, não tornando possível a expansão da área de cultivo. Para isso contribuíram a falta de engenhos e os direitos que oneravam os produtos daí resultantes291. No segundo momento de afirmação dos canaviais podemos estabelecer duas fases distintas. A primeira decorre de 1852 a 1895, culminando com o ataque do fungo conyothurium melasporum292 em 1882, que levou à quase total destruição dos canaviais da cana bourbon introduzida de Caiena (1847) e Cabo Verde293. Para atalhar as dificuldades importaram-se novos tipos de cana, que se foram implantando desde 1884. Acontece que a rentabilidade era menor294.

açúcar Suco Impurezas produção por 100kg cana

AÇÚCAR MELAÇO AGUARDENTE

Bourbon 20,5 11,5º beaumé 92,5 10,7kg 1,5 1 galão a 30º

Novas variedades desde 1884 14,5 9º beaumé 80 8kg 5,58 1,05 litros a 40º

A década de oitenta foi o momento de plena afirmação dos canaviais. A produção fazia-se em grandes quantidades que dava para o consumo local e o excedente exportava-se para o reino295. Ensaiaram-se as diversas variedades, disponíveis ao nível mundial, no sentido de se conseguir a recomposição dos canaviais: otaheite da Mauricia (1886), cristalina do Haiti, Elefante e Bambu, Porto Mackay, rajada e yuba do Natal (1897). A maioria não resistiu ao fungo, pelo que se procurou alternativas como a Cheribon, e a partir de 1935 a POJ-2725, 2727, 2878 de Java, considerada uma das melhores variedades, a White Tanna da Austrália e a CP-807

Molhos de cana. 2002

287. Cf. ARM, Governo Civil, nº.138, fls.122vº-123, 13 de Julho 1854; ibidem, fl. 125-125vº, 20 de Julho de 1854; nº. 140, fl. 147-147vº, 7 de Setembro de 1865. 289. Discurso Pronunciado na reunião Eleitoral do Partido Progressista de Vinte e cinco de Março, Funchal, 1870, p.10. 290. Ibidem, p.13; Conde de Cannavial, A Cultura da Canna de Assucar e os Direitos sobre o Assucar, Funchal, 1885, p.67; IDEM, Um privilégio Industrial. Cartas a diversos jornaes, Funchal, 1883, p.5 291. Plano de Melhoramentos para a Ilha da Madeira, Lisboa, 1879, p.8 292 . Visconde de Cannavial. A Cultura da Canna de Assucar. Os direitos sobre o Assucar, Funchal, 1885, p.67 293. Cf. Rui Vieira, O Bicho da Cana. Sua Importância e Meios de Combate, Funchal, 1959. 294. Alfredo Fraga GOMES, A doença da cana de açúcar pelo congothyrium melasporum na ilha da Madeira, Lisboa, 1900. Sobre o historial do açúcar neste momento veja-se Quirino de JESUS, a questão saccharina da Madeira, Lisboa, 1910. 295. A questão Saccharina da Madeira, Lisboa, 1910, p.17

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Alberto Vieira

Apanha da cana. Colecção Perestrellos. Museu Photographia Vicentes

da Luisiânia296. Actualmente as variedades mais importantes nos canaviais madeirenses são a POJ-2725 e NCO-310. Para isso foi criada em 1888297 uma estação experimental coordenada pelo Agrónomo Alfredo de Fraga Gomes e, em 1895, estabeleceu-se um conjunto de medidas proteccionistas. Daqui resultou a rápida promoção da cultura, que assumiu uma posição destacada na economia da ilha, tal como testemunha António homem de Gouveia: Appareceu de novo e florescentissima a cultura da canna, a ponto de não haver fabricas sufficientes para a moerem; mas, a breve trecho esta cultura florescente tem de ceder o logar ao vinho, que, obtendo um preço remunerador, repovoa a ilha.”298 A partir de 1956 a Estação Agrária da Madeira criou viveiros em toda a ilha de forma a alargar a cultura da cana a todo o espaço arável. Isto surgiu por imposição das câmaras de S. Vicente e Santana que haviam solicitado em 1953 ao Ministro do Interior o restabelecimento da cultura na vertente Norte. Todavia o decreto de 1955, que alargou a área de cana, não o contemplou. Contudo, a Junta Geral estabeleceu campos experimentais em ambos os concelhos no sentido de conhecer as possibilidades da cultura. Alteração significativa só sucedeu na viragem do século, quando a cana atingiu cerca de 1000 ha, valor que continua a subir para as 6500ha em 1939299. A partir daqui foi a quebra resultante das medidas restritivas ao fabrico e consumo de aguardente. Na década de quarenta do nosso século a cana ocupava ainda 34% da área cultivada, mas era já um momento de quebra acentuada da área de cultivo, que na vertente Sul foi paulatinamente substituída pela bananeira. Em 1952300 fala-se apenas 1420ha, enquanto mais próximo de nós, em 1986, só existem 119,9ha. 296 . J. M. Rendell, Concise Handbook of the Island of Madeira, Londres, 1882, p.33; Ellen Taylor, Madeira, Londres, 1882, pp.6869; Dennis Embleton, A Visit to Madeira in the Winter. 1880-81, Londres, 1882, p.78 297. A cana comum era a chamada cana da terra, isto é saccharum officinarum genuinum. 298 . Carlos Azevedo Menezes, A Canna Sacharina, in Portugal Agrícola, XVII, nº.17 (1907), pp.261-263. 299. A Situação da Madeira. Discurso Proferido na Câmara dos Senhores Deputados no dia 19 de Fevereiro de 1907, Lisboa, 1907, p.14 300. Em 1907 Antonio Homem de GOUVEIA (A situação da Madeira. Discurso proferido na camara dos senhores deputados no dia 19 de Fevereiro de 1907, Lisboa, 1907, p. 14) dá conta desse avanço: appareceu de novo e florescentissima a cultura da canna, a ponto de não haver fabricas sufficientes para a moerem;..”.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Evolução da Superfície de cana Ano 1865 1895 1905 1906 1907 1911 1915 1918 1927 1928 1939 1951 1952 1972-1980 1981

Hectares 357 800 1.000 1.200 1.200 1.100 1.800 1.500 1.400 1.400 1.500 1.500 1.420 1290 800

Ano 1982 1983 1986 1988 1989 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Hectares 600 400 119,9 90,3 49 109,9 118,8 113,3 113,8 114,6 114,6 115,0 117,0 119,0 123,0 125,0

A evolução dados canaviais, com maior incidência na vertente meridional, área tradicional de cultivo, significa um maior volume de produção que empurra a evolução do número de engenhos. Foi no período de 1910 a 1930 que se atingiu os valores mais elevados, que aproximaram a ilha dos tempos aureos do século XV, apenas em termos de produção e nunca de riqueza. A partir daqui sucederam-se medidas limitativas da expansão da área dos canaviais301, que conduziram inevitavelmente à desvalorização na economia rural e que em certa medida favoreceram a expansão da banana, cultura, predominantemente da vertente sul, deixando a agricultura do norte num estado de total abandono, o que abriu as portas a uma desenfreada emigração. Tenha-se em atenção que “a agricultura, toda a economia da Madeira, a própria administração pública, ficariam mais do que nunca na dependência das fábricas de açúcar e alcool”302. Facto inédito foi a tentativa de implantação da cultura no Porto Santo. Primeiro foi a frustrada introdução do sorgo303, depois a cana, documentada a partir de 1883. A produção era diminuta, sendo as canas exportadas para o Funchal ou espremidas num engenho movido por bois, ou moinho de vento304. Também na Madeira se cultivou o sorgo com a mesma finalidade desde 1856305. Temos apenas indicação sobre a produção de sorgo em 1862306, para fabrico de aguardente: 301. Angel MARVAUD, Le Portugal et ses colonies, Paris, 1952, p. 188 302. As evidências destas medidas estão na área de cultivo: em 1939 a cana ocupa 6500 ha, enquanto em 1952 era de menos de um quarto, isto é 1420 ha. 303. Juvenal de ARAÚJO, A questão Sacarina da Madeira, Lisboa, 1929, p. 5. 304. Veja-se Anais do município do Porto Santo, Porto Santo, 1989, p. 86. 305. Eduardo PEREIRA, Ilhas de Zargo, vo. I, p.553. 306. Os engenhos do Porto Moniz, S. Vicente, Ponta Delgada e S. Jorge, mas em pequenas quantidades; veja-se Informações de Estatística industrial do districto do Funchal, Lisboa, 1863, pp.68, 55-56, 62-63.

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LOCALIDADE Porto Moniz S. Jorge S. Vicente Ponta Delgada

Áreas de plantação de cana 1955

Áreas de plantação de cana 1963

PRODUÇÃO Litros de sumo KG 7.000 21

litros de aguardente 700 9700 2,1

29.400

Deverá ainda atender-se ao facto de se ter experimentado outras formas de produção de açúcar na Madeira, nomeadamente a beterraba, por iniciativa do Conde de Canavial, que não teve êxito307. O século XX não foi favorável à plena afirmação da cultura. Horácio Bento de Gouveia retrata de forma perspicaz a situação porque passaram os engenhos de Ponta Delgada nestes momentos308. Assim, em 1919 o governo declara a intenção de apostar na cultura da vinha, que deverá ocupar o terreno dos canaviais. Já as leis de 1927, 1928, 1934, 1937 actuam no sentido do controlo da produção e comércio de aguardente, conduzindo inexoravelmente a um paulatino abandono da cultura. Em 1928 a super-produção obrigou à limitação da área de cultivo, ficando novas plantações dependentes de licença. Ao mesmo tempo em 1935 um decreto determinava que as terras impróprias para o cultivo da cana deveriam ser abandonadas. Dos 1800 ha de 1915, que produziam 55.000 toneladas, passou-se aos 1420 do ano de 1952. O decréscimo começou nos inícios da Segunda Guerra Mundial, por força da concorrência de outras culturas, como a bananeira e o vime, que se havia tornado mais rentáveis. A par disso é de realçar também a insistência das gentes do norte, representadas através dos municípios de S. Vicente e Santana, em pretenderem furar as limitações impostas pelas autoridades para a área de produção de cana, que não acautelavam a vertente devido o baixo teor de sacarose309, levando a Junta Geral em 1955 a contrariar as ordens do Ministério do Interior, ao implantar dois campos experimentais em S. Vicente e Santana. A situação é resultado do facto de a cana ser um complemento importante da pecuária e um dos poucos meios de assegurar a subsistência dos lavradores, tendo em conta a total desvalorização da vinha. Nas décadas de sessenta e setenta a Junta Geral do Funchal procedeu a estudos de diversas variedades de cana nos postos agrários do Caniçal e Lugar de Baixo, com o intuito de encontrar a que mais se adequava aos solos do arquipélago. As variedades CP.44-101, CP.36-105, POJ.-2725 se apresentavam com maiores possibilidades de adaptação.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Tipo de cana

CP.44-101 CP.36-105 CP.36-13 CP.48-103 CP.44-155 NCO.310 POJ-2725 ROXA NOVA

1968 Caniçal

78,6 78,3 79,6 91,9 68,8 60

Lugar de Baixo 128,4

50,4 84,7 88,4

1969 Caniçal Lugar de Baixo 105,1 114,7 86,9 87,6 62,9 101,9 80,4 83,9 87,7 91,1

1970 Caniçal Lugar de Baixo 86,4 89,4 80 93,7 64,7 65,1 50,4 76,1 57,3 98,9 65,5 68,1

1971 Caniçal Lugar de Baixo 62,4 56,4 50,7 88,1 48,4 48,2

52,1 61,1

52,1

Os dados referentes à produção continuam a evidenciar a incidência dos canaviais continua a ocorrer na vertente Sul, tal como o demonstram os valores de produção conhecidos para os anos de 1865 e 1970. No século dezanove as áreas de produção mais significativa estavam nos concelhos do Funchal e Machico. A mudança do século XX ocorre apenas quanto aos municípios de Ponta de Sol, Calheta e Ribeira Brava. Certamente que a concentração inicial dos engenhos na cidade levou à hegemonia, enquanto na década de sessenta o efeito dissuasor não se faz sentir, por força da abertura da rede viária, que facilitou o transporte ao engenho do Hinton que deteve o quase monopólio. MUNICÍPIO FUNCHAL MACHICO CÂMARA DE LOBOS PONTA DE SOL RIBEIRA BRAVA CALHETA S. VICENTE SANTANA SANTA CRUZ TOTAL

1865 5.875.200 4.075.244 1.544.252 1.468.800 401.452 440.640 660.960 14.688.043

PRODUÇÃO DE CANA 1966 12.135.923 4.521.634 4.644.804 9.183.852 7.291.482 600.000 6.491.996 500.000 251.126 295.200 1.253.782 570.000 5.649.450 49.961.815 1891 1.806.000 900.000 247.000 292.250

1969 9.556.266 5.365.622 4.376.354 8.127.322 6.198.084 7.054.602 1.469.232 1.356.771 5.522.136 49.026.389

Áreas de plantação de cana 1968

Áreas de plantação de cana 1986

1970 8.913.033 5.174.324 4.260.326 10.221.038 7.174.564 7.957.894 1.392.640 1.236.775 5.906.297 52.236.882

307. Informação de Estatística Industrial do districto do Funchal, Lisboa, 1863, pp.55-56, 62-63, 68. 308. Cf. Ricardo Carlos SMITH, Instruções theoricas e praticas sobre a cultura da holus sacharatus ou cana doce de imphee, Funchal, 1858. A tentativa de implantação da beterraba ocorreu seu sucesso na Quinta do Pico S. João CRACA, Apontamentos para a resolução da críse agrícola, Lisboa, 1879, p.21) 309. Águas Mansas, Coimbra, 1963, pp.37-38, 61, 62, 116, 139-140, 135-136, 141, 207, 243, 276-277, 283.

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PRODUÇÃO DE CANA (em toneladas)

Transporte de cana em corça. Postal antigo

Apanha da cana. 2002

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ANO 1855 1862 1865 1870 1873 1891 1895 1899 1900 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918

TOTAL 2.336 18.779 14.688

5.649 3.231 19.736 18.000 30.000 43.418 36.000 36.000 30.000 75.000 71.266 68.999 69.065 67.464 75.898 57.280 48.000

ANO 1927 1928 1929 1930 1931 1932 1936 1951 1956 1958 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977

TOTAL 40.000 50.000 44.776 46.992 45.006 48.997 31.000 68.000 50.000 57.000 50.346 46.339 50.716 49.961 53.331 46.287 49.023 52.237 46.026 47.503 30.527 42.315 30.334 28.407 35.309

ANO 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

TOTAL 28.345 24.388 21.793 21674 14.940 8.974 6.451 5.256 4.652 4.512 4.160 3.907 3.989 4.173 4.181 3.188 3,793 3.676 3.927 3.500 3.180 3.055 3.035 2.868 3.596 4.300

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ANO

TOTAL

1855 1861 1862 1865 1870 1873 1891 1895 1898 1899 1900 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918 1920 1921 1922 1923 1924 1925

2.336

CANA PARA AÇÚCAR

AÇÚCAR

275 18.779 14.688 800 900 5.649 3.231 648 442 442

19.736 18.000 30.000 43.418 36.000 36.000 30.000

800 1.053 1.828

75.000 71.266 68.999 69.065 67.464 75.898 57.280 48.000

18.560 50.861 54.521 57.403 56.689 39.459 26.775

2.973 3.204 4.662 4.771 5.212 5.467 5.399 3.758 3.527 2.163 2.194 1.974 1.176 1.285 1.465

ANO 1926 1927 1928 1936 1951 1956 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985

TOTAL

50.000 50.000 31.000 68.000 50.000

CANA PARA AÇÚCAR

1.376 1.576 2.804 35.000 54.055

60.983 35.928 50.346 46.339 50.716 49.961 53.331 46.287 49.023 52.237 46.026 47.503 30.527 42.315 30.334 28.407 35.309 28.345 24.388 21.793 21674 14.940 8.974 6.451 5.256

AÇÚCAR

38.575 40.539 33.779 40.422 35.091 35.162 25.224 30.348 22.211 20.877 23.497 14.297 8.817 10.581 7.660

5.076

3.212 2.263 3.218 3.005 3.112 2.174 2.971 2.038 2.385 1.734 1.611 1.221 1.078 3.303 1.414 1.037

Transporte de molhos de cana. 2002

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Ano 1861 1870 1873 1898 1899 1900 1905 1906 1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920 1921

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Açúcar em kgs 275.802 800.000 900.000 648.500 442.000 503.000 800.000 1.053.000 2.973.550 3.204.000 4.161.550 4.260.928 4.796.725 4.917.113 4.943.675

Aguardente em litros

700.000 1.436.305 1.008.257 826.678 718.617 1.098.175 1.162.398 1.261.450 948.000 700.000 600.000

Álcool em litros

729.543 769.064 737.725 552.901 813.235 497.505 415.370 117.386 422.184 500.000

Ano 1922 1923 1924 1925 1926 1827 1928 1929 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994

Açúcar em kgs

8.974 6.451 5.256 4652 4.512 4.160 3.907 3.646 3.989 4.173 4.181 3.188

Aguardente em litros 500.000 400.000 500.000 500.000 500.000 500.000 500.000 293.177 285.177 237.500 213.200 179.000 177.100 121.100 152.230 162.350 180.400 131.787 109.250

Álcool em litros 453.990 473.800 800.000 600.146 833.810 672.191 730.654

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Safra da cana.2002

CANAVIAIS E PLANTAÇÃO As áreas de cultivo dos canaviais continuam a manter a tradição histórica. A vertente Sul, o espaço da antiga capitania do Funchal, dominam. Para o ano de 1865310 temos indicação dos valores de produção por conselho. O facto mais significativo é o concelho de Santana, cuja produção incide no Faial e alastra depois a S. Jorge e Arco de S. Jorge. A Calheta, que no século XVI havia sido a principal área de produção, cede o lugar para o Funchal, Câmara de Lobos e Ponta do Sol. Passados noventa anos a situação alterou-se. O Funchal continua a ser a principal área, seguido à distância de Santa Cruz. O Norte perde importância, assumindo-se a cana como uma opção de cultivo da vertente sul. Na actualidade, a fazer fé nos dados referentes às áreas de cultivo temos de novo a afirmação da Calheta como bastião dos canaviais, seguido de perto por Ponta do Sol, Machico e Ribeira Brava. As áreas de produção de açúcar, nos dois momentos da afirmação, são diversas. Enquanto nos séculos XV e XVI era uma cultura, predominantemente, da vertente sul, dominando o espaço da capitania do Funchal (75%), na presente centúria assistiu-se a uma expansão da cultura em toda a ilha e à consequente definição de novas áreas:

CALHETA FUNCHAL PONTA DO SOL R. BRAVA MACHICO

1520 % 20 25 15 15 25

1950 % 7 53 14 4 29

1956-66 % 13 34 18 15 20

No primeiro momento o Funchal, representava apenas 25%, em 1520, enquanto em 1950 sobe para 53%. A subida resulta da perda de importância da área agrícola entre a Ribeira Brava e a Calheta. Estas comarcas que produziram 64% do açúcar da capitania do Funchal em 1494, surgem em 1520 com 67% da capitania e 50% do total da ilha, para em 1950 não ultrapassarem os 25%. Apenas a área circunscrita à capitania de Machico manteve níveis parecidos, não obstante o alastramento da cultura na costa norte.

310. Apenas 1,1 graus Beaumé, quando na vertente sul nas áreas abaixo dos 300 metros de altitude chegava aos 13.

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Os dados referentes à produção dão conta que se atingiu níveis mais elevados na primeira metade da presente centúria: expandiu-se a área da cana, que em 1939 abrangia os 6500 ha. A expansão da cultura não propiciou o mesmo progresso económico propiciado nos séculos XV e XVI. As condições de rentabilidade económica eram outras, como distinto era o principal destinatário. Aqui, ao contrário do que sucedeu há cinco séculos atrás a produção tinha como objectivo assegurar as necessidades da ilha e não o comércio com o exterior: as licitações estabelecidas na década de trinta à expansão da cultura conduziram a que baixassem os níveis de produção, levando à necessária importação, desde a década de quarenta. Se estabelecermos um confronto entre a população e o número de toneladas de açúcar arrecadados veremos que na primeira (séculos XV e XVI) a capitação era muito mais elevada. Safra da cana.2002

Fábrica de açúcar de São Filipe. Largo do Pelourinho

O AÇÚCAR E A POPULAÇÃO MADEIRENSE Anos 1449 1510 1584 1900 1920 1930 1940 1950 1963

População 16000 16000 25000 150600 17000 211601 249771 266300 268100

Produção toneladas média ha 1135 53 Kg 1585 60 473 19 503 3,4 2153 12,6 3149 11,6 4334 17,4 3500 3872 14,4

O PROTECCIONISMO SACARINO Sendo a cultura e comércio do açúcar uma das principais actividades geradoras de riqueza era natural o múltiplo interesse atribuído pelas autoridades. Com isto garantia-se, não só a estabilidade económica dos lavradores, como também, a elevada receita proveniente da cobrança de direitos ou impostos. Acontece que desde o início da cultura na Madeira todos os intervenientes estavam apostados em criar uma das principais fontes de riqueza, financiadora e promotora do processo de ocupação da ilha como dos descobrimentos. Dele dependeu, por muito tempo, a manutenção do sistema e foi com ele que se financiou as despesas da casa senhorial e real, e de manutenção das praças africanas. No primeiro momento de prosperidade era permanente a preocupação da coroa, senhorio e autoridades locais. E, na segunda metade do século XIX, o retorno da cultura obrigou de novo as autoridades a intervir. As condições do mercado mundial assim o obrigavam, caso se quisessem preservar algum do protagonismo da cultura na economia local. De acordo com a importância do produto na vida económica madeirense é possível definir para a Madeira, aquilo a que poderemos designar de açucarocracia. Na verdade ao açúcar foi atribuído um protagonismo fundamental na vida política da época e em torno dele giraram os regimentos senhoriais, as actas e posturas municipais. Apenas os cereais, pela necessidade e permanente carência, o conseguem suplantar.

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SÉCULOS XV E XVII No século XV a presença de um grupo destacado, comprometido com a vida municipal, na situação de proprietários de canaviais fez com que a vereação funchalense, onde tinham assento preferencial na qualidade de homens-bons, se tornasse no porta-voz dos interesses açucareiros. Até à criação dos municípios da Ponta do Sol (1501) e Calheta (1502) todo o perímetro da capitania, e podemos dizê-lo, de toda a ilha, estava dependente das directrizes estabelecidas pela vereação funchalense. Era a partir daqui que surgiam as petições enviadas ao reino, ao senhorio e depois à coroa. A representatividade dos proprietários na capitania do Funchal era evidente. Em 1494 eram 44 (28%), passando, no período de 1509 a 1537 para 82 (30%). Em ambos os casos eles situam-se, maioritariamente, entre os proprietários com mais de 1.000 arrobas. Por outro lado a incidência geográfica do grupo é mais evidente no Funchal, sede do município, onde residiam, em 1495 56% dos homens-bons do concelho, sendo os demais distribuídos por Câmara de Lobos (16%), Ponta do Sol (11%) e Calheta (6%). A referência à situação torna-se necessária para esclarecer a política definida pelo município, através de regimentos, recomendações ao senhorio e posturas. A insistência na presença das questões açucareiras às sessões da Câmara é uma prova evidente da fruição feita pelo grupo para defesa dos interesses açucareiros. Durante as décadas de sessenta e setenta a questão do comércio do açúcar foi a principal preocupação dos proprietários madeirenses: aumentava a produção de açúcar mas mantinha-se a níveis baixos o consumo e a política de exportação estava por definir. Perante isto, no Verão de 1469, sucedeu a inevitável baixa de preço, que levou o infante D. Fernando a estabelecer em 14 de Julho311 medidas para restabelecer o comércio pondo-o em mãos dos mercadores de Lisboa. A reacção dos madeirenses a tal medida de monopólio não se fez esperar. Tendo recebido em 15 de Setembro a carta supracitada, decidem tomar uma posição de total oposição. O trato do açúcar ficou entregue a Martim Anes Boa Viagem. Tardaram em pagar os açúcares de 1470 pelo que em 1471312 decidiram enviar a Lisboa Diogo Esteves para proceder à respectiva cobrança. Depois surgiu a questão dos meles: permissão ou não de saída. Todos os problemas obrigavam a vereação a reunir com assiduidade. Aí estavam presentes para além dos oficiais, os homens bons. Assim sucedeu em 5 de Julho de 1470313. Ao acto estiveram presentes catorze homens-bons do Funchal e oito de Machico; dos primeiros cinco surgem no estimo de 1494 com os proprietários de canaviais (Álvaro Anes, Afonso Gonçalves, João Fernandes, João Gonçalves e Pero Álvares). Entretanto, em 19 de Agosto314 alguns proprietários delegaram no município o estabelecimento do contra to com Álvaro Esteves. Com o mesmo objectivo reuniramse a 12 de Setembro os oficiais da câmara, homens-bons, dois representantes de Machico a que se 311. 312. 313. 314.

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Eduardo GRANDE, ob.cit, p. 97 Arquivo Histórico da Madeira, vol.XV (1972), nº.17, pp.45-47 Arquivo Histórico da Madeira, vol.XV (1972), nº.28, pp.56-58 ARM, CMF, 1470, fls.2vº-5; Ernesto Gonçalves, Os Homens-Bons do Concelho do Funchal em 1471, in Das Artes e da História do Funchal, nº. 28, 1956, 1-179; Idem, João Gomes da Ilha, in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XI, 1959; Idem, João Afonso do Estreitro, in Das Artes e da História da Madeira, nº.14, 1971.

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juntaram três proprietários que não serviam na Câmara (Diogo de Teive, Álvaro Afonso e Luís Anes). Todavia, não mereceu o parecer favorável de Duarte Pestana e Rui Gonçalves. E nova reunião a 14 de Outubro315 foram chamados vinte e nove lavradores à Câmara para confirmarem o contrato, não o aceitando João Fernandes, Rodrigo Anes, João Afonso, Dinis Afonso, Bartolomeu João d’Alcala, Gomes Eanes, Afonso Gonçalves e João do Porto. A reunião camarária de 14 de Outubro de 1471 esteve presentes João Afonso do Estreito e Afonso Domingues do Arco, ambos lavradores das partes da Calheta. Durante quase todo o período de afirmação da cultura dos canaviais o comércio do açúcar esteve sujeito a um apertado controlo por parte do município, senhorio e coroa. De acordo com V. M. Godinho o regime de comércio do produto nos séculos XV e XVI oscilava “entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da coroa, quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda”316. A política proteccionista e limitativa da capacidade de intervenção dos agentes comerciais marcou todo o período da economia açucareira no arquipélago até 1508317, sendo os momentos de maior evidência em 1471, 1488 e 1495.318 Em todas as medidas definidas estava subjacente o interesse de um grupo de agentes, raramente da ilha, empenhada em manter o exclusivo do comércio. Dum lado os mercadores do reino, nacionais e estrangeiros, sedentos de manter o domínio do negócio. Do outro os madeirenses empenhados em abrir o mercado a todos os agentes, quer nacionais, quer estrangeiros. Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziram ao ressurgimento desta política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os produtos, não podendo dispor de loja e feitor; D. Manuel apenas em 1493 reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas; as facilidades então concedidas à estada dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem como à fixação e intervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e administrativa. As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente de D. Manuel enquanto senhor e Rei: A partir dos anos oitenta o mercado do açúcar madeirense enfrente uma crise de crescimento. Primeiro a procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado açúcar de má qualidade. Depois o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não acompanhado pelo aumento da procura. A crise de subprodução obrigou a coroa a intervir em 1498319 no sector comercial estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de exportação para os principais mercados que passou a ser feito sob o regime de monopólio da coroa. A medida justificava-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder” sendo “proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos”. A

315. ARM, CMF, 1470, fl.8vº. 316. ARM, CMF, 1470, fl.28 317. Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol. IV (1982), p.87 318. Arquivo Histórico da Madeira, vol.XVIII (1974), nº.314, pp.503-504. 319. Arquivo Histórico da Madeira, vol.XV (1972), nº.28, pp.57; vol. XVI (1973), nº.123, pp.209-210, nº.191, pp.312-313.

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Madeira era uma das principais jóias da coroa. A partir de princípios do século XVI, com a total estabilização do comércio do açúcar e a disponibilidade a todos, tal luta deixou de ter razão de existir. O foral de 1515 estipulava que “os ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e pera todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum” 320. A política intervencionista da coroa retornou no século XVII através de medidas proteccionista da produção local com o condicionamento da importação do açúcar brasileiro e apoios à construção de novos engenhos. A pressão dos lavradores sobre a vereação funchalense levou a interceder por diversas vezes junto da coroa321. O período foi curto e só em finais do século XIX a cana sacarina voltou a merecer a atenção das autoridades.

Na segunda metade do século XIX, a crise da produção do vinho fez com que a cultura se apresentasse como a resposta adequada à perda de importância da vinha, assumindo o papel de “cultura rica” na agricultura madeirense. A intervenção deu lugar ao chamado “proteccionismo sacarino” que desembocou naquilo que ficou depois conhecido como a “questão Hinton”. A conturbada situação política de finais do século XIX e princípios do século XX favoreceu o debate político em torno da questão sacarina que o Estado Novo apaziguou. As condições do mercado mundial obrigavam à intervenção das autoridades, pois caso contrario a produção madeirense estava condenada, com inevitável prejuízo para os agricultores. As dificuldades económicas que arrastaram a ilha neste momento tornavam a iniciativa do Estado cada vez mais útil e necessária, caso se pretendese atalhar a constante tendência à emigração do mundo rural. A produção mundial de açúcar, a partir da segunda metade do século XIX, passou a estar sob um controlo apertado das autoridades e grupos económicos. O consumo, que se generalizou a todos os grupos sociais nesta época, não foi suficiente para atender à elevada oferta do produto. A tecnologia permitiu um melhor aproveitamento da sacarose disponível na cana, ao mesmo tempo que área de cultivo se alargou a novos espaços, contando ainda com a concorrência feroz da beterraba europeia. Em finais da centúria os preços do açúcar desceram a níveis nunca atingidos. Para isso terá contribuído a política de subsídios à cultura e produção de açúcar de beterraba por alguns países europeus, como a França e Alemanha. As diversas convenções internacionais nunca conseguiram frenar a feroz e desigual concorrência do mercado do açúcar. Atente-se que a conferência de Bruxelas de 1901-02 ao conseguir estabelecer a supressão dos subsídios à produção foi uma medida importante para a retoma dos preços. Portugal não ficou alheio à política proteccionista dos governos, sendo a economia dos séculos XIX e XX alimentada por fortes medidas de protecção e favorecimento face à concorrência estrangeira. Ficou célebre a politica de proteccionismo cerealífero a partir de 1889. O regime,

implantado em 1926, tinha bem entranhado a cultura do proteccionismo. No caso da economia agrícola madeirense era evidente que a progressão só se poderia fazer mediante uma intervenção permanente do Estado. Ao longo do século XX a situação era por demais evidente para políticos e governantes. Em 1907 o Cónego António Homem de Gouveia322, em discurso na câmara dos deputados, confirma isto: “ A agricultura madeirense, como a de quazi todos os paizes, não pode prosperar sem um conjuncto de protecções, que, sabiamente combinadas equilibrem as culturas, dando collocação às suas produções.” Os inícios do segundo momento da cultura açucareira na ilha foram acompanhados de medidas favorecedoras. Assim, em 1855 e 1858 oneram-se os direitos de importação de mel, melado e melaço, enquanto em 1870, 1876, 1881 e 1886 se favoreciam a entrada do açúcar madeirense no continente e Açores através da redução ou isenção dos direitos de entrada. Atendendo às dificuldades criadas com a crise da lavoura açucareira, provocada pelo ataque do fungo conyothurium melasporum, pelo que o Governo interveio no sentido da preservação. A aposta era fazer da cultura da cana-de-açúcar um elemento revitaliza dor da agricultura madeirense. Em 1888 avançou-se decisivamente na protecção e replantação de novas variedades, resistentes às doenças e mais produtivas, criando-se uma estação experimental dedicada ao estudo da cultura. Na sequência do decreto tivemos outro em 1895, conhecido como “regímen saccharino da Madeira”, que regulamentou o processo de laboração da cana e o fabrico de aguardente. Assim, as fábricas matriculadas obrigavam-se à aquisição de toda a cana produzida de acordo com o preço estabelecido. Em compensação tinham redução de 50% nos direitos de importação do melaço para fabrico de álcool usado na fortificação dos vinhos. Seguiram-se ao logo dos tempos outros decretos: 1903, 1904, 1909, 1911323. Em 1903, novo decreto revela as dificuldades do cultivo da cana e os custos elevados que acarreta para justitificar ao aumento dos preços mínimos. A compra de toda a cana é conseguida mediante compensações do Estado. As fábricas matriculadas estavam obrigadas a comprar todos os saldos da aguardente manifestados até 31 de Dezembro, de forma a evitar a concorrência com o álcool feito de melaço importado. Acontece que as fábricas de açúcar e álcool deixaram de comprar os saldos aos fabricantes de aguardente, dando uma compensação de 100 réis ao galão, o que acabou por criar uma situação insustentável. O decreto de 11 de Março de 1911 pretendeu estabelecer um travão no consumo excessivo de aguardente, que se havia transformado num prejuízo para a saúde pública. Abrindo a porta para uma solução drástica, estabelecida pelo decreto de 1919. A aposta estava na reconversão dos canaviais pela vinha de castas europeias e no controlo da produção e consumo de aguardente. Neste caso seria determinante a medida delimitadora da produção anual para 20.000 litros ano e o encerramento em 1930 de todas as fábricas de aguardente que não tivessem sede nos concelhos da costa Norte.Mas o decreto de 14 de Abril de 1924 aumenta o limite da produção de aguardente para 500.000 litros. O que obrigou à emenda de 1927, com o encerramento de todas as fábricas de aguardente do sul, ficando a Junta Geral com o encargo de venda da aguardente

320. AHM, vol. XVII, p. 372. 321. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Anotações in Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Funchal, 1873, p.501

322. ARM, CMF, Registo Geral, tomo III, fls. 12vº-14: 1598, 1601 e 1620; Idem, CMF, 1317, fl.27-29vº: vereação de 7 de Abril de 1607, nº.1330, fls.13v-14: vereação de 5 de Junho de 1644 323. A Situação da Madeira [1907], p.13

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O Dr. Oliveira Salazar, então Ministro das Finanças, no preâmbulo do decreto de 1928 define de forma clara os efeitos do anterior decreto, responsável pelo monopólio da compra de toda a cana do Sul, do fabrico de açúcar, do álcool para vinhos ou desdobramento, da importação de melaço e açúcar em bruto das províncias ultramarinas, concluindo que “a agricultura, toda a ecopnomia da Madeira, a própria afdministração pública ficariam mais do que nunca na dependência das fábricas de açúcar e de álcool.”324. Em face disto surgiram diversos decretos no sentido de diminuir o consumo de álcool, protecção da cultura, punição dos abusos e defesa intransigente dos interesses públicos. O novo regime sacarino assentava nos seguintes aspectos: 1. um regime fiscal que ia ao encontro da defesa da saúde pública e dos interesses da economia local. Assim a importação de açúcar está sujeita ao pagamento de direitos, ao mesmo tempo que se proíbe a entrada de bebidas alcoólicas. 2. A cultura da cana ficava limitada à necessária para satisfazer as necessidades da ilha em açúcar, aguardente, álcool e mel, mantendo-se o preço fixo e a obrigatoriedade da compra pelas fábricas. 3. As fábricas de açúcar e álcool ficam limitadas ao concelho do Funchal e todo o produto laborado deverá ser da produção regional. O álcool com 40ª cartier era vendido na totalidade à alfândega, que depois procedia à revenda. 4. O fabrico de aguardente, desde 1938 em regime de concentração, em três fábricas, sendo entregue à Delegação da Junta Nacional do Vinho da Madeira para ser comercializado. Festa do fim da safra. Fotografia Vicentes. Museu de Photographia Vicentes

O regime de protecção com preços tabelados de compra da cana deixou de existir a partir de 1920. A medida, não obstante garantir ao agricultor o escoamento da totalidade da produção, criava uma situação de subordinação ao engenho do Torreão. Antes de 1895 o lavrador tinha liberdade de mandar moer por sua conta a cana e fabricar açúcar que depois vendia, mas com as medidas proteccionistas passou a estar obrigado à venda da produção às fábricas matriculadas. Os resultados da política começaram no imediato a fazer-se sentir com o incremento da área de cana. A ilha quem 1886 deixara de exportar açúcar, passando mesmo a importá-lo entrou no novo século satisfazendo as necessidades de açúcar e álcool em 1907 saia o primeiro açúcar da ilha para o continente, usufruindo de privilégios fiscais. Acontece que dos engenhos existentes na ilha apenas se matricularam as fábricas de W. Hinton & Sons e de José Júlio de Lemos. Isto iria dar azo a acesa polémica, quando em 1903 surgiu novo decreto que apenas as favoreceu. No ano imediato novo decreto consolida a situação, estabelecendo um contrato inalterável até 1919, o que permitiu algumas inovações tecnológicas. Entretanto em 1915 uma representação de cerca de 4000 proprietários e agricultores reclamava a favor da conservação do regímen sacarino. Isto justificava-se pela situação em que se encontrava a ilha: A viticultura não pode readquirir a sua antiga prosperidade, pela decadencia dos preços dos vinhos, suja exportação crescia pouquíssimo antes da guerra. A generalização das árvores de fructo ricas levaria 324 . Diplomas Principaes que interessam ao Regímen Saccharino da Madeira, S.l., sd.; A questão Saccharina da Madeira, Lisboa, 1910; Ramos Taborda, Regime Sacarino da Madeira, Diário de Notícias, 4 de Outubro de 1962.

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longos annos e é praticamente impossível por falta de capitães e de outros elementos e circumstancias que seriam essenciaes a uma transformação cultural dessa natureza. As plantações saccharinas, que representam grandes capitalisações e teem um alto valor, devem continuar necessariamente garantidas com as condições actuaes de existência.325 Em 1927 outro grupo de 3535 proprietários, agricultores e consumidores reclamavam a preservação do decreto nº.14168, considerado medida salutar face aos anteriores diplomas de 1911 e 1919 que estabeleciam medidas restritivas ao fabrico de aguardente.326 Procuravase travar o consumo exagerado de aguardente na Madeira, que por isso havia recebido o epíteto de ilha da aguardente. A política de apoio e protecção da cultura da cana sacarina não mereceu a aprovação de todos. A opinião do Visconde do Porto da Cruz, na década de cinquenta, expressa um certo realismo face a uma opção de desenvolvimento económico assente em pés de barro: “a cultura da cana sacarina somente aparecera como balão de oxigénio para a vida industrial fictícia do fabrico de açúcar, melaço e aguardente e que não oferecia ao lavrador justa e devida compensação. (…) sai, com vantagem para a economia regional e nacional, muito mais lucrativo importar das provincias ultramarinas de África, o açúcar necessário para o consumo na Madeira do que produzi-lo.”327 Durante a República e no Estado Novo a cultura da cana manteve-se lado a lado com a da vinha como uma preocupação permanente. Em 1935, numa carta que o Dr. Oliveira Salazar escreveu ao Presidente da Junta Geral, o Dr. João Abel de Freitas, é evidente a insistência na defesa da cultura. O regime a executar deve ser o decretado em maio do ano findo. Foram feitas muitas reclamações que examinei com cuidado; apenas duas me pareceram susceptíveis de deferimento e não ainda assim como era pedido: 1) como a Alfândega não poude fazer as comunicações a que a lei se referia sôbre a graduação da cana em certos locais, tenho trabalhado um decreto a publicar imediatamente em que se prorroga por mais um ano o regime transitório estabelecido para 34-35 no citado decreto; 2) no mesmo decreto se permite a renovação ou substituição dos canaviais até 60% dos pés substituídos e da área ocupada. Estão no relatório do decreto do ano fíndo as razões porque se não permite a substituição integral. Se o consumo do açúcar não aumentar temos de baixar de 15% a 20% a produção de cana, e ainda é preciso que esta seja tam rica como é êste ano, por causa da escassês das chuvas; 3) Os pedidos ou pretenções ou calculos dos industriais de aguardente não podem ser tomados em consideração. É preciso convencê-los desta verdade: fabricam um artigo que se não vende. Não é caso para qualquer indemnização por parte do Estado, nem para se consentir outra vez o envenenamento dessa gente, como era de antes.328 Passados cinco anos o então Governador Civil José Nosolini evindencia, mais uma vez, o carácter artificial da economia açucareira.” Esta produção foi-se mantendo, por um lado, mercê da exportação de assucar madeirense para o continente; por outro lado mercê do desvio de fabrico de

Transporte da cana ao engenho. Museu de Photographia Vicentes

325 . Diplomas Principaes que interessam ao Regímen Saccharino da Madeira, S.l., sd, p.316 326 . Regime Sacarino da Madeira, Lisboa, 1928 327. A Economia Agrária do Arquipélago da Madeira, in Actividades Económicas, 17 (Lisboa, 1957), p.13. 328. 1935. Maio. 23: resposta do Dr. Oliveira Salazar. in VIEIRA, Alberto(coordenação), A AUTONOMIA: História e documentos, Funchal, CEHA, 2001 (DVD) .

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assucar para o de aguardente.” Deste modo a política do Governo de controlo da produção de cana estava certa, uma vez que” a cana sacarina a não ser em cultura muito restricta é perniciosa (…) Mas cana de assucar, vinhos, bordados serão por muito tempo intransponíveis montanhas de dificuldades para a acção governativa.”329 Os relatórios da Junta Geral de 1968 a 1973 testemunham o empenho na cultura através da distribuição de propágos e ensaios sobre novas variedades que se adaptem aos solos da ilha e conduzam a maior produtividade. Para isso faziam-se ensaios pela Estação Agrária na Quinta do Bom Sucesso e no Lugar de Baixo330. As dificuldades da indústria eram constante, de modo que em 1969 a família Hinton só aceitou continuar a laboração porque o Governo se comprometeu a compensar as perdas, que em 1971 foram de 5.359$00331. Em 1969 o Engº Rui Vieira, a propósito da apreciação da Conta Geral do Estado de 1967 na Assembleia Nacional, referia a necessidade de revisão do Regime Sacarino de 1928332. Foi no seguimento desta constatação que em 1972 a Administração-Geral do Álcool encomendou a Bookers Agricultural and Technical Services um estudo sobre os problemas do açúcar na Madeira no sentido de ajudar o Governo a definir a política futura para a indústria de açúcar e de destilação no arquipélago.333 A primeira evidência do relatório é de que a cana apresentava um rendimento muito baixo devido à “falta de um programa de replantação e o elevado índice de broca ou ‘bicho da cana’ que ataca os colomos da planta. (…) o uso em grande escala de uma variedade obsoleta, o facto de se cortarem os topos das canas muito antes da altura da colheita, os atrasos na moagem após a colheita, os fertilizantes inadequados e o desinteresse no cultivo que leva à não execução de determinadas operações culturais.”334 E, conclui-se “que a produção de cana persistiu em parte porque é utilizada em forragem e cama para gado bovino.”335 Perante a situação da cultura e indústria a proposta do grupo de trabalho vai no sentido da “suspensão do fabrico de açúcar o mais cedo possível”, passando a fábrica do Hinton a destilar apenas aguardente336. A área de cultivo deveria ser reduzida para apenas 530, ficando os restantes 770 para culturas sub-tropicais e temperadas337. A conclusão do relatório é clara: “abandono do cultivo da cana na Madeira, logo que seja realmente possível e permitida a importação de melaços para a produção de álcool,…”338

329. 1939.Novembro.21: Carta do Governador Civil do distrito Autónomo do Funchal, José Nosolini Pinto Osório S. Leão, ao Ministro do Interior, in VIEIRA, Alberto (coordenação), A AUTONOMIA: História e documentos, Funchal, CEHA, 2001 (DVD). 330. Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1968, Funchal, 1969; Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1969, Funchal, 1970; Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1970, Funchal, 1971; Relatório da Gerência da Comissão Executiva da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal referente a 1973, Funchal, 1974 331. Relatório sobre As Indústrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Lisboa, 1972, p.82 332. Jornal da Madeira, nº.11623, de 9 de Março de 1969. 333. Relatório sobre As Indústrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Lisboa, 1972. 334 . Ibidem, pp.32-33 335. Ibidem, p.49 336. Ibidem, p.50 337. Ibidem, pp.51-52 338. Ibidem, p.95

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Engenho do Hinton.2002

A QUESTÃO HINTON Dentro do contexto da política proteccionista merece lugar de relevo o debate em torno da “questão Hinton”, que animou o meio político entre finais do século XIX e princípios do seguinte. Foi sem dúvida o problema que mais apaixonou a opinião pública, nas vésperas e durante a República. Publicaram-se inúmeros folhetos, os jornais encheram-se de opiniões contra e a favor339. O momento mais importante foi a polémica que em 1910 se ateou no Parlamento. Cesário Nunes340 documenta a situação de forma lapidar: “Em Portugal nenhuma questão económica atingiu tão alta preponderância e trouxe e tio grandes embaraços legislativos às entidades governativas como o problema sacarino da Madeira. “ Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração da Companhia Fabril do Açúcar 339. A Leitura dos Jornais da época assim o evidencia. Veja-se por exemplo Francisco Canais Rocha, Perfeito de Carvalho contra o monopólio Hinton, História, nº.144, 1991, pp.49-61; Emanuel Janes, in História do açúcar. Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp. 340. Politica sacarina, Funchal, 1940.

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H. Manoury (engenheiro químico), L. Naudet (engenheiro químico) e João Higino Ferraz (director Técnico do Torreão) e o chefe de bateria. 1907. Foto particular.

Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de fabrico de açúcar sita à Ribeira de S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. O cónego Feliciano João Teixeira341, sócio do empreendimento no discurso de inauguração afirma ser este um “grandioso monumento, que abre uma época verdadeiramente nova e grande na História da indústria fabril madeirense”. Isto foi apenas o princípio de um conflito industrial, onde imperou a lei do mais forte. Tal como o afirmava em 1879, no momento encerramento, José Marciliano da Silveira341 “ a fábrica de são João foi cimentada com o veneno da maldade; era o seu fim dar cabo de todas as que existiam...” acabou por cavar o fosso da ruína. A polémica ateou-se com o plágio por parte da família Hinton, da invenção do Visconde Canavial343, que havia patenteado em 1870 um invento que consistia em lançar água sobre o bagaço, o que propiciava um maior aproveitamento do suco da cana. Constava da patente o uso exclusivo pela fábrica de S. João, mas o engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o lesado moveu em 1884 uma acção civil contra o contrafactor. A família Hinton ficou para a História como a autora da inovação344, que como sabemos foi comum em vários espaço açucareiros. Em 1902 a fábrica Hinton experimentou um novo sistema em ligação com M. León Naudet, que ficou conhecido como sistema Hinton-Naudet, que consistia em submeter o bagaço a uma circulação forçada num aparelho de difusão, conseguindo-se um ganho de mais 17% e a maior pureza da garapa, evitando as defecadoras345. Estava intervenção pioneira é sublinhada por inúmera bibliografia da especialidade346. O engenheiro M. Naudet esteve no torreão nos dias 21 e 22 de Junho de 1907 combinando com João Higino Ferraz a forma de montagem do sistema de difusão, o triple e o “freitag”(cuite). Todavia, a montagem do novo maquinismo começou apenas em meados de Setembro, após a conclusão da safra. Até 1909 o técnico do Hinton manteve conrrespondência assídua no sentido de esclarecer pormenores sobre a instalação dos mecanismos. Na sequência disto João Higino Ferraz deslocou-se a Paris para novo encontro com Naudet e visita às fábricas de açúcar de beterraba347. A família Hinton conseguiu singrar na indústria açucareira a muito custo. A conjuntura políticia conturbada condicionou a capacidade de persuasão. A visita de El Rei D. Carlos à ilha em 1901 poderá ter sido um momento crucial348. As medidas, que favoreciam a entrada de melaço, estabelecidas pela lei de 1895, associadas ao 341 . Discurso pronunciado pelo conego Feliciano João Teixeira Presidente da Assembleia Geral da Cª Fabril de Assucar Madeirense no dia da inauguração do estabelecimento, 23 de Março de 1873, Funchal, 1873. 342. A companhia fabril de assucar madeirense os seus credores o Athleta e o sr. Dr. João da Câmara Leme, Funchal, 1879. 343. Uma acção civil contra o sr. W. Hinton fabricante de assucar e aguardente na cidade do Funchal (ilha da Madeira)..., Funchal, 1884. 344. W. Koebel, Madeira. Old and New, Londres, 1909, p.129; Eduardo Pereira, Ilhas de Zargo, vol. I (Funchal, 1989), pp.541-542. 345. Eduardo Pereira, Ilhas de Zargo, vol. I (Funchal, 1989), pp.541-542 346. Cf. International SugarJournal, 1905; H. C. Prisen Guerligs, Cana Sugar and its Manufacture, Londres, 1909, pp. 115, 117 347. Arquivo de João Higino Ferraz, copiador de cartas 1905-1913, fls.53, 65-78. 348. A chamada “questão Hinton” foi motivo de acesa polémica na sua época de que resultou a publicação de inúmeros folhetos. Veja-se António Aragão de FREITAS, Madeira-investigação bibliográfica, Funchal, 1984, pp.229-233; F. A. SILVA, “Hinton, questão”, in Elucidario Madeirense, vol. II, pp. 117-118. Aqui apenas damos conta dos textos mais recentes: Miguel RODRIGUES, “A questão Hinton”, in História e Crítica, nº6, 1980, pp.15-27;Francisco Canais ROCHA, “Perfeito de Carvalho contra o monopólio Hinton”, in História, nº144, 1991, pp.49-61.

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decreto de 1903 e regulamento anexo decreto, determinavam a forma de matrícula das fábricas abriram as portas à concentração. As condições eram de tal modo lesivas que só duas - Hinton e José Júlio Lemos - o conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha ficaram numa situação periclitante. O decreto de 1897 estabelecia normas de tal modo rígidas sobre a forma de construção de alambiques e fábricas de destilação e rectificação do álcool que apenas alguns podiam cumprir349. A viragem da centúria implicou com a situação sacarina da ilha. A conjuntura económica mundial pos em causa as condições de privilégio conseguidas com a entrada do melaço, por força do aumento do preço e das diferenças cambiais. A “lei que tantos benefícios trouxe à Madeira”350, aguardava por renovação. A fábrica Hinton, para poder afirmar-se vai montar uma estratégia de aliciamento de políticos e uma campanha para limopar a imagem junto do público, através de textos e entrevistas publicados nos principais jornais do Funchal, como o Diário de Noticias, Diário da Madeira e Diário do Comércio. Paulatinamente estabelece-se uma teia de interesses que integra políticos locais e continentais, funcionários alfandegários emesmo o próprio Governador civil. Nesta estratégia a função de João Higino Ferraz foi fundamental, com a de Harry Hinton, em permanente rodopio entre o Funchal e Lisboa. Em 1901 João Higino Ferraz lança o primeiro grito de alerta e crise para o sector em carta ao Visconde de Idanha. Aí dá-se conta da perda dos privilégios e contrapartidas da importação do melaço da lei de 1895 e, por consequência a impossibilidade de manter a situação dos preços ao agricultor. A solução estava na diminuição do imposto de importação do melaço e mão do amigo será importante:…tenho a certeza que a coadjuvação de meu bom amigo nos será muito útil, e o seu nome não será esquecidon’este bocadinho da pátria.351 Noutra carta de 8 de Outubro seguem novos artigos para a imprensa e importantes recomendações no sentido da defesa intransigente do decreto ora publicado: ..exerça toda a vigilância para não apparecer cousa allguma contra as providencias em qualquer jornal. Se for precisa qualquer despeza para isso é faze-la.(…) O decreto deve deixar bem toda a gente, mas no caso de haver alguem que por inveja, ou qualquer outro motivo queira lkevantar difficuldades na imprensa ou fora della, combine com o Romano a melhor maneira practica, directa ou indirecta de os calar até a minha chegada352. Passados dois anos a casa Hinton aposta numa campanha na imprensa local, servindo-se do Diário de Noticias e Jornal do Comércio.353 Harry Hinton, em carta de 18 de Setembro anuncia a breve publicação do novo decreto e recomendava a J. Higino Ferraz dos textos e o telegrama aao Presidente do Concelho, que envia também aos jornais354. Nesta carta é evidente uma certa familiaridade com o Ministro da Fazenda e a possibilidade de ter sido necessário mover algumas

Pessoal Técnico da Fábrica Hinton

349. Boletim Official da Administração Geral das Alfândegas e Contribuições Indirectas do ano de 1897, nº.15, Lisboa 1897, p.396399 350. Arquivo Particular de João higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls.44, 5 de Fevereiro de 1901 351. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls.44-48, 5 de Fevereiro. 352. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, carta avulsa, 8 de Outubro de 1903 353. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls203-204, 29 de Agosto e 5 de Outubro 354 . O texto intitulado “Providências Governativas” para ser publicado no Diário de Noticias, o “Novo regimen economico” para o Diário do Comércio e “Noticia importante” para o Diário Popular. Aí dava indsicações sobre a forma de publicação: O telegrama deve ser publicado em grosso e vivo normando no logar marcado a tinta vermelha em cada artigo. Juntam-se ainda mais artigos para o Popular, O Commercio.

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influências. A parte final da carta é compremetedora: Falla com o Lemos e diga-lhe que é conveniente não abaixar por hora o preço do alcool, sem que eu lá chegue. Tem havido despezas grandes com o decreto, e tenho certos compromissos em que elle também tem de entrar. 355 No intervalo publicou-se a 18 de 3 Julho de 1903 a lei sobre o fabrico dos açúcares açorianos e teme-se maiores prejuízos, pelo que “é bom enquanto está ahi[Lisboa] ver bem essa lei não nos vá prejudicar.”356 A campanha na imprensa havia dado fruto, mas nada estava ainda garantido e outro precalço com a vistoria das autoridades à fábrica, implicava todo o cuidado, “porque mudando o governo a lei que regula pode-nos ser bastante prejudicial quanto ao pagamento da cpontribuição industrial.”357 Por outro lado temia-se a matrícula de novas fábricas. A situação estava tensa entre os vários industriais358. A lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao estabelecer a referida matrícula por 15 anos. Entretanto, caiu a monarquia e sucedeu a República, que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas rapidamente tudo se recompôs. As dificuldades do comércio do vinho repercutiam-se no sector com a diminuição do consumo de álcool, a principal contrapartida das fábricas matriculadas. Em Outubro de 1905 batalha Reis visitou a fábrica Hinton e teceu os melhores elogios ao álcool aí produzido, todavia insistiu na necesisidade de introdução dos vinhos de Portugal, o que não agradou aos planos dos anfitriões.359 A primeira década da centúria foi fundamental para a consolidação do engenho do torreão. Os investimentos avultados na modernização, como o novo sistema Hinton-Naudet, obrigou uma forte investida junto do poder central no sentido de garantir as regalias para poder-se entabilizar o investimento360. Em Janeiro de 1907 Harry Hinton estava em Lisboa a jogar a última cartada: “ ou João Franco attende ao seu pedido justo e que interessa bastante aos eu pedido justo e que interessa bastante a toda a adeira agricula, ou não attende, e nesse caso não posso prever quais as cosnequências desastrosas de sua maneira de ver.”361 A República não terá sido muito favorável os objectivos da família Hinton. O ambiente parece que era de tensão, pois segundo J. Higino Ferraz: o senhor Hinton disse me que em nada pode influir em Lisboa junto do governo sobre questões d’assucar, porque o nome hinton é sempre visto com maus olhos.”362. Todavia pelos decretos de 1911 e 1913 conseguiu-se segurar o monopólio do fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das colónias. Em 1914 reclamava uma indemnização ao Estado pelo facto de ter sido aumentando o açúcar bonificado das colónias que entravam no continente. A resposta veio por parte dos competidores363.

A questão Hinton e a imprensa humorística

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355. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, documento avulso, de 18 de Setembro de 1903. 356. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls. 97, 24 de Julho de 1903. 357. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls. 104, 5 Setembro de 1903 358. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls110, 118, 9 de Outubro e 16 de Novembro de 1903 359. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls. 190-193, 9 e 16 de Outubro de 1905 360. Não sabemos o valor do investimento, mas pela estimativa de Naudet para a Fabrica de Lemos em 1909 podemos ficar com uma ideia. A renovação desta unidade industrial custaria 101.850 francos, o quialente a20.370$000 reis.[ Idem, Livro de notas…1903-1910, fls.182] 361. Idem, copiador de cartas,1905-1913, fls.34. 362. Idem, Ibidem, fl.126, 6 de Setembro de 1911 363. A Nova Questão Hinton. Resposta das Empresas Açucareiras da África Portugueza ao folheto da firma W. Hinton & Sons, Lisboa, 1915.

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Em 1917 parece que os ânimos haviam serenado etudo estava bem encaminhado, apostando-se numa nova fábrica. A demanda elevada de alccol prenunciava um período de prosperidade364. A prorrogação do contrato nas mesmas condições era de toda a conveniência. Apenas os distúrbios políticos poderiam fazer perigar a situação de privilégio365. Estava-se em período de revisão da lei e referia-e até a possibilidade de vinda ao Funchal do Ministro da Agricultura, situação considerada má para o Hinton, pis como refere j. H. Ferraz:”Não tenho confiança alguma nestes nossos amigos de cá, e temos como sabe, fartura de inigos.”366. A 31 de Dezembro de 1918 acabava a situação de favorecimento estabelecida por quinze anos. Entretanto só a 9 de Abril do ano seguinte o Governo interveio, tornando livre a “faculdade de laboração da cana sacarina com destino à produção de açúcar”. O decreto de 2 de Maio define uma nova realidade. Assim, para além da liberalização da produção de açúcar e da isenção de direitos alfandegários de maquinaria para novos ou reforma dos engenhos existentes, estabeleceu-se uma nova política agrícola promovendo-se a substituição dos canaviais pela vinha. A situação não fez perigar a posição hegemónica da Casa Hinton que se mantinha confortavelmente como o único produtor de açúcar. Com o Estado Novo as medidas resultantes dos decretos nº. 14.168, 15.429, 15.831, 16.083 e 16.084 (1928), embora restritivas dos antigos privilégios, favoreceram o Hinton quando impediram a instalação de novas fábricas e determinam o fecho de algumas em funcionamento. O ano de 1928 foi fulcral para a afirmação desta estratégia hegemónica. Desde 1927 que se mediam forças entre os chamados “aguardenteiros” e a casa Hinton367. Harry Hinton em Lisboa recomenda nova campanha na imprensa, valorizando as iniciativas modernizadoras empreendidas pelo engenho368. A entrevista de João Higino Ferraz ao Diário da Madeira de Reis Gomes enquadra-se na estratégia. Tal como refere o entrevistado em carta a H. Hinton369 “o meu principal fim foi provar que somente Torreão pode moer toda a cana mesmo no máximo em 3 mezes. (…) Falei sobre as modificações importantes na fabrica do Torreão, mas sem diser que era para augmentar a capacidade, mas somente para abreviar o trabalho e produzir melhor, se falássemos em augmento de capacidade, os nossos inimigos teriam um pé para diser que o Torreão não estava habilitado a fazer a laboração do máximo o que só agora é que queria estar nessas condições, o que não é verdade segundo verá pela entrevista. Entretanto o Governador Civil mantem-se atento à disputa, ouvindo os interesses dos argoadenteiros, procurando reunir apoios, como o de Manuel Pestana Reis, no sentido de apresentar uma proposta de mudança da lei370. A isto juntava-se a campanha de Henrique Figueira da Silva371. Os adeptos da causa Hinton vão diminuindo, mantendo-se apenas António Pinto Correia372. Apenas o decreto 14.168 trouxe algum alívio, pois que tudo “ficará…mais seguro”373, mas continuava ainda a

A questão Hinton e a imprensa humorística

Engenho do Hinton

364. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-1919, 4 e 6 de Julho de 1918 365. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-1919,, 26 de Maio de 1917. 366. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-1919,fl.62-68, 4 e 6 de Junho de 1918 367. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,11 de Outubro de 1927. 368. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, carta avulsa de 12 de Outubro de 1927 369. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929, 26 de Outubro de 1927 370. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,7 e 9 de Novembro de 1927 371. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,27 de Março, 11 de Abril de 1928 372. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929, 2 de Dezembro de 1927 373. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929, 11 de Abril de 1928

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Quirino de Jesus [1865-1935]

ser considerada como a “maldita nova lei saccarina”.374 Harry Hinton, em 1929, com 72 anos de idade, sente-se casando e aborrecido com todas as contrariedades que lhe acarretam o engenho, fruto da enfrentamento constante com interesses adversos na ilha dos demais industriais e as mudanças da conjuntura politica.A intenção parecia ser a venda da fábrica, mas certamente a pressão do amigo J. higino Ferraz contribuiu para mudar de opinião. A carta que escreveu a Mrs. Lefebvre, em França, é bastante expresiva: il est riche et fout repouser…et moi…”375 Quirino de Jesus [1865-1935], que em momentos anteriores fora um poderoso aliado na estratégia do Hinton surge em finais da década de vinte como um traidor “que não tem outro fim senão vingar-se do Sr. Hinton”.376Algo se passara que nos escapa, pois em principios do século havia sido um aliado destacado377. O causídico defendera os interesses da empresa, mas rapidamente mudou de opinião, como se constata da correspondência de João Higino Ferraz e do que nos diz o Padre Fernando Augusto da Silva: De acérrimo e entusiático defensor do regime sacarino, como advogado e publicista, ro regime sacarino, tornou-se abreve trecho, com igual ardor e convicção, um inimigo declarado do mesmo regime.378 Em 1969 A família Hinton informou o governo da intenção de encerrar a fábrica, acabando com o fabrico de álcool e açúcar que não eram rentáveis. Perante isto o governo, através da DirecçãoGeral das Alfândegas comprometeu-se a compensar as perdas. O relatório sobre a situação em 1972 aponta o facto de a indústria se encontrar num beco sem saída, pois a “substituição não pode justificar-se dada a ausência de uma rentabilidade previsível no fabrico do açúcar.”379 E conclui-se: “É excepcionalmente raro, que nos anos 70 uma fábrica de açúcar com uma capacidade de produção inferior a 20.000 toneladas anuais, tenha possibilidade de ser razoavelmente rentável e muitos poucos investidores de novos projectos de fábrica considerarão hoje em dia o estabelecimento de fábricas com uma capacidade inferior a 50.000 toneladas.”380

Fábrica de Açúcar de São Filipe

O HINTON E INDÚSTRIA DO AÇÚCAR E DO ALCOOL O engenho do Hinton, consolidada a posição dominadora do mercado local, manteve-se como a referência da cultura da cana-de-açúcar até que em 1985 agonizou em definitivo o império do açúcar do Hinton. Para alguns tudo foi construído com pés de barro, sustentado por favores políticos, 374. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,17 de Dezembro de 1928 375. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1927-29, 10 de Julho de 1929. 376 , Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1927-1929,11 de Outubro, 2 de Dezembro de 1927. 377 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fls.44-48, 120, 174, 5 de Fevereiro, 23 de Novembro de 1901, 26 de Junho de 1905 378 . Elucidário Madeirense, vol.II(1965),p.181. Cf. Estudos de Quirino de Jesus: A questão Hinton, Lisboa, 1915, A Nova Questão Hinton, Lisboa, 1915. 379 . Relatório sobre as Industrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Lisboa, 1972, p.86. 380 . Ibidem, p.87

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Fio na Ribeira de Santa Luzia para condução da cana do calhau ao Torreão Foto Vicentes, Museu de Photografia Vicentes

mantendo-se a hegemonia à custa da exploração dos lavradores de cana381. Durante todo o século XX a fábrica Hinton foi uma referência da cidade e da vida de quase todos os agricultores madeirenses que apostaram na cultura da cana como meio para angariar uns magros tostões. A posição de favorecimento que mereceu, desde a Monarquia ao Estado Novo, alimentou inimizades, debates na imprensa e a reprovação de alguns sectores da sociedade. A família Hinton estabeleceu uma estratégia de domínio da industria açucareira e do álcool, através de uma aposta permanente na inovação tecnológica capaz de esmagar todos os concorrentes, cujas industrias a pouco a pouco foram sendo adquiridas e desmanteladas. O século XX foi o momento da plena afirmação. De acordo com dados de 1907 o engenho moía cerca de 1/3 da cana da ilha, ficando a restante para os restantes 47 engenhos. Na altura empregava 230 trabalhadores tendo ao serviço 10 geradores a vapor Babcook & Wilcox, tendo a maior potência em uso na ilha. Apenas o de José Júlio de Lemos se podia aproximar, mas a longa distância382. A capacidade da fábrica aumentou nos anos seguintes fruto dos favores estabelecidos. Harry Hinton arrendou não satisfeito com o aumento da unidade industrial actuou no sentido da neutralização das demais através da compra ou arrendamento. Primeiro adquiriu a antiga fábrica de Severiano Ferraz na Ponte Nova e de outras adquiriu os mecanismos mais importantes. No caso da de José Júlio de Lemos estabeleceu um contrato de arrendamento de 25 contos anuais, que perdurou até 1919. A necessidade de afirmação levou-o a apostar na renovação tecnológica do engenho do Torreão, sob a superintendência de João Higino Ferraz. As reformas iniciaram-se em Dezembro de 1900 com a mantagem de cilindros, peças centrífugas e filtros mecânicos de Mamoury383. Para os anos imediatos reservou-se a montagem das turbinas Weston384, dos difusores385, a caldeira de vapor386. A sociedade que estabeleceu com W. R. Bradsley deve ter favorecido a arrancada definitiva para a hegemonia tecnológica. O aperfeiçoamento tecnológico favoreceu a posição concorrencial da fábrica em relação às demais. Em 1929, enquanto a companhia Nova só podia laborar 100 toneladas de cana em 24 horas a do torreão atingia as 500 toneladas, para conseguir-se em 1920 as 608 toneladas. As medidas de 1939, que conduziram ao encerramento de 48 fábricas de aguardente em toda a ilha, favoreceram a tendência monopolísticas da safra da cana sacarina Alguns dados da laboração do engenho revelam a dominação a partir de 1907.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

PRODUÇÃO E MOENDA DA CANA(em toneladas) ano FÁBRICA TORREÃO 1903 7.570 1904 7.153 1905 8.169 1906 13.450 1907 21.855 1908 24.168 1909 32.582 1910 35.633 1911 39.970 1912 48.359 1913 50.860 1914 54.520 1915 57.000 1916 51.500 1917 35.300 1918 26.400

TOTAL 30.000 43.418 36.000 36.000 30.000 75.000 71.266 68.999 69.065 67.464

Ao mesmo tempo o fabrico de açúcar foi enm crescendo de qualidade, como o evidencia insistentemente J. H. Ferraz. Os dados resultantes dos primeiros anos do século XX são comprovativos: PRODUÇÃO EM AÇÚCAR (quilogramas.) Tipo de açúcar Açúcar Açúcar de melaço Açúcar de melaço

1º jet 2º jet 3º jet Álcool Petit jus

1900 4938 1852 326 4373 1539 10.028

1901 5631 1497 504 4375 1539 10.546

Pesagem da cana no Hinton. Fotografia Vocente. Museu Photographia Vicentes

1902 6770 413

1903 6630 960

2472 317 9.972

2640 10.230

Fonte: Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1899-1905, fl.107 381 . A questão não é consensual ao nível historiográfico. Veja-se Miguel Rodrigues, A Questão Hinton, in História e Crítica, 6 (1980), pp.15-27; Benedita Câmara, A concentração Industrial do Sector do Açúcar Madeirense. 1900-1918, in História e Tecnologia do açúcar, Funchal, 2000, pp.419-422 382 . Victorino José dos Santos, Relatorio dos Serviços da Secção Technicos de Industria no Funchal no anno de 1907, in Boletim do Trabalho Industrial, nº.24, 1909 383 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas1899-1905, fls.40, 29 de Dezembro. 384 . Ibidem, fl.77, 7 de Dezembro de 1901 385 .ibidem, fl.85, 14 de Setembro de 1902 386 . ibidem, fl.127, 25 Julho de 1904

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Em 25 de Novembro de 1917 um curto-circuito nos fios da luz eléctrica esteve na origem da destruição do sistema de destilação, o que obrigou ao uso de outros destiladores até que em Outubro do ano seguinte estivessem operacionais387. Mas isto no fez perigar a tendência monopolís387 . Vasco f. Campos e Alberto Malho, O Bombeiro Madeirense e a sua História, Funchal, 1963, pp.65-66; CF. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-18,fl.26, 2 de Outubro de 1917.

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tica do engenho do Torreão, como se poderá verificar pela laboração do Sul em 1929: Engenho Torreão S. Filipe Companhia Nova Total

Incêndio o engenho do Hinton.1917

Moenda de cana em toneladas 20.000 7.500 1.000 28.500

Produção de açúcar em toneladas 1.900 578 2.478

Produção de alccol em hectolitros 300.000 93.000 74.000 487.000

A questão Hinton é uma constante desde finais do século XIX e não passa ignorada mesmo peloos estrangeiros. Já em 1882 J. Rendell388 refere que era juntamente com o da família Ferrraz o engenho mais importante. Em 1894 C. Gordon é peremptório: “…the great bulk of the sugar undustry of the island is in the hands of one english firm”389. Já W. Koebel, em 1909, não hesita em afirmar que a industria açucareira está pendente do monopólio da firma Hinton390. Em 1927 o Marques de Jácome Correia têstemunha o facto de a fábrica do Torreão ter “a fama de ser uma fábrica modelar”, pelos seus “complexos mecanismos, a organização fabril e a importância da produção”.391 Também o Padre Fernando Augusto da Silva não se poupa em elogios a acção empreendedora da família que criou “ a fabrica mais aperfeiçoada do mundo”.392 A alma do complexo industrial açucareiro da família Hinton, a partir de 1898, era João Higino Ferraz, que assumiu as funções de gerente do engenho, sendo um dos caloboradores directos de Harry Hinton. A sintonia e empenho de ambos fizeram com que a ilha apresentasse entre finais da centúria oitocentista e inícios da seguinte uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. João Higino Ferraz afirma-se como o perfeito conhecedor da realidade científica do entorno do engenho. Opina sobre agronomia, como sobre mecâmica e Química. E mantem-se sempre actualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da Química e mecânica, com estudos publicados. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com assiduidade os estudosMaxime Buisson, M. e. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. h. Bochet, M. Effort, M. Gualet. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes, ou como contatados para a execução dos trabalhos especializados, O engenheiro Charles Henry Marsden foi um deles e sabemos que aí trabalhou vários anos. A presença está documentada pelo menos entre 1918 e 1929. Temos também o engenheiro químico agrícola Maxim Buisson, que em 1902 trabalhava no laboratório393. Para o fabrico de açúcar contratava-se os afamados “cuisieurs” erm França de forma 388 . Concise Handbook of the Island of Madeira, Londres, 1882, p.33. 389 . The flower of the Ocean, Londres, 1894, p.92 390 . Madeira. Old and New, Londres, 1909, p.128 391 A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.98 392 . Elucidário Madeirense, vol. II, Funchal, 1965, p.117 393 Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1899-1905, fl.89-90, 22 de Setembro de 1902.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

a manter-se as orientações de Naudet.394 M. Federique, que já havia trabalhado na Martinica, “sabe bem do seu ofício é muito cuidadoso no seu trabalho é sóbrio e delicado”395, o que contribuiu para uma safra excepcional. Noutras ocasiões o serviço foi um desastre, como sucedeu em 1930, quando Marinho de Nóbrega era o químico oficial do engenho396. Para os anos vinte e quarenta do século XX a voz da reprovação ao favorecimento, dito monopólio, teve expressão frequente no jornal humorístico RE-NHAU-NHAU. A figura de Harry Hinton e apaniguados é o alvo do intrépido desenhista, que pretende dar voz ao “Zé Povo”397. O arquivo do engenho do Hinton, por força das circunstâncias atrás descritas, é fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. todavia a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo partidcular de João Higino Ferraz (18631946), que aí trabalhou como técnico desde finais do século XIX e acompanhou o processo de montagem do engenho do Torreão398. A leitura das cartas obrigou-nos a rever algumas leituras que tínhamos sobre o mesmo engenho. Assim estávamos convencidos que a estrutura industrial não assumia a importância que muitas vezes víamos expressada em alguns publicações, mas aqui viemos a constatar que o engenho do Hinton era uma estrutura industrial de vanguarda que acompanhou de perto o progresso da engenharia e Química, no período crucial de transformação de finais do século XIX e princípios do seguinte.

394 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1899-1905, fl.137, 22 de Agosto de 1904 395 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1899-1905, fl.143, 29 de Agosto de 1904 396 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 11929-30, 10 de Junho de 1930 397 . Emanuel Janes, A Casa Hinton, o Açúcar e o RE-NHAU-NHAU (1929-1977), in História do Açúcar. Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp.565-598 398 . Graças à disponibilidade da família tivemos acesso ao seu arquivo pessoal, onde fomos encontrar um copiador de cartas(são cinco livros) sobre a actividade no engenho, que compreende os anos de 1898 a 1930. todavia trabalhou no engenho entre 1898 e 1946.

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Alberto Vieira

LEGISLAÇÃO SOBRE O AÇÚCAR E DERIVADOS DA CANA 1837 5 JANEIRO 1858 12 ABRIL 14 AGOSTO 14 AGOSTO Corça com cana. Colecção Vicentes. Museu Photographia Vicentes

1858 24 MAIO

1876 4 FEVEREIRO 15 MARÇO 1878 4 FEVEREIRO 1880 20 AGOSTO

1881 8 MARÇO

184

1884 25 JUNHO 27 JUNHO

Decreto, de protecção à cultura da cana, na Ilha da Madeira.

Carta de Lei autorizando o governo a contrair um empréstimo de 40:000$000 reis para promover na Ilha da Madeira a fabricação de açúcar Lei, prorrogando por mais três anos no Distrito do Funchal, a isenção de direitos para as máquinas e utensílios de fabricar os produtos da cana doce. Decreto, dispondo que por mais três anos se pas-se na Alfândega do Funchal, $411 reis em cada cem arrateis, pala importância de mel, melaço e melado estrangeiro.

Portaria, providenciando contra o abuso que podia fazer-se exportando açúcar da Ilha da Madeira para o Reino e Açores.

1870 27 DEZEMBRO Decreto estabelecendo para o açúcar madeirense entrado no continente o direito de $600 réis por arroba 1873 20-ABRIL

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1885 22 MARÇO 1888 5 ABRIL

23 Junho

1893 21 JULHO

Lei reduzindo os direitos de importação do açúcar na ilha Madeira aos da pauta geral das alfândegas Lei prorrogando por 3 anos o prazo de lei, de 20 de Agosto de 1861 que fixou em 6$000 reis por cada 100 quilogramas do direito de importação do mel e melaço estrangeiro na Alfândega do Funchal. Lei prorrogando por mais três anos, a isenção de di-reitos de importação sobre o açúcar produzido na ilha da Madeira. Lei autorizando o Governo a aplicar à cultura de cana-de-açúcar do Distrito do Fun-chal, o decreto de 9 de Dezembro de 1886. Lei que determina o imposto sobre a produção de açúcar, ficando isento o feito de cana na Madeira

Carta de lei criando o imposto de licença para os alambiques

1895 30 DEZEMBRO Decreto es-tabelecendo novos direitos sobre o açúcar superior e melaço da canade-açúcar, importados para consumo no Distrito do Funchal e isentando de direitos a importação para consumo no Continente e Açores do açúcar originário da ilha da Madeira.

Decreto em que se determina o drawback do açúcar refinado. 1896 27 de Abril Carta de Lei suspendendo por cinco anos os direitos pagos pelo açúcar da Madeira no continente, estabelecido em 1870. Regulamento da lei de 4 de Fevereiro

Lei que determina o imposto sobre a fabricação do açúcar. A Madeira mantem a isenção de 1895

Lei, admitindo no Continente, livre de direitos, por espaço de cinco anos, o açúcar produzido na Madeira.

1897 27 de JANEIRO Decreto que determina a forma de aferição dos alambiques para a atribuição do imposto de acordo com a carta de lei de 21 de Julho de 1893 23 DEZEMBRO Decreto estabelecendo normas para a implantação de alambiques e aparelhos destiladores e rectificadores do álcool.

Lei, fixando em 6$000 reis por cada cem quilogramas o direito pela importação do mel, melaço e melado no Funchal, durante três anos.

1901 14 de Junho

Lei sobre o regímen do álcool e aguardente, estabelecendo o imposto sobre a produção de 80 réis. No caso da Madeira cobre apenas o exportado para o continente e Açores.

Lei prorrogando por cinco anos o prazo para a admissão do açúcar da Ilha da Madeira, sem pagamento de direitos.

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Alberto Vieira

1902 24 SETEMBRO

Decreto, a-provando as providências destinadas ao fomento industrial e agrícola do Distrito do Funchal. 24 DEZEMBRO Decreto, a-provando o regulamento para exe-cução do decreto de 24 de Setembro último, que outorgou várias providências destinadas ao fomento industrial e agrícola cio Distrito do Funchal.

Decreto que reforma o regime sacarino, determinando que o açúcar exportado para o continente estava isento de direitos. 24 DEZEMBRO Regulamento do decreto de 24 de Setembro. 1904 24 NOVEMBRO Lei estabelecendo o fabrico de açúcar e álcool, apenas às fábricas matriculadas, isto é W. Hinton & Sons e José Júlio de Lemos

23 ABRIL

1908 9 SETEMBRO 1909 11 MARÇO

1911 11 MARÇO

20 MARÇO

Portaria, nome-ando uma comissão para proceder a um inquérito sobre as condições das indústrias da fábrica de Açúcar, destilação de aguardente de cana sacarina e álcool de melaço e da cultura da mesma cana no Distrito do Funchal. Decreto, suspendendo a execução do regulamento para o comércio do Vinho da Ma-deira na parte relativa ao regime sacarino e do álcool.

Lei de reforma do regime sacarino, por quinze anos

Regulamento vinícola, restringindo às fábricas matriculadas a venda do álcool apenas para o tratamento de vinho

Decreto regulando o regime da indústria sacarina na ilha da Madeira, proibindo as fábricas matriculadas de fazer aguardente para consumo directo. Aumenta os direitos sobre o melaço importado e estabelece o preço máximo de venda do álcool para o vinho. Decreto, aprovando as instruções provisórias para a cobrança do imposto de produção de aguardente no Distrito do Funchal.

1912 24 FEVEREIRO Decreto, estabelecendo as instruções provisórias que devem ser adoptadas para cobrança do imposto de produção de aguardente no Distrito do Funchal

186

durante o corrente ano sacarino. 28 DEZEMBRO Decreto, aprovando o regulamento para expropriação das fábricas de aguardente no Distrito do Funchal. 28 DEZEMBRO Decreto, a-provando o regulamento para a cobrança do imposto da fabricação de aguardente no Distrito do Funchal. 1913 4 JANEIRO

1903 24 SETEMBRO

1907 21 MARÇO

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ortaria, nomeando uma comissão para proceder à escolha dos contadores destinados às fabricas de aguardente do Distrito do Funchal, para o efeito da cobrança do respectivo imposto. 31 MAIO Regulamento do regime sacarino da Madeira. Estabelece o imposto de 15 reis sobre a produção de aguardente até 1918. 28 AGOSTO Portaria n.º 46, determinando que o Conselho Su-perior Técnico seja ouvido sobre o regime sacarino da Madeira. 13 NOVEMBRO Regulamento sobre a produção e comércio de vinhos da Madeira, em que se estabelecem normas sob a alcoolização dos vinhos. Assim a cada 500 litros de vinho corresponderá 55 litros de álcool. 1914 9 JANEIRO

Decreto, rejeitando o recurso n.º 13.273 do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente Cossart Gordon e outros, e recorridos um antigo ministro da Fazenda e W. Hinton & Sons. 14 OUTUBRO Decreto, proi-bindo a reexportação do Conti-nente, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, para o estrangeiro, de arroz, açúcar, bacalhau, cereais, legumes e medicamentos. 2 DEZEMBRO Decreto, pro-mulgando várias providências com o fim de assegurar mais eficazmente a aplicação do álcool, saído das fábricas matriculadas no Funchal, com destino, à beneficiação e pre-paração de Vinhos. 15 DEZEMBRO Portaria, a-provando a tabela designativa de adubos agrícolas que podem ser importados de países estrangeiros e fabricados, preparados e vendidos no Continente e ilhas adjacentes. 1915 22 JULHO 2-DEZEMBRO

Nomeação de uma comissão para o estudo do regime sacarino a adoptar a partir de 1918, quando terminar o prazo do estabelecido em 1914. Decreto que regulamenta a fiscalização do alcool saído das fabricas matricukadas do Funchal para a beneficiação e preparação dos vinhos.

1916 25 FEVEREIRO Decreto dis-solvendo a comissão administrativa, nomeada pelo decreto n.º 4.830, para desempenhar as funções que competiam à Junta Agrícola da Ma-

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Alberto Vieira

12 JUNHO 9 ABRIL 27 ABRIL

5 JUNHO 4 DE MAIO

1918 14 DE MAIO

31 MAIO

1919 2 MAIO

1920 9 ABRIL 1922 3 ABRIL

1924 15 JANEIRO

27 MARÇO

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deira, e encarrega outra de gerir o fundo constituído pelo imposto de fabricação de aguardente no Distrito do Funchal. Decreto proibindo em 1919 no Distrito do Funchal o fabrico de melado ou mel de engenho. Decreto regulando o consumo do açúcar das colónias e da ilha da Madeira. Decreto permitindo aos cultivadores de cana sacari-na da freguesia do Faial, da ilha da Madeira, a destilar por conta pró-pria, a quantidade de cana excedente à que pelo respectivo rateio compete adquirir ao fabrico de aguardente da freguesia Decreto incluindo a freguesia do Porto do Moniz, na zona norte da ilha da Madeira, es-tabelecida pelo art.° n.º 6.521, que regularizou o regime sacarino Decreto regula-mentando as condições de trabalho das fábricas de destilação de aguar-dente no Distrito do Funchal.

Decreto determinando que as fábricas de destilação da ilha da Madeira fiquem obriga-das a dar por concluído o fabrico de aguardente, no ano sacarino, logo que terminem a laboração da cana que exista dentro das mesmas fábricas e proíbe o trânsito da cana sacarina dos concelhos fabris para qualquer dos concelhos do Porto do Moniz, S. Vicente e Santana. Decreto permitin-do em 1919 aos cultivadores de ca-na da freguesia do Faial, ilha da Madeira, destilar de conta própria a cana que não possa ser adquirida pelas fábricas de aguardente da mesma freguesia e proíbe o trânsito de cana sacarina de qualquer ponto da ilha da Madeira para a freguesia do Faial.

Decreto nº.5.492, declarando livre a fabricação de açúcar a partir de 1 de Janeiro de 1920.

Decreto nº.6.521, alterando as disposições do decreto de 2 de Maio de 1919.

Decreto nº.8.089, entregando a execução do regime sacarino à Estação Agrícola da 9ª região

Decreto promulgando as instruções para execução do decreto 5.492, que regulou as indústrias de fabricação de açúcar e álcool de cana sacarina no arquipélago da Madeira. Decreto determi-nando a forma do rateio do álcool para tratamento dos vinhos

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

da Madeira pelas fábricas que a ele têm direito no ano matricular de 1924. 14 ABRIL Lei fixando em 60:00 decalitros, anualmente, a quantia de aguardente que em conjunto podem produzir as fábricas existentes no Distrito do Funchal. 1 JULHO Decreto mantendo em pleno vigor o art. 20 e os parágrafos do decreto nº. 5.492, que regula o exercício das indústrias de fabricação de açúcar e de álcool de cana sacarina do arquipélago da Madeira. 4 JULHO Decreto alterando as multas impostas pelo regulamento aprovado pelo decreto n.º 7502, sobre a fiscalização das fábricas de aguardente da ilha da Macieira. 29 AGOSTO Portaria proibindo a entrada no Arquipélago da Madeira, de aguardente e álcool simples procedente de território português ou do estrangeiro. 8 SETEMBRO Portaria tor-nando extensiva às bebidas alcoólicas, não especificadas, a proibição de entrada no Arquipélago da Ma-deira. 15 SETEMBRO Decreto de-terminando que a fiscalização das fábricas de aguardente na Madeira, fique provisoriamente a cargo da Direcção da Alfândega do Funchal. 8 NOVEMBRO Decreto estabelecendo as normas a seguir para determinação de capacidade de laboração das fábricas de desti-lação na Madeira. 17 DEZEMBRO Portaria revogando pelo que respeita às bebi-das alcoólicas estrangeiras, não especificadas, a portaria n.º 4.192, que torna extensiva às bebidas alcoólicas não especificadas a proibição de entrada no Arquipélago da Madeira, consignada na portaria n.º 4.180. 1925 18 FEVEREIRO Rectificação à portaria n.º 4.350 que revoga a portaria n.º 4192, sobre a entrada de bebidas alcoólicas não especificadas, no arquipélago da Madeira, na parte ainda não revogada pela por-ta ria n.º 4.315. 23 MAIO Portaria promulgando várias disposições relativas à entrada de aguardente, álcool e bebidas alcoólicas, não especificadas, no arquipélago da Madeira. 24 JUNHO Decreto introduzindo várias alterações na pauta dos direitos da importação e sujeitando os assúcares, importados no arquipélago da Madeira aos direitos estabelecidos para o Continente pelo presente decreto. 26 JUNHO Rectificação do decreto n.º 10.864, que introduz várias alterações na pauta dos direitos de importação e sujeitos os assúcares importados no arquipélago da Madeira aos direitos estabelecidos para o Continente, pelo mesmo decreto. 1926 22 NOVEMBRO 30 de Novembro-Decreto autorizando a Junta Geral do Distrito do Funchal a estabelecer um imposto sobre cada litro de aguardente fabricada no mesmo distrito e permitindo na ilha da Madeira, pelo Porto do Funchal, a importação mensal de 25.000 litros de vinho tinto do Continente e proibindo a alcoolização dos vinhos importados ou a sua lotação com vinhos produzidos na ilha da Madeira, bem conto a sua destilação. Proíbe também este decreto o desdobra-

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Alberto Vieira

mento, de álcool em aguardente. 25 AGOSTO Decreto determinando o encerramento das fábricas de aguardente da zona sul da ilha da Madeira e que sejam desmontados e inutilizados todos os alambiques respectivos modificando, também, o regime de produção do açúcar, álcool e aguardente no arquipélago da Madeira. 25 AGOSTO Decreto dando nova redacção ao art.° 22 das instru-ções para a execução do regulamento constante do decreto n.º 11.300, mandados pôr em execução pelo decreto 11 .416 (concessão de licenças para saída do Continente, ilhas e colónias para o estrangeiro). 27 DEZEMBRO Decreto obrigando todos os detentores de aguardente produzida na ilha da Madeira a manifestar na Estação Agrária, durante o mês de Janeiro de 1928, as quantidades que tiverem em existência. 1928 4 MAIO

Decreto n.º 15.429, determinando que as atribuições conferidas à junta Geral do Distri-to do Funchal, pelo decreto 14.168, passem à estação Agrária da ilha da Madeira, com excepção daquelas a que se refere o artigo 8.° do mesmo decreto alterando várias dis-posições do decreto, 14.168 (Regime Sacarino na Madeira). 9 MAIO Rectificações, ao decreto supra n° 15.429, por faltar a assinatura do Ministro das Finanças. 13 AGOSTO Decreto 15.838, determinando que os detentores de aguardente no Distrito do Funchal, sejam obrigados a manifestá-la à direcção da respectiva alfândega. 10 AGOSTO Decreto, 15.831, estabelecendo o novo regime do açúcar, do álcool e da aguardente na Madeira. 12 SETEMBRO Decreto 15.944, substituindo o § 2° do artigo 5.° do decreto 15.831, que estabelece o novo regime do açúcar, do álcool e da aguardente na Madeira. 29 OUTUBRO Decreto 16.083, promulgando novas disposições sobre o regime do açúcar, do álcool e da aguardente na Madeira, revogando os decretos n.º 14.167,14.168, 15.429, 15.831 e 15.944. 29 OUTUBRO Decreto 16.084, regulamentando o novo regime do açúcar, do álcool e da aguardente na Madeira, promulgado pelo decreto 16.083. 22 NOVEMBRO Decreto 16.159, aprovando o contrato de adjudicação da venda de aguardente na ilha da Madeira 1929 15 JANEIRO

21 MARÇO

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Decreto 16.368, determinando que a junta do crédito Público proceda à emissão das obrigações representativas do capital de 9.951.000$00 para satisfação das indemnizações devidas pelo encerramento das fábricas de aguardente da Madeira. Decreto 16.646, fixando o prazo durante o qual os indivíduos não fabricantes de aguardente que pretendam fabricar anel de cana da Madeira, devem apresentar

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

os requerimentos para o fabrico do produto. 27 MAIO Decreto 19.641, reforçando verbas orçamentais destinadas à fiscalização do álcool e da aguardente da Madeira. 31 MAIO Decreto 16.924, permitindo à Companhia da Aguar-dente da Madeira ter um armazém especial onde dê entrada, mediante fiscalização da Alfândega, a aguardente destinada a ser beneficiada para exportação ou venda para consumo, como aguardente velha tipo rum ou de bebidas similares. 12 JUNHO Rectificação ao decreto 16.842, que aprova o regulamento do fabrico da aguardente na Madeira. 19 JUNHO Decreto 16.991, promulgando várias disposições a observar sobre o regime sacarino no arquipélago da Madeira, desde o ano industrial 1930-1931. 1 AGOSTO Portaria 6.299, designando os ofícios dos Juízes de Direito da Comarca do Funchal, que ficam extintos. 17 NOVEMBRO Decreto n.º 17.656, definindo a capacidade produtora de cada fábrica de açúcar e álcool na Madeira. 3 DEZEMBRO Nova publicação, rectificada, do decreto 17.656, que define a capacidade produtora de cada fábrica de açúcar e álcool na Madeira. 1930 3 FEVEREIRO 2 ABRIL

14 MAIO

1931 19 MARÇO

19 MARÇO 27 MARÇO

25 JUNHO

Decreto 17.912, promulgando várias disposições sabre fabrico e consumo de aguardente na ilha da Madeira. Decreto 18.155, isentando das guias de trânsito, a que se referem os artigos 44º do Decreto 16.083 e 16º do contrato aprovado pelo Decreto 16.159, a aguardente velha, tipo rum, ou de bebidas similares, vendidas aos retalhistas pela Companhia da Aguardente da Madeira, depois de devidamente beneficiada ou quando pelos retalhistas seja revendida a particulares em quantidade superior a 5 li-tros. Decreto 18.320- elevando de 5 litros a 20 litros de aguardente o limite a que se refere o art.° 4.° do Decreto 16.083, que promulga várias disposições sobre o regime de açúcar, comércio do álcool e da aguardente na Madeira.

Decreto 19.486, garantindo no ano industrial 1930--1931 a compra da cana da Madeira aos respectivos produtores, nas respectivas condições estabelecidas pelas leis em vigor, com as modificações feitas por este decreto. Nova publicação, rectificada, do Decreto 19.486 sobre a compra da cana da Madeira. Decreto 19.538, modificando as fórmulas mandadas adoptar pelo Decreto 17.656 para a determinação da capacidade produtora das fábricas de açúcar e álcool da Madeira. Decreto 21.432, mandando inscrever uma verba no orçamento do Ministério

191

Alberto Vieira

6 DEZEMBRO

1933 2 JANEIRO

1934 12 JUNHO

1935 31 MAIO

1938 31 JULHO

31 JULHO

1939 28 ABRIL

18 JULHO

1954 14 MAIO

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para 1931--1932 sob a rubrica «Abono para pa-gamento de serviços não especificados», incluindo a aferição de, depósitos do armazém central da venda de álcool da Alfândega do Funchal. Decreto 21.945, inscrevendo uma verba no orçamento dó Ministério para ocorrer a des-pesas com «Portes de correio e te-legrafo» da fiscalização do açúcar e do tabaco nos arquipélagos dos Açores e Madeira.

Decreto 22.056, prorrogando até 2 de Abril do e da Pontinha para os armazéns da Alfândega do Funchal e do álcool das fábricas matriculadas para o armazém do álcool.

Decreto-Lei 23.998, fixando em 7$00 por litro o preço da aguardente actualmente existente nos depósitos de destilarias da ilha da Madeira.

Decreto-Lei 25.437, prorrogando para o corrente ano industrial o regime transitório estabelecido para o de 1934-35 pelo ar-tigo 16 do Decreto-Lei 23.847, que modifica o regime do açúcar, álcool e aguardente na ilha da Madeira e regulando a substituição ou renovação dos canaviais actualmente existentes.

Decreto-Lei 27.911 estabelecendo certos preceitos do sentido de tornar mais eficiente a fiscalização do regime sacarino no arquipélago da Madeira, reduzindo ao mínimo as possibilidades de fraudes. Decreto-Lei 27.912, introduzindo várias alterações no regime sacarino da Madeira.

Decreto 29.559, transferindo várias verbas do orça-mento para reforço da dotação consignada a gratificações ao pessoal da fiscalização do álcool e da aguar-dente da Madeira. Decreto-Lei 29.761, permitindo no ano industrial 1939--1940, a importação no Continente, nos termos do Decreto-Lei 23.847, do açúcar de cana que exceder o consumo da Madeira.

Decreto nº.23.847 de terminando a concentração dos fabricantes de aguardente em apenas três fábricas, mantendo cada um o direito ao rateio da produção e lucro daí resultante.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

JOÃO HIGINO FERRAZ [1863-1946] É filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, no ano de 1856. Nasceu no Funchal a 1863. Foi na fábrica do tio que travou contacto com o mundo do açúcar e a escola de apredizagem. A fábrica da família da Ponte nova terá sido estabelecida entre 1848 e 1856. À morte do promotor, por “cólera mporbus” em 1856, os descendentes—João Higino Ferraz (pai), Severiano Alberto Ferras (filho) e Ricardo Júlio Ferraz-- criaram a sociedade Ferraz Irmãos. Foi aí que em 1881, o jovem de 18 anos, iniciou a actividade como gerente com o tio Severiano, até 1886, altura em que foram forçados a vender a fábrica em praça pública. Liquidada a fabrica estive dois anos sem emprego até que em 1888 arrendou em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato entra para a do Torreão da firma W. Hinton & Sons como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial técnica e comercial. Num manuscrito da mão do próprio diz que em 1900 assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton que o vinculou até à morte em 1946. Todavia, e de acordo com o copiador de cartas, sabemos que desde 18 de Outubro de 1898399 estava ao serviço da firma, como se pode confirmar da carta ao amigo e patrão H. Hinton solicitando a presença no engenho em construção para poder aconselhar sobre a forma de disposição das máquinas. Em Julho de 1927 embarcou para Lobito com Charles Henry Marsden, um engenheiro australiano responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para aí montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de Dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura400. Em 1945 lamentava-se: sou pois técnico em fabricar assucar e álcool, desde 1884 a 1945= 61 anos. Não ttenho direito a ter o titulo de técnico de fabricar assucar e álcool oficialmente em Portugal ? (…) Desejava pois obter o titulo oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico pratico de fabricar assucar e álcool”. Mas, acabou morreendo sem que fosse reconhecido o gigantestco trabalho como técnico, a principal alma da permanente actualização tecnológica e quimica da Fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: n’estes longos (60) anos assisti a variados systemas de fabrico, desde quasi do inicio de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc, etc, acumpanhando sempre os progressos nestas industrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em tranbalho consecutivamente os sys-

João Higino Ferraz.

399 . Arquivo Particular da Família de João Higino Ferraz(à guarda de Francisco João Clode Ferraz), Copiador de Cartas de João Higino Ferraz- 18981905, fol.1 400 . Arquivo Particular da Família de João Higino Ferraz, Notas da Viagem a Africa em 1927 em Julho pelo vapor Niassa.

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João Higino Ferraz no Laboratório. 1936

temas os mais aprefeissoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool, devido principalmente ao meu caro amigo Harry Hinton, como chefe inteligente e progressivo, não poupando energias e capitães para qualquer transformação a ser operada na sua fabrica, ou fossem as ideias minhas ou delle próprio. Tem elle um intuito de progresso bem orientado, que é raro em muitos industriaes. É isso de que me orgulho, por ter sido o coadjutor companheiro de um industrial desta natureza.” Da correspondência com H. Hinton transparece uma perfeita sintonia entre os dois que favoreceu o processo de permanente actualização tecnológiva e química. Ambos partilhavam a mesma paixão pela indústria e afirmação do engenho do Torreão J. H. Ferraz não receia em manifestar por diversas vezes a amizade que o prende ao patrão. Em 1917401 confessa que “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados dez anos confessa que a viagem a África sucede apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento.” 402 J. H. Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procura aperfeiçoar os conhecimentos de Quimica e Tecnologia, através do confronto da literatura estrangeira e a capacidade inventiva403. Mantem-se actualizado através da leitura das publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos manifesta-se um cientista arguto que não detem a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opinia sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e aguardente. Se confrontarmos a literatura científica do momento mais significativo de finais do século XIX até à segunda Guerra Mundial, verificamos que a informação é permanente actualizada e pauta-se po padrões de qualidade, dispondo de informações sobre os métodos mais avançados, como dos estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliàs, mantem contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso de Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência surgem assiduamente nomes de cientistas europeus como Barbet, Naudet. É dele o invento de um apararelho de difusão, que cedeu em 19 de Novembro de 1898 os direitos à firma W. Hinton & Sons. Foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados, tudo sob a sua orientação. Em 1929404, em carta ao amigo Avelino em Lobito, refere: Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Tossehl’s no laboratório, e tenho obtido cousas nbastante curiosas nas culturas feitas.”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou technica.” 405 Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços presta-

401 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1917-18, fl.76, 19 de Junho de 1918 402 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1927-29, 14 de Maio de 1927. 403 . Em 1899 em carta a H. Hinton solicita as publicações journal la Bière, nº.10 e L’Alcool et le Sucre, nº.5, afirmando: “estes jornais tratão de um processo de preparação de fermentos puros pelo sistema de M. Funback e que eu desejava obter ou então o tratado desde mesmo autor, o que era muito melhor.” 404 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas, 1929-30, 20 de Setembro de 1929. 405 . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas,1929-30, 8 de Fevereiro de 1930

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

dos à fabrica Hinton. DE acordo com memorial que enviou a Harry Hinton o ordenado como gerente técnico das industrias de açúcar e do álcool foi o seguinte: 1909-12- 4.500$00 ano 1914-19: 6.440$00 1920-21: 22.400$00 Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas industrias fora de açúcar,álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção technica da fabrica de açúcar e álcool do Torreão…”406

406 . Idem, copiador de cartas, 1920-1923, memorial de 30 de Dezembro de 1922

Desenhos e cartas de João Higino Ferraz.

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CAPÍTULO 2

A AGRO-INDÚSTRIA

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“...com sua pouca ciência e menos experiência, saiu aquele assuqre assim tão bom e tão fino.” [ Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.211.]

Engenho de mó. Claes Jansz Visscher, 1657

A tecnologia é um parceiro importante do processo económico. O impacto dos sectores produtivo e comercial é determinante na inovação tecnológica. Michael Polanyi é peremptório, a tecnologia depende inteiramente do mercado1. Na verdade, é a necessidade que espicaça o engenho e obriga o Homem a lançar-se à descoberta de processos e técnicas capazes de acelerar e tornar mais rentável o processo produtivo. Marx e Darwin dizem-nos que o progresso técnico é social e cumulativo2. Todavia, os níveis de progresso podem ser simultâneos e alheios à difusão dos conhecimentos, conduzindo a que, por vezes, o mesmo invento aconteça em espaços distintos, não havendo entre eles qualquer relação. A questão da tecnologia agrícola-industrial em regiões onde dominou a escravatura tem gerado acesa polémica entre os estudiosos. Alguns marxistas e especialistas de História Económica argumentam que a escravatura foi um factor de entorpecimento de inovação e mudança tecnológica3. Escravatura e inovações tecnológicas seriam incompatíveis. Acontece que os estudos recentes sobre a tecnologia das regiões açucareiras têm revelado uma situação distinta4. Não estar a par da mar1 . Donald Cardwell, História de la Tecnologia, Madrid, 1994, p.478; George Basalla, La Evolución de la Tecnologia, Barcelona, 1994, p.177. 2 . George Basalla, ibidem, p.39 3 . confronte-se textos de L. Ragatz, The Fall of the Planter Class in the British Caribbean 1763-1833, NY, 1963; E. Genovese, The Political Economy of slavery. Studies in the Economy and society of the Slave South, N.Y., 1976; M. Fraginals, O Engenho, 2 vols, S. Paulo, 1978 4 John A. Heitmann, The Modernization of the Louisiana Sucar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, p.2

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Engenho de açúcar na Sicília, Juan Stradamus, século XVI.

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Moenda manual, J. B. Debret.

cha da inovação implicava a perda de competitividade. Por fim tenha-se em conta que as mais significativas inovações dos séculos XV a XIX ocorreram em regiões onde a escravatura foi significa5 tiva. Aconteceu assim na Madeira, como em Jamaica . A cultura da cana e a consequente indústria de produção de açúcar, a partir do século XV, foram alvo de constantes inovações. Para isso contribuiu a pressão do mercado europeu e as características inerentes à cultura. A cana-de-açúcar tem um período ideal do ciclo vegetativo para ser colhida, findo o qual começa a perder sacarose. Além disso depois de cortada tem 72 horas para ser espremida e cozida6. Caso isso não suceda começa a fermentar, perdendo sacarose, a origem do açúcar7. Com tais condicionantes do processo de laboração e a incessante demanda do mercado europeu a partir de meados do século XV obrigaram à constante inovação tecnológica. A par disso o século XVI propiciou a expansão da cultura, gerando uma forte concorrência de mercados produtores que marcou até ao presente o mundo açucareiro. Esta foi tanto mais feroz quando no século XVIII ganhou adeptos na Europa a produção de açúcar a partir da beterraba8. Tamanhas exigências conduziram a que a partir do século XIX a Tecnologia e a Ciência se aliassem na promoção da cultura e produção de açúcar. Ao nível da cultura surgiram os estudos agronómicos que levaram à criação de subespécies mais produtivas e resistentes às pragas. Por outro lado o engenho deixou de ser um espaço de intervenção de diversos ofícios guiados pela tradição, dando lugar a engenheiros químicos e industriais9. As questões em torno da tecnologia se tornam mais claras quando tivermos em conta que a intenção do inventor não era uma conquista do século XVIII e que este só se tornou em herói na centúria seguinte. Daqui resulta a dificuldade na definição clara das inovações tecnológicas e inventores. Estes preferiam a fruição dos resultados dos inventos aos louros da consagração oficial. É neste quadro que deveremos enquadrar as inovações tecnológicas em torno da cultura e fabrico do açúcar. A História da Tecnologia do Açúcar tem sido desde o início polémica e não é fácil vencer os complexos nacionalistas na busca da resposta certa para as inúmeras dúvidas que subsistem sobre as inovações, o momento da concretização e a paternidade. As técnicas de cultivo e transformação da cana atravessaram o Atlântico. Na Madeira as condições geo-hidrológicas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores. Aliás, na ilha estavam criadas as condições para a afirmação da cultura: inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para 5 . Alan Dye, Cuban Sugar in the age of Mass Production Technology na the Economicsa of the Sugar Central. 1899-1929, Stanford, 1998, p.80; .Veront Satchell, Innovations in sugar-cane mill technology in Jamaica 1760-1830, in Verene A. Shepherd, Working Slavery, Pricing Freedom, NY, 2002, pp.93-111 6 . Veront Satchell, Innovations in sugar-cane mill technology in Jamaica 1760-1830, in Verene A. Shepherd, Working Slavery, Pricing Freedom, NY, 2002, p.94; 7 . Alan Dye, Cuban Sugar in the age of Mass Production Technology na the Economicsa of the Sugar Central. 1899-1929, Stanford, 1998, p.115. 8 . M. Moreno Fraginals, O Engenho, vol.II, pp.165-169; Manuel Martín Rodríguez, Azúcar y Descolonización, Granada, 1982, pp.79-95; John A. Heitmann, The Modernization of the Louisiana Sucar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, pp. 50-51 César J. Ayala, American Sugar Kingdom, Chapell Hill, 1999, pp.27-28;.Michelle Harrison, King Sugar. Jamaica, the Caribbean, and the World Sugar Industry, NY, 2001, p.112; 9 . Cf. William Kelleher Storey, Science and Power in Colonial Mauritius, Rochester, 1997; John A. Heitmann, The Modernization of the Louisiana Sucar Industry. 1830-1910, Baton Rouge, 1987, p.39

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as fornalhas e madeiras, como a de pau branco, para a construção dos eixos do engenho. O primeiro foi patenteado em 1452 por Diogo de Teive, o que levou alguns a apontarem como o primeiro engenho de açúcar movido a água. A água, mais do que a indispensável utilização no regadio, tinha uma função industrial relevante. O declive das encostas, sobranceiras às ribeiras, aliado à habilidade do homem na canalização pelas levadas, conduziu à grande aposta na força motriz: moinhos, engenhos e serras. O progresso das indústrias açucareira e madeiras deve-lhe muito.

OS ENGENHOS MADEIRENSES A palavra trapiche entrou no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de engenhos de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal10, como em Arucas, nas Canárias, existe uma localidade com este nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. Para São Tomé o Piloto Anónimo refere o uso dos "braços dos negros e ainda mesmo cavalos". Do último sistema temos notícia da utilização apenas nos primórdios da cultura da cana-de-açúcar na Madeira, sendo pouco provável a continuação após a experiência do engenho de água de Diogo de Teive, tendo em conta a disponibilidade de cursos de água e do possível aproveitamento por meio da canalização através das levadas. Já o mesmo não sucede nas Canárias, onde as datas diferenciam os engenhos de água dos de besta. A animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significava que a existência de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de um engenho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços de outrem11. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais12. Por outro lado temos casos de alienação destes complexos a outrem, sem qualquer relação com os canaviais. Assim sucedeu em 1546 o convento de Santa Clara arrendou o engenho dos Socorridos, que fora de Rui Dias Aguiar, a Manuel Damil13.

Engenho de Açúcar, fim do século XVI. Los Ventiun libros de los ingenios y de las Maquinas.

10. A mais antiga referência que temos a esta designação toponímica é 1590. No testamento de João Figueira Chaves refere-se o lugar e ribeira do Trapiche na freguesia de Santo António[ARM, JRC, nº.526, fl. 539, testamento de 22 de Agosto] 11. Em 1499 (AHM, vol. XVII, nº.227, pp.386-387, 20 de Março)refere-se esta situação e os possíveis prejuízos causados à arrecadação do quinto. 12. V. RAU, ob. cit. 13. ANTT, convento de Santa Clara, nº.12, inventario de 21 de janeiro.

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Não existem dados exactos sobre os engenhos industriais movidos pela força motriz da água. A 14 primeira informação possível surge no estimo de 1494 em que são mencionados dezasseis. Apenas em onze se conhece o proprietário:

Engenhos de açúcar . Séc. XVI

Gonçalo Anes de Avelossa Fernão Lopes da Lombada Fernão Domingues do Arco Álvaro de Figueira Pedro Álvares Fernão Gomes

João Afonso dos Bois Filipa Gil Alvaro Eanes do Arco Gomes Pacheco Álvaro Eanes do Arco

Mais tarde, em finais do século XVI, surge nova relação dos engenhos, apresentada por Gaspar Frutuoso15. No total, são 34 engenhos em toda a ilha, numa extensa área da vertente sul, que vai desde o Porto da Cruz à Calheta. LOCAL Porto do Seixo - Machico Porto do Seixo - Machico R0 Boaventura Santa Cruz Caniço Caniço Rª Sta Luzia-Funchal Rª Sta Luzia-Funchal Rª Sta Luzia- Funchal Rª Sta Luzia- Funchal Praia Formosa Praia Formosa Rª dos Socorridos Rª dos Socorridos

PROPRIETÁRIO Jorge Lomelino Freitas ? João de Ornelas João de Teives Simão Zenóbio Acioli Calheta Duarte Mendes de Vasconcelos Simão Daria ? Manuel da My(Damil?) António Mendes António Correa Duarte Mendes

LOCAL Tabua Tabua Ponta de Sol Madalena Lombada Cabrais Calheta Calheta Calheta Jardim Faial Porto da Cruz Porto da Cruz Machico

PROPRIETÁRIO ? ? Escovares Manuel Dias Gonçalo Fernandes Doutor João Roiz Castelhano Diogo de França ? Pero do Couto António Fernandez Luis Dória Henrique Teixeira

Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram nos séculos XV e XVI. As informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a Madeira em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro documento de 149316 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se ainda que Robert White17 refere 120 engenhos para fins do século XV e Edmund von Lippermann18 refere existirem no Funchal 150 engenhos no início do século 14. Virgínia RAU e Jorge de MACEDO, O Açúcar de Madeira nos fins do século XV. Problemas de Produção e Comércio, Funchal, 1962. 15. Ob. cit., pp. 99-135. 16 . ARM, RGCMF, T. I, publ. in AHM, Vol. XVI, p. 87, doc. 21 Junho. 17 . Madeira its climate and scenery, Edimburgo, 1857, p.139. 18 . História do açúcar, 1941, 13

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XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a produção dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso19 refere-nos 34 engenhos, sendo nove na capitania de Machico e os restantes na do Funchal. A localização geográfica permite aferir das áreas de maior incidência da cultura no século XVI. Nos inícios do século XVII funcionavam poucos engenhos. O bicho da cana havia reduzido drasticamente a produção e área de canaviais pelo que muitos haviam sido abandonados. Entretanto em 1610 o panorama era de franca recuperação da cultura, mas os engenhos continuavam encerrados, por isso, o procurador requereu à câmara que intimassem os proprietários que aprontassem os engenhos para abrirem na safra de 161120. Em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em laboração21. A aposta na cultura levou ao estabelecimento de alguns incentivos à reparação, como sucedeu em 164122 e 164923. Nesta década fala-se apenas de quatro engenhos, dos dois foram construídos em 165024. Daí derivaram, enormes dificuldades em conseguir moer a cana por falta de engenhos suficientes25. No Funchal o de André de Betancor há três anos que não funcionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em que se encontrava26. Ademais, do abandono dos engenhos registava-se o das levadas como sucedia com a do Pico do Cardo e Castelejo em S. Martinho que há trinta anos não era tirada27. Para repor a cultura a coroa preparou um plano de recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção do pagamento do quinto. Isto aconteceu por alvará de 1 de Junho de 1649, ficando os proprietários de engenho com direito ao empréstimo de 400 cruzados e o não pagamento do quarto por cinco anos e metade deste valor por dez anos.28. A política de incentivo à cultura chegava até à coação dos proprietários no sentido da reparação e posta em funcionamento dos engenhos. Foi isso que aconteceu a D. Maria da Câmara.29 Data 1651 1651 1653 1654 1657 1680 1744

Local Caramujo

Caniço Câmara de Lobos Caramujo

Proprietário António Correia Betancourt Francisco Gonçalves Jardim António correia Betancor Capt. Diogo Guerreiro Capitão Pêro de Betencor Henriques Inácio de Vasconcelos João José Inácio de Vasconcelos Betencourt de Sá Machado

Engenho de três cilindros verticais. J. B. Labat, 1722; Charles César de Rochefort, 1655;

19 . Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 99-135. 20 . ARM, CMF, nº.1318, fls.68-68vº., 12 de Novembro. 21 F. MAURO, ob.cit., p.249 _ 22 . ARN, CMF, nº.1329, fls. 18-18vº, 16 de Fevereiro 23. IBIDEM 24. ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19, Carta de Diogo Fernandes Branco de 26 de Novembro de 1650. 25 . ANTT. PJRFF, nº.396, fl.4, 20 de Outubro de 1648. 26. ANTT, PJRFF, nº.396, 20 de Outubro de 1648. 27. ANTT, PJRFF, Nº.396, fl.7vº, 5 de Dezembro de 1651. 28.ARM, RGCMF, t. VI, fls.99vº-100; ANTT, PJRFF, nº.396, fl.6vº, 25 de Maio de 1651. 29. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 314vº-316, 1 de Julho de 1649; ibidem, nº.396, fls. 6-6vo, 26 de Maio de 1651; ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 465vº-466, 27 de Setembro de 1652

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Concentravam-se no Funchal e Câmara de Lobos, o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores das partes da Calheta, Ponta de Sol e Ribeira Brava. A situação perdurou no século dezoito como se poderá verificar de idêntico privilégio, concedido em 1744 a João José de Vasconcellos Betencourt de Sá Machado. O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. Em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais. Nos séculos dezassete e dezoito o número de engenhos era reduzido. Para os inícios do século XVII, mais propriamente em 1602, Pyrard de Laval refere a existência de 7 a 8 engenhos em laboração. A documentação informa-nos sobre a existência de alguns:

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

sumo que tinha para adubar os vinhos e consumo corrente. PROPRIETÁRIO DESCRIÇÃO

LOCALIZAÇÃO

Sítio

Concelho

Freitas, Abreu & Cº.

Madalena do Mar

Ponta de Sol

1 moinho

2 alambiques

João da Câmara Lomelino

Loreto

Calheta

Um moinho

2 alambiques

Câmara de Lobos

Funchal

1 moinho

1 alambique

Ribeira Brava

Ponta de Sol

1 moinho espremer cana 1 moinho de cereais

1 alambique 1 fábrica

S. Martinho

Funchal

1 moinho

1 alambique

& Cº Saraiva

1744-50 1760 1780 Pormenor de engenho. Séc. XVII

LOCAL Rª Socorridos Funchal Caniço C.Lobos Funchal Piornais Funchal Funchal C.Lobos

Com o decorrer dos anos escasseiam os engenhos, mas também os canaviais. Assim, em 1698 eram 41 os engenhos em funcionamento na ilha, mas insuficientes para a cana disponível30. Em 1730 refere-se a existência de poucos, enquanto no período de 1750 a 1782 temos apenas um engenho em laboração. Na segunda metade do século XIX a crise do vinho obrigou a recorrer à cana como alternativa económica. A cultura da cana sacarina na ilha é herdeira desta fase. O golpe mortal desferido em 1985 com o encerramento definitivo da fábrica do Hinton, a única que ainda produzia açúcar. Os engenhos de água renascem em concorrência com os novos movidos a vapor. Em 1851 temos apenas três engenhos em funcionamento no Funchal (Praia Formosa, S. Martinho e rua dos Chapéus)31. Num inventário das indústrias nacionais em 186432 referem-se sete engenhos em laboração na ilha, sendo apenas um a fabricar açúcar. A grande aposta estava na aguardente, pelo con30 . João Cabral de Nascimento, Documentos para a História das capitanias da Madeira, Lisboa, 1930, p.14 31 . Madeira its Climate and Scenery, Londres 1851, p.54 32 . Diário de Lisboa. Folha Official do Governo Portuguez, nº.14, 19 de Janeiro de 1864.

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Açúcar

José Maria Barreto, e Freitas, Jorge Oliveira

PROPRIETÁRIO Gaspar Betencourt de Sá André Betencourt Funchal António Correia Capt.Diogo Guerreiro Pedro Betencourt Henriques Baltasar Varela de Lira Capt.Pinto da Silva Cap. Bartolomeu de F. Andrade Manuel Abreu Capt. António Abreu João J. Betencourt de S. Machado João J. Vasconcelos de Betencourt D.Madalena Guiomar de Sá Vilhena

Aguardente

Joaquim Figueira da Silva

João António de Macedo Correia

DATA 1644 1648 1651 1652 1657 1661 1665 1705

Moenda

João Pinto Correia Manuel Martins Câmara de Lobos

Funchal

1 moinho

1 alambique

Tiburcio Justino Henriques

Câmara de Lobos

Funchal

2 moinhos

2 alambiques

1 caldeira de destilação

Em 1907, de acordo com o relatório do engenheiro Victorino José dos Santos33, existiam na ilha 47 fábricas, sendo 26 a água, 3 mistas e 18 a vapor. É de salientar que o Funchal surge apenas com engenhos movidos a vapor, sendo os de água, maioritariamente, da Ponta de Sol, S. Vicente e Santana. Data Açúcar 1851 1856 1862 1871 1873 1885 1890 1900 1907 1928 1939

5

Número de engenhos aguardente Água vapor 10 22

18 9

2 7

5 3

bois

total 3 80

15 29

33

16

3 49

26

19

47

48

A tentativa do cultivo da cana sacarina na segunda metade do século XIX conduziu inevitavelmente ao aumento do número de engenhos, atingindo-se o máximo em 1906 de 57 unidades para fabrico de aguardente e açúcar. As medidas limitativas, a partir de 1939, conduziram ao encerramento da quase totalidade destas infra-estruturas, pelo que hoje restam poucos escombros. De acor-

Engenho de três cilindros verticais. J. B. Labat, 1722; Charles César de Rochefort, 1655;

33. Boletim do Trabalho Industrial, 1913.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

cial incidência para o Funchal. Em 1861 dos 29 engenhos temos apenas cinco para a produção de açúcar, situados na Calheta, Santa Cruz, Ponta de Sol e Funchal. A redução dos últimos é inevitável nos anos seguintes com a existência em 1900 de apenas três no Funchal: Hinton, Silva Manique (Ponte Nova), que os descendentes de Severiano Ferraz haviam vendido em hasta pública em 1886, José de Faria e Cª (S. Martinho). Em 1929 eram apenas dois e passados dez anos tudo ficou reduzido a apenas uma unidade industrial com o exclusivo do fabrico 36de açúcar, isto é, o engenho do Hinton. Segundo E. Nicholas, “Hinton is sugar and sugar Hinton.” .A situação resultou do regime sacarino estabelecido em 1911. A política de proteccionismo e favorecimento do engenho do Torreão afastou todos os demais da indústria, levando a maioria ao encerramento. Em 1934 um decreto estabeleceu claramente a situação. Proibiu a construção de mais engenhos até 1953 e os demais existentes deixaram de poder laborar açúcar, actividade que passou a ser exclusiva do engenho do Torreão. Pior foi o que sucedeu em 1954 com o decreto que determinou a concentração de todos os fabricantes de aguardente em apenas três fábricas: Sociedade dos Engenhos da Calheta, Ltda, Companhia dos Engenhos de Machico Ltda, Companhia de Engenhos do Norte (Porto da Cruz). A determinação de 1939 para o encerramento das fábricas que produziam aguardente é reveladora da presença destas unidades em toda a ilha.

Engenho século XVIII

do com o decreto de 1954 procedeu-se à concentração das diversas unidades industriais fora do Funchal na Sociedade de Engenhos da Calheta Ltda, Companhia de Engenhos de Machico Ltda, Companhia de Engenhos do Norte. O primeiro engenho da última fase surgiu em 1828 por iniciativa de Severiano Ferraz34. E foi também o pai da primeira fábrica de açúcar movida a vapor na ilha, tendo montado o sistema no engenho da Ponte Nova em 1856, ano da sua morte, pelo que foram os filhos que puseram o mecanismo em funcionamento no ano imediato35. A energia para mover os novos engenhos poderia ser escolhida entre a força motriz dos bois, da água e do vapor. Dependendo a opção do volume de cana a laborar e da capacidade financeira do proprietário. Ao mesmo tempo diferencia-se a aposta na produção de açúcar ou e aguardente. Deve-se salientar que as unidades de fabrico de açúcar estavam todas na vertente Sul, com espe34 . Severiano Alberto de Freitas Ferraz (-1856) que dá nome a um largo no Funchal, popularmente conhecido como Largo da Cruz Vermelha, destacou-se como artista, industrial e um homem de ciência, sendo da sua criação a construção do engenho de 1828 e a reforma que lhe imprimiu em 1856. Falta-nos dados para conhecer o tipo de engenho e afiançar os conhecimentos sobre as inovações tecnológicas da época. 35. Conforme carta de João Higino Ferraz ao Redactor Principal do Diário de Noticias de 25 de Junho de 1921.

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LOCALIDADE Arco da Calheta Arco de s. Jorge Boaventura Calheta Câmara de Lobos Canhas Estreito da Calheta Faial Funchal Jardim do Mar Machico Madalena Paul do Mar

1862 1 1

4 1 1 11 2 1 1

1907 3 1 1 1 2 3 1 2 8 1 2 2 1

1939 3 1 1 2 3 2 1 1 7 1 2 2 1

LOCALIDADE Ponta Delgada Ponta de Sol Porto da Cruz Porto Novo Porto Moniz Ribeira Brava Santana Santa Cruz São Jorge São Roque do Faial São Vicente Tabua Total

1862 3 2

1 1 2 1 1

1907 2 2 2 1 1 1 3 3 2 3 1 47

1939 2 3 2 1 1 1 1 2 3 1 3 1 48

Engenhos e fábricas de aguardente séc. XIX

Engenhos e fábricas de aguardente 1907

Engenhos e fábricas de aguardente 1939

Engenhos e fábricas de Açúcar e aguardente na Madeira.1590-2001

36 . Madeira and the Canaries, London, 1953, p.89.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1

3 2 Engenhos em funcionamento: 1 - Ribeiro Seco 2 - Porto da Cruz 3 - Calheta

Dos engenhos dos séculos XV e XVI não temos referência no terreno, sabemos apenas por documentos e descrições da existência. A cidade do Funchal era local de grande concentração das estruturas, mas tudo desapareceu. Hoje o que existe em termos de vestígios dos engenhos açucareiros, resulta do segundo momento de afirmação da cultura para fabrico de aguardente e açúcar. Na maioria resume-se a algumas chaminés, a infra estruturas degradadas ou em ruínas e apenas três se mantêm activos A cultura da cana-de-açúcar expandiu-se no século XIX à encosta norte ganhando alguma importância no concelho de S. Vicente. O testemunho disso está ainda presente em vestígios materiais dos lugares de Ponta Delgada e Boaventura. Em S. Vicente dos dois engenhos de aguardente -1860 de Caetano António de Freitas e 1897 de Daniel Brazão Machado - de que já não sobra nada. Em Boaventura, na Ribeira do Porco, Francisco António Abreu Cardoso construiu em 1899 um engenho movido a água para fabrico de aguardente. Em Ponta Delgada temos notícia de três engenhos para o fabrico de aguardente. O primeiro a surgir foi em 1850 no sítio do Lombo dos Cabos, propriedade de Joaquim da Silva Ganança. Passados oito anos o conde de Carvalhal mandou construir o seu no sítio da Fonte e em 1861 no sitio do Açougue o de cândido Lusitano de França. O do Conde de Carvalhal, que pertenceu a João Bermudes, foi vendido em 1886 a Norberto d’Ornellas Jr encerrando as portas em 1954. É dele que fala Horácio Bento de Gouveia em "A Canga" e "Águas Mansas"37. 37 . Maria de Fátima Ornellas de Gouveia Soares, Os Engenhos na Costa do Norte, Xarabanda, 2000-2001, pp.32-34.

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Engenho Conde Carvalhal, 1858. Ponta Delgada

O Engenho

Engenho de Cândido Lusitano de França Andrade, 1861. Ponta Delgada

O engenho de Custódio Filipe, reconstruído por mestre do Sul, fazia rebentar de inveja Luís da Feiteira. Nova roda de castanho e novos baldes, novos cilindros, novo alambique, dependência para escritório privativo do gerente, a fábrica apresentava um aspecto completamente diverso do velho casarão que fora pertença de antigos fidalgos da freguesia (...). O engenho da Fonte estava um cangalho. As paredes sem cal, todo o rosto para o lado da rua esburacado, os armazéns da garapa a abarrotarem de ponchos com os arcos comidos de ferrugem. O proprietário, Luís da Feiteira, desde que lera no Diário Popular que o Governo ia mandar expropriar os engenhos do Norte, desinteressou-se da conservação do edifício. Agora, o eixo da roda da água que movimenta a engrenagem dos cilindros, de tanto girar, tinha as extremidades por um fio. (Horácio Bento de Gouveia, A Canga, Funchal, 1975, p. 44)

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Engenho do Porto Moniz

Engenho Arco da Calheta

No espaço compreendido pelo actual município do Porto Moniz só temos notícia da presença de engenhos a partir de meados do século XIX. A cultura da cana sacarina e de modo especial o sorgo expandiram-se até aqui. No Seixal existiram três engenhos movidos a água para o fabrico de aguardente. Em 1857 José Homem de Gouveia instalou no sítio da Serra de Água, depois em 1890 no sítio do Corpo Comprido e Lombo do Moinho surgiram duas novas destiladoras, uma de Manuel Luísio da Costa Lira e a outra em 1895 era de uma sociedade composta por João Antonio de Andrade, Manuel Estêvão Pereira Machado, Daniel Joaquim de Souza Pinto, António Rodrigues Gouveia Jardim. No Porto Moniz a única fábrica, conhecida como da Conceição, de moer cana doce e fabrico de aguardente surgiu na vila em 1907 da sociedade "Gouveia Lima e Cª" entre Manuel de França Dória, António Domingos de Gouveia, Padre João Correia e Manuel de Lima Júnior. A fábrica laborou até 1923 mas o edifício e chaminé mantiveram-se de pé até 1990. No concelho de Santana apenas se registam engenhos em S. Jorge, Arco e Faial. Na freguesia de S. Jorge temos notícia de dois engenhos para o fabrico de aguardente: 1858: Manuel Fernandes de Nóbrega, 1859: Manuel José Catanho, 1896: João Francisco Jardim, 1896: Luzia Augusta, 1899: Francisco da Cunha. No Arco de São Jorge referem-se os seguintes: 1859: Maurício Castelo Branco & Cª, 1896: António Joaquim França, 1896: Francisco José Brito Figueiroa, 1905: José Oliveira Jardim Júnior. Em S. Roque do Faial tivemos um engenho no sítio das Covas desde 1859, que em 1899 era pertença do Dr. João Catanho de Menezes(1854-1942) e Leocádia Maria Menezes. Manteve-se no activo até 193938. Surgiu outro nos Terreiros em 1899, propriedade de Albino Rodrigues Sousa. A vertente Sul manteve-se como um das áreas por excelência da cultura da cana de açúcar neste segundo momento. Daí a presença de inúmeros engenhos. No Arco da Calheta temos notícia de vários engenhos. Ao sitio da Serra de água surgiu em 1857 o de Diogo de Ornelas Frazão, movido a vapor. Depois tivemos em 1882 o de Francisco Luís Pereira e João de Andrade, movido por bois, e em 1901 o de Juliana Lopes Jardim. A Calheta foi no século XVI terra de muito açúcar havendo notícia de dois engenhos na Estrela. Na vila da Calheta temos três engenhos: 1894: Vicente Lopes, 1901: Lopes & Duarte, 1908: António Rodrigues Brás. Do primeiro não ficou memória e do último só resta a chaminé num jardim da marginal. Apenas o de 1901 é um dos poucos que persistem em laboração a testemunhar da indústria da destilação de aguardente. No Estreito da Calheta temos os seguintes: 38 . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar do Faial. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, 5, 1994, 32-36

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1895: Luís Agostinho Henriques, 1901: Tibúrcio Justino Henriques & Cª. No Paul do Mar referem-se dois engenhos. O primeiro surgiu em 1858 e era propriedade do conde de Carvalhal, sendo movido por água da ribeira. Depois em 1905 José Gomes Henriques montou outra estrutura. No Jardim do Mar temos apenas notícia de uma fábrica de aguardente movida a água que foi construída em 1900 por Francisco João Vasconcelos. Na Ponta de Sol situava-se um dos maiores proprietários de canaviais. João Esmeraldo, flamengo foi detentor desde finais do século XV de um importante engenho de açúcar na sua casa da Lombada. No século XVII referem-se dois engenhos e no século XIX tivemos novo incremento. Nuno de Freitas Pestana montou, e m 1853, no sitio da Praia uma fábrica de aguardente movida por uma junta de bois. Depois em 1869 surge com ouro na vila. Temos ainda referência a outro em 1884 de Guilherme Wilgraham, No Livramento Francisco da Silva Gaspar montou uma fábrica de moenda, remodelada em 1907, que passados três anos estava em poder de Manuel da Silva Jardim. Nos Canhas referem-se engenhos para fabrico de aguardente. O primeiro foi construído no sítio dos Anjos em 1855 por Luís Betencourt Esmeraldo e, depois, desde 1904 o de Francisco Cabral de Noronha e João Nepomuceno no sítio dos Anjos, e o de José Pestana Reis no sítio de S. Tiago. No ano imediato surgiu o de João da Silva Frade, João Fernandes, António Silva Gaspar. Na Madalena do Mar temos dois engenhos para o fabrico de aguardente, ambos movidos a água. No sítio da Riba surgiu em 1858 o da firma Freitas Abreu & Cº, enquanto no sitio do Passo tivemos desde 1899 o de António da Silva Gaspar. Em 1887 temos noticia de que a firma Ferraz & Irmãos era detentora de um prédio com engenho. A Ribeira Brava foi terra de açúcar, tendo instalado no leito da Ribeira um engenho. Em 1853 a sociedade entre José Maria Barreto e Jorge de Oliveira. Os ditos já possuíam uma moenda de tracção animal e um alambique, avançando em 1863 com uma outra hidráulica e a estrutura para fabrico de açúcar. Em 1902 foi alvo de novas reformas, quando pertencia à sociedade de João Romão Teixeira, António Gonçalves de Almeida e Luzia Correia Macedo. Foi demolido em 1941 e hoje alberga o Museu Etnográfico da Madeira39. Na Tábua, no sítio da Praia, assinala-se desde 1885 o engenho de Valério Rodriguez da Cova, Francisco Gomes da Silva e Jacinta Rosa(viúva), de que ainda existem vestígios. Em Câmara de Lobos assinala-se a presença de vários engenhos, de que hoje não restam vestígios. Um dos mais antigos estava no sítio da Palmeira, erguido em 1847 por acção de Manuel Martins e João da Silva. Na vila, mais propriamente na Rua da Carreira tivemos em 1854 o segundo engenho de Tibúrcio Justino Henriques preparado para aguardente e melaço. Na década de cinquenta assinalam-se ainda outros dois. Em 1857 João Figueira Quintal construiu um no sítio do Ribeiro Real e no ano imediato Joaquim Figueira & Co o do sítio de Jesus Maria José40. Na linha de fronteira, a margem da Ribeira dos Socorridos, que separa o município do Funchal do de Câmara de Lobos tivemos o engenho dos Socorridos, o único que se manteve em actividade no

Engenho fundado por António Rodrigues Brás, em 1901. Vila da Calheta

Engenho. Arco da Calheta

39 . Jorge Valdemar Guerra, O Hospício Franciscano e a Capela de S. José da Ribeira Brava, in Islenha, 19, 1999, pp.61-94 40 . João Adriano Ribeiro, A Indústria de Cana de Açúcar em Câmara de Lobos nos séculos XIX –XX, in Revista Girão, vol.I, nº.8, 1992.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Engenho de Diogo de Ornelas Brazão (1857). Arco da Calheta

Engenho de Valério Roiz da Cova. Tabua

Engenho do Conde Carvalhal (1858). Paúl do Mar

Engenho do Conde Carvalhal (1858). Paúl do Mar

Engenho de Francisco João Vasconcelos (1900). Jardim do Mar

Engenho de Francisco Gaspar (1907) Livramento, Ponta do Sol

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decurso do século XVIII, demonstrativo da persistência da cana nas proximidades. De entre os inúmeros proprietários assinala-se a figura de D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena41. Da estrutura persiste apenas a capela42. É no Funchal que se concentrava o grupo mais importante de engenhos para fabrico de açúcar e aguardente. A maior concentração acontecia no espaço urbano, no eixo em torno da Ribeira de Santa Luzia e na freguesia de S. Martinho, a mais importante em termos de área de cultivo da cana. Junto ao calhau - hoje Praça do Pelourinho - tivemos a Fábrica de Açúcar de S. Filipe, propriedade de Henrique Figueira da Silva e que foi um dos mais destacados concorrentes do engenho do Torreão. Nas proximidades, à Travessa da Malta, instalou-se a Companhia Nova de José Júlio Lemos, que foi depois adquirida pela Casa Hinton. Á Rua dos Netos, na proximidade da Ponte Nova funcionou o engenho que Manuel Rodrigues construiu em 1863 e perto das actuais instalações do Ateneu o de António da Silva Manique, de 1856, que deixou de funcionar em 1905. No torreão implantou-se a partir de 1856 o engenho da família Hinton, muito posterior ao de Severiano de Freitas Ferraz, do outro lado da Ribeira nas proximidades dos Moinhos. Finalmente à actual Rua Major Reis Gomes tivemos o engenho canavial, do Conde de Canavial, erguido em 41 . Bernardete Barros, Dona Guiomar de Sá Vilhena. Uma mulher do século XVIII, Funchal, 2001. 42 . João Adriano Ribeiro, A Capela de Nª Sª da Vitória na Ribeira dos Socorridos, Funchal, 2000

1870 com a designação de Companhia Madeirense do Açúcar. Junto à Ribeira de S. João, na Travessa de S. Paulo, João Justino Henriques implantou outra fábrica. Depois tivemos ao Ribeiro Seco o engenho de Aloizio César de Betencourt, engenheiro químico, que ainda hoje funciona, depois de uma reforma em 194643. Na freguesia de S. Martinho assinalam-se os seguintes engenhos44: Local Sítio da Vitória Sitio das Quebradas Sitio da Ajuda Pico do Funcho Salto do Cavalo(Estrada Monumental)

Proprietário João Carlos Aguiar Manuel Pereira José Fernandes de Azevedo Victorino Ferreira Nogueira Henrique de Freitas

Data fundação

1856

Em Santa Cruz assinalam-se dois engenhos na vila. Bartolomeu de Ornelas Frazão fundou aqui

Engenho fundado por José Maria Barreto & Cª em 1853 (Museu Etnográfico). Ribeira Brava

43. Maria João Oliveira, Arqueologia Industrial um espaço em aberto. A fábrica de mel de cana do Ribeiro Seco, In Xarabanda, 2000-2001, 35-48. 44 Cf. Abel Marques Caldeira, O Funchal no primeiro quartel do século XX. 1900-1925, Funchal, 1963, 74-76.

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Engenho de São Filipe, estabelecido em 1919 por Henrique Figueira da Silva

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ENGENHOS - SÉCULOS XV- XVIII Data informação 1452 1484 1487 1494

Período funcionamento

Local

Câmara de Lobos Câmara de Lobos

Engenho de Pedro Pires, 1887

Engenho da Vila da Ribeira Brava

um engenho em 1858 a que se juntou outro em 1863 no sítio da Serra de Água na Calheta, tendo contado com apoio técnico do Hinton45. Há referências a um outro engenho no ano de 1902 pertencente a Joaquim José de Gouveia. No concelho de Machico assinalam-se dois pólos industriais importantes na vila e no Porto da Cruz. Na primeira tivemos dois engenhos em funcionamento desde 185846. O do Sítio da Estacada, de 1858, era propriedade de Manuel António Jardim, enquanto que o do Sítio dos Moinhos, da mesma época, foi de João Escórcio Câmara, estando em 1904 em poder de João Carlos Aguiar. No Porto da Cruz, ao sítio das Casas Próximas, tivemos dois novos engenhos em 1858 para fabrico de aguardente, sendo um de João e Valentim Leal e o outro de Cândido Velosa de Castelo Branco. O primeiro, em 1901 estava na posse do Dr. João Baptista de Freitas Leal. As transformações da primeira metade do século XX obrigaram à reformulação dos engenhos, surgindo em 1927 a Companhia dos Engenhos do Norte Lda, com o rateio de quatro engenhos que haviam deixado de funcionar na costa norte. O actual engenho em funcionamento foi adquirido em 1978 por Luís Alberto Andrade C. Clode. 45 . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar de Santa Cruz. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, 2, 1992, 46-48 46 . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar de Machico. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, especial, 1993, 43-48; . Maria João Oliveira, O engenho de cana de açúcar do Porto da Cruz. Arqueologia Industrial um espaço em aberto. In Xarabanda, 4, 1993, 26-33

216

1491 1495

Funchal

1508-1536 1524 1535 1542 1544 1546 1547 1553 1571 1573 1593 1594(?)

Lombada da P. Sol Ribeira Brava Porto da Cruz Funchal Ribeira Socorridos

1573-93

1531-1594

Calheta Ribeira dos Socorridos Funchal Porto do Seixo - Machico Porto do Seixo - Machico Rª Boaventura-Santa Cruz Caniço Caniço Rª Sta Luzia-Funchal Rª Sta Luzia-Funchal Rª Sta Luzia- Funchal Rª Sta Luzia- Funchal Praia Formosa

proprietário Diogo de Teive Rui Mendes Vasconcelos Fernão Afonso Gonçalo Anes de Avelossa João Afonso dos Bois Fernão Lopes da Lombada Filipa Gil Fernão Domingues do Arco Alvaro Eanes do Arco Álvaro de Figueira Gomes Pacheco Pedro Álvares Álvaro Eanes do Arco Fernão Gomes Nuno Gonçalves Afonso Anes Martim Mendes Martim Mendes João Esmeraldo João Mendes de Brito António Teixeira Álvaro Anes D. Pedro de Noronha Convento Santa Clara João de Ornelas e Vasconcelos Pedro Gonçalves da Câmara Simão Fernandes Sequeira Guiomar da Costa Bartolomeu Machado Jorge Lomelino Freitas ? João de Ornelas João de Teives Simão Zenóbio Acioli Duarte Mendes de Vasconcelos Simão Daria ? Manuel da My(Damil?)

Engenho Ribeiro Seco

Companhia Nova de José Júlio de Lemos.

Engenho do Hinton

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Data informação

1597 1599 1600

Período funcionamento

Praia Formosa R0 dos Socorridos R0 dos Socorridos Tabua Tabua Ponta de Sol Madalena Lombada Calheta Calheta Calheta Calheta Jardim Faial Porto da Cruz Porto da Cruz Machico Funchal 1600-26

1603 1604 1620 1632 1643 1644 1645 1648 1651

218

1744 1780

Funchal Funchal

Rª Socorridos Rª Socorridos Funchal Funchal

1652 1657 1661 1665 1687 1705

Engenho fundado por Manuel António Jardim em 1858. Machico

Local

Caniço C.Lobos Funchal Piornais Funchal Funchal C. Lobos 1744-1760

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

proprietário

ENGENHOS - SÉCULOS XIX E XX

António Mendes António Correa Duarte Mendes ? ? Escovares Manuel Dias Gonçalo Fernandes Cabrais Doutor João Roiz Castelhano Diogo de França ? Pero do Couto António Fernandez Luis Dória Henrique Teixeira Maria Tavares Pedro Betancor João Berte de Almeida Pedro Gonçalves da Câmara Mor Lourenço Maria Nunes Roque Fernandez Maria Rodriguez Guiomar da Costa Gaspar Betencourt de Sá Baltazar Varela de Lira André Betencourt António Correia Baltazar Varela Capt.Diogo Guerreiro Pedro Betencourt Henriques Baltasar Varela de Lira Inácio Fernandes Pinto da Silva Mendo Brito Oliveira Cap. Bartolomeu de F. Andrade Manuel Abreu Capt. António Abreu João J. Betencourt de S.Machado D. Madalena Guiomar de Sá Vilhena

Fundação 1828/1866 1837 1845 1856 1847 1853 1853 1854 1855 1856 1856 1857 1857 1858 1858 1858 1858 1858 1858 1858 1858 1858 1858 1859 1858-1896 1859 1859 1860 1861 1861 1861 1862 1862 1862 1867 1867 1867 1869 1870

Período funciona mento

LOCAL

Ribeiro Seco 1856-1986

1858-197? 1858-1862

1858-1940

Rua da Princesa Palmeira Vila Vila Canhas Pico do Funcho[S. Martinho] Pico do Funcho[S. Martinho] Ribeiro Real Serra de Água Casas Próximas(Porto da Cruz) Casas Próximas(Porto da Cruz) Estacada(vila de Machico), Moinhos (vila de Machico), Paul do Mar Fonte[Ponta Delgada] Vila Jesus Maria José Pedra Mole[S. Jorge] Madalena Ponte Deão Rua dos Netos S. Jorge Quebrada[Arco de S. Jorge] Passo [S. Vicente] Travessa das Angústias Pico da Cruz[S. Martinho] Açougue[Ponta Delgada] Pico do Funcho(S. Martinho) Rua direita Quebrada[S. Martinho ] Arco da Calheta Estrada Monumental Tábua Vila Rua da Ribeira

CONCELHO

Proprietário

FUNCHAL FUNCHAL FUNCHAL FUNCHAL CÂMARA DE LOBOS PONTA DE SOL RIBEIRA BRAVA CÂMARA DE LOBOS PONTA DE SOL FUNCHAL FUNCHAL CÂMARA DE LOBOS CALHETA MACHICO MACHICO MACHICO MACHICO CALHETA S. VICENTE SANTA CRUZ CÂMARA DE LOBOS SANTANA PONTA DE SOL FUNCHAL FUNCHAL SANTANA SANTANA S. VICENTE FUNCHAL FUNCHAL S. VICENTE FUNCHAL FUNCHAL FUNCHAL CALHETA FUNCHAL RIBEIRA BRAVA PONTA DE SOL FUNCHAL

Severiano Alberto de Freitas Ferraz José Dias da Silva, Leandro Eugénio de Freitas(1896) W .H. Hinton W .H. Hinton Manuel Martins e João da Silva Nuno de Freitas Pestana José Maria Barreto Tibúrcio Justino Henriques Nuno de Freitas Pestana Victoriano Ferreira Nogueira Diogo de Ornelas Frazão, João de Faria Cª(1896) João Figueira Quintal Diogo de Ornelas Frazão João Leal,e Valentim Leal, João baptista Freitas Leal[1901] Cândido Velosa Castelo Branco João Escórcio Câmara, João Carlos Aguiar(1904) João Escorcio da Câmara conde de Carvalhal Conde de Carvalhal Bartolomeu de Ornelas Frazão Joaquim Figueira e Cª Manuel Fernandes Nóbrega Freitas Abreu & Cª Joaquim Crispim da Silva, João Higino Ferraz(1896) António da Silva Manique Manuel José Catanho Maurício Castelo Branco e Cª Caetano António de Freitas João da Silva Nunes Joaquim Ferreira Nogueira Cândido Lusitano da França Andrade Manuel Faria & Cº Herdeiros de Vicente Cândido Camacho Manuel Francisco Pereira Diogo de Ornelas Frazão Pedro Pires Valério Roiz da Cova e José da Silva Nuno de Freitas Pestana Companhia de açúcar Madeirenses

Vestígios de engenho. Porto da Cruz

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1882 1882 1882

Vestígios de engenho. Porto da Cruz

Vestígios de engenho. Santa Cruz

220

1883 1883 1886 1887 1894 1895 1896 1896 1896 1896 1896 1897 1897 1899 1899 1899 1899 1899 1900 1901 1901 1901 1901 1901 1902 1902 1902 1902 1902 1905 1905 1907 1907 1908 1910 1910

CALHETA PONTA DE SOL CALHETA

1899-1921

Visconde de Calçada Wilbraham Brothers Ledo e Vinhático[A. Calheta] Frsancisco Luís Pereira e João Andrade, Juliana Lopes Jardim[1901] Lombada[S.Martinho] FUNCHAL Manuel Rodrigues de Jesus Ribeiro Seco FUNCHAL Aluísio César Betencourt Vinhático CALHETA Francisco Luís Pires e João Andrade Salto do Cavalo[S. Martinho] FUNCHAL Pedro Cunha Pires Vila CALHETA Vicente Lopes Lombo [E. da Calheta] CALHETA Luís Agostinho Henriques S. Martinho FUNCHAL José Júlio Lemos Açougue Velho[S. Jorge] SANTANA João Francisco Jardim Tranquada[A. S. Jorge] SANTANA António Joaquim França Barranco[S. Jorge]] SANTANA Luzia Augusta, viúva Alagoa(A. S. Jorge) SANTANA Francisco José Brito Figueiroa Travessa da Malta FUNCHAL José Júlio de Lemos Quinta[S. Vicente] S. VICENTE Daniel Brazão Machado Ribeira do Porco S. VICENTE Francisco António Abreu Cardoso Calhau[S. Jorge] SANTANA Francisco de Cunha Faial SANTANA Leocácia Maria Menezes/Dr. João Caetano de Menezes Terreiros[Faial] SANTANA Albino Rodrigues Sousa Passo[Madalena do Mar] PONTA DE SOL António da Silva Gaspar Portinho[Jardim do Mar] CALHETA Francisco João de Vasconcelos Palmeira[C. Lobos] CÂMARA DE LOBOS João Gonçalves Henriques Arco da Calheta CALHETA Juliana Lopes Jardim Porto da Cruz MACHICO Dr. João Baptista Leal Vila CALHETA Lopes & Duarte Heras[E. Calheta] CALHETA Tibúrcio Justino Henriques Arco da Calheta CALHETA D. Juliana Lopes Jardim Pedra Funda[Ponta Delgada] S. VICENTE João Fidélio Canha R. Conde Canavial FUNCHAL Conde de Canavial S. Fernando SANTA CRUZ Joaquim José de Gouveia Porto Novo SANTA CRUZ Constatino José Lobo Igreja(Paul do Mar) CALHETA José Gomes Henriques d’Araujo Armazéns[.A.S. Jorge] SANTANA José Oliveira Jardim júnior Lombo das Adegas[Livramento] PONTA DE SOL Francisco Silva Gaspar Rua da Carreira[Vila ] CÂMARA DE LOBOS Manuel Justino Henriques vila CALHETA António Roiz Brás Ribeira Brava João Romão Teixeira Anjos[Canhas] PONTA DE SOL José da Silva Gaspar

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

VESTÍGIOS DE ENGENHOS DOS SÉCULOS XIX E XX LOCAL FUNCHAL FUNCHAL

Proprietário W .H. Hinton Pedro Pires

Fundação 1845 1867

RIBEIRA BRAVA RIBEIRA BRAVA PONTA DE SOL CALHETA CALHETA CALHETA CALHETA CALHETA S. VICENTE S. VICENTE S. VICENTE SANTANA MACHICO MACHICO MACHICO MACHICO

José Maria Barreto e Co Valério Roiz da Cova e José da Silva Francisco Silva Gaspar Juliana Lopes Jardim António Roiz Brás conde de Carvalhal Diogo de Ornelas Frazão Francisco João de Vasconcelos Conde de Carvalhal Cândido Lusitano da França Andrade Francisco António Abreu Cardoso Francisco de Cunha Dr. João Caetano de Menezes João e Valentim Leal João Escórcio Câmara Manuel António Jardim

1907 1901 1908 1858 1857 1900 1858 1861 1899 1899 1899 1858 1858 1858

Obs. Desactivado em 1986. Estrada Monumental, actuais instalações da Casa de Vinho Barbeitos Actuais instalações do Museu Etnográfico Tábua Livramento Arco da Calheta vila da Calheta Paul do Mar Serra de Água Jardim do Mar Ponta Delgada Ponta Delgada Ribeira do Porco S. Jorge Faial Casas Próximas(Porto da Cruz), Estacada(vila de Machico), Moinhos (vila de Machico),

Vestígios de engenho. Machico

Com o encerramento do engenho do Hinton em 1985 ficaram em funcionamento apenas 3 engenhos (Ribeiro Seco, Porto da Cruz e Calheta) que apenas produziam aguardente e mel. Na vila da Calheta existiram dois engenhos, mas hoje funciona apenas um, restando do outro apenas para da fornalha e chaminé do engenho fundado em 1908 por António Roiz Brás. O actual engenho em funcionamento existia já em 1901 e era pertença da firma Lopes & Duarte. Nesta data o engenho movido a água foi adaptado para funcionar a vapor e água. Produz aguardente e mel. No Funchal, depois do encerramento do engenho do Hinton em 1986, resta apenas o do Ribeiro Seco, fundado em 1883 por Aluísio César Betencourt. Só produz mel. Nas Casas Próximas no Porto da Cruz o primeiro engenho foi montado em 1858 por João Leal e Valentim Leal para o fabrico de aguardente e mel. O segundo surgiu em 1927, na fase de encerramento da maioria dos engenhos do norte, ficando este, sob a designação de Companhia dos Engenhos do Norte Ltda, com o rateio da cana de quatro engenhos. Produz aguardente.

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Engenho. Gravura de 1835

AS SERRAS DE ÁGUA O aproveitamento económico da ilha implicava a disponibilidade de instrumentos e técnicas capazes de fazerem com que da terra brotassem as culturas com valor económico. Foram preciosos auxiliares do homem, aperfeiçoados de acordo com as necessidades, a disponibilidade de materiais, engenho e arte. A agricultura implicava um conhecimento tecnológico adequado às diversas tarefas de lavrar, plantar a terra, canalizar a água e transporte dos produtos dela extraídas. A água assumiu uma função fundamental, pois é a fonte da vida e da História. Aproxima povos e civilizações. Faz medrar as culturas verdejantes nos campos e substitui-se ao homem em algumas das árduas tarefas. O protagonismo na História material foi já destacado, orientando as formas de vida e desenvolvimento económico das populações que dela se podem servir. A água foi e continua a ser um elemento vital ao progresso e bem-estar do Homem. Nos séculos XV a XVII a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas A maior concentração populacional e aposta agrícola assim o definiram. Os cronistas são disso testemunho. O caso mais evidente encontra-se em Gaspar Frutuoso. Segundo o testemunho, podemos afirmar que a existência

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ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores em todo o espaço da ilha: “e não viam mais que correntes, ribeiras, fontes e regatos, que, por entre ele, vinham com grande frescura deferir ao mar”. O mesmo, depois da descrição exaustiva da ilha, conclui: “toda ela se rega com grande abundância das águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estão humedecendo e engrossando e mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa.” As ribeiras exerceram um papel fundamental no processo de ocupação da ilha, pois por elas entraram os primeiros europeus que reconheceram a ilha e assentaram os primeiros núcleos de povoamento. Foi no seu leito e margens que se jogou a História. A sua bravura, tão pouco atemorizou os colonos, como sucedeu com à fixação no local da Ribeira Brava. A ilha foi assolada ao longo da história por inúmeras aluviões. No norte mercê das encostas íngremes, da grande quantidade de água, a época invernosa foi um quebra-cabeças para os moradores. A realidade repetiu-se ao longo do tempo e quase todos os anos é necessário, após o Inverno, reparar os caminhos, refazer as pontes e levantar as quebradas. Os séculos XIX e XX foram marcados pelas aluviões. A primeira metade do século dezanove foi o momento de maior calamidade, com três aluviões de efeitos catastróficos em toda a ilha: 1803, 1815 e 1842. O primeiro assume uma posição cimeira no conjunto de calamidades que fustigaram a ilha, tendo em conta o número de mortos, as perdas de bens materiais e a destruição de casas. Os efeitos nas lojas comerciais foram iguais, sendo de destacar a perda de seis mil pipas de vinho. No século XX são notórios os efeitos das aluviões de que se destacam em 1956 em Santa Cruz e Machico, em 1970 na Ribeira Brava e Serra de Água e em 1981 no Funchal. O de mais recente e triste memória ocorreu em 1993 no Funchal. A intervenção no sentido de amansar e controlar o curso das ribeiras só teve um plano definido no século XIX. Em 1804 chegou à ilha o Engenheiro Reynaldo Oudinot com o objectivo de proceder ao levantamento das ribeiras da cidade e de apresentar um projecto para o encanamento, sendo seguido por Paulo Dias de Almeida. A par dos engenhos temos as serras de água, que não são criação madeirense, pois a tecnologia foi importada do reino47 e, surgem, por vezes, ligadas aos engenhos de açúcar48. É o caso de Diogo de Teive em 145449 com ambos engenhos na Ribeira de Santa Luzia, então conhecida como ribeira da serra de água e em 1492 de Bartolomeu de Paiva na Ribeira de S. Bartolomeu50. Tiveram um grande incremento no início da ocupação da ilha, fruto da exploração das madeiras, para exportação ao reino, uso nos engenhos e construção de habitações. Foi, aliás, a primeira riqueza com que os primeiros colonos se depararam. Nas cartas de doação das capitanias é considerada uma fonte

Serra de água. S. Jorge

47. Cf. Benjamim PEREIRA, Tecnologia Tradicional Portuguesa. Sistemas de serração de madeiras, Lisboa, 1990, pp. 57-142. 48. Vide Jordão de FREITAS, Serras de Água nas ilhas da Madeira e Porto Santo, Lisboa, 1937, J. A. RIBEIRO,”As Serras de Água na capitania de Machico, séculos XV-XVIII”, Actas C.I.H.M., 1989, 115-135. 49. ANTT, Convento de Santa Clara, maço 1, n1 3. 50. J. A. Silva MARQUES, Descobrimentos Portugueses, II. p. 372.

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de receita para o capitão, que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e senhorio a dízima. As serras de água existiram em toda a ilha, em especial no recinto da capitania de Machico, que detinha uma importante mancha florestal. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, refere aí cinco em laboração, de que descreve a do Faial: "Está nesta freguesia uma serra de água, que foi um grande e proveitoso engenho, em que dois ou três homens chegam por engenho um pau de vinte palmos de comprido e dois e três de largo à serra, e, por arte, um só homem, que é o serrador, com um só pé (como faz o oleiro, quando faz a louça) leva o pau avante e a serra sempre vai cortando e, como chega ao cabo com o fio, com o mesmo pé dá para trás, fazendo tornar o pau todo, e torna a serra a tomar outro fio; de maneira que quem vir esta obra julgará por mui grande e necessária invenção a serra de água naquela ilha, onde não era possível serrarem-se tão grandes paus, como nela há, com serra de braços, nem tanta soma de tavoado, como se faz para caixas de açúcar, que se fazem muitas, e para outras do mais serviço, que vem ser cada ano muito grande soma."51 Foi, na realidade, no Norte da ilha que as mesmas persistiram nestes cinco séculos. Ainda hoje, em S. Jorge, são visíveis vestígios da indústria, onde ainda funciona uma52. Para além disso a sua memória perpetua-se na designação atribuída a uma freguesia e algumas localidades. A primeira situa-se no concelho da Ribeira Brava, enquanto as segundas são na Calheta, Seixal, S. Vicente.

Azenhas. Postais antigos

O ENGENHO Na moenda e o consequente processo de transformação da garapa em açúcar, mel, álcool ou aguardente projectaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das inovações técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências. A madeira e o metal foram a matéria-prima que deram forma a capacidade inventiva dos senhores de canaviais e engenhos. Na moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira, o primeiro particular que temos conhecimento foi o de Diogo de Teive em 1452. E este terá sido o primeiro engenho particular que se veio juntar ao lagar do infante, onde se lavrava, obrigatoriamente os açúcares do quarto53. O infante, donatário da ilha, detinha a o exclusivo das infra-estruturas e quem quisessem segui-lo deveria ter autorização. O documento espelha apenas a situação. A estrutura resultou apenas nas áreas onde era possível dispor da força motriz da água fez-se uso da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras. O infante D. Fernando em 1468 refere as estruturas diferenciando os 51.Ob. cit., pp.130-131. 52. Confronte-se João Adriano RIBEIRO, art. cit., pp.120, 131; Benjamim PEREIRA, OB.CIT., PP. 132-142. Esta serra está situada no Sítio do Pé do Pico(S. Jorge) e pertence a Silvano Gonçalves da Silva. 53 . AHM, vol. XV (Funchal, 1972), nº. 7, pp.26-29, 29 de Abril de 1466.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Os engenhos Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, pöem-nas debaixo de uma mó movida a água, a qual, triturando e esmagando as canas, extrai-lhe todo o suco. Aqui há cinco vasos postos por ordem, para cada um dos quais o suco saído das canas passa um certo tempo em ebulição, depois, passando para os outros casos, com fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de modo que chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer. A espuma que se forma ao cozer o açúcar, deita-se em barricas, excepto a que sai da primeira cozedura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito semelhante ao mel. (Giulio Landi,”Descrição da ilha da Madeira”, publ. António Aragão, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, pp.85-86) 54

engenhos de água, alçapremas e trapiches de besta . Até à generalização dos engenhos de cilindros horizontais no século XVII, a infra-estrutura para espremer as canas era composta do engenho ou trapiche e da alçaprema. 55 Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos do engenho . Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um com o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: "Os lugares onde com enorme actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos, põem-nos debaixo de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes todo o 56 suco" . Mais já no século estes engenhos funcionavam na ilha. Em 1477 temos um contrato com57 Álvaro Lopes para a construção de um engenho de mó, movido a água nas terras da Ponta de Sol. O sistema era muito antigo e foi usado para triturar outros produtos, como o cereal e arroz na China, azeite e pastel na Europa mediterrânica. No Mediterrâneo a primeira notícia do uso na cana do açúcar surge na Sicília em 1175, mas era anterior pois temos referências na literatura árabe do século VIII. Todavia, na China está documentado desde o ano 400. A mó conviveu lado a lado com o pilão e almofariz. O uso para espremer a cana está documentado na Índia, Pérsia e Palestina. A mais antiga descrição é de 1597, mas sabemos da utilização na índia desde 300 AC. O Padre 58 Baltazar Barreira refere em 1606 que a cana na ilha de Santiago era pisada com um pilão . 54 Ibidem, nº.16, pp.44-45 55.Sobre a história dp engenho e a discussão das inovações tecnológicas o estudo mais importante foi publicado por John e Cristian DANIELS, The origin of rhe sugar cane roller mill, Technology and Culture, vol. 29, nº. 3, 1988, pp.493_535. 56 . António ARAGÃO, A Madeira vista por estrangeiros, Funchal, 1981, p.87. 57 . ANTT, Convento de Santa Clara, nº.13, fl.1, 4 de Julho. Cf. João José de Sousa, No Ciclo do Açúcar, Islenha, 5, 1989 58 .A. Carreira, Estudos de Economia Caboverdiana, Lisboa, 1982

Azulejo do Museu Republicano. Itu(Brasil)

Engenho de mó. Theodore de Bry, 1565;

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Na ilha de São Miguel a cultura da cana está inegavelmente ligada aos madeirenses. A eles se deveu o transplante das socas e da tecnologia59. Gaspar Frutuoso conta que em Ponta Delgada Bastião Pires contratou o madeirense Fernão Vaz, “o qual deu ordem como se fez um engenho de besta, como de pastel, mas o assento da mó diferente, porque era de uma pedra grande e mui cavada, a maneira de gamela e furada pelo fundo, por onde o sumo das canas, que dentro nela se moíam, ia por debaixo do chão, por uma calle ou bica, sair fora do andaimo da besta que moía, e assim fez fazer também um fuso e caixa para espremer o bagaço, e uma fornalha com uma caldeira em cima, a maior que então se achou, onde cozia aquela calda, e cozida a deitava em uma tacha e ao outro dia fazia o mesmo, até que fez cópia de melado para se poder fazer assuqre.(...) com sua pouca ciência e menos experiência, saiu aquele assuqre assim tão bom e tão fino.”60 Cultura e fabrico do acúcar. Gravuras séc. XIX

A TECNOLOGIA DOS ENGENHOS Uma das questões que mais tem gerado polémica prende-se com a evolução da tecnologia usada para espremer a cana. O aparecimento e generalização dos cilindros horizontais e depois verticais são um processo controverso que tem ocupado os especialistas nos últimos anos sem se conseguir alcançar qualquer consenso. Os cilindros tinham diversos usos. Na China, desde o século VI, que sabemos do uso do engenho de dois cilindros horizontais para descaroçar algodão. Já na Europa foi dado outro uso, como a laminação de metais, tal como se poderá ver nos desenhos de Leonardo da Vinci61. São várias as hipóteses para a origem do sistema. Dois textos clássicos para o estudo do açúcar - F. O. Von Lippmann62 e Noel Derr63- deram o mote atribuindo a descoberta a Pietro Speciale, prefeito da Sicília, um importante proprietário siciliano que fez testamento em 147464. Esta tese foi rebatida por Moacyr Soares Pereira (1955) e Gil Methodio de Maranhão (1953) que demonstram a falta de fundamento da tese siciliana. Alguma Historiografia castelhana dá a invenção a Gonzalo de Veloza, vizinho da ilha de La Palma casado com a jovem madeirense, Luísa Bettencourt que em 1518 é referido como “haber inventado un ingenio para azúcar”65 na ilha de S. Domingos66. Todavia

Engenho de mó, Theodore de Bry, 1565

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59 Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.209-212 60 . Gaspar Frutuoso, Livro Quarto das Saudades da Terra, vol.II, Ponta Delgada, 1981, p.211. 61. Cf. DANIELS, John e Christian Daniels, the origin of the sugar cane Roller mill, Tecnology and Culture; 1988, 29.3, pp. 493535, SABBAN, François, l’industrie sucrière, le moulin a sucre et les relations Sino-Portugaises aux XVIe-XVIIIe siècles, Annales, 49.4 (1994), 817-861, Idem, Continuité et rupture Histoire des Techniques sucrières en Chine Ancienne, Actas del Tercer Seminario Internacional. Producción y Comercio del Azúcar de caña en Época Preindustrial, Granada, 1993, 247-265, J. H. Galloway, The Technological Revolution in the Sugar Cane Industry During the Seventeenth century, ibidem, pp.211-228. 62 . História do Açúcar, 2 vols., Rio de Janeiro, 1952. 63 . The History of Sugar, 2 vols. Londres, 1940_50. 64. Cf. Carmelo Trasselli, Storia dello zuchero siciliano, Caltamissetta-Roma, 1982. A tese foi defendida com base nos textos Pietro Panzano(opusculum de autore, primordiis et progressu felicis urbis Panonri , 1471) e Gaspar Vaccaro Panebianco(Sul richiamo della canna zucherina in sicilia e sulle ragioni che lo exigono, Lipomi, 1826), que conforme a publicação por Moacyr Soares Pereira(1955) dos textos é evidente a falta de fundamento. 65 . RIO MORENO, Justo L. del, Los inicios de la agricultura europea en el Nuevo Mundo, (1492-1542), Sevilla, 1991, p.306

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nos últimos anos os estudos sobre a História do Açúcar no oriente, nomeadamente na Índia e China, reforçaram a ideia de que o sistema de moagem da cana por cilindros tem aqui a origem67. A ideia dominante é de que o engenho de cilindros horizontais é originário da Índia, tendo chegado à China em 1433. A passagem para o sistema vertical ocorreu já na China no século XVI. Chegaram à América em 1600, altura em que temos a primeira referência no México, por mãos dos jesuítas68. David Ferreira Gouveia69 apresenta a evolução como resultado do invento do madeirense Diogo de Teive, patenteado em 1452. Outros apontam para a origem chinesa. O engenho de três eixos surge mais tarde no Brasil sendo considerado também uma invenção portuguesa, inegavelmente ligada aos madeirenses aí radicados. A primeira referência aos eixos para o engenho data já do último quartel do século XV. Entretanto em 1477 Álvaro Lopes tem autorização do capitão do Funchal para que "faça hum enjenho de fazer açúcar que seja de moo ou d'alçapremas, ou doutra arte...o qual enjenho será d'augoa com sua casa e casa de caldeiras..."70. Depois, em 1485, D. Manuel isentava da dízima "quaesquer teyxos que forem necesarios para eyxos esteos cassas latadas dos enjenhos e tapumes..."71. Em 1505 Valentim Fernandes refere que o pau branco era usado no fabrico de "eixos e prafusos pera os enjenhos de açúcar"72. A isto associa-se o inventário do engenho de António Teixeira, no Porto da Cruz em que são referidos como aprestos: rodas eixos, prensas, fornalhas espeques (...)73. Também noutro documento de 1546 refere-se a existência deste tipo de engenho nas fazendas de Manuel d’Amil em Câmara de Lobos, foreiras ao convento de Santa Clara, pois o mesmo declara que “aquelle anno mandou fazer a roda nova por ser velha a que estava e não aproveitar para servir e os eixos servirem hum anno...”74 Por fim tenha-se em conta que os primeiros engenhos construídos no Brasil, mais propriamente em S. Vicente, são de eixos e que estes foram feitos por destros carpinteiros madeirenses que acompanharam o Governador Mem de Sá75. A tudo isto deverá juntar-se o facto de que foi a partir da Madeira que se generalizou o consumo do açúcar, sendo necessário uma produção em larga escala. A pressão do mercado europeu conduziu a uma rápida afirmação da cultura na segunda metade do século XVI, situação que só seria possível de alimentar com o recurso a inovações tecnológicas capazes de atenderem a tais solicitações. A evolução para o sistema de cilindros não

Azulejo. Museu Republicano de Itu.

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66. Fernando ORTIZ, Los Primitivos Técnicos Azucareros de America, La Habana, 1955, pp. 13_18. Confronte-se Moacir Soares PEREIRA, A origem dos cilindros na moagem da cana (investigação em Palermo), Rio de Janeiro, 1955. 67. Cf. Estudos de J. Daniels e S. Mazumbar que seguem Moacyr Soares Pereira e Gil Methodio de Maranhão. 68. C. Daniels, ob.cit. 69. GOUVEIA, David Ferreira, O Açúcar da Madeira. A manufactura açucareira madeirense (1420-1550), in Atlântico, IV, 1985, 260-272 70. ANTT, Convento de Santa Clara, maço 13, nº 1, 4 Julho 1477. 71. AHM, Vol. XV, p. 150, Apontamentos de D. Manuel de 22 de Fevereiro. 72. António BAIÃO, O manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, p. 112. 73. A. ARTUR, “Apontamentos históricos de Machico”, in DAHM, nº 1, pp. 8_9. A dúvida está na data a atribuir ao inventário, que está anexo ao seu testamento de 7 de Setembro de 1535, ou de 13 de Setembro de 1495, data do testamento de Isabel de Vasconcelos sua esposa. 74. ANTT, convento de Santa Clara, nº.12, 21 de Janeiro de 1546. 75. Eddi Stols, um dos primeiros documentos sobre o engenho Shetz, em São Vicente, Revista de História,1968.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

reverte no melhor aproveitamento do suco da cana, mas sim vantagens acrescentadas para a rapidez no processo de esmagamento. A situação que se vive na Madeira a partir de meados do século XV é de incremento da cultura que se alia a inovações tecnológicas, que certamente o engenho de Diogo de Teive foi o primeiro exemplo. Se as referências forem indício dos engenhos de cilindros quer dizer que é na Madeira que encontrámos a mais antiga referência desta tecnologia no espaço atlântico e será a partir da Madeira que a mesma se difundiu. Os madeirenses estiveram ligados à promoção da cultura e construção dos primeiros engenhos açucareiros nas ilhas Canárias, dos Açores, S. Tomé, e Brasil, chegando mesmo ao norte de África, situação que foi interditada pela coroa em 153776. Por outro lado a origem não poderá associar-se a uma influência directa da Índia ou da China, onde estiveram muitos madeirenses, uma vez que as primeiras referências são anteriores à primeira viagem de Vasco da Gama. Perante tantas evidências não é possível afirmar com toda a certeza que a expansão dos engenhos de cilindros se fez a partir do Funchal. Teremos de continuar no domínio das hipóteses, pois faltam-nos descrições e gravuras capazes de o testemunhar. Mas se olharmos ao que sucede com as demais áreas tudo se constrói no domínio da hipótese e dificilmente teremos conclusões plausíveis sobre os primórdios da evolução do sistema de cilindros na moagem da cana sacarina. Os estudos sobre o açúcar nas Canárias não dão grande atenção à tecnologia do engenho. Assim Guillermo Camacho y Perez Galdós77 descreve o engenho como sendo de três cilindros. O autor baseia-se no documento de 1511 que dá conta de um contrato entre Andrés Baéz e os portugueses Fernando Alonso e Juan González para lhe cortarem 3 eixos sendo um grande e dois pequenos, para uma roda com os aparelhos. Vinte anos depois temos o inventário do engenho de Cristóbal de Garcia em Telde, onde são referidos a roda e eixos. Todavia J. Perez Vidal78 é da opinião que o primeiro sistema usado nas Canárias era semelhante ao de fabrico do azeite, pois o moinho de “rodilos” é para ele uma invenção renascentista. A palavra trapiche entrou depois no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de engenhos de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal, como em Arucas, existe uma localidade com este nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. Nas Canárias as “datas de terras” diferenciavam os engenhos de água dos de besta. Na Madeira as condições geohidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores. Aliás, aqui estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto a primeira desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho. Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significou que a existência de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de um enge-

Engenho de duas moendas

Engenho de dupla moenda. Gravura de Romeyn de Hodges (1645-1798)

76 . ARM., RGCMF, t. I, fl. 372v, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XIX(1990), pp.79-80. 77 . El Cultivo de la Caña de Azúcar y la Industria Azucarera en Gran Canaria (1510-1535), Anuário de Estudios Atlânticos, nº.7, Madrid, 1961. 78. La Cultura de la Caña de Azucar en el Levante Español, Madrid, 1973.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O ENGENHO E A ÉPOCA DA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Engenho em Recife. George Marcgraf.1643

nho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos serviços de outrem. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais.

OS ENGENHOS DO SÉC. XIX O fabrico do assucar e da aguardente resuscitaram quasi immediatameate á destruição dos vinhedos de 1846 para 1852. Começou primeiro o da aguardente, em 1847, por uma fábrica montada em Câmara de Lobos; seguiu-se em 1853, outra na Ribeira Brava; outra em 1854, em Câmara de Lobos; outra, nos Canhas, em 1855; em 1857, duas, uma no Arco da Calheta, outra em Câmara de Lobos; nove, no ano de 1858, a saber: duas em Machico, duas no Porto da Cruz, uma em S. Jorge, uma em Ponta Delgada, uma no Paul do Mar, uma na Magdalena e uma em Câmara de Lobos; em 1859, duas, uma em S. Jorge, outra no Faial; em S. Vicente, uma no anno de 1860; por ultimo, em Ponta Delgada, no de 1861. Vieram depois as fábricas de assucar; a de Ferraz Irmãos, começada annos antes, a de William Hinton & Son, ambas no Funchal, e a de Ferreira Nogueira, em S. Martinho, tôdas em 1856; em 1858, a de Ornellas Frazão, em Santa Cruz; em 1859 a de Joaquim da Silva, no Funchal; desde então até 1866, a de Diogo Frazão, no Arco da Calheta, e a de Wilbraham, na Ponta do Sol; por ultimo a grande fabrica de são João, fazendo algumas das sete ultimas tambem aguardente. (Álvaro Rodrigues de Azevedo, “Anotações”, Saudades da Terra, Funchal, 1873)

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O aumento da cana para a moenda e a inexistência nos engenhos tradicionais levou à ruptura na laboração79. Perante isto colocou-se a necessidade de modernização do parque industrial, uma custosa que, por isso mesmo, teve algumas dificuldades em ser concretizada80. As iniciativas de modernização, como sucedeu com a Companhia Fabril do Açúcar (1868)81, foram o principal empenho dos industriais madeirenses82. Os séculos XIX e XX marcam o momento da grande inovação tecnológica dos engenhos e da forma de fabrico do açúcar. A revolução industrial terá sido provocada pela abolição da escravatura e pela crise que atingiu o mercado internacional do açúcar a partir de 1880. O uso de máquina a vapor teve lugar em Jamaica em 176883 mas foi só a partir de meados do século XIX que a mesma se generalizou. A inovação técnica é favorecida pela concentração das estruturas industriais, resultado de uma política governamental que tem na década de vinte da presente centúria a máxima expressão84. No Brasil deu origem aos chamados engenhos centrais, enquanto na Madeira foi o princípio da total afirmação do engenho Hinton. Durante o século XVIII e até princípios da centúria seguinte existiu apenas um engenho em funcionamento à Ribeira dos Socorridos85. A partir da década de cinquenta o panorama é distinto e a cana volta de novo a ocupar um lugar de destaque, ocupando 1/2 da superfície cultivada em 185086. Deste modo aumentou o número de engenhos, sendo referenciado em 185187 quatro fábricas de refinação de açúcar, quatro engenhos de moer cana88 e três fábricas de aguardente. Em Câmara de Lobos a cultura teve grande incremento uma vez que são referenciados três novos engenhos em 185489. A situação alastrou a toda a ilha e levou a promoção de novos engenhos ou à reactivação de

79. Em 1870 dizia João da Camara Leme(Discurso pronunciado na reunião eleitoral do partido progressista de vinte e cinco de Março, Funchal, 1870, p.13): “As fabricas que existem são de pequena laboração. D’aqui resulta que a canna, antes de ser reduzida a garapa, está muitas vezes, dias a fermentar nos armazens das fábricas, o que da logar a uma grande perda de assucar, torna laborioso o fabrico e influe para a má qualidade do producto”. 80. Quirino Jesus(A questão saccharina da Madeira, Funchal, 1910, p.56) refere um investimento superior a mil contos. 81. ARM, Governo Civil, nº.76, fl. 178.180, alvará de 1 de Abril de 1870 _ 82. Sobre a tecnologia veja-se A. BEAUDRIMONT, du sucre et de la sa fabrication, Paris, 1841; Conde de CANNAVIAL, Um privilégio industrial. Cartas as diversos jornaes, Funchal, 1883, pp.10-70; IDEM, Uma acção contra o sr. Hinton...., Funchal, 1884; Uma acção commercial em que são autores W. Hinton & Sons e reu Conde de Cannavial..., Funchal, 1898. 83. A. C. BARNES, The sugar cane, N. York, 1974. 84. Albert BILL e Adrian GRAVES (ed.) The world sugar industry in War and depression 1914-1940, London, 1988; R. W. BEACHEY, the Bristish West indies sugar industry in the late 19th century, Oxford, 1957; A. C. BARNES, ibidem; J. Carlyle SITTERSON, Sugar country. The cane sugar industry in the south 1753-1950, Kentuckey, 1953; Peter L. EISENBERG, the sugar industry in Pernambuco 1840-1910. Modernization without change, Berkeley, 1974; Joshua BERNARDT, The sugar industry and the federal government. A Thirty year record (1917-1947), Washington, 1948; Francis MAXWELL, Modern milling of sugar cane, London, 1932. 85. An historical sketch of the island of Madeira, London, 1819, p. 51; Rambles in Madeira, London, 1827, p. 364. 86. J. A. MASON, A treatise on the climate and meteorology of Madeira, London, 1850, p. 244. 87. João José Abreu de SOUSA, “A patuleia na Madeira 1847” in Islenha, 14(1994), 7. 88. Edward Vermon HARCOURT, A sketch of Madeira, London, 1851. Refere quatro engenhos movidos por bois. Robert WHITE, Madeira its climate and scenery, London, 1851, refere três engenhos: Praia Formosa, S. Martinho e Funchal. 89 . J. A. RIIBEIRO “A indústria de cana de açúcar em Câmara de Lobos nos séculos XIX e XX”, Girão, 8(1992), 361-365.

Moenda de dois cilindros. Sistema Bekker

Máquina de vapor Horizontal. Sistema Cail. L. Beaudet. 1894

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antigos, uma vez que em 1856 temos já 80 e 10 fábricas de destilar aguardente90. Aqui há que distinguir as fábricas de moer cana e os engenhos para fabrico de açúcar e destilação de aguardente. Os engenhos de moer apresentavam duas rodas na disposição horizontal, enquanto os movidos por bois tinham estas na posição vertical91. De acordo com D. João da Câmara Leme o avanço da cultura na ilha só seria possível com "a fundação de fábricas com os apparelhos modernos e aperfeiçoados"92. Enquadrava-se no espírito empreendedor a Companhia Fabril de Açúcar Madeirense criada em 1866 e inaugurada em 1873, que se saldou num verdadeiro fracasso e motivo de acesa polémica93. Por outro lado é de salientar as iniciativas tecnológicas do próprio D. João da Câmara Leme que em 1875 apresentou o novo invento de aproveitamento do açúcar que fica no bagaço nomeadamente usado por W. Hinton94. As inovações introduzidas pelo último ocorreram após a licença de 187295 para a construção de uma fábrica de extracção e cristalização de açúcar. A política de proteccionismo e favorecimento do engenho do Torreão afastou todos os demais desta indústria, levando a maioria ao encerramento. Os investimentos eram elevados, mas só assim era possível singrar. Segundo J. Higino Ferraz “não se deve olhar a grandes economias de montagem em aparelhos aperfeiçoados, porque esses trazem sempre um produto mais perfeito, trabalho mais fácil e económico em pessoal e combustivel, e mais quando estes dois ultimos estam actualmente bastante caros.”96 Em 1934 um decreto estabeleceu claramente a situação: proibiu-se a construção de mais engenhos até 1953 e os demais existentes não podiam laborar açúcar, actividade que era exclusivo do engenho do Torreão, apenas foram autorizados os melhoramentos. Pior foi o que sucedeu em 1954 com o decreto que determina a concentração de todos os fabricantes de aguardente em apenas três fábricas. Os engenhos do norte ficaram reunidos na companhia dos engenhos do norte com sede no Porto da Cruz97.

Sistemas de moenda

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90 . Robert WHITE, Madeira its climate and scenery, Edimburgh, 1857, 139-140. 91 .Veja-se a Descrição deste maquinismo em Informação Estatística Industrial. Distritos do Funchal, Lisboa, 1863. 92 . Discurso pronunciado na reunião eleitoral do partido progressista de vinte e cinco de Março, Funchal, 1870. 93. Conde de CANNAVIAL, A Companhia fabril do assucar Madeirense, Funchal, 1879; João de S. e V. Moniz de Bettencourt, Companhia Fabril de Açúcar madeirense(...), Funchal 1871; Fabrício, João Augusto d’Ornellas e a nova fábrica de assucar, Funchal, 1871; João Augusto d’ORNELLAS, A Companhia fabril do assucar madeirense e os seus credores, Funchal, 1979. 94. Sr. W. Hinton fabricante de assucar e aguardente na cidade do Funchal..., Funchal, 1884; Acção commercial em que são actores William Hinton & Sons e eu Conde de Cannavial..., Funchal 1898; Visconde CANNAVIAL, Um privilégio industrial. Cartas a diversos jornaes, Funchal, 1883. A descrição do processo seguido no Torreão é feita por Eduardo PEREIRA(Ilhas de Zargo, vol. I, 541-542). Em 1926 o Marquês de Jácome CORREIA(A ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p.98) refere o seguinte: A fábrica do torreão, de Harry Hinton, goza, com justificada razão, a fama de ser uma fabrica modelar: e são complexos mechanismos, a organização fabril e a importancia da producção que lhe dão jus à nomeada.” 95 . ARM. Governo Civil, nº.77, fls. 47vº-48vº, alvará de 27 de Novembro de 1872 96. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas1917-19, fls.99-100, 8 de Janeiro de 1919 97 . Esta reuniu os engenhos de S. Roque do Faial, Faial, Arco de S. Jorge e S. Jorge, Ponta Delgada, Porto da Cruz e Boaventura.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O FABRICO DE AÇUCAR, ALCOOL E AGUARDENTE O processo de fabrico do açúcar não se manteve estagnado, evoluindo de acordo com as circunstâncias das inovações tecnológicas, que surgiram para dar resposta às necessidades do mercado. No século XV o processo era simples e moroso evoluindo depois de acordo com a solicitação do mercado. No primitivo engenho surgem definidos três espaços com funções distintas: casa da moenda, das caldeiras e da purga. Nalguns casos a última operação tinha lugar na casa dos proprietários da cana, onde dispunham de lojas com estendal. É necessário ter em conta que nem todos os proprietários de canaviais eram detentores de engenho pelo que a maioria tinha de moer as suas canas. No caso em que se utilizava a mó olearia, o bagaço depois de triturado deveria passar por um prensa para retirar o suco que ainda permanência. Já com os cilindros bastava aumentar o número de passagens do bagaço para obter o maior aproveitamento. O caldo extraído escorria directamente para as caldeiras ou então umas tinas de barro donde esperava a vez para fermentar. Então procedia-se à limpeza por meio de filtros de pano e o repouso para poder-se decantar todas as impurezas. Daqui passava-se à casa das caldeiras para a cozedura. Aí tínhamos 3 ou seis caldeiras, com fornalha isolada ou agrupadas donde se cozia o caldo. Na primeira caldeira ou tacha de cobre procedia-se ao aquecimento procedia-se à depuração e purificação do caldo, usando-se para o efeito cinzas e ervas. As cinzas e a cal actuavam no sentido de neutralizar o ácido da cana. Com a escumadeira procedia-se à retirada das escumas, depois usadas na alimentação do gado. Na segunda tacha o calor da fornalha procede à concentração até atingir cerca de metade do volume e uma consistência igual ao do xarope, que ia passando por tachas mais pequenas e sob efeito de menor calor, até começar a cristalizar, era o processo de refinação. Daqui era vazado para as formas, passando depois à fase seguinte da purga. Na Madeira a casa da purga era uma estrutura separada, nalguns casos dá a entender que era um espaço único, separado dos demais, podendo existirem sem as demais98. Aqui tínhamos diversos andaimes perfurados onde se colocavam as formas cheias. Aqui acontecia a evaporação e depuração. Para o efeito coloca-se barro molhado na parte superior, donde a água que vertia ia limpando o pouco mel existente. As formas tinham um furo na parte inferior por onde escorria o mel, pelo que debaixo dos andaimes colocavam-se umas calhas que o conduziam a uns recipientes de barro, para ser de novo cozido99. Ao fim de trinta dias o açúcar estava pronto, procedendo-se à retirada das formas, sendo depois separado e batido num estendal para secar. De acordo com o grau de pureza tínhamos açúcar branco e mascavado, correspondendo o primeiro à parte superior da forma e o outro à do fundo. E daqui para o embalamento em caixas de madeira donde seguia para os diversos destinos. Dos meles sujeitos a uma segunda cozedura teremos rescumas e quanto ao pão, na parte superior, os meles de panela e no fundo os meles mascavados. O que escorria na fase da purga era o remel. Sistemas de moenda

98. David Ferreira, O Açúcar da Madeira, Atlântico, 4, 1985, p.261, 269 (nota 11) 99. A dimensão de cada engenho dependia do volume da cana, podendo acontecer no mesmo espaço situações de dupla moenda e fornalhas

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Casa das prensas ou da moenda

Casa das Caldeiras ou de cozer

Casa de purgar

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Encaixar expedição

Engenho.1763

Diderot e Alembert, Recueil de Planches, sur les sciences, les arts libéraux, et les arts méchaniques…Paris, 1762

A partir do século XVI as operações em torno do fabrico do açúcar entram num processo rápido de evolução que nunca mais parará. A procura cada vez maior do produto, a concorrência das diversas áreas, obrigavam à busca de soluções capazes de acelerar o processo e torna-lo mais económico. O engenho ganhou cada vez mais importância no processo e durante muito tempo todo o investimento esteve virado para ele. Em finais do século XVIII a concorrência do açúcar de beterraba da Europa acelerou o processo que levou a uma rotura com a ancestral tecnologia. O engenho torna-se no centro da actividade e passa a fábrica. O processo de fabrico do açúcar passa a ser feito em série em amplos espaços. A máquina a vapor, a indústria metalúrgica e a química têm uma palavra a dizer. A cana, depois de cortada nos campos, é colocada em molhos feitos com arcos que são transportados aos engenhos. Hoje o processo é feito por camiões, mas no passado era ao ombro do homem até ao engenho mais próximo. A cana que vinha a moer no engenho do Hinton era transportada por barco até ao calhau e daí conduzida por um fio que corria na Ribeira de Santa Luzia até ao engenho. No engenho procedia-se ao descarregamento e pesagem através de básculas, estando a cana pronta para entrar no processo. A extracção da garapa faz-se em cilindros de metal que foram evoluindo para tambores que facilitavam a retirada do suco. A partir daqui iniciava-se um processo distinto consoante aquilo que se pretendia produzir fosse aguardente, álcool ou açúcar. O processo de fabrico de aguardente era relativamente simples, uma vez que implicava apenas o uso de um alambique. O caldo da cana ficava a fermentar até 10 dias, passando depois para as caldeiras onde era submetido ao calor e a condensação, nas serpentinas arrefecidas com água, do vapor exalado resultava a aguardente. Nalgumas situações o processo de fermentação é melhorado com a adição de enxofre, técnica usada em 1863 pela fábrica de Ferraz & Irmãos100. Na mesma data usava-se os sistemas de destilação intermitente, continua e Celier Blumenthal, cuja construção tanto podia ser portuguesa (Colares), francesa (Derosne) ou inglesa. A facilidade parece ter melhorado com o tempo, pois segundo J. Higino Ferraz “apenas requer a montagem de um pequeno retificador, e o resto corre como dantes, isto é, transformar a cana em aguardente e depois retificar essa aguardente para álcool (em 40º cartier). O álcool é que não sei como ficará na sua pureza.”101. 100. F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863, pp.30-31 101. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas1927-29, 7 de Novembro de 1927

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No caso do Torreão o processo de destilação era separado da rectificação, o que dava maior qualidade ao produto final102. O processo de fabrico de açúcar era muito mais complicado. O caldo, antes de entrar no processo de cozedura, passa por um processo e limpeza, através da filtração com a força centrípeta, e clarificação através da cozedura em grandes tanques, conhecidos como clarificadores. Durante o processo adicionava-se cal para que saíssem as impurezas solúveis. O produto, após uma passagem por novo processo de filtração, está pronto para ser submetido ao processo de evaporação, em evaporadores, que conduzem à concentração e caramelização dos açúcares. Até meados do século XIX a operação que se fazia em caldeiras abertas passou a ocorrer em caldeiras de vácuo. De acordo com inquérito industrial de 1863103, a Madeira usava os dois sistemas. Em 1871 a Companhia Fabril do Assucar Madeirense estabeleceu um aparelho de triplo efeito, com uma economia de combustível104. Por fim temos a passagem pela centrifugadora onde se obtém a cristalização do açúcar. Nalgumas estruturas, como era o caso do engenho da Ponte do Deão, a ausência das máquinas centrífugas dava lugar a um processo original: a extracção do melaço é feita colocando convenientemente as barricas em que se tem lançado o assucar que estava nos crystalilisadores, sobre pranchões que assentam nas margens das paredes de um tanque de pedra e cal. As barricas têem

Alambique.Engenhos da Calheta, Porto da Cruz

102. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas1917-18 fl. 18, 30 de Julho de 1917. 103. F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863. 104. Um Privilégio Industrial. Cartas a Diversos Jornais, Funchal, 1883

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

MOENDA da cana ALCALINIZAÇÃO da garapa SULFICARBONATAÇÃO. Wesberg (sulfitação alcalina) DIFUSÃO Naudet(com 12 difusores em duas baterias conjugadas de 6 cada) EVAPORAÇÃO no pré-evaporador Kestner (com Kieselgouser) FILTRAÇÃO mecânica de jus de primeira evaporação EVAPORAÇÃO no triple-effet na primeira e segunda caixa (sulfitação) FILTRAÇÃO mecânica entre a segunda e terceira e quarta caixa (2 caixas com a terceira) COSIMENTO em grão de 1er jet

no fundo alguns pequenos furos por onde vae escorrendo o melaço para dentro do tanque.”105 As principais unidades industriais da década de sessenta do século XIX eram os engenhos do Ponte Nova de Severiano Alberto Ferraz, considerado “o mais bem montado que há no districto”106. Inventário do equipamento do Engenho da Ponte Nova 3 clarificadores a vapor com capacidade para 17 hectolitros 5 evaporadores a fogo 3 concentradores de Bour 2 maquinas centrifugas de Seyrigs 8 filtros de madeira systema de Dumond 30 cristalizadores 1 revivificador para carvão mineral 3 alambiques do sistema de Cellier-Blumenthal, ou destilação contínua, construído por Derosne. O sistema Naudet, que teve os primeiros ensaios no engenho do Torreão nos inícios do século XX, veio favorecer o processo o processo. Assim, a garapa saída dos difusores ia directamente para a caldeira de triple effet, o que representava “uma grande economia de combustível, trabalho e perdas em assucar.”107 O engenho do Torreão, com as inovações introduzidas na primeira década do século XX, tornou-se uma referência do mundo industrial. O esquema da produção é assim apresentado por João Higino Ferraz.108 . 105.F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863, p.37 106. F. O. Campos e Oliveira, Informações para a Estatística Industrial…, Lisboa, 1863, pp.32-33 107. . Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas1899-1905, fls.160-161, 1 de Junho de 1905 108. Idem, Livro de notas…1903-1910, fls.201

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MALAXEURS refrigerantes URBINAGEM TU a agua e vapor EGOÛT riche Pé de cuite

EGOÛTS pauvre Dissolução 32º e hydrosulfitação Filtração sobre area

Assucar de 1er jet Branco BB

Cuite de 2º jet em grão MALAXEUR de 100 het MALAXEURS refrigerantes Turbinagem a vapor MELAÇO epuisée destilleria

Assucar 3ª jet Amarello BT

EGOÛT riche pé de cuite EGOÛT pauvre

MALAXEUR de 75 heet Malaxeur refrigerante Turbinagem a agua e vapor Assucar 2º jet Branco B 2

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Caldeira de vácuo

CENTRIFUGADOR

Para além do factor inovação tecnológica temos o uso de produtos químicos, que actuavam no sentido de acelerar a fermentação do melaço ou a purificação. “No Torreão para fazer assucar branco para venda ao consumo local, sulfito o xarope afundo, e somente dá branco a MC de premier jet com xarope e egoûts ricas. Todos os outros assucares é, ou para refinar, ou para refundir 109 e sulfitar novamente junto com o xarope de fabricação.” O consumo em produtos químicos era o seguinte: Produtos químicos Kieseguhr(diatomite) Phosphato de cal Enxofre Cal de Inglaterra Formol Soda cáustica Aluminato de baryta

1918 44(em toneladas) 36(em toneladas) 17,5(em toneladas) 5500(em toneladas) 48(em toneladas) 4000(litros)

1919 70(em toneladas) 60,5(em toneladas) 35,6(em toneladas)

22,6(em toneladas)

FONTE: Arquivo Particular de João Higino Ferraz, Copiador de cartas, 1917-19, fl.5,81, 11 de Junho de 1917, 28 de Junho de 1918.

FASES DO PROCESSO RECEPÇÃO MOENDA FILTRAÇÃO PURIFICAÇÃO CLARIFICAÇÃO EVAPORAÇÃO CRISTALIZAÇÃO PURGA

109. Arquivo Particular de João Higino Ferraz, copiador de cartas 1927-30, 14 de Dezembro de 1929.

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EMPACOTAMENTO E EXPEDIÇÃO

EQUIPAMENTO

PRODUTOS QUIMICOS

balança Cilindros, movidos pela força animal, água ou vapor Difusor Filtros clarificadores Caldeiras, trem jamaicano Evaporador de múltiplo efeito Cristalizadorturbina Formas de barro Centrifugador Panela de vacuo

ACTIVIDADE Recepção da cana e pesagem EXTRACÇÃO da garapa Eliminação da matéria sólida

Carbonato sulfito Eliminação das demais impurezas Cozedura e evaporação da água Açúcar granulado Barro cinza Açúcar granulado consumo

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Engenho e mecanismos Século XIX

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Engenho da Calheta

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Engenho do Porto da Cruz

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Engenho do Ribeiro Seco

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William Hinton[1817-1904]

A FAMÍLIA HINTON, ENGENHOS E AÇÚCAR A comunidade britânica está inseparavelmente ligada ao progresso sócio-económico da ilha a partir do século XVII. Foram primeiro os principais apreciadores do nosso vinho e os arautos da comercialização nos mais recônditos mercados do mundo colonial britânico, depois, como entusiastas das belezas paradisíacas e qualidades terapêuticas da ilha, deram origem aquilo que veio a ser a nossa principal actividade, o Turismo e, finalmente, empenhando no progresso económico da ilha em momentos de crise dando o contributo para a reafirmação da cultura da cana. Mas nem sempre esta posição foi conseguida de forma clara. Algumas famílias mantiveram-se até a actualidade com uma posição hegemónica na sociedade madeirense, despertando ódios e paixões. É precisamente no último domínio que se destaca a família Hinton. O primeiro da família na ilha foi W. Hinton (1817 -1904) que se fixou no Funchal em 1841. Em 1845 adquiriu a fábrica de moagem do sogro, Robert Wallas, adaptando-a a engenho de açúcar. Foi o filho, Harry Hinton (1857-1948) que em 1859 ergueu a fábrica do Torreão, alvo de profundas reformas sob a superintendência de João Higino Ferraz, a partir de 1889. A amizade que o ligava a João Higino Ferraz fez com se transformasse no principal confitente e impulsionador da permanente actualização mecânica e química no processo de fabrico de açúcar. A paixão de ambos pelas inovações sobre o fabrico do açúcar levou a que o engenho do torreão se transformasse num modelo e referência da tecnologia açucareira, sendo motivo de visita para engenheiros nacionais e estrangeiros. Aqui ensaiaram-se novas técnicas e aperfeiçoaram-se outras, como a do sistema de M. León Naudet110, conhecido como o processo de circulação forçada que fazia retirar da cana o máximo de açúcar. Daqui resultou uma invenção patenteada em 1902. De acordo com L. Colson111 foi o primeiro engenho o ver montado o sistema. H. Hinton foi ainda um dos principais impulsionadores dos ensaios dos diversos tipos de canade-açúcar resistentes o bicho que a atacou desde 1882. 110.Cf. Léon Colson, Culture et Industrie de la Canne à Sucre aux îles Hawai et à la Réunion, Paris, 1905. 111. Ibidem, p. XVIII.

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A inovação tecnológica era custosa e só foi conseguida à custa de medidas proteccionistas e de polémicas sobre o roubo de patentes. Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração da Companhia Fabril do Açúcar Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de fabrico de açúcar sita à Ribeira de S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. Entretanto, a família Hinton que desde 1845 se havia instalado com um engenho decidiu na década de setenta investir em força nesta área através da inovação tecnológica e pressão política no sentido da plena afirmação. Mas o percurso está envolto em polémica, A invenção do Visconde Canavial, patenteada em 1875, que consistia em lançar água sobre o bagaço, propiciando um maior aproveitamento do suco da cana, deu o mote para uma polémica sobre a propriedade da patente. Constava da patente o uso exclusivo pela fábrica de S. João, mas o engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o lesado moveu em 1884 uma acção civil contra o contrafactor. Mas a família Hinton estava fadada para singrar na indústria açucareira e conseguir uma posição de monopólio. Segurada na influência das autoridades diplomáticas britânicas, da intervenção pessoal junto da coroa e, depois, das hostes republicanas, conseguiu atingir os objectivos. A visita de El Rei D. Carlos à ilha em 1901 poderá ser entendida como um momento crucial desta actuação. Para compreender a iniciativa desta família no contexto histórico madeirense é necessário recordar que a Madeira vivia desde a década de trinta da centúria oitocentista uma situação difícil mercê da quebra acentuada do comércio do vinho. A cultura da cana sacarina era e foi solução para a reconversão da agricultura madeirense gerando uma nova contrapartida económica. Tudo isto era possível num momento em que as Antilhas e o Brasil se debatiam com uma grave crise de produção. É, por isso, o açúcar da Madeira ganha novamente um lugar de destaque. Só que a partir de agora a manutenção dependerá da política de investimentos em novos meios tecnológicos resultantes da Revolução Industrial. Em toda área de canas desde a Madeira às Antilhas e ao Brasil o elevado investimento só foi possível mediante contrapartidas adequadas aos investidores. Sucedeu assim no Brasil desde 1857 com o aparecimento dos engenhos centrais com o nome de usinas, que preludiam uma nova era da indústria canavieira em que a produção e separada da Indústria. O inglês, pioneiro e principal obreiro da Revolução Industrial, surge a partir de 1884 como a vanguarda da nova tecnologia do açúcar. As medidas que favoreciam a entrada de melaço estabelecidas pela lei de 1895, estão associadas ao decreto de 1903. Um regulamento anexo ao decreto determinava a forma de matrícula das fábricas. As condições eram de tal modo lesivas que só duas fábricas— Hinton e José Júlio Lemos — o conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha ficaram numa situação periclitante. Entretanto a lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao estabelecer a referida matrícula por 15 anos. Entretanto, caiu a monarquia e a República parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas de novo as influências moveram-se a família Hinton conseguiu pelo decreto de 11 de Março de 1911 assegurar o monopólio do fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das colónias. A questão Hinton e o complexo industrial que o motivou, e que hoje resta a memória num jardim público e da chaminé altaneira, não pode nem deve ser encarado no quadro restrito da con-

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juntura politica nacional ou da tão proclamada politica de favoritismo do anterior regime mas sim no contexto da politica de promoção da cultura e avanço da tecnologia da cana sacarina no século XIX de que os ingleses foram os principais obreiros na ilha no Brasil e nas Antilhas. É certo que a sobrevivência da fonte de rendimento só se tornou possível mediante a concessão de monopólio à família Hinton, que apagou a demais iniciativa dos madeirenses e amarrou o agricultor a uma situação de dependência. Só o 25 de Abril veio abrir novas portas e a provar que a manutenção da situação não era eterna, obrigando ao encerramento definitivo do engenho do Hinton em 1976. Acabou-se com uma situação injusta, mas não com a cana que ainda persistem embora com menor importância. Deste modo poderá dizer-se que para muitos madeirenses Hinton é sinónimo simultâneo de humilhação e recurso raro numa situação de miséria. Foi, aliás dentro desta ambiência que a comunidade britânica conseguiu vingar na ilha, criando uma situação de amor, paixão e ódio.

HENRY HINTON (1857-1948) Nasceu a 8 de Janeiro de 1857 no Funchal, filho de William Hinton e Mary Wallas. Casou pela primeira vez com Mrs Wilhelmina Montgomery e em segundas núpcias com D. Isabel Vasconcellos do Couto Cardoso, filha do Morgado do Jardim do Mar. Faleceu a 16 de Abril de 1898. Entre finais e o último quartel do século XX a família Hinton deteve um papel significativo na sociedade madeirense por força do engenho do Torreão que se transformou numa referência da cultura da cana sacarina. E, tendo em conta a importância que assumia na ilha fácil será de admitir a ligação sentimental que prendeu muitos agricultores. A forma como se afirmou o quase monopólio de laboração da cana pelo engenho do torreão levou a que se focalizasse na família dos proprietários muito do ódio e dificuldades que enfrentaram os produtores de cana madeirenses. A imagem do engenho confunde-se com a exploração e opressão, enquanto que para a família convergem inúmeros impropérios. Na verdade, a situação do engenho e da família nunca foi pacífica na sociedade madeirense. O Re-nhau-nhau expressa inúmeras vezes a ira popular e de alguns sectores da sociedade madeirense, mas ao invés outros jornais e publicações não se cansam de elogiar os feitos da família na sociedade madeirense. A ela se liga a promoção da obra de vimes na Camacha, como a cultura da banana e

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mesmo os primórdios do futebol na ilha. Harry Hinton aos 18 anos de idade, em 1875, trouxe para a ilha a primeira bola de futebol e fez da Quinta da Achadinha um espaço da modalidade. Depois, com a criação dos clubes foi um benemérito de troféus e verbas, sendo Presidente honorário e sócio “Leão de Ouro”, número 1 do Club Sport Marítimo. O “Almanaque do Desportista Madeirense” traça um perfil distinto desta figura controversa da sociedade madeirense: Quem não conhece e admira essa figura de cidadão impoluto de homem honrado, de comerciante, industrial prestigioso e honesto, de alma virtuosa, benemérita e incorruptível, de zeloso, cumpridor de direitos, de submisso escravo de deveres ? Quem não admira e exalta a sua personalidade forte, a sua linha irrepreensivelmente correcta e aprumada, o seu espírito moço, juvenil e franco, a sua alma sem mácula, aberta de par em par à prática de memoráveis obras de caridade e de filantropia ? Quem não aprecia e louva o exemplo vivo da sua vida longa toda dedicada ao trabalho, toda consagrada ao dever, num harmonioso ritmo, numa obra eminentemente admirável e requintadamente impressionante ? Madeirense de nascimento e coração, o Senhor Henrique Hinton, mercê das suas excelsas qualidades de trabalhador incansável e probo é motivo de altaneiro orgulho, de brio e honra cimeira da terra que foi seu berço natal e que tantos benefícios deve às suas faculdades viris de fecundo empreendimento.” O mesmo testemunho elogioso repete-se no Elucidário Madeirense na década de vinte do século XX112. O mesmo elogio acontece também com o pai William, como se pode verificar nas páginas do Diário de Noticias do Funchal em Março de 1921: Foi William Hinton, com a sua lúcida inteligência, com a sua actividade, com a sua iniciativa e com o seu capital quem imprimiu ao fabrico do açúcar madeirense uma orientação metódica e prática, coroada dos mais lisongeiros resultados, sendo, por assim dizer, o alicerce fundamental do progresso e do desenvolvimento da grande “fábrica do Torreão”. A família Hinton rapidamente assumiu a opção madeirense, dedicando especial carinho a tudo o que se relacionava com a ilha. Assim, interessou-se pela História e Cultura do arquipélago. Foi ele quem adquiriu a chamada espada de João Gonçalves Zarco e ofereceu ao Museu Municipal. Além disso reuniu uma preciosa colecção de livros e folhetos sobre a Madeira, que hoje fazem parte do acervo da Biblioteca Municipal Não obstante ter ficado para a História como uma figura controversa da sociedade madeirense, acabou por ver reconhecida a actividade recebendo condecorações honoríficas: a comenda da Ordem de Cristo e o Grande Oficialato da Ordem de Mérito Industrial. O nome continuará ligado a Colombo pelo facto de o conselheiro Ayres de Ornelas e Vasconcelos lhe ter oferecido uma janela da casa que fora de João Esmeraldo, conhecida como a “janela de Colombo”, que instalou na residência à Quinta da Palmeira na Levada de Santa Luzia.

112. Fernando Augusto da Silva, “Hinton”, Elucidário Madeirense, Funchal, 1965, pp.116-117

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CONDIÇÕES PARA A IMPLANTAÇÃO DOS ENGENHOS. W. HINTON Tenho por conveniente, uzando da faculdade que me é conferida no § 2º do artº 13º do decreto de 21 de outubro de 1863, conceder ao dito Guilherme Hinton, licença para a fundação e laboração dúma fabrica de extracção e cristalização de asucar, na Rua da Princesa, proximo á Ponte do Torreão, fregª de Santa Lusia, na mesma propriedade e local onde o fallecido Roberto Wallas tinha um moinho de espremer cana doce, e um alambique de destilação de aguardente, ficando contudo o referido Guilherme Hinton restrictamente obrigado á observação das condições seguintes: Primeira, - que a chaminé tenha a altura de vinte e cinco metros. Segunda, - que o estabelecimento seja convenientemente ventilado. Terceira,- que n’elle haja agua sufficiente para a laboração e para as convenientes lavagens e limpeza. Quarta,- que se não deixem nunca correr sobre a via publica nem para as propriedades vizinhas, as aguas de condensação e lavagens, ou quaesquer residuos liquidos, e que tudo deverá ser conduzido em cano fechado até o mar. Quinta,- que todos os residuos solidos sejam cuidadosamente removidos para fóra do estabelecimento. Sexta,- que todas as disposições do decreto de 21 d’outubro de 1863, sobre os estabelecimentos insalubres, incommodos ou perigosos, sejam ponctualmente observados na fabrica de que se tracta. (ARM. Governo Civil, nº.77, fls. 47vº-48vº, 27 de Novembro de 1872)

Engenho do Hinton. Comemoração do primeiron centenário. 16 de Junho de 1945

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O PREÇO DO ENGENHO O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os proprietários. Em 1535, de acordo com a avaliação, para inventário, o engenho de António Teixeira no Porto da Cruz estava avaliado em duzentos mil reais113. A partir dos inventários post-mortem é possível saber quais os utensílios usuais do engenho: SECÇÃO ENGENHO OU MOENDA

CASA DAS FORNALHAS OU CALDEIRAS

CASA DA PURGA

UTENSÍLIOS E PEÇAS Rodas Eixos Prensas Fornalhas Espeques Caldeiras de cobre Coadura, cubo de cobre Escumadeira das caldeiras Repartideira Batedeira Raminhões Bomba Fagoeiro Andaimes de sinos, tinas de cedro para receber o mel Coxas Escumadeira, colher, colherão

Alguns dados soltos permitem saber os custos dos diversos objectos e utensílios necessários ao fabrico do açúcar. Em 1632 uma taxa pequena valia 60 réis, enquanto em 1687 o feitio das forminhas de açúcar custava 650 réis.114 Em 1547 refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam os 461.000 reais115. Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais116. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na Ribeira dos Socorridos foi avaliado em 500.000 rs117 e no ano imediato o engenho de Baltasar Varela de Lira118 foi vendido por 422.000 rs119. O primeiro deverá ser o mesmo que em 1780 pertencia a D. Madalena Guiomar de Sá Vilhena, que o arrendou ao capitão Francisco Esmeraldo Betencourt por 10.000 réis ano120.

Engenho de três cilindros horizontais. Gravura de C. Rochefort, 1655.

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113. A. ARTUR, “Apontamentos Históricos de Machico”, in DAHM, I, nº 1, pp. 8-9. Por informação prestada pelo Dr. Gastão Jardim, parte deste inventário está disponível num processo do tribunal da comarca de Santa Cruz (Inventário Orfanológico, maço.46, fls. 205, 28vº,216) referente ao morgadio da Penha de Águia, criado pelo mesmo António Teixeira. 114.ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls. 299-300, 20 de Julho ; ARM, Capelas, caxª.17, nº.402, 25 de Novembro 115. ARM, Capelas, cx. nº 8, 19 Janeiro de 1547. 116. ARM, Misericórdia do Funchal, nº.40, fls. 49-58, 11 de Setembro de 1600. 117. ANTT, Convento de Santa Clara, Cx 4, nº 11, 20 de Dezembro de 1644. 118. Esta situação começou a delinear-se mesmo antes do proteccionismo. Assim, em 1888 em 1.000.000 de arrobas de cana, o engenho do torreão laborava metade da produção de cana, ficando o de S. João com 200.000 arrobas e 300.000 pelos restantes. 119. ARM, Misericórdia do Funchal, nº 42, fls. 249-251, 25 de Março de 1645. 120. No contrato celebrado é feita uma avaliação do engenho: 2343150 réis (ARM, registos notariais, nº1010, fl.64vº, cit. J. Adriano Ribeiro, ob.cit., p. 12).

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DATA 1535 1542 1547 1600 1643 1645

Utensílios do açúcar. Diderot e Alembert,1762

Escumadeira e colheres.

Proprietário Porto da Cruz Funchal Álvaro Anes João de Ornelas e Vasconcelos Santa Luzia João Berte de Almeida e Pedro Gonçalves Ribeira Socorridos Gaspar Betencourt Baltasar Varela de Lira

VALOR em reis 200.000 250.000 192.000 700.000 500.000 422.000

Os custos do feitio variavam de acordo com a dimensão da estrutura. Em 1573 foi necessário reconstruí o engenho dos Socorridos, destruído pela ribeira. Branca Atouguia comprometeu-se perante o convento de Santa Clara que o terá de pé na safra de 1574, gastando 204.000 réis.121 Já em 1620 o lavrador Roque Fernandes pagou a Francisco Lopes 1$340réis pelo feitio do engenho.122 Nas Canárias temos também notícia de alguns valores referentes ao investimento necessário para a construção de um engenho. Em 1519 o de Miguel Fonte em Daute foi avaliado em 4.641.320 mrs. Nos anos imediatos o valor parece descer para depois tornar a subir. Assim, em 1556 o engenho de Valle de Gran Rey valia 1.237.417 mrs, enquanto em 1567 um de La Orotava foi vendido por 6.000.000 mrs. Para Gran Canaria temos os engenhos de Francisco Riberol, em Agaete y Galdar, avaliados em 300.000 mrs, o de Francisco Palomar em Agaete, por 750.000 e o de Constantino Carrasco em Las Palmas por 450.000. Ainda, em La Orotava temos dados precisos sobre os custos da construção das diversas infra-estruturas do engenho, conforme o inventário do engenho de Alonso Hernandez de Lugo feito em 1584. Para os séculos XIX e XX a construção de um engenho para fabrico de açúcar, de acordo com as inovações tecnológicas, era uma aposta impossível para qualquer industrial caso não fossem garantidos os financiamentos e apoios governamentais. Enquadra-se na situação o favorecimento dado ao engenho do Torreão, que levou ao quase monopólio da laboração. Daqui resultou que a maioria apostou em manter a tecnologia tradicional, servindo-se da tracção animal e da força motriz da água123. A situação arcaica das fábricas de moer cana era intolerável perante o incessante aumento da produção, por isso foi necessário a aposta num estabelecimento moderno, capaz de minorar os custos de laboração e de corresponder à oferta de cana124. Enquadra-se neste objectivo a novel Companhia de Açúcar Madeirense, criada em 1868. Por outro lado, tendo em conta a grande dificuldade do fabrico do açúcar e os elevados custos do investimento, denota-se na época dois tipos de complexos: para produção de açúcar e destilação de aguardente125. Em meados do século a distinção entre a moenda da cana, o fabrico de açúcar e 121. ANTT, Convento de Santa Clara, maço.4, 27 de Agosto. 122. ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.581-581vº., 2 de Maio. 123. Em 1851 referem-se apenas 4 engenhos puxados por bois (Edward V. HARCOURT, A sketch of Madeira, London, 1851, p.94), em 1871 (Dennis EMBLETON, A visit to Madeira in the Winter. 1880-81, Londres, 1882, p.76) temos 7 engenhos a vapor, 9 de água e outros não especificados movidos por bois. 124. Em 1865 o governador civil tentou levar por diante um inquérito sobre os engenhos, sem qualquer efeito. O primeiro que chegou até nós data de 1928. 125.O engenho de Luís Betencourt Esmeraldo nos Canhas, construído em 1855 para o fabrico de aguardente, custou 1.000.000 réis; em 1858 erguueu-se outro engenho na Madalena do Mar, movido a água, com o capital de 11 contos de réis (João Adriano RIBEIRO, Ponta de Sol- subsídios para a história do concelho, Ponta de Sol, 1993, p. 170).

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aguardente é claro126. A tendência foi para a aposta nas fábricas de destilação de aguardente, tendo em conta o atrás referido e o facto da procura para o consumo corrente e no processo de vinificação. Temos indicações dos custos da instalação. Em 1857 Diogo de Ornelas Frazão gastou 14.3000.000 réis na construção de uma fábrica de aguardente no estreito da Calheta e no ano imediato o Conde Carvalhal montou engenho semelhante no Paul do Mar por 8.800.000 réis127 De acordo com inventário industrial feito em 1863128 é possível fazer uma ideia das infra-estruturas existentes e do valor: DATA LOCAL

PROPRIETÁRIO

1856 1856 1856 1859 1858 1858 1858 1858 1859 1858 1858 1861

Ponte Nova(Funchal) Torreão(Funchal) Pico do Funcho (Funchal) Ponte Deão (Funchal) Santa Cruz Machico Machico Porto da Cruz Arco de S. Jorge S. Jorge Ponta Delgada Ponta Delgada

1860 1867 1858 1853 1855 1858 1853 1854 1857 1858 1847

S. Vicente Arco da Calheta Paul do Mar Ponta de Sol Canhas Madalena Ribeira Brava Câmara de Lobos Câmara de Lobos Câmara de Lobos Câmara de Lobos

Severiano Alberto Ferraz W. Hinton Vitorino Ferreira Nogueira Joaquim da Silva Romero Ornelas Frazão Manuel António Jardim João Escorcio da Câmara Cândido Velosa de Castello Branco Maurício Castelo Branco & Co Manuel Fernandes Nóbrega Conde de Carvalhal Cândido Lusitano de França Andrade e António Fernandes Teles Caetano António de Freitas Diogo de Ornellas Frazão Conde de Carvalhal Nuno Freitas Pestana Luiz de Bettencourt Esmeraldo Freitas Abreu & Cº José Maria Barreto Tiburcio Justino Henriques João Figueiredo Quintal Joaquim Figueira 6 Cº Manuel Martins e João da Silva

Valor do Equipamento e Edifícios 2.500$000 30.000$000 18.000$000 5.760$000 22.400$000 3.500$000 3.500$000 7.000$000 850$000 1.000$000 3.000$00 3.000$000 1.200$000 14.300$000 8.800$000 920$000 1.000$000 11.000$000 7.200$000 4.500$000 1.900$000 2.900$000 1.800$000

126. Em 1851 refere-se 4 fábricas de refinação de açúcar, 3 de aguardente e 4 engenhos de moer cana (João J. De SOUSA, “A patuleia na Madeira. 1847”, Islenha, 14(1994), 7). Aliàs em 1865( Eduardo GRANDE(Relatório. Sociedade Agrícola do Funchal, Funchal, 1865, p. 96) dá conta que a cana era explorada apenas na produção de aguardente, existindo para o efeito 4 engenhos, mas apenas dois estavam bem montados. Em 1900(F. A. SILVA, Elucidario Madeirense, vol. I, p.219) dá conta de 49 fábricas de moer cana, sendo 16 a vapor, 33 a água. Para 1907 (Victorino José dos SANTOS, Relatorio dos serviços da secção. Technicos de industria no Funchal no anno de 1907, in Boletim do trabalho industrial, nº.24,1909) dá-nos conta de 37 fabricas de destilação de aguardente, alcool e açúcar em toda a ilha, sendo 19 movidas a vapor(todos os geradores de origem inglesa), 26 a água e 2 mistas. Em 1921(F. A. SILVA, ob.cit., p.219) eram 51 os engenhos a funcionar, mas só um produzia açúcar o do Hinton. 127. Cf. João Adriano Ribeiro, ob.cit., pp.19-21. 128. Em Informações de Estatística industrial. Distritos de Leiria e do Funchal, Lisboa, 1863

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ENGENHO E PRODUÇÃO

Trapiche-ilha de Santiago(Cabo Verde)

Os valores de produção dos engenhos insulares são muito distintos dos americanos. Para a Madeira em finais do século XV são referenciados apenas 12 engenhos para um total de 233 proprietários de canaviais. Situam-se todos nas partes do Fundo, não havendo qualquer referência para os que funcionavam na área do Caniço a Câmara de Lobos. Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de notar que os proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo caso de lavradores com valores superiores que não são proprietários de engenho. Fernão Lopes apresentava mais 2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século XVI os valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1478 arrobas. Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o desfasamento entre ambos os grupos. A diferenciação entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara. No grupo surgem seis com valores superiores a 1000 arrobas. É de salientar que, não obstante os engenhos estarem associados aos grandes proprietários de canaviais, não os poderemos considerar sinónimo de engenho. No caso do século dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria com valores de produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declara apenas 70 arrobas de açúcar no Funchal. Estamos perante duas realidades distintas que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva em torno da cana-de-açúcar. Nas Canárias, nomeadamente nas Ilhas de Gran Canaria e Tenerife, parece-nos que a situação foi diferente. Aqui, a grande propriedade é sinónimo da presença de um engenho surgindo como resultado da forma como se procedeu às dadas de terras, por outro lado os valores médios para a produção por engenho parecem ser mais elevados. Gaspar Frutuoso refere que os dois engenhos da família Ponte em Adeje (Tenerife) laboravam de 8 a 9 mil arrobas de açúcar enquanto o de João de Ponteverde em La Palma ficava-se pelas 7 a 8 mil arrobas. Para Gran Canaria o mesmo indica que os vinte e quatro engenhos cuja safra podia situar-se entre as seis e sete mil arrobas. A partir dos contratos de arrendamento dos engenhos sabe-se que o de D. Pedro Lugo em El Realejo laborava em 1537-38 uma média de 4500 arrobas e que com outro em La Orotava se ficava por 1122 arrobas. No século XVII temos os valores do diezmo pagos pelos sete engenhos em actividade nas ilhas de Gran Canaria, Tenerife e La Palma, o que nos permite para este período desde 1634 estabelecer a média de produção anual.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

No decurso do século dezanove é cada vez mais evidente a dissociação do engenho dos canaviais. Em 1863128 temos indicação dos preços de pagamento da moenda da cana e destilação da garapa: por 30 Kg de cana pagava-se entre 70 a 90 réis e na destilação de 17 litros de 100 a 110 réis. A média de laboração dos engenhos nos quatro meses da safra era em média de 7917241 Kg de cana, produzindo-se 117.600 Kg.

ÁREA Funchal Partes do Fundo TOTAL

Nº engenhos 2 15 17

arrobas 16 545 10 548 80 451

média 8272,5 703,2 4732,4

Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de referir que os proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo caso de lavradores com valores superiores que não são proprietários de engenho. Fernão Lopes apresentava mais 2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século XVI os valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1478 arrobas. COMARCA Funchal Ribeira Brava Ponta de Sol Calheta Machico TOTAL

NÚMERO DE ENGENHOS 17 6 5 10 8 46

AÇÚCAR ARROBAS MÉDIA POR ENGENHO 17 863 1050,76 13 524 2254 8011,5 1602,3 19204 1920,4 9409,5 1176,18 68012 1478,52

Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o desfasamento entre ambos os grupos é por demais evidente. COMARCA

Funchal Ribeira Brava Ponta de Sol Calheta Machico TOTAL

PROPRIETÁRIOS DE CANAVIAIS

126 35 28 25 55 269

PROPRIETÁRIOS DE ENGENHO NÚMERO % EM RELAÇÃO AOS DE CANAVIAIS

17 6 5 10 8 46

13,5 17,1 17,9 40 34,5 17

128. Informações de Estatística Industrial. Distrito do Funchal, Lisboa, 1863, p.1.

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ORGANIZAÇÃO ESPACIAL DO ENGENHO. A distinção entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito clara. No grupo apenas seis surgem com valores superiores a 1000 arrobas. PROPRIETÁRIO João Fernandes do Arco João Esmeraldo Gonçalo Fernandes José Roiz Castilhano Simão Acioli

ANO 1509 1526 1534 1534 1530

LOCAL Calheta Ponta do Sol Calheta Calheta Funchal

PRODUÇÃO 4484,5 3277,5 3707,5 1227,5 1365

Na Madeira não colhe prova a ideia de que os canaviais estão associados a um engenho. Vários factores contribuem para isso e conduzem a que a forma de organização do espaço industrial seja distinto de muitos sítios do continente americano onde o engenho domina todo o complexo. A orografia da ilha associada ao excessivo parcelamento da propriedade conduziu a que a maioria dos proprietários não tivessem meios para construir e manter semelhante estrutura. Apenas com as famílias ou proprietários mais destacados é possível a associação entre os canaviais e o açúcar.

ENGENHO

M. Duhamel du Monceau, s.d.

Por outro lado é de salientar que, não obstante os engenhos estarem associados aos grandes proprietários de canaviais não os poderemos considerar sinónimo de engenho. No caso do século dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declara apenas 70 arrobas de açúcar no Funchal. Podemos afirmar que estamos perante duas realidades distintas que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva em torno da cana-de-açúcar.

O FABRICO DO AÇÚCAR

O fabrico de açúcar requeria um dedicado cuidado num período limitado de tempo. O ciclo vegetativo da cana definia um acompanhamento constante ao longo do ano: plantar, mondar, esfolhar, combater as pragas e efeitos nefastos dos animais, cortar e, depois, conduzir ao engenho onde se moía e extraía o suco daí resultante para se fazer o açúcar. Enquanto as tarefas relacionadas com a cultura realizavam-se de forma lenta ao longo do ano, a parte relacionada com a safra do engenho era uma actividade intensiva que deveria ser executada num curto período. O engenho laborava dia e noite, intervindo os serviçais entre a casa da moenda, fornalhas e purga. A moenda da cana no engenho inicia o processo de fabrico do açúcar. As mós e os cilindros esmagam a cana e depois a prensa espreme o bagaço de modo a retirar-se a garapa que depois será cozida. O processo de fabrico do mel resume-se a uma simples cozedura, mas o fabrico de açúcar implica um processo moroso de purga e clarificação. A principal questão que se coloca é a de saber donde conseguiram os madeirenses a tecnologia necessária para fabrico do açúcar. Nada nos diz de forma clara mas os poucos indícios da documentação revelam uma ligação com as áreas produtoras do Mediterrâneo. Refere-se um mestre de engenho valenciano e os vestígios materiais do processo revelam as similitudes.

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Casa de moer

Casa de cozer

TENDAL

Casa de purgar

As tarefas conducentes ao fabrico do açúcar definem três momentos distintos: a moenda da cana, o cozimento da garapa e a purga do açúcar. Daqui resultará a existência de três instalações que se apresentam separadas: casas da moenda, das caldeiras e da purga. De acordo com a postura de 1597 a casa da purga situava-se na parte superior do edifício que servia a casa das caldeiras, pois refere-se a “casa de cima”.129 Nos engenhos de João Esmeraldo da Lombada da Ponta de Sol e João de Ornelas e Vasconcelos surge apenas as casas do engenho e de purgar.130 Mas sabemos que João Esmeraldo tinha perfeitamente definido a estrutura espacial que marcou o mundo açucareiro131. Assim, a par do engenho com as referidas instalações, temos a casa, a capela, todos dominam um vasto vale de canaviais que se abria ao mar. Já para o engenho de João Berte de Almeida na ribeira de Santa Luzia apenas se assinalam as casas da prensa e da fornalha132. O engenho de Guiomar da Costa na Ribeira dos Socorridos era uma estrutura complexa dominada pela capela, a ermida de Nossa Senhora da Vitória, e casa de habitação. As instalações industriais eram definidas pela casa de purgar, palheiro, guarnéis, estrebarias e fornalhas133. Algumas informações soltas revelam-nos uma situação distinta daquela que se tem defendido quanto ao engenho de açúcar. Todo o processo de fabrico de açúcar não acontecia no mesmo espaço. As três fases fundamentais – moenda, cozedura e purga- não aconteciam de forma seriada,

M. Duhamel du Monceau, s.d.

129. José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Segunda Metade do Século XVI, Funchal, CEHA, 2002, p.119 130 . ARM, Capelas, caixa. 13, nº.3, 27 de Maio de 1536; caixa. 8, nº.9, 19 de Janeiro de 1547. 131 . ARM, Capelas, cª. 13, nº.3, 27 de 132 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.63-75, 142-150vº, 1 de Agosto de 1626 133 . ANTT, Convento de Santa Clara, Caixa 4, nº. 11, 7 de Março de 1643.

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podendo o última ocorrer de forma separada. Isto acontece assim porque nem todos os proprietários de canaviais tinham engenho. E, por isso mesmo entregavam a moenda e cozedura a engenhos, mediante uma renda em dinheiro ou produto. Alguns proprietários tinham casa própria para purga do açúcar, com sinos, formas e andaimos de madeira. Isto permitia purgar o açúcar a seu modo, entregando no engenho as formas de que eram proprietários. Em 1536 João Esmeraldo refere que o açúcar que cada filho tem direito pode ser purgado na casa de cada um. Em 1553 Paulo Mourato emprestou a Pedro Gonçalves da Câmara 180 formas para a safra do ano imediato. Mais se enuncia que o mesmo mandou ao engenho 48 formas e trouxe para casa 173 cheias de açúcar134. Já em 1566 Diogo Paes autorizou o seu canavieiro, Francisco Fernandes, a construir uma água para a purga de açúcar.135 Bartolomeu Machado, em 1593, declara no inventário dos bens doze andaimes aparelhados para 300 formas, 50 sinos e duas tinas para o mel.136 Já Mendo Brito de Oliveira, em 1687, apresenta no inventário 10 forminhas de açúcar.137 Alguns casos de contrato de colonia comprovam a mesma situação, uma vez que a partilha do açúcar ou a cobrança dos direitos se fazia no tendal138. Ora o tendal é definido como o local de esfriamento das formas, antes de serem levadas para a casa da purga. Em abono da ideia temos o facto de nos últimos anos se terem encontrado restos cerâmicos de formas de açúcar em algumas habitações do Funchal e Machico, sem a existência de rasto da moenda e fornalhas. Sucede assim com a casa de João Esmeraldo no Funchal e em Machico139. A propósito da Casa de João Esmeraldo, Mário Varela Gomes140 coloca a hipótese da presença dos vestígios de formas de açúcar indiciar a presença de um engenho, mas como vimos são apenas fruto da situação singular que por aquilo que sabemos até ao momento está apenas documentada na Madeira. Os dados documentais confirmam que estamos perante infra-estruturas separadas e que contavam com a presença de vários técnicos141. O caldeireiro procedia à purificação, o mestre temperava, enquanto o purgador ficava com o encargo da purga142. A última fase do processo poderia ser executado de várias formas, sendo comum na Madeira a adição do barro, o que conduzia a uma estreita protecção dos terrenos de barro143. A tradição refere que foi uma invenção madeirense, mas os árabes já eram conhecedores e serviam-se dele para o fabrico do açúcar branco.

Diderot e Alembert, 1762

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134 . ARM, Misericórdia do Funchal, livro 41, fls. 307-310vº, 29 de Dezembro. 135 . ARM, JRC, fls 350-355vº, 19 de Abril 136 . Ibidem, fls. 300-320vº., 25 de Outubro. 137 . ARM, Capelas, cx.17, nº.402, 25 de Novembro 138 . ANTT, PJRFF, nº.968, fls.70-71, 5 de Fevereiro de 1687; ibidem, nº. 966, fls. 452vº-453, 7 de Janeiro de 1688 139 . Escavações nas Casas de João Esmeraldo. Cristóvão Colombo, 1989 (1ª fase), Funchal, 1989; Mário Varela Gomes e Rosa Varela Gomes, Intervenção Arqueológica in Escavações nas Casas de João Esmeraldo- Cristóvão Colombo. Catálogo, Funchal, 1989; Rui Carita, Escavações na Casa de João Esmeraldo, in Islenha, nº.5, 1989, 109-118; Élvio Sousa, O Núcleo Arqueológico da Junta de Freguesia de Machico, in ILHARQ, nº.1, 2001, p.23; IDEM(coord.)A propósito do Solar do Ribeirinho, Machico, 2000; IDEM, Escavações arqueológicas no solar do Ribeirinho(Machico-Ilha da Madeira, in Al-Maden, nº.9, Almada, 2000 140 . ibidem, p.28 141 . Cf. David Ferreira de Gouveia, O Açúcar da Madeira, in Atlântico, 4, 1985, nota 11. 142 . 27 de Março de 1501, AHM, XVII, 1973, pp.409-413, p.421. Cf. Pieter Honig, Principios de Tecnologia Azucarera, México, 1969, pp.323, 358-360, 425. 143 . Carta do Duque de 12 de Novembro de 1483, AHM, XV, 1972, p.133; carta régia de 2 de Abril de 1505, AHM, vol. XVII, 1973, p.455; Regimento de 8 de Setembro de 1507, AHM, XVIII, 1974, p.495

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Pera que branco fique, claro, a puro, De huma galinha o pé com barro o toca, Que o secreto descobre mais seguro, E a purgação com barro lhe provoca; Segredo que em prudencia, no futuro, Alvura poem, ao que por pranta, ou soca, Descobre feito, a singular belleza, Com que mais se engrandesce na pureza144 A historiografia clássica aponta o início com os persas no século VII145. O barro da ilha deveria ser diminuto, uma vez que temos notícia da importação do Porto Santo e doutras proveniências146. O mesmo se passava com as formas de açúcar, indispensáveis em todo o processo, que eram importadas do Barreiro e Aveiro147. A única informação sobre o fabrico do açúcar surge pela voz de Giulio Landi, um italiano que visitou a Madeira na década de trinta. Depois de referir a forma de trituração das canas anota com minúcia o processo que se segue: “Aqui há cinco vasos postos por ordem, para cada um dos quais o suco saído das canas passa através dum cano. Depois de levado para o primeiro vaso, deixam-no ferver durante um certo tempo em ebulição, depois, passando para os outros vasos, com fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de modo que chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer. A espuma que se forma ao cozer o açúcar deita-se em barricas, excepto a que sai da primeira cozedura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito semelhante ao mel.”148 A casa das caldeiras assinala também uma importante evolução. Assim, de apenas uma caldeira evoluiu-se para quatro caldeiras ou taxas, o que fazia acelerar o processo de cozimento da calda até ser depositada nas formas. O melaço endurecido e frio depositado nas formas era transportado para a casa de purgar onde repousava em andaimes. Aí acontecia o moroso processo de evaporação, depuração do melaço que termina com os pães de açúcar branco. A prova está no inventário do engenho de António Teixeira em 1535, onde se dá conta de 2 caldeiras de cobre, uma tacha grande e uma de receber. A tudo isto juntava-se um conjunto variado de apetrechos como coadura, escumadeira, repartideira, batedeira, raminhões149.

Hamilton Fernandes, 1959, Fundaj (Recife)

144. Manuel Thomas, Insulana, Amberes, 1635, p.474, estrofe 82. 145. LIPPMANN, von, Edmund O., Geschichte des Zuckers, Berlin, 1890, 1929 (ed. Portuguesa, R. Janeiro, 1941), Julio Le Riverend Brussone, História del Azúcar antes Del Descubrimiento de América, Revista Bimestre Cubana, t. LIX, 1948, p.198; Fernando Sandoval, La Industria del Azúcar en Nueva España, México, 1951. 146. Regimento de 10 de Janeiro de 1512, AHM, XVIII, 1974, p.542 147. Claudio Torres, A Industria do Açúcar nos Alvores da Expansão Atlântica, Actas del Segundo Seminario Internacional – La Caña e Azúcar en el Mediterráneo, Motril, 1990, pp.183-210 148. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, pp.85-86. 149. Cf. David Ferreira de Gouveia, O Açúcar da Madeira, in Atlântico, 4, 1985, pp.263-266

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O processo de fabrico do açúcar estava sujeito a um rigoroso controlo por parte dos alealdadores150. A eles competiam fiscalizar a qualidade do açúcar laborado em todos os engenhos. A palavra lealdar, tal como outras da tecnologia açucareira, passou para as Canárias151. As normas eram rigorosas e proibiam o uso no comércio dos pães de açúcar quebrado. A qualidade do açúcar laborado dependia das dimensões das formas. Sabe-se em princípios do século XVI que eram muito grandes o que impedia que a purga fosse bem feita. Deste modo estabeleceu-se uma bitola para medir todas as formas importadas, fazendo com que seis pães correspondessem a uma arroba152. A Madeira foi um marco importante na evolução e afirmação do açúcar no espaço atlântico. O nome da ilha está associado ao açúcar e ao complexo sócio-económico que o serviu. Toda a estrutura serviu de matriz ao que sucedeu nos demais espaços açucareiros. O contributo madeirense não terá ficado somente pela acção divulgadora não terá ficado apenas pela difusão das socas de cana e respectiva tecnologia de transformação. Por outro lado a ilha foi um marco na afirmação e produção em larga escala da cultura, situação que se repercutiu de forma evidente na tecnologia que acompanhou a evolução. Apenas a falta de dados documentais mais seguros e explícitos nos impede de avançar mais. A presença de barro na Madeira e Porto Santo é evidenciada pela toponímia. A disponibilidade nunca foi suficiente para as necessidades internas, uma vez que à procura para o fabrico de utensílios domésticos e telha dita romana, havia nos séculos XV e XVI a utilização no fabrico de açúcar, quer para formas, quer na fase de purificação. A situação obrigou a coroa a tomar medidas na defesa dos barreiros e lamaceiros e só quando terminou a exploração açucareira ficou livre o uso. De acordo com as posturas do século XVI podia-se adquirir potes, alguidares, panelas, tigelas, vasos, púcaros, fogareiros, luminárias, cangirões, mealheiros, talhas. No Funchal existiam olarias e o testemunho da actividade permaneceu na toponímia da cidade, a rua da Olaria. Para o século XIX conhecem-se olarias no Funchal, Machico Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta e Boaventura.

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Apanha da cana, 2002

150. Regimento dos alealdadores de 27 de Março de 1501, AHM, XVII,1973, pp.409-416. 151. Cf. Maria Luisa Fabrellas, La Producción de Azúcar en Tenerife, Revista de Historia, nº.100, 469. 152. Carta régia de 2 de Setembro de 1501, AHM, XVII, 1973, pp.409-413, p.421.

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Safra. Calheta. 2002

O ENGENHO OU CASA DE MOER

APANHA DA CANA (...) Tanto, pois, que estiver de vez, se mandará pôr nela a foice, tendo já certo o dia em que se há-de moer, para que não fique depois de cortada a murchar-se no engenho ou se não seque exposta ao sol no porto, se este for distante da moenda (...). E o senhor do engenho é o que reparte os dias, assim para moer a sua cana como a dos lavradores, conforme cabe a cada qual por seu turno e manda o aviso pelo feitor a seu tempo (...). O modo de cortar é o seguinte: pega-se com a mão esquerda em tantas canas quantas pode abarcar e com a direita armada de foice se lhe tira a palha, a qual depois se queima, ou pela madrugada, ou já de noite, quando, acalmando o vento, der para isso lugar e serve para fazer a terra mais fértil; logo, levantando mais acima a mão esquerda, botam-se fora com a foice os olhos da cana e estes dão-se aos bois a comer; e, ultimamente, tornando com a esquerda mais abaixo, corta-se rente ao pé, e quanto a foice for mais rasteira à terra, melhor. Quem segue ao que corta (que comummente é uma escrava) ajunta as canas limpas como está dito, em feixes, a doze por feixe, e com os olhos delas os vai atando e assim atados vão nos carros ao porto ou, se o engenho for pela terra dentro, chega o carro à moenda. (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Levanta-se à borda do rio sobre dezassete grandes pilares de tijolo, largos quatro palmos, altos vinte e dois e, distantes um de outro, quinze, uma alta e espaçosa casa, cujo tecto coberto de telha assenta sobre tirantes, frechais e vigas de paus que chamam de lei, que são dos mais fortes que há no Brasil, a quem nenhuma outra terra leva nesta parte vantagem, com duas varandas ao redor, uma para receber cana e lenha, outra para guardar madeiras usuais de sobresselente. E a esta chamam casa da moenda, capaz de receber comodamente quatro tarefas de cana, sem perturbação e embaraço dos que necessariamente hão-de lidar na dita casa e dos que por ela passam, sendo caminho aberto para qualquer outra oficina e particularmente para as casas imediatamente contíguas das fornalhas e das caldeiras, contando de comprimento todo este edifício cento e noventa e três palmos e oitenta e seis de largo. Mói-se nesta casa a cana com tal artifício de eixos e rodas que bem merece particular reflexão e mais distinta notícia. Tomam para mover a moenda do rio acima, onde faz a sua queda natural a que chamam levada, que vem a ser uma porção bastante de água do açude ou tanque que para isso tem, divertida com represas de pedra e tijolo do seu curso e levada com declinação moderada por um rego capaz e forte nas margens, para que a água vá unida e melhor se conserve, cobrando na declinação cada vez maior ímpeto e força, com seu sangrador para a divertir, se for necessário, quando por razão das chuvas ou cheias viesse mais do que se pretende e com outra abertura para duas bicas, uma que leva água para a casa das caldeiras e outra que vai a refrescar o aguilhão da roda grande dentro da moenda, servindo-se para a comunicar ao outro aguilhão de uma tábua e assim vai a entrar no cano de pau que chamam caliz, sustentado de pilares de tijolo e na parte superior descoberto, cujo extremo inclinado sobre os cubos da roda se chama feridor, porque por ele vai a água a ferir os ditos cubos, donde se origina e continua o seu moto. Assentam os aguilhões do eixo desta roda, um pela parte de fora e outro pela parte de dentro da casa da moenda, sobre seus chumaceiros de pau com chapa de bronze e a estes sustentam duas virgens ou esteios de fora e duas de dentro, com seu brinquete, que é a travessa em que os aguilhões se encostam; e sobre estes, como dissemos, vai sempre caindo uma pequena porção de água para os refrescar, de sorte que pelo contínuo moto não ardam, temperando-se com água suficiente o calor. As aspas da roda larga e grande sustentam os arcos ou círculos dela e dentro aparecem os cubos ou covas feitas no meio da roda e unidos um a outro com o fundo fechado do

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forro interior da mesma roda entre os dois arcos dela, assegurados com muitas cavilhas de ferro e com suas arruelas e chavetas metidas e atravessadas para enchavetar as pontas das cavilhas, causa de não bulirem os arcos nem os cubos ao cair da água e de ir a roda com suas voltas segura. Perto da roda, pela banda de fora, estão dois esteios altos e grossos com três travessas, asseguradas também de outra parte, uma das quais sustenta a extremidade do caliz, duas o feridor e outra o pejador do engenho. É o pejador uma tábua, pouco mais larga que a roda, de dez ou doze palmos de comprimento, com suas bordas, semelhante a um grande tabuleiro debaixo do feridor, com uma cavilha chavetada, de sorte que se possa jogar e bulir com ela sem resistência e por isso se faz o buraco da cavilha bastantemente largo e na parte inferior tem no lado que se vai encostar à parede da moenda um espigão de ferro preso também com uma argola de ferro que, entrando por uma abertura pela dita parede com sua mão ou cabo, em o qual se encavilha sobre um esteio que chamam mourão, à maneira de engonços, fica à disposição de quem está na moenda a mandá-la parar ou andar, como quiser, empurrando ou puxando pelo pejador, o qual, pondo-se sobre os cubos, impede o feridor o dar-lhe o moto com a queda da água; e, tornando a descobrir os cubos, torna a mover-se a roda e com a roda a moenda. E isto é muito necessário em qualquer desastre que pode acontecer para lhe acudir depressa e atalhar os perigos. E chamam a esta tábua pejador, porque também ao parar do engenho chamam pejar, porventura por se pejar um engenho real de ser retardado ou impedido, ainda por um instante e de não ser sempre, como é razão, moente e corrente. E isto quanto à parte exterior da moenda, onde principia o seu movimento. Entrando, pois, na casa interior, o modo com que se comunica o moto por suas partes à moenda é o seguinte: o eixo da roda grande que, como temos dito, pela parte de fora, se mete dentro da casa do engenho tem no seu remate interior chegado aonde assenta o aguilhão, sobre o brinquete e esteios, um rodete fixo e armado de dentes que o cerca e este, virado ao redor pelo caminho do dito eixo, apanha, sucessivamente, na volta que dá com seus dentes, outros de outra roda superior, também grande, que chamam volandeira, porque o seu modo de andar circularmente no ar sobre a moenda se parece com o voar de um pássaro quando dá no ar seus rodeios. Os dentes do rodete que eu vi eram trinta e dois e os da volandeira cento e doze. E porque as aspas da volandeira passam pelo pescoço do eixo grande da moenda, por elas se lhe comunica o impulso e este, recebido do dito eixo grande, cercado de entrosas e dentes, se comunica também a outros dois eixos menores que tem de ambas as ilhargas, dentados e abertos igualmente com suas entrosas, do mesmo modo que temos dito do grande, e com estes dentes e entrosas se causa o moto, com que uniformemente o acompanham. As aspas da volandeira são oito, quatro superiores e quatro inferiores e as inferiores têm suas contra-aspas para maior segurança. Os três eixos da moenda são três paus redondos de corpo esférico, alto nos menores iguais cinco palmos e meio, e no maior, que é o do meio, alto seis palmos e também de esfera maior que os outros e por eleição o melhor, porque jogando com os dois, que nas ilhargas continuamente o apertam, gasta-se mais que os outros, e por isso por boa regra os menores têm nove dentes e o maior onze e só este

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(para falarmos com a língua dos oficiais) tem seu pescoço e cabeça alta, conforme a altura do engenho e comummente ao todo vem a ter o dito eixo doze palmos de alto, cuja cabeça, de dois palmos e meio, mais delgada que o pescoço, entra por um pau furado, que chamam porca, sustentado de duas vigas de quarenta e dois palmos, as quais assentam sobre quatro esteios altos, dezassete palmos, e grossos, quatro, com suas travessas proporcionadamente distantes. E ainda que os outros dois eixos menores não têm pescoço, contudo, pela parte de cima entram quanto basta, com sua ponta ou aguilhão, por uns paus furados, que chamam mesas ou gatos, com que ficam direitos e seguros em pé. Os corpos dos três eixos da metade para baixo são vestidos igualmente de chapas de ferro unidas e pregadas com pregos feitos para este fim, com a cabeça quadrada e bem entrante, para se igualarem com as chapas, debaixo das quais os corpos dos eixos são torneados com tornos de paus de lei, para que fique a madeira mais dura e mais capaz de resistir ao contínuo aperto que há-de padecer no moer. Sobre as chapas aparece um circulo ou faixa de pau, que é a outra parte do corpo dos mesmos eixos despida de ferro e logo imediatamente se segue o círculo dos dentes de pau de lei, encaixados nos eixos com suas entrosas (que são umas cavaduras ou vãos repartidos entre dente e dente) para entrarem e saírem delas os dentes dos outros eixos colaterais, que para isso são em tudo iguais os dentes e as entrosas, a saber, os dentes na grossura e na altura e as entrosas na largura e profundeza do encaixamento ou vazio, que comummente saem do corpo do eixo, comprimento de cinco ou seis dedos, de largura de uma mão, e de quatro ou cinco dedos de costa, de forma quase chata e nos extremos redonda. E ainda que entre dente e dente dos eixos menores haja espaço medido por compasso de igual medida, que é um palmo grande, os do eixo maior têm de mais a mais tanto espaço além do palmo quanto ocuparia a grossura de uma moeda de dois cruzados e isto se faz para que estejam em sua conta e não entrem no mesmo tempo os dentes dos eixos colaterais, mas um se siga atrás de outro e desta sorte se continue em todos três o moto que se pretende. E por isso também os dentes e as entrosas de um eixo se hão-de desencontrar dos dentes e entrosas de outro, a saber, ao dente do eixo grande há-de corresponder a entrosa do pequeno e ao dente do pequeno a entrosa do grande. São os dentes (como dizia) na parte que sai fora do eixo algum tanto chatos e no fim quase redondos, largos quatro ou cinco dedos e outro tanto grossos e entram quase outros quatro dedos pela sua raiz no eixo, aonde se seguram, além da parte com que fazem parede às entrosas, que são na mesma conta quatro ou cinco dedos profundas. Sobre os dentes dos eixos menores fica a terceira parte do pau descoberta e se remata a modo de degraus em dois círculos menores vestidos de duas argolas de ferro de grossura de um dedo e meio, largura de três dedos e na ponta do pau se vaza de tal sorte que entre nele uma bucha quadrada de dois ou três palmos, de sapupira mirim, a qual bucha também em parte se vaza e nela se encaixa o aguilhão de ferro, comprimento de três palmos, grossura de um caibro, à força de pancadas com um vaivém de ferro. E para melhor segurança do aguilhão e da bucha se abre na cabeça dos quatro lados da bucha com uma palmeta de ferro à força de pancadas do vaivém e se lhe metem umas palmetas ou cunhas menores de pau de lei para não aluir. E pelo mesmo estilo de degraus e argolas, bucha e aguilhão, com que temos dito, se rema-

Formas de açúcar, Itu. Brasil

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Moenda a vapor. Engenho Hinton

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MOENDA DAS CANAS

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Moem-se as canas metendo algumas delas limpas da palha e da lama (que para isso se for necessário se lavam) entre dois eixos, aonde apertadas fortemente se espremem, metendo-se na volta que dão os eixos os dentes da moenda nas entrosas para mais as apertar e espremer entre os corpos dos eixos chapeados que vem a unir-se nas voltas e, depois delas passadas torna-se de outra parte a passar o bagaço para que se esprema mais e de todo o sumo ou licor que conserva. E este sumo (ao qual depois chamam caldo) cai da moenda em uma cocha de pau que está deitada debaixo da ponte dos aguilhões e daí corre por uma bica a um parol metido na terra, que chamam parol do caldo, donde se guinda com dois caldeirões ou cubos para cima com roda, eixo e correntes e vai para outro parol que está em um sobradinho alto, a quem chamam guinda, para daí passar para a casa das caldeiras, aonde se há-de limpar. (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

CASA DAS CALDEIRAS

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ta a parte superior dos dois eixos menores, se rematam também as partes inferiores de todos os três, ajuntando de mais a cada aguilhão seu pião de ferro calçado de aço da grossura de uma maçã, que também se encaixa pela parte superior até dois dedos dentro do aguilhão e pela parte inferior põem a ponta sobre outro ferro chato que chamam mancal, de comprimento de um palmo, também calçado de aço, para que se não fure com o continuo virar que sobre ele faz o pião. E todos estes três eixos ou corpos da moenda aonde chega o pião ao mancal assentam sobre um pau que chamam ponte, de comprimento de quinze ou dezasseis palmos, e para sustentar toda a moenda forte e segura servem quatro virgens, que são quatro esteios, altos da terra nove palmos e grossos sete, semelhantes no seu ofício de suster aos que sustentam as vigas grandes e a porca ou pau furado, por onde passa a ponta do eixo grande, que sobre os outros colaterais se levanta até à dita altura como parte principal da moenda. Sobre estas virgens de ponta a ponta vão uns paus que chamam mesas, quase um palmo de grossura e vinte de comprimento, sobre as quais descansam as travessas que chamam gatos em que se movem os eixos pela parte superior e sobre estes vai outro andar ao comprido, de tábuas que chamam agulhas as quais servem para segurar as cunhas com que se aperta a moenda. O lugar aonde se põem os feixes da cana que imediatamente há-de passar para se espremer entre os eixos são dois tabuleiros, um de uma parte e outro de outra, que têm seus encaixes ou meios círculos ao redor dos eixos da moenda, afastados deles tanto quanto basta para não lhes impedir suas voltas. E o estarem os tabuleiros chegados aos eixos é para que não caía a cana ou o bagaço dela perto dos aguilhões e retarde de algum modo os piões e para que se não suje o caldo que sai da cana moída.

Nos engenhos reais costuma haver seis fornalhas e nelas outros tantos escravos assistentes que chamam metedores de lenha. As bocas das fornalhas são cercadas com arcos de ferro, não só para que sustentem melhor os tijolos, mas para que os metedores no meter da lenha não padeçam algum desastre. Tem cada fornalha sobre a boca dois bueiros, que são como duas ventas, por onde o fogo resfolega. Os pilares que se levantam entre uma e outra hão-de ser muito fortes, de tijolo e cal, mas o corpo das fornalhas faz-se de tijolo com barro, para resistir melhor à veemente actividade do fogo, ao qual não resistiria nem a cal nem a pedra mais dura e as que servem para as caldeiras são alguma coisa maiores que as que servem para as tachas (...). A cinza das fornalhas serve para fazer decoada e esta para limpar o caldo da cana nas caldeiras e para que saia o açúcar mais forte. Para isso, arrasta-se com rodo de ferro até à boca das fornalhas pouco a pouco a cinza e borralho e daí com uma pá de ferro se tira e se leva sobre a mesma pá para o cinzeiro, que é um tanque de tijolo sobre pilares de pedra e cal, de figura quadrada, com suas paredes ao redor e aqui se conserva quente e, assim quente, se põe nas tinas, que para isso estão levantadas da terra sobre uns esteios de três palmos. Aí, depois de bem caldeada e arrumada, se lhe bota água, tirada de um tacho grande que está fervendo sobre a sua proporcionada fornalha perto do cinzeiro. E para isso serve a água que passa pela bica que vai à casa das caldeiras; e coando esta água pela cinza, até passar pelos buracos que têm as tinas no fundo, cobra o nome de decoada e vai cair nas formas ou vasilhas enterradas até à metade e daí se tira com um coco e se passa em um tacho para a casa das caldeiras, aonde se reparte pelas formas que estão postas entre as caldeiras e serve para os caldeireiros ajudarem com ela ao caldo, como se dirá em seu lugar (...).

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

Trapiche vertical hidráulico e eólico. Jean Baptiste Labat, 1722

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Cadeira. L. Beaudet, 1894 Engenho Porto da Cruz

CASA DOS COBRES Estão estes cobres postos sobre a abóbada das fornalhas em assentos ou encostadores de tijolo e cal ao redor, abertos de tal sorte que, com o fundo que metem dentro da mesma fornalha, tapa cada qual a abertura em que se recebe e entra por ela proporcionadamente ao corpo que tem, a saber, menos as tachas e muito mais as caldeiras. E assim como tem sua parede que divide uma de outra e outra parede que divide esta casa da outra contígua do engenho, assim tem diante de si um ou dois degraus por onde se sobe a obrar neles com os instrumentos necessários nas mãos e com bastante espaço para dominar sobre eles com ajustada altura e distancia e ao redor de toda a parede dianteira, com caminho desafogado no meio, esta o tendal das formas em que se bota o açúcar já cozido a coalhar e é capaz de oitenta e mais formas. Consta um terno ou ordem de cobres (além do parol do caldo e do parol da guinda que

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ficam na casa da moenda) de duas caldeiras, a saber, da do meio e da outra de melar, de um parol da escuma, de um parol grandes que chamam parol do melado, e de outro menor, que se chama parol de coar; de um terno de tachas, que são quatro, a saber, a de receber, a da porta, a de cozer e a de bater e, finalmente, de uma bacia que serve para repartir o açúcar nas formas e, de outros tantos cobres de igual ou pouco menor grandeza, consta outro andar semelhante (...). As pessoas que assistem nesta casa são o mestre do açúcar, o qual preside a toda a obra e corre por sua conta julgar se o caldo está já limpo e o açúcar cozido e batido quanto pede, para estar em sua conta; assiste às temperas e ao repartimento delas nas formas, além do que lhe cabe fazer na casa de purgar, de que falaremos no seu próprio lugar. (...). Revezam-se nas caldeiras oito caldeireiros, divididos em duas esquipações, um em cada uma, de assistência contínua até entregá-la ao seu sucessor, escumando o caldo que ferve com cubos e tachos. Obrigação de cada caldeireiro é escumar três caldeiras de caldo, que chamam três meladuras, e a última se chama de entrega, porque a deve dar meio limpa ao caldeireiro que o vem render. E para estas três meladuras lhe há-de dar a guindadeira o caldo que há mister a seu tempo, a saber, acabado de escumar e limpar uma meladura dar-lhe outra (...). Os instrumentos de que se usa na casa das caldeiras são escumadeiras, pombas, reminhões, cubos, passadeiras, repartideiras, tachos, vasculhos, batedeiras, bicas, cavadores, espátulas e picadeiras. Das escumadeiras e pombas grandes usam os caldeireiros; servem as escumadeiras para limpar; as pombas para botar o caldo de uma caldeira para outra, ou da caldeira para o parol, e por isso os cabos, assim de umas como de outras, têm catorze ou quinze palmos de comprido, para se poderem menear bem. Os reminhões servem para botar água e decoada nas caldeiras e para ajudar os tacheiros a botar o açúcar na repartideira, para ir às formas. Das escumadeiras mais pequenas, batedeiras e passadeiras, picadeiras e vasculhos usam os tacheiros; da repartideira, cavador e espátulas, o banqueiro e o ajuda-banqueiro; e dos tachos, cubos e bica usa a calcanha para tirar a escuma do seu próprio parol e para torná-la a pôr na caldeira. Serve o vasculho para tirar alguma imundície ao redor das tachas; a picadeira, para tirar o açúcar que está como grudado nas mesmas tachas e o cavador, para fazer no bagaço do tendal as covas, aonde se põem as formas. (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

Diderot e Alembert, 1762

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LIMPEZA E PURIFICAÇÃO DO CALDO

Engenho. Azulejo no Museu Republicano. Itu(Brasil)

Tacha encamisada de fundo duplo. Louis Figuier, 1876

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Guindando-se o sumo da cana (que chamam caldo) para o parol da guinda, daí vai por uma bica entrar na casa dos cobres e o primeiro lugar em que cai é a caldeira, que chamam do meio, para nela ferver e começar a botar fora a imundície com que vem da moenda (...). Saída a primeira escuma por si mesma, começam os caldeireiros com grandes escumadeiras de ferro a escumar o caldo e ajudá-lo e chamam ajudar o caldo o botar-lhe de quando em quando já um reminhol de decoada, já outro de água que aí tem perto: a água nas tinas e a decoada nas formas. Serve a água para lavar o caldo e a decoada para que toda a imundície que resta na caldeira venha mais depressa arriba e não assente no fundo. Serve também para condensar o açúcar e fazê-lo mais forte, incorporando-se com o caldo, do modo que se incorpora o sal com a água. Esta segunda escuma se guarda e cai por outra bica da mesma borda do ladrilho para o parol mais baixo e afastado do fogo, que se chama parol da escuma, e daí, com cubo e tacho torna a botá-lo a negra calcanha que tem isto por ofício na mesma caldeira, para se purificar, que chamam repassar, e vai por uma bica de pau, encavilhada sobre um esteio de igual altura das caldeiras (a que chamam viola, por imitar no feitio este instrumento), larga no corpo ou parte em que recebe a escuma e estreita no cano por onde cai na caldeira. E tanto que o caldo aparece bem limpo (o que se conhece pela escuma e pelos olhos e empolas que levanta, cada vez menores e mais claros), com uma pomba grande (que é um vaso côncavo de cobre, com seu cabo de pau comprido doze ou quinze palmos) o botam na segunda caldeira, que chamam de melar, e aqui se acaba de purificar, com o mesmo benefício de água e decoada até ficar totalmente limpo. Deixa-se limpar o caldo na caldeira do meio comummente pelo espaço de meia hora e já meio purgado passa a cair na caldeira de melar por uma hora ou cinco quartos, até acabar de se escumar, e nunca se tira todo o caldo das caldeiras, por razão dos cobres, que padeceriam detrimento do fogo, mas se lhes deixa dois ou três palmos de caldo e sobre este se bota o novo. A escuma também desta segunda caldeira vai ao parol da escuma e daí torna para a primeira ou segunda caldeira até ao fim da tarefa e desta escuma tomam os negros para fazerem sua garapa, (...). À derradeira escuma da última meladura, que é a última purificação do caldo, chamam claros e estes, misturados com água fria, são uma regalada bebida para refrescar e tirar a sede nas horas em que faz maior calma. Finalmente, tanto que o mestre do açúcar julgar que a meladura está limpa, o caldeireiro com uma pomba bota o caldo, a que já chamam mel, no parol grande, que chamam parol do melado, e está fora do fogo, mas junto à mesma caldeira, donde o coam para outro parol mais pequeno, que chamam parol de coar, com panos coadores estendidos sobre uma grade. (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O COZER E BATER DO MELADO Estando já o caldo purificado e coado, passa a cozer-se nas tachas, ajudadas de maior fogo e chama da que hão mister as caldeiras, contanto que os fundos tenham a grossura bastante para resistir à maior actividade que neste lugar se requer. E se o melado se levantar de sorte que ameace transbordar botando-lhe um pouco de sebo logo amaina e se cala (...). Passando, pois, o melado do parol de coar para o terno das tachas, corre por cada uma delas ordenadamente e pára em cada uma quanto for necessário e não mais para o fim que em cada qual se pretende. Na primeira tacha, que se chama a de receber, ferve e começa a cozer-se e se lhe tiram as escumas mais finas, que chamam netas, e se botam com uma pequena escumadeira em uma forma que aí está posta e, se as quiserem aproveitar, como é bem, farão delas, no fim da semana, um pão de açúcar somenos, porque esta escuma não torna à tacha como torna a do caldo às caldeiras. Da tacha de receber, aonde está pouco tempo, passa-se o melado com uma passadeira de cobre (que é do feitio de uma pomba pequena) para a segunda tacha, que chamam da porta, e aqui, continuando a ferver e engrossar, se lançar de si para a borda alguma imundície, tira-se e limpa-se ao redor com um vasculho, que é como um pincel ou escova de embira, amarrado na ponta de uma vara, e nesta tacha se deixa estar mais tempo, até ficar já meio cozido. Daqui, com a mesma passadeira, se bota na terceira tacha, que chamam de cozer, porque, ainda que nas outras também se coza, contudo aqui acaba de se cozer e de se condensar perfeitamente, até estar em seu ponto para se bater e isto o há-de julgar o mestre ou em seu lugar o banqueiro, pelo corpo e grossura que tem. E, estando desta sorte, chama-se mel em ponto, grosso suficientemente e compacto e já disposto para passar à quarta tacha, que chamam tacha de bater, aonde se mexe com uma batedeira, que é semelhante à escumadeira, mas com seu beiço e sem furos, e bate-se para se não queimar e, quando o tem bem batido e com bastante cozimento, o levantam com a mesma batedeira sobre a tacha ao alto que pode ser, e a isso chamam desafogar, no que os tacheiros mostram destreza singular e continuam assim mais ou menos, conforme pedem as três temperas que se hão-de fazer do açúcar que háde ir para as formas, das quais temperas, (...).

Diderot e Alembert, 1762

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O TEMPERAR DO MELADO Chama-se, a primeira, tempera de principiar ou tempera de bacia, a qual consta de mel solto porque tem menos cozimento e é o primeiro que se tira da tacha de bater logo no princípio e se bota em uma bacia fora do fogo, a par das tachas com a batedeira, aonde se mexe com espátula ou com reminhol virado com a boca para baixo. E tendo já o banqueiro ou o ajuda-banqueiro aparelhado quatro ou cinco formas no tendal dentro de umas covas de bagaço, com seu buraco fechado e igualmente altas, às quais chamam venda, se passa esta tempera com reminhol dentro de uma repartideira e a reparte pelas ditas quatro ou cinco formas o banqueiro ou o ajuda-banqueiro ou algum tacheiro, porém, com ordem do mestre, botando igualmente em cada uma delas a sua porção, de sorte que fique lugar para receber as outras duas temperas que logo se hão-de seguir. A segunda chama-se tempera de igualar e tem maior cozimento porque o mel que traz esteve mais tempo na tacha de bater e aí mexido e engrossado foi mais batido. E esta também tirada da tacha e posta e mexida com reminhol na bacia passa para as ditas quatro formas na repartideira e com igual porção se reparte por elas, aonde com espátulas se mexe mais que a primeira. Segue-se por último a terceira, que chamam tempera de encher, a qual tem já todo o cozimento e grossura necessária e com ela passada para a bacia e mexida ainda mais com reminhol e levada na repartideira para o tendal, se enchem as formas, continuando com a espátula a mexer nelas todas as três temperas, de sorte que perfeitamente se incorporem e de três se faça um só corpo. Este benefício é tão necessário que sem ele o açúcar posto nas ditas formas não se poderia depois branquear e purgar, porque se se botasse nas formas só a tempera que tem cozimento perfeito coalharia e se condensaria de tal sorte que não poderia passar por ele a água que o há-de lavar depois de ser barreado. E se a tempera fosse totalmente solta escorreria todo o açúcar das formas na casa de purgar e se desfaria todo em mel. E, assim, com a mistura das três temperas se coalha de tal sorte que fica lugar à água de passar pouco a pouco, conservando-se o açúcar denso e forte e recebe o benefício de se branquear sem o prejuízo de se derreter, senão quanto basta para perfeitamente se purgar.

Modelo e forma, propriedade de José Elias Matos Pacheco. Itu, Brasil

AS FORMAS E A PURGA São as formas do açúcar uns vasos de barro queimado na fornalha das telhas e têm alguma semelhança com os sinos, altas três palmos e meio e proporcionadamente largas, com maior circunferência na boca e mais apertadas no fim, aonde são furadas, para se lavar e purgar o açúcar por este buraco. O serem de ruim barro e mal queimadas é defeito notável, como também o serem pequenas. As boas são capazes de dar pães de três arrobas e meia. Tem nas casas da caldeira seu tendal cheio de bagaço de cana que vem da bagaceira, o qual, cavado com um cavador de ferro ou de pau, serve de cama ou cova para nele se assentarem as formas direitas em duas fileiras iguais e, como temos dito acima, de cada quatro ou cinco formas consta uma venda. Antes de botar nelas o açúcar, se lhes tapa o buraco que tem no fundo com seus tacos de folha de banana e se asseguram com arcos de cipó e cana brava, para que com a demasiada quantidade do açúcar não arrebentem. Logo se lhes bota o açúcar por temperas, como já temos dito, o qual no espaço de três dias endurece diversamente, um mais, outro menos, e ao que mais se endurece e dificultosamente se quebra chamam açúcar de cara fechada e ao que facilmente com qualquer pancada se quebra chamam açúcar de cara quebrada (...).

Tirar dos pães. Gravuras do séc. XIX

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711) (Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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A CASA DE PURGAR

Diderot e Alembert, 1762

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A casa de purgar é comummente separada do edifício do engenho (...), fabricada de pedra e cal, emadeirada com paus de maçaranduba e coberta com todo o asseio de telhas de comprimento de quatrocentos e quarenta e seis palmos e oitenta e seis de largura dividida em três carreiras de andainas com vinte e seis pilares de tijolo no meio, altos quinze palmos e meio e largos quatro, para sustentarem o tecto que assenta ao redor sobre paredes largas e fortes. Recebe esta casa a luz e ar necessário por cinquenta e duas janelas, altas oito palmos e largas seis, vinte e três de cada banda, três na fachada com sua porta e três na testada. Repartem-se as andainas por quartéis de tábuas abertas em redondo sobre pilares de tijolo, altos da terra sete palmos, e leva cada tábua dez destas aberturas para receber outras tantas formas, de sorte que por todas são capazes de purgar comodamente no mesmo tempo até dois mil pães. Debaixo das ditas tábuas assim abertas há outras tantas tábuas do mesmo comprimento, cavadas à maneira de regos e inclinadas na parte dianteira que servem de bicas ou correntes, por onde corre o mel que cai dos buracos das formas em que se purga o açúcar aos tanques enterrados e há no fim uma fornalha para o cozer e tornar a fazer dele açúcar com seu tendal capaz de quarenta formas. Há também na entrada à mão esquerda da porta uma casinha de madeira para nela guardar o açúcar que sobejou ao encaixar e quantos instrumentos são necessários para barrear, mascavar, secar e encaixar e o primeiro espaço da casa de purgar, capaz de trezentas caixas, antes de chegar às andainas das formas, serve da caixaria mais resguardada e segura, com a porta ao poente, para que, gozando toda a tarde do sol, defenda com seu calor ao açúcar do maior inimigo que tem depois de feito e encaixado, que é a humidade. Diante da porta da casa de purgar levanta-se sobre seis pilares um alpendre de oitenta e dois palmos de comprimento e vinte e quatro de largo, debaixo do qual está o balcão de mascavar e da outra parte está o cocho para amassar o barro que se bota nas formas para purgar o açúcar e mais adiante o balcão para o secar, comprido oitenta palmos e largo cinquenta e seis, sustentado de vinte e cinco pilares de tijolo, mais alto no meio e com bastante inclinação nos lados para escorrer melhor a água que cair do céu e ser de mais dura (...). Os instrumentos de que se usa na casa de purgar são furadores de ferro para furar os pães em direitura do buraco das formas, cavadores, também de ferro, para cavar o pão no meio da primeira cara, antes de lhe botar o primeiro e segundo barro, e macetes, para o entaipar. No balcão de mascavar usam de couros, para aventar sobre eles as formas, de facões e machadinhos, para mascavar, e de toletes, para quebrar o açúcar mascavado. No balcão de secar são necessários facões, toletes e rodos e o pau quebrador de quatro lados de costa, para quebrar os pães de açúcar. No peso: balanças, pesos de duas arrobas e outros menores, com o da tara, pás e panacus. Na caixaria: pilões, rodo, pau de assentar, ao qual uns chamam moleque de assentar e, outros, juiz, enxó, verrumas, martelos e pregos, pé-de-cabra, para tirar pregos das caixas, e o gastalho, que serve para unir as tábuas rachadas ou abertas, metendo suas cunhas entre os lados da tábua e os dentes ou baraços do gastalho que a abraça por cima e desce pelas ilhargas; e as marcas de ferro com que se marca e declara a qualidade do açú-

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

car, o número das arrobas e o sinal do engenho em que se fez e encaixou. (...) Chegado ao engenho põe-se em lugar separado e daí passa a secar-se dentro da casa das fornalhas sobre um andar de paus segurado com esteios que chamam jirau, sobre o cinzeiro quando tem seu borralho, que é a cinza misturada com brasas (...). Entrando as formas na casa de purgar, se deitam sobre as andainas e se lhes tira o taco que lhes meteram no tendal e logo, com um furador agudo de ferro, de comprimento de dois palmos e meio, se furam os pães à força de pancadas, usando para isso do macete, e furados se levantam e endireitam as formas sobre as tábuas que chamam de furos, entrando por eles quanto basta para se susterem seguras e assim se deixam por quinze dias sem barro, começando logo a purgar e pingando pelo buraco que tem o primeiro mel, o qual, recebido debaixo nas bicas, corre até dar no seu tanque. Este mel é inferior e dá-se no tempo do Inverno aos escravos do engenho repartindo a cada qual cada semana um tacho e dois a cada casal, que é o melhor mimo e o melhor remédio que têm. Outros, porém, o tornam a cozer ou o vendem para isso aos que fazem dele açúcar branco batido ou estilam aguardente. Passados os quinze dias, daí por diante se pode barrear seguramente, o que se faz deste modo: cavam primeiro as quatro escravas purgadeiras com cavadores de ferro no meio da cara da forma (que é a parte superior) o açúcar já seco e logo o tornam a igualar e entaipar muito bem com macetes; botam-lhe então o primeiro barro, tirando-o com um reminhol dos tachos que vieram cheios dele do seu cocho, estando já amassado em sua conta e com a palma da mão o estendem sobre toda a cara da forma, alto dois dedos. Ao segundo ou terceiro dia botam em riba do mesmo barro meio reminhol ou uma cuia e meia de água e, para que não caia no barro de pancada e caindo faça covas no açúcar, recebem sobre a mão esquerda chegada ao barro a água que botam com a direita igualmente sobre toda a superfície e logo com a palma da mão direita mexem levemente o barro, de sorte que com os dedos não cheguem a bulir na cara do açúcar. E a este benefício chamam humedecer, borrifar e dar lavagens ou também dar humidades, e destas o primeiro barro não leva mais que uma; e está na forma seis dias donde se tira já seco e cava-se outra vez o açúcar no meio, como se fez ao princípio, e entaipa-se e com a mesma diligência se lhe bota o segundo barro, o qual está na forma quinze dias, e leva seis, sete e mais humidades conforme a qualidade do açúcar, porque o que é forte, quer mais humidades, resistindo à água que há-de correr por ele purgando-o, às vezes até nove e dez humidades. E, se for fraco, logo a recebe e fica em menos tempo lavado, mas disto não se alegra o dono do açúcar, porque antes o quisera mais forte do que tão depressa purgado. Também no Verão é necessário repetir as lavagens mais vezes, a saber, de dois em dois ou de três em três dias, conforme o calor do tempo, advertindo de lhe dar estas lavagens antes que o barro chegue a abrir-se em gretas por seco. No tempo do Inverno também se deixa o primeiro barro seis dias e alguns não lhe dão outra humidade mais que a que traz consigo, principalmente se forem dias de chuva. Porém, tirado o primeiro e posto o segundo, dão-lhe seis, sete e oito humidades de três em três dias, conforme a qualidade do açúcar e conforme obedecer às ditas lavagens (...).

Diderot e Alembert, 1762

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O TIRAR, MASCAVAR E SECAR

Diderot e Alembert, 1762

Preside a todo este benefício o caixeiro e corre por sua conta o que agora direi: ao pé do balcão, que chamam de mascavar, se aventam as formas sobre um couro, que vem a ser, bulir nelas devagar com as bocas viradas para o dito couro, para que saiam bem os pães, os quais postos sucessivamente por um negro sobre um toldo que está estendido sobre este balcão por mão de uma negra (à qual chamam mãe do balcão) se lhes tira com um facão todo aquele açúcar mal purgado e de cor parda que tem na parte inferior, e isto se diz mascavar e ao tal açúcar chamam depois mascavado. E entretanto outra sua companheira que é das mais práticas tira com um machadinho do mesmo mascavado o mais húmido, que chamam pé da forma ou cabucho, e este torna para a casa de purgar em outras formas até acabar de se enxugar e logo outras negras quebram com toletes os torrões do mascavado sobre um toldo, que também há-de ir ao balcão de secar (...). Passando, pois, do balcão de mascavar para o balcão de secar: levam-se em primeiro lugar para ele tantos toldos quantos são necessários para o açúcar que naquele dia se há-de secar. E se for de diversos donos, se conhecerá a repartição que cabe a cada qual, pelos toldos continuados na mesma fileira, se pertencerem ao mesmo, ou descontinuados, se forem de diversos senhores; e o que se diz do açúcar branco, se há-de dizer também do mascavado, repartido pelo mesmo estilo nas suas próprias fileiras. Isto feito, levam os pães para os toldos e com um pau grande e redondo no cabo em que se pega e no remate de feitio chato, como uma lança sem ponta (ao qual chamam quebrador ou moleque de quebrar), quebram em quatro partes os pães e cada uma destas em outras quatro e logo outros com facões dividem as mesmas em torrões e estes sucessivamente se tornam a partir com toletes em outros torrões menores; e, finalmente, depois de estarem já por algum tempo ao sol, acabam-se de quebrar em torrõezinhos pequenos. E guarda-se de propósito esta ordem em quebrar o açúcar para que, tendo dentro alguma humidade, quebrado pouco a pouco se entese e não se faça logo em migalhas ou em pó. Estando assim estendido, pegam nas pontas dos toldos e, levantando-as, fazem em cada toldo um montão e entretanto aquentam-se as tábuas e os toldos e logo tornam a abrir aqueles montes com rodos e, desta sorte, as partes que eram interiores ficam expostas ao sol e as outras estendidas sobre as pontas dos toldos sentem o calor que eles e as tábuas ganharam. Espalhado, torna a mexer-se com rodos de cambuá, como eles dizem, a saber: um de uma banda e outro de outra, empurrando cada um de sua parte o açúcar e puxando por ele por modo oposto ao que faz no mesmo toldo o negro fronteiro até acabar de secar. Vestígios de engenho. Faial

(Antonil, Cultura e opulência do Brasil.1711)

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CAPÍTULO 3

AÇÚCAR com e sem escravos

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

AÇÚCAR COM E SEM ESCRAVOS Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não significava que a existência de canaviais era sinónimo da presença próxima de um engenho. Aqui, mais do que no Brasil, foram inúmeros os proprietários incapazes de dispor de meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e, por isso mesmo, socorriam-se dos serviços daqueles que os dispunham. Com a paulatina diminuição da cultura dos canaviais, a partir da década de trinta do século XVI, é maior a dificuldade em associar aos canaviais um engenho. Para assegurar a cultura dos canaviais, laboração das moendas e transformação do produto final em açúcar, conservas ou casca, existia um grupo variado de oficiais mecânicos, trabalhadores livres e escravos. Tomando as posturas como referência vamos encontrar referências aos trabalhadores dos canaviais e engenho, a quem se regulamentara alguns aspectos da actividade1. Os oficiais mecânicos deveriam ser examinados e apresentar fiança ao município.2 Escravos negros. Cadeirado da Sé do Funchal. Século XVI.

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1. "Titulo das posturas dos engenhos", publ. in AHM, vol. I, pp.73-75. 2. Confronte-se Alberto Vieira e Vitor Rodrigues, "A Administração do Funchal 1470-1489", in II CIHM, 1990, pp.23-42

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Engenho

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Pormenor de engenho nas Antilhas. Século XVI

feitor

Casa de moer

Casa de cozer

Casa de purgar

FEITOR

MESTRE/BANQUEIRO

MESTRE/BANQUEIRO

Escravos Moedor Prenseiro

Forneiro Caldeireiro Tacheiro Escumeiro Cozedor de meles

Oleiro Purgador refinador caixeiro

O engenho era composto normalmente por três compartimentos onde se ocupavam diversos ofícios. Havia casos em que se testemunha a existência de forma isolada da casa da purga. As canas eram moídas e a guarapa cozida num engenho sendo depois as formas transferidas para uma casa de purga própria3. À volta da casa da moeda concentrava-se parte significativa do engenho, sob o olhar atento do feitor. Um grupo de almocreves, com as azémolas, garantia a disponibilidade de cana, enquanto o moedor, auxiliado por escravos, encarregava-se de a fazer passar pelos cilindros. No caso onde a cana era triturada por uma mó existia uma prensa para espremer o bagaço, sendo a tarefa a cargo do prenseiro. As operações das casas de cozer e da purga estavam a cargo do mestre, técnico especializado conhecedor das técnicas de fabrico, de quem dependia a qualidade do produto laborado. Próximo estavam outros oficiais e escravos que o auxiliavam nas diversas tarefas. Sabemos que em 1482, mestre Vaz e André Afonso, mestres de açúcar, estiveram ausentes em Canárias, deixando o acto de temperar o açúcar a cargo dos serventes, seja escravos ou moços4, daqui resultou desavenças em vereação Em todos os tempos a presença dos oficiais foi fundamental para o sucesso da indústria. No período da safra deviam acudir às diversas tarefas, não podendo dedicar-se ou ser envolvidos em ocupações distintas. Deste modo em 1694 ficaram isentos, por provisão, do serviço de vigias e alardos5. Não é possível reconstituir o quadro completo da força laboral. Apenas, a partir dos dados avulsos encontrados na documentação, nomeadamente nos registos paroquiais, é possível fazer-se uma 3 .ARM, JRC, fls. 350-355vº, 9 de Abril de 1566. 4 . ARM, CMF, nº.1297, fl.45, 20 de Abril 5 . ANTT, PJRFF, nº.968, fl.219

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

OFÍCIO Mestre Açúcar Purgador Caldeireiro Caixeiro Canavieiro Prenseiro Moedor Cozedor Meles Confeiteiro Conserveiro Escumeiro Refinador

FUNCHAL XVI XVII 20 1 29 3 20 3 46 15 8 1 8 5 1 5 2 1 1 3 -

CALHETA XVI XVII 2 3 6 1 1 2 -

Rª BRAVA XVI XVII 5 4 2 2 -

TOTAL XVI XVII 31 5 47 3 23 10 50 22 18 1 8 3 1 5 2 1 1 13 -

Para assegurar a cultura dos canaviais, laboração dos engenhos e transformação do produto final em açúcar, conservas ou casca, existia um grupo variado de oficiais mecânicos, trabalhadores e escravos. Não é possível reconstituir na totalidade o número, mas a partir dos dados avulsos encontrados nos registos paroquiais reunimos a seguinte informação: OFÍCIO Caixeiro

Engenho no Brasil .1648

ideia. Outro recurso possível poderá ser os livros do quarto e do quinto, pois o lavrador ou/e proprietário do engenho serviam-se do produto da safra para o pagamento dos assalariados que necessitavam. Entre 1509 e 1537 há referência a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração do engenho e, mesmo, na compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal. Os pagamentos aos serviços da safra do açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apanha da cana e 14,59% nos ofícios, aqui dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%). De acordo com a informação disponível, especialmente nos registos paroquiais dos séculos XVI e XVII, é possível fazer uma ideia da estrutura sócio-profissional gerada pela cultura e transformação da cana-de-açúcar6. Aqui, é evidente a concentração no Funchal, sendo reduzido o número fora da cidade, onde surgem apenas na Calheta e Ribeira Brava. Também, é de salientar a incidência no século XVI, em especial, na primeira metade da centúria. Caldeireiro 6. AHM, vol. XVI, p.87, 21 de Junho.

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FREGUESIA DATA NOME R. Brava 1600 João Gonçalves Sé 1601 Belchior Rodrigues Manuel Gonçalves 1607 Manuel Rodrigues 1609 Vicente Ferreira 1610 Domingos Martins 1615 Baltasar Álvares S. Pedro 1617 Pedro Fernandes Sé 1618 Francisco Garcia 1620 Manuel Gomes S. Pedro 1620 Afonso Aires 1625 Francisco Riscado Sé 1632 Miguel Fernandes A. S. Jorge 1634 Domingos Fernandes S. Vicente Pero Pestana 1639 Francisco Dias Calheta 1644 Baltasar Fernandes Sé 1679 Manuel Teixeira 1687 Miguel Fernandes 1698 José Vieira Sé 1601 Cristóvão Dias 1602 Belchior Dias

OFÍCIO

FREGUESIA DATA 1622 S. Pedro 1623 E. Calheta 1641 Canavieiro 1566 Canavieiro Sé 1603 Conserveiro 1607 Mestre açúcar 1600 1601 S.Pedro 1606 P. Sol 1619 S. Pedro 1620 P. Sol 1633 Moedor 1560 Moedor Sé 1655 Purgador 1600 1601 Calheta 1602 Sé S. Pedro Sé

1603 1606 1607 1608

NOME Francisco Fernandes António Fernandes Manuel Gomes António Fernandes Afonso Gonçalves João Dias Sebastião Sardinha Pero Martins António Costa Domingos Gomes Gonçalo Fernandes Manuel Pires Joaneanes Diogo Fernandes Belchior Lopes João Fernandes Gaspar Sardinha Simão Fernandes António Gonçalves Manuel Rodrigues Manuel Gonçalves Gonçalo Anes

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Engenho no Brasil .1719

A partir do número de mestres de açúcar e purgadores é possível estabelecer uma ideia da situação da cultura da cana-de-açúcar. Se a cada mestre corresponder um engenho, então teremos em 14937 em funcionamento 80 engenhos, enquanto na primeira metade do século XVII serão apenas seis engenhos no Funchal e Ponta de Sol. De entre os ofícios persiste por toda a centúria os caixeiros, que tinham por missão fazer as caixas para a exportação das conservas e casca. A expansão europeia abriu aos europeus as portas do Atlântico propiciando a migração das mais importantes rotas comerciais para este palco dominado pelos reinos peninsulares. Ligado ao processo está a afirmação e definição da rota e mercado dos escravos. As viagens de reconhecimento da costa africana abriram aos portugueses a possibilidade de acesso fácil através das razias. Todavia não poderá afirmar-se que foram os portugueses que estiveram na origem da escravização do negro e na criação do mercado negreiro, pois este já existia há muito tempo no mundo mediterrânico e africano. O papel dos portugueses resume-se a estabelecer as rotas atlânticas e a iniciar a partir daqui a colonização assente neste tipo de mão-de-obra. A Madeira assume mais uma vez um papel relevante, sem nunca deter uma posição dominante na sociedade e processo produtivo, situação que só sucederá em Cabo Verde e S. Tomé. A escravatura está habitualmente ligada a actividade de extracção mineira e a um conjunto de culturas que implicam uma grande exigência por parte do Homem, como é o caso da cana sacarina, do tabaco e algodão. O comércio de escravos, a exemplo das demais transacções comerciais no espaço atlântico alem do Bojador, esteve sujeito a apertada regulamentação. Primeiro tivemos a reserva de espaço no litoral africano para intervenção exclusiva dos vizinhos de Cabo Verde e S. Tomé. Ambos os arquipélagos funcionaram como placas giratórias do tráfico negreiro para o novo continente. Depois com a união das duas coroas, a partir de 1595, manteve-se o controle régio, sendo o comércio sujeito a um sistema de contratos e assentos. A situação persistindo até 1650, altura em que o mercado de escravos africanos abriu as portas a todos os intervenientes. Isto aconteceu num momento de retracção do mercado brasileiro que só recuperará trinta e nove anos mais tarde com a necessidade de mão-de-obra para a mineração. A Madeira foi nos primórdios da expansão atlântica o primeiro e mais importante mercado receptor de escravos africanos. Tudo isto resultou do facto de estar próxima do continente africano e envolvida no processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada. À ilha chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. O comércio com os principais mercados fornecedores existiu,

7 V. Rau e Borges de Macedo, O Açúcar na Madeira nos finais do século XV, Funchal, 1962; Alberto Vieira, "O Regime de propriedade na Madeira: o caso do açúcar", in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. I, Funchal, 1990.

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desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi fulgurante. Impossível é estabelecer com exactidão a quantidade de escravos envolvida. A deficiente documentação, para os séculos XV a XVII, não o permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do Funchal e dos contratos exarados nas actas notariais. A safra açucareira implicava a disponibilidade de uma numerosa mão-de-obra: os cuidados com a cultura, a morosidade da apanha e transporte ao engenho, a necessidade de as tarefas do engenho serem executadas num prazo de setenta e duas horas, obrigaram as regiões produtoras deveriam dispor de uma adequada reserva de força de trabalho. Ao lado dos proprietários de canaviais e engenho existiam os escravos e assalariados. Por outro lado é necessário referir que as tarefas de transformação da cana em açúcar, que tinha lugar no engenho, eram demoradas e requeriam uma mão-de-obra especializada para as diversas tarefas, dependendo dele a qualidade do produto final. Existiam também serviçais, que colaboravam no processo. A necessidade de mão-de-obra contrastava com a exiguidade da população madeirense pelo que foi necessário encontrar novas formas e áreas de recrutamento. A escravatura foi uma solução rápida e eficaz: próximo da ilha existia uma importante reserva que começava agora a ser usada. As primeiras presas sucedem-se nas Canárias e, depois, na costa africana. Estavam assim criadas as condições para a afirmação simultânea da escravatura e da cana-de-açúcar: dum lado a extrema carência, do outro o fácil acesso e disponibilidade propiciaram a vinculação dos escravos à economia açucareira madeirense. Foi também o princípio que fundamentou o processo de entrosamento do escravo ao açúcar nas demais áreas. A situação dos canaviais e da produção do açúcar na Madeira apresentava-se distinta daquela que acontece do outro lado do oceano. A estrutura funcional que definiu a economia açucareira foi também diferente: o binómio engenho/canaviais não foi tão evidente, e a orografia não permitiu a existência de extensos canaviais. A par da tendência para o excessivo parcelamento acresce que a evolução do sistema fundiário, com o recurso a diversas formas de domínio útil (arrendamento, contrato de colonia) favoreceu a situação. Já em 1494 era evidente a excessiva divisão da propriedade, pois para 431 canaviais surgem apenas 209 proprietários, em que se incluíam 21% na condição de arrendatários. Outro aspecto importante e definidor da situação social em que se afirmam os canaviais é a caracterização do grupo de proprietários de engenhos e terras. No estimo de 1494 surgem-nos 209, enquanto no período de 1509 a 1536, (abarcando a capitania de Ma chico) o número eleva-se para 263. Se tivermos em conta que a população do arquipélago em 1500 era de 16.000 habitantes somos forçados a concluir que a importância era reduzida: 13% em 1494 e 1,6% no segundo período. Ao contrário daquilo que afirmam V. Rau e Borges de Macedo8 a cultura da cana-de-açúcar não beneficiava "camadas amplas da população", sendo restrito o grupo de proprietários de canaviais, Opinião diferente é definida por Magalhães Godinho9 que, após reconhecer a diversa condição 8. Os Descobrimentos e a Economia Mundial, vol.IV, Lisboa, 1983, p.81 9. O contrato de colonia mereceu inúmeros estudos, sendo de realçar os de: Fernando Augusto da SILVA, "Colonia, contrato de", in Elucidário Madeirense, I, Funchal, 1960, pp.290-291; Jorge de Freitas BRANCO, Camponeses da Madeira, Funchal, 1987, pp.153-187; João José Abreu de SOUSA,"O convento de Santa Clara do Funchal. Contratos agrícolas (século XV a XIX), in Atlântico, nº.16, Funchal, 1988, pp.295-303..

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social dos proprietários, conclui pela tendência para a concentração dos canaviais num reduzido número de proprietários. Para nós a realidade é diferente pois os canaviais beneficiavam apenas um reduzido número de proprietários, que estão maioritariamente entre os primeiros colonos, que receberam terras de sesmaria, a que se juntaram depois alguns mercadores nacionais e estrangeiros. Os terratenentes saíram da aristocracia local, e do funcionalismo régio, senhorial e municipal. Os proprietários incluídos controlavam 21% da produção no século XVI, sendo maioritariamente do grupo daqueles que possuem canaviais produzindo mais de 1.000 arrobas. Em conjunto com os mercadores (nacionais e estrangeiros) representavam mais de 66% dos canaviais com uma produção superior a 1.000 arrobas, produzindo 51% do total do açúcar.

Escravos com e sem açúcar.

Escravo das ilhas Canárias. Gravura de S. Berthelot e P.Barber-Weber, século XIX

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As ilhas tal qual se apresentavam aos primeiros europeus conduziram a um relacionamento particular do Homem na exploração e aproveitamento do solo. Do casamento entre a força de vontade dos primeiros europeus e a agressividade dos declives foi possível construir a Europa no Atlântico. A Madeira, por força da configuração geográfica, foi definida por uma paisagem agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O excessivo parcelamento das áreas agrícolas (poios), única forma possível de aproveitamento do solo arável e a ampla disseminação na vertente sul e norte condicionaram o sistema de arroteamento e de posse de terras. As concessões de terreno foram-se dividindo de acordo com o aumento da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração extensiva deu lugar ao intensivo aproveitamento do solo assente nos inúmeros poios construídos pelos proprietários, arrendatários ou meeiros. É difícil, senão impossível, definir a grande propriedade de canaviais, se nos situarmos ao mesmo nível do mundo americano. Os canaviais avançaram a partir do engenho e estão, quase sempre, ligados indissociavelmente. Isto não sucede na Madeira. São muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Outra peculiaridade da Madeira foi a concentração dos engenhos em áreas de maior facilidade de contactos com o exterior, nomeadamente no Funchal, o que nem sempre correspondia às de maior importância no cultivo dos canaviais. A forma como se estruturou a faina açucareira condicionou um posicionamento distinto para o escravo. Ainda, na exploração agrícola insular torna-se necessário distinguir dois grupos de proprietários: os que haviam entregue as terras a foreiros ou arrendatários e os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse da terra marcou de modo evidente a actividade agrícola e favoreceu na Madeira o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a partir do século XVI. Por outro lado, a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência de um engenho para a transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos. A posição dos escravos na estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de acordo com

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o sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na exploração directa ou no arrendamento se estabeleceu uma posição clara para o escravo, o mesmo não se poderá dizer com o contrato de colonia10. A presença do escravo na constituição das sociedades insulares, desde o século XV, não é um fenómeno isolado, enquadrando-se no contexto sócio-económico em que emergiram: a falta de mão-de-obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade por parte de culturas como a cana sacarina geraram a procura; a iniciativa descobridora do Atlântico, em que os madeirenses foram activos protagonistas, e a proximidade do mercado gerador propiciaram o seu encontro. Foi de acordo com a conjuntura que a escravatura ganhou importância. É aqui que deveremos encontrar a explicação para tal posição. A sintonia é perfeita entre a curva evolutiva da produção de açúcar e da libertação dos escravos. O número de libertos acompanhou a conjuntura açucareira. Na Madeira, a crise da produção e comércio de açúcar, a partir do final do último quartel do século XVI, vai ao encontro do aumento do número de alforrias, cuja curva ascendente se verifica a partir da década de vinte, culminando no final da centúria. Ao movimento inverso, na primeira metade do século XVII, poderá associar-se também o incremento da cultura da cana-de-açúcar. Tudo isto foi provocado pela ocupação holandesa do estado de Pernambuco. O momento de afirmação dos canaviais foi curto e repercutiu-se na curva das alforrias da segunda metade da centúria. Ao invés a expressão geográfica das alforrias é dissonante com a mancha principal dos canaviais. Por isso é mais evidente no Funchal, Câmara de Lobos e Caniço, áreas que estão muito longe de ser as de maior afirmação dos canaviais. Na Madeira a tendência era para a existência de um reduzido número de escravos por proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não ultrapassa os 11%. O grupo dos que possuem mais de dez escravos não suplanta os 2%. Estes proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto das duas freguesias e comarca. O perfil do dono de escravos define-se pelo reduzido número, pois 89% possuem entre um e cinco escravos. A par disso, se enquadrarmos os escravos na estrutura fundiária dos proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do açúcar: em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas nove são possuidores de terras com canaviais. Os restantes, na maioria, detêm searas e vinhedos. Depois, nos signatários de canaviais merece apenas referência Bartolomeu Machado, no Funchal, com dez escravos. Para a historiografia europeia e americana a presença do escravo no processo de expansão da safra do açúcar no Atlântico é considerada como um dado adquirido. Antonil lançou o mote em 1711 sendo seguido pela historiografia do nosso século. Desde o clássico estudo de Noel Deerr11, aos mais recentes trabalhos de Charles Verlinden12, J. Heers13, F. Braudel14, I. Wallerstein15, S. W.

Santa Ifigénia. sec.XVII

10. The history of sugar, vol. II, Londres, 1950, 259-289. 11. "De la Civilization Médièvale italienne du Levant à l'Expansion ibérique continentale et insulaire. Analyse d'un transfert economique, technologique et culturel", in Studia, n1 46, Lisboa, 1987, 193-222; Del Mediterraneo al Atlantico. Contributi di Storia Economica, Prato, 1973, 25-51. Aqui apenas são citados os trabalhos mais recentes. Para mais informações consulte-se na bibliografia as obras deste autor. 12. Escravos e Servidão doméstica, Lisboa, 1983, 11-113. 13. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico (...), vol. I, Lisboa, 1983, 178. 14. El Moderno Sistema Mundial (...), vol. I, Madrid, 1979, 60-61, 122-125. 15. Sweetness and Power (...), New York, 1986, 32.

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Mintz16, W. D. Philips Jr17 e S. M. Greenfield18 teorizou-se a vinculação do açúcar à escravatura. O casamento teve lugar nas plantações mediterrânicas, mas foi no Atlântico que se firmou. Todos os autores supracitados concordam quanto à existência do binómio no mediterrâneo oriental e da passagem ao Atlântico através da Madeira. Assim, no entender de I. Wallerstein "la esclavitud siguió el rastro del azúcar"19. A vinculação da escravatura ao açúcar terá sido uma invenção dos cruzados europeus nas colónias de Jerusalém e foi através do mundo cristão que se difundiu, pois no mundo árabe os escravos raramente surgem associados à cultura e industria açucareiras20. As colónias italianas do Mediterrâneo Oriental foram o primeiro ensaio da nova dinâmica sócio-económica, que depois alastrou ao Ocidente até à Sicília e daí teriam passado à Madeira. Plantação21 é o conceito adoptado pela historiografia para definir a estrutura social, política e económica imanente da cultura da cana-de-açúcar. Tal empresa industrial, segundo os estudiosos22, teve origem no surto açucareiro do Mediterrâneo Oriental do século XI e avançou para o Atlântico a partir de meados do século XV. É um conceito que não tem conciliação possível com a estrutura fundiária madeirense que esteve na base da cultura da cana-de-açúcar. A trilogia rural madeirense está muito longe da brasileira. É opinião corrente que a simbiose perfeita entre a escravatura e a agricultura, com especial relevo para o cultivo da cana-de-açúcar, só começou a esboçar-se no século XV com a experiência madeirense. Até as escassas referências à utilização do escravo em tais tarefas (em Mesoptâmia, Zanzibar, Sudão e Sicília) não apontam para um dominância capaz de justificar o sistema23. Aliás, no entender de W. D. Philips Jr24, a ligação escravo/açúcar só tem lugar no Atlântico com o caso madeirense, sendo as situações do mundo cristão e islâmicas esporádicas. É caso para perguntar: onde foi o autor (ou as fontes de informação) buscar os elementos para tal afirmação? Todos os autores que refere levaram a que fosse enredado no Adoração dos Reis Magos.secXVI. Capela dos Reis Magos [igreja de Machico]de Branca Teixeira

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16. Slavery (...), Manchester, 1985, 67, 76-80, 93. 17."Plantations, sugar cane and slavery" in Roots and branches: current directions in slave studies. Historical reflections, T. VI, n1 1, 1979, 85-119. 18. Ob.cit., p. 122. 19. W. D. Philips, Ibidem, 76-80. Todavia Yoro Fall (Escravatura, Servidão e reconquista", in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, 303-4) é de opinião diferente. 20. Conforme o define R. SCHERIDAN "The plantation was an absolutley un precedented social,economic and political institution in the organization of agriculture", citado por S. MINTZ, Sugar and Society in the Caribean, New Haven, 1970, XIV. Confronte-se Max WEBER, História Económica e Social, México, 1974. 21. S. W. MINTZ, Sweetness and Power, New York 1986, 50 - 51; S. M. GREENFIELD "Madeira and the beginings of sugar cultivation and plantation slavers" in Comparative perspectives on New World Plantation Societies, New York, 1979, 236-252; idem "As ilhas da Madeira e de Cabo Verde: rumo a uma sociologia comparativa de diferenciação colonial", in II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989. 22. V. M. GODINHO, Ob. cit., IV, 201; W. D. PHILLIPS Jr., Ob. cit., 146, 186. 23. Ob. cit., 118, 146, 222-228. 24. Ibidem, 225, 226.

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logro. Para nós a Madeira é um caso particular e não está longe do que se passa no Mediterrâneo. A presença do escravo na safra açucareira não é tão dominante como à primeira vista parece. É certo que está ligado ao processo, mas nunca actuou isolado e, tão pouco, a situação foi maioritária. Ao lado estava um grupo numeroso de livres como assalariados ou arrendatários, melhor posicionados e imprescindíveis para isso. As condições definidas pela orografia da ilha e o sistema de propriedade conduziram a esta peculiar realidade25. A historiografia europeia e americana insistem no facto de que a estrutura fundiária madeirense, nos séculos XV e XVI, era resultado da presença da escravatura. Estamos perante um falso pressuposto, ao afirmar-se de que a cultura açucareira só admitia mão-de-obra escrava. Com isso pretendia-se estabelecer uma visão reducionista da sociedade e força de trabalho na ilha. Ao mesmo tempo pretendia-se afirmar a Madeira como o caso americano em miniatura. Nada há que permita uma aproximação das plantações madeirenses às do outro lado do Atlântico. A ideia fascinou alguns historiógrafos madeirenses. Foi, de acordo com isso, que se fez coincidir a mancha da escravatura com a das áreas de maior colheita de açúcar, mesmo sem dados que o testemunhassem. Estávamos perante uma associação insofismável, que nem os dados documentais poderiam refutar. Com isto ignorou-se a realidade histórica mas também as especificidades próprias do arquipélago. Todos acharam interessante a suposição e ninguém ousou analisar de forma precisa a estrutura fundiária madeirense, procurando o fundamento disso na documentação disponível. A presença dos escravos na Madeira condicionou de forma evidente os mecanismos reguladores da sociedade ao nível político-institucional e religioso. Eles, porque estranhos à sociedade europeia ramificada na ilha, implicaram o estabelecimento de normas definidoras da convivência social. É necessário referir que na Madeira, ao contrário do que sucede nas sociedades escutistas do outro lado do Atlântico, ambas as mundividências se entrecruzam gerando uma convivência social peculiar. Não há lugar para senzalas. Aqui o escravo faz parte do quotidiano do senhor e a ele deveria manter-se ligado: não havia separação entre o mundo do escravo e do livre. Ao contrário procurava-se impedi-lo. Com as normas, sob a forma de postura, procurava-se, perpetuar a situação uma vez que tudo o que a isso fosse contrário podia pôr em perigo a ordem estabelecida. Os fugitivos ou os escravos encontrados isolados ou em grupo constituíam um problema para a sociedade. Eram quase sempre uma fonte geradora de conflituosidade social. É isso que as posturas combatem, ao vedarem aos escravos um espaço de encontro e convívio. O espaço de convívio social do escravo estava delimitado e sujeito a inúmeras limitações.

São Benedito.séc. XVII

25. No Brasil a média de produção por escravo era de 50 a 60 arrobas, enquanto nas Antilhas, em geral, era de 64 (H. G. Amorim PARREIRA, "História do Açúcar em Portugal" in Anais, III, T. I., Lisboa, 1952, 152), sendo nas francesas de 750 arrobas (G. MATIN, Histoire de l'Esclavage, Paris, 1948, 122) e na Jamaica, no século XVIII era de 250 arrobas (M.CRATON, Sinews of Empire (...), Londres, 1974.

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PROPRIETÁRIOS DE ESCRAVOS, CANAVIAIS E ENGENHOS

Escravas. Prata com contraste do México. Século XVIII. Museu da Quinta das Cruzes.

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A distribuição geográfica dos proprietários de escravos adequase à mancha da expressão da escravatura no arquipélago. A capitania do Funchal tem a supremacia com 86% dos proprietários e 87% dos escravos, adquirindo maior expressão no século XVI. No global da circunscrição definida pela capitania do Funchal, temos, mais uma vez, o recinto do Funchal numa posição cimeira com 74% do número de proprietários. A par disso a cidade, com as duas freguesias principais de que possuímos documentos - Sé e São Pedro - apresentam 64% do número de proprietários, distribuindose os restantes pelas outras da capitania do Funchal (23%), Machico (11%) e Porto Santo (2%). A elevada concentração dos escravos no espaço urbano revela, mais uma vez, que estamos perante uma escravatura essencialmente doméstica, com pouca ou nenhuma relação com a vida rural. A presença é testemunhada através de registos paroquiais. Isto quer dizer que os escravos residem junto do senhor e que todo o quotidiano se desenrola na cidade. Raras vezes surgem indícios da relação com o meio rural como guardiães e trabalhadores das terras do proprietário, entregues a colonos. Não é fácil estabelecer uma relação entre o proprietário, o escravo e as actividades sócio-profissionais. Raramente ao proprietário surge associada a profissão ou estatuto social: do total em causa apenas 23% aparecem nestas condições. No grupo evidenciam-se aqueles que estavam ligados à estrutura eclesiástica (25,2%) e militar (24,9%), seguidos dos múltiplos ofícios dedicados ao comércio (20%). Para cada uma das áreas há uma categoria dominante. Assim, no primeiro, a situação é assumida pelo padre (68%), no segundo pelo capitão (83%) e no terceiro pelo mercador (69%). Mais uma vez é possível testemunhar a dimensão patriarcal assumida pela escravatura na ilha. Também isto indicia o pouco escrúpulo do clero para com este grupo social. Quando estabelecemos uma comparação entre o número de proprietários de escravos e o de canaviais verificamos que em todas as áreas o primeiro grupo é superior ao segundo. O facto poderá ser considerado um indicativo seguro de que nem todos os proprietários de escravos se dedicavam à safra açucareira, nem todos os escravos existiam para isso. A diferença entre os dois grupos é mais

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acentuada no Funchal, onde o número de proprietários de escravos é três vezes superior ao de canaviais. Nas "Partes do Fundo" ela não ultrapassa o dobro, no século XVI, e nas comarcas da Calheta, Ponta do Sol e capitania de Machico apresentava valor inferior. Se compararmos o número de escravos com o dos proprietários de canaviais e engenhos de açúcar, deparamo-nos com a mesma situação. Enquanto no século XV a proporção é diminuta, na centúria seguinte, excepto em Ponta do Sol e Machico, atinge valores elevados, sendo a média no Funchal de dez escravos por proprietário, quatro na Ribeira Brava e três na Calheta. De acordo com o açúcar arrecadado, no século XVI, caberia a cada escravo o seguinte número de arrobas: Funchal ..................................13,5 Ribeira Brava .......................92 Ponta do Sol.......................400,5 Calheta ................................223,5 Machico ...............................159,4 Os valores estão muito aquém da média estabelecida para as Antilhas e Brasil26. Será isto demonstrativo de que não é tão evidente na Madeira a relação entre o escravo e o açúcar ? Podese chegar à mesma conclusão quando comparamos os escravos com o número de engenhos na ilha. Enquanto nas Antilhas e América do Sul o valor por engenho oscila entre os 800 e 10027, aqui, no global, não ultrapassaria os 30, sendo a média mais elevada no Funchal (com 77 escravos) e Ribeira Brava (com 24 escravos). É de salientar, ainda, que, no total de 46 proprietários de engenhos 16 são do Funchal. Os dados disponibilizados pela investigação levam-nos a concluir o seguinte: num total 502 produtores de açúcar apenas 78 (15,5%) são possuidores de escravos. Para o século dezassete é maior o número (39%) de proprietários de canaviais com escravos, mas aumenta sem existir qualquer relação de causa e efeito entre ambas as realidades. Assim, por exemplo, Maria Gonçalves, viúva de António de Almeida, é quem surge com o maior número de escravos, sendo diminuta a produção de açúcar. A comparação do número de escravos, que estes possuem, com o número de arrobas de açúcar dos canaviais apresenta, igualmente, valores díspares, pelo que estaremos perante uma prova evidente da intervenção do trabalho livre: a média do século dezasseis oscila entre 10 e 1329,5 arrobas por escravo. Por outro lado os proprietários com maior número de escravos, como Francisco Betencor, Pedro Gonçalves e António Correia, não são, de modo algum, os maiores produtores de açúcar. Apenas João Esmeraldo, Simão Acioli e João Rodrigues Castelhano se apresentam como excepção. Pedro Gonçalves, do Funchal, com 17 escravos, o maior número por proprietário, declarou em 1509 a produção de apenas 140 arrobas. Já Gonçalo Fernandes de Calheta, que em 1494 26. De acordo com Luís M. DIAZ SOLER (Historia de la esclavitud negra em Puerto Rico, Rio Pedras, 1965,155) um engenho de água para laborar necessitava de 37 escravos, entretanto Cirio F. CARDOSO (Negro Slavery (...), Washington, 1983) refere que um engenho idêntico em Vera Cruz necessitava de 80 a 100 escravos, e para o Brasil Eduardo Correia LOPES ( A Escravatura (...), Lisboa, 1944, 112) apresenta o número de 100 escravos para a laboração de cada engenho. 27. A.R.M., Julgado de Resíduos e Capelas, fls. 321 v1-321, 22 de Junho: contrato de partilhas.

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produzia 1611 arrobas e em 1534 surge com 3707 arrobas, com 10 escravos. Outro aspecto definidor da escravatura resulta do número de escravos disponíveis para cada proprietário. Também aqui a Madeira afasta-se do Novo Mundo. Não encontrámos proprietários com duzentos ou mais escravos. O número mais elevado de escravos não ultrapassava os 14 apresentados por João Esmeraldo na fazenda da Lombada da Ponta do Sol. Na maioria (63%) os valores ficam-se por 5 escravos. Tendo em conta o número mínimo de mão-de-obra imprescindível para a laboração de um engenho, seremos forçados a afirmar que a grande força de trabalho que animava os engenhos não era escrava, mas sim livre. É necessário ter em conta que o número de escravos aqui referenciado para João Esmeraldo tem como base as disposições testamentárias de 152228. A informação não combina com outra fornecida por Gaspar Frutuoso29, que fala da posse de oitenta escravos para uma fazenda que produzia vinte mil arrobas de açúcar, o que daria uma média por escravo de 250 arrobas. Serão o testemunho da época áurea da safra, em princípios da centúria quinhentista. Na verdade são consentâneos com a média de escravos necessária à actividade dos engenhos. A par disso o máximo que conseguimos reunir foi de vinte escravos de Ayres de Ornelas e Vasconcelos (1556-1587), mas para pai e filho. Na Madeira a tendência era para a existência de um reduzido número de escravos por proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não ultrapassa os 11%. O grupo dos que possuíam mais de dez escravos não suplanta os 2%. Estes proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto das duas freguesias e comarca. O perfil do proprietário de escravos madeirense define-se pelo reduzido número da presença, pois 89% possuem entre um e cinco escravos. Não havia lugar para uma excessiva valorização da força de trabalho, no campo e cidade. A dimensão das oficinas e das arroteias não o permitia. Isto torna-se mais evidente quando estabelecemos uma relação entre o escravo e o património do proprietário. De acordo com os dados disponíveis apenas foi possível estabelecer para dez proprietários. Situam-se, maioritariamente, no século XVII pelo que as fazendas são dominadas pelas vinhas. Apenas com João Rodrigues Mondragão está expressa a trilogia rural madeirense. Nas fazendas era possível ver-se searas, vinhas e canaviais. A tudo isto acresce o facto de haver por parte do proprietário rural pouco empenho em aumentar o investimento em mão-de-obra escrava. Nunca ultrapassa os 5% do valor total do capital. A situação, mais uma vez contrasta com o sucedido do outro lado do Atlântico, onde sobe até os 28%, mas encontra similar valoração nos Açores. Caso houvesse uma relação directa entre a presença do escravo e as tarefas agrícolas era natural que o proprietário se procura desviar parte do investimento de capital para a aquisição deles. Ao nível do valor do capital investido pelos proprietários madeirenses na mão-de-obra escrava também se verifica uma disparidade em relação ao que sucede no continente americano. Na Madeira o valor oscilava entre os 2 e os 5%, enquanto, do outro lado

28. Livro segundo das Saudades da Terra, 124. 29. Lothar SIEMENS y Liliana BARRETO, "Los esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505)", in Anuario de Estudios Atlanticos, n1 20, 1974, 111-143. Aqui utilizamos o termo canário para designar os escravos oriundos do arquipélago das Canárias, não obstante esse termo querer significar os habitantes de Gran Canária. Mas segundo Gaspar FRUTUOSO (Ob. cit., livro primeiro, p. 73) "desta (Gran Canaria) tomaram o nome geral de canários os habitadores das outras, ainda que também seus particulares nomes".

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do Atlântico a percentagem poderia atingir os 28%. Se enquadrarmos os escravos na fundiária dos proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do açúcar: em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas 9 (9%) são possuidores de canaviais. Os restantes, na maioria, possuem searas e vinhedos. Depois nos signatários de canaviais merece apenas referência Bartolomeu Machado, no Funchal, com 10 escravos. Convém esclarecer que não se pretende afirmar que não existe ao nível da Madeira qualquer relação entre o escravo e o açúcar, mas e apenas enunciar que ela não atingiu o mesmo nível de São Tomé ou das áreas açucareiras do outro lado do Atlântico. Na Madeira o escravo está indissociavelmente ligado à cultura mas nunca com a dimensão que se tem pretendido atribuir. Daí resultam as inúmeras informações avulsas que testemunham a relação: primeiro foram os guanches, que se evidenciaram como mestres de engenho, depois os negros e mulatos, que surgem também aí com uma activa intervenção. É necessário lembrar, ainda, que as condições de afirmação da escravatura e açúcar nas ilhas do Mediterrâneo Atlântico, as Antilhas e Brasil foram diferentes pelo que a comparação é vista por nós como um mero exercício académico. Por fim, refira-se que na Madeira é evidente uma forte incidência da escravatura no meio urbano, relacionada com os serviços e ofícios, o que condiciona o baixo nível de arrobas de açúcar por escravo. Por tudo isto não será despropósito afirmar que a situação evidenciada pela escravatura madeirense não resultou apenas da cultura da cana-de-açúcar, que influenciou a estrutura económica da ilha nos séculos XV e XVI.

Captura de escravos na costa africana.

A EVOLUÇÃO DO AÇÚCAR E DOS ESCRAVOS A presença do escravo na constituição da sociedade madeirense, desde o século XV, não é um fenómeno isolado, enquadrando-se no contexto sócio-económico em que o arquipélago emergiu: a falta de mão-de-obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade dela por parte de culturas como a cana sacarina, geraram a procura; a iniciativa descobridora do Atlântico, em que os madeirenses foram activos protagonistas, propiciou as vias para o encontro. Foi de acordo com isto que a escravatura ganhou importância na sociedade madeirense e atribuiu-lhe uma situação particular. E é aqui que deveremos encontrar a explicação para a posição assumida na ilha. O evoluir do processo sócio-económico interno, associado às novas condições estabelecidas pelo mercado atlântico contribuíram, ainda

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Aborígenes das ilhas Canárias no século XV. Vinhentas do livro Le Canarien. 1402

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que paulatinamente, para a desvalorização da componente escrava na estrutura social do arquipélago. A menor utilidade do escravo no sector produtivo e a maior procura por outros mercados e sociedades condicionaram a deslocação da mão-de-obra escrava. As queimadas haviam terminado, os poios estavam de pé e a cana-de-açúcar deixou de marcar a vida agrícola madeirense. Perante isto não havia mais lugar para o escravo no meio rural e os possuidores perderam o seu poder aquisitivo perante as propostas mais vantajosas do espaço americano. Os poucos que perpetuaram a situação, por mais uma centúria, foram aumentar a criadagem dos fidalgos da cidade e passaram a alimentar a classe de indigentes e criminosos. Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de origem africana, sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras proveniências, como o Brasil, América Central e Índia. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades no tráfico e, por outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição, como sucedeu no Brasil e Índia. Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa ocidental, em poder dos portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí as únicas medidas iam no sentido de regular o tráfico, como sucedeu com os contratos e arrendamentos. O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro, pelas Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné, Angola, era a principal fonte de escravos. E aí a Madeira foi buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios e, depois, plantar os canaviais. Primeiro foram os escravos brancos das Canárias e Marrocos. Depois os negros das partes da Guiné e Angola. As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram aí uma forma peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes das múltiplas pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam com valentia a soberania portuguesa, os escravos mouros surgem ao mesmo tempo como prémio e testemunho dos feitos bélicos. Eram poucos os que podiam ostentar os triunfos de guerra. Outra forma de aquisição era o corso marítimo e costeiros, prática de represália comum a ambas as partes. Idêntica situação ocorreu na Índia onde alguns dos madeirenses também se evidenciaram nas diversas campanhas militares, como sucedeu com Tristão Vaz da Veiga. Na Costa Africana, além do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros: primeiro tivemos os assaltos e razias, depois o trato pacífico com as populações indígenas. Tudo isto implicava uma dinâmica diferente para os circuitos de comércio e transporte. Aqui os cavaleiros e corsários são substituídos pelos mercadores. A presença dos guanches na Madeira é um facto natural. Para isso contribuíram a proximidade da Madeira e o empenho dos madeirenses na iniciativa henriquina. Decorridos, apenas, 26 anos sob o início do povoamento da Madeira, os madeirenses embrenharam-se na complexa disputa pela posse das Canárias ao serviço do senhor, o infante D. Henrique. Tais condições definiram a presença madeirense no mercado de escravos, surgindo, na primeira metade do século XV, algumas incursões de que resultou o aprisionamento de escravos. Referem-se três (1425, 1427, 1434) que partiram da Madeira. Mais tarde, com a expedição à costa africana de 1445 o madeirense Álvaro de Ornelas fez um desvio à ilha de La Palma onde tomou alguns indígenas que conduziu à Madeira. Aliás, nas inúmeras viagens organizadas por portugueses entre 1424 e 1446, surgem escravos, que depois são vendidos na Madeira ou em Lagos.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

A partir de meados do século XV, são assíduas as referências a escravos canários na ilha da Madeira como pastores e mestres de engenho30. A presença na ilha deveria ser importante nas últimas décadas do século XV. Os documentos clamando por medidas para controlar a rebeldia são indício disso. Muitos deles mantiveram-se na Madeira fiéis à tradição do pastoreio ou então firmaram-se como exímios mestres de engenho. O comprometimento dos madeirenses com as viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana, e a importância do porto do Funchal no traçado das rotas, definiram para a ilha uma posição preferencial no comércio dos escravos negros da Guiné. Deste modo não seria difícil de afirmar, embora nos faltem dados, que os primeiros negros da costa ocidental africana chegaram à Madeira muito antes de serem alvo da curiosidade das gentes de Lagos e Lisboa. A situação da Madeira e dos madeirenses nas navegações supracitadas, a par da extrema carência de mão-de-obra para o arroteamento das diversas clareiras abertas na ilha pelos primeiros povoadores, geraram, inevitavelmente, o desvio da rota do comércio de escravos, surgindo o Funchal, em meados do século XV, como um dos principais mercados receptores. Há vários indícios de que o comércio de escravos era activo e de que a Madeira era uma placa giratória para esse negócio com a Europa. Em 149231 a coroa isentava os madeirenses do pagamento da dízima dos escravos que trouxessem a Lisboa. A situação, resultante da petição de Fernando Pó, revela que havia já na ilha um grupo numeroso de escravos e que muitos deles eram daí levados para o reino. A prova da existência de um activo comércio de escravos entre a Madeira e Cabo Verde surge em 156232 e 156733. As dificuldades sentidas na cultura do açúcar levaram os lavradores a solicitarem junto da coroa, facilidades para o provimento de escravos na Guiné, com o envio de uma embarcação para tal efeito. O rei acedeu à legítima aspiração dos lavradores madeirenses e ordenou que, após o terminus do contrato de arrendamento com António Gonçalves e Duarte Leão - , isto é, em 1562, aqueles pudessem enviar anualmente uma embarcação a buscar escravos. Em 1567 foi necessário regulamentar, de novo, o privilégio atribuído aos madeirenses, sendo-lhes concedido o direito de importar anualmente, por um período de cinco anos, de Cabo Verde e dos Rios de Guiné, cento e cinquenta peças de escravos, dos quais cem ficariam no Funchal e cinquenta na Calheta. Também aqui a maior incidência é na freguesia da Sé com (68%), sendo em todas as freguesias que compõem a área do Funchal de 82%. Por aqui seria possível de afirmar que o porto do Funchal manteve uma constante animação no trafico negreiro, sendo maior a incidência no período de 1591 a 1640 e de 1670 a 1679. O primeiro momento coincide com a reafirmação da cultura da cana-deaçúcar na ilha, mercê da invasão holandesa do nordeste brasileiro. A quebra da década de vinte poderá ser entendida como resultado do assalto e pressão holandesa sobre o mercado de escravos

Ídolo de Tara relacionado com festividade da Terra. Gran Canaria

30. A.R.M., Câmara Municipal do Funchal, tomo I, fls. 223 vo-225, sentença régia isentando os moradores da Madeira do pagamento de dízima nos escravos que levarem para Lisboa, para seu serviço, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. XVI, 1973, nº 161, pp. 269-271. 31. A.R.M., Documentos Avulsos, cx. 2, n1 194. 32. Idem, Câmara Municipal do Funchal, t. 3, fl. 137 vo-138. 33. A.R.M. Câmara Municipal do Funchal, t. 1, fls. 262v1-269v1, regimento régio de 12 de Outubro, in Arquivo Histórico da Madeira, XVII (1973), doc. Nº 203, p. 356.

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Navios negreiros, 1821

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africanos, com a tomada de S. Jorge de Mina em 1622. O preço médio do escravo na Madeira, estabelecido nos inventários, variou de acordo com o aparecimento de novos mercados geradores do produto e enquadra-se na conjuntura dos destinos. Em Lisboa na década de quarenta do século dezasseis, o valor oscilava entre os dez e doze mil reis, para em princípios do século XVI descer a 4 e 6 mil reis, adquirindo na década de sessenta valor superior a 20 mil reis, duplicando da década de trinta do século XVII. No caso da Madeira apenas dispomos do valor do preço dos escravos a partir de 1561, desconhecendo-se qual a evolução até então. Da informação disponível até ao ano de 1700 dá-se conta de uma tendência altista no período de 1591 a 1610, de 1650 e 1691 a 1700. Certamente que as duas tendências iniciais são resultado da conjuntura subsequente à perda de soberania portuguesa a favor de Castela, pois ela condicionou de forma evidente o mercado de escravos que ficou a saque dos ingleses, franceses e holandeses. O segundo momento foi pautado na ilha por um ressurgimento da cultura da cana sacarina o que deverá ter influenciado decisivamente a elevada valorização da mão-de-obra escrava. Por outro lado, o período posterior à Restauração da soberania portuguesa foi marcado por guerras em três áreas (Portugal, Brasil e Angola) que implicaram a saída de inúmeras forças braçais da ilha para combater nas frentes de luta. Numa tentativa de estabelecer o valor real do preço do escravo estabelecemos uma comparação dele com o de alguns produtos correntes e bens móveis referidos nos testamentos. Por aqui é evidente, no primeiro quartel do século XVI e nas décadas de quarenta a sessenta da centúria seguinte, uma elevada valoração do escravo no mercado madeirense. A situação coincide com iguais momentos de afirmação da cultura dos canaviais. Ainda, comparado o valor com o da soldada de um trabalhador ou oficial mecânico, constata-se as diminutas possibilidades de serem proprietários de escravos. A curva de nascimentos de escravos define-se por dois rumos distintos: primeiro uma tendência para a subida vertiginosa até à década de trinta do século XVI, quebrada por momentos de descida entre 1551-70, 1581-90, 1601-10, 1621-30, a que se segue um crescimento, contrariado apenas na década de setenta do século XVII. A fase de afirmação da natalidade dos escravos coincide com o período de retorno da cana-de-açúcar na ilha, enquanto o segundo momento está relacionado com a crise da segunda metade da centúria setecentista, marcada pela concorrência do açúcar brasileiro e dificuldades no mercado interno. A conjuntura altista é abonada pelos escravos adultos baptizados, dado denunciador de desusada procura de escravos, que se repercute de forma decisiva na natalidade dos escravos. A expressão geográfica da natalidade dos escravos assenta numa área litoral da vertente sul definida pelas freguesias da Sé, São Pedro, Câmara de Lobos. Na vertente norte a representatividade é reduzida. Ainda na primeira área, se tivermos em conta as freguesias urbanas e suburbanas do Funchal, concluiremos que elas surgem com a quase totalidade dos escravos baptizados na Madeira, nas centúrias em análise. Por isso estamos perante uma forte expressão urbana da escravatura madeirense. Note-se que era também aí que se encontrava a maior parte da população da ilha. Depois, importa saber qual a implicação que isso poderá assumir o calendário agrícola no

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evoluir dos dois actos. Caso estejam comprometidos com a faina agrícola seria natural que os casamentos tivessem lugar num momento de acalmia e não de intensa actividade. Os nubentes preferem os meses aquém das sementeiras (Janeiro/Março) e das colheitas da cana-de-açúcar (Maio/Junho), cereais (Julho/Agosto) e vinho (Setembro) para concretizar os casamentos. Apenas há uma coincidência com a safra do açúcar, devido a englobar um mês casamenteiro (Junho) ou, então, a situação poderá significar a pouca importância que a cultura assumia na ilha no período de 1538 a 1700. O açúcar entrou em crise na primeira metade do século XVI, em data anterior ao início dos registos paroquiais. Talvez explique a razão de no século XVI o número de casamentos ser menor que na centúria seguinte. A expressão é inversa em relação ao coito, que dá lugar à procriação, que se afirma com maior clareza no século XVI. Todavia, deverá ter-se em conta que a maior actividade dos escravos em face da safra açucareira poderá ter efeito contrário, no sentido de que possibilitava um maior convívio social capaz de propiciar o relacionamento sexual, legitimado pelo casamento. É necessário não esquecer que a primeira metade do século XVII foi pautada pela reafirmação da cultura da cana-de-açúcar mas que isso não alterou em nada a conjuntura dos casamentos e baptismos: 60% dos casamentos e 49% das concepções tiveram lugar na primeira metade da centúria. Se atendermos às principais áreas de produção açucareira, definidas pelo epíteto de partes do fundo, constatamos uma idêntica frequência dos casamentos e concepções. A primeira metade do século XVII foi pautada por um elevado número de concepções (59%) e de casamentos (30%). A partir daqui a explicação plausível para a incompatibilidade de informações poderá ser a presença da mão-de-obra escrava na cultura açucareira, no período de 1538 a 1700, não terá sido tão importante como à partida possa parecer, ou então ela resulta da nova conjuntura acima referenciada. As condições orográficas da ilha não favoreciam o assíduo convívio social entre os vários grupos sociais do campo, pelo que os momentos mais destacados da faina agrícola eram, por vezes, propiciadores desta sociabilidade. Não se perca de vista que, por exemplo, quanto à safra vitivinícola, a situação é diferente, pois é reduzido o número de enlaces (5%) e de concepções (8%) que tiveram lugar. Outra associação possível poderá estar na curva evolutiva da produção de açúcar e da libertação dos escravos. Aqui há uma perfeita consonância. O número de libertos evoluiu de acordo com a economia açucareira madeirense. A crise da produção e comércio de açúcar, a partir do final do último quartel do século XVI, vai ao encontro do aumento do número de alforrias, cuja curva ascendente se verifica a partir da década de vinte, culminando no final da centúria. O movimento inverso, na primeira metade do século XVII, poderá associar-se também a novo incremento da cultura da cana-de-açúcar. Tudo isto foi provocado pela ocupação holandesa do estado de Pernambuco. A afirmação dos canaviais foi curta e repercutiu-se na curva das alforrias da segunda metade da centúria. Ao invés a expressão geográfica das alforrias é dissonante com a mancha principal dos canaviais. Por isso é mais evidente no Funchal, Câmara de Lobos e Caniço, áreas que estão muito longe de ser as de maior afirmação dos canaviais.

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TRABALHO PARA ESCRAVOS E LIBERTOS

Engenhos no Brasil

O escravo aparece ligado à cultura dos canaviais mas sem atingir a mesma proporção de S. Tomé ou do Brasil: em 149634 a coroa dava conta da simbiose ao estabelecer a proibição de venda, por dívidas, de bens de raiz "nem escravos nem espravas", animais e aparelhos de engenho, permitindo apenas a transacção nas "novidades" arrecadadas. Noutro documento de 150235, acerca das águas de regadio, o monarca refere que era hábito os proprietários mandarem "os espravos e homes de soldada que tem de reger seus canaveaes". À ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também se pode atestar a presença dele nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho. O regimento dos alealdadores de 150136 refere o serviço especializado, aí diz-se que os mestres e lealdadores que fizessem açúcar quebrado sujeitavam-se a severas penas e, numa alusão clara à presença deles, ordena-se que, caso eles fossem cativos, a coima correria pelo proprietário. O serviço dos escravos poderia assumir duas situações distintas: ajudante dos oficiais da safra, ou os mesmos operários especializados. Em 148237, numa demanda sobre a qualidade do açúcar "temperado", depõem perante a vereação do Funchal os mestres de açúcar, Vaz e André Afonso: o primeiro referia que, por ter estado ausente nas Canárias, um homem, seu cativo, havia temperado o açúcar, enquanto o segundo, também fora da ilha, havia entregue o mesmo trabalho a um moço que o servia de soldada. Aos testemunhos denunciadores da participação do escravo, como serventes, na cultura e fabrico do açúcar também se poderão juntar outros que demonstram terem actuado na qualidade de oficiais de engenho: primeiro tivemos os escravos canários que se apresentaram na ilha como exímios mestres de açúcar, como se poderá verificar pela cautela posta em 149038 e 150539, quanto à expulsão40. Temos, ainda, notícia de dois escravos que foram mestres de engenho, e não sabemos se eram ou não guanches: em 148641 Rodrigo Anes, o Coxo, da Ponta do Sol, estabeleceu em testamento a alforria de Fernando, mestre de engenho. Ao lado deste trabalhador escravo temos outros mancebos de soldada de quem era devedor. Em 150042 no testamento de João Vaz, escudeiro, refere-se que o escravo, Gomes Jesus, era mestre de açúcar. Em 160243 Belchior Dias, caldeireiro e preto, surge como credor de serviços prestados a um ter-

34. Ibidem, t. 1, 98-98vº, carta régia de 25 de Fevereiro, in Ibidem, nº 258, 429-431. 35. Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in Ibidem, nº 246, 412-413. 36. A.R.M., Câmara Municipal do Funchal, nº 1297, fl. 45, vereação de 20 de Abril de 1482. 37. A.R.M. Câmara Municipal do Funchal, t. 1, fls. 34vº, 36vº, carta de 9 de Março, in Arquivo Histórico da Madeira, XVI (1973), doc. nº 145, pp. 241-242. 38. Ibidem, t. 1, fls. 107-107 vº, carta régia de 22 de Janeiro, in Ibidem, n1 284, pp. 451-452. 39. Ao contrário do que refere Manuela MARRERO ("De la esclavitud en Tenerife", in Revista de História, nº. 100, 1952, 434) os escravos também estiveram ligados à safra do açúcar, referenciando-se pelo menos um mestre de açúcar em Telde (M. LOBO CABRERA, Esclavos Indios en Canarias, Madrid, 1983 em separata, p. 528, nota 55). 40. Arquivo Histórico da Madeira, III, 1933, 154-159. 41. A.R.M., Capelas, cxa. 118, nº 4, testamento de 9 de Janeiro. 42 . ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls. 717-717vº, 17 de Outubro. 43. Ibidem, nº 684, fl. 370, testamento de 26 de Agosto.

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ceiro. Mais tarde, em 160544 é Jorge Rodrigues, homem baço, forro, quem reclamava de Pedro Agrela de Ornelas três mil réis de serviço que fizera no engenho em 1604. Jean Moquet45 em 1601 dá conta de uma activa intervenção dos escravos na faina dos engenhos, uma vez que terá presenciado um "grand nombre d'esclaves noirs qui travaillent aux sucres dehors la ville". É o único testemunho denunciador da presença dos escravos na economia açucareira que não encontra fundamento nos dados documentais disponíveis. Certamente que a única particularidade do serviço dos escravos nos engenhos madeirenses residia no facto de trabalharem de parceria com homens livres ou libertos, destacando-se aqui os trabalhadores de soldada: em 157846 António Rodrigues, trabalhador, declara em testamento que havia trabalhado sob as ordens de Manuel Rodrigues, feitor do engenho de D. Maria. As actividades ou ofícios dos libertos não estavam longe daqueles que executavam ou exerciam quando escravos. No meio rural a eterna ligação à terra e, na cidade, a vinculação aos trabalhos oficinais ou os serviços domésticos, continuaram a demarcar o quotidiano. A maioria dos libertos vivia do trabalho diário ao serviço de outrem. Isto favoreceu a existência de fortes laços de solidariedade entre eles e os outros trabalhadores livres, o que nunca agradou às autoridades municipais. A par disso inúmeros encargos de alforria expressam a obrigatoriedade de a soldada arrecadada pelos respectivos forros ser utilizada para cumprir as obrigações com aquele acto. De entre os inúmeros caso referenciados merece a nossa atenção o de Pedro, que fora escravo de Isabel Dinis, vendedeira, que ficará cinco anos de soldada "a quem por ele mais der", sendo o dinheiro arrecadado para o resgate de um cativo dos mouros47. O escravo em muitas sociedades, para além da função económica, também se afirmou pelo valor sumptuário, sendo em várias delas uma forma de distinção social48. Na Madeira, a exemplo das diversas áreas europeias, isto é evidente, como se poderá verificar na obra de Gaspar Frutuoso. Diz ele a respeito de Machico: "havia muitas mulatas e muito bem tratadas e de ricas vozes, que é sinal de antiga nobreza de seus moradores, porque em todas as casas grandes e ricas há esta multiplicação dos que as servem"49. Na Lombada do Arco da Calheta vivia Dona Isabel de Abreu, viúva de João Rodrigues de Noronha, filho do capitão do Funchal, com duas fazendas "muito grossas", tendo ao serviço uma moura como "privada sua"50. A partir da crise da cultura da cana-de-açúcar o excesso de mão-de-obra escrava disponível terá provocado uma mudança de sector de actividade e um aumento das alforrias. O escravo transferese do campo para a cidade vindo alimentar o numeroso grupo de serviçais das casas senhoriais e as oficinas. É necessário ter em consideração que ao lado dos escravos para o serviço da casa havia

44. Voyages, liv. 1, p. 50, cit. por V. M. GODINHO, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, IV, Lisboa, 1983, 201. 45. A.R.M., Misericórdia do Funchal, nº 684, fl. 539vº, testamento de 23 de Julho. 46. A.R.M., Misericórdia do Funchal, nº 710, fls. 50vo-54, 19 de Agosto de 1511. 47. Esta opinião é corrobada por B. BENASSAR (Valladolid au siècle d'or (...), Paris, 1987) e Vitorino Magalhães GODINHO (ibidem, 198-201), sendo o primeiro criticado por Luís FERNANDEZ MARTIN, Comediantes, esclavos y mouriscos en Valladolid. Siglos XVI y XVII, Valladolid, 1988, 129. 48. Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, 103. 49. Ibidem, 260. 50. Eles surgem com assídua frequência nos registos de crismas da freguesia da Sé, A.N.T.T., Cabido e Sé do Funchal, nº 36.

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Capela de Nossa Senhora de Penha França, fundada em 1680 por António Teixeira Dória, no local onde se diz ter existido um templo de mouros.

os livres, referenciados como criados51. O serviço doméstico era por norma uma atribuição dos escravos do sexo feminino, pois os do masculino ocupavam-se nas tarefas agrícolas, artesanais ou, então, eram homens de soldada ao serviço de outrem. A par disso à mulher estavam ainda reservadas outras tarefas, surgindo vendedeiras de fruta e lavadeiras. O exercício da actividade de venda de produtos agrícolas no mercado local pelos escravos estava sujeito a inúmeras regulamentações, limitativas do exercício doloso. Eram dados ao furto do senhor e dos compradores, amealhando, por vezes, quantias para conseguir a alforria. Os escravos do sexo masculino exerciam diversas tarefas nos mais variados sectores de actividade. Tanto poderiam ser artesãos como agricultores, almocreves e homens de soldada. É constante a presença nos livros de receita e despesa de obras, como a da alfândega do Funchal. Os senhores usavam-nos também para os substituírem no serviço de construção das fortificações, a que todo o cidadão deveria participar com um dia de trabalho. O aparecimento na ilha se liga de modo directo com a pastorícia52 e agricultura. A safra açucareira, por um lado, a vivência pastoril dos canarios53, por outro, fizeram com que eles, os primeiros escravos na ilha, se evidenciassem como pastores, agricultores e técnicos e nos serviços de engenho. A documentação, como vimos, é prenhe em referências a esta múltipla intervenção dos escravos na economia madeirense. Dos demais, para além daqueles que referenciamos em separado, na safra do açúcar, apenas surgem cinco com ofício, sendo dois almocreves, um alfaiate, um surrador e uma vendedeira54. A actividade declarada para os libertos poderá elucidar-nos sobre a que exerciam quando escravos, caso a alteração de estatuto social não conduzisse a qualquer mudança. Aqui, para além do grupo comprometido com a safra do açúcar, surge uma multidão sem actividade determinada, vivendo na maioria na condição de domésticos, assumindo especial importância, no último domínio, os do sexo feminino. Os libertos com um ofício surgem com maior frequência no Funchal, sendo quase nulos nas freguesias rurais. Para o sexo masculino, o relacionamento através do casamento com os diversos homens habilitados com um ofício, poderá ser um indício caracterizador da situação sócio-profissional. O relacionamento preferencial é com os trabalhadores, aliás já testemunhado e regulamentado pelas posturas: do total de setenta e sete enlaces matrimoniais, trinta e dois foram com trabalhadores, nove com homens do mar, sete com almocreves, quatro com cantoneiros e sapateiros e três com lavradores. Outro dado que poderá, ainda, apontar-se no sentido de uma possível identificação sócio-profissional do escravo é o ofício do proprietário, pois segundo A. Franco Silva55, por ele se conhece o do 51. Na ilha do Pico (Açores) os escravos não podiam ser pastores, Arquivo dos Açores, XII, 404-445, alvará de 3 de Junho de 1511. 52. Sobre as actividades pastoris dos escravos é extensa a bibliografia em Canárias: Manuel LOBO CABRERA, La Esclavitud en Las Canarias Orientales (...), Las Palmas, 1982, 239; idem, "Los galegos en Canarias (...)", 217; idem, "Los indigenas trás de la conquista (...)",Instituto de estudios Canrios.50 aniversario(1932-1982),vol.II, Santa Cruz de Tenerife, 1982, 241-243; Eduardo AZNAR VALLEJO, La Integración de las islas Canarias en la Corona de Castilla, La Laguna, 1983, 200-204; Manuela MARRERO, La Esclavitud en Tenerife (...), Santa Cruz de Tenerife, 1968, 93-109. 53. A.R.M., Câmara Municipal de Machico, nº 109, 86 vº, 9 de Maio de 1696, João de Castro, almocreve do capitão Manuel Barbosa. 54. La Esclavitud en Sevilla (...), Sevilha, 1979, 194 55. Os Escravos na Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991

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escravo. Aqui é, mais uma vez, evidente o carácter sumptuário do escravo, pois os donos situam-se maioritariamente no sector de serviços (82%). O escravo estaria ligado aos serviços não produtivos da casa dos membros do clero (24%), dos oficiais das companhias de ordenanças (19%) e dos funcionários das instituições régias e locais (16%). O grupo de agricultores (3%) é reduzido. É necessário ter em atenção que os dados usados surgem, preferencialmente, a partir de meados do século XVI, momento em que o açúcar deixa de ter importância na agricultura e comércio madeirenses. Esta conjuntura sócio-económica da ilha deverá ter pesado nisso. A partir de então o escravo alheia-se do sector produtivo, passando a reforçar o grupo de serviçais das principais famílias, tal como o testemunham alguns estrangeiros que nos visitaram. Já o dissemos, mas nunca é por demais referi-lo, na Madeira a escravatura não é necessariamente sinónimo de cana-de-açúcar e vice-versa56. Aqui, ao contrário do que sucede no Brasil, por exemplo, estamos perante dois fenómenos que, em poucos momentos se cruzam. Nos séculos XVII e XVIII é mais evidente o distanciamento entre ambas as realidades. A partir da listagem, que dispomos, dos proprietários de canaviais e escravos é possível traçar os possíveis laços de união das duas realidades57. De acordo com o livro do quinto de 1600 constata-se que o número de proprietários de canaviais e escravos (39%) é superior à situação da primeira metade do século XVI, mas que o número não tem qualquer relação directa com os níveis de produção. Assim, por exemplo, Maria Gonçalves, viúva de António de Almeida, é quem surge com o maior número de escravos, sendo diminuta a produção de açúcar. A conclusão possível é que na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias58, a mão-de-obra utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, que executavam tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar59. Neste grupo de escravos incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros que aí serviam como gente de soldada. Apenas um exemplo para elucidar a situação. De acordo com o testamento de Rui Mendes de Vasconcelos é possível fazer uma ideia da composição social do grupo de trabalhadores de um engenho60. Um grupo significativo de almocreves, escravos ou de soldada, executavam um conjunto variado de tarefas de transporte de lenha e fechos de cana. Dos operários especializados são referidos, um refinador de meles, um prenseiro, mulato e um António Jorge filho de um mestre de açúcar. O quadro completa-se com um Pedro, mulato, que foi de Pedro de Brito. Também no Brasil estávamos perante uma mão-de-obra mista, mas acontece que os escravos dominavam os serviços. Eles tanto podiam ser pertença do proprietário do engenho de canaviais, ou de outrem, que os alugava. É aqui que se radica a principal diferença entre a ligação do escravo ao açúcar na Madeira e do outro lado do Atlântico. Em termos concretos quer dizer que a cultura da cana-de-açúcar poderia subsistir na Madeira sem a presença do escravo. Por isso é anacrónico 56. Apenas para o século XVII, uma vez que para a centúria seguinte ainda não foi feito o levantamento dos escravos. Confronte-se o nosso estudo sobre Os escravos no arquipélago da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991 57. F. FERNANDEZ-ARMESTO, The canary islands after the conquest, Oxford, 1982, 85; Manuel LOBO CABRERA, La esclavitud en las Canarias orientales en el siglo XVI, Las Palmas, 1982, 232-246, idem, Grupos humanos en la sociedad canaria, Las Palmas, 1979, 36, idem, Los Libertos en la sociedad canaria del siglo XVI, Santa Cruz de Tenerife, 1983, 50-61. 58. Alberto Vieira, O Comércio Inter-Insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 57. 59. ARM, Misericórdia do Funchal, nº.684, fls.52-62vº, 16 de Abril de 1569. 60. Ibidem, t. 1, fls. 83vo-94, regimento de 27 de Março, in Ibidem, nº 246, 412-413.

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Escravos africanos. Gravura Hansburgk Mair-1509

referir aqui a simbiose entre os escravos e os canaviais. A Madeira poderá ser considerada o começo da ligação mas nunca uma situação em miniatura daquilo que surgirá mais tarde no continente americano. Em síntese, poderemos afirmar que, na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias, a mão-de-obra utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, os quais executavam tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar61. No grupo incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros que aí serviam como gente de soldada. Também no Brasil a mão-de-obra era mista, mas acontece que os escravos dominavam os serviços. Eles tanto podiam ser pertença do proprietário do engenho de canaviais, ou de outrem, que os alugava. É aqui que se radica a principal diferença entre a ligação do escravo ao açúcar nas ilhas e do outro lado do Atlântico. Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de origem africana, sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras proveniências, como o Brasil, América Central e Índia. Isto pode ser resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades no trafico e, por outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição, como sucedeu no Brasil e Índia. Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa ocidental, em poder dos portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. As únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como sucedeu com os contratos e arrendamentos. O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro, pelas Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. Foi aí que a Madeira foi buscar a mão-de-obra necessária para abrir os poios e, depois, plantar os canaviais. Tivemos primeiro os escravos brancos das Canárias e Marrocos. Depois os negros das partes da Guiné e Angola. As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram aí uma forma peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de presas de guerra, resultantes das múltiplas pelejas, em que se envolviam portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam com valentia a soberania portuguesa, os escravos mouros surgem ao mesmo tempo como prémio e testemunho dos feitos bélicos. Eram poucos os que podiam ostentar os triunfos de guerra. Outra forma de aquisição era o corso marítimo e costeiros, prática de represália comum a ambas as partes. Idêntica situação ocorreu na Índia onde os madeirenses também se evidenciaram nas diversas batalhas aí travadas, como sucedeu com Tristão Vaz da Veiga. Na Costa Africana, além do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros. Os assaltos e razias deram depois lugar ao trato pacífico com as populações indígenas. O processo de formação das sociedades insulares da Guiné foi diferente do da Madeira e Açores. A distância do reino e as dificuldades de recrutamento de colonos europeus devido à insalubridade do clima condicionaram, de modo evidente, a forma de expressão étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, vieram juntar-se os africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. Mas a presença de negros, sob a condição de escravos, incentivada no início, foi depois alvo de restrições. O espírito insubmisso, de que resultaram algumas e sérias revoltas em S. Tomé, foi a principal razão das medidas.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Atlas de Lázaro Luís.1563

61 Informações para a Estatística Industrial. Publicadas pela Repartição dos Pesos e Medidas. Districto de Leiria e Funchal, Lisboa, 1863.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Mulher do Congo com criança. Albert Eckhout. 1641

No caso da Madeira refere-se, com base em Gaspar Frutuoso, que os escravos representariam em 1552 cerca de 14% do total dos habitantes do Funchal e 29 % de toda a ilha, mas os dados por nós compulsados para toda a ilha e relacionados com o recenseamento de 1598 ficam-se por 5%, enquanto nas Canárias orientais tal percentagem rondaria os 15%. A percentagem do grupo nos registos paroquiais é reduzida, não ultrapassando na totalidade os 3%. Os valores mais elevados surgem nos baptismos e casamentos em 1590 com, respectivamente, 12% e nos óbitos de 1569 com 19%66. Quando a cultura e fabrico do açúcar retornam no século XIX já a escravatura havia sido abolido, sendo o sistema organizado de forma distinta. Enquanto no mundo rural perpetuava-se o tradicional sistema de “contrato de colónia”, na laboração dos engenhos de açúcar estávamos, em muitos casos, com um trabalho especializado, agora executado por engenheiros ou técnicos devidamente habilitados, a que se juntava o pessoal assalariado. A evolução tecnológica obrigou a uma especialização do pessoal. Apenas nas fábricas de aguardente, em que o processo era mais simples, não requerendo muitos conhecimentos técnicos e químicos. No levantamento da situação industrial da ilha feito por Francisco Paula Campos e Oliveira62 constata a falta de conhecimentos por parte do pessoal envolvido nos engenhos de açúcar e aguardente: A falta de manuaes das differentes industrias, dos quaes poderão tirar grandes vantagens muitos fabricantes e artistas, tornando-se ao mesmo tempo populares as diferentes sciencias que às industrias se ligam imediatamente, é uma falta sensível, e concorre para o nosso atraso industrial…”63 De acordo com outro registo da situação industrial da ilha de 190964 sabemos qual o pessoal empenhado no funcionamento de pelo menos dois engenhos. O engenho do Torreão apresentavase com 251 trabalhadores, maioritariamente operários pagos ao salário diário de trabalho. Do pessoal técnico especializado menciona-se: químicos, cozedores, chefes de bateria, ajudantes de laboratório e engenheiros mecânicos. Nas demais fábricas, tirando a Companhia Nova no Funchal com 33 trabalhadores, o número de operários rondava a pouco mais de uma quinzena.

Trabalhadores do engenho do Hinton, em princípios do século XX

62 . Para a situação da Madeira nos séculos XV e XVII veja-se o nosso estudo Os Escravos da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991 63 . Ibidem, p.7 64 . Victorino José dos Santos, Relatorio dos Serviços da Secção Technicos de Industria no Funchal no ano de 1907, in Boletim do Trabalho Industrial, nº.24, 1909, p.19

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ANEXO: OFÍCIOS LIGADOS AO AÇÚCAR

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MESTRE DE AÇÚCAR DATA NOME 1482 Mestre Vaz 1482 André Afonso 1486 Fernando, escravo de Rodrigo Anes o Coxo 1500 Gomes Jesus, escravo de João Vaz 1512 Manuel Roiz 1539-1581 João Fernandes 1539 Baltasar Fernandes 1543-70 António Gonçalves 1543 Jorge Fernandes 1543 António Oliveira 1548 Francisco Pires 1548 Manuel Martins 1554 Pedro Fernandes 1554-81 Manuel Afonso 1556 Gaspar Piris 1557-94 Gregório Fernandes 1558-81 Roque Fernandes 1560-81 João Fernandes 1561 Gaspar Fernandes 1564 Jorge Fernandes 1564-99 Marcos Gonçalves CALDEIREIRO DATA NOME 1541 Garcia Alvares 1541 Francisco Vaz 1547 Jerónimo Gonçalves 1551 Baltasar Rodrigues 1551-53 João Delgado 1553 Manuel Afonso 1558 Gaspar Gonçalves 1559 Diogo Dias 1559 Francisco Anes 1559 Roque Fernandes 1568-81 Gonçalo Anes 1570 João Afonso 1574 Francisco Moniz 1578 João Gonçalves

LOCAL

Funchal Ribeira Brava Funchal Ribeira Brava Ribeira Brava Ribeira Brava Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal

DATA 1565 1570-74 1571 1574 1576 1577 1579 1580 1582 1582-84 1584 1590 1590 1590 1591 1593 1598-1600 1598 1601 1606 1619 1620 1633

NOME João Martins Gaspar Luís Francisco Gonçalves Pedro Vaz Diogo Esteves Manuel Martins Francisco Gonçalves Manuel Martins Baltasar Fernandes Manuel Martins Domingos Sardinha Gonçalo Fernandes Baltasar Gonçalves António Fernandes António Alvares Manuel Afonso Sebastião Sardinha Gonçalo Jorge Pedro Martins António Costa Domingos Gomes Gonçalo Fernandes Manuel Pires

LOCAL Serra Água Câmara Lobos Funchal Funchal Funchal Ribeira Brava Ribeira Brava Calheta Calheta Funchal Funchal Santo António Funchal São Martinho Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Ponta Sol Funchal Ponta Sol

LOCAL Ribeira Brava Ribeira Brava Funchal Funchal Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal

DATA 1581 1582 1582-1623 1584 1593 1594 1600 1601 1601 1622 1623 1641 1656-70 1657

NOME Domingos Fernandes Baltasar Gonçalves António Rodrigues Domingos Sardinha Tomé Gonçalves Manuel Rodrigues António Rodrigues Domingos Martins Cristóvão Dias Francisco Fernandes António Rodrigues Manuel Gomes Manuel Fernandez António Coelho

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Ribeira Brava Funchal Funchal

Ponta do Sol

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

CAIXEIRO DATA 1539 1540 1540 1542-53 1542 1542 1543 1543 1543-56 1546 1546 1546-56 1549 1551 1551-53 1551 1551 1551-55 1554 1554 1555 1555 1556 1556 1556 1556 1557 1558 1561-1601

NOME Álvaro Pires Silvestre Dinis Nicolau Gonçalves João Francisco Lourenço Anes Heitor Lopes Pedro Anes Afonso Anes Bartolomeu Roiz Pedro Alvares Manuel Afonso Rodrigo Anes Álvaro Nunes João Martinz Francisco Brás Domingos Gil António Rodriguez Francisco Fernandes Lourenço Anes Francisco Nunes Francisco Dias Manuel Dias Pedro Fernandez Belchior Rodrigues João Delgado Álvaro Moniz António Gonçalves Clemente Gil Belchior Roiz

PURGADOR DATA NOME 1542-88 Gonçalo Gonçalves 1543 Francisco Vicente 1543-1613 António Gonçalves 1543 Gonçalo Fernandes 1544 Gonçalo Anes 1545 João Martins 1547 João Anes 1548 Gonçalo Ramalho

LOCAL Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal

DATA 1561-1599 1568-77 1570 1573-1697 1576 1576 1580-83 1584 1584 1584-98 1597 1600 1601-1605 1609 1610 1615 1617 1618 1620 1625 1632 1632 1634 1634 1639 1644 1677 1682 1698

NOME João Fernandez Manuel Rodrigues Niculau Fernandez Manuel Rodrigues Álvaro Gonçalves Pedro Afonso Gonçalo Vieira Francisco Gomes Álvaro Anes Afonso Rodrigues Álvaro Luís João Gonçalves Manuel Gonçalves Vicente Pereira Melchior Rodrigues Sebastião Alvares Pedro Fernandez Vicente Faria Afonso Pires Francisco Riscado Miguel Fernandez Manuel Gomes Pedro Pestana Domingos Fernandez Francisco Dias Bertolomeu Fernandez Manuel Rodrigues Miguel Fernandez José Vieira

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Porto da Cruz S. Vicente Arco S. Jorge S. Vicente Calheta Funchal Funchal Funchal

LOCAL Caniço Funchal Funchal Funchal Funchal Calheta Calheta Funchal

DATA 1548 1548-55 1549 1554-1561 1558 1561-1582 1558 1558-1562

NOME Manuel Carvalho Francisco Afonso Pedro Vaz Belchior Rodrigues Gil Anes Manuel Fernandes Júlio Anes João Dias

LOCAL Funchal Calheta Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal

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Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

OUTROS OFÍCIOS DATA 1564-1601 1568 1570 1570-78 1571 1571-75 1573-1613 1574-1607 1574 1576 1577-1598 1578-83 1580 1583 1583 1583 1583 1584-1609 1586

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NOME João Fernandes António Rodrigues André Pires João Pires José Gonçalves João Gonçalves Manuel Rodrigues Manuel Gonçalvez António Afonso Gonçalo Fernandez Francisco Fernandez Pedro Alvares Bertolomeu Nunes João Gonçalvez Pedro Gonçalvez Francisco Martins Afonso Roiz Francisco Fernandez Manuel Pires

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Câmara Lobos Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Ponta Sol

PRENSEIRO DATA NOME 1551 Francisco Lopes 1552 André Rodrigues 1552 António Dias 1564 Domingos Fernandes 1570 Manuel Fernandes 1574 Pedro Gonçalves 1580 Jorge Gonçalves 1590 Belchior Luís

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal

MOEDOR DATA 1574 1578 1580 1655

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal

NOME João Dias Domingos Gonçalves Bastião Pereira Diogo Fernandes

DATA 1589-98 1591 1594 1594 1596 1596 1598 1598-1606 1598-1616 1600 1601 1604-1632 1608 1613 1620 1622 1629 1629

NOME António Gonçalvez Manuel Gonçalves Diogo Gonçalves Francisco Pires António Fernandez Francisco Esteves Manuel Carvalho Manuel Roiz Bastião Gomes Belchior Lopes Melchior Gonçalvez Gaspar Sardinha Gonçalo Anes Inocêncio Gomes Belchior Martins Diogo Gomes Belchior Gomes Diogo Dias

CANAVIEIRO DATA NOME 1542 Manuel Afonso 1551 Diogo Gonçalves 1556 Gonçalo Rodrigues 1562 Bastião Gonçalves 1563 António Mendes 1577 Pedro Anes 1578-84 Gaspar Gonçalves 1580 Pedro Martins 1584 Belchior Afonso 1591 Francisco Borges

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Ribeira Brava Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal

Cozedor meles

Confeiteiro

Conserveiro Escumeiro Feitor Engenho Refinador

DATA 1556-72 1559 1567-1574 1574 1574 1551 1556-57 1657 1607 1577 1584 1543 1543 1555-1564

NOME António Gonçalvez Pedro Mendes João Fernandez Manuel Fernandes João Pires Maria Gomes Francisco Fernandez Adrião Gomes João Dias Gaspar Fernandez João Velho (de Pedro de Agrela) Jerónimo Martins Vaz António Gonçalvez

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Calheta Funchal Funchal Funchal Funchal

LOCAL Funchal Funchal Funchal Funchal Funchal Calheta Funchal Calheta Funchal Funchal

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CAPÍTULO 4

o mercado do AÇÚCAR, álcool e aguardente

Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O MERCADO DO AÇÚCAR, ÁLCOOL E AGUARDENTE Na Cristandade Ocidental o açúcar demorou em tornar-se o manjar de todos. Por muito tempo foi uma raridade e usado quase sempre como um medicamento. O açúcar tornou-se num elemento inquestionável na farmacopeia ocidental, como o provam textos desde Galeno a Hipócrates. Apenas no século dezasseis para as chamadas drogas orientais. Os textos de Garcia da Horta e Tomé Pires assim o denunciam. A aplicação farmacológica do açúcar no século XVI está documentada nas receitas e despesas dos hospitais das misericórdias e esmolas da coroa em açúcar aos hospitais -Todos os Santos em Lisboa (1506), Misericórdias do Funchal (1512) e Ponta Delgada (1515) – e conventos – Guadalupe (1485), Évora (1497), Beja (1500), Aveiro (1502), Coimbra (1510), Vila do Conde (1519). A tradição árabe da dádiva do açúcar e doces conquistou a coroa portuguesa, que não se fez rogada em dádivas, usando para isso parte significativa do açúcar arrecadado na ilha1. A situação do açúcar como raridade manteve-se por muito tempo. Foi só no século XIX que se começou a generalizar o consumo. Mesmo assim continua a estar associado às farmácias e boticas. Proudhon refere que "o açúcar é toda a farmácia do pobre". Na verdade o açúcar era um suplemento capaz de suprir a insuficiência calórica. E se tivermos em conta que o principal problema de sociedade do antigo regime era a desnutrição das populações, resultante da pobreza calórica de dieta alimentar, teremos a explicação para os efeitos benéficos do consumo. A alimentação era pouco variada e, quase só, assente no consumo de pão. A ingestão diária de calorias era inferior a 2000, quando hoje os padrões médios oscilam entre 3000 a 4000. A isto liga-se a constância das crises de subsistência que contribuíram para agravar a situação. A falta de pão não é só sinónimo de fome, mas também de doença e instabilidade social. A

Porto do Funchal. Gravura do século XIX

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1. PEREIRA, Fernando Jasmins. O açúcar Madeirense de 1500 a 1537. Produção e preços. Lisboa: Instituto Superior de Ciências sociais e Politica Ultramarina, [1970?]. Sep. de Estudos políticos e Sociais, Vol. VII, nº' 1, 2 e 3, 1969. BRAGA, Paulo Drumond, "O açúcar da ilha da Madeira e o mosteiro de Guadalupe", in Islenha, 9, 1991, 43-49. SALGADO, Anastacia M. e Abílio José, O Açúcar da Madeira e algumas instituições de assistência na Península e Norte de Africa, durante a 1ª metade do século XV, Lisboa, 1986.

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Alberto Vieira

Machico, 2002

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

maior parte dos moribundos, acolhidos pelos hospitais apresenta os mesmos sintomas. Por isso o açúcar, pelo elevado valor calórico, era a mezinha indispensável. Um dos muitos indícios da fé que os nossos antepassados depositavam no poder fortificante destes produtos está na ração obrigatória estabelecida para a dieta de bordo das caravelas. Ambas supriam as deficiências calóricas e reforçavam a fraca capacidade imunológica. Nas áreas produtoras como a Madeira o consumo de açúcar acabou por adquirir importância desde muito cedo. Os chamados desperdícios da laboração do açúcar, como escumas, rescumas, melaço, tinham entre os locais habituais consumidores. Além disso o acto de chupar o suco da cana, que muitos de nós terão gravado na memória, é antigo. Já Giulio Landi2, cerca de 1530, refere ser usual os madeirenses comerem "em jejum canas maduras e frescas e dizem que rejuvenescem para dar sensualidade ao corpo, para refrescar o fígado, para saciar a sede, e para branquear os dentes". A isto acresce uma receita das mulheres grávidas, consistente em "sopas de pão torrado deitado na última cozedura do suco das canas, cobrindo depois com gemas de ovo", considerada como meio para "recuperar as forças perdidas", para além de confortar o estômago e intestinos e dar boa disposição ao ventre. Sem dúvida que o maior consumo do açúcar não foi nos fármacos mas sim nos manjares nobres, sob a forma de doce - alfenim, alféola-, conservas e casca de fruta. Em qualquer dos casos a Madeira ficou célebre. A doçaria conventual fez as delícias dos manjares reais, dos ingleses, franceses e flamengos. A tradição do fabrico do alfenim, que hoje se perdeu, fez dos madeirenses exímios escultores do doce. Ficou célebre a embaixada de Simão Gonçalves da Câmara ao papa Leão X em 15083. Vasco da Gama levou-o para oferecer ao Samorim de Moçambique. E pela mesma via da rota da Índia deverá ter chegado ao Japão onde ainda hoje persiste, sob a designação de "alfeito". O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a necessidade de suprir as carências dos mercados europeus, em substituição do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Foi a conjuntura que impôs a cultura no novo espaço atlântico e ditou as regras. A premência do consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. No último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e casca como resultado da solicitação dos veleiros que demandavam o Funchal. Acresce ainda que a vulgarização do açúcar no quotidiano madeirense derivou

A safra começava em Março mas só em Agosto havia disponível para distribuir às conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir daqui eram mais de trinta dias de árdua tarefa até que o produto estivesse disponível para a exportação. Da existência ou não de açúcar e da qualidade dependia a disponibilidade para o fabrico dos derivados, que activavam o comércio com as praças do Norte da Europa, donde nos províamos de cereais e manufacturas5. No século XVII a indústria de derivados de açúcar era muito instável, dependendo das possibilidades de oferta de açúcar brasileiro e da procura do produto acabado pelos mercadores europeus. A correspondência de Diogo Fernandes Branco e W. Bolton testemunham de forma evidente a realidade. Diz o último em 7 de Agosto de 1697: "Pensou-se fazer uma grande quantidade de conserva de citrinos mas muitos fabricantes desistiram por não saberem se os barcos os viriam buscar"6. As indústrias da casquinha, conservas de fruta e confeitos mantiveram-se durante muito tempo como uma actividade da economia familiar, não acompanhando a queda da produção de açúcar madeirense, pois à falta dele alimentou-se do importado do Brasil. No decurso do século XVII a casquinha concorreu com o vinho nas exportações, situando-se em 1698 em segundo lugar7. Entretanto a elevada valorização do vinho conduziu para segundo plano e à quase extinção. Em 1779 o Governador refere que a manufactura da casquinha, a principal de todas, estava quase extinta8. A crise, que começara na década de setenta, motivou a atenção das autoridades que procuravam reavivar as exportações. Neste contexto surgiu em 1782 uma proposta de Francisco Xavier Veríssimo e José Rodrigues Pereira, comerciantes do Funchal, pedindo o exclusivo do fabrico da casquinha9. Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na economia agrícola era natural a dominância da doçaria na culinária regional. Na memória de todos persistem as receitas conventuais, pois que as demais se perderam. Nos conventos de Santa Clara, Mercês e da Encarnação a doçaria é uma arte que ocupa de forma dedicada as freiras10. Os doces faziam-se em momentos festivos para consumo interno ou para retribuir os benfeitores. Das suas mãos saíram os bolos de

2. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros. 1455-1700, Funchal,1981, p.86 3 . Stegagno-Picchio, Luciana, O Sacro Colégio de Alfenim, in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Lisboa, 1990, pp.181-190. 4. Alberto Vieira, O Comércio Inter-Insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, pp.54-59 5. A correspondência de Diogo Fernandes Branco (ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº. 19) é muito elucidativa sobre a ambiência fabril e comercial que serve de fundo a esta realidade. Confronte-se as cartas de 14 de Julho de 1649, 20 de Junho de 1550 publicadas em Alberto Vieira, O Público e o Privado na História da Madeira Vol. I. Correspondência Particular do Mercador Diogo Fernandes Branco (1649-1652), Funchal, CEHA, 1996.

6. António Aragão, Ob. cit., p.341 7 . J Cabral do Nascimento. Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1930. 8 . AHU, Madeira e Porto Santo, nº.518. 9 . Ibidem, nº.615-616 10. Cabral do Nascimento, As Freiras e os Doces do Convento da Incarnação, in Arquivo Historico da Madeira, vol. V, Funchal, 1937; Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Funchal, 1995, pp.138-142; Cousas & Lousas das Cozinhas Madeirenses, Funchal, 1988.

da conjuntura do mercado do açúcar em finais do século XV. O aparecimento de novos mercados produtores, como a Madeira, fez baixar o preço, provocando a generalização do consumo. A importância que assumiu o açúcar na economia madeirense mede-se pelo facto de ter assumido a função de medida e moeda de troca e pagamento dos mais diversos serviços. Para isso contribuiu, não só, a afirmação no quotidiano, mas também, a falta crónica de moeda na ilha4.

O CONSUMO DO AÇÚCAR

Açucareiros. Museu da Quinta das Cruzes.

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Alberto Vieira

mel, talhadas, batatada, coscorões, arroz-doce e queijadas. Cada doce tinha a sua época: a batatada pelo Natal, os coscorões no Entrudo, as talhadas na Páscoa e no dia de Nossa Senhora da Encarnação. De entre todos o bolo de mel persiste e afirma-se como o rei da doçaria madeirense. Em muitas das receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho Madeira. Um das receitas mais conhecidas é a das freiras do Convento da Encarnação11. É também com vinho Madeira que o mesmo deve ser servido. Aliás, o Vinho Madeira é uma das melhores iguarias para acompanhar a doçaria regional ou doutras paragens. O Bolo de mel domina e perpetua a tradição do açúcar e a arte da doçaria madeirense.12 A presença do açúcar na culinária é uma constante, quer com as sobremesas, quer como “condimento de comer”. Uma das formas de expressão do consumo do açúcar tem a ver com a presença dos açucareiros na dispensa familiar. Nas casas-museus, que dispõem de colecções particulares, como é o caso da Quinta das Cruzes e Frederico de Freitas, é possível encontrar algumas peças em prata e porcelana, cujo uso local é difícil de atestar. Alguns são ainda testemunho do açúcar como uma raridade, por isso apresentam-se com chave13. No século XIX a doçaria teve divulgação através das pastelarias. Um das mais famosas foi a Pastelaria Felisberta criada em 1837 na Rua da Carreira. Também ficou célebre a doçaria da panificação Blandy na rua do Hospital Velho. A tradição do chá, dos saraus dançantes deve ter contribuído para uma cada vez maior valorização do doce no quotidiano e um aumento do consumo do açúcar. No século dezoito os ingleses trouxeram para a ilha a valorização deste espaço com os estuques pintados. A mesa estava sempre a conduzir com o ambiente. Loiças e porcelanas brasonadas, da companhia das índias, rivalizavam com os apetitosos conteúdos de acepipes, carne, peixe, doces e frutas. Tudo isto era rematado por toalhas de linho bordadas e de ramos de flores de garridas cores. Os testemunhos da opulência de algumas das mesas madeirenses repetem-se. A imperatriz do México, D. Carlota Joaquina casada com o Imperador do México, Maximiliano, em 1560 ficou impressionada com todo o fausto da recepção no Palácio de S. Lourenço: O jantar foi magnífico. Tudo quanto se encontrava sobre a toalha, candelabros, centro, desaparecia quase debaixo de uma profusão de flores, que substituíam graciosamente a riqueza metálica e às quais serviam de complemento pães e açúcar com diversas bandeirinhas”14. Uns anos mais tarde, Isabella de França15 continuava deslumbrada com as sobremesas doces da 11 .Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação, in Das Artes e da História da Madeira, 1948-1949, p.51. 12. Ana Maria Ribeiro, O Fabrico dos Bolos de Mel na Calheta, Xarabanda, 5, 1994, 23-26; João C. Nascimento, As Freiras e os Doces do Convento da Incarnação, Arquivo Histórico da Madeira, V, 1937. IDEM, A Restauração e o convento da Encarnação, Funchal, 1940. IDEM, O que as Freiras Comem, AHM, V, 1937. Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação, Das Artes e da História da Madeira, 1948-49. IDEM, Um Ovo por Um Real, DAHM, Funchal, 1948-49, p.68. IDEM, Os Bolos de Mel do Ti Caetano, DAHM, vol.I, nº4, 1950. Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira, O Natal na Madeira. Estudo folclórico, Funchal, 1956. André Simon e Elizabeth Craig, Madeira, Wine, Cakes and Sauce, Londres, 1933. Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou..., Lisboa, 1928. 13 . De acordo com informação fornecida pela Dr. Teresa Paz, directora do Museu da Quinta das Cruzes, o Museu dispõe de 16 açúcareiros, sendo 5 em porcelana, 1 em casquinha, 2 em prata e marfim e os restantes em prata. Note-se que são maioritariamente de finais do século XVIII ou da centúria seguinte. 14 . Un Hiver à Madère. 1859-1860,Viena, 1863, Cf. J. Cabral do Nascimento, A Arquiduquesa Carlota e as suas Impressõaes de Viagem, in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. IX, 1951, p.99 15 . Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal(1853-1854), Funchal, 1970, p.174

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cozinha: “Contudo a especialidade da Madeira está na secção dos doces. É imensa a sua variedade; fazem-nos de formas imaginosas e dão-lhes nomes extraordinários. Chama-se ovos moles um género opulento de leite-creme. Ovos reais, quando eles ficam, com a aletria, em fios, e servem para decorar outros doces. Vi um leão britânico feito de pão-de-ló, tão grande como um gato, coroado de prata e com muitas estrelas pelo corpo; a juba e a extremidade da cauda eram de ovos reais. No outro lado da mesa estava a águia americana confeiçoada com os mesmos ingredientes. A uns bolinhos precioso dão o nome de beijos de frade. Certa massa em forma de sincelos denomina-se lágrimas. Mas de todos os nomes o mais estranho é o toucinho-do-céu aplicado em geral a umas fatias, que também podem tomar o aspecto de perna de porco ou até cordeiro. ” Aliás, segundo ela, “a especialidade da Madeira está na secção dos doces. É imensa a sua variedade; fazem-nos de formas imaginosas e dão-lhes nomes extraordinários.“16 Nos anos vinte a cidade estava servida de onze confeitarias. Hoje, o único testemunho que resta dessa importante industria do doce madeirense é o bolo de mel. O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo na ilha Terceira, único local onde ainda persiste a tradição. No século XIX eram também muito apreciados os sorvetes e doces gelados feitos com neve trazido do alto das montanhas para o Funchal. Ficou famosa a casa de Baxixa, tal como testemunha John Dix17. Este fabricava os melhores sorvetes, servindo-se da neve que recolhia da casa de gelo das montanhas. A partir de 1867 o fabrico de gelo por John Peyne & Son com água das Fontes de João Diniz tornava mais fácil o fabrico de sorvetes. Na década de vinte persistem ainda duas fábricas de gelo que continuarão por muito tempo a deliciar a gulodice dos amantes dos refrescos de Verão. A partir do século XIX a generalização dos refrigerantes fez aumentar as necessidades de açúcar. Consumia-se ainda cerveja, ginger-beer (limonada de gengibre) e água mineral. No século XIX os ingleses viriam a alterar o hábito ao introduzirem a cerveja. A primeira fábrica foi implantada na ilha por João Park em 1840, a que se sucederam outras na década de cinquenta, como foi o caso da de Victorino José Figueira (1856) e José de Freitas (1859). Temos alguns dados sobre a produção de cerveja. O primeiro produzia 326 hectolitros de cerveja branca e preta e 58 de ginger beer, já o segundo apresentava 340 de cerveja branca e preta e 60 de ginger beer. Mas muitos estrangeiros preferiam a cerveja importada tal como nos refere Rudolfo Schultze em 1864, todavia a concorrência da cerveja inglesa e alemã não afectava a madeirense, muito apreciada pelos locais e considerada de superior qualidade. Em 1872 H. P. Miles fundou a Atlantic Brewery e em 1890 Manuel Alves de Araújo surge com a fábrica Leão. A primeira, que produzia água de soda, limonada gasosa e cerveja, apresentava o equipamento adequado ao engarrafamento já avançado em relação às demais mas que ainda estava muito longe das actuais linhas de engarrafamento. Em 1908 em duas unidades do Funchal fabricava-se 666 hectolitros de cerveja branca e preta e 118 de ginger beer. Uma cerveja custava 30 réis enquanto um ginger beer ficava pelos 20 réis. A crise da década de trinta obrigou à fusão de todas as pequenas industrias numa só unidade industrial, dando lugar à Empresa de Cervejas da Madeira que hoje domina o mercado local.

Rapaz do mel e rapadura. Gravuras do século XIX. J. Gellatly.1840; E. G. Smith, 1842. Casa Museu Frederico de Freitas.

16 . Ibidem, p.174 17 . A Winter in Madeira… New York, 1850.

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O Consumo de açúcar foi em crescendo, nomeadamente no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Não existem dados exaustivos sobre a situação, mas os poucos disponíveis assim o evidenciam. Ano económico 1863 1888 1897 1898 1908 1911 1912 1913 1960-61 1961-62 1962-63 1963-64 1964-65 1665-66 1666-67 1667-68 1968-69 1969-70 1970-71 1971-72

Consumo KGS 165.000 300.000 853.444 988.568 910.000 1.219.200 1.219.200 1.320.800 6.220.111 6.341.557 6.393.697 6.850.687 6.969.612 6.857.723 7.237.846 7.285.291 7.075.530 7.269.012 7.518.406 7.433.280

Fonte: Relatório sobre as Industrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Administração–Geral do Álcool, Lisboa, 1972

O ÁLCOOL E A AGUARDENTE Bolo e broas de mel. Engenho da Calheta

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Do suco da cana também se pode extrair álcool e aguardente. Acontece que no primeiro momento de afirmação da cultura da cana sacarina a utilização foi quase só para o fabrico de açúcar. Já no segundo momento a valorização foi para o álcool e aguardente. A Madeira desde o século XVI que exportava aguardente para o Brasil e Angola, mas o uso na

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fortificação dos vinhos parece ser mais tardio. As referências são mais frequentes a partir de meados do século XVIII. Em 1704 W. Bolton refere que se fazia a adição de aguardente de França aos vinhos de exportação, tendo recebido desde Londres 10 pipas18. No Porto a prática generalizou-se a partir de 173019. O mercador Francis Newton refere em cartas de 1752 e 1753 que o uso de adicionar aguardente aos vinhos era corrente20. Acontece, ainda, que os mercadores da Nova Inglaterra e Virgínia eram favoráveis à adição de aguardente. Na correspondência comercial dos mercadores ingleses é insistente a referência ao efeito benéfico da fortificação dos vinhos com aguardente21. A História do alambique remonta ao tempo dos Romanos, mas foram os árabes que aperfeiçoaram o mecanismo e o divulgaram na bacia mediterrânica22. Em Portugal está documentado desde o século XVI. Na Madeira não sabemos quando surgiu o primeiro mas, de certeza que no século XVI deveriam existir uma vez que está documentada a exportação de aguardente para Angola e o Brasil. A referência mais antiga a um alambique é de 1667, altura um que o convento de Santa Clara vendeu uma caldeira de cobre de fazer aguardente a Manuel da Fonseca, mercador, por 31$200 réis23. Depois disso só em 1745 surge nova informação sobre um outro alambique que funcionava no Seixal, no Norte da Madeira24. Desde 177725 temos indicação sobre o trato do vinho da Madeira com aguardente importada de França. Num requerimento dos negociantes solicitando a entrada de aguardente, a Junta, tendo em conta o momento de crise e o facto dos poucos vinhos ainda exportados serem loteados com a aguardente, por razão da sua generosa qualidade e por outra esquisita, de se não perceber a lotação dela com os vinhos, se fazia decente a sua entrada, mas de modo controlado, pois que não impede a extracção do pouco que nesta ilha se fabrica... nem também obsta o consumo interior, tanto pelo alto preço com que entra a de França sem se poder por isso reexportar, a menos aplicar-se a outro uso que não seja aquela mesma utilíssima lotação. Que igualmente as mesmas forem introduzidas voltam a sair na extracção do vinho que facilitam e engrossam os direitos da Alfândega por entrada e por saída. Sendo de maior atenção a grande qualificadíssima qualidade de ser o género, que

Sistema mecânico de bombas. L. Colson, 1905

18 . The Bolton Letters. The Letters of an English merchant in Madeira, Funchal, 1960, p.34; Rupert Croft-Cooke, Madeira, p.39 19 Alarte, Vicencio [A Agricultura das Vinhas e tudo o que Pertence a ellas até o Perfeito Recolhimento do Vinho e Relação das suas Virtudes e da Cepa, Vides, Folhas e Borras, Lisboa, na Officina Rela Reseandesina, 1712] recomendava o uso de três galões de aguardente por pipa de vinho. 20 Rupert Croft-Cooke, Madeira, London, 1961, p.50 21. Em carta de John Leacock para o seu irmão refere-se o seguinte: …as brandy is such na essential help to the wines, we shall make it a constant rule to give all our wines that go round a sufficient portion. We find that all those houses who are most noted for putting an extra quantity of it in their wines meet with more success in pleasing their correspondentsthan whose who ships much better wines, that do not adopt method of makingthem up.. Indeed in the course of eight or nine months continual agitation on board a vessel, the extra fire and spirit of the brandy must be much exhausted & softened, and the wine receive the strength which is quite different when the wines remain quiet and undisturbed in our stores, then the additional dose of brandy as you know from experience takes away the flavour & pleasantness of the wine and is very apt to give it a disagreeabke hars twang. [Rupert Croft-Cooke, Madeira, London, 1961, pp.57-58] 22. João Inácio Ferreira Lapa, Artes Chimicas, Agrícolas e Florestaes ou Technologia Rural, vol. I, Lisboa, 1865; Avelar Machado, Subsídio para a História da Destilação, Informação Vinícola, nº.10, 1950, pp.1-2: idem, O Alambique através dos Tempos, in Informação Vinícola, nº.13, 1950, p.4; Margarida Ribeiro, Alguns Aparelhos de Destilação em Portugal, in Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, Lisboa, 1989, nº91, t.I, pp.125-147 23 . ANTT, Convento de Santa Clara, maço 2, 10 de Maio de 1667. 24 . João Adriano Ribeiro, Porto Moniz. Subsídios para a História do Concelho, Porto Moniz, 1996, p.93. 25. ANTT, PJRFF, nº 942, pp. 19/20.

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Claustro do Convento de Santa Clara

sem empecer a extracção do nosso concorre a dar-lhe reputação e maior valor em preço e que depois de pagar direitos a S. M., constitue com decoro do reino as espécies activas dos nossos vinhos, visto que os desta ilha na concorrência dos mais da Europa e ainda dos do nosso reino só tem puridade e preferível estimação na fermosa consistência em que por decurso do tempo se vão elevando a tal grandeza e generosidade, que constituem as delicias dos que a preços altos os compram; pureza e tão substanciosa que pelos muitos anos em que os outros a pedem nesses mesmos adquirem e sustentam os desta ilha. Em consulta de 31 de Maio26, sobre o mesmo assunto, argumenta-se com a concorrência dos vinhos estrangeiros no mercado internacional e a necessidade do da ilha ganhar mercado, não pelo baixo preço, o que era impossível, mas pela qualidade e propriedade de se melhorar com o tempo. Ora, tendo em conta que a duração e distinta qualidade dos vinhos depende da indispensável lotação de aguardente de França, principalmente naqueles que pela sua riqueza, como produzidos em terras impróprias, lhes faltam os espíritos para se conservarem e que a dita lotação vem o fazer decorosa a reputação do reino, e a sua utilidade e a leva-los, ou conservá-los reciprocamente útil, tornava-se útil a introdução limitada, pois que tinham a estimável qualidade de não fazerem as da terra, conhecida a lotação dos vinhos pelo impermutável benefício que lhes fazem. A Junta autorizou em 178227 a entrada de 20 vasilhas de aguardente de França, e em 179328 aceitou um contrato com particular por nove anos a 1200 réis por galão. A propósito comentava-se: Primeiramente tem a experiência demonstrado com a magnificência, que os vinhos desta ilha, único, mas muito considerável ramo dele, sendo concertado com as genuínas aguardentes de França conservam por meio deste benefício a sua primitiva e generosa qualidade e senão arriscam a decair dela, como tem acontecido, introduzindo-se em seu lugar aguardentes adulteradas,... que não só adulteram os vinhos, mas os fazem perder a superior qualidade que dá origem à sua extraordinária exportação. A questão foi de novo ateada nos anos vinte do século XIX. As aguardentes importadas perdem importância. A 23 de Agosto de 182129 a Câmara do Funchal em petição às Cortes clamava pela interdição de entrada, como forma de acudir à crise, e para que os vinhos de sua produção fossem adubados só com as aguardentes fabricadas nesta província, que não só podem abastar, mas que são de qualidade e quilates superiores a todas as aguardentes conhecidas, não podendo, de modo algum, ser igualadas em bondade por outra alguma conhecida, uma vez que operam tanto no concerto e trato dos nossos vinhos, em uma medida dada, quando produz o dobro de aguardente de França, além do benefício, que resulta da sua natureza homogénea. Elas só tem um fumo, a que chamam fleuma, causado pelas máquinas imperfeitas, que ora se fabricam. É por certo, que ainda lançado nos vinhos com este sabor, passados quatro, ou seis meses este desaparece e se não conhece de maneira alguma e nunca se percebe sendo laudas no mosto, antes pelo contrário lhes dá uma qualidade realçada. As medidas assentavam na máxima de ser um erro capital na economia 26. 27. 28. 29.

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Idem, nº 411, pp. 32/33. Idem, nº 942, fol. 96. Idem, nº 761, pp. 196/197. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 100vº/104, 263/264., in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, p.95

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política receber de fora as produções e manufacturas de que o país não carece, antes abunda. Eram os ingleses que traziam grandes somas de aguardente de França, Itália e Espanha e as adulteravam na viagem, pelo que se interditou a entrada em 1760. Apenas se permitiu o tráfico e começou a haver a arbitrária permissão de entrada de pequeno número de pipas de aguardente de França, para adubar alguns vinhos de embarque; liberdade, que foi crescendo de dia para dia ate o enorme abuso que chegou esta importação, que por ser uma infracção às leis deve ser sistematicamente abolida. A proibição das aguardentes francesas justificava-se em razão do impasse que se vivia: Muitos especuladores estão à espera de que se firme a proibição das aguardentes estranhas na ilha para fazerem apontar imediatamente nas máquinas aperfeiçoadas para entrar na sua laboração, não se animando a isso pelo perigo de perderem o seu cabedal e a sua esperança. Isto é um incentivo poderoso para que se decida a sua positiva proibição quando antes, muito principalmente havendo na ilha, actualmente, aguardente bastante e sobeja para os vinhos que produzir a colheita próxima. Não será porém fora de prudência para evitar qualquer paralisação que a demorada chegada das novas caldeiras pode ocasionar, ou as cautelas dos comerciantes possam opor em ódio desta inovação salutífera, dar-se algum tempo para que as aguardentes, que não tiveram tempo de ser contra mandadas, sejão admitidas a despacho da Alfândega. Todas as manifestações contrárias vinham de sectores próximos dos ingleses: A proibição de todas e quaisquer aguardentes, é um poderoso meio de salvar a ilha da inevitável desgraça, que ameaça; toda esta província instantaneamente o pede, e esteja V. M. persuadido, que só estas pessoas aditas aos ingleses e por eles subornadas, ou miseráveis publicanos, que preferem o seu particular interesse ao bem da pátria e a felicidade comum, ou na Alfândega fazem criminosas especulações em o próprio e parte da nação podem duvidar desta verdade e afectar (sic) ser de opinião contrária. A 9 de Outubro30 foi permitida a entrada das aguardentes sobrecarregadas com gravosos direitos. Daí ter-se enviado nova representação às cortes em 19 de Abril de 182231 contra a medida surgida de surpresa., A resolução de Outubro deu azo a acesa polémica, nas colunas do Patriota Funchalense, perdurando até que a lei de 31 de Julho de 1822 proibiu a entrada das aguardentes estrangeiras e sobrecarregou as nacionais com 60.000 réis de direitos por pipa32. F. Manuel Alves33 refere a necessidade de importação de 2000 pipas de aguardente de França, uma vez que esta aguardente é de qualidade tão superior, que parece um pouco difícil suprir a sua falta e isto principalmente pelas seguintes razões: a diminuta porção, que aqui se faz de aguardente da terra, por falta das caldeiras de moderna invenção, tem muito fleuma e um gosto agenebrado que por isso comunica um sabor desagradável dos vinhos. Para Diogo Dias de Ornelas34 a exposição era um elogio camuflado ao comércio da aguardente francesa, pois que o importante era contrariar a importação, apoiado nas seguintes razões: 1- porque ela aumenta e torna mais difícil a exportação dos nossos vinhos, em razão de importação de 3 para 4 mil pipas. 2- porque nos faz dependentes dos

PRODUÇÃO DE ÁLCOOL E AGUARDENTE(em litros)

CONSUMO DE AGUARDENTE em litros

30. Idem, T. 15, fols. 24/26. 31. Vide O Patriota Funchalense, nº 9, pp. 1/3, nº 25, p. 4, nº 30, p. 2, nº 31, p. 4., in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, p. 99 32. Patriota Funchalense, nº 123, pp. 3/4. 33. Idem, nº 9, p. 3. 34. Idem, nº 11, pp. 3/4.

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Convento de Santa Clara. Gravura do século XIX

estrangeiros, por falta de indústria nacional, o que é um grande mal. 3- porque favorece o monopólio de 11 ou 12 negociantes (quasi todos estrangeiros) com notável detrimento público. 4porque em consequência dessa importação se fazem muitos contrabandos, e se cometem (segundo dizem) gravíssimas peculatas. 5- porque de envolta com essa aguardente entram outras bebidas espirituosas, que nos vem arruinar nos bens, e na saúde, fazendo grande estrago na população com as epidemias que elas originam neste clima, como a experiência o tem mostrado. 6- porque ele não é tão superior como V. M. diz, pois que sendo deitada em vinho fraco, tanto degenera, que por fim à força de aguardente que é preciso deitar-lhe, transforma-se o vinho nela. O que não sucede ao vinho bom e generoso, porque este conserva-se ate com água, sendo em pouca quantidade. 7porque nos tira, todos os anos dois milhões de cruzados, pouco mais, ou menos. 8- porque não dá lugar a que se fervam os nossos vinhos de ínfima qualidade e por conseguinte concorre para que estes com facilidade e falsificados se embarquem, com empate dos vinhos bons e nosso descrédito. 9- finalmente, porque proibindo-se essa importação, sacudiremos parte do jugo em que jazemos manietados e em vez de darmos o nosso dinheiro em troco de aguardente francesa, talvez que em breve nós recebamos grande cópia de numerário pela nossa. A isto contrapõe Francisco Manuel Alves35 os inúmeros prejuízos provocados pela proibição: 1- privar o erário do rendimento, de 50 contos de reis anualmente, 2- perder o benefício de exportação dos vinhos, que se embarcam em troco, para pagamento da aguardente de França, 3- o risco que há de que os vinhos do norte desta ilha rebaixa muito de preço, com grande perda dos lavradores e dos senhorios das terras, ou que a aguardente da terra seja muito cara, com prejuízo dos habitantes.... Para o cidadão que assina hum português36 a aguardente que entrava na ilha não era boa, o que se demonstrava pela quantidade que se gastava para fortificar o vinho. A boa aguardente de França, que se importava directamente, era muito reduzida, a outra exportada de Londres para aqui, sabido é que lá foi enfraquecida com água para a pôr no quilate lã permitido a essa aguardente, ademais vem de Espanha e Itália muitas vezes adulterada. Além disso a introdução estava na origem da estagnação dos vinhos e da desgraça dos madeirenses. Desta forma era útil a interdição de entrada e a concessão de empréstimos pelo erário público para compra de alambiques para destilar o vinho baixo da ilha. A medida proibitiva mereceu a gratidão dos proprietários, uma vez que contribuía para o escoamento dos stocks de vinho. Foi assim que se manifestaram os proprietários António de França Neto37 e Diogo de Ornelas38, para quem a lógica do Sr. F. Manuel provoca náuseas, esclarecendo-se acerca da pessoa em causa: Deve saber-se que o Sr. Francisco Manuel Alves não é proprietário, nem negociante de vinhos e que por dever de amizade e interesse é mui afeiçoado a alguns senhores negociantes ingleses. Declaro isto, não para ofender, mas para o critério avaliarnos"39. O articulista Hum Português40acrescentava a discussão o seguinte: A aguardente que eles nos trazem será porventura um efeito da sua filantropia? Não será antes para nos por na sua dependên-

35. 36. 37. 38. 39. 40.

328

Idem, nº 11, p. 4. Idem, nº 12, pp. 3/4. Idem, nº 13, pp. 3/4. in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, pp. 195-197 Idem, nº 13, p. 4; nº 14, p. 4. Idem, nº 14, p. 4. Idem, nº 14, p. 3.

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cia, para terem mais um artigo de contrabando e de monopólio e com fim para reduzirem o preço do nosso vinho B mais Ínfima expressão. O polémico Estrela do Norte41 atacou, não só a opinião do Sr. Alves, como o decreto aprovado em Cortes, que permitia a entrada das aguardentes nacionais, pois as pipas de aguardente, que entram em nosso porto são mais temíveis, que os corsários insurgentes42, que podem olhá-las como outros tantos inimigos, que lhes vem roubar o sangue e dar morte violenta aos seus interesses. O redactor de O Patriota Funchalense, N. C. Pitta43 considerava a lei de 9 de Outubro, como prejudicial, porque no comércio com o reino não havia contrapartida: Numa tal colisão, antes continuasse a importação de aguardente estrangeira, pois como esta era importada pelos ingleses e estas são quasi os únicos consumidores e exportadores do nosso vinho, era-nos mais vantajoso receber deles a aguardente, dando-lhes em troca vinho, que recebê-la de Portugal, que nos arruína, levando o nosso numerário e impedir do que fervamos os nossos vinhos, na certeza de não acharmos compradores, por terem igual género de Lisboa muito mais barato44. Mais uma vez os privilégios exclusivos eram anti-constitucionais, ficando-se pelo meio-termo, pedindo-se apenas um aumento dos direitos de importação da aguardente nacional de 7.600 réis para 40.000 réis, esperando que esta medida pudesse funcionar como medida impeditiva. A discussão permite tirar várias ilações sobre a índole sócio-económica do movimento a favor e contra a importação de aguardente estrangeira. A maior parte dos proprietários rurais do Norte e Sul eram favoráveis à interdição das bebidas, porque consideravam a medida vantajosa para as vendas, aliviando as próximas colheitas ou o vinho armazenado que não tivesse saída. Os comerciantes que se dedicavam ao comércio das aguardentes estrangeiras eram de opinião contrária. Para os ingleses e acólitos, a entrada das aguardentes era um meio de fácil saque. Já os pequenos proprietários do Norte exerceram uma forte pressão, uma vez que o destino das colheitas dependia da solução encarada. A instabilidade política no continente provocou alguma desconfiança das instituições locais perante a iminência de novas medidas que pudessem surgir de Lisboa. Assim, em 8 de Agosto de 182345, após a Vila-francada (em Maio), a Câmara representava para que com a mudança das causas se não faça alguma alteração naquelas providentes leis, visto haver ainda, quem tendo só em consideração os seus próprios interesses e em nenhuma conta a prosperidade pública desta província declama e representa contra a disposição destas leis". Mas o Conde de Subserra por aviso de 12 de Março de 182446 sossegou-os confirmando-as.

Desidratador Reimbert, 1923. Desenho de J. H. Ferraz.

41. Idem, nº 26, pp. 3/4 42. Os corsários insurgentes surgiram entre 1818/9, actuando de modo especial no mar circunvizinho dos Açores e Madeira. Estes corsários eram de proveniência argentina e actuavam aqui contra os portugueses e espanhóis em represália da acção da invasão portuguesa em face da guerra da Argentina. Até ao momento era desconhecida a sua acção nesta área, só uma investigação por nós feita e m vias de publicação deu-nos a possibilidade dessa descoberta. 43. Patriota Funchalense, nº 40, pp. 1/2. 44. Idem, p. 1. 45. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 99vº/100, vide representação de 3 de Janeiro de 1823; idem, T. 15, fols. 119vº/121. 46. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 133/134vº.

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Alberto Vieira

Aguardente. Engenho do Porto da Cruz

As constantes alterações e a extrema fragilidade do sistema político, na primeira metade do século XIX, contribuíram para o arrastar da crise porque as medidas tardavam em chegar e as soluções provisórias eram ineficazes e pelo imperfeito rotativismo de domínio dos diversos interesses conduzia a uma variedade opção em face dos acontecimentos, que se materializava muitas vezes em soluções ou medidas diferentes, de acordo com os interesses em jogo. Assim, enquanto em 179447 se proibiu a entrada de certa porção de aguardente de Valença, em 181048 tivemos medidas de excepção com a permissão de entrada de 3.600 galões de aguardente, livre de impostos para a tropa ocupante da ilha. Em 1821 deu-se entrada a 6 pipas de aguardente de Londres para José Rebello49 e de 180 pipas de Bordéus para T. H. Edwards & Ca.50. Mas já em 1822 o juiz da Alfândega apreendeu uma pipa de aguardente a Philip N. Searle, dizendo ser estrangeira51, mas por sentença do Feitor da fazenda de Lisboa em 182552, confirmou-se ser fabricada na ilha do Faial em alambique, dando-se a devida autorização de entrada. O caso demonstra a disparidade de opções entre Lisboa e a ilha. Pelo menos assim o devia entender o comerciante que em face da apreensão fez apelo aos tribunais do reino e não aos da ilha. Em 1823 gerou-se acesa polémica acerca de um requerimento de Murdoch Wille & Ca., casa da companhia nova, em que solicitava a admissão de 400 pipas de aguardente de França. A Junta em face do pedido solicitou o parecer das câmaras de Machico, Calheta, Ponta do Sol, S. Vicente53 e do Funchal54. Os comerciantes e proprietários do Funchal em representação conjunta manifestaram-se contra o requerimento, apontando: Já ninguém duvida que os novos alambiques destilam com nossos vinhos aguardente de superior qualidade, tanto para consumo de vinhos novos, como de velhos, enquanto guardado de um para outro ano, capaz de rivalizar com a melhor, que aqui nos tem vindo de França, desta verdade estão todos convencidos, ate às casas de comércio estrangeiras da maior inteligência, dignidade e respeito. Pressente-se a força do novo comerciante enriquecido com os lucros das novas fábricas de destilação contínua e que começaram a dominar e fazer valer os seus interesses. Entrávamos na época dos alambiques e dos proprietários de fábricas de destilação há pouco enriquecidos. A opinião terá acento na Câmara do Funchal, por intermédio, certamente de Severiano de Freitas Ferraz, daí a negativa ao requerimento citado antes se manifestando pela aplicação imediata da lei de 2 de Janeiro de 182455. Idêntica força se fez sentir na decisão da Junta em 17 de Março de 182456, ao indeferir a mesma pretensão assim justificada: Apesar que as Juntas passadas tenham muitas vezes representado a necessidade absoluta de entrada de semelhante género ate persuadidas que das aguardentes de França dependia a estima e particular conceito que os vinhos da Madeira tinham no mercado estrangeiro, tem-se realmente conhecido que esta opinião provinha da falta que então havia da 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56.

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ANTT, AF, nº 238, fols. 2vº. Idem, nº 238, fols. 137vº, 141. Idem, nº 240, fols. 20/21vº. Idem, nº 240, fols. 33vº, 49/49vº, 54vº/55vº, idem, PJRFF, nº 405, pp. 335, 378, nº 406, fol. 20, nº 450, pp. 7/8. ANTT, AF, nº 240, fols. 68vº, 89vº, nº 406, fol. 53vº. Idem, nº 240, fol. 175vº. ANTT, PJRFF, nº 774, p. 126. Idem, nº 406, fol. 84. Idem, nº 406, fol. 91vº; ARM, RGCMF, T. 15, fols. 129vº/130. ARM, RGCMF, T. 15, fols. 117vº/119.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

indústria alambiques próprios para fazer sem os defeitos com que então se destilava, porém agora que a falta de comércio, minorando a exportação dos vinhos promoveu esta indústria mandando muitos vir de França os melhores alambiques nos quais se faz a maior perfeita destilação, seria para os empreendedores a admissão pedida, um mal gravíssimo e para sua indústria e ate talvez tornar na aguardente desta ilha um ramo de exportação preferível às de outro país, atendendo à melhoria dos vinhos que é extraída. Os comerciantes que teimavam no negócio rendoso das aguardentes restava apenas o afrontamento às medidas interditivas com o recurso ao contrabando. A costa entre Machico e a Calheta oferecia enseadas desprotegidas e não vigiadas pelas forças militares, o que facilitava o contrabando57. A primeira referência surge em 1823, com a apreensão pelo juiz da Ribeira Brava58, no lugar de Baixo do termo da Vila da Ponta do Sol, e do juiz da Alfândega na baía do Funchal de 7 pipas, da chalupa inglesa George the Fourth59. Em 182560 a Junta denunciou o contrabando de aguardente praticado pelos navios franceses Le Renard e L'Americaine, sob a complacência de quatro guardas de número da Alfândega: não pode a Junta deixar de estranhar que haja pessoas tão pouco zelosas do seu crédito e de sua mesma pátria que por tão ridículo interesse sacrifiquem o maior bem dela com desprezo da mais sábia e providente lei constituindo-se os autores de semelhante falta pouco dignos da estimação pública e de qualquer carácter de representação que os distinga, ou classe de comércio a que pertençam61. Para o ano de 182762 ficou reservado o maior escândalo de contrabando até então praticado no Funchal. A apreensão de certa quantidade de aguardente a Francis Gordos foi o mote. A Câmara e a opinião pública em geral63, manifestaram-se contra o sucedido apontado a necessidade de medidas severas, como o derramamento no calhau. No entanto, inadvertidamente, a Junta em 7 de Outubro a admitiu a aguardente e solicitou à Câmara a permissão para o livre consumo. Em 183964 foi encontrada a boiar no mar uma pipa de aguardente, perdida do contrabando, arrematada em hasta pública. Ainda, segundo Ruppert-Coock65, um navio alemão teria desembarcado na baía de Câmara de Lobos 300 caixas de gin que escondeu na furna dos lobos, sendo depois encontradas, por um par de namorados. Perante a inépcia da vigilância da costa e a continuidade da acção fraudulenta na baía do Funchal, através da manifesta corrupção de grande número de guardas da Alfândega, perguntavase o articulista do Funchalense Liberal: De que serve então dizer - fica proibida a importação das aguardentes estrangeiras na ilha da Madeira - se se desprezam os meios de tornar efectiva essa proibição?.O Correio da Madeira, em 1851, lamentava a triste sorte da ilha com o aparecimento tardio dos alambiques: Se nas grandes e felizes épocas desta ilha houvesse alambiques, não teriam

Alambique Engenho do Porto da Cruz

Aguardente Engenho do Porto da Cruz

57. ANTT, PJRFF, nº 763, fols. 169/169vº. 58. Vide o Defensor da Liberdade, nº 25, p. 2; nº 28, p. 1; nº 36, p. 1; O Funchalense Liberal, nº 1, pp. 2/3; nº 6, pp. 1/3; Correio da Madeira, nº 113, pp. 1/2, nº 115, pp. 5/6, nº 119, p. 3, nº 120, p. 3; Ruppert Crooft Coock, ibidem, pp. 87/88. 59. ANTT, AF, nº 240, fols. 73vº, 89vº. 60. Idem, nº 240, fol. 72vº. 61. ANTT, PJRFF, nº 406, fol. 173. 62. Idem; veja-se O Funchalense Liberal, nº 6, pp. 2/3, nº 7, pp. 2/3. 63. ARM, RGCMF, T. 16, fols 67vº/69vº. 64. O Defensor da Liberdade, nº 28, p. 1, nº 35, p. 1. 65. ANTT, PJRFF, nº 467, fol. 75vº.

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exportado para os mercados estrangeiros vinho de má qualidade que muito desacreditou o nosso comércio, e este erro manifesto nos teria reduzido há extrema indigência, não vir a providente, a mil vezes bem calculada e restauradora medida consignada na carta de lei de 2 de Agosto de 182266. Mais afirmava que a defesa do vinho, em face da concorrência do Porto e Xerez, deveria ser afrontada com medidas de defesa da reputação e qualidade. Minorando os gravames do nosso vinho, facilitando-lhes e promovendo-lhe o consumo e guerreando o contrabando da aguardente - que é uma traiçoada investida, um hostil assalto ao nosso produto já tão sobrecarregado e vítima do flagelo da pauta - que embaraça a nossa agricultura, dificulta o nosso comércio, rouba-nos o pão de nossas famílias, o interesse de nosso trabalho e ate cedo nos esbulhará de nosso tecto protector67. A importação das aguardentes é apontada como uma das origens da crise. Até 1821 argumentava-se a favor da de França, como meio único e necessário para o trato dos vinhos. Mas a partir de então tivemos medidas proibitivas, justificadas pela produção e boa qualidade da aguardente da terra e dos novos alambiques de destilação contínua em funcionamento. O ano de 1821 marca a viragem do domínio do grande comércio das aguardentes de França, sob a alçada dos ingleses, para o dos proprietários de fábricas de destilação contínua, interessadas no comércio dos vinhos do Norte por meio da destilação, no que certamente se nota um predomínio dos proprietários do Norte em relação aos do Sul. A partir daqui processou-se uma momentânea alteração das rotas da aguardente, via Gibraltar ou Inglaterra, lesando de modo directo os ingleses, a parte mais interessada no negócio. Sucederam-se reclamações, mas iam longe os tempos áureos de 1640 e 1810. A única possibilidade de furar o embargo estava no contrabando. Foi necessário reconverter os velhos circuitos do negócio. Mas enquanto isto sucedia a crise dos anos 50 e 70 fê-los arrumar as malas e partir. Em 1821 temos referência de três alambiques de destilação contínua, em notícias que colhemos no Patriota Funchalense68. O de Frederico Castro Novo funcionava aos Moinhos, destilando vinhos

Evaporador de triplo efeito. F. Scard, 1913

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66. Idem, nº 407, fol. 189vº. 67. Idem, ibidem, pp. 88/89. 68. TERTULIANO TORÍBIO DE FREITAS VERGOLINO: Anuncia aos respeitáveis patrícios seus Tertuliano Toríbio de Freitas Vergolino, que faz aguardente de vinho e de borra, toda capaz para concerto de vinho; de borra para ser boa J preparada e restilhada e sendo de vinho extraída do quilate que seu dono quiser, pela primeira destilação feita de vinho por 2.600 reis cada pipa de 23 almudes, entregando a produção com quilate subido e as aguardentes fracas correspondentes, pipa de barra com 23 almudes primeira destilação por 2.600 reis e pelo preparativo e destilar 100 reis por cada galão que estufar, tudo feito sem impostura [Patriota Funchalense, nº 36, p. 4.]. PEDRO PETRELI SANTA CRUZ: Pedro Petreli Santa Cruz, estabelecido com uma fábrica de destilar aguardente, no sítio dos Moinhos, notícia ao público, que ele faz aguardente de diversas qualidades, fazendo uma de que já se pode fazer uso para os vinhos novos e outra que passados alguns meses serve para se deitar em vinhos, sem que se possa conhecer se foi feita na terra ou em França [Idem, nº 36, p. 4.]. Pedro Petreli Santa Cruz, tendo observado que com alguma inconsideração se escreveu contra as aguardentes fabricadas nesta província supondo-se-lhes imperfeições, que na verdade não existem, faz saber ao respeitável público desta mesma província, que na sua fábrica, nos Moinhos, ele tem dado provas no curto espaço de três meses de que na sua fábrica faz aguardentes de melhor qualidade de que muita de que se importa neste país, tendo oferecido mostras delas sem imperfeições, que conservadas alguns meses aparecem como as de melhor lote que vem de França, o que tendo feito patente ao soberano congresso, por tais tem sido acreditadas, mostrando assim a este público que a chegada do alambique, que mandou vir de França pelo seu colega Frederico Castro Novo, proporcionará a este país de fazer aguardente superior à estrangeira. Anunciando o exposto, ele assegura aos habitantes desta província que em breve lhe demonstrará sua asserção de um modo que se convençam os que falavam teoricamente e que não duvida auxiliar as observações dos que duvidam de uma verdade hoje conhecida de mor parte dos inteligentes desta cidade [Idem, nº 57, p. 4.].

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de toda a ilha69. Em 182270 junta-se a fábrica de destilação de Severiano Alberto de Freitas Ferraz com dois custosos e aperfeiçoados destinatários, aonde se tem fabricado a mais perfeita aguardente. A Junta tomou a iniciativa de solicitar a João Francisco de Oliveira, encarregado de negócios em França, um alambique de destilação contínua71. Em Fevereiro de 182372 o Tesoureiro geral solicitou dois alambiques no valor de 5000 francos (80 mil reis). Em Abril73 recomendava-se o envio via Londres, que talvez seja menos dispendioso, mais seguro. No mesmo ano Severiano de Freitas Ferraz construiu um alambique de destilação contínua baseado no modelo francês, contribuindo para isso as viagens que havia feito a França para se instruir na química de destilação de vinhos. O Patriota Funchalense não deixou passar a oportunidade, fazendo o elogio das potencialidades da região e dos sábios que abarcava: não é a primeira vez que temos visto engenhosas produções de mecânicas de um hábil e patrício, Severiano de Freitas Ferraz, e por isso faltaríamos aos deveres de patriota, se deixássemos de anunciar aos nossos concidadãos um novo alambique de vapor, que aquele cidadão acaba de construir. A simplicidade do seu mecanismo o faz um tanto mais recomendável e a perfeição do espírito que destila, parece-nos superior ao que temos visto. Seria para desejar que vista a determinação do soberano congresso em mandar vir alambiques de França para se venderem ou arrendarem por conta da Fazenda Nacional nesta província, se fizesse aqui a despesa com a mão-de-obra, concedendo-se a quem teve tanto trabalho o empréstimo de 500.000 réis para o fabrico daquele alambique em ponto grande, pois só deste modo se anima a indústria e remunera os trabalhos de quem deseja ser útil à Pátria74. Perante a situação a Junta a 2 de Setembro75 anulou o pedido de um alambique, justificando a atitude pelo facto de Severiano de Freitas Ferraz ter inventado um maquinismo de alambique de destilação contínua, no qual afiançava melhores resultados do que o dos últimos inventos de França existentes neste país. A posição estava baseada no parecer dos químicos e engenheiros da Sociedade Funchalense dos Amigos das Artes e das Ciências que mostraram os mais lisonjeiros resultados do mesmo invento. A Junta logo emprestou 600.000 reis para a construção do novo alambique, animando ao mesmo tempo a continuação de novos inventos. Em 182676 o mesmo FREDERICO CASTRO NOVO: Faz-se saber aos proprietários e negociantes, que achando-se estabelecidos os alambiques da última invenção, que trouxe de França Frederico Castro Novo e tendo-se já fervido neles vinhos, ainda os da mais baixa qualidade, se verifica conseguir-se a mais perfeita aguardente, que rivaliza bom a melhor de França, o que promete a esta província as maiores vantagens, portanto os que quiseram ferver vinhos, se dirigirão aos seus directores, que pelo resultado se lisonjeiam convencê-los do que tão francamente lhes anunciam [Idem, nº 81, p. 4.]. Frederico Castro Novo, desejando manifestar ao respeitável público o vivo interesse que torna sem ser-lhe útil, fazer prosperar o estabelecimento que vem de procurar a esta província com os novos destinatários d'aguardente faz saber que o preço dos cozimentos ficam reduzidos a 100 reis por almude de vinho, assegurando que as grandes despesas, que deve fazer, são o forte motivo de não poder prestar-se mais comodamente, como sinceramente desejava [ Idem, nº 85, p. 4.]. 69 . Cf. Pregador Imparcial da Verdade, no.44, 47, 49 [1827] 70. RGCMF, T. 15, fols. 24/26. 71. ANTT, PJRFF, nº 759, pp. 442/443. 72. Idem, nº 759, p. 445. 73. Idem, nº 759, pp. 442/443. 74. Nº.125, p.2 75. ANTT, PJRFF, nº 763, pp.146vº-147. 76. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.9480

Pesos manuelinos

Pesagem de cana no Engenho do Hinton

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Caldeira de triplo efeito. Desenho de J. H. Ferraz

inventor possuía a melhor fábrica de destilação da ilha que, segundo informação de 182777, se compunha de cinco perfeitos aparelhos de destilação contínua habilmente dirigidos, e com toda a vigilância e exactidão. As leis proibitivas, a partir de 1822, foram um incentivo à proliferação das fábricas de destilação78. Os alambiques expandiram-se rapidamente no perímetro da cidade e meio rural onde o vinho assumia importância. É o caso da vertente Norte, onde se produziam os vinhos apropriados para a destilação. Em 1827, Frederico de Castro Novo tinha montada uma oficina para construção de alambiques novos ou concerto de velhos79. Já em 1851 J. J. Nóbrega80 refere para o Funchal seis caldeireiros, latoeiros e funileiros. Segundo J. Silvestre Ribeiro existiam na ilha, em meados do século XIX, treze alambiques, sendo três no Funchal, um em Santa Cruz, um em Ponta do Sol, um em Porto Moniz, um em Ponta Delgada, três em S. Vicente, dois em S. Jorge e um no Faial, que ferviam em média por ano 7 a 8000 pipas81. Em 1785, segundo G. Pery82 o número elevava-se a 15. Dos três existentes em 1821 se evoluiu de modo rápido, em cerca de 30 anos para 13, cujo número estacionou, apenas subindo em 1875 mais três. A distribuição geográfica dos alambiques pelas áreas produtoras de vinho é elucidativa. Na vertente Sul, onde se produziam os melhores vinhos e em maiores quantidades, temos apenas cinco, sendo três no Funchal e os outros dois, distribuídos em áreas onde se colhiam os mais fracos do Sul - Santa Cruz e Ponta do Sol . A vertente Norte, origem da maioria dos vinhos baixos, apresentava oito alambiques, com três em S. Vicente e dois em S. Jorge. Ambas as freguesias eram consideradas as de maior produção no Norte. A luta em prol da qualidade e boa reputação do vinho passava pela destilação dos vinhos baixos do Norte e daí a instalação de fábricas de destilação contínua. A partir de finais do século XIX mudou o panorama económico da ilha com a valorização da cana-de-açúcar na agricultura, donde se fabricou álcool e aguardente para uso local e exportação. A disponibilidade da aguardente de cana levou à utilização no tratamento do vinho até 196783. Por outro lado o Governo foi forçado a estabelecer regras no sentido de disciplinar e travar o consumo excessivo de aguardente. Em 1911 concedeu-se o monopólio do fabrico de açúcar à casa Hinton84. A cana continuou a ter como principal destino o fabrico de açúcar, todavia a aguardente e de forma especial o álcool assume uma dimensão especial na indústria no decurso da primeira metade do século XX, sendo acompanhado de perto pela aguardente. A situação mudou a partir de 1919

77. Defensor da Liberdade, nº.26, p.4 78. Veja-se as declarações da câmara nas representações de 1821 e 1822 e teremos uma antevisão deste movimento, ARM, RGCMF, T. 15, fols. 100vº/104, 24/26. in Alberto Vieira, História do Vinho da Madeira. Documentos e Textos, Funchal, 1993, pp. 99-101 79. ANTT, PJRFF, nº 763, fols. 146vº/147. 80. AHU, Madeira e Porto Santo, nº 9480. 81. "Apontamentos Estatísticos sobre a Cultura da Vinha na Ilha da Madeira, in Correio da Madeira, nº 114, p. 1, confirmado por J. J. Nóbrega em 1851. 82. Geografia Estatística Geral de Portugal e Colónias, Lisboa, 1875, pp. 3/9. 83. A questão motivou aceso debate na imprensa e em folhetos avulso. Cf. Benedita Câmara, ob. Cit., pp.168-169 84. Benedita Câmara, A Madeira e o Proteccionismo Sacarino (1895-1918), in Análise Social, vol. XXXIIII (145), 1978, pp.117-143.

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com a limitação do fabrico e consumo da bebida. A situação do álcool, tendo em conta o destino final, vai depender da forma como evoluir a economia vitivinícola. UTILIZAÇÃO DA CANA-DE-AÇÚCAR em toneladas Ano Açúcar Álcool Aguardente 1912 48.360 19.109 3.707 1913 50.861 14.116 4.019 1914 54.521 11.574 2.970 1915 57.403 10.064 1916 56.689 15.373 3.836 1917 39.459 16.269 1.552 1918 26.775 17.500

O álcool, usado no processo de vinificação do vinho, era resultado da destilação directa da garapa ou melaço importado, ou então dos resíduos do fabrico do açúcar. Era a partir da última situação que se conseguia a maior parte do álcool produzido anualmente, donde se conseguia extrair cerca de 1% da cana usada. Álcool produzido em litros Ano 1912 1913 1914 1915 1916 1917

resíduos 483.600 508.640 545.210 574.030 566.890 394.590

garapa 245.943 260.454 192.515 21.129 246.345 100.915

total 729.543 769.064 737.725 552.901 813.235 495.505

Caldeiras Fives-Lille,1878

A produção estava reservada ao processo de vinificação sendo a comercialização feita directamente entre as empresas e os engenhos matriculados, que em 1927 eram apenas três, com a possibilidade de comercializar 800.000 litros para a vinificação e 376.000 litros para o consumo como aguardente. Em 1909 recomendava-se o uso de 50 litros de álcool em cada pipa de vinho de 500 litros, passando por decreto de 1913 para 55 litros. As fábricas matriculadas poderiam importar melaço com esta finalidade quando a produção de cana da ilha não chegasse para satisfazer as necessidades locais de açúcar e álcool, usufruindo de uma redução dos direitos de entrada de 30 para 5 réis, como se pode ver pelos decretos de 1903 e 1911. De acordo com o decreto de 1913 todos os viticultores tinham direito a 11% de álcool, calculado a partir do mosto produzido, declarado na alfândega.

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A grande oferta de aguardente de cana fez disparar o consumo em princípios do século XX. Em 1909 a ilha consumia dois milhões de litros de aguardente, sendo as fábricas não matriculadas responsáveis pela disponibilização no mercado de 1.710.400 litros85. O excessivo consumo levou a que a Madeira recebesse o epíteto de “ilha da aguardente”, pelo decreto de 1911, que estabeleceu um travão através da expropriação de fábricas e o estabelecimento de um limite para a produção. O consumo excessivo da aguardente levou o governo a estabelecer um conjunto de medidas no sentido da limitação. a conceder em 1928 a distribuição em regime de monopólio, por 25 anos, à Companhia da Aguardente da Madeira. Em 1939 fecharam-se 39 das 48 fábricas em funcionamento. A situação teve reflexos na produção vitivinícola, uma vez que conduziu à proibição de funcionamento dos alambiques para queimar as borras ou os vinhos de inferior qualidade. A companhia faliu e o estado acabou entregando o comércio do produto aos engenhos do Hinton e as pequenas unidades industriais que se mantiveram na Calheta, Machico e Porto da Cruz. Com a criação da Junta Nacional do Vinho toda a actividade de controlo do álcool para a beneficiação do vinho passou a depender da delegação regional, passando em 1979 para o Instituto do Vinho da Madeira até 1992, altura em que foi liberalizada a venda por imposição da CEE.

Afenim da ilha Terceira. 2003

AS CONSERVAS E DOÇARIA Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testamentos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Em meados do século quinze Cadamosto86 refere a feitura de "muitos doces brancos perfeitíssimos", enquanto em 1567 Pompeo Arditi87 dá conta da "conserva de açúcar" que se fazia no Funchal "de óptima qualidade e muita abundância". E esta tradição perpetuou-se na ilha para além do fulgor da produção açucareira local, pois segundo Hans Sloane88 em 1687 o madeirense produzia "açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil". Dois anos depois John Ovington89 refere a indústria da conserva de citrinos que se exportava para França. Foram as compotas que mais despertaram a atenção, pois nunca havia visto “coisas tão boas”. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol, Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos). A indústria manteve-se por todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção 85. Henrique A. Vieira de Castro, Bases para a Solução da Questão Saccharina e Meios de Combater o Alcoolismo na Madeira, Funchal, 1911. 86. António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p. 37. 87. Ibidem, p. 130. 88. Ibidem, p. 158. 89. Ibidem, p. 198.

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local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso sabe-se que em 1680 foram importadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca90. Aliás, de acordo com uma informação dada ao Governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha negócio muito grande porque há anno que se carregão com aquella terra mais de 20 embarcações de hã so doce para o qual he necesareo comprar assucar da terra ou mandalo vir do Brasil"91. Tal como se deduz de um documento de 146992 o fabrico de conservas era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava "molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam...". A actividade estava vedada ao estrangeiros e mestres de açúcar, uma vez que apenas aos “vizinhos e naturaes da ilha” era permitido fazer conservas, alfenim e confeitos93. A fama alcançada pela arte da confeitaria está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. Segundo Gaspar Frutuoso94 compunha-se de "muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio todo feito de assucar, e os cardiais todos feitos de alfenim, dornados a partes, o que lhes dava muita graça, e feitos de estatura de hum homem". No fabrico das conservas e doces variados merecem atenção as freiras do Convento de Santa Clara, da Encarnação e Mercês95. Aliás em 168796 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas täo boas". Segundo Emanuel Ribeiro os conventos femininos foram os “sacrários da doçaria”. 97 Um breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação98, das Mercês99, Misericórdia do Funchal100, e Recolhimento do Bom Jesus101, constata-se as assíduas despesas com a compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada consumia açúcar que comprava. Do primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças102. Ademais são conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce. Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34 arrobas para o

Convento de Santa Clara. Gravura do século XIX

ANTT, PJRFF, n1 954. Joäo Cabral do Nascimento, Documentos para a História das Capitanias da Madeira, Lisboa, 1930. AHM, vol. XV (1972), n1 18, pp. 47-49. Ibidem, vol. XVI, 1973, pp.198-199, 241. Ob. cit., pp. 248-249. Confronte-se Luciana Stagagno Picchio, "O Sacro Colégio de Alfenim. Considerações sobre a civilização do Açúcar na ilha da Madeira e noutras ilhas", in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990, pp. 181-190. 95. Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou..., 1928, pp. 17, 34, 59. 96. António Aragão, Ibidem, p. 158. 97. O Doce nunca amargou… doçaria Portuguesa. História. Decoração. Receituário, Coimbra, 1928, p.34, 59. 98. ARM, Convento da Encarnação, n1 14 a 16. Cf. Eduarda Sousa, O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídios para a sua História 1660-1777, Funchal, CEHA, 1995. 99. Otília Rodrigues Fontoura, OSC, As Clarissas na Madeira. Uma presença de 500 Anos, Funchal, CEHA, 2000, pp.345-347. 100. ARM, Misericórdia do Funchal, nº 342 a 345, 492-509. 101.ARM, Recolhimento Bom Jesus, nº.18, 20 102. Ibidem, n1 498, fl. 131v1. 90. 91. 92. 93. 94.

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Alberto Vieira

Caldeiras. Século XIX

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

DATA

DESTINATÁRIOS

AÇÚCAR Arráteis 8

fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano103. Para o período de 1694 a 1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas de mel. Maior e mais assíduo foram o consumo de açúcar no Convento da Encarnação no período de 1671 a 1693104. Aí, de acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso deste convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Na última festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas. Ficou célebre o chamado bolo de mel das freiras da Encarnação que se manteve até a actualidade com a mais importante herança da época açucareira.105 Na actualidade é a doçaria que mantém activa a cultura e as três fabricas. No período do Carnaval e do Natal, popularizado como a festa, o consumo de mel dispara, havendo anos em que a produção não dá para satisfazer as necessidades do consumo caseiro e das pequenas unidades industriais. Um dos factores de promoção da indústria ao nível das conservas foi a importância assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas embarcações que aí aportavam tinham como intuito se fornecerem de conservas de citrinos, necessárias à dieta de bordo. O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense era a Casa Real portuguesa. Foi D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim ficaram como o principal presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo seguido por Vasco da Gama, que também ofertou o xeque de Moçambique com conservas da ilha106. Os confeiteiros, que fabricavam as conservas, eram pagos pela Fazenda Real. Sabemos que em 1513 Diogo de Medina recebeu 8$000 réis pelo fabrico de 40 arrobas e conserva para o rei. Já em 1521 Inês Mendes recebeu 92$000 réis por 60 arrobas com o mesmo destino107. No período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129 arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e frutas secas108.

O rei havia estabelecido a partir de 1520109 o envio anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres, quantidade que foi elevada para 12 arrobas em 1525110. Sabemos ainda que em Janeiro de 1524 Francisco Dhane comprou conservas e marmelada para enviar a Flandres111. Para os anos de 1524 e 1525112, temos disponíveis alguns dados sobre as exportações de conservas de frutas nas alfândegas de Santa Cruz e Funchal113:

103. Ibidem, nº 347. 104. ARM, Convento da Encarnação, nº 14 a 16; confronte-se João Cabral do Nascimento, "As freiras e os doces do Convento da Incarnação", in Arquivo Histórico da Madeira, Vol. V (1937), pp. 68-75. 105. Álvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação. In Das Artes e da História da Madeira, Funchal, 1948-1949, p.51. 106. Confronte-se Sousa Viterbo, Artes e Indústrias Portuguesas - A Indústria Sacarina, II0 Série, Coimbra, 1910, pp. 10-11. 107. Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990, pp. 120, 168 108. Informações recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, Vol. I, Lisboa, 1990.

109 . Braamcamp Freire, "A Feitoria de Flandres", in Arquivo Histórico Português, VI, p. 371; Sousa Viterbo, ibidem, p. 11. 110. F. J. Pereira, Documentos sobre a Madeira no século XVI existentes no Corpo Cronológico, vol. I, Lisboa, 1990, p.321. 111. John Everaert, Marchands Flamands a Lisbonne et l’Exportation du Sucre de Madère (1480-1530), in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira.1986, Funchal, DRAC, vol. I, 1989, p.455. 112. Fernando Jasmins Pereira, Livros de contas da Madeira. 1504-1537, Coimbra, 1985. 113. F. J. Pereira, Livros de Contas da Madeira, Vol. II, Funchal, 1989, pp.79, 82, 101; vol. II (Funchal, 1990), pp.89, 90, 92, 93,95, 127, 130, 136, 138, 149, 154, 170, 171, 172, 173, 182, 243.

1501.Outubro.02 1504.Janeiro.10 1507.Setembro.25 1508. Novembro.03 1510.Fevereiro.13 1510.Maio.13 1511.Junho.18 1512.Setembro.11 1513.Janeiro.17 1513.Dezembro.16 1516.Setembro.18 1520.Julho.10 1521.Outubro.04 1521.Outubro.15 1528. Outubro.20 1528.Novembro.20 1530.Agosto.05 1532.Fevereiro.26 1533. Fevereiro.29 1533.Novembro.17 1534.Fevereiro.06 1535. Maio.15 1536.Março.30 1550.Abril.10 1561.Julho.26

Estribeiro do rei Guarda reposte Rei Rei Rei Guarda reposte Guarda reposte Guarda reposte Rei Feitor Flandres Guarda reposte Guarda reposte Rei Rei Guarda reposte Feitor em Flandres Guarda reposte Guarda reposte Flandres Guarda reposte

Rainha Guarda reposte

Arrobas 57

Barris 12 34

40 37

13 ? 12

10 36 14 40 12 30 60 60 30 20 15 20 150 12 307 100 60 137 107

Sistema de bombagem. Século XIX

10 25,5 16

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TIPO Branco Escumas Rescumas Meles Outros

CONSERVAS Arrobas Arratéis 34 10 45 4 25 25 -

FRUTAS Arrobas Arratéis 17 16 16 10 14 48 29

Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio que dele se fazia no fabrico de conservas, frutas seca e marmelada114. Nisso gastaram-se cerca de quatrocentas arrobas de açúcar de vários tipos, sendo a maioria para consumo dos proprietários do referido açúcar. A partir de meados do século XVII torna-se difícil reconstituir o movimento comercial de derivados do açúcar. A documentação é escassa e a informação mais elucidativa encontra-se na correspondência comercial de três mercadores: Diogo Fernandes Branco (1649-1652), William Bolton (1696-1715) e Duarte Sodré Pereira (1710-1712). Afora isso temos outro documento esclarecedor sobre a referida exportação na década de quarenta. Manuel de Cea em 1646115 terá exportado o seguinte açúcar e derivados: QUANTIDADE 19 caixas 4 caixas 17 caixões 12 caixões 18 caixões 2 caixões 12 caixões

TIPO Branco mascavado Casca Casca em flor Casca Flor casca

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ANO 1649/Mai/23

1649/Jul/2

S. Malo Hamburgo

1649/Jul/14 1649/Out/18 1649/Dez/17

Rochela Rochela Rochela Amesterdão

1650/Jul/20 1650/Nov./20

Rochela Holanda

1651/Jul/3

DESTINO VALOR em reais 165$000

1652/Set/8

Hamburgo

1652/Set/24

Hamburgo Hamburgo

206$500 2.111$400 224$864 160$000

Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a correspondência é evidente a importância assumida no comércio116. Assim, em 1649, não obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos navios do Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a encomenda. A conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. A situação continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses. No ano imediato inverteu-se a situação. A casca abundou e em Outubro ainda tardavam em chegar os navios para a levar ao destino, o que era motivo para preocupação.

DESTINO

Rochela Rochela Bordeus Rochela Flandres Amesterdão Rochela

CONSERVA frol de laranja limão casca casca 20a. casca 300 a. casca 114 a. casca seca casca seca 22 a. conserva 92 a. conserva casca 34 a. casca 10 a. de limão 37 a. casca 10 caixas casca Casca casca casca casca 50 caixões casca

AÇÚCAR 99,5 arrobas 6 arrobas

60 caixas

A correspondência de William Bolton117 refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França. DATA 1697/Jul./1 1698/Set/2 1699/Ab./14 1699/Jul/6 1699/Nov./13 1700/Mai./1 1700/Set./4 1707/Maio/24 1709/Out./2

BARCO Francês Galeota brigue francês Português Galeota

Mary

CARGA açúcar conserva de citrinos 3 caixas de citrinos conserva de citrinos conserva em calda e seca 7 caixas de conserva de citrinos 1 caixa de conserva de citrinos 1 caixa de conserva açúcar e conservas

DESTINO Tenerife Holanda Inglaterra França Roterdão Londres Londres Amesterdão

Duarte Sodré Pereira118 surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio. A actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do Brasil e 114. F. J. Pereira, Livros de Contas da Madeira, Vol. II, Funchal, 1989, pp.79, 82, 101; vol. II (Funchal, 1990), 115. ARM. Arquivo da Família Ornelas, caixa. 7, pasta 3, 4 de Novembro de 1652. 116.ANTT, Convento de Santa Clara, livro nº.19

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117. António Aragão, ob. cit., pp.318-367 118. Maria Júlia de Oliveira e Silva, Fidalgos-mercadores no século XVIII. Duarte Sodré Pereira, Lisboa, 1991.

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à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão. A partir da correspondência comercial sabe-se que exportou a seguinte quantidade de casca: DESTINO Amesterdão Hamburgo Lisboa Faial Londres

CAIXÕES CAIXOTES 435 1 1205 2 3 1 1

ARROBAS

OUTROS

1

O DISPÊNDIO DO AÇÚCAR DOS DIREITOS Do açúcar laborado há que distinguir aquele que pertence aos proprietários de canaviais e engenho e o que é da coroa, por arrecadação do almoxarifado dos quartos ou da Alfândega, resultante dos direitos que oneravam a produção (quarto/quinto/oitavo) e saída na Alfândega (dízima). Enquanto a cobrança era feita directamente nas alfândegas do Funchal e Santa Cruz, o primeiro poderia ser recolhido pela estrutura institucional criada para o efeito - o almoxarifado dos quartos (1485-1522) - ou o cargo da anterior. Ainda poderia suceder a arrecadação por contratadores, maioritariamente estrangeiros, que oscilava entre as 18.507 e 31.876 arrobas entre 1497 e 1506119. O açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. Pereira120, era usado para cobrir as despesas ordinárias, na carregação directa e vendas aos mercadores e/ou sociedades comerciais. Na primeira despesa estavam incluídos, a redízima dos capitães, os gastos pessoais do monarca, da Casa Real, as esmolas, para além das despesas com os soldos dos funcionários, do transporte e embalagem do açúcar. A despesa variou entre as 1.070 e 2.114 arrobas, sendo a média anual no período de 1501 a 1537 de 1622 arrobas. No caso das esmolas é de realçar as que se faziam às Misericórdias - Funchal (1512), Ponta Delgada em S. Miguel (1515), Todos os Santos em Lisboa (1506 -, Conventos - Santa Maria de Guadalupe (1485), Jesus de Aveiro (1502) e Conceição de Évora. A par disso também se regista a utilização temporária dos lucros arrecadados pela Coroa no custeamento dos socorros às praças africanas ou no provimento das armadas121. A contrapartida estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel I, que em muito contribuiu para o enriquecimento do património artístico da Madeira122. As dádivas da coroa às instituições hospitalares e conventos mantiveram-se mesmo em momentos de dificuldade do século XVII. Sabemos que a Misericórdia do Funchal recebia em 1647123 como 119. Confronte-se F. Jasmins Pereira, O Açúcar Madeirense, de 1500 a 1537. Produção e Preços, Lisboa, 1969, 55-69. 120. Ibidem, 69-93. 121. No período que decorre de 1508 a 1514 foram gastas 1.000 arrobas com as despesas de socorro a Safim. Confronte-se nome citado, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI, p. 23; Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, vol. II, Lisboa, 1978, pp. 29-71, 281-322. 122. Ofereceu uma cruz processional para a Igreja da Sé (1528), uma pia baptismal à Ribeira Brava, uma escultura em madeira e colunas em mármore para a matriz de Machico. 123. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 136vº-137vº, 13 de Fevereiro de 1647; ibidem, nº.965ª, fls. 340-340vº, 20 de Janeiro de 1662.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

esmola 12 arrobas de açúcar, enquanto a de Santa Cruz recebeu em 1682124 apenas 2 arrobas de açúcar. O Mosteiro de Jesus em Aveiro, que recebia 10 arrobas de açúcar por ano, reclamava em 1648125 pelas esmolas desde 1643, como isso não aconteceu nomeou em 1652126 um procurador para proceder à cobrança. Sabemos ainda que em1686127 o Mosteiro de Belém em Castela tinha direito a 50 arrobas de açúcar de esmolas, sendo procurador o Provedor da Fazenda. A par disso também se regista a utilização temporária dos lucros arrecadados pela Coroa na ilha com o açúcar, no custeamento das despesas com os socorros às praças africanas128 ou no provimento das armadas129. Acresce, ainda, a política de ofertas estabelecida por D. Manuel I, que em muito contribuíram para o enriquecimento do património artístico da Madeira130.

AS FORMAS DE TROCA Diversificada é também a forma como o lavrador despendia o açúcar da safra. As vendas directas aos mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas de produtos e serviços. Os livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos direitos em jogo, contabilizam a forma como os lavradores despendiam o açúcar. Daqui poderá saber-se quem eram os principais compradores, como o uso no pagamento de serviços131. No global tivemos cerca de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores.

Alfândega do Funchal. Bartolomeu João. 1654

124. ANTT, PJRFF, nº.966, fls.231-232vº, 3 de Março de 1682. 125. ANTT, PJRFF, nº.980, fls.283-283vº, 1 de Fevereiro de 1648. 126. ANTT, PJRFF, nº.980, fls. 469-472, 16 de Novembro de 1652 127. ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 450-451vº, 7 de Janeiro. 128. Confronte-se nome citado, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI, p. 23; Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, vol. II, Lisboa, 1978, pp. 29-71, 281-322. 129. No período que decorre de 1508 a 1514 foram gastas 1.000 arrobas com as despesas de socorro a Safim. 130. Este ofereceu uma cruz processional para a Igreja da Sé (1528), uma pia baptismal à Ribeira Brava, uma escultura em madeira e colunas em mármore para a matriz de Machico. 131. Apenas para o Funchal em 1536, Ribeira Brava em 1517 e 1536, Ponta do Sol em 1526 e 1537 e Calheta em 1509, 1514 e 1534; veja-se Fernando Jasmins Pereira, Livros de Contas da Ilha da Madeira 1502-1537, vol. II, Funchal, 1989.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

DISPENDIO DE AÇUCAR NA CAPITANIA DO FUNCHAL. 1509-1537 COMARCA Calheta

Funchal R0 Brava Ponta Sol TOTAL

DATA

COMPRADORES

1509 1514 1534 1530 1517 1536 1526 1537 -

532 286 270 522 456 170 163 93 2492

ARROBAS AÇUCAR MEDIA 26360 49,5 12795 44,7 7886 29,2 11453 21,9 10177 22,3 3499 20,5 6727 41 2383 25,6 81280 32

Fonte: José Perreira da Costa, Livro de Contas da ilha da Madeira. 1504.1537, vol. II, Funchal, 1989.

A tendência do movimento do comércio do açúcar é para a disseminação pelos pequenos compradores, acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam dominado o comércio na época de apogeu. O lavrador, o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da safra para o pagamento da mão-de-obra assalariada que necessitavam. Entre 1509 e 1537 há referência a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração do engenho e, mesmo na compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal. Os pagamentos dos serviços da safra do açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apanha da cana e 14,59%, sendo dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%). As obrigações para o pagamento do trigo açoriano com açúcar surgem apenas entre 1509 e 1519. No global temos 43,34% em moeda e 56,86% em açúcar132. Neste curto período de dez anos movimentaram-se 964,5 arrobas de açúcar em troca de 235,5 moios de trigo, o que perfaz uma média de 4 arrobas de açúcar por moio de trigo, avaliado em cerca de 1$000 reais. Registe-se, ainda, que a distribuição diversificada dos lucros acumulados por proprietários de canaviais e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no século dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitectónico133.

Fábrica William Hinton & Sons. 1935

132. ANTT, Corpo Cronológico, II, pp. 5, 21, 33, 36-38, 41-43, 46, 79, 185. 133. David Ferreira de Gouveia, "O Açúcar e a Economia Madeirense (1420-1550). Consumo de Excedentes", Islenha, nº 8 (1991), pp. 11-22

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CAPÍTULO 5

rotas E MERCADOS

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ROTAS E MERCADOS Uma das funções privilegiadas das ilhas nos últimos quinhentos anos foi o serviço de escala oceânica de apoio a todos os que sulcavam o oceano em distintos sentidos. Primeiro de descobrimento, que abriram os caminhos para as rotas comerciais, e depois escalas do percurso de afirmação da Ciência através das expedições científicas que dominaram os areópagos europeus a partir do século XVIII. Umas e outras entrecruzam-se por diversas vezes e revelam-nos quão importante foi para a Europa o mundo das ilhas. O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação dos veleiros, pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. A multiplicidade de rotas, que resultado da complementaridade económica das áreas insulares e continentais, surge como consequência das formas de aproveitamento económico aí adoptadas. Tudo isto completa-se com as condições geofísicas do oceano, definidas pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens. A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente, que galvanizou o empenho dos monarcas, populações ribeirinhas e acima de tudo os piratas e corsários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: primeiro as Canárias e raramente a Madeira, depois Cabo Verde, Santa Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Em cada arquipélago afirmou-se uma ilha, servida por um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira, Santiago e Terceira como os principais eixos.

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Planisfério anónimo, dito de Cantino. 1502

As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um traçado diferente. Enquanto as primeiras divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às Antilhas, tendo como pontos importantes do raio de acção os arquipélagos das Canárias e Açores. Ambos os centros de apoio estavam sob soberania distinta: o primeiro era castelhano desde o século XV, enquanto o segundo português, o que não facilitou muito o imprescindível apoio. Mas, por um lapso tempo (1585-1642), o território entrou na esfera de domínio castelhano, sem que isso tivesse significado maior segurança para as armadas. Apenas neste período se intensificaram as operações de represália de franceses, ingleses e holandeses. As expedições — que teremos oportunidade de referir mais adiante — organizadas pela coroa espanhola na década de oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla missão: defender e comboiar as armadas das Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocupar a ilha para aí instalar uma base de apoio e de defesa das rotas oceânicas. A escala açoriana justificava-se mais por necessidade de protecção das armadas do que por necessidade de reabastecimento ou reparo das embarcações. Era à entrada dos mares açorianos, junto da ilha das Flores, que se reuniam os navios das armadas e se procedia ao comboiamento até o porto seguro na península, furtando-os à cobiça dos corsários, que infestavam os mares. Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes preocupações para a navegação atlântica pelo que as coroas peninsulares delinearam, em separado, um plano de defesa e apoio. Em Portugal tivemos, primeiro, o regimento para as naus da Índia nos Açores, promulgado em 1520, em que foram estabelecidas normas para impedir que as mercadorias caíssem nas mãos da cobiça do contrabando e corso. A necessidade de garantir com eficácia tal apoio e defesa das armadas levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527, a Provedoria das Armadas, com sede na cidade de Angra1. A nomeação em 1527 de Pero Anes do Canto para provedor das armadas

1.

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Confronte-se o nosso estudo sobre O Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24.

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da Índia, Brasil e Guiné, marca o início da viragem. Ao provedor competia a superintendência de toda a defesa, abastecimento e apoio às embarcações em escala ou de passagem pelos mares açorianos. Além disso estava sob as suas ordens a armada das ilhas, criada expressamente para comboiar, desde as Flores até Lisboa, todas aquelas provenientes do Brasil, Índia e Mina. Entre 1536 a 1556 há notícia do envio de pelo menos doze armadas. Depois, procurou-se garantir nos portos costeiros do arquipélago um ancoradouro seguro construindo-se as fortificações necessárias. A estrutura de apoio fazia falta aos castelhanos na área considerada crucial para a navegação atlântica, e por isso por diversas vezes solicitaram o apoio das autoridades açorianas. Mas, a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa mais actuante obrigou-os a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde 1521 as frotas passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e defensiva. No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada. Depois a partir de 1555 o estabelecimento de duas frotas para o tráfico americano: Nueva Espana e Tierra Firme. O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em especial, da ilha Terceira é referenciado com certa frequência por roteiristas e marinheiros que nos deram conta das viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da importância do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era "universal escala do mar do poente"2. A participação do arquipélago madeirense nas grandes rotas oceânicas foi esporádica, justificando-se a ausência pelo posicionamento marginal em relação ao traçado ideal. Mas a ilha não ficou alheia ao roteiro atlântico, evidenciando-se em alguns momentos como escala importante das viagens portuguesas com destino ao Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Inúmeras vezes a escala madeirense foi justificada mais pela necessidade de abastecer as embarcações de vinho para consumo a bordo do que pela falta de água ou víveres frescos. Não se esqueça que o vinho era um elemento fundamental da dieta de bordo, sendo referenciado pelas qualidades na luta contra o escorbuto. Acresce ainda que ele tinha a garantia de não se deteriorar com o calor dos trópicos, antes pelo contrário ganhava um envelhecimento prematuro. Era o chamado vinho da roda, tão popular nos séculos seguintes. Motivo idêntico conduziu à assídua presença dos ingleses, a partir de finais do século dezasseis. A proximidade da Madeira aos portos do litoral peninsular, associada às condições dos ventos e correntes marítimas foi o principal obstáculo à valorização da ilha no contexto das navegações atlânticas. As Canárias, porque melhor posicionadas e distribuídas por sete ilhas em latitudes diferentes, estavam em condições de oferecer o adequado serviço de apoio. A situação conturbada que aí se viveu, resultado da disputa pela posse pelas duas coroas peninsulares e a demorada pacificação da população indígena, fizeram com que a Madeira surgisse no século XV como um dos principais eixos do domínio e navegação portuguesa no Atlântico. Tal como nos refere Zurara a ilha foi desde 1445 o principal porto de escala para as navegações ao longo da costa africana. Mas, o maior conhecimento dos mares, os avanços tecnológicos e náuticos retirou ao Funchal a posição charneira nas navegações atlânticas, substituído pelos portos das Canárias ou Cabo Verde. Já a partir de princípios do século XVI a Madeira surgirá apenas como um ponto de referência para a navegação atlântica, uma escala ocasional para reparo e aprovisionamento de vinho. Apenas o surto económi2.

Naufrágio no Funchal. Gravura do século XIX

Livro sexto das Saudades da Terra, Cap.II.

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co da ilha conseguirá atrair as atenções das armadas, navegantes e aventureiros. Em síntese, as ilhas são as portas de entrada e saída e por isso mesmo assumiram um papel importante nas rotas atlânticas. Mas para sulcar longas distâncias rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário dispor de mais portos de escala, pois a viagem era longa e difícil. As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança, as indicas tornaram indispensável a existência de escalas intermédias. Primeiro Arguim que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné, depois, com a revelação de Cabo Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a principal escala da rota de ida para os portugueses e podia muito bem substituir as Canárias ou a Madeira, o que realmente aconteceu. Outras mais ilhas foram reveladas e tiveram um lugar proeminente no traçado das rotas. É o caso de S. Tomé para a área de navegação do golfo da Guiné e de Santa Helena para as caravelas da rota do Cabo. Também, a projecção dos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde sobre os espaços vizinhas da costa africana levou a coroa a criar duas feitorias (Santiago e S. Tomé) como objectivo de controlar, a partir daí, todas as transacções comerciais da costa africana. No Atlântico sul as principais escalas das rotas do Índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e Ascensão. Aí as armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam a ligeiras reparações. Releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de reagrupamento das frotas vindas da Índia depois de ultrapassado o cabo, isto é, missão idêntica à dos Açores no final da travessia oceânica. A função da ilha de Santiago com escala do mar oceano foi efémera. A partir da década de trinta do século XVI as escalas são menos assíduas. O mar era já conhecido e as embarcações de maior calado permitiam viagens mais prolongadas. Apenas os náufragos dos temporais aí aparecem à procura de refúgio. O posicionamento das ilhas no traçado das rotas de comércio e navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares dirigissem para aí todo o empenho nas iniciativas de apoio, defesa e controlo do trato comercial. As ilhas foram assim os bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pelas riquezas em circulação tinha lugar em terra ou no mar circunvizinho, pois para aí incidiam os piratas e corsários, ávidos de conseguir ainda que uma magra fatia do tesouro. Uma das maiores preocupações das autoridades terá sido a defesa dos navios. Mas no caso das ilhas da Guiné isso nunca foi conseguido, tardando, ao contrário do que sucedeu na Madeira, Açores e Canárias, o delineamento de um sistema defensivo em terra e no mar. Isto explica a extrema vulnerabilidade destes portos, evidente nas inúmeras investidas inglesas e holandesas na primeira metade do século XVII. O século é marcado por uma mudança total no sistema de rotas do Atlântico. Os progressos no desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com que se elaborasse um novo plano de portos de escala, capazes de servirem de apoio à navegação como fornecedores dos produtos em troca e do carvão para a laboração das máquinas. Nos Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e Ponta Delgada, enquanto em Cabo Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S. Vicente, lugar que disputava com as Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada pela dupla oferta como porto carvoeiro e do vinho da ilha, o que fez atrair inúmeras embarcações inglesas e americanas. A par disso a posição privilegiada que os ingleses gozavam na ilha levou a que eles se servissem do porto do Funchal como base para as actividades de corso contra os franceses e castelhanos. A nova apos-

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ta no sector de serviços de apoio à navegação comercial e de passageiros vai depender de uma outra política, a dos portos francos. O Funchal foi no século XVIII um centro chave das transformações sócio-políticas entro operadas, de ambos os lados do oceano, fruto da forte presença da comunidade inglesa e o facto a ter transformado num importante centro para a afirmação colonial e marítima, a partir do século XVII. A vinculação da ilha ao império britânico é bastante evidente no quotidiano e devir histórico madeirenses dos séculos XVIII e XIX3. A Madeira, no decurso do século XVIII, firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho madeirense na estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pelos tratados de amizade, de que merece relevo o de Methuen (1703)4, foram os meios que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo inglês5. Aos poucos, a comunidade ganhou uma posição de respeito na sociedade madeirense que, por vezes, se tornava incomodativa6. A presença e importância da feitoria inglesa, no decurso do século XVIII, é uma realidade insofismável. A comunidade inglesa passou a usufruir na ilha de um estatuto diferenciado que lhe dava a possibilidade de possuir um cemitério próprio, desde 1761. Também os mesmos tiveram direito a igreja própria, enfermaria, conservatória7e juiz privativo. Esta opção, embora da primeira vez colhesse o governador de surpresa, parece ser desejada, pois em 1898 o governador de S. Miguel, depois de tomar conta do sucedido, manifestou o desejo que o mesmo sucedeu nos Açores, para evitar o perigo dos franceses8. A presença de armadas inglesas no Funchal era constante sendo o relacionamento com as autoridades locais amistoso, sendo recebidos pelo governador com toda a hospitalidade9. Relevam-se as de 1799 e 1805, compostas, respectivamente de 108 e 112 embarcações10. Para além disto era assídua a presença de uma esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense, sendo a de 1780 comandada por Jonhstone11. A partir de meados do século XIX o Funchal especializa-se como porto de escala de navios de passageiros, com especial destaque para os ingleses. Para isso contribuiu a tradicional presença britânica e a afirmação da ilha com estância turística. Daqui resulta que o porto funchalense no viu quebrado o protagonismo

Funchal. Gravura do século XIX

Desmond GREGORY, The Beneficent Usurpers. A History of the British in Madeira, London, 1988. Public Record Office, FO 811/1, cartas dos privilégios da nação britânica com Portugal desde 1401 a 1805. J. H. FISHER, The Methuen a Pombal. O Comércio anglo-português de 1700 a 1770, Lisboa, 1984, p. 29. Em 1754 o Governador Manuel Saldanha Albuquerque lamenta o exclusivo do comércio inglês na ilha (AHU, Madeira e Porto Santo, nº.48-49). 7. Public Record Office, FO 811/1, fls.278, 31 de Janeiro de 1724. 8. Em 27 de Fevereiro de 1808 o governador madeirense havia-lhe enviado uma carta relatando o sucedido. Confronte-se: Arquivo dos Açores, vol.XI, 359-360, 373-379; Francisco d’Atayde de Faria e MAIA, Subsídios para a História de S. Miguel e Terceira. Capitães-generais 1766-1831, 2ª edição Ponta Delgada, 1988. 9. Public Record Office, FO 63/7, sabe-se que por ordem de 14 de Junho de 1722 as embarcações com destino às colónias permaneciam alguns dias no Funchal. A 20 de Janeiro de 1786 são 20 barcos em tal situação, coordenada pelo cônsul. 10. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.1125, 1620, 22 de Outubro de 1799 e 7 de Outubro de 1805 11. Ibidem, nº.545, 22 de Janeiro de 1780. 3. 4. 5. 6.

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na navegação atlântica, antes pelo contrário recobrou forças e novas funções face aos novos desafios da navegação oceânica. Nos Açores assiste-se no decurso do século XVII a uma clara mudança dos espaços portuários de dimensão intercontinental. Assim, a Horta pela posição charneira no grupo central e pelo destaque que assumiu no apoio à baleação dos americanos acabou por assumir a posição de porto oceânico de apoio às pescarias, ao comércio americano e de fornecimento de carvão, retirando importância ao de Angra. Esta posição foi reforçada na segunda metade do século XIX com a amarração aí dos cabos submarinos. Por outro lado o grande centro económico do arquipélago é a ilha de S. Miguel, o que implica a valorização do porto de mar. Também em Cabo Verde ocorreram idênticas mudanças que levaram à desvalorização de Santiago em favor de S. Vicente. O porto oceânico transformou-se num oásis oceânico das embarcações conduzidas a vapor que aí demandavam o necessário abastecimento de carvão e num eixo destacado de amarração de cabos submarinos. O processo será evidente a partir 1838 quando se criou a vila nas proximidades do Porto Grande e se procedeu à instalação do primeiro depósito de carvão pelo cônsul inglês John Rendall. A situação muda a partir de 1883, pois a agressividade espanhola através dos portos francos de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife associada à modernização do porto francês de Dakar conduziram à desvalorização dos portos portugueses nas ilhas. Já a presente centúria atribui uma dimensão distinta às ilhas. Assim, o jogo de interesses entre o continente europeu e americano fez com que algumas ilhas se transformassem em peças chave da hegemonia económica. Daqui resultou a evidente disputa entre Alemanha e Inglaterra por conseguir traze-las à esfera de influência. Note-se que a política dos sanatórios foi o subterfúgio usado por alemãs para iludir as pretensões expansionistas no Atlântico. Na base disto está o conflito gerado pela questão dos sanatórios na Madeira, que teve como instigador a Inglaterra12. Aqui, mais uma vez a Inglaterra usufruiu de uma posição favorável ao reivindicar a tradição histórica da aliança13. A percepção da importância das ilhas na afirmação da hegemonia marítima britânica levou Thomas Ashe (1813)14 a reivindicar para os Açores a transformação num protectorado britânico. Nos anos vinte os vapores começaram a ceder lugar às "máquinas voadoras" e paulatinamente a aviação civil foi conquistando o mercado de transporte de passageiros. Mesmo assim as ilhas continuaram por muito tempo a manter o papel de apoio às rotas transatlânticas. Nos Açores tivemos a ilha de Santa Maria, enquanto em Cabo Verde idêntico papel foi atribuído à ilha do Sal desde 193915. Até ao aparecimento e vulgarização da telegrafia sem fios a estratégia de circulação da informação assentava nas ilhas. A Madeira, a Horta e São Vicente foram de novo motivo de disputa e 12. Gisela Medina Guevara: As Relações Luso-Alemãs antes da Primeira Guerra Mundial. A Questão da Concessão dos Sanatórios da Ilha da Madeira, Lisboa, 1997 13. Cf. António José Telo, Os Açores e o Controlo do Atlântico, Lisboa, 1993. 14. ASHE, T(homas), History of the Azores on Western Islands; Containing an Account of the Government, Laws and Religion, the Martners, Ceremonies and Character of the Inhabitants and demonstrating the Importance of these Valuable Islands to the British Empire, Ed. Sherwood, Neely, and Jones, Londres 1813. Confronte J. Reis Leite, “ 15. Francis M. Rogers, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp.191-208; R. E. G. Davies, A History of the Worlds Airlines, London, 1964.

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interesses por ingleses e alemães16. A Horta rapidamente se transformou num nó de amarração de cabos submarinos que ligavam a Europa, América, África do Sul e Brasil, assinalando-se em 1926 a existência de quinze cabos17. O mesmo acontecia na ilha de S. Vicente onde amarrou o cabo inglês em 1874. A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. São ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com diferenças marcantes ao nível climático. Os Açores apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como uma réplica mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica, que estabelecia um clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização económica e social. As condições morfológicas estabelecem as especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a sua forma de aproveitamento económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da Madeira definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento do norte. A mudança de centros de influência foi responsável porque os arquipélagos atlânticos assumissem uma função importante. A tudo isso poderá juntar-se a constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A constante premência do Mediterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiências de arroteamento aqui lançadas. Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. O processo foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. A sociedade e economia insulares surgem na confluência dos vectores externos com as condições internas dos multifacetado mundo insular. A concretização não foi simultânea nem obedeceu aos mesmos princípios

Embarcações séculos XVI

16. Paul Kennedy, “Imperial Cable Comunications and Strategy, 1870-1914”, in The English Historical Review, vol. LXXXVI, 1971; Francis M Rogers, ob.cit., pp.175-190, 209-230; Charles Bright, Submarine Telegraphs: Their History, Construction and Working, London, 1898; K. C. Baghahole, A Century of Service. A Brief History of Cable and Wireless Ltd 1868-1968, London, 1970; K. R. Haigh, Cableships and Submarine Cables, London, 1968; H. H. Schenck(org.), The World’s Submarine Telephone Cable Systems, Washington DC, 1975. 17. F.S. Weston, “Os Cabos Submarinos nos Açores”, in Boletim do Núcleo Cultural da Horta, vol. III, nº.2, 1963.

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organizativos pelo facto de a mesma resultar da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro lado a economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm directamente na produção e comércio. Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e área de apoio aos dois primeiros. A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade insular, estava em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a abertura de novas arroteias e ao lançamento de novas culturas nas ilhas e terras vizinhas. Assim terá sucedido com o transplante da cana-de-açúcar para Santa Maria, S. Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil. A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da política económica e à definição da complementaridade entre os mesmos arquipélagos ou ilhas. Nestas circunstâncias as ilhas conseguiram criar os meios necessários para solucionar os problemas quotidianos - assentes quase sempre no assegurar os componentes da dieta alimentar -, à afirmação nos mercados europeu e atlântico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos apenas nalgumas ilhas, foram suficientes, em condições normais, para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente para suprir as carências do reino. Um dos objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e praças africanas e feitorias da costa da Guiné, a situação era definida por aquilo que ficou conhecido como o “saco de Guiné”. Entretanto os interesses em torno da cultura açucareira recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. A mudança só se tornou possível quando se encontrou um mercado substitutivo. Assim sucedeu com os Açores que, a partir da segunda metade do século dezasseis, passaram a assumir o lugar da Madeira. O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos espaços insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo afrontamento e uma crítica desarticulação dos mecanismos económicos. A par disso todos os produtos foram o suporte, mais que evidente, do poderoso domínio europeu na economia insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente na economia das ilhas. A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação, quase que exclusiva dos produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Para além de ser o consumidor exclusivo destas culturas, surge como o principal fornecedor dos produtos ou artefactos de que os insulares carecem. Perante isto qualquer eventualidade que pusesse em causa o sector produtivo era o prelúdio da estagnação do comércio e o prenúncio evidente de dificuldades, que desembocavam quase sempre na fome. A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto, podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e de troca comercial (pastel, açúcar). Em consonância com a actividade agrícola verificou-se a valorização dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta ali-

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Porto do Funchal. Gravura século XIX

mentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu a um intrincado liame de rotas de navegação e de comércio que ligavam o Velho Continente ao litoral atlântico. Esta multiplicidade de rotas resultou das complementaridades económicas e de formas de exploração adoptadas. Se é certo que os vectores geraram as referidas rotas, não é menos certo que as condições mesológicas do oceano, dominadas pelas correntes, ventos e tempestades, delinearam o rumo. As mais importantes e duradouras de todas as traçadas foram sem dúvida a da Índia e a das Índias, que galvanizaram as atenções dos monarcas, da população europeia e insular, dos piratas e corsários. No traçado de ambas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com uma actuação primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da Madeira e das Canárias surgem nos séculos XV e XVI como entreposto para o comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da ilha da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animam-se de forma diversa com o apoio a essa navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, surgem como a escala necessária e fundamental da rota de retorno. Segundo Pierre Chaunu a rota das Índias de Castela assentou em quatro vértices fundamentais: Sevilha, Canárias, Antilhas, Açores18. A Madeira mantinha-se numa posição excêntrica, pois apenas servia as rotas portuguesas do Brasil e da costa africana. A participação madeirense na carreira das Índias foi esporádica, justificando-se a ausência pela posição marginal em relação à rota. Todavia, a Madeira representa um porto de escala muito importante para as navegações portuguesas para o Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Desde o século XV que ficou demarcada a posição da escala madeirense para as explorações geográficas e comerciais dos portugueses na costa ocidental madeirense para as explorações geográficas e comerciais dos portugueses na costa ocidental africana. A opção pela Madeira adveio dos conflitos latentes com Castela pela posse das Canárias. A expansão comercial de finais do século XV, com a abertura da rota do Cabo, veio valorizar mais uma vez esta escala aquém equador, surgindo inúmeras referências, em roteiros e relatos de viagens, à escala madeirense. Os mesmos ingleses que utilizaram as Canárias tocavam com assiduidade a Madeira, onde se proviam de vinho para a viagem. A Madeira, como as Canárias, muito raramente foi escolhida como escala de retorno - uma vez que essa missão estava, por condicionalismos geográficos, reservada aos Açores. Todavia verificouse ocasionalmente a escala das embarcações vindas da Mina Índias e Índias na Madeira. A posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comércio e na navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial. As ilhas eram os bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento neste oceano será feita na área definida por elas, pois para aí incidiam piratas e corsários ingleses, franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação nas rotas americanas e indicas. Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares terá sido a defesa das embarcações que sulcavam o Atlântico em relação às investidas dos corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores era o principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que transportavam açúcar ou pastel ao velho continente. 18. Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, 43-48.

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A historiografia vem defendendo única e exclusivamente a vinculação da ilha ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta relação umbilical com a mãe-pátria. Neste sentido os séculos XV e XVI seriam definidos como os momentos áureos deste relacionamento, enquanto a conjuntura setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que o vinho assume o papel de protagonista e responsável destas trocas comerciais. Os estudos realizados confirmam que a situação do relacionamento exterior da ilha não se resumia apenas a estas situações19. Á margem subsistiram outras que activaram também a economia madeirense, desde o séc. XV. As conexões com os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) ou afastados (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe) foram motivo de uma aprofundada explanação, que propiciou a necessária valorização na estrutura comercial madeirense20. Aqui ficou demonstrada a importância assumida pelos contactos humanos e comerciais, que no primeiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e, no segundo, das possibilidades de intervenção no trafico negreiro, mercê da vinculação às áreas africanas da Costa da Guiné, Mina e Angola. Para além deste privilegiado relacionamento com o mundo insular, a praça comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano ou americano e rosário de ilhas da América Central. No primeiro rumo ressalta a costa marroquina, onde os portugueses assentaram algumas praças, defendidas, a ferro e fogo, pelas gentes da ilha21. No século XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano costeiro e insular, depara-se à ilha um novo destino e mercado, que pautará o relacionamento externo nas centúrias posteriores. O novo mundo e mercado foram para muitos uma esperança de enriquecimento ou a forma de assegurar a posse de bens fundiários. Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende, primeiro, da presença de uma comunidade madeirense que pretende manter o contacto com a terra mãe e depois das possibilidades de uma troca favorável. Neste contexto a oferta de vinho por parte do madeirense e à procura pelos agentes do trafico negreiro, para de forma enganadora oferecerem aos sobas africanos, ou do outro lado do Atlântico saciar a sede do europeu a troco do açúcar, foi o principal motor do relacionamento. A situação influenciou decisivamente a estrutura comercial da ilha, a partir da segunda metade do século XVI. Desde então as conexões comerciais adquiriram uma maior complexidade, fazendo com que a Madeira, através do seu vinho, se transformasse num ponto importante do circuito de triangulação, que passou a dominar os contactos entre os portos da costa ocidental africana a americana e as Antilhas. Neste contexto foi exemplar e decisiva a acção de dois madeirenses -Diogo Fernandes Branco e Francisco Dias- que aqui e agora pretendemos revelar. A eles associam-se dois ingleses- Bartolome Cuello e William Bolton- que mati-

Porto do Funchal. 1820

Porto do Funchal. Gravura século XIX

19. “O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII”, in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), A. Heroismo, 1984; “O comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos XVI e XVII”, in VI Colóquio de História Canario Americana, Las Palmas, 1984; “Madeira e Lanzarote. comércio de escravos e cereais no século XVII”, in IV Jornadas de História de Lanzarote e Fuerteventura, Arrecife de Lanzarote, 1989. 20. O comércio inter-insular(Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987. 21. A.A.SARMENTO, A Madeira e as praças de África. dum caderno de apontamentos, Funchal, 1932: Robert RICARD, “Les places luso-marocaines et les Iles portugaises de l’Atlantique”, in Anais da Academia Portuguesa de História, II série, vol.II, 1949; António Dias FARINHA, “A Madeira e o Norte de África nos séculos XV e XVI”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira.1986, vol.I, Funchal, 1989, pp.360-375.

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zaram de forma diversa o relacionamento externo da ilha. A definição dos espaços políticos fez-se, primeiro de acordo com os paralelos e, depois, com o avanço dos descobrimentos para Ocidente, no sentido dos meridianos. A expressão real resultava apenas da conjuntura favorável e do acatamento pelos demais estados europeus. Mas o oceano e terras circundantes podiam ainda ser subdivididos em novos espaços de acordo com o protagonismo económico. Dum lado as ilhas orientais e ocidentais, do outro o litoral dos continentes americano e africano. A partilha não resultou dum pacto negocial, mas sim da confluência das reais potencialidades económicas de cada uma das áreas em causa. Neste contexto assumiram particular importância as condições internas e externas de cada área. As primeiras foram resultado dos aspectos geo-climáticos, enquanto as últimas derivam dos vectores definidos pela economia europeia. A partir da maior ou menor intervenção de ambas as situações estaremos perante espaços agrícolas, vocacionados para a produção de excedentes capazes de assegurar a subsistência dos que haviam saído e dos que ficaram na Europa, de produtos adequados a um activo sistema de trocas inter-continentais, que mantinha uma forte vinculação do velho ao novo mundo. O açúcar e o pastel foram os produtos que deram corpo à última conjuntura. O recurso aos africanos, como escravos ou não, foi a solução mais acertada para transpor o primeiro obstáculo. Eles tinham uma alimentação diferente dos europeus, baseada no milho zaburro, no arroz e inhame, culturas que aí, nas ilhas ou vizinha costa africana, medravam com facilidade. Perante isto os poucos europeus que aí se fixaram estiveram sempre dependentes do trigo, biscoito ou farinha, enviados das ilhas ou do reino, ou tiveram que se adaptar à dieta africana. Junto ao cereal plantaram os bacelos donde se extraia o saboroso vinho de consumo corrente ou usado nos actos litúrgicos. A extrema dependência dos espaços continentais, com especial destaque para o europeu, não foi apenas apanágio dos primórdios da ocupação das ilhas. A situação persistiu por mais de quatro séculos, mantendo-se na periferia da economia europeia e do mercado colonial actuando de acordo com os ditames que regem a política colonial. As culturas dominantes quase sempre em sistema de monocultura obedecem a tais requisitos. Sucedeu assim com os panos e a cana sacarina em Cabo Verde, com o cacau em S. Tomé e Príncipe, com a laranja nos Açores e o vinho na Madeira. As ilhas assumiram um papel evidente no traçado das rotas comerciais atlânticas, sendo os principais pilares. A posição estratégica no meio do Atlântico valorizou-se nas transacções oceânicas. Ao mesmo tempo a riqueza reforçou a vinculação ao velho continente através de uma exploração desenfreada dos recursos ou pela imposição de culturas destinadas ao mercado europeu, como foi o caso da cana sacarina e do pastel. Mais a sul as feitorias de Santiago, Príncipe e S. Tomé, para além de centralizarem o tráfico comercial em cada arquipélago, firmaram-se, por algum tempo, como os principais entrepostos de comércio com o litoral africano. Santiago manteve, até meados do século dezasseis o controlo sobre o trato da costa da Guiné e das ilhas do arquipélago com o exterior. E foi também o centro de redistribuirão dos artefactos e mantimentos europeus e de escoamento do sal, chacinas, courama, panos e algodão. Enquanto a primeira situação, com o evoluir da conjuntura económica, foi perdendo importância, a segunda manteve-se por muito tempo, definindo uma trama complicada de rotas.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

O posicionamento periférico do mundo insular condicionou a subjugação do comércio aos interesses hegemónicos do velho continente. Os europeus foram os cabouqueiros, responsáveis pela transmigração agrícola, mas também os primeiros a usufruir da qualidade dos produtos lançados à terra e a desfrutar dos réditos que o comércio propiciou. Daí resultou a total dependência dos espaços insulares ao velho continente, sendo a vivência económica moldada de acordo com as necessidades. Por isso é evidente a preferência do velho continente nos contactos com o exterior dos arquipélagos. Só depois surgiram as ilhas vizinhas e os continentes africano e americano. Do velho rincão de origem vieram os produtos e instrumentos necessários para a abertura das arroteias, mas também as directrizes institucionais e comerciais que os materializaram. O usufruto das possibilidades de um relacionamento com outras áreas continentais, no caso do Mediterrâneo Atlântico, foi consequência de um aproveitamento vantajoso da posição geográfica e em alguns casos uma tentativa de fuga à omnipresente rota europeia. O arquipélago canário, mercê da posição e condições específicas criadas após a conquista, foi dos três o que tirou maior partido do comércio com o Novo Mundo. A proximidade ao continente africano, bem como o posicionamento correcto nas rotas atlânticas, permitiram-lhe a intervir no tráfico intercontinental. Para os Açores, o facto de as ilhas estarem situados na recta final das grandes rotas oceânicas possibilitoulhes algum proveito com a prestação de inúmeros serviços de apoio e do eventual contrabando. Fora disso encontrava-se a Madeira, a partir de finais do século XV. Por muito tempo este comércio foi apenas uma miragem. E só se tornou uma realidade quando o vinho começou a ser o preferido das gentes que embarcaram nas aventuras rumo ao Indico ou ao continente americano. Perante isto o vinho madeirense afirmar-se-á em pleno a partir da segunda metade do século dezassete. Rumos diferentes tiveram os arquipélagos de S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde: a proximidade da costa africana e a permanente actividade comercial definiram a inegável vinculação ao continente africano. Por muito tempo os dois arquipélagos pouco mais foram do que portos de ligação entre a América ou a Europa e as feitorias da costa africana. O comércio das ilhas com o litoral africano, exceptuando o caso de Cabo Verde e S. Tomé, faziase com maior assiduidade a partir das Canárias do que da Madeira ou dos Açores. Mesmo assim a Madeira, mercê da posição charneira no traçado das rotas quatrocentistas, teve aí um papel relevante. Os madeirenses participaram activamente nas viagens de exploração geográfica e comércio no litoral africano, surgindo o Funchal, nas últimas décadas do século XV, como um importante entreposto para o comércio de dentes de elefante. Além disso a iniciativa madeirense bifurcou-se. Dum lado estavam as praças marroquinas a quem a ilha passará a fornecer os homens para a defesa, os materiais para a construção das fortalezas e os cereais para sustento dos homens aí aquartelados. Do outro a área dos Rios e Golfo da Guiné, onde se abastecia de escravos, tão necessários que eram para assegurar a força de trabalho na safra do açúcar.

Porto do Funchal. Gravura século XIX

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

DISPENDIO DE AÇUCAR NA CAPITANIA DO FUNCHAL 1509-1537

Funchal. Gravura do século XVII

COMARCA Calheta

Funchal R0 Brava Ponta Sol TOTAL

DATA 1509 1514 1534 1530 1517 1536 1526 1537 -

COMPRADORES 532 286 270 522 456 170 163 93 2492

ARROBAS AÇÚCAR MEDIA 26360 49,5 12795 44,7 7886 29,2 11453 21,9 10177 22,3 3499 20,5 6727 41 2383 25,6 81280 32 Porto do Funchal. Gravura século XIX

Fonte: José Pereira da Costa, Livro de Contas da ilha da Madeira. 1504.1537, vol. II, Funchal, 1989.

AS FORMAS DE TROCA Diversificada é também a forma como o lavrador despendia o açúcar da safra. As vendas directas aos mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas de produtos e serviços. Os livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos direitos em jogo, contabilizam a forma como os lavradores despendiam o açúcar. Daqui poderá saber-se quem eram os principais compradores, como o uso no pagamento de serviços22. No global tivemos cerca de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores.

22. Apenas para o Funchal em 1536, Ribeira Brava em 1517 e 1536, Ponta do Sol em 1526 e 1537 e Calheta em 1509, 1514 e 1534; veja-se Fernando Jasmins Pereira, Livros de contas da ilha da Madeira 1502-1537, vol. II, Funchal, 1989.

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A tendência do movimento do comércio do açúcar é para a disseminação pelos pequenos compradores, acabando com os interesses monopolistas de algumas casas comerciais, que haviam dominado o comércio na época de apogeu. O lavrador, o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da colheita para o pagamento da mão-de-obra assalariada que necessitavam. Entre 1509 e 1537 há referência a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração do engenho e, mesmo na compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal. O pagamento dos serviços relacionados com a cana e açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apanha da cana e 14,59%, sendo dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%). As obrigações para o pagamento do trigo açoriano com açúcar surgem apenas entre 1509 e 1519. No global temos 43,34% em moeda e 56,86% em açúcar23. No curto período de dez anos movimentaram-se 964,5 arrobas de açúcar em troca de 235,5 moios de trigo, o que perfaz uma média de 4 arrobas de açúcar por moio de trigo, avaliado em cerca de 1$000 reais. Registe-se que a distribuição diversificada dos lucros acumulados por proprietários de canaviais e mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no século dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitectónico24.

OS PREÇOS DO AÇÚCAR Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do açúcar no mercado insular porque

23. ANTT, Corpo Cronológico, II, pp. 5, 21, 33, 36-38, 41-43, 46, 79, 185. 24. David Ferreira de Gouveia, “O açúcar e a economia madeirense (1420-1550). Consumo de excedentes”, Islenha, nº 8 (1991), pp. 11-22.

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não existem núcleos documentais que permitam a reconstituição de séries. Os dados disponíveis são avulsos e desconexos. Além disso dever-se-ão juntar outras condicionantes que influem de forma decisiva nos preços. Em primeiro lugar está a falta crónica de moeda nas ilhas e o recurso ao açúcar como meio de troca, a que se associa nos séculos XV e XVI a insistente desvalorização. O açúcar, como moeda de troca, é uma realidade quer na Madeira, quer nas Canárias, mas foi no último arquipélago que adquiriu melhor expressão25. A lei da oferta e da procura condicionava de forma evidente a evolução do preço do açúcar ao longo do ano. É de notar uma variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da presença de embarcações interessadas no trato26. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam nos meses de Junho e Julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açúcar do ano e, por isso, a afluência de mercadores era maior. São evidentes, ainda, outras variações sazonais no próprio mês de acordo, como é óbvio, com a lei da oferta e da procura. PREÇO MÉDIO MENSAL DA ARROBA DE AÇÚCAR BRANCO NA MADEIRA JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT 1508 315 320 320 290 283 286 1524 450 500 500 500 515 535 560 650 -

NOV 501 -

DEZ 305 -

O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. Na Madeira o último preço correspondia em 1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em conta, que em 15 000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10 000 na segunda, nota-se uma forte valorização do produto final27. A insistência no açúcar de segunda cozedura é considerada condição necessária para a valorização do produto, impedindo que chegasse ao mercado europeu em más condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia para metade a oferta do açúcar, o que favorecia a competitividade do produto numa altura que o mercado se pautava por excedentes. Os dados disponíveis para 1530 evidenciam esta diferente valoração28: Qualidade Preço/Arroba Branco 600 mascavado 450 Escumas 400 rescumas 250 meles 400

25. V. M. GODINHO, “Preços e conjuntura do século XV ao XIX” in DHP, Vol. III, pp. 488-516;José Gentil da SILVA, “Echanges et troc: l’exemple des Canaries au debut du XVI siécle” in Annales, XVI, nº 5, Paris, 1961, pp. 1004-1011; Manuel LOBO CABRERA, Monedas, Pesos y Medidas en Canarias en el siglo XVI, Las Palmas, 1989, pp. 10-13; Benedicta RIVERO SUÁREZ, Ob. cit., pp. 147-148. 26. Fernando Jasmins PEREIRA, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 232-234. 27. AHM, Vol XV, pp. 64, carta de 3 Setembro de 1472. 28. Sousa Viterbo, Artes Industriais Portuguesas - A Indústria Sacarina, Coimbra, 1909, p.16, 28.

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A partir da década de setenta o preço do açúcar entrou em quebra acentuada, situação testemunhada nas intervenções do senhorio a partir de 1469, que insiste na solução do monopólio para o comércio. A negação dos madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a avançar com novas medidas. Assim, em 1496 fixa os preços em 350 réis para o açúcar da primeira cozedura e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota máxima de exportação que se cifrava em 120.000 arrobas. Os dados disponíveis revelam o movimento de quebra do açúcar. O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2000 réis arroba. Já em 1469 o preço estava em 500 arrobas para o de uma cozedura e 750 para o de duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para 1000 réis a arroba, mas deverá ser uma situação particular resultante da quebra acentuada da moeda, pois que em 1478 regressou à normalidade. O movimento de queda foi uma constante até princípios do século XVI e só a revolução dos preços inverteu a situação, evidente na década de vinte em ambos os arquipélagos. A situação foi comum à Madeira e Canárias. Em ambos os casos é evidente uma inversão de marcha a partir da década de trinta que pode ser entendida com a presença concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano29. A oferta não se resumia apenas ao açúcar branco, pois a ele devem juntar-se os subprodutos, como as escumas, rescumas, mel, remel, mascavado e mel mascavado e depois alguns derivados, como as conservas e casquinha, que em qualquer dos arquipélagos tiveram grande importância. Em Tenerife as escumas e rescumas eram cotadas a metade do preço do branco, enquanto na Madeira e Gran Canaria a relação só é possível com as rescumas, uma vez que as escumas são muito mais valorizadas. É, ainda, possível estabelecer uma relação entre os subprodutos e o açúcar branco, expressa nos níveis de produção e preço. Em Gran Canaria no século XVI a relação fazia-se da seguinte forma: em 2500 arrobas de açúcar correspondem 60% ao branco, 12% às escumas, 8% de rescumas e 20% de açúcar refinado. O mesmo sucede na Madeira no período de 1520 a 153730. Os dados disponíveis nos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação do Funchal permitem acompanhar a evolução dos preços de consumo no Funchal para o período de 1669 a 176931. O século XVIII foi dominado por uma tendência altista que se manteve até à década de sessenta da mesma centúria. O açúcar da produção local continua a estar presente, embora em referências escassas. Os dados identificam uma diferença significativa no preço, situação que perdurou até ao século XX e denunciadora da incapacidade da ilha em sobreviver neste mercado tão competitivo.

Preço da arroba de açúcar

Preço do açúcar por arroba

29. AHM, Vol XV, p. 46, 14 de Julho de 1469; p. 229, 11 de Janeiro de 1490; pp. 313, 318, 3 de Setembro de 1495; pp. 372-380; Gaspar FRUTUOSO, Livro Primeiro das Saudades da Terra, p. 113; Armando de CASTRO, “O sistema monetário” in História de Portugal, Vol. III, Lisboa, 1983, pp. 236-238; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo bajo Felipe II, Funchal, 1988, pp. 117. 30. Manuel LOBO CABRERA, ibidem, p. 116; Fernando Jasmins PEREIRA, Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 219-224. 31. Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Subsídios para a sua História, Funchal, 1995,pp.185-196

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Mês Açúcar da terra Açúcar mascavado Março 2$000 Abril 1$500 1684 Abril 4$500 1745 Outubro 3$000 1746 Dezembro 4$500 1$800 Fonte: Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da Encarnação do Funchal, Subsídios para a sua História, Funchal, 1995,pp.185-196

Ano 1683

No século XIX encontrámos em alguma imprensa dados sobre o preço de venda ao público do açúcar. ANO

Açúcar pedra (arroba)

1834

3$500

1838

1$200 a 4$500 4$000 4$000 a 2$000 24145

1842 1847 1863

Branco (arroba) Areado 3$400 3$500 a 4$800 2$900 2$300 a 2$600

à rama 2$600 a 2$900 2$800 a 3$200

mascavado (arroba) areado à rama 2$200 a 2$300 2$300 2$300 a 2$500 2$200 1$750 a 2$200 1$770

Melaço (galão) $500 a $550 $559 $450 $350

O COMÉRCIO ATLÂNTICO E O AÇÚCAR. A Madeira foi no começo o mais importante entreposto. Os descobrimentos aliam-se ao comércio e, por isso, desde meados do século XV, manteve-se um trato assíduo com o reino, activado com as madeiras, urzela, trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. O movimento alargou-se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o aparecimento de estrangeiros interessados no comércio do açúcar. O arquipélago canário, tardiamente associado ao domínio europeu, manteve desde o século XVI um activo comércio com a Península. No tráfico intervêm os peninsulares e italianos. Após a conquista, castelhanos, portugueses e italianos repartem entre si o comércio das ilhas. Os flamengos e ingleses, que delinearão as rotas de ligação ao mercado nórdico, surgem num segundo momento. Múltiplas descrições, de finais do século XVI, evidenciam a posição dominante das Ilhas de Tenerife e Gran Canaria na economia do arquipélago. O comércio do açúcar destaca-se no mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o principal animador das trocas com o mercado europeu. Durante mais de um século a riqueza das gentes da ilha e o fornecimento de bens alimentares e artefactos dependeu do comércio do produto. O mesmo sucedeu nas Canárias, a partir do século XVI. Todavia, a venda e valor sofreram diversas

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

oscilações, mercê da conjuntura do mercado consumidor e da concorrência dos mercados insulares e americanos. D. Manuel, comprometido com a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, actuou de modo ambíguo, procurando salvaguardar compromissos e ao mesmo tempo atender às solicitações que eram dirigidas. Estabeleceu limitações à residência dos estrangeiros no reino, fazendo-a depender de licenças especiais; quanto à Madeira definiu a impossibilidade de vizinhança sem licença, ao mesmo tempo interditava a revenda no mercado local. A câmara, por seu turno, baseada nestas ordenações e no desejo dos moradores, ordenou a saída até Setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhor. Somente em 1489 se reconhece a utilidade da presença de estrangeiros na ilha, ordenando D. João II a D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados como “naturais e vizinhos de nossos reinos”. Uma contagem da documentação disponível no Registo Geral da Câmara do Funchal32 evidencia que a grande preocupação de D. Manuel era com a economia e administração. As questões em torno da produção e comércio do açúcar foram uma preocupação permanente enquanto senhor e Rei. A partir dos anos oitenta o mercado do açúcar madeirense enfrenta uma crise de crescimento. Primeiro, a procura europeia conduzira a que se colocasse no mercado açúcar de má qualidade. Depois, o alargamento da área produtiva e do açúcar disponível não acompanhado pelo aumento da procura. A crise de subprodução obrigou a coroa a intervir em 149833 no sector comercial estabelecendo um sistema de contingentamento dos valores de exportação para os principais mercados que passa a ser feito sob o regime de monopólio da coroa. A medida justificava-se, pois o açúcar era “huma das mays proveytosas de nosos reygnos se poderia perder” sendo “proveyto de bem comum da dita ylha mays ainda de todos nosos reygnos”. Na verdade, a Madeira era uma das principais jóias da coroa. Os problemas do mercado açucareiro na década de 90 conduziram ao ressurgimento da política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os produtos, não podendo dispor de loja e feitor. D. Manuel apenas em 149634 reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas. As facilidades concedidas à estadia dos agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da frequência na praça, bem como à fixação e intervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e administrativa. O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e XVI, segundo opinião de Vitorino Magalhães Godinho35, “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela intervenção quer da coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio global,

32. 33. 34. 35.

Porto do Funchal. Século XIX

Arquivo Histórico da Madeira, vols. XV-XIX, 1972-1990. AHM, vol. XVII, p. 372. ARM, RGCMF, T. I, fls.55-55vº, 3 de Setembro de 1495, in AHM, vol.XVI, 1973, p.313. Os Descobrimentos e Economia Mundial, vol. IV, p.87.

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Porto de Antuérpia

primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma escápula de outra banda”. O comércio apenas se manteve em regime livre até 146936, altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o exclusivo aos mercadores de Lisboa. Isto não agradou ao madeirense, habituado que estava a negociar directamente com os estrangeiros. Mesmo assim o Infante D. Fernando decidiu em 147137 estabelecer o monopólio a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo e Martim Anes Boa Viagem. Da decisão resultou um aceso conflito entre a vereação e os referidos contratadores. Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda com dificuldades no comércio açucareiro, pelo que a coroa retomou em 148838 e 149539 a pretensão do monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura, safra e comércio, que ocorrem em 149040 e 149641. A política, definida no sentido da defesa do rendimento do açúcar, saldou-se num fracasso, pelo que em 1498 foi tentada uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de cento e vinte mil arrobas para exportação, distribuídas pelas diversas escápulas europeias42. Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que em 149943 o monarca acabou com algumas das prerrogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no entanto, até 1508 o regime de contrato para venda, quando foi revogada a legislação anterior, ficando o trato em regime de total liberdade. Assim, o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515, ao enunciar que “Os ditos açúcares se poderão carregar para o Lavante e Poente e pera todas outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto embargo algum”44. AHM, vol. XV (Funchal, 1972), nº.17, pp.45-47, 14 de Julho de 1469; nº.18, pp.47-49, 25 de Setembro de 1469. ARM, RGCMF, T. I, fls.5vº-vi, 16 de Outubro de 1471, in AHM, vol.XV, 1972, p.57 ARM, RGCMF, T. I, fls.163-163vº, 25 de Abril de 1488, in AHM, vol.XVI, 1973, pp.209-210 ARM, RGCMF, T. I, fls.55-55vº, 3 de Setembro de 1495, in AHM, vol. XVI, 1973, p.313 ARM, RGCMF, T. I, fls.30vº-32, 11 de Janeiro de 1490 1488, in AHM, vol.XVI, 1973, pp.229-231 ARM, RGCMF, T. I, fls.262vº-269vº, 12 de Outubro de 1496, in AHM, vol.XVII, 1973, pp.350-358. V.M. GODINHO, Ob. cit., IV, 87; A.R.M., C.M.F., registo geral, T, I, fls. 1-1vº, Alcochete, 14 de Julho de 1469, carta do infante sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV, 45-47;Ibidem, fls.1vº-2vº, 25 de Setembro de 1469, carta dos regedores do Funchal in A.H.M., XV, 47-49; Ibidem, fls. 5vº-6, Lisboa, 16 de Outubro de 1478, carta régia sobre o trato do açúcar, in A.H.M., XV, 57; Ernesto GONÇALVES, “João Gomes da Ilha”, in A.H.M., XV, 40-47; Idem “João Afonso do Estreito”,in D.A.H.M., nº 17 (1954), 4-8 A.R.M., C.M.F., nº 1296, fls. 30vº-31vº, 11 e 28 de Outubro de 1471; Ibidem, nº 1296, fl. 41, 12 de Fevereiro de 1472, Ibidem, nº 2, 1296, fls. 52vº-53, 17 de Agosto de 1472. 43. A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls 293vº-294, 18 de Janeiro de 1499, AHM, vol.XVII, 1973, pp.382-383; A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls.79vº, 16 de Maio de 1499, AHM, vol. XVII, 1973, p.389 44. A.R.M., RGC.M.F., T. I, fls. 308vº-309, Sintra, 7 e 8 de Agosto de 1508, alvará régio, publ. A.H.M., XVIII, 503-504; Álvaro Rodrigues de AZEVEDO, “notas”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 501.

36. 37. 38. 39. 40. 41. 42.

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A partir de uma das medidas tomadas pela coroa, o contingentamento de 1498, para defesa do mercado do açúcar madeirense poder-se-á fazer uma ideia dos principais mercados consumidores. As praças do mar do norte dominavam o comércio, recebendo mais de metade das escápulas estabelecidas. A Flandres adquire uma posição dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço mediterrânico. Se compararmos as escápulas com o açúcar consignado às diversas praças europeias no período de 1490 e 1550, verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade. As únicas diferenças relevantes surgem nas Praças da Turquia, França e Itália, sendo de salientar na última um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da actuação das cidades italianas como centros de redistribuição no mercado levantino e francês.

Anvers, em finais do século XVI

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Bruges, cerca de 1550

DESTINO FLANDRES FRANÇA INGLATERRA ITÁLIA PORTUGAL TURQUIA OUTROS

ESCÁPULAS.1498 ARROBAS % 40.000 33 9.000 13 7.000 6 21.000 30 7.000 6 15.000 13

MERCADO.1490-1550 ARROBAS % 1O5896,5 39 500 1438 1 140626 52 20657 10 2372,5 1 32 -

MERCADORES.1490-1550 ARROBAS % 11375,5 2 8469,5 2 1072 407530,5 80 23798 5 68185 13

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira evidenciam a constância dos mercados flamengo e italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do Castelo surge em terceiro lugar com apenas 10%. Observe-se que o porto de Viana do Castelo adquiriu, desde 1511, grande importância no circuito e daí com Espanha e Europa nórdica. Aliás, no período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado nas exportações de açúcar, mantendo, todavia, uma posição inferior à 1490-1550. A função redistribuidora dos portos a norte do Douro ficara, já evidenciada entre 1535 e 1550, pois das cinquenta e seis embarcações entradas no porto de Antuérpia com açúcar da Madeira, dezasseis são do norte e apenas uma de Lisboa. Na primeira 50% são provenientes de Vila do Conde, 31% do Porto e 19% de Viana do Castelo. Aliás, em 1505 o monarca considerava que os naturais da região tinham muito proveito no comércio do açúcar da ilha. Em 1538 o trato era assegurado por um numeroso grupo de grupos de mercadores daí oriundos. Entre eles estavam Aires Dias, Baltazar Roiz, Diogo Alvares Moutinho e Joham de Azevedo. O mesmo sucedeu nas trocas com o mundo mediterrânico onde se contava com os entrepostos de Cádis e Barcelona, que surgem no período de 1493 a 1537 com os portos de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e Águas Mortas45. Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550, testemunham a situação. A Flandres surge com 39% e a Itália com 52%. Todavia, é de salientar a posição dominante dos mercadores italianos na condução do açúcar, uma vez que eles foram responsáveis pela saída de 78% do açúcar. No início foram inúmeras as dificuldades para a presença de estrangeiros. Somente a partir da década de oitenta do século XV surgiram os primeiros na condição de vizinhos, que se comprometeram com a cultura e comércio do açúcar. Para a segunda metade do século dezasseis escasseiam os dados sobre o comércio do açúcar madeirense. Somente entre 1581 e 1587 temos nova informação. A ilha exportou 199.300 arrobas de açúcar para o estrangeiro e 4830 para o porto de Viana do Castelo. A partir de princípios do século XVI o comércio do açúcar diversifica-se. A Madeira que na centúria de quatrocentos surgira como o único mercado de produção debater-se-á, a partir de finais do século, com a concorrência do açúcar das Canárias, de Berbéria, de S. Tomé e, mais tarde, do Brasil e das Antilhas. A múltipla possibilidade de escolha, por parte dos mercadores e compradores, condicionou a evolução do comércio açucareiro. Todavia, o açúcar madeirense manteve uma situação preferencial no mercado europeu (Florença, Anvers, Ruão), sendo o mais caro. Talvez, devido ao favoritismo encontramos com frequência referências à escala na Madeira de embarcações que faziam o comércio com as Canárias, Berbéria e S. Tomé. A situação deveria, de igual modo, explicar a venda de açúcar madeirense em Tenerife, no ano de 150546. O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte pelas ilhas e litoral do Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran

Mercados do açúcar madeirense no século XVI

Exportação de açúcar. Século XVI

45. Joel SERRÃO, “Nota sobre o comércio do açúcar entre Viana do Castelo e o Funchal...”, in Revista de Economia, III, 209212; Virgínia RAU, A Exploração e o comércio de sal em Setúbal, Lisboa, 1951; A.R.M., RGCMF, T. I, fls. 301-301vº, Lisboa, 15 de Março de 1505, carta régia, publ. in A.H.M., XVII, 453-454;Domenico GEOFFRÉ, Documenti sulle relazioni fra Genova ed il Portogallo del 1493 al 1539, Roma, 1961, 18-20, 266-265, 268-270, 277-279, 284-285, 290-292, 309-310, José Maria MADURELL MARIMÓN, art. cit., 486-487, 493-494, 497-499, 501-502, 521-522, 564-564. 46. Acuerdos del Cabildo de Tenerife, I, p. 83. Nº 447, 26 de Março de 1505.

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Canaria e La Palma. Assim, na década de trinta os navios normandos ocupados neste comércio dirigiam-se preferencialmente à área. Convém anotar que a maioria das embarcações que rumavam a Marrocos, com escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no comércio com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas décadas seguintes, não obstante a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre 1536 e 1550, como o principal fornecedor de açúcar à Flandres. Todavia, a posição cimeira da ilha de São Tomé só é patente a partir de 1539. NAVIOS PORTUGUESES COM AÇÚCAR PAR ANTUÉRPIA 1536-155047 ORIGEM AÇÚCAR CARGA MIXTA TOTAL CABO GUER 1 1 2 CANÁRIAS 1 5 6 CABO VERDE 1 7 8 MADEIRA 28 28 56 SÃO TOMÉ 88 38 16 LISBOA 16 16

A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cedeu o lugar a outros mercados (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas). As rotas desviam-se para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas. É aqui que surge o arquipélago vizinho. O comércio canário, baseado nos mesmos produtos que o madeirense, será um forte concorrente na disputa dos mercados nórdico e mediterrânico. Os produtos dos dois arquipélagos surgem, lado a lado, nas praças de Londres, Anvers, Ruão e Génova. A única vantagem do madeirense resultava de ter sido o primeiro a penetrar com o açúcar e o vinho no mercado europeu, ganhando a preferência de muitos vendedores e consumidores. O porto de Cádis, importante praça comercial peninsular, funcionou como centro de redistribuição e comércio no Mediterrâneo. A conquista do mercado nórdico é posterior, mercê do forte enraizamento do mercado no comércio e consumo do açúcar madeirense. A primeira carga de melaço canário enviada a Antuérpia, em 1512, não foi do agrado dos eventuais clientes48. Somente a partir da década de trinta o açúcar canário agradou em pleno ao gosto flamengo, beneficiando para isso da quebra do açúcar madeirense e presença da comunidade flamenga no arquipélago. O trato com as praças nórdicas era assegurado, em parte, pelos portugueses de Vila do Conde, Lisboa e Algarve, que faziam valer a maestria e experiência, adquiridas no trato do açúcar da Madeira. Em síntese, a colónia italico-flamenga, residente ou estante nas ilhas de Gran Canaria e Tenerife, foi o principal elo de ligação aos mercados de comércio e consumo do açúcar. Aqui, como na Madeira, ambas as comunidades esqueceram os antagonismos religiosos para se unirem em prol duma causa comum, o comércio do açúcar, repartindo entre si o domínio do mercado açucareiro.

O AÇÚCAR DO BRASIL Foi o açúcar a principal das principais causas da rede de negócios, que perdurou por alguns séculos. A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas). As rotas divergiam para Olinda Pormenor de mapa de Luís Teixeira ca 1586

47. V. M. GODINHO, ob. cit., vol. IV, pp.98-99.

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48. Vitorino Magalhães GODINHO, Ibidem, IV, 98.

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novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante indústria de conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação de outras épocas. A solução possível para debelar a crise da indústria açucareira madeirense, desde a segunda metade do século dezasseis, foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno ou como animador das relações com o mercado europeu. Os contactos com os portos brasileiros adquiriram importância, pois como o refere José Gonçalves Salvador49 as ilhas funcionaram, no período de 1609 a 1621, como o “trampolim para o Brasil e Rio da Prata”. O mesmo esclarece que o relacionamento poderia ocorrer directamente entre os portos insulares e os Brasileiros, ou de forma indirecta através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné, definindo-se um circuito de triangulação. São exemplo as actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no período de 1649 a 1652. Desde finais do século dezasseis que estava documentado o comércio do açúcar brasileiro nas ilhas, servindo os portos do Funchal e Angra como entrepostos para a saída legal ou de contrabando para a Europa. O comércio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa e solicitação dos madeirenses, foi alvo de frequentes limitações. Em 1591 ficou proibida a descarga do açúcar brasileiro no porto do Funchal. Acontece que a medida não produziu qualquer efeito, pois em vereação de 17 de Outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação plena da proibição, pois as autoridades locais apostavam na defesa do açúcar de produção local, que então se promovia. Para assegurar o controlo, os escravos e barqueiros foram avisados que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao embarque de açúcar sem autorização da câmara. Em Janeiro os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três anos o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir o porto de destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. As ordens da coroa em 1598 eram concordantes com as intenções das autoridades municipais, ficando proibida a descarga de qualquer açúcar na ilha.50 A situação repetiu-se com outros navios nos anos subsequentes: Brás Fernandes Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o grande e Manuel Pires em 1603, Pero Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel Rodrigues em 161151. A pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos no comércio obrigou a que se estabelecesse uma solução de consenso. Em 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o esgotamento do da terra52. Depois estabeleceu-se um contrato entre os mercadores e o município em que os primeiros se comprometiam a vender um terço do açúcar de

59. Cristãos-novos e o Comércio no Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, p.247. 50. ARM, RGCMF, t. III, fls. 12vº-13vº. 51. ARM, RGCMF, t.III, fl. 44vº; Idem, DA, caixa IV, nº. 504; fls 12vº-13vº, refere-se as medidas proibitivas de 1591, 1597 e 1601; Ibidem, nº.1314, fls.40vº-41vº; Idem, Câmara Municipal do Funchal, nº.1312, fls.7-8vº, nº.1313, fls.20-23, nº.1313, fls. 6, 49vº, 51, 52-52vº, 59, nº.1316,fls. 24-25, 33-33vº nº.1318,fls.37vº-38. 52. AHM, vol.XIX (1990), pp.139-141 53. ARM, RGCMF, t. III, fl.103: 29 de Março de 1612. Em 1657 a proporção de cada açúcar transaccionado no porto do Funchal deveria ser de metade [Ibidem, RGCMF, tomo IIfl.44Vº; t. III, fl. 103; idem, DA, caixa II, nº.250; Idem, CMF, nº.1315, fl.61; nº.1316, fls.39-39vº; nº.1322, fls.56-56vº ; nº.1333,fls.5vº-6vº.]

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

terra53. Nas décadas de trinta e quarenta parece ter havido um intervalo nas transacções brasileiras, motivado pela ocupação holandesa, pois em 165054 refere-se que há dezoito anos não vinha açúcar e pau-brasil de Pernambuco. Após a Restauração da independência de Portugal o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas regulamentações. Primeiro, com a criação do monopólio de comércio, através da Companhia para o efeito criada e, depois, com o estabelecimento do sistema de comboios para maior segurança da navegação. Ressalva-se o caso particular da Madeira e Açores que, a partir de 1650, passaram a poder enviar, isoladamente dois navios com capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, depois trocados por tabaco, açúcar e madeiras55. Depois, ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar56. O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças e a entrega era feita no sentido de favorecer todos os mercadores57. Para os navios envolvidos no trato brasileiro havia uma escrituração à parte na alfândega58. Dos dados compilados é bem visível a presença de outras embarcações não autorizadas, como se pode verificar pelo movimento de entradas no porto do Funchal: Itamaraca (Recife) - séc. XVIII

ANO 1640 1648 1649 1650 1651 1652 1653 1660 1661 1664 1665 1666 1667 1669

54. 55. 56. 57. 58.

NAVIOS LICENÇAS entrados 1 1 1 4 1 3 1 3 3 1 3 1 2 1 4

ANO

NAVIOS LICENÇAS entrados 1670 1 1671 5 1672 1 1674 2 1 1675 2 1676 1 3 1677 3 1 1678 3 1679 1 1681 6 1682 1 1688 2 1691 5 TOTAL 60 8

ANTT, PJRFF, nº. 296, fls. 4vº: 17 de Junho. ARM, RGCMF, t.VI, fl. 100: 11 de Agosto de 1650. ARM, RGCMF, t.VI, fls.1695º-170: 3 de Julho de 1652 ARM, RGCMF, t. VII, fl.24: 10 de Junho de 1664; ANTT, PJRFF, nº.960, fls.70vº-71, 25 de Maio de 1677; ANTT, PJRFF, nº.964, fls.429-429vº: 16 de Agosto de 1663. Na documentação da Alfândega do Funchal, existem alguns livros.

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Alguns navios, fora do número estabelecido para a ilha, declaram serem vítimas de um naufrágio ou de ameaças de corsários, o que não os impedem de descarregarem sempre algumas caixas de açúcar. Todavia os infractores sujeitavam-se a prisão e a pesadas penas, como sucedeu em 166459 com Manuel Ferreira do Porto, em 166560 com Luís Ferreira o moço, e em 166961 com o Mestre Manuel Nogueira Botelho. Ano Baía 1727 1728 1729 1730 1731 1732 1733 1734 1735 1736 1737 1738 1739 1740 1741 1742 1743 1744 1745 1746 1747 1748 1749 1750 1751 1752 1753 1754 1755 1756 1757

1 2

Rio

2 3 3

Licenças Pernambuco

1

3 1

3

1 1

1 2 2 1 1 2 1

3 2 1 2 1 2 2 2 2

Saídas 1 3 4 1 3 5 2 2 3 4 6 5

1 1 1

1 1 2 1

3 3 1 1 6 5 3 2 1 3 5 4 4

59. ANTT, PJRFF, nº.296, fls.41-41vº: 4 de Novembro. 60. ANTT, PJRFF, nº.296, fls.42: 15 de Setembro. 61. ANTT, PJRFF, nº.296, fls.52vº, 75vº-76.

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Entradas 5 5 6 5 9 8 9 4 8 2 2 2 3 2 1 3 1 2 1 1 2 8 5 2 4 1 4 3 5 2

Total

3 1 2 3 3 2 2 3 1 1 2 2

5 2 1 2 3 3 4

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Ano Baía 1

1758 1759 1760 1 1761 2 1762 2 1763 1 1764 2 1765 1 1766 4 1767 1 1768 2 1769 2 1770 1 1771 3 1772 2 1773 2 1774 1775 1 1776 1778 1779 1780 1781 1782 1784 1785 1786 1787 1788 1789 1790 1791 1792 1793 1794 1795 1797 1798 1799 TOTAL 42

Rio 1

Licenças Pernambuco 1 3

1 1 1 1 2 3 1 3 3 2 2 3 1 1

Saídas 3 3 2 2 3 2 3 3

7 2 5 5 3 5 3 1 1

Entradas 4

3 2

3 3 4 6 3

1 6 5 1 3 5 3 2 2 2 1 1 1 1 2 2 3 2 1 1

55

11

117

Total

2 2 1 151

1 1 2 2 3 3 4

4 5 5 3 3 3 6 2 5 1 6 2 1 1 1 1 1 2 4 2 3 1 1 1 184

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No século XVIII o movimento amplia-se, não obstante as recomendações para o respeito da norma estabelecida no século anterior62. Para o período de 1736 a 177 conseguimos reunir 117 licenças 563. As autorizações eram concedidas pelo Governador, em exclusivo aos mercadores madeirenses. Merecem atenção Bento Ferreira, Francisco Luís Vasconcelos e Francisco Teodoro, pelo número de licenças conseguidas. Por determinação de 1664 pagavam um donativo de 50.000 réis, existindo no Funchal um comissário dos comboios, que procedia à arrecadação dos referidos direitos. No ano de 167664 era Diogo Fernandes Branco quem os administrava. De acordo com as recomendações do Conselho da Fazenda a arrecadação dos direitos de entrada do açúcar do Brasil era lançada em livro próprio65. No século XVIII era taxado do seguinte modo66: Arroba 1725 1734 130 rs

Caixas Branco mascavado 400 200 600

A partir dos dados soltos, reunidos na documentação, procurámos avaliar a real importância das relações comerciais entre a Madeira e o Brasil, assentes, predominantemente, no açúcar. Para o período de 1650 a 1691 identificamos 39 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, com mais de 10722 caixas de açúcar: PROVENIÊNCIA

Baía Rio de Janeiro Pernambuco Maranhão Paraíba Pará TOTAL

AÇÚCAR caixas caras 2489 4218 3343 57 615 10722

29 13 71 31 144

NAVIOS sem indicar total carga 7 17 6 12 9 18 1 2 5 1 1 25 53

Afora isso surgem ainda registos com a indicação dos destinatários do açúcar:

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

ANO 1640 1671 1676 1677 1681 1682 1691 1754-55 1773 1783

DESTINATÁRIOS NÚMERO 7767 64

30 98

NAVIOS

CAIXAS

6 1 1 3 1 5 3 6 3

12769 33526 305 861 1257 4632 14536 14273 9297 4589

ARROBAS

55

Facto de particular interesse é participação das comunidades da companhia de Jesus da Baía, Rio de Janeiro e Maranhão, que usufruindo do privilégio de isenção dos direitos colocavam, também, o açúcar das fazendas no mercado madeirense, conduzindo à ilha 82 caixas de açúcar, sendo 7 do Maranhão, 65 da Baía e 10 do Rio de Janeiro68. No século XVII o grosso das exportações em torno do açúcar na ilha tem como origem o Brasil: em 1620, do açúcar exportado, temos 23.560 arrobas do Brasil e 1.992 da Madeira, enquanto em 1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 111 arrobas da Madeira. Para o período de 1650 a 1691 conseguimos identificar 53 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraíba, Pará e Maranhão, que conduziram ao Funchal mais de dez mil caixas de açúcar. PROVENIENCIA

AÇÚCAR NAVIOS Caixas feixos Carga1 total Baía 2489 29 7 17 Rio de Janeiro 4218 13 6 12 Pernambuco 3343 71 9 18 Maranhão 57 1 31 Paraíba 615 2 5 Pará 1 TOTAL 10722 144 2 (1) sem indicação do número de caixas e feixos de açúcar

A estes valores dever-se-ão juntar alguns registos de despacho na alfândega, feito em livro próprio, com a indicação dos destinatários do açúcar transportados:

62. ANTT, PJRFF, nº.970, fls.90vº-94vº, nº.971, fls.11-11vº, 12vº, 13-15vº, 106-108vº. 63. Cf. J. Abreu de Sousa, O Movimento do Porto do Funchal e a Conjuntura da Madeira de 1727 a 1810. Alguns Aspectos, Funchal, 1989, pp.135 e segs. 64. ANTT, PJRFF, nº.966, sem referência: 2 de Maio. 65. ANTT, PJRFF, nº.965A, fls.429-429vº: 16 de Agosto de 1673 66. ANTT, PJRFF, nº.396, fl.155vº, 14 de Agosto de 1734

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67. Em trinta e três destes não foi possível identificar o nº de arrobas de açúcar 68. ANTT, PJRFF, nº.496, fls.35-43.

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ANO 1640 1671 1682 1691

ARROBAS 771 64 30 98

Nº DESTINATARIOS 12769 28465 2475 1428

1) incluem-se trinta e três em que não foi possível identificar o número de arrobas, devido ao mau estado do manuscrito.

O açúcar brasileiro foi, na segunda metade do século dezassete, uma mercadoria importante do comércio na ilha e das principais fontes de receitas para o erário régio. Aliás, a Madeira era um dos pilares fundamentais do comércio com o Brasil, vivendo na quase total dependência, como se pode corroborar pelo alvará régio de 164969, onde se afirma que “a maior parte do comercio da companhia era nessa ilha da Madeira donde suas armadas hiam de carregar vinhos…”. De acordo com informações avulsas é possível reconstituir o rendimento para alguns anos: ANO 1650-52 1656-57 1659

DIREITOS Brasil quinto 3561$464 847$820 3.585$542 1.416$554

O rendimento auferido pela alfândega com a entrada de açúcar era elevado e o valor atesta também a evolução do comércio. ANO 1644 1652-53 1656-57 1659 1660-62 1664 1664-66 1667-69 1705-1733

RENDIMENTO Direitos sobre o açúcar do Brasil Total dos rendimentos 1.801$685 4.451$830 3.585$542 1.416$554 14.003$058 3.469$799 884$583 5.200$000 5.500$000 3.889$900

Para os anos de 1771 e 1772 é possível comparar a importância do produto no movimento geral da alfândega do Funchal:

69. ARM, RGCMF, t. VI, fls. 99-99vº, 20 de Agosto

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1771 1772

ENTRADAS Brasil Total 3011$936 10250$825 4775$702 14713$798

SAÍDAS 51689$076 54103$475

O açúcar do Brasil teve um lugar importante na economia madeirense, não apenas por apoiar as indústrias de conserva e casca, mas, fundamentalmente pelo movimento de reexportação. Todavia, a década marca o início da quebra do comércio, que teve repercussões evidentes no negócio de casca e conservas. Assim em 177970 o Governador João Gonçalves da Câmara refere que o comércio da casca estava quase extinto.

DIOGO FERNANDES BRANCO: UM CASO EXEMPLAR No circuito de escoamento e comércio do açúcar brasileiro é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto das rotas comerciais ampliava-se até ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirenses criaram a própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e no Brasil. Releva-se a figura de Diogo Fernandes Branco. A actividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. A partir daqui iniciava-se o processo de transformação do produto em casca ou conservas. Era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam o processo, uma vez que o produto depois de laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no norte da Europa: Londres, St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus. Diogo Fernandes é o interlocutor directo dos mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufacturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câmbio, raramente encontravam destinatário na ilha. A par disso manteve a rede de negócios, apoiado em alguns mercadores de Lisboa e principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na documentação epistolar71. Á primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas actividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar os manjares dos repastos da mesa europeia. A situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de modo algum episódica, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois comprova uma das dominantes do processo em que a ilha actua como intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes base do puzzle é con70. AHU, Madeira e Porto Santo, nº.518: 1 de Agosto 71. O Público e o Privado na História da Madeira, Funchal, 1996.

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stituído pelo porto do Funchal e toda uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices do triângulo. Episodicamente surge-nos Barbados, que só singrou a partir de então com a afirmação hegemónica da burguesia comercial britânica no mundo atlântico.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

franceses e holandeses ficou já demonstrado por Frédéric Mauro76 para os anos de 1620 e 1650.

OS MERCADORES DO AÇÚCAR. O COMÉRCIO DE AÇÚCAR COM A EUROPA Parte significativa do açúcar importado do Brasil era utilizado no fabrico de conserva e casca que depois se exportavam para as praças europeias, nomeadamente do Norte. São poucos e avulsos os dados que o testemunham. Para o ano de 1682 temos a saída de 15 embarcações, apresentando destinos diversos. DESTINO AÇÚCAR

Porto do Funchal. Gravura do século XIX

Sesimbra Canárias S.Miguel Cádis Bordéus Rochela Ruão Londres Amesterdão Brandemont TOTAL

410 28 caixas 7 caixas 1 caixa 6 caixas 8

418a./42 cxas

CARGA CASCA

CONSERVA 6

170

819 2269 931 103 953 108 5353

210 61 34 292 603

O comércio do Funchal com a praça de Bordéus era significativo, tal como nos informa Didier Boisson72. Mas a partir de 1710 ele entrou em crise, repercutindo-se na cultura e comércio de casca73, um dos principais sustentáculos da produção local e da importação do Brasil. A isto associa-se a falta de citrinos, como nos refere em 1710 Duarte Sodré Pereira74. A correspondência do cônsul francês no Funchal é, a este respeito, significativa: em 1717 ele referia que estavam a passar de moda, enquanto em 1765 dava conta da reduzida exportação75. Duarte Sodré Pereira, que foi governador da Madeira no período de 1703 a 1711, desenvolveu uma importante actividade comercial em torno do açúcar do Brasil e da casca para os portos holandeses. A afirmação dos mercados 72. Les Relations Commerciales entre les Marchands Protestants de Bourdeaux, le Portugal et Madère au debut des années 1680, Bulletin des Espaças Atlantiques, nº.2(1987), 137-144. 73. Albert Silbert, ob .cit., pp.405-406; Maria Júlia de Oliveira e Silva, Fidalgos-mercadores no Século XVIII. Duarte Sodré Pereira, Lisboa, 1992, p.105 74. Maria J. Oliveira e Silva, ob. cit., p.105, nota 120, carta de 28 de Agosto. 75. Albert Silbert, ob .cit., p.406

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A Madeira atraiu a primeira vaga de mercadores forasteiros, mercê da prioridade da cultura dos canaviais no processo de ocupação. Só o impediram as ordenanças limitativas da residência na ilha. Todavia, em meados do século XV a coroa facultou a entrada e fixação de italianos, flamengos, franceses e bretões, por meio de privilégios especiais, como forma de assegurar um mercado europeu para o açúcar. Mas, o impacto e a influência foram lesivos para os mercadores nacionais e coroa, sendo necessário impedir que os mesmos pudessem “asy soltamente trautar todos”, pelo que o senhorio proibiu a permanência na ilha como vizinhos. A questão foi levada às cortes de Coimbra de 1472-1473 e de Évora em 1481, reclamando a burguesia do reino contra o monopólio de facto, dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar, propondo a exploração a partir de Lisboa. O monarca comprometido com a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, actuou de modo ambíguo procurando salvaguardar os compromissos anteriormente assumidos e as solicitações dos moradores do reino, estabelecendo limitações à residência no reino e fazendo-a depender de licenças especiais. Quanto à Madeira foi a impossibilidade da vizinhança sem licença expressa da coroa e a interditação da revenda no mercado local. A Câmara baseada nas ordenações e no desejo expresso dos moradores ordenara a saída até Setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhorio. Somente em 1489 foi reconhecida a utilidade da presença dos mercadores estrangeiros na ilha, ordenando D. João II ao duque D. Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados como “naturaes e vizinhos de nossos regnos”77. Na década de noventa, de novo, os problemas do mercado açucareiro conduziram ao ressurgimento da política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os produtos, não podendo ter loja e feitor na cidade. Somente em 1493 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou todas interdições anteriormente impostas78. As facilidades concedidas à estadia dos forasteiros conduziram à assiduidade bem como

Venda de açúcar em França

76. Ob.cit., vol.II, pp.259, 261-262 77. F. MAURO, ibidem, p. 225; ARM, RGCMF, T, I, fls. 5vº-6, Lisboa 6 de Octubro de 1471, carta régia sobre o trauto do açúcar, in AHM, XV, 57; ibidem, fls. 148-148vº, Beja, 5 de Março de 1473, carta da infanta C. Beatriz acerca dos estrangeiros, in AHM, XV, 68; H, Gama BARROS, Ibidem, X, 152-153; Ibidem, Vol. 330; V. RAU, O açúcar na Madeira /.../, p. 26, nota 27; Monumenta Henricina, XV, Coimbra, 1974, 87-89;ARM, CMF, nº 1298, fl. 37, 22 Dezembro de 1484; Ibidem, fl. 68, 15 de Abril de 1486; Ibidem, fl 87vº, 7 de Junho de 1486; ARM, RGCMF, T. I, fls. 292.293, Lisboa, 7 de Agosto de 1486; ANTT, Gavetas, XV-5-8. Évora, 22 de Dezembro de 1489, sumariado in As Gavetas da Torre do Tombo, IV, Lisboa, 1964, 169-170. 78. H. Gama BARROS, ibidem, X, 155; Fernando Jasmins PEREIRA, Alguns elementos para o estudo da Historia económica da Madeira [...], 139-162; ARM, RGCMF, T. I, fls. 262vº, Torres Vedras, 12 de Outubro de 1496, in AHM, XVII, 350-358; ibidem, nº 1302, fls. 83-83vº, 26 de Novembro de 1496; ARM, RGCMF, T. I, fls. 291vº-292, Lisboa 22 de Março de 1498 in AHM, XVII, 369. Veja-se Álvaro Rodrigues de AZEVEDO “Anotações”, in Saudades da Terra, Funchal, 1873, 681-682.

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Casa de João Esmeraldo no Funchal.

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à fixação e intervenção na estrutura fundiária e administrativa. A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira foi dominada pela presença de italianos, flamengos e franceses, que surgem no Funchal atraídos pelo tão solicitado “ouro branco”. Os primeiros e de entre eles os florentinos e genoveses foram, desde meados do século XV, os principais agentes do comércio do açúcar alargando depois a actuação ao domínio fundiário, possível por meio da compra e laços matrimoniais. Na década de setenta, mediante o contrato estabelecido com o senhorio da ilha, detinham já uma posição maioritária na sociedade criada para o comércio do açúcar, sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer Leão. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão Colombo, João António Cesare, Bartolomeu Marchioni, Jerónimo Sernigi e Luís Dória. A este grupo seguiu-se, em princípios do século XVI, outro mais numeroso que alicerçou a comunidade italiana residente, destacando-se, aqui, Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castigliano, Chirio Cattano, Sebastião Centurione, Luca Salvago, Giovanni e Lucano Spinola. O estrangeiro para manter a amplitude de operações comerciais nas ilhas contava com um grupo de feitores ou procuradores: Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Matia Minardi, Capella e Capellani, João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. O grupo inicial é, na maioria, constituído por italianos, ligados ao comércio do açúcar, e que os segundos pertenciam a algumas famílias mais influentes. Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se nas transacções comerciais e financeiras do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde usufruíam uma posição privilegiada junto da coroa, controlaram uma extensa rede de negócios que abrange a Madeira e as principais praças europeias. Primeiro conseguiram da Fazenda Real o quase exclusivo do comércio do açúcar resultantes dos direitos reais por contrato directo a que se seguiu o exclusivo dos contingentes estabelecidos pela coroa em 1498. Assim, tivemos Bartolomeu Marchioni, Lucas Giraldi e Benedito Morelli com uma

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intervenção marcante no trato do açúcar, na primeira metade do século XVI. A manutenção da rede de negócios foi assegurada pela acção directa dos mercadores, dos procuradores ou agentes substabelecidos. Benedito Morelli em 1509-1510 tinha na ilha, como agentes para o recebimento do açúcar dos quartos, Simão Acciaiuolli, João de Augusta, Benoco Amador Cristóvão Bocollo e António Leonardo. Marchioni em 1507-1509 fazia-se representar em operações idênticas por Feducho Lamoroto. João Francisco Affaitati, cremonês, agente em Lisboa de uma das mais importantes companhias comerciais da época, participou activamente no comércio entre 1502 e 1526, por meio de contratos de compra e venda dos açúcares dos direitos reais (1516-1518, 1520-1521 e 1529) e pagamentos em açúcar a troco de pimenta. O mesmo actuou, ainda, em sociedade com Jerónimo Sernigi, João Jaconde, Francisco Corvinelli e Janim Bicudo, quer isoladamente, tendo para o efeito como feitores e procuradores na ilha, Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capela de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi e Maffei Rogell. A presença do grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada. O usufruto de privilégios reais, o relacionamento familiar favoreceu a mistura com a aristocracia terra-tenente e administrativa. A intervenção é notada na estrutura administrativa, abrangendo os domínios mais elementares do governo, como a vereação e as repartições da fazenda, todas com intervenção directa na economia açucareira. São maioritariamente proprietários e mercadores de açúcar. Instalaram-se nas terras de melhor e maior produção e tornaram-se nos mais importantes proprietários de canaviais. Assim, sucedeu com Rafael Cattano, Luís Dória, João e Jorge Lomelino, João Rodrigues Castelhano, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, João Antão, João Florença e Simão Acciaiuolli e Benoco Amatori. Também, os franceses e flamengos, a exemplo dos italianos, surgem na ilha, desde finais do século XV, atraídos pelo rendoso comércio do açúcar. No entanto, não se enraizaram na sociedade insular, mantendo uma condição errante. O interesse é única e exclusivamente a aquisição do açúcar a troco dos artefactos, alheando-se da realidade produtiva e administrativa. O caso de João Esmeraldo é a excepção. Os franceses afirmaram-se pelas operações de troca em torno do açúcar, enquanto os flamengos mantiveram uma posição subalterna e mesmo como grupo interveniente no mercado madeirense. Os franceses tiveram uma presença muito activa no comércio do açúcar, na primeira metade do século XVI. Surgem com frequência nas comarcas do Funchal, Ponta do Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde adquiram grandes quantidades de açúcar que transportavam aos portos franceses nas embarcações. Evidenciaram-se mestre António, Archelem, António Coyros, António Caradas e Francisco Lido. Os últimos aliavam à Madeira a rede de negócios das Canárias como ramificação das praças nórdicas e andaluzas. As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos reais eram canalizados ao mercado europeu, quer por carregação directa, quer ainda, por negócio livre ou a troco de pimenta. O açúcar era arrendado por mercadores ou sociedades comerciais, sedeados em Lisboa, sendo de destacar a actuação dos italianos, como João Francisco Affaitati e Lucas Salvago. As operações comerciais em torno do açúcar, no período de 1501 e 1504, estiveram centralizadas em mercadores ou sociedades comerciais que, a partir de Lisboa, controlaram o trato por meio de uma complicada rede de feitores ou procuradores. A intervenção, que se apresentava dominante nos três primeiros decénios do século, decresceu de forma acentuada na última década. Isto atesta

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que os mercadores estrangeiros, em face da conjuntura de instabilidade do mercado açucareiro madeirense nos primeiros trinta anos abandonaram o comércio fazendo-o substituir pelo de outras origens. A comunidade italiana controlava a quase totalidade do comércio do açúcar com as principais praças europeias sendo seguida da portuguesa e da castelhana. Os mercadores nórdicos não apresentam uma posição de relevo nas operações. Isto demonstra, mais uma vez, que a rota e mercado flamengo se mantiveram sob o controlo da nossa feitoria. No período que decorre de 1490 a 1550, verifica-se que os italianos detiveram o exclusivo do comércio na primeira década e a posição dominante nas duas seguintes, sendo substituídos pelos portugueses na década de trinta, e também por castelhanos e franceses. Ainda, no grupo dos mercadores estrangeiros nota-se uma tendência concentracionista, pois apenas os cinco principais detêm 71% do açúcar transaccionado. Todos apresentam valores superiores a dez mil arrobas, enquanto nos nacionais apenas um tem mais de 1080 arrobas. João Francisco Affaitati, mercador cremonês de família nobre, chefe da sucursal em Lisboa da companhia Affaitati, uma das principais da praça, surge no período de 1502 a 1529 como o principal activador do comércio do açúcar madeirense, tendo transaccionado sete vezes mais açúcar que todos os portugueses. Durante o período, arrematou em 1502, as escápulas de Águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. Conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco Cornivelli conseguiu a venda do açúcar dos direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e actuou em operações diversas de compra directa de açúcar e da troca por pimenta ou dívidas. Para manter a amplitude de actividades comerciais contava na ilha com um grupo numeroso de feitores ou procuradores: Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Matia Manardi, Capella de Capellani, João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Por outro lado aceitou procuração de Garcia Pimentel, Pedro Afonso de Aguiar e João Rodrigues de Noronha. A rede de negócios funchalense, em torno do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí aportou depois da escala em Lisboa. Ele controlou as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova. O domínio atinge, não só, as sociedades criadas no exterior com intervenção na ilha, mas também, o grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. A escolha é criteriosa: primeiro os familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e só, depois, os madeirenses ou nacionais. As principais casas intervenientes no trato açucareiro madeirense podem ser definidos de acordo com o número de representantes, destacandose então, Baptista Morelli, B. Marchioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala e Pero de Mimença. Os Welsers e Claaes actuaram na praça do Funchal por intermédio de agente estabelecido em Lisboa, respectivamente, Lucas Rem e Erasmo Esquet, que depois substabelecem feitores. O primeiro tinha como interlocutores no Funchal, em princípios do século XVI, João de Augusta, Bono Bronoxe, Jorge Emdorfor, Jácome Holzbuck, Leo Ravenspurger e Hans Schonid. Os procuradores e feitores, na condição de interlocutores dos mercadores europeus não se ligam apenas a uma sociedade, pois distribuíram a acção por um grupo numeroso de societários. E, por sua vez, não se prendem apenas a um representante, concedendo-os a um grupo variado de feitores e procuradores. Na primeira situação tivemos Benoco Amatori que representava B. Marchionni, B. Morelli, Álvaro Pimentel e Jerónimo Sernigi. E, na segunda, João Francisco Affaitati que, entre

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1500-1529, estava representado por Gabriel Affaitati, Luca Antonio, Cristóvão Bocollo, Capella de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi, Mafei Rogell e Lucas Giraldi. Na segunda metade do século XVII o açúcar madeirense foi paulatinamente substituído pelo brasileiro. No circuito de escoamento e comércio é evidente a intervenção de madeirenses e açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto das rotas comerciais ampliava-se até ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirenses criaram a própria rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e Brasil. Diogo Fernandes Branco é o exemplo perfeito da nova situação. A actividade incidia, preferencialmente, na exportação de vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por açúcar. O circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso das caixas de açúcar ou rolos de tabaco. Depois seguia-se outro processo de transformação do produto em casca ou conservas. Era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto depois de laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no norte da Europa: Londres, St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus. Ele foi o interlocutor directo dos mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus, satisfazendo a solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufacturas, uma vez que o dinheiro e as letras de câmbio, raramente encontravam destinatário na ilha. A par disso manteve a rede de negócios, apoiado em alguns mercadores de Lisboa, e principais cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na documentação epistolar. À primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas actividades paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar os manjares dos repastos da mesa europeia. As actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não são de modo algum episódicas, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois comprovam uma das dominantes estruturais. A ilha como intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes do puzzle era o porto do Funchal, onde uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices do triângulo. Episodicamente surge-nos Barbados, que só singrou a partir da afirmação hegemónica da burguesia comercial britânica no mundo atlântico.

Túmulo de Urbano Lomelino

OS ITALIANOS A presença de italianos na Madeira deriva, não só, da implantação na península e manifesto empenho na revelação do novo mundo, mas também, da ilha se tornar numa importante área de produção e comércio do açúcar. Em Portugal e Castela eles procuraram os portos ribeirinhos de maior animação comercial, e ai se evidenciaram como mercadores, mareantes e banqueiros. Aqui, os oriundos de Génova e Florença, cidades de grande animação comercial e marítima, abriram, nos

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locais de fixação, novas vias para o comércio com o mercado mediterrânico. A partir de Lisboa ou Cádis eles intervêm, primeiro, no comércio peninsular, e, depois, nas navegações e actividades de troca no espaço atlântico. A situação torna-se evidente com a intervenção de António de Noli e Alvise de Cadamosto. Os italianos, para além de divulgadores de novas técnicas comerciais, foram, também, quem, depois dos árabes, esteve na origem da expansão de algumas culturas, como a cana-de-açúcar. A posição charneira da península itálica propiciara a hegemonia no mercado Mediterrâneo. Aí foram eles principais interessados no comércio de açúcar oriental. Por isso era inevitável a presença na expansão para Ocidente da cultura e comércio; em Chipre, Sicília e, depois, em Valença e no Algarve. É de salientar que, o maior ou menor impacto da presença, depende da dimensão adquirida pela cultura. Deste modo no Mediterrâneo Atlântico à mais elevada a presença na Madeira e nas Canárias, do que nos Açores79. Em ambos os arquipélagos adquiriram uma posição proeminente na agricultura e comércio, sendo o açúcar o principal interesse. No Algarve80 ou em Valença à cultura se encontravam associados os italianos, nomeadamente genoveses. De certo modo, poder-se-á considerar que os genoveses acompanharam o périplo da cana-de-açúcar para Ocidente e depois além-Atlântico. Por outro lado o empenho genovês no mercado atlântico terá a ver com a perda de posição no mercado mediterrânico, mercê da rivalidade com Veneza e das ameaças propiciadas com o avanço turco. A perda de influência no mercado açucareiro cipriota é compensada com a intervenção privilegiada nas ilhas atlânticas81. A situação é evidente na Madeira e nas Canárias, onde a comunidade italiana é dominada, desde o princípio, pelos genoveses. A eles associavam-se, na primeira ilha, os florentinos82. Os venezianos continuarão até meados do século XVI empenhados no mercado do Mediterrâneo Oriental, de que Chipre foi, a partir de 1489, um dos principais pilares. A rede de negócios estabelecida pelos italianos no Novo Mundo mantém as mesmas características das que detinham na Europa do Norte e Mundo Mediterrânico. A família à a chave do sucesso, a garantia da execução em plena segurança e a continuidade das referidas operações83. A partir daqui é possível estabelecer a estrutura dos negócios, que tinha como porto de divergência a cidade de origem. No caso do espaço atlântico podia ser Cádis ou Lisboa, importantes centros de confluência e divergência das rotas comerciais do Novo Mundo. Tendo em conta a importância que a Madeira e as Canárias assumiram no comércio do açúcar nos séculos XV e XVI, parece-nos inevitável a presença da comunidade italiana, nomeadamente genovesa, nos principais portos de ambas as ilhas84. As representações em Lisboa e Cádis de algu80. Note-se que em 1404 é referenciado em Quarteira um João da Palma, mercador genovês, com terras de canas, veja-se H. Gomes de Amorim PARREIRA, “História do Açúcar em Portugal”, in Anais (Junta de Investigações do Ultramar), vol. VII, t. 1, 1952, 18-19. 81. Confronte-se F. C. LANE, Venise une République maritime, Paris, 397-398. 82. Confornte-se Alberto VIEIRA, ob. cit., quadros nº 1 e 3, 8-9-10. 83. F. C. LANE, ob. cit., 198; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1988, 197. 84. Sobre os italianos em Canárias veja-se I. M. Gomez GALTIER, “El genovês Francisco de Cerca, prestamista y comerciante de orchilla en Las Palmas de Gran Canaria en el decenio 1517-1526”, in Revista de História, XXIX, La Laguna, 1963-64; L. de LA ROSA OLIVEIRA, “Francisco Riberol y la colonia genovesa en Canárias”, in Estudos Históricos sobre las Canarias Orientales, Las Palmas, 1978, 169-289; M. LOBO CABRERA, “Los mercadores italianos y el comercio azucarero canario en la primera metad del siglo XV”, in Aspecti della vita economica medieval, Firenze, 1985, 268-282; M. MARRERO RODRIGUES, “Genoveses en la colonización de Tenerife 1496-1509”, in Revista de Historia, XVI, La Laguna, 1960, 52-65; H. SANCHO DE SOPRANIS, “Los Sopranis en Canarias 1490-1620”, in Revista de Historia, La Laguna, 1951, 318-336.

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mas casas ramificaram-se até aos portos do Funchal, Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife e, a partir daí, surgiu uma nova rede de negócios. É de realçar a existência em ambos os arquipélagos de agentes ou familiares da mesma casa: os Adornos, Lomelinos, Jutinianos, di Negros, Salvagos, Espindolas e Dorias85. Todavia não se deverá esquecer que não existe perfeita consonância entre a afirmação da cultura em ambos os arquipélagos. As Canárias afirmam num momento de crise do mercado madeirense, podendo ser uma forma clara de acompanharem a evolução da cultura e comércio. Acresce, ainda, que o comércio do açúcar madeirense esteve, quase sempre, sujeito a um apertado sistema de controlo por parte da coroa, o que não sucede nas Canárias, onde as operações estavam mais facilitadas86. O rápido surto de desenvolvimento da Madeira na centúria quatrocentista, através da produção açucareira, gerou a cobiça dos mercadores genoveses, que, por sentirem dificuldades nas tradicionais rotas do Oriente, viam aqui um local ideal para continuar os negócios. Já em meados da centúria Cadamosto, um dos poucos venezianos que aportou à Madeira, ao abordar a ilha ficara estupefacto com o grau de progresso atingido, despertando-lhe interesse a próspera produção açucareira. Foi, na realidade, a partir desta data e, fundamentalmente, da década de setenta o açúcar ganhou uma posição dominante na produção e comércio da ilha. E é precisamente a partir daí que se identificam os primeiros italianos na Madeira: Francisco Calvo, B. Lomelino e António Spínola. São os primeiros que aparecem na ilha, atraídos pelo comércio do açúcar. Depois seguiram-se, nas décadas seguintes da centúria, os Dórias, João António Cesare, João Rodrigues Castelhano e Jerónimo Sernigi. O grupo mais numeroso de italianos surgirá no primeiro quartel da centúria seguinte, época áurea do comércio de açúcar. De um total de 50 italianos referenciados na Madeira nos séculos XV e XVI, temos 25 desta data, destacando-se os Aciauollis, Adornos, Catanhos e

85. Confronte-se Alberto VIEIRA, O comércio Inter-insular (…) quadros nºs 1 e 3; Manuel LOBO CABRERA, El Comércio Canario Europeo Bajo Felipe II, pp. 188-198. 86. Confronte-se Alberto VIEIRA, O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, pp.27-40,129-137; Manuel LOBO CABRERA, El Comercio Canario Europeo Bajo Filipe II, Funchal, 1988, pp.108-120,141-150.

Túmulo de Micer Baptista. 1512.

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Salvagos. A íntima ligação ao açúcar é manifesta quando procuramos o rastro no momento de crise de produção e comércio da cultura. A partir da década de trinta da centúria quinhentista é difícil encontrara o testemunho na ilha, apenas os que nela criaram raízes familiares. A partir de então o mercado madeirense sofreu a concorrência do açúcar doutras proveniências (Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Brasil) e, por isso mesmo, inúmeros italianos deixaram de aportar o Funchal para se dirigirem aos novos destinos. Outros acompanharam o percurso de expansão da cultura no mundo atlântico. Assim sucedeu com José Adorno e Paulo Dias Adorno, que saíram do Funchal em 1567 para se fixarem em S. Vicente no Brasil87. Na Madeira os genoveses foram, em simultâneo, mercadores e produtores de açúcar. Dos últimos destacam-se Simão Aciaoli (Funchal), Benoco Amador (Funchal), António Espindola (Funchal), Jorge Lomelino (Funchal, Santa Cruz) Lucas Salvago (Ribeira Brava), António de Negro (Ribeira Brava) e João Lido (Ponta do Sol), que surgem com uma posição de relevo na estrutura produtiva madeirense, como importantes produtores de açúcar, no período de 1509 a 1537. De acordo com os dados disponíveis sobre a produção de açúcar para as três primeiras décadas do século XVI encontrámos os seguintes valores: PROPRIETÁRIO Simão Acioli Benoco Amador António Espindola João Florença Lucas Salvago Jorge Lomelim Antonio de Negro João R. Castelhano

FUNCHAL 1509 1530 1365 2564 560 148 1020 135

R. BRAVA 1509 1517

CALHETA 1509 1530

MACHICO

576,5 1982,5 1227,5

Entre todos afirma-se Jorge Lomelino, que se apresenta como proprietário de canaviais no Funchal (1530) e Santa Cruz (1530), sendo na última área um dos principais, a seguir a Jordão de Freitas88. A par disso, Gaspar Frutuoso89, em finais do século XVI, esclarece-nos sobre a importância assumida por alguns na economia açucareira madeirense, referindo quatro como proprietários de engenho: Simão Acioli (Funchal), Jorge Lomelino (Santa Cruz), Rafael Catanho (Santa Cruz) e Luís Dória (Faial). O mesmo realça, ainda, a iniciativa de alguns, referindo o espírito empreendedor de Rafael Catanho, que em Santa Cruz construiu uma levada para serviço do seu engenho em que gastou mais de cem mil cruzados. A situação só foi possível, segundo Frutuoso, pelo, "grande

87. José Gonçalves SALVADOR, Os Cristãos-Novos. Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), S. Paulo, 1976, 88. 88. Alberto VIEIRA, “O Regime de propriedade na Madeira. O caso do açúcar (1500-1537)”, in I.C.I.H.M., Funchal, 1989. 89. Livro Segundo das Saudades da terra, Ponta Delgada, 1979, pp. 103, 110, 130.

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espírito" dos italianos90. Um dos aspectos que mais favoreceu a penetração da comunidade italiana na ilha, para além do conhecimento dos "segredos" da produção e comércio do açúcar, foi a fácil naturalização de direito, adquirida por alvará régio, ou de facto, por meio do relacionamento matrimonial com as principais famílias da ilha. A primeira situação foi o recurso necessário para travar as manifestações de xenofobia, evidentes nos protestos lavrados nas cortes de 1459, 1472-73 e 1481-82, que também tiveram repercussão no Funchal, a partir do governo do senhorio do infante D. Fernando (1461-70)91. São do domínio publico algumas cartas de naturalização, sendo de referir, no caso da Madeira, a concedida em 147692 pela infanta D. Catarina a Bautista Lomelino. A carta surge, certamente, como resultado das manifestações contrárias dos madeirenses à presença no Funchal, em face do conflito gerado na década de setenta pelo contrato exclusivo para comércio de açúcar. A presença de judeus e genoveses não era bem vista pelos madeirenses conforme se poderá concluir da reclamação de 1461 ao infante D. Fernando93. A coroa e o senhorio nunca aceitaram a política xenófoba dos madeirenses. Para ambos a opção era clara. Havia um compromisso anterior que deveria ser cumprido e de difícil revogação94. Todavia até 1498 a possibilidade de acesso à ilha não esteve facilitada, dependendo das influências do senhorio e coroa e da conquista da simpatia das gentes da ilha, uma vez que eles sempre se mostraram contrários àa intervenção dos estrangeiros. Em 1498 o rei revogou todas as determinações em contrário, permitindo ou facilitando a presença e permanência de qualquer estrangeiro na ilha95. O monarca interveio no comércio do açúcar, regulamentando-o por meio do estabelecimento de um contingente de exportação. Ficou estabelecido que a ilha exportaria cento e vinte mil arrobas, sendo cinquenta mil da sua responsabilidade e as restantes distribuídas, primeiro pelos mercadores naturais, e, depois, pelos do reino, nos quais o monarca queria que fossem incluídos Bartolomeu Florentim e Jerónimo Sernigi96. A forma mais eficaz de naturalização e plena intervenção do estrangeiro na vida do madeirense foi o recurso ao casamento. Funcionou para muitos italianos como a mais eficaz forma de penetração na sociedade e conquista de uma posição de relevo ao nível fundiário e institucional. Assim sucedeu com Simão Acciauolli, Benoco Amador, Chirio Cattaneo, João Usodimare, Urbano Lomelino e João Salviati. Simão Acciauolli casou com Maria Pimenta Drumond filha de pêro Rodrigues, almoxarife dos quartos (quinto), que tinha promessa do oficio para quem casasse com a filha. Foi assim que o jovem italiano adquiriu uma posição proeminente na ilha, como proprietário e períodos de cargos

Retrato provável de Urbano lomelimo

90. Ibidem, 103. 91. Alberto VIEIRA, O Comércio Inter-Insular (...), pp. 79-80. 92. A.R.M., C.M.F., t. 1, fl. 150 vo, carta de 30 de Dezembro, publ. in A.H.M., vol. XV, 73. Esta confirma outra de D. Afonso V de 27 de Novembro de 1471 (A.N.T.T., Chancelaria de D. Afonso V, Lº. 29, fls. 53 vo) veja-se V. RAU, “Uma familia de mercadores italianos em Portugal no século XV: os Lomellini”, in Estudos de História, vol. I, Lisboa, 1958, 13-57; veja-se ainda, M. Rosário, Genoveses na História de Portugal, Lisboa, 1977, 291-319. 93. A.R.M., C.M.F., fl. 204-211, 3 de Agosto, publ. in A.H.M., vol. I, nº 4, pp.13-14 94. Virgínia RAU, “Privilégios e Legislação Portuguesa referentes a mercadores estrangeiros (séculos XV e XVI)”, in Estudos sobre História Económica Social do Antigo Regime, Lisboa, 1984, 141-200. 95. A.R.M., C.M.F., t. 1, fl. 291 vo 292: 22 de Março, publ. in A.H.M., XVII, nº 217, p. 367. 96. Idem, Ibidem, t. 1, fl. 69 vo.-75 vo: 21 de Agosto; publ. in Ibidem, nº 22, pp. 376-377.

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na administração da fazenda. Benoco Amador recorreu a uma viúva, Petronilha Gonçalves Ferreira, mulher de Esteves Eanes de Quintal, o que lhe propiciou a posse e usufruto de extensas propriedades em Santo António e na Ponta do Sol. O património não mais parou de aumentar mercê da intervenção em múltiplas operações de comércio e de crédito, tornando-se num importante proprietário e empresário97. João Salviati, que se casou com Isabel Álvares de Abreu, tornou-se num dos mais importantes proprietários em Câmara de Lobos e Arco da Calheta. A capitania de Machico exerceu uma atracção especial por alguns dos italianos. Assim, os irmãos Quírio e Rafael Catanho, que se fixaram na ilha a partir de princípios do século XVI, preferiram o convívio dos capitães da vila, tendo o primeiro casado com Maria Cabral, filha de Tristão Teixeira, terceiro capitão. Mais tarde, uma filha do enlace, Ângela Catanha, veio a casar com Diogo Teixeira, quarto capitão da capitania, que por ser inválido teve como tutor o sogro98. Outro genovês, João Usodimare, que também procurou o convívio do capitão de Machico, tendo desposado a primeira filha, Tristoa Teixeira99. Entretanto Urbano Lomelino fixara-se em Santa Cruz onde casou com Joane Lopes, filha de Isabel Correia de Santana. Os italianos conseguiram penetrar na sociedade e economia madeirense, adquirindo ai uma posição de relevo. A adaptação à nova sociedade foi rápida, pelo que desde muito cedo surgem ao lado dos madeirenses na defesa da ilha contra as investidas dos corsários, como sucedeu em 1566, ou em África, na defesa das praças marroquinas. Tal como já referimos, a Madeira e as Canárias, pelo fornecimento de urzela e açúcar, cativaram a atenção dos italianos. Nos séculos XV e XVI da relação dos estrangeiros ai residentes, contabilizamos 50 (5,2) e noventa e dois (16,9) mercadores italianos, respectivamente na Madeira e Canárias, representando, num e noutro caso, a comunidade estrangeira mais importante. A par disso, na Madeira para os séculos XV e XVI, acrescentam-se mais outros 54 italianos, que de uma forma directa intervêm na vida socio-económica madeirense. A origem distribui-se da seguinte forma: CIDADE CREMONA FLORENÇA GENOVA ITALIA TOTAL

MERCADORES NÚMERO % 13 40 50 1 104

São maioritariamente do Funchal conforme se poderá verificar: LOCAL

SITUAÇÃO VIZINHO ESTANTE CALHETA 2 4 FUNCHAL 42 5 PONTA DE SOL 1 RIBEIRA BRAVA 1 SANTA CRUZ 5 1

97. João de Sousa, “Notas para a História da Madeira. Os italianos na ilha. Benoco Amador”, in Cidade Campo, supl. de Diário de Noticias, Funchal, 6 de Maio, 1984, 6. 98. Confronte-se Gaspar Frutuoso, ob. cit., 152. 99. Gaspar Frutuoso (Ibidem, 159), refere que esse casamento da filha do capitão do donatário de Machico foi com Micer João Baptista, todavia esta opinião tem sido contestada por inúmeros estudiosos que apresentam a João Usodimare como parceiro da filha do capitão; para tal argumenta-se o facto de Micer João no seu testamento (“Misser João Baptista (1512). O Vigário Rodrigo Afonso Usademar (1581)”, in A.H.M., vol. II, 1932, 23) não a referenciar, como seria natural; confronte-se Peter CLODE, Registo Genealógico de famílias que passaram à Madeira, Funchal, 1952, 85, 321.

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Os italianos, em especial os florentinos e os genoveses, conseguiram implantar-se na Madeira, desde meados do século XV, como os principais agentes do comércio do açúcar, alargando depois a actuação ao domínio fundiário, por meio da compra e laços matrimoniais100. Na década de 70, mediante o contrato estabelecido com o senhorio da ilha para o comércio do açúcar, detinham uma posição maioritária na sociedade criada para o efeito, sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer Leão101. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão Colombo, João António Cesare, Bartoloneu Marchioni, Jerónimo Sernigi e Luís Dória. E, finalmente, em princípios do século XVI, surgiu outro grupo mais numeroso, que alicerçou a comunidade italiana residente. Nos últimos tivemos: Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castigliano, Chirio Cattaneo, Sebastião Centurione, Luca Salvago, Giovanni e Lucano Spínola. Os mercadores-banqueiros de Florença surgem na ilha e evidenciando-se nas transacções comerciais e financeiras em torno do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde detinham uma privilegiada posição junto da coroa, mantêm e orientam uma extensa rede de negócios que abrange a Madeira e as principais praças europeias. Primeiro conseguiram da Fazenda Real o quase exclusivo comércio do açúcar resultante dos direitos reais por meio do contrato. Depois apoderaram-se do açúcar em comércio, tomando o exclusivo dos contingentes estabelecidos pela coroa, em 1498102. Na primeira metade do século XVI, Bartolomeu Marchioni, Lucas Giraldi e Benedito Morelli com uma clara intervenção no trato do açúcar103. A manutenção da rede de negócios fazia-se por meio da intervenção directa dos mercadores ou por meio do recurso a procuradores e agentes substabelecidos. Benedito Moreli, em 1509-1510, estava representado na ilha por quatro agentes que tinham o encargo do recebimento do açúcar dos quartos: Simão Acciuolli, João de Augusta, Beneco Amador, Cristóvão Bocollo e António Leonardo104. Marchioni, entre 1507-1509, fazia-se representar em operações de idêntica índole por Feducho Lamoroto105. João Francisco Affaitati, cremonês, agente em Lisboa de uma das mais importantes companhias comerciais da época, teve uma activa participação no comércio, entre 1502 e 1526, por meio de contratos de compra e venda dos açúcares dos direitos reais (1516-1518, 1520-1521 e 1529) e pagamentos em açúcar a troco de pimenta106. Ele actuava, quer em sociedade com Jerónimo Sernigi, João Jaconde, Francisco Corvinelli e Janim Bicudo, quer isoladamente, tendo para o efeito como feitores e procuradores na ilha Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capela de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi e Maffei Rogell. 100. Sobre a presença italiana na Madeira veja-se Charles VERLINDEN, ob. cit.; M. do Rosário: Genoveses na História de Portugal, Lisboa, 1977; Prospero PERAGALLO, Cenni in torno alla colonia italiana in portogallo nei Secoli XIV, XV e XVI, GÈnova, 1882; Domenico GEOFRI, “Le relazioni fra Genova e Madera nel I decenio del secolo XVI”, in Studi Colombiani, III, Génova, 1952, 435-483; Carlos PASSOS, “Relações Históricas Luso-italianas”, in Anais da Academia Portuguesa de História, 20 SÈrie, VII, Lisboa,1856, 143-240; “Italianos na Madeira”, in A.H.M. V (1937), 63-67; Jacques HEERS, Gênes au XVE siècle, Paris, 1977, 335; Virgínia RAU, “Uma família de mercadores italianos em Portugal no século XV: os Lomellini”, in Estudos de História, I, Lisboa, 1968, 33-36. 101. Virgínia RAU, O Açúcar na Madeira (...), 29. 102. Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense de 1500 a 1537 (...), 61-65. 103. Ibidem, 61-91; Idem, Os Estrangeiros na Madeira, 88, 115-117 e 125-128. 104. Idem, Os Estrangeiros na Madeira, 19, 27, 60, 105, passim. 105. Ibidem, 115-118 106. Ibidem, 22-26.

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A penetração do grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada107. O usufruto de privilégios reais e o relacionamento familiar conduziram à plena inserção na aristocracia terratenente e administrativa. Na maioria, apresentam-se como proprietários e mercadores de açúcar e instalam-se nas terras de melhor e maior produção. Por compra ou laços matrimoniais, tornam-se nos mais importantes proprietários de canaviais. Sucedeu, assim, com Rafael Cattaneo, Luís Dória João Esmeraldo, João e Jorge lomelino, João Rodrigues Castelhano, Lucas Salvago, Giovanni Spinola, João Antão, João Florença, Simão Acciaolli e Benoco Amatori. Também não se coíbem, depois de naturalizados, de intervir na vida local. A intervenção na estrutura administrativa madeirense abrangia os domínios mais elementares do governo, como a vereação e repartições da fazenda, que incidem sobre a economia açucareira. Assim, surgem, como almoxarifes e provedores da fazenda. A par disso têm uma forte intervenção na arrecadação dos direitos reais, surgindo ainda como rendeiros. A presença da comunidade italiana na ilha, não obstante as resistências iniciais, foi salutar, porque eles, para além de propiciar o maior desenvolvimento das relações de troca em torno do açúcar, foram portadores das novas técnicas e meios de comércio. A eles se deve o incremento das companhias e sociedades comerciais e o uso das letras de câmbio nas vultuosas operações comerciais. Os florentinos experientes nas transacções financeiras, surgem ai com grande destaque, sendo de realçar a acção de Feducho Lamoroto e de Francisco Lape108. A par disso a rede de negócios em torno do açúcar, foi recriada e incentivada pelos mercadores, através de familiares e amigos lançaram uma forte rede de negócios. O domínio atingiu, não só, as sociedades criadas no exterior e com intervenção na ilha, mas também, o numeroso grupo de agentes ou feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. São várias as sociedades, em que intervêm os italianos, para o comércio do açúcar ou arrendamento dos direitos reais. Aí destacaram-se Bendito Morelli e Bartolomeu Marchioni, sobrinho e tio, que viviam em Lisboa e actuavam em conjunto no trato do açúcar por meio de outros italianos, que foram na ilha agentes, como Feducho Lamoroto, Benoco Amador. A par disso participaram em sociedade com outros italianos - Simão Acciauolli, Luís Dória e António Spínola - no arrendamento dos direitos de 1516.1518109. Entretanto, no período de 1506 a 1508, Benoco Amador, tio de Simão Acciauolli, que foi procurador, havia participado noutras duas sociedades para arrendamento dos direitos do açúcar e da alfândega, com outros compatricios - Quirino Catanho, Feducho Lamoroto. Quanto ao comércio de açúcar, desde a década de setenta, que vinham actuando em sociedades para tal fim. Na primeira que conhecemos participavam Batista Lomelino, Francisco Calvo e Micer leão, tendo como objectivo o comércio de todo o açúcar produzido na ilha. A partir de 1498 com o estabelecimento das escápulas de comércio surge, em 1502, uma sociedade em que intervêm António Salvago, João Francisco Affaitati, Jerónimo Sernigi, Francisco Corvinelli e João Jaconde, todos italianos, para a venda das trinta mil arrobas das escápulas para os portos mediterrâneos Águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. O primeiro detinha na ilha uma importante rede de feitores ou procuradores, de que se destacam Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capello 107. Ibidem, 23. 108. Alberto VIEIRA, ob. cit., 59. 109. Fernando Jasmins PEREIRA, O Açúcar Madeirense (...), 68-93.

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de Capellani, João Dias, Matia Manardi e Maffei Rojel 110. Tudo isto girava em torno do comércio do açúcar de que o mundo mediterrânico, dominado pelos italianos, deveria consumir 43% do valor exportado da ilha, conforme o estabelece a escápula de 1498. Aqui 30% ficava em Itália, sendo 42% para Veneza, 36% para Génova e os restantes 22% para porto Liorne e Roma.

ESCAPULAS MERCADO MERCADORES

ITÁLIA arrobas % 36.000 30 140.626 52 407.530,5 80

Lisboa. 1563

OUTROS DESTINOS arrobas % 78.000 70 130.896 49 112.900 21

Numa análise comparada, entre o valor das escápulas, o açúcar exportado e a intervenção dos mercadores constata-se a afirmação dos italianos no comércio do produto. Note-se que eles, de acordo com o valor estabelecido para as escápulas, apenas tinham direito a 30% do açúcar exportado,

110. Alberto VIEIRA, ob. cit., quadros nos. 13 e 14, pp. 204-205.

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mas na realidade receberam no período de 1490 a 1550, mais de metade do açúcar que saiu da ilha, deste 97% foi para ai enviado na década de 1501 a 1510. Para o período em que vigoraram as escápulas (1498-1499) apenas se conhece a saída de 2.909 arrobas para tal destino, isto é, apenas 8% do total de arrobas para ai consignadas. É de salientar que o comércio de açúcar madeirense para Itália se processou com maior incidência no período de 1490 a 1510, momento em que o mercado e mercadores daí oriundos encontraram condições favoráveis junto da coroa nos diversos contratos de compra de açúcar. A par disso as operações de comércio em torno do açúcar, envolvendo italianos têm o apogeu na década inicial de quinhentos, decaindo de forma acentuada nas seguintes. Aí merece destaque especial a acção de quatro italianos que controlaram 64% do açúcar transaccionado. MERCADORES João Francisco Affaitati Feducho Lamoroto Bartolomeu Marchioni Benedito Morelli Matia Manardi Outros TOTAL

ACÚCAR ARROBAS 177.907,5 32.039,5 51.238 50.348 134.423,5 179.604 625.559,5

% 28,5 5 8 8 21,5 29

João Francisco Affaitati, mercador cremonês de família nobre, chefe da sucursal em Lisboa da companhia Affaitati, uma das principais da praça, foi no período de 1502 a 1529 o principal activador do comércio do açúcar madeirense, tendo transaccionado sete vezes mais açúcar que todos os portugueses. Em 1502 arrematou as escápulas de águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza. Ainda, conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco Corvinelli a venda do açúcar dos direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e actuou em operações diversas de compra directa de açúcar e da troca por pimenta ou dívidas 111. Para manter as operações comerciais na ilha contava com um grupo numeroso de feitores ou procuradores: Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Matia Minardi, Capella e Capellani, João Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Por outro lado aceitou procuração de Garcia Pimentel, Pedro Afonso de Aguiar e João Rodrigues de Noronha. O grupo inicial é na maioria formado por italianos, ligados ao comércio do açúcar, enquanto os segundos pertencem a algumas das famílias madeirenses mais influentes. Também Cristóvão Colombo fora atraído pelo ouro branco e beleza das donzelas madeirenses, pois cá esteve, certamente em Agosto de 1478, ao serviço de uma sociedade de Ludovico Centurione, por intermédio do representante em Lisboa, Paolo di Negro, para comprar 2400 arrobas de açúcar e conduzi-las a Génova. Depois, envolveu-se matrimonialmente com uma filha 111. Sabe-se disso a partir de um acto notarial de 25 de Agosto de 1479 sobre o não cumprimento de um contrato de remessa de açúcar da Madeira.

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Janela dita de Colombo. Quinta da Palmeira. Pertenceu a Harry Hinton

de Bartolomeu Perestrelo, também de origem italiana, capitão do donatário no Porto Santo. A segunda situação fá-lo permanecer nas ilhas da Madeira e Porto Santo, por algum tempo, até à saída para Castela, retornando às ilhas, em 1498, aquando da terceira viagem. Diz a tradição, baseada no testemunho de Álvaro de Azevedo112 que o mesmo, aquando da estância no Funchal, teria repousado nos aposentos de João Esmeraldo, no Funchal. A dedução, sem qualquer prova documental, parece-nos estranha pois Cristóvão Colombo nunca trocaria o convívio dos compatrícios pelo fausto dos aposentos do referido mercador flamengo. Num e noutro momento havia já no Funchal uma importante comunidade de italianos, onde predominavam os genoveses. Em 1478, quando Colombo se deslocou pela primeira vez ao Funchal, deveria ter contactado com Francisco Calvo, Baptista Lomelino e António Spínola. Aquando da segunda estância, já casado, poderia associar-se ao convívio de outros patrícios, como João António Cesare, os Dórias. E, finalmente, em 1498, na terceira viagem que fez às Índias, à passagem pelo Funchal a comunidade italiana era muito importante, tendo-se juntado aos já existentes, os florentinos Bartolomeu Marchioni, Jerónimo e Dinis Sernigi113. 112. Confronte-se Manuel C. de Almeida CAYOLLA ZAGALLO, Cristóvão Colombo e a Ilha da Madeira. A casa de João Esmeraldo, Lisboa, 1945, 34-35; Agostinho de ORNELLAS, Memória sobre a residência de Colombo na ilha da Madeira, Lisboa, 1892, 8-9. 113. Manuel C. de Almeida CAYOLLA ZAGALLO, ob. cit., 34-36.

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Em face do espírito de solidariedade que dominava a comunidade genovesa no estrangeiro, considerado um dos factores de sucesso das operações comerciais, parece-nos difícil aceitar uma atitude contrária de Cristóvão Colombo, que nos inícios da acção na península havia servido algumas casas comerciais. Os documentos privados do mesmo em lugar algum falam de flamengos, como João Esmeraldo, mas sim de genoveses, como Paulo Dinegro, Baptista Espínola, ambos com familiares na Madeira114. Todavia a tradição é mais forte que o juízo histórico, e a casa de João Esmeraldo ficará como o albergue que acolheu o ilustre navegador nas passagens pela Madeira no período de 1478 a 1498.

Tribunal do Santo Oficio.

A COMUNIDADE SEFARDITA DA MADEIRA E O AÇÚCAR NO ATLÂNTICO. No Portugal dos séculos XV e XVI a comunidade sefardita detinha um papel destacado na economia e finanças115. Judeu era sinónimo de negociante116. O despoletar do processo dos descobrimentos atlânticos e os consequentes mercados e rotas comerciais fez com que a atenção estivesse para aí virada assumindo idêntico protagonismo117. A Madeira, porque assumir um papel evidente em todo o processo, será o primeiro pólo de atracção da comunidade. As perspectivas eram promissoras, pois o lançamento em meados do século XV da cultura açucareira transformou-a num dos principais mercados atlânticos. A atracção principal era o açúcar que tinha procura no Mediterrâneo e norte da Europa. E por ele a Madeira acolheu, primeiros judeus, genoveses e venezianos e, depois, flamengos e franceses. Com o açúcar estavam encontrados os ingredientes fáceis para atrair os agiotas da finança e comércio internacional. Nas ilhas foi evidente a conivência das autoridades com a presença da comunidade judaica, o que resultou em facilidades à sua fixação quando perseguidos no reino. Em finais do século dezasseis foram arrolados 94 cristãos novos, mas em 1618 o número não passou de 5, quando sabemos que em 1620 eram 58 os judeus que pagava a taxa. A presença da comunidade judaica era evidente. Os judeus, maioritariamente comerciantes, estavam ligados ao sistema de trocas nas ilhas, sendo os principais animadores do relacionamento e comércio a longa distância. A criação do tribunal do Santo Ofício em Lisboa conduziu a que avançassem no Atlântico: primeiro nas ilhas e depois no Brasil. Tal diáspora fez-se de acordo com os vectores da economia atlântica pelo que deixavam atrás um rasto evidente na sua rede de negócios. O açúcar foi sem dúvida um dos principais móbeis da actividade, quer nas ilhas, quer no Brasil. O relacionamento dos espaços com os portos nórdicos conduziu a uma maior permeabilidade às ideias protestantes, o que gerou inúmeras cuidados por parte do clero e do Santo Ofício. A incidência do comércio da

114. Cristóbal Colon. Textos y documentos completos, prólogo y notas de Consuelo Varela, Madrid, 1984, pp. 310 e 363. 115. A Bibliografia é extensa, apenas destacamos os textos de Maria José Ferro Tavares. Vide Bibliografia no final. 116. cf. José G. Salvador, Os Cristãos-novos e o comércio no Atlântico meridional, S. Paulo, 1978, 149; António José Saraiva, Inquisição e Cristãos Novos, Lisboa, 1994, 134-135. 117. Vide Maria José Ferro Tavares, os judeus na época dos descobrimentos, Lisboa, 1995.

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Madeira no açúcar, pastel e vinho conduziu ao estabelecimento de contactos assíduos com os portos da Flandres e Inglaterra, que não era bem visto pelo tribunal. Isto deverá ter favorecido a presença de uma importante comunidade, o que veio a avolumar as preocupações dos inquisidores. As perseguições movidas pelo Santo Ofício conduziram a que muitos dos judeus se refugiassem nas ilhas Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e, finalmente o Brasil. A juntar a isto está a crise da produção açucareira madeirense em contrastante com a promissora cultura nas terras brasileiras que conduziu a que a diáspora se alargasse até aqui. E de novo os judeus estarão ligados à produção açucareira118. Um dos factos comprovativos do interesse da comunidade sefardita pelo açúcar revela-se em meados do século XVI em que a crise da produção madeirense fez alargar a diáspora a novos mercados mais promissores como Pernambuco no Brasil. Para a comunidade judaica a Madeira foi o primeiro alvo da expansão europeia que os levou depois aos quatro cantos do Novo Mundo, acompanhando o rasto do açúcar e do tráfico dos escravos no atlântico. Perante isto importa conhecer qual o papel que assumiram no primeiro poiso da diáspora atlântica. Até ao estabelecimento do tribunal de inquisição em Portugal (1536) não é fácil identificar a comunidade judaica na documentação. Todavia, a presença fazia-se sentir de forma evidente em múltiplos domínios de sociedade e economia portuguesa. A xenofobia, testemunhada pela documentação, fazia com procurassem iludir as crenças religiosas, apagando todo o rasto possível. Apenas com a instituição do tribunal do Santo Ofício foi possível estabelecer o rasto do grupo de convertidos ao cristianismo, e por isso considerados cristãos-novos119. A Madeira não fugiu à regra e a xenofobia foi uma das armas entre a concorrência das diversas sociedades mercantis. Na década de sessenta o principal alvo dos madeirenses era os judeus e genoveses que monopolizavam o comércio do açúcar. Os moradores reclamaram em 1461 perante o infante D. Fernando no sentido de proibir a actividade na ilha, como compradores de açúcar ou arrendadores dos direitos120. É fácil encontrar os judeus em ligação estreita aos genoveses, controlando parte significativa do comércio rendoso gerado pelos novos espaços atlânticos. A presença nas ilhas é evidente desde os inícios da ocupação. Difícil é encontrar o rasto da presença, pois tal como nos diz José Gonçalves Salvador121 “muitos vão para as ilhas e se acobertam sob a capa de cristãos”. Os judeus estão envolvidos em todas as actividades, todavia, como nos refere Maria José Ferro Tavares, “a actividade mercantil e a ocupação principal”. E parecem ter uma predilecção especial pelos negócios baseados no açúcar. Pelo menos é a opinião de José Gonçalves Salvado122, que é peremptório em afirmar que “os hebreus sefarditas aparecem identificados com as actividades ligadas ao açúcar primeiro nas ilhas adjacentes a Portugal e depois nas demais possessões”. 118. MELLO, José António Gonsalves de, Gente da nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco, Recife, 1989; RIBEMBOIM, José Alexandre, Senhores de Engenho judeus em Pernambuco colonial 1542-1654, Recife, 1995; SALVADOR, José Gonçalves, Os Cristãos-Novos. Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), S. Paulo, 1976. 119. Para a Madeira não existe estudo completo sobre a inquisição como é o caso de Paulo Braga, A Inquisição nos Açores, P.D., 1997. 120. AHM, Vol. XV, 1972, 14-15, 3 de Agosto de 1461. 121. Os cristãos novos e o comércio Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978, 246. 122. Os magnatas do Tráfico Negreiro, S. P., 1981, 87.

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Portão dos Varadouros. Fotografia Perestrellos.1900

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A estratégia dos judeus para o domínio do mercado açucareiro do espaço atlântico passa por uma estreita aliança com os mercadores flamengos e italianos nomeadamente os genoveses, denunciada nas Cortes de 1471-72, mas continuou a progredir nos decénios seguintes. No caso do comércio do açúcar da Madeira é comum encontrar-se esta forma de actuação. Assim, quando o comércio estava sujeito ao monopólio da Coroa, surgem aliados aos Leme, Lomellini e Marchione. No caso do monopólio do comércio do açúcar com a Flandres foi uma sociedade entre os Leme e Abravanel que o controlou. Já para as cidades italianas tivemos Moisés Latam e Guedelha Palaçam, associados de B. Marchione. De acordo com o livro de estimos do açúcar do Funchal em 1494123 é evidente a presença de judeus, como Isaac Abeacar, Moisés Benagaçam e David de Negro nas transacções açucareiras, na ilha através de procuradores italianos como era o caso de Dinis Sernige, Lucas César, Sisto Lomellini. Segundo V. Rau os judeus junto com outros estrangeiros, aqui os genoveses dominavam em 1494 as transacções açucareiras com 11.373 arrobas, o equivalente a 64% do total em causa124. Esta posição não está longe da realidade e da posterior centúria, uma vez que os dados apurados entre 1490 e 1550 apontam de novo para a esmagadora presença dos mercadores italianos com 80% das operações comerciais125. Não obstante ser visível múltiplas operações de judeus e cristãos novos no Funchal, apenas foi possível identificar os seguintes mercadores com este rótulo:

A Madeira assumiu um papel fundamental na expansão do açúcar no espaço Atlântico e na definição das principais rotas e mercados do produto. O ensaio da cultura na ilha provou as elevadas possibilidades económicas no novo espaço, fruindo de terrenos férteis e de novas condições, como o recurso massivo à escravatura, que propiciaram a produção e comércio em larga escala. Foi na Madeira que o açúcar iniciou uma nova fase de fulgor que animou a economia atlântica. Os madeirenses podem ser com propriedade definidos como os arautos da expansão atlântica, mas foram os genoveses e venezianos que nos legaram o mercado. Juntam-se os judeus, que fugindo da Inquisição acompanham o processo de avanço da cultura para o Sul e Ocidente.

MERCADOR Vicente Afonso Fernão Álvares Luís Álvares Francisco Fernandes Cea Gaspar Fernandes Manuel Gonçalves Gaspar Lopes Homem Niculau Nunes Álvaro Nunes António Pereira Diogo Lopes Pereira Diogo Rodrigues, o velho Duarte Rodrigues Manuel Rodrigues Francisco Roiz Tavira João Roiz Tavira Rodrigo de Veiga Francisco Roiz Vitória126

DATAS Açúcar arrobas 1569-91 1555-66 211 1591 1591 1509-94 240 1554-1570 1560-02 1591 1594-617 1530-86 1585-94 157,5 1509-94 158 1594 1576-626 1568-626 1594 1591

123. Publ. V. Rau, O açúcar na Madeira, Funchal, 1962. 124. Ob. cit., p. 24 125. O Comércio Inter-Insular, Funchal, 1987, 130. 126. é o único com o designativo de judeus, os demais são cristãos-novos.

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Obs. Natural de Olivença vizinho de Santa Cruz Loja Rua dos Mercadores Natural de Guimarães Natural de Ponte Lima

Natural de Braga, feitor da alfândega e rendeiro Vizinho de Nossa Senhora do Calhau

Natural da ilha residente em Lisboa

O AÇÚCAR MADEIRENSE NOS SÉCULOS XVIII A XX No decurso do século XVIII a Madeira manteve-se como mercado importador do açúcar brasileiro. Os hábitos ancestrais de consumo e existência de algumas industrias de conservas e casquinha implicaram o movimento de importação, numa altura em que a ilha havia deixado de produzir. Por força disto as relações comerciais com o Brasil assumem particular significado, ainda que condicionadas pelo politica de monopólio. A partir da Baia, Rio de Janeiro, ou Recife chegava o açúcar, farinha de pau e mel127. Dona Guiomar de Sá assumiu aqui um papel destacado na segunda metade do século XVIII128. À sua conta entraram 2058 arrobas de açúcar branco e 438 de mascavado, com origem no Rio de Janeiro ou em Pernambuco. Mesmo depois de reabilitada a cultura da cana continuou a importar-se açúcar e nomeadamente o melaço, que depois tanto podia ser transformado em açúcar ou álcool para adubar os vinhos. A entrada do melaço estava permitida desde 1858. Com o regímen sacarino em 1895 foi uma das formas de compensação às fábricas matriculadas, pela compra da cana a preço elevado e da permissão de entrada do álcool dos Açores e continente. Até 1904 temos informação do registo de 7 fábricas, mas da de W. Hinton assume uma posição hegemónica com 50% do rateio do melaço a importar de acordo com o volume de cana adquirida. A fábrica do Torreão importou melaço de diversas proveniências, nomeadamente de Hamburgo, Demerara, Benguela, para fabrico de álcool. Os dados da importação do melaço revelam um incremento na década de oitenta e nos primeiros anos do século XX.

Portão dos Varadouros. Gravura de Frank Dillon.1850.

127. João José Abreu de Sousa, O Movimento do Porto do Funchal e a conjuntura da Madeira de 1727 a 1810. Alguns aspectos, Funchal, 1989, pp.135-172 128. Bernardete Barros, Dona Guiomar de Sá Vilhena. Uma mulher do Século XVIII, Funchal, 2001,pp.123-127

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Não obstante desde 1853 termos os primeiros ensaios da produção de açúcar só passados dez anos temos notícia das primeiras exportações para o continente e Açores, todavia representava uma percentagem reduzida. Em 1869 temos informação que o iate português Ligeiro carregou açúcar na Ponta de Sol com destino a Lisboa129. Além disso sabemos ainda que os métodos usados tornavam o produto muito dispendioso e pouco competitivo, pelo que a persistência da produção só foi conseguida mediante medidas proteccionistas. Desta forma o número de fábricas foi reduzido e acabou por ficar centralizado no engenho do Hinton. Até à primeira Guerra Mundial a produção foi em crescendo mas sem alcançar as mil e quinhentas toneladas. A entrada do açúcar madeirense estava isenta de direitos e só para o período de 1870 a 1876 se cobrou 25% do que se lançava sobre o demais açúcar. A suspensão por cinco anos, sendo depois novamente prorrogada por outros cinco anos, acontece por intervenção dos deputados madeirenses, que reclamavam a abolição da lei de 27 de Dezembro de 1870130. A de 1903 confirma as regalias, estabelecendo que o açúcar da ilha chegava ao continente isento de direitos. Tais condições favoreceram a entrada do açúcar madeirense no mercado nacional, situação que se alterou em 1926, passando o açúcar e melaço a serem considerados estrangeiros para efeitos fiscais131. Mesmo assim com tantas regalias os madeirenses tinham dificuldade em assegurar a venda do seu açúcar no mercado continental, nomeadamente a partir da década de oitenta marcada por uma tendência muito forte de baixa de preço no mercado mundial. Este conjunto de condições fez com que a principal aposta dos engenhos madeirenses fosse para o fabrico de álcool e aguardente. A informação disponível sobre o comércio de açúcar com o reino é escassa, permitindo elucidar sobre a situação. O período que antecede a guerra foi o momento mais significativo. No final da centúria anterior o movimento ascendente foi entravado pela doença em 1882.

Ruinas do Engenho do Torreão .2002

Anos

Ano 1884 1885 1886 1887 1888 1889 1890 1891 1892 1893 1897 1898 1899

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Melaço em toneladas 365 767 1.424 1.699 1.038 1.425 1.356 1.949 596 65 962 1.469 1.539

Ano 1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1913

Melaço em toneladas 1.477 1.116 999 908 2.311 2.299 777 395 109 198 637 362 0,6

1863 1867 1868 1869 1870 1871 1907

Açúcar em toneladas 110 159 252 322 250 6 723

Anos 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914

Açúcar em toneladas 720 1.650 1.869 2.456 3.324 3.467 3.922

129. ARM, Alfândega do Funchal, livro 164, fl.1971vº. 130. Pauta Geral das Alfandegas do Continente de Portugal e Ilhas Adjacentes. Nova edição official contendo as alterações decretadas até Julho de 1882, Lisboa, 1882, pp.319-320; Discurso pronunciado em 20 de Março de 1876 na sessão de abertura da Eschola Central…, Funchal, 1876, p.76 131. Ordens de Serviço da Direcção da Alfândega do Funchal-1926, Funchal, 1926, p.26

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A fábrica do Torreão apresentava um valor significativo das exportações, como se poderá verificar dos dados conhecidos para o período de 1866 a 1918132: ANOS

866 1867 1868 1869 1870 1871 1872 1873 1876 1877 1878 1879 1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1895 1896 1897

MADEIRA Consumo em Kgs

Metrópole

Açores

(em Kgs) 90.000 61.743 168.183 165.469 14.960 152.493 203.650 78.750 78.750 133.400 202.500 459.594 346.752 339.119 316.386 290.161 153.151 79.537

(em Kgs)

900 4.815 9.885 66.140 81.220 114.915 146.475 73.035 47.595 3.045 285 51.514 13.470

ANOS

1898 1899 1900 1901 1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918

MADEIRA Consumo em Kgs

685.000 902.000 896.000 1.004.000 1.099.000 1.135.000 1.029.000 1.228.000 1.278.000 1.304.000 1.290.000 1.33.220 1.656.310 1.377.599 1.900.000

132. Diplomas Principaes que interessam ao Regímen Saccharino da Madeira, sd., sl.

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Metrópole

Açores

(em Kgs)

(em Kgs) 3.225 2.925 4.220 33.900 25.050 4.800

722.903 720.270 1.650.670 1.868.050 2.456.850 3.368.550 3.467.830 3.922.900 4.176.644 3.713.000 2.381.000 627.000

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A Madeira, ao mesmo tempo que exportava açúcar para o continente e Açores, também o importava de Angola e Moçambique, como se poderá verificar pelos dados disponíveis para 1878 a 1909. A situação acontece porque havia sido atribuído o privilégio de importação de 550.000 por ano Anos 1878 1879 1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887 1888 1889 1890

Açúcar em kgs 77.687 28.766 14.423 17.100 12.635 7.678 32.566 14.993 1.665 107.058 334.171 534.953 629.090

Anos 1891 1892 1893 1894 1895 1896 1897 1898 1899 1900 1901 1902 1903

Açúcar em kgs 577.843 117.368 288.909 342.989 333.686 113.033 154.658 200.571 250.571 220.774 116.679 187.026 560.735

Anos 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1911 1912 1913 1914 1915

Açúcar em kgs 547.467 223.810 87.985 53.337 31.767 26.164 369.996 728.527 541.486 558.481 549.985

O regime político estabelecido a partir de 1926 confirmou a hegemonia da fábrica Hinton, dando-lhe a estabilidade necessária para o controle do mercado e garantir o lucro que há tanto tempo reclamava. A fábrica insistiu sempre junto das autoridades nas elevadas perdas da safra, ameaçando por diversas vezes encerrar as portas. Em 1969 a situação era crítica. O constante aumento da mão-de-obra e a perda de qualidade da cana reforçou a ameaça, de que resultou o compromisso por parte do Estado de os compensar133. A situação perdurou até que a mudança de regime e a nova realidade político-económica torno insustentável a situação. A fábrica do Torreão, perdidas as regalias monopolistas encerrou as portas e a ilha deixou de produzir açúcar, passando a uma situação de dependência do mercado externo, nomeadamente das refinarias do continente.

133. De acordo com Relatório sobre as Industrias de Açúcar e Álcool da Madeira, Administração–Geral do Álcool, Lisboa, 1972. As perdas do Hinton em 1971 foram estimadas em 5.125.000$00.

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Engenho do Hinton. 2002

A minha opinião sobre a interpretação da lei de 24 de Setembro 1903 com relação ao fabrico do assucar de melaço importado e à exportação do assucar de canna da Madeira para o continente do reino. No artº.5º é permittido o fabrico do assucar de melaço importado livre de todo e qualquer imposto. No artº. 6º permitte a exportação do assucar de canna da Madeira para o Continente do reino livre de direitos. O § único diz, que da quantidade do assucar de canna da Madeira e com relação à sua entrada livre de direitos no reino, será deduzida a quantidade de assucar de mellaço importado que for entregue ao consummo no archipelago, sem dizer se essa deducção é feita na alfandega de destino ou se é deduzida pela fiscalisação da fabrica determinando que só seja exportado livre de direitos o assucar de canna da Madeira depois dessa deducção(o que me parece mais coherente). Se quisermos interpretar a lei de forma a que o assucar de canna da Madeira quando exportado para o continente seja deduzido o assucar do melaço, na alfandega destinatária, é o mesmo que dizer que o assucar de melaço pagará direitos como estrangeiro, quando pelo excesso de produção do assucar de canna da Madeira, nos virmos obrigados a exportalo para o Continente, parecendo neste caso que a lei limita a producção do assucar de canna, quando o espírito do legislador é exactamente o contrario, foi lemitar a producção do assucar do melaço para que seja consumido unicamente na Madeira ou no archipelago e em quantidade não superior a 50% do assucar da canna, e serem essas as compensações que a lei dá ao fabricante matriculado para o pagamento elevado do preço da canna e da aguardente da mesma. Quanto mais comprar de canna e aguardente, meior deve ser a compensação o que se não dá interpretando doutra maneira. O artº 7º diz que, quando a quantidade de assucar importado para refinar e o assucar de canna da Madeira for em quantidade egual ao do assucar do melaço importado que for entregue ao consummo no archipelago e quando exportado, pagará nas alfandegas destinatárias como se fosse estrangeiro. É isto o que me parece a melhor interpretação à lei, visto ella ser feita para proteger a agricultura, dando compensações às fabricas matriculadas pela obrigação da compra de canna e aguardente, desenvolvendo a agricultura, e nunca limitando-a, e não é quando essa agricultura chegou ao seu auge e que as fabricas são obrigadas a comprar maior quantidade de canna e aguardente, que se lhe deve diminuir ou cortar por completo essas compensações. Funchal 2 de Janeiro 1909 João Higino Ferraz Arquivo de João Higino Ferraz, Copiador de cartas.1905-1913, fls-31-33

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CAPÍTULO 6

AÇÚCAR e património

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Sé do Funchal. Gravura o século XIX

AÇÚCAR E PATRIMÓNIO O Funchal definiu-se no percurso histórico da Madeira como uma cidade portuária1. Desde o início do assentamento europeu a dominância de uma economia de exportação estabeleceu determinadas funcionalidades económicas que pautaram o ritmo de vida e evolução urbanística. Por outro lado a História económica da ilha assentou na dependência externa e numa forte influência do exterior. Acresce, ainda, que a Madeira esteve sujeita a diversos ciclos económicos (e não produtivos de monocultura como erradamente se pretende afirmar) que pautaram o percurso e tiveram reflexos na vida de cidade. A dominância de culturas de exportação provocou momentos de prosperidade a que se seguiram inevitavelmente outros de crise. A elevada acumulação de capital no primeiro momento provocou o “boom” da construção e valorização urbanística, mas os momentos de dificuldade acabaram, muitas vezes, por apagar a memória. E, finalmente, nova época de prosperidade económica conduzirá a profundas alterações que são a imagem da nova realidade, de opulência. Os escombros do passado desaparecem da memória colectiva para dar lugar à nova situação. O Funchal por tudo isto foi uma cidade em permanente mutação e por isso mesmo será difícil de encontrar na malha urbana núcleos que sejam testemunho de uma paragem no tempo. Com uma economia em permanente mudança é difícil encontrar no Funchal a sobrevivência de 1.

O tema das cidades portuárias tem merecido a atenção da Historiografia nos últimos anos. Cf. A. Guimerá e Dolores Romero, Puertos y Sistemas Portuarios (siglos XVI-XX), Madrid, 1996; F. Broeze, Bridges of the Sea. Port Cities of Asia from the 16th20th centuries, Honolulu, 1989; F. W. Knight, Atlantic Port Cities. Economy, culture and Society in the Atlantic World, 16501850, Knosville, 1991

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Mapa do Funchal de Mateus Fernandes,cerca de 1570.

Mapa do Funchal de Capt. Skinner 1775.

uma cidade de uma determinada época, mas apenas os vestígios mais destacados dos momentos de prosperidade. Tudo isto porque o percurso histórico de cidade é o de uma urbe portuária. Foi a partir do porto que se desenvolveu. E o facto de ser a porta aberta ao exterior conduziu a que permanecessem alguns rasgos característicos, como o provam as torres-avista-navios e a forma concentrada de valorização do núcleo urbano em torno da alfândega e cabrestante. Aqui situavam-se as lojas e granéis de trigo. As torres altaneiras não são apenas apanágio da arquitectura madeirense, pois vamos encontra-las noutras cidades portuárias do Mediterrâneo com é o caso de Cádiz, Génova e surgem depois em Recife, S. Luís do Maranhão. Tenha-se em conta que a Casa da Misericórdia é referida por Frutuoso pela função portuária: “...curando muitos enfermos e remediando muitos pobres e necessitados, não somente da mesma ilha, mas que vêm de fora, de diversas partes e navegações, ter a ela, que é rica e abastada, e piedosa escala e refúgio de todos.”2 Entre meados do século XV e da centúria seguinte o açúcar permitiu que se traçasse os limites da nova cidade e as diversas funcionalidades do espaço. As primitivas casas de palha deram lugar às de telha, aqui levantadas de forma imponente. E as ruas de terra batida começam a ser calcetadas. A concorrência do açúcar de novos mercados produtores acabou por estagnar a economia açucareira. E só a partir da segunda metade do século XVII o vinho assumiu o papel substitutivo, mantendo-se em alta até princípios do século XIX. Daqui resultará um movimento de renovação da urbe adequando-a às novas funcionalidades. As habitações subiram em número de pisos, deixando o andar térreo de ser o espaço privilegiado de contacto para se transformar em loja de vinhos. A crise prolongada do vinho no decurso de século XIX conduziu à afirmação de novas actividades industriais com uma aposta nos artefactos, obra de vimes e bordados. Mas a crise dos anos trinta e guerra fizeram da actividade um momento fugaz. Finalmente a partir dos anos sessenta torna-se visível a transformação da cidade de acordo com as novas funcionalidades ditadas pelo turismo. A face visível da nova realidade está na construção de hotéis e serviços de apoio O recinto urbano era muito reduzido sendo envolvido por uma periferia rural. A primeira representação disso está no mapa de Mateus Fernandes (c. 1570) e na descrição de Gaspar Frutuoso (c. 1590). Ao longo da Ribeira de Santa Luzia, a mais importante em termos económicos da cidade estavam vários engenhos de açúcar. O primeiro de Zenobio Acioli estava situado no espaço envolvente do actual Bazar do Povo, um pouco mais acima tínhamos outros três engenhos (aqui só são referenciados os das viúva de Duarte Mendes e de D. António de Aguiar). Nos engenhos de Zenobio Acioli e da viúva nota-se uma arquitectura funcional definida pela actividade económica. Assim, junto ao engenho erguem-se os aposentos do proprietário. Senão, vejamos o que diz Gaspar Frutuoso do primeiro: “em sumptuosas casas dentro em uma cerca bem amurada, onde tem um engenho de açúcar e casas de purgar açúcar.”3 Já no decurso do século XVIII a cidade perdeu os rasgos de ruralidade e o recinto urbano desenvolve-se no apertado espaço entre as Ribeiras de S. João e Santa Maria. A periferia avança até à Levada de Santa Luzia onde surgem as primeiras quintas. É a imagem que nos transmite o plano do capitão Skinner (1775). A situação não se afasta da planta de Feliciano de Matos (1804). Foi a partir daqui que se sucederam as mais significativas alter-

Mapa do Funchal do Brigadeiro Oudinot.

2. 3.

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Livro Primeiro das Saudades da Terra, p. 117. Livro segundo das Saudades da Terra, P.D., 1979, p. 112.

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Funchal hoje

ações da urbe. Em 1803, por força da aluvião pensou-se em mudar a cidade para o espaço entre o alto de Santa Catarina e o Ribeiro Seco, mas o projecto não avanço pelo que se preferiu apostar em alterações no casco urbano de modo a evitar efeitos catastróficos das novas aluviões.

AS ETAPAS - DE POVOADO A CIDADE. O Funchal, qual Fénix renascida, emergiu das cinzas do funcho que cobriam o amplo vale. Do espaço ermo, apenas coberto de funcho, e ao que parece nunca maculado pelo homem, o português fez erguer uma vila e depois fez uma rica cidade e sede de bispado. A viragem radical é traçada de modo ímpar por Gaspar Frutuoso. O retrato inicial, definido de acordo com o testemunho coevo de Francisco Alcoforado, é bastante significativo em relação à mudança operada: “chegados ao formoso vale, que de lisos e alegres seixos era coberto, sem haver outro género de arvoredo, senão muito funcho que cobria o vale até ao mar por bom espaço (...). E pelo muito funcho que nele achou lhe pôs o nome de Funchal (...). Chegado João Gonçalves ao Funchal começou a traçar a vila e a dar as terras de sesmaria...”4. Entre esta imagem e a testemunhada cerca de cento e setenta anos,

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Funchal hoje

há uma grande diferença. A fisionomia mudou, o funcho deu lugar ao amplo e rico casario: “ Grande e nobre cidade do Funchal, ali situada em lugar baixo, em uma terra chá, que do mais se mostra aos olhos mui soberba e populosa, täobem assombrada nos edifícios como nos moradores, não somente dela, mas também de toda a ilha.”5 Do funcho não havia rasto apenas o nome dado ao chão. Desde então até a actualidade a cidade não morreu, que é como quem diz esteve em permanente processo de transformação, tentando aderir às novas directrizes do progresso, expressas nas formas de ver e praticar as soluções arquitectónicas. Por isso, ao contrário do que se possa pensar, a cidade é isso mesmo, o processo de permanente construção, quer agrade ou não ao nosso modo actual modo de ver e encarar o património construído. Recorde-se que os antepassados não se regiam pelos actuais padrões, mas de acordo com as necessidades e ambições. O Funchal, ao contrário de Pompeia, submergida pelas cinzas e por isso mesmo mantida intacta para gáudio de turistas, foi primeiro uma vila e depois cidade em permanente transformação. Para isso contribuíram os momentos de fulgor económico da ilha, que proporcionavam o dinheiro para que a cidade se embelezasse com ricos palácios e templos religiosos, se defendesse com imponentes fortificações. Na falta de dinheiro acumulado, primeiro com o comércio do açúcar e, depois, do vinho a cidade não teria adquirido a monumentalidade e riqueza de elementos decorativos que alcançou. Não passaria de um fantasma. Talvez, por isso mesmo, alguns tenham pretendido definir, ainda que erradamente, dois momentos na vida da cidade: a cidade do açúcar e a cidade do vinho. Acrescente-se que são destes momentos os vestígios mais evidentes da transformação da malha urbana e da arquitectura dos edifícios, de que restam ainda hoje largos testemunhos. No princípio da ocupação definiram-se duas áreas de assentamento: uma ribeirinha para as gentes ligadas à actividade oficinal e do mar, outra interior onde a nova aristocracia resguardava os aposentos e haveres do olhar dos intrusos trazidos pelo mar. Do primeiro momento pouco resta, pois dos escombros fez-se erguer a cidade e a cantaria foi reutilizada. Apenas se poderá assinalar aqui aquilo que se definiu com a zona velha da cidade, sujeito como é óbvio às inevitáveis alterações. Depois, a partir do último quartel do século XV, começou a estabelecer-se a ligação entre os dois mundos, por intermédio dos mercadores. A partir de uma rua traçada junto ao calhau, entre as ribeiras de Santa Luzia e S. João, começou a surgir a vila dos mercadores de açúcar, que fez avançar os tentáculos para Norte e Leste, abrangendo os primeiros núcleos de povoamento. A arquitectura da nova vila contrasta com a das anteriores, pela funcionalidade e riqueza. As casas térreas deram lugar às de sobrado, que passaram a ser cobertas de telha, enquanto o espaço interior ganhou espaço e maior comodidade, associando-se a ele o armazém. As cantarias negras que delimitavam as entradas e as janelas são trabalhadas por exímios pedreiros. Portas adentro, há espaço para tudo. O quotidiano interioriza-se, surgindo espaços para o negócio, permanência e lazer. As sessões da câmara realizaram-se algumas vezes em praça pública, no adro da igreja, até que se construiu os paços do concelho. Assim sucederá em muitas das novas habitações que começaram a surgir nas duas décadas finais do século XV, sendo exemplo disso os imponentes aposentos mandados erguer por João Esmeraldo, na rua que foi baptizada com o seu nome, ou com

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outros como os de Pero Valdavesso, Francisco Salamanca, Tristão Gomes, Tristão Vaz de Cairos. Todos estavam vinculados directamente à produção e comércio do açúcar. No alto, num arrife onde depois se ergueu o convento de Santa Clara, e depois junto ao calhau erguiam-se altaneiros os aposentos do capitão do Funchal, a primeira figura da vida do lugar. A imponência e fausto quotidiano dos salões e imediações não deixavam dúvidas a qualquer forasteiro: ali vivia o principal da cidade. Visto do mar o actual Palácio de S. Lourenço impõe-se na paisagem. O crescimento da vila fez-se até 14856 de uma forma desordenada. Somente a partir de então ficou definido um plano para o novo espaço urbano, que daria origem à nova cidade. D. Manuel doou aos funchalenses o chão, conhecido como o Campo do Duque, para aí se erguer uma praça, igreja, paços do concelho e alfândega. Tal como se pode concluir das ordens do mesmo os funchalenses tinham plenos poderes para expropriar terrenos e estabelecer o novo traçado. Iniciava-se então a destruição dos pequenos aglomerados de casas de palha para dar lugar à nova urbanização. Podemos assinalar aqui o primeiro atentado contra o primevo património arquitectónico do Funchal. Delimitado por quatro pilares, símbolos dos poderes instituídos, foi traçado o recinto urbano capaz de levar a vila à condição de cidade (1508) e depois sede de bispado (1518). Entretanto o aformoseamento da vila continuava. Desde finais do século XV que se recomendava o calcetamento das ruas e a substituição das pontes de madeira por novas de cantaria. Mas estas e outras recomendações concernentes ao aprumo da vila não conquistaram sempre a adesão dos funchalenses que se queixavam das dificuldades económicas do comércio do açúcar, quando na realidade haviam gasto os haveres em novos aposentos. A cidade, que por comodidade poderemos designar dos mercadores de açúcar, anichou-se junto ao calhau no acanhado espaço entre as ribeiras de Santa Luzia e de S. João. A dos mercadores do vinho para além de devorar o espaço avançou encosta acima, definindo o prolongamento das ruas saídas da dos mercadores (hoje da alfandega) e de um cruzamento de novas. Mais uma vez entrou num prolongado processo de transformação que lhe atribuiu parte da actual fisionomia. Pensou-se até em transferi-la para um lugar mais seguro no alto de Santa Catarina. Mas o destino estava traçado pelo que sobre o antigo foram surgindo novos templos para a devoção e novos espaços para moradia, servidos de amplos armazéns, tudo isto engalanado com as latadas de vinhas e rematado com uma imponente cortina defensiva. De noite a cidade intra muros poderia dormir descansada. Com o toque do sino de correr os portões haviam-se fechado e, por isso não havia lugar a folgares fora de horas. No tradicional espaço de animação comercial, situado na Rua da Alfandega e circunvizinhas surgem outros testemunhos arquitectónicos de igual pujança. Alguns dos palácios do tempo do fulgor açucareiro foram transformados para as novas funções e enriquecidos com novos elementos decorativos da época, enquanto as pequenas casas térreas deram lugar à nova arquitectura em voga. Mais tarde muitos dos espaços foram enobrecidos pela burguesia comercial inglesa ou americana, que lhe enxerta elementos do classicismo. 6.

4. 5.

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Relação de Francisco Alcoforado, publ. José Manuel de Castro, Descobrimento da Ilha da Madeira ano de 1420. Epanáfora Amorosa…, Lisboa, 1975, p.92 Gaspar Frutuoso, Livro Segundo as Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.109

ARM, RGCMF, t. I, fls.85-286vº, 5 de Novembro de 1485, publ. Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, pp.189-190; fls.25-25vº, 3 de Outubro de 1486, publ. Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, pp. 200-201; fls.25vº-26, 20de Novembro de 1486, publ Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, p.202; fls. 163vº-164vº, 17 de Julho de 1488, Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVI, 1973, pp.212-213.

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Retábulo da Capela dos Reis Magos. E. Calheta

A cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (vinha, cereais), não se resumiu apenas à intervenção no processo económico. Ela foi marcada por evidentes especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dela se serviu para firmar a dimensão económica. A importância a que o sector comercial lhe atribuía conduziu a que fosse uma cultura dominadora de todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer os contornos de uma nova realidade social. Foi precisamente a tendência envolvente que levou a Historiografia a definir o período da afirmação como o Ciclo do Açúcar. Aqui não estávamos perante uma aplicação da teoria dos ciclos económicos, mas pretendia-se subordinar a tendência para a afirmação da cultura na vida económica e social com este conceito. A omnipresença da cultura, as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada levou alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção assentes na monocultura. O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da ilha. Sucedeu assim até meados do século XVI e, depois, a partir de finais do século XIX, tudo mudou. A riqueza cumulou os proprietários mas também a arraia-miúda, sendo um factor de progresso social. Com ele ergueram-se igrejas - a Sé do Funchal é um exemplo disso -, amplos palácios que se rechearam de obras de arte de importação, testemunhos evidentes estão no actual Museu de Arte Sacra. A arte flamenga na ilha pode muito bem ser considerada um dom do açúcar8. O progresso sócio-económico da ilha, o protagonismo na expansão atlântica — nos descobrimentos e defesa das praças africanas — só foi conseguido à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença de condição social, fruíram da riqueza. Até a opulência e luxúria da própria coroa, lá 8.

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Cf. Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Lisboa, 1997; David Ferreira Gouveia, O Açúcar e a Economia Madeirense (1420-1550). Consumo de Excedentes, in Islenha, nº.8 (1991), pp.11-22

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

longe no reino, foi conseguida, por algum tempo, com o açúcar que a coroa arrecadava. A imagem que Gaspar Frutuoso nos transmite do Funchal no século XVI é de uma cidade mergulhada no luxo e opulência. Foi isso que encontraram os corsários franceses em 1566. “…estando a cidade do Funchal no mais alto e próspero estado que podia ser, mui rica de muitos açúcares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais, (…) a mais e melhor riqueza daquela terra eram jóias e ricas peças de móveis ricos, que mandavam trazer de flandres e outras partes pelos contratantes e forasteiros, a troco de mercadoria da terra e de suas novidades, sem estimarem, nem sentirem a compra e custo de semelhantes coisas, ainda que custosas; porque casa houve de que levaram alcatifa que custou e valia oitenta mil reis.”9 Não temos notícia de que com açúcar se tenha comprado pinturas em Bruges, Gant ou Antuérpia, tão pouco as oficinas estariam interessadas na mercadoria, mas sabemos que com muito do dinheiro recebido nas cidades pela venda do açúcar se compraram pinturas para oferendas a igrejas ou capelas particulares. Muitos dos destacados proprietários de canaviais e engenhos estabeleceram legados pios e capelas nos templos sede da freguesia ou nas capelas que anexaram à “fazenda”. Note-se que no período de 1509 a 1534 encontramos um grupo significativo de canaviais vinculados no Funchal, Calheta, Ribeira Brava e Ponta de Sol, que poderá ser sinónimo da existência de uma capela10. LOCALIDADE Arco da Calheta

Estreito da Calheta Funchal Funchal R. Socorridos (Funchal) Ribeira Brava Funchal

PROPRIETÁRIO João Fernandes Andrade Diogo Fernandes de Andrade Pedro Gonçalves da Câmara Francisco Homem de Gouveia Fernão Favila Simão Aciaioli Francisco Betencourt Diogo de Teive António Mialheiro

Capela dos Reis Magos. Estreito da Calheta

CAPELAS

Capela Nossa Senhora da Ajuda Capela de Nossa Senhora da Natividade Capela de Nossa Senhora da Vitoria Capela de Nossa Senhora da Encarnação

Por outro lado temos algumas informações avulsas revelam-nos a compra de obras de arte por proprietários de canaviais. Zenóbio Acioli, um dos destacados proprietários do Funchal com engenho dentro do recinto urbano, construiu às suas custas a capela de Nossa Senhora da Piedade e o retábulo do Senhor do antigo convento de S. Francisco11. Em Santa Cruz, outro proeminente proprietário, construiu o convento de Nossa Senhora da Piedade, que existiu no espaço do actual aeroporto12. Temos ainda outras notícias13. 9. 10. 11. 12. 13.

Gaspar Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada,1979, pp.328, 333 Cf. Alberto Vieira, O Regime de Propriedade na Madeira. O Caso do Açúcar (1500-1537), in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira.1986, Funchal, DRAC, 1989, pp.539-611. ARM, JRC, cx.148, no.1, 23 de Abril de 1598, testamento de Zenobio Acioli. Jorge Valdemar Guerra, O Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz. Subsídios para a sua História, Islenha, 20 (1997), 125-156. David Ferreira Gouveia, O Açúcar e a Economia Madeirense (1420-1550). Consumo de Excedentes, in Islenha, nº.8 (1991), pp.17-18

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Sé do Funchal

DATA Proprietário 1491 D. Maria de Bethencourt

Obra de arte Retábulo

1511

Nuno Fernandes Cardoso

1524 1536

Isabel Lopes “Moças do Caniço”

Retábulo da invocação de N. S. da Misericórdia e S. João Baptista Retábulo Retábulo do altar mor

Igreja Madalena do Mar Capela da Madre de Deus

O Funchal foi, nos séculos XV e XVI, o principal centro do arquipélago. Desde os primórdios da ocupação da ilha que o lugar como vila e desde 150814 como cidade foi o centro de divergência e convergência dos interesses dos madeirenses. À volta anichou-se um vasto hinterland agrícola, ligado por terra e mar. O povoado, traçado por João Gonçalves Zarco, começou por ser a sede da capitania do mesmo nome mas, a riqueza do vasto hinterland projectou-o para ser a primeira e única cidade e porto de ligação ao mundo. Machico perdeu a batalha da afirmação, porque os 14.

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IGREJA/CAPELA Capela dos Mártires/ convento de S. Francisco do Funchal Igreja de S. João Latrão

ARM, RGCMF, t. I, fls.310-310vº, 22 de Agosto de 1508, publ. Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVIII, 1974, pp.514-515

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

capitães não foram capazes de acompanhar o ritmo dos funchalenses. Para muitos a Sé é o emblema da cidade do Funchal. O templo foi mandado construir por ordem de D. Manuel, iniciando-se as obras em 149315. Erguido para ser a principal paróquia da vila, acabou por ser a sede do novo bispado, criado em 1514 por Leão X a pedido de D. Manuel. A sagração ocorreu em 18 de Outubro de 151716. O monarca demonstrou particular predilecção pelo templo cumulando-o de ofertas: a pia baptismal, o púlpito, a cruz processional. Aqui misturam-se vários estilos. São evidentes os traços do manuelino, na fachada, abside, no púlpito e pia baptismal. O barroco está patente nas capelas laterais, como sucede na do Santíssimo Sacramento. Do conjunto chama-se a atenção para o cadeiral apresenta-se com duas ordens de cadeiras, ricamente trabalhadas. Em madeira dourada sobressaem esculturas com cenas bíblicas e do quotidiano madeirense do século XVI. Borracheiros e escravos convivem com santos e outras figuras em poses consideradas pouco dignas para o local onde se encontram17. A primitiva Alfândega do Funchal foi criada em 1477 no Largo do Pelourinho, por ordem da Infanta D. Beatriz, como forma de controlar a arrecadação dos direitos de entrada e saída de mercadorias. Não sabemos onde funcionou no princípio, pois só teve edifício próprio a partir do século XVI, por plano de D. Manuel. Aí esteve até 1962, altura em que mudou para modernas e novas instalações. O edifício antigo ressuscitou das ruínas com o processo autonómico, sendo adaptado para sede da actual Assembleia Legislativa Regional da Madeira, inaugurada em 4 de Dezembro de 1987. O projecto é da autoria do arquitecto Chorão Ramalho. Salvou-se o que ainda restava da época manuelina. As salas dos Contos e do Despacho são os melhores testemunhos da época. Da época da primitiva construção, são visíveis, o tecto de alfarge18, arcarias góticas com capitéis das colunas e misulas com decoração de elementos vegetais e figuras humanas, o portal armoriado da fachada norte e restos de arcarias góticas no interior. A ourivesaria e pintura da região do século XVI é uma dádiva do açúcar. Com o produto os madeirenses conseguiram elevada riqueza que ostentaram nas capelas privadas, ou em ofertas aos oragos de devoção. Igual comportamento teve a coroa para com os madeirenses19. D. Manuel foi um dos que cumulou alguns templos da ilha com tesouros. A cruz processional da Sé do Funchal é um deles.

Antiga Alfândega do Funchal, hoje Assembleia Legislativa Regional

15 . Fernando Augusto da Silva, A Sé Catedral do Funchal. Breve Notícia Histórica e Descritiva, Funchal, 1936; Manuel Juvenal Pita Ferreira, A Sé do Funchal, Funchal, 1963; António Aragão, Para a História do Funchal, Funchal, 1987, pp.99-170 16 . Rui Carita, A Igreja da Madeira nos séculos XV e XVI. O Documento de Sagração da Sé Catedral do Funchal, in I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990. 17. Emanuel Ribeiro, O Cadeirado da Sé do Funchal, Porto, 1930; Luíza Clode, O Cadeirado da Sé do Funchal, in DAHM, vol. V, nº.30, 1960, pp.33-40 18 . Rui Carita, Os Tectos de Alfarge da Madeira. Século XVI, II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1990 19. Manuel Cayola Zagallo, Algumas Palavras sobre o Património Artístico da Ilha da Madeira, AHM, 1934-49,vls. IV-VII, pp.2635, 85-100, 5-18, 129-141, 17-30, 129-138; Luiza Clode, A Arte Flamenga na Ilha da Madeira, in História das Ilhas Atlânticas, vol. II, Funchal, 1997, pp.9-18; idem, Pintura Flamenga na ilha da Madeira, Atlântico, 1985, nº.3, pp.210-217.

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Museu de Arte Sacra

S. Pedro, S. Paulo e Stº André, Séc. XVI. Proveniente da Igreja de S.Pedro, Funchal

S. Filipe, S. Tiago e os doadores. Séc. XVI. Proveniente da Igreja do Socorro, Funchal.

O museu de Arte Sacra do Funchal é hoje o principal repositório do património artístico legado pelo açúcar. Encontra-se instalado no edifício construído por ordem de D. Luís de Figueiredo de Lemos (1586-1608). São coevos a arcaria que dá para a Praça do Município e a capela. A Capela anexa é dedicada a S. Luís de Tolosa, onde ficou sepultado o bispo, depois trasladado para a Sé. A Capela apresenta um belo pórtico da cantaria negra. O Bispo D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1721) anexou-lhe o Seminário. Com o terramoto de 1748 tornou-se necessária uma nova construção que chegou à actualidade. A República em 1910 atribuiu-lhe novas funções, pois aí funcionou o liceu até 1942. A construção do novo liceu em 1950 levou à sua recuperação pela diocese que aí fez instalar o Museu Diocesano de Arte Sacra20. No conjunto do património construído destaca-se ainda a igreja e convento de Santa Clara. Na igreja merecem a atenção do visitante, o coro, os azulejos hispano-mouriscos do coro de cima e o túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos (impropriamente atribuído a João Gonçalves Zarco), 20. Manuel Cayolla Zagallo, Museu Diocesano de Arte Sacra do Funchal, in DAHM, 1956, vol. IV, nº.21, pp.25-28; Museu de Arte Sacra do Funchal. Arte Flamenga, Funchal, 1997; João Lizardo, Algumas Notas sobre Pintura Flamenga e seus reflexos no Museu de Arte Sacra do Funchal, Islenha, 26, 2000, pp.5-18; idem, Uma obra Desconhecida de Ian Gossaert Mabuse no Museu de Arte Sacra do Funchal, Islenha, 1993, nº.13, pp41-46.

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Tríptico da Encarnação. Séc. XVI. Proveniente da Igreja de Nª. Srª. da Encarnação, Funchal

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Convento de Santa Clara

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genro de Zargo, falecido em 1493, coroado com uma imponente arcaria gótica. Sob o pavimento da capela mor estão as sepulturas dos três primeiros capitães do Funchal e descendentes. Ainda, no coro de baixo podem ser presenciados um cadeirado e um órgão, que teria sido oferecido pelo rei D. Manuel. O altar-mor apresenta um sacrário em prata do séc. XVII, tendo como fundo um retábulo de Nossa Senhora da Conceição, pintado no século XX por Alfredo Miguéis. Das capelas do convento merece a nossa atenção a de S. Domingos que ostenta um conjunto de azulejos flamengos do séc. XVI, ao que consta são únicos no país. Próximo ao Convento de Santa Clara está o Museu da Quinta das Cruzes, aberto ao público na década de cinquenta com base nas colecções de César Gomes, a que se juntou em 1964 a de João Wetzler. O espaço engloba a casa de morada, a capela de Nossa Senhora da Piedade(1692) e um amplo parque ajardinado. O local tem grande significado na História da ilha, pois terá sido aqui que João Gonçalves Zarco fez erguer a casa. O edifício insere-se numa típica quinta madeirense servida de um majestoso jardim, onde a flora de diversa origem convive com algumas pedras lavradas oriundas de igrejas e outros edifícios que foram demolidos, constituído por pedras de armas, lápides comemorativas e outros elementos arquitectónicos. Aqui estão reunidos vestígios do antigo Convento de Nossa Senhora da Piedade de Santa Cruz, uma janela manuelina em basalto do Hospital velho(1507). O recheio do museu é

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diversificado podendo destacar-se o mobiliário inglês e português, composto por mesas, canapés, cadeiras , armários e arcas. Relacionado com o açúcar temos os açucareiros e as peças de mobília, ditas de caixa de açúcar. Os açucareiros existentes, maioritariamente do século XIX, são de porcelana, casquinha, prata e marfim21. Os armários e arcas feitos na ilha com madeiras do Brasil, conhecidos de “caixa de açúcar”, são uma referência obrigatória22. Parte significativa arte significativa do acervo tem origem nos conventos da cidade (Santa Clara e Mercês). A designação resulta do aproveitamento das madeiras das caixas que transportavam o açúcar do Brasil até ao Funchal. Depois generalizou-se a todo o mobiliário em madeira de vinhático e til23. Um estudo recente, do Instituto de José de Figueiredo24, sobre as madeiras das diversas peças de mobiliário do Museu, encontraram-se madeiras do Brasil, como jequitibá, imbuía, mogno do Brasil, angelim, castanheira, canela, itaúba e tapinhoa. Isto condiz com a situação das caixas de açúcar do Brasil, que segundo Warren Dean25 eram maioritariamente de Jequitiba e tapinhoa. Na colecção de escultura merecem referência: a Virgem com o menino, uma escultura flamenga do século XVI e o retábulo da Natividade, também de origem flamenga, do século XV. A colecção de ourivesaria é variada, abarcando os períodos do séc. XVI a XIX. No conjunto destacam-se algumas salvas e o porta paz em prata dourada da igreja de Santa Cruz. O mesmo poderá ser dito da colecção de porcelana, com especial relevo para a chamada porcelana da “Companhia das Índias”. Em Machico a Igreja matriz evidencia-se pela porta lateral de dupla arcaria gótica, virada para a praça, onde estão salientes duas colunas de mármore branco oferecidas por D. Manuel. A fachada apresenta um portal em ogiva e uma rosácea manuelina. A primeira igreja data do século XV e foi construída por iniciativa do capitão, Tristão Vaz. Da primitiva igreja pouco resta e o que se apresenta hoje ao visitante é fruto de diversas transformações mantendo-se no entanto, o traçado primitivo. O campanário desgastou-se com o tempo e em 1844 foi necessário demoli-lo para se implantar um novo, só acabado em 1853. No interior, chama a atenção do visitante as capelas dos Reis Magos (hoje do Santíssimo Sacramento) e de S. João Baptista com arco e abóbada ogival. A primeira capela, fundada por D. O acervo do Museu dispõe de 5 em prata, 1 em casquinha, 2 em prata e marfim e 8 em prata. Estão contabilizados 15 armários e 2 arcas. João Maria Henriques, A Caixa de Açúcar, DAHM, 1950, vol. I, nº.4, pp.28-29 Lilia Esteves, Identificação das Madeiras que Constituem um Núcleo de mobiliário Designado por “Caixas de Açúcar”, Quinta das Cruzes Museu, Maio de 1999. 25. Warren Dean, A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 1996

Armários e arcas do Museu Quinta das Cruzes

21 . 22. 23. 24 .

Museu da Quinta Das Cruzes

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Igreja matriz de Machico

Igreja Matriz de Santa Cruz

Capela da Madre de Deus. Caniço

Branca Teixeira, filha do primeiro capitão, Tristão Vaz, e por o segundo capitão, Vasco Vaz Teixeira, foi destinada a jazida dos familiares. O arco ogival é encimado com as armas dos Teixeiras: “um escudo de azul, partido, tendo na 10 partição uma ave fénix, de ouro e na 20 partição a cruz, de ouro, potentea dos Teixeiras e, em diferença nesta 20 partição uma flor-de-lis, solta”. Finalmente, temos a Capela do Espírito Santo de Sebastião de Morais, cujas armas são ostentadas no topo do arco. A capela-mor apresenta-se com um arco em ogiva perfeita, sendo coroada pela capela-mor com uma estrutura de retábulo de cariz maneirista, com nichos para esculturas. A primitiva igreja e Santa Cruz, foi construída no local onde os primeiros povoadores ergueram uma cruz, por ordem de João Gonçalves Zarco. O templo que hoje se apresenta ao visitante, sob a invocação de S. Salvador é de princípios do século XVI, da responsabilidade de João de Freitas, fidalgo da casa de D. Manuel e um dos principais proprietários de canaviais do concelho, que obteve por provisão de 1502, a mercê da capela-mor onde ainda se encontra a sepultura e da mulher, Guiomar de Lordelo. O templo abre-se em 3 naves, sendo visível no tecto, nomeadamente na abóbada do altar-mor, ornamentos manuelinos: a Cruz de Cristo, a esfera armilar e o escudo, que surgem nas capelas laterais de São Tiago e Almas, fundadas respectivamente por João de Morais e Gaspar Pereira de Vasconcelos do Porto Santo. Próximo da matriz está o edifício da Misericórdia, instituída por testamento de Diogo Vaz em 1505, que teve edifício próprio só a partir de 1530. Integrado na freguesia está a capela da Madre de Deus no Caniço. A capela foi estabelecida por Isabel Álvares em 1536 mas as obras de construção do templo terão terminado dez anos depois. A fachada é dominada por um portal em volta perfeita e uma rosácea simples. Um quadro retabular de tábuas pintadas do século XVI domina o interior do templo26. A Igreja matriz da Ribeira Brava, onde Manuel Álvares foi baptizado e deu os primeiros passos no estudo do latim, é de três naves, embora bastante alterada com as remodelações do presente século, são ainda visíveis alguns elementos quinhentistas: dois arcos góticos, o púlpito com um anjo na base e a pia baptismal, ofertada pelo rei D. Manuel. Da primitiva igreja da Ponta de Sol temos apenas, devido às duas reconstruções, a capela do lado da epístola, onde se pode ver a sepultura do fundador, falecido em 1486. Como elementos de maior destaque temos o tecto de alfarge da capela mor e a pia baptismal. A última é peça única de cerâmica existente na ilha, tendo sido ofertada por D. Manuel. 26. Cf. Ana Margarida Araújo, A Capela da Madre de Deus do Caniço, in Islenha, nº.2, 1988, 113-123.

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LOMBADA DA PONTA DO SOL Da Tabua pouco mais de meia légua está a Lombada de João Esmeraldo, de nação genovês, que chega do mar à serra, de muitas canas de açúcar e tão grossa fazenda, que já se aconteceu fazer João Esmeraldo vinte mil arrobas de sua lavra cada ano, e tinha como oitenta almas suas cativas entre mouros, mulatos e mulatas, negros, negras e canários. Foi esta a maior casa da ilha e tem grandes casarias de aposento, e engenho, e casas de purgar, e igreja. E depois do falecimento de João Esmeraldo, ficou tudo a seu filho Cristóvão Esmeraldo, que o mais do tempo andava na cidade do Funchal sobre uma mula muito formosa, com oito homens detrás de si, quatro de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados, muito bem tratados, e trazia grande contenda com o Capitão do Funchal sobre quem seria provedor da Alfândega de el-rei, que é uma rica coisa de renda de Sua Alteza e ricas casarias. Casou João Esmeraldo na ilha com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes, senhor da Lombada do Arco. (Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1979, p.124)

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Tecto. Igreja de Nª Srª do Loreto

Cruz Professional. Igreja matriz da Calheta

Portal. Igreja de Nª Srª do Loreto

Sacrário em ébano e prata. Igreja matriz da Calheta

Vila da Calheta. Gravura do séc. XIX

Portal. Igreja matriz da Calheta

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Subindo a encosta depara-se-nos o sítio da Lombada, uma extensão de terreno que João Gonçalves Zarco escolheu para o filho-segundo Rui Gonçalves da Câmara e que aforou em 1493 ao flamengo João Esmeraldo. Aí levantou a casa solarenga, o engenho para moer a cana e uma capela da invocação do Espírito Santo, sagrada em 1508. Do conjunto definido por Gilberto Freire como a trilogia rural, restam apenas a casa e a capela. O lugar da Calheta dominou uma importante área de canaviais, afirmando-se desde o século XV como o embarcadouro para o escoamento do açúcar. Daqui resultou a sua valorização em detrimento do alto - a Estrela - onde João Gonçalves Zarco havia feito doações de terras importantes aos filhos João Gonçalves da Câmara e D. Beatriz. Por isso, foi em 1502 elevado à categoria de Vila, integrando no perímetro os mais importantes canaviais, detidos por ilustres calhetenses que singraram na tarefa de revelação do mar ocidental, como foi o caso de João Afonso do Estreito e Fernão Domingues do Arco. A igreja matriz foi construída no século XV. Entra-se por um portal em ogiva e perante nós depara-se a única nave coberta de um tecto de alfarge, que atinge inegável beleza na capela mor, que é dominada pelo sacrário em ébano com incrustações de prata. A cruz processional do século XVI foi oferta do rei D.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Tríptico. Descida da Cruz. Proveniente da Igreja da Ribeira Brava

Manuel. A pintura está representada através de dois painéis laterais de um tríptico, invocativos da Virgem da Anunciação e do Anjo, hoje disponíveis no Museu de Arte Sacra. No Estreito da Calheta, na primitiva povoação, surgiram algumas capelas vinculadas, sendo de destacar a dos Reis Magos, construída cerca de 1529 por Francisco Homem de Sousa. Aqui todo o deslumbramento está no retábulo da escola flamenga, em madeira de carvalho policromada e dourada, representando a Adoração dos Reis Magos. No Loreto é a célebre capela de Nossa Senhora do Loreto, local de romaria e grande devoção. A capela que esteve integrada num solar apresenta um alpendre sustentado por colunas de mármore branco de origem sevilhana. No interior o tecto é de alfarge.

Casa de João Esmeraldo. Ponta do Sol

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CAPÍTULO 7

administração e DIREITOS

Alberto Vieira

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Alfândega do Funchal(edifício do século XVI), hoje Assembleia Legislativa Regional da Madeira7

ADMINISTRAÇÃO E DIREITOS A estrutura institucional régia, aos poucos, ganhou nova dimensão. A forma de administração periférica estabelecida pela coroa deixou de assentar na existência ou visita ocasional de funcionários, passando à presença instituição. A primeira intervenção aconteceu no domínio da Fazenda Real. Os funcionários, como o almoxarife (1452), passaram a partir de 14701 a estar subordinados ao contador, sucederam-se as instituições, como a Alfândega e Provedoria, por imperativo de uma maior intervenção e controlo da Fazenda Real. Em 14772 foram criadas alfândegas em todas as capitanias. O Contador tinha a missão de superintender em tudo aquilo que se relacionava com as finanças e os direitos senhoriais e depois régios, tendo ainda tutela sobre os resíduos, órfãos e o concelho. No século XVI a estrutura ganhou maior dimensão com o cargo de Provedor da Fazenda, que acumulava as funções de juiz da alfândega, e tinha por missão coordenar o aparelho fiscal. O cargo em 1580 estava nas mãos do corregedor, com as funções de vedor da fazenda por os capitães que as exerciam estarem ausentes da ilha. A Provedoria da Fazenda funcionou até 1775, altura em que foi extinta para dar lugar à Junta da Real Fazenda, que não resistiu à reforma liberal de 1834. Estas estruturas, primeiro da fazenda senhorial e depois sob alçada régia, tinham por finalidade administrar os réditos e as imposições lançadas sobre os produtos da terra, os moradores e actividades. Nas cartas de doação do senhorio e capitanias estavam definidos alguns benefícios que depois tiveram sistematização nos forais e regimentos. A coroa está excluída até 1497 da fruição de todos os réditos da Madeira, a única excepção aconteceu em 1478 com o pedido extraordinário de empréstimo3. A riqueza estava na mira do Rei, pois em 1497 quando a ilha passou para o domínio da coroa era clara a motivação: “é uma das principais e proveitosas coisas que nós, e real coroa de nosso reinos temos para ajudar, e sustento do estado real, e encargos de nossos reinos”4. 1 . ARM, RGCMF, t. I, fls.145vº-146vº., 29 de Abril de 1466, publ. In Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, 1972, pp.49-50 2 . ARM, RGCMF, t. I, fls.231vº-233vº., 29 de Abril de 1466, publ. In Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, 1972, p.81 3 . Fernando Jasmins Pereira, A Participação da Madeira no Pedido de Empréstimo de 1478, in Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, 297-321 4 . ARM, RGCMF, t. I, fls.272vº-273vº., 27 de Abril de 1497, publ. In Arquivo Histórico da Madeira, vol. XVII, 1978, pp.363-364.

430

431

Alberto Vieira

D. Manuel

A dízima, isto é, um décimo do valor em causa, foi a mais importante imposição lançada no princípio da ocupação do arquipélago. Ao senhor, pelo exercício jurisdicional, era devida a dízima de todo e qualquer rendimento fixo e de tudo aquilo que pudesse merecer qualquer mais valia, isto é, o pescado, produtos agrícolas e pecuários, e todos os produtos entrados e saídos da ilha. A Ordem de Cristo tinha direito à dizima de alguns serviços e produtos, estando neste caso, as lenhas, madeiras e pedras. De acordo com as Constituições Sinodais de 1578 era a “parte que Deus para si reservou dos bens que deu ao povo”5 A coroa havia estabelecido em 1439, como incentivo às ligações com o reino, a isenção da dízima e portagem de todas as mercadorias para aí enviadas6. A situação foi renovada por diversas vezes e ainda em 1493 era solicitada a regalia que D. Manuel rejeitou7. A medida foi igual para todas as ilhas atlânticas e terá funcionado como um incentivo à fixação de colonos nos novos espaços. Os produtos de maior rentabilidade económica foram os que mereceram maior atenção em termos de imposições e controle. Estão neste caso o açúcar e o vinho. No caso do açúcar, começou por se onerar o processo de fabrico cobrando o Infante metade da produção dos que utilizassem as alçapremas e um terço do que fora laborado em engenhos particulares. A partir de 14678 o valor a cobrar desceu para um quarto, situação que permaneceu até 15159, altura em que se quedou em um quinto. A cobrança dos direitos e imposições fazia-se por arrendamento. Isto é, a coroa arrendava a arrecadação, individualmente ou a sociedades comerciais, por prazos determinados, recebendo o valor correspondente. As sociedades no período de afirmação da economia açucareira foram muito disputadas por importantes sociedades comerciais europeias com sede em Lisboa, donde se destaca a presença de judeus e genoveses. Como forma de controlar e de prever a receita o senhorio determinou o estimo da produção de açúcar dos diversos proprietários de canaviais10. Para isso a vereação estabeleciam um rol dos estimadores, isto é, aqueles que deveriam fazer a estimativa da produção de todos os canaviais. Data 1481, Dezembro.01

5. 6. 7. 8. 9. 10 .

432

Estimadores Nuno Gonçalves João Lourenço o novo Tui Gonçalves de Velosa Gil Gonçalves Álvaro Dinis Fernão Anes

Constituições Sinodais do bispado do Funchal Feitas & Ordenadas por dom Ieronimo Barreto bispo do dito bispado, Lisboa, 1585. Cf Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, p.110. Cf Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, p.155 ARM, RGCMF, t. I, fls.211vº-213vº, 29 de Abril de 1466, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, 1972, pp.26-29 Cf Fernando Jasmins Pereira, Estudos Sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp.154-212 O único livro de estimos conhecido foi publicado por RAU, Virgínia e MACEDO, Jorge, O açúcar na Madeira no século XV, Funchal, 1992.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surgia com o valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares. Até à década de trinta do século XVI os réditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar foram a fonte de financiamento do reino e dos projectos expansionistas. Este rendimento em finais do século XV e princípios da centúria seguinte era superior a cem mil arrobas, atingindo em 1512 as 144.065 arrobas, o que corresponde a 45.380.475 reais. A partir daqui poderá concluir-se que os madeirenses foram activos protagonistas da expansão lusíada dos séculos XV e XVI emprestando a própria vida e réditos, arrecadados com a safra do açúcar, no financiamento deste projecto e das exorbitâncias e caprichos quotidianos da Casa Real. O empenhamento do senhorio e coroa no apoio e financiamento da cultura resultava não só da importância na economia da ilha, mas também dos elevados réditos que dele arrecadava com as múltiplas imposições fiscais. A elevada quantia de açúcar, resultante da tributação, servia para a coroa, no século XVI, custear as despesas do monarca, Casa Real, as dívidas aos mercadores estrangeiros, o soldo dos funcionários do almoxarifado da ilha, restando, ainda uma soma avultada para o comércio directo por meio dos feitores em Flandres ou a venda a contrato aos mercadores nacionais ou estrangeiros. No período de 1501 a 1537 as despesas contabilizadas rondaram 2,8% (6.760$000), sobrando 476,293 arrobas no valor de 233646$0011. A importância assumida pela receita terá condicionado a política intervencionista do senhorio e coroa, ao mesmo tempo que contribuiu para um maior empenhamento da estrutura administrativa na referida cultura. Se contabilizarmos a documentação oficial no período de 1452 a 1517 constata-se que 20% incidem sobre o açúcar, sendo mais de 75% da pena de D. Manuel, quando Duque e Rei, o que demonstra o desmesurado empenhamento do monarca na promoção da cultura e a situação caótica em que herdou o governo das coisas do açúcar da ilha. A intervenção manuelina incidiu, preferencialmente, no comércio (32%) e defesa da qualidade do açúcar laborado (10%)12. A fiscalidade surge assim como uma dominante na actuação das autoridades do reino que por meio de diversos regimentos e lembranças definem o quantitativo a lançar e a forma de o arrecadar. Enquanto na alfândega o quantitativo é fixo (dízima de saída), o tributo que onera os produtores é

11 . 12 .

D. Manuel

Conforme F. J. Pereira, O açúcar madeirense..., pp. 79-83, ao preço médio de 500 rs. arroba. Veja-se documentos in Arquivo Histórico da Madeira, vols. XV-XVIII, 1972-74

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Alberto Vieira

variável de acordo com o desenvolvimento da cultura na ilha. Assim, no início o infante estabelecera o pagamento de metade do açúcar laborado nas alçapremas da ilha, que lhe pertenciam e com a permissão dos engenhos particulares passaram a pagar uma arroba e meia mensal, enquanto as moendas, a água e tracção animal pagavam 1/2 do açúcar laborado. Em 1461, com o infante D. Fernando, uniformiza-se o direito a arrecadar, ficando em apenas 1/3, que de acordo com o regimento de 1467 terá uma arrecadação mais eficaz13. A partir daí o açúcar a arrecadar passará a ser 1/4 da produção, lançado de acordo com o estimo antecipado feito por dois estimadores eleitos pelos vereadores. O agravo manifestado pelos madeirenses em consonância com a conjuntura conturbada de finais do século XV, forçaram D. Manuel a repensar o sistema de tributação do açúcar. Assim em 1507 o mesmo solicitou aos madeirenses um estudo sobre a melhor forma de lançar e arrecadar o mesmo direito. Correspondendo às pretensões dos madeirenses o monarca estipula o lançamento de apenas 1/5 da produção, a vigorar desde 1516, e define uma forma adequada de arrecadar com o almoxarifado do açúcar e de diversas comarcas da ilha14. A forma de arrecadação definida em 1467 por D. Fernando mantinha-se em vigor e nela se estabelecia que o açúcar a tributar seria resultado de um estimo feito por dois homens-bons, eleitos trienalmente em vereação, que percorriam os canaviais da ilha fazendo o estimo num livro próprio15. O tributo era depois arrecadado no engenho na altura da safra. Com D. Manuel estabeleceu-se, a partir de 1485, nova operação de vistoria dos açúcares - os alealdamentos. Com isto pretendia-se confrontar o quantitativo produzido com o estimo e verificar a qualidade do produto final. Os alealdadores eram eleitos anualmente em pelo senado da câmara16. Concluída a avaliação e vistoria da qualidade do açúcar procedia-se à recolha, que poderia ser feita mediante cobrança directa ou arrendamento. No primeiro caso tal encargo estava entregue ao almoxarifado, que com D. Manuel assume uma estrutura diversa com a criação de cinco comarcas integradas no almoxarifado do açúcar, centralizado no Funchal17. Os arrendamentos que se realizavam trienalmente foram de vida efémera, mercê dos prejuízos avultados acumulados pelo almoxarifado e arrendatários entre 1506 e 1518. Os contratos no curto espaço da vigência foram dominados por mercadores ou sociedades comerciais estrangeiras, nomeadamente italianos18.

PERÍODO

1571-73 1581-86

13 . 14. 15 . 16 . 17 18 .

434

DIREITOS ARROBAS BRANCO RESCUMAS TOTAL E MELES 24.769 6.060 2.434 8.494

$ 15.802$852

ARM, CMF, Registo Geral, t. I, fol. 226-229 v1. F. J. Pereira, Alguns elementos..., pp. 179-80; idem, O Açúcar madeirense..., pp. 55-58 Dos estimos elaborados apenas se preservou o de 1494, estudado por V. Rau. ARM, CMF, t. I, fol. 219-221vº. Alguns dos referidos livros estudados por nós no estudo sobre “O regime de propriedade na Madeira...”. F. J. Pereira, O açúcar madeirense..., pp. 62-66

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Para os séculos XVII e XVIII manteve-se a mesma estrutura de arrecadação dos direitos da coroa, mas aqui adaptada à dimensão da cultura. Assim, para cada uma das áreas era provido um quintador, uma para cada uma das antigas comarcas, isto é, Funchal, Calheta, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Santa Cruz. Nas primeiras localidades era apoiado por um escrivão. Ambos tinham de soldo um moio de trigo cada ano19. O provimento continuou no século XVII, mesmo com a produção reduzida ou sem qualquer significado comercial. DATA 1646.Setembro.15 1652.Novembro.09 1661.Maio.07 1654.Maio.23 1654.Abril.30 1654.Novembro.10 1657.Julho.04 1658.Fevereiro.01 1661.Janeiro.03 1664.Janeiro.25 1664.Novembro.29 1678.Outubro.19 1679.Junho.05 1679.Outubro.09 1681.Junho.02 1683.Maio.28 1746.Fevereiro.12

LOCAL Ponta de Sol

QUINTADOR António Maciel da Fonseca

Ribeira Brava Ribeira Brava Calheta Calheta Calheta Santa Cruz Funchal Funchal Funchal Santa Cruz Ponta de Sol Santa Cruz Ponta de Sol Calheta Ribeira Brava Calheta

Manuel Carvalho Valdavesso Francisco Vaz de Miranda Pêro da Silva Inácio Cabral Catanho Gaspar de Sousa de Lira João de Mendonça Vasconcelos João Baptista Catanho João D’ornelas Travassos Jerónimo da Silva Caldeira Mariana Vasconcelos filha de João Mendes de Vasconcelos Francisco Monteiro de Miranda Mariana Vasconcelos filha de João de Mendonça de Vasconcelos Francisco Monteiro de Miranda Luís Moniz da Silva Brás Spínola de Menezes António Dionísio de Oliveira

Na década de cinquenta, não obstante o quinto do açúcar não se cobrado desde 1640, a Fazenda Real estabeleceu o encargo de 80 réis por cada arroba de açúcar para a fortificação.20 Desde 1643 não eram quintados os açúcares dos engenhos e, não obstante a insistência para que fosse cobrado, só em 1687o Provedor da Fazenda conseguiu por em pregão os ditos direitos do ano de 1687.21 Por mandado de 20 de Dezembro de 168622 foi ordenada a extinção, a partir de 30 de Julho, dos quintadores do açúcar de Santa Cruz, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, por a ilha já não produzir açúcar. Mas cedo se reconheceu o erro de tal medida, uma vez que o açúcar continuou a produzir-se, ainda que em pequenas quantidades. Deste modo a partir do ano imediato a arrecadação foi posta em arrematação23. Para o ano de 168724 foi arrematado por Manuel Vieira Gago no valor 19 . 20 . 21 . 22. 23. 24.

ANTT. PJRFF, nº.965ª, fls. 164-164vº, 6 de Novembro de 1654; ibidem, nº.966, fls.276vº-278, 15 de Janeiro de 1683. ANTT, PJRFF, nº965A, fl.86, 20 de Fevereiro de 1653. Ibidem, nº. 396, fl. 65vº, 12 de Fevereiro de 1675, fls.6-6vº, 22 de Maio de 1675; fl.5, 27 de Agosto de 1675; fl. 63vº, 15 de Novembro de 1675; fls.150vº, 27 de Setembro de 1653; no.969, fls.89vº-90, 25 de Fevereiro de 1687. ANTT, PJRFF, nº.966, fls. 446vº-447. Ibidem, n1-968, fls. 75vº-76, 25 de Fevereiro de 1687. Ibidem, fl. 76-vº, 10 de Março.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

de 285$000, e em 168825 por João Betencourt Vilela por 200$000. A partir do último ano os lavradores passaram a pagar apenas o oitavo da produção26. Também para os anos de 1744 e 174827 encontrámos o provimento de um escrivão dos quintos para a vila da Calheta, de seu nome, António Dionísio de Oliveira. As dificuldades porque passou a cultura reflectiram-se na estrutura administrativa. Assim, em 167528 refere-se que há trinta anos que não se arrecadava os quintos, por isso se ordenou o confronto dos livros do donativo com os de saída para se confirmar as ausências ao pagamento. Para os séculos XVII e XVIII manteve-se a mesma estrutura de arrecadação dos direitos da coroa, mas aqui adaptada à dimensão da cultura. Assim, para cada área era provido um quintador, uma para cada uma das antigas comarcas, isto é, Funchal, Calheta, Ribeira Brava, Ponta de Sol e Santa Cruz. Nas primeiras localidades era apoiado por um escrivão. PERÍODO 1620-1624 1637-44 1643 1644 1645 1651 1652-54 1656-57 1659 1660-62 1664-69 1670-72 1677-79 1687 1688 1705 1733 1734 1735 1740 1741 1742 1743

25. 26. 27. 28.

436

ARROBAS ARRATÉIS 5.266 26 ? 5.216 11

464

28 ?

3.649

21

AÇÚCAR QUARTO

LIBRAS

ONÇAS

Cartas de H. Hinton e J. H. Ferraz, Arquivo particular de João Higino Ferraz.

$

1 924$560 1590$180 1.917$710 3.469$799 3.585$542

544 702 ?

6 16

1 5.200$000

1256 351

24 ? 9? 285$000 200$000

29 26

9 7

21

2 5$600

1? 1 8

120 216

497 953

Ibidem, fls. 77-vº, 3 de Abril Ibidem, fls, 48-vº, 5 de Outubro ANTT, PJRFF, nº.912, fls. 184vº, 264, 12 de Fevereiro. ANTT, PJRFF, nº.396, fl. 63vº, 15 de Novembro; ibidem, nº.966, fl.6-v1.

8 28

Na segunda metade do século XIX a principal preocupação das autoridades era criar incentivos ao retorno da cultura pelo que foram estabelecidas várias isenções de impostos. Em 1865 isentavase de direitos a maquinaria e utensílios necessários para a montagem dos engenhos. Isto permitiu que a cultura votasse a adquirir importância, produzindo excedentes para exportação. Se em 1850 qualquer saída de açúcar estava limitada, já em 1870 os mesmos que entrassem no continente estavam sujeitos a $600 reis a arroba, o equivalente a cerca de 25% daquilo que pagavam os açúcares estrangeiros, medida que foi suspensa por cinco anos em 1876 e renovada em 1878, 1881, 1885, 1895, 190329. Isto permitiu que de uma opção inicial da cultura para assegurar o consumo inicial se avançou para uma nova situação de produção de excedentes, cujo escoamento é facilitado no quadro do mercado nacional. De acordo com a política proteccionista e de incentivo à cultura estabeleceram-se entraves à importação. Assim, com as leis de 1855, 1858, 1861 a importação do mel, melaço e melado do Funchal pagava 4$000 reis por cada cem quilogramas, passando para 6$000 reis em 1880 e 1885. 29 .

Cf. Fernando Augusto da Silva, O Arquipélago da Madeira na Legislação Portuguesa, Funchal, 1941.

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Torreão importava melaço de diversas origens, como Demerara, Trinidade, Cuba, Hamburgo, Lisboa, Angola (Lobito)31, para o fabrico do álcool para a indústria vínica. A par disso podemos acompanhar a intervenção nos bastidores, junto das autoridades ou das pessoas ou meios, como a imprensa, capazes de influenciar a decisão dos políticos. O decreto de 1895, aqui considerada a “lei que tantos benefícios trouxe à Madeira”, que havia merecido a aprovação unânime de todos os intervenientes pela comissão da Madeira, havia deixado de ser vantajoso para os industriais do sector. Desde 1897 vinham notando uma diminuição na desvantagem atribuída, que virou prejuízo em 1901, por força do aumento do preço do melaço, do carvão mineral e dos câmbios com que se faziam as transacções. Deste modo J. H. Ferraz em carta ao Visconde de Idanha estabelece o retrato da situação dos industriais e apela à necessidade de mudança do imposto que recaia sobre o melaço importado32.

Cartas de H. Hinton e J. H. Ferraz, Arquivo particular de João Higino Ferraz.

FINANÇAS PÚBLICAS E O AÇÚCAR Sucede que a partir do ano imediato começaram-se a sentir os efeitos negativos dos fungos que atacaram o canavial, o que levou as autoridades, sob pressão dos armazenistas de vinho, a reivindicar a abolição do imposto municipal que recaía sobre o melaço importado para fabrico de álcool. Na revisão da pauta de 1892 reclamava-se a situação que só foi atendida no regime sacarino estabelecido em 189530. O melaço importado só podia ser usado para o fabrico de álcool e dependia dos valores da colheita anual, de forma a não prejudicar os lavradores, sendo taxado em 30 reis ao quilo. Ao mesmo tempo salvaguardava-se a indústria nacional impondo pesados impostos sobre o álcool e bebidas estrangeiras. Em 1903 com a revisão do regime sacarino surge de novo uma redução substancial nos direitos de importação de melaço, medida contrariada em 1911. O incremento da produção madeirense assim o obrigava. Entretanto em 1918 o açúcar madeirense entrado no continente estava isento de qualquer imposto. O decreto de 1911, que reformula o regime sacarino estabelece um imposto sobre o fabrico da aguardente, criando-se um fundo gerido pela Junta Agrícola para apoio à agricultura. Foram nomeados contadores para procederem à cobrança do imposto nas fábricas. Extinta a Junta o fundo passou a ser gerido desde 1919 pela Junta Geral. Todas as fábricas não matriculadas deveriam pagar o imposto de 100 réis, passando a 150 reis a partir de 1914. Em 1926 surge nova situação de imposto a onerar o fabrico da aguardente, numa tentativa de travar o consumo excessiva da mesma. A versão oficial da realidade açucareira compila-se nos arquivos públicos e imprensa, mas os interesses particulares dos intervenientes no processo buscam-se na correspondência particular. O Arquivo da família Hinton deveria ser um importante repositório da História Económica da ilha, mas ignora-se o paradeiro e às nossas mãos chegou apenas a correspondência de J. Higino Ferraz, um dos fiéis colaboradores de H. Hinton entre 1899 e 1930. Assim sabemos que a fábrica de 30 .

438

As fábricas deveriam fazer junto dos municipios o manifesto das fábricas de açúcar, alcool e aguardente: ARM, Câmara Municipal do Funchal, Administração do Concelho, nº.420-421(1895-1910), idem, ARM, Câmara Municipal do Funchal, nº.565; Idem, Câmara Municipal da Ponta de Sol, nº. 178-180.

As finanças do reino foram demarcadas por um permanente deficit pelo que a coroa socorreuse diversos meios para saldar a diferença. Desde o século XIV que a forma mais usual de o solucionar era o recurso a pedidos e empréstimos. A coroa cobria o deficit, despesas bélicas, a boda dos príncipes, com esta forma de financiamento. Ficou célebre o empréstimo de sessenta milhões, lançado em 1478 para as despesas da guerra com Castela. Destes, um milhão e duzentos mil reais foram lançados sobre os madeirenses, isto é, 2% do valor (valor altamente significativo se tivermos em conta a capitação media e o facto de a ocupação da ilha ter-se iniciado a pouco mais de cinquenta anos), mas os madeirenses mostraram-se renitentes ao pagamento do imposto, argumentando a difícil situação em termos do abastecimento de cereais e o facto de terem já feito um empréstimo a coroa de 400 arrobas. O desfecho final da questão saldou-se numa redução do referido empréstimo para metade. Assim, os madeirenses manifestavam o repúdio face às exorbitantes despesas do reino e faziam valer os interesses e as franquias que corporizaram o inicial processo de ocupação. O episódio revela o vigor demonstrado pelos madeirenses na defesa dos interesses tem e pode ser reafirmado no papel do senado da câmara do Funchal. Na verdade, a Madeira era desde 1433 um espaço fora do controlo da coroa, dependendo do Mestrado da Ordem de Cristo e tendo o Infante D. Henrique como senhor. O infante D. Henrique, como senhor da ilha recebia um tributo de 1.500.000 reais, isto é 40,54% do total dos réditos da casa senhorial. João de Barros refere que o mestrado da Ordem de Cristo auferia da ilha anualmente mais de sessenta mil arrobas de açúcar. A riqueza estava na mira da coroa pelo que D. Manuel, que também foi senhor da ilha, deu a machadada final no processo de auto governo dos madeirenses ao proceder em 1497 à “nacionalização” da Madeira. A carta régia que faz a ilha realenga, revertendo toda a riqueza para a coroa, 31 . 32 .

Antiga Sala do Despacho. Alfândega do Funchal

Copiador de Cartas de J. H. Ferraz, 1899-1901, fls.11-12, 13vº-15, 16vº, 17, 18, 19, 23, 28 (1899), 35 (1900); Notas da Viagem a Africa em 1927, s.n. Copiador de Cartas de J. H. Ferraz, 1899-1901, fls.44-48

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Cruz processional da Sé do Funchal

Colunas de mármore do portal da parede lateral. igreja de Machico

é clara quanto ao peso económico nas finanças do reino: “he huma das principaes e proveitozas couzas que noz, e real coroa de nosso reynos temos para ajudar, e soportamento de estado real, e encargos de nossos reynos”. A ideia perdurou por muito tempo de modo que em 1836 ainda continuava a afirmar-se “que é uma das mais preciosas jóias da coroa de Vossa Majestade”. Desde finais do século XV toda a riqueza deixou de pertencer ao senhorio e passou para o usufruto da coroa, indo a tempo de financiar as grandes viagens oceânicas e a despesa excessiva da Casa Real. Também, a partir daqui é evidente que a Madeira perdeu a capacidade reivindicativa perante a coroa. O centralismo régio está patente na submissão e pronto acatamento pela vereação de todos os regimentos e decretos régios. O arquipélago foi uma fonte importante de receita para travar o endividamento do reino e manter a opulência da casa senhorial e real. Nos séculos XV e XVI o principal sorvedouro de dinheiro dos novos espaços recém descobertos e ocupados era a Casa Real, a carreira da Índia e as praças marroquinas. Apenas entre 1445 e 1481 os gastos da coroa em dotes e casamentos suplantaram as 812.500 dobras, enquanto que nas guerras com Castela se despenderam 336.000 e na defesa das praças marroquinas o valor atingiu as 378.000 dobras. Entretanto, no período de 1522 a 1551, as despesas com a perda das naus da carreira da Índia, por naufrágio ou corso, atingiram 352.150 dobras. O elevado encargo só poderia ser coberto com as receitas arrecadadas nas ilhas e novos espaços coloniais. É evidente, que durante o século XV e primeiro quartel do seguinte, a principal fonte de receita do mundo português estava no açúcar madeirense. As receitas advinham dos direitos lançados, como o quarto e o quinto, e do comércio do açúcar apurado. No entanto, os dados financeiros disponíveis não evidenciam de forma clara a situação. Perderam-se os livros de contas, mas os poucos disponíveis não nos atraiçoam quanto ao volume de negócios em favor da coroa. Primeiro, o senhorio e, depois o rei oneraram o produto com diversas tributações que conduziram a que amealhassem elevadas quantias que usavam em benefício próprio, no pagamento de tenças, esmolas, empréstimos e dívidas. O açúcar da coroa em 1494 foi de 80.451 arrobas de açúcar que despendeu da seguinte forma: Redízima do capitão Duque, como senhor da ilha Tenças, mercês e presentes Desembargos

12% 7% 4% 66%

Para o período de 1501 e 1537 o dispêndio de 29.696 arrobas de açúcar do almoxarifado dos quartos teve o seguinte destino: Reposte Padrões Esmolas Diversos

37% 14% 34% 15%

No primeiro registo das receitas do reino e possessões, datado de 1506, a Madeira surgia com o

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

valor mais elevado das comparticipações dos novos espaços insulares. A situação manteve-se até 1518 mas em 1588 era já evidente a valorização do mercado açoriano. Até a década de trinta do século XVI os reditos fiscais resultantes da produção e comércio do açúcar asseguravam parte importante das fontes de financiamento do reino e projectos expansionistas. O rendimento em finais do século XV e princípios da centúria seguinte era superior a cem mil arrobas, atingindo em 1512 as 144.065 arrobas, o que corresponde a 45.380.475 reais. O açúcar, depois de retirada a redizima, isto é, a décima parte que era propriedade do capitão do donatário, era utilizado pela coroa de formas diversas, como meio de pagamentos dos salários, esmolas aos conventos (Santa Maria de Guadalupe, Jesus de Aveiro, Conceição de Braga) e misericórdias (Funchal, Lisboa, Ponta Delgada), benesses a príncipes e infantes da Casa Real e despesa aduaneira da ilha, enquanto a parte sobrante era vendida, directamente em Flandres pelos feitores do rei, ou por mercadores, por vezes, a troco de pimenta. A aplicação da receita na ilha era eventual, resumindo-se às despesas eventuais como a construção da Sé e alfândega do Funchal, que receberam, respectivamente, 1.000 e 3.000 arrobas de açúcar. Outra forma de D. Manuel compensar os madeirenses pelos elevados réditos que a ilha atribuiu à coroa foram as diversas ofertas a alguns templos religiosos da ilha. A Sé do Funchal recebeu um porta-paz e uma cruz processional; a igreja matriz da Ribeira Brava a pia baptismal; a de Machico as colunas de mármore do portal da parede lateral, a escultura a virgem e o menino, os pesos da Câmara; a da Calheta o sacrário em ébano e prata. Deverá ainda incluir-se o pagamento dos inúmeros pedidos de socorro e abastecimento das praças marroquinas, o provimento das armadas da Índia, por norma, em vinho. Sobre as assíduas despesas com o socorro às praças africanas podemos citar, a título de exemplo, o concedido entre 1508 e 1514 a Safim. Gastaram-se mil arrobas de açúcar e 83.815 reais, enquanto em 1531 o provimento de vinhos as armadas da Índia orçou em 124.490 reais. Em 1529 com o Tratado de Saragoça foi encontrada uma solução provisória que a curto prazo parecia agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000 ducados para assegurar a posse das Molucas que afinal se encontravam dentro da área de influência de Portugal. Mais uma vez é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o madeirense António de Abreu o primeiro explorador. Por outro lado os madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. João Rodrigues Castelhano é referenciado também como recebedor do referido empréstimo, tendo desembolsado 300.000 reais. Juntaram-se Fernão Teixeira com 150.000 reais e Gonçalo Fernandes com 200.000 reais. O pagamento fez-se nos anos de 1530-31 à custa dos dinheiros resultantes dos direitos da coroa sobre o açúcar. Os dados fiscais de 1531 permitem uma ideia da evolução da receita e despesa da ilha. Os réditos sobre as rendas do açúcar foram de 6.990.573 reais de que se gastaram 10% nos vencimentos do clero da capitania do Funchal e 7% no pagamento do empréstimo que João Rodrigues Castelhano a Coroa para pagar o contrato das Molucas. Mais de cinquenta por cento das receitas iam directamente para o reino a engrossar os cofres da Fazenda Real. A partir desta informação, ainda que

Pia baptismal. Igreja matriz da Ribeira Brava

Pia baptismal.

Receitas 1506

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Alberto Vieira

avulsa, conclui-se que os madeirenses foram activos protagonistas da expansão lusíada dos séculos XV e XVI emprestando a própria vida e reditos, arrecadados com a safra do açúcar, no financiamento do projecto e das exorbitâncias e caprichos quotidianos da Casa Real. Foi com D. Manuel que se definiram as regras, ainda que rudimentares do orçamento. O primeiro orçamento, que se conhece, data de 1526. De acordo com os dados disponíveis as receitas fiscais orçaram em 166.347.611 reais, sendo 12.000.000 (= 7,2%) referentes apenas a Madeira, que conjuntamente com as demais possessões fora da Europa totalizavam 37.630.000 (= 23%). A cidade de Lisboa, que apenas arrecadava 5% das receitas, absorvia 17% das despesas, o que implicava o financiamento externo com o recurso aos réditos arrecadados noutras províncias nomeadamente na Madeira, Açores e Costa da Guine.

Sacrário em ébano e prata. Igreja da Calheta

A Madeira, na primeira metade do século XVII, enfrentou dificuldades económicas que se reflectiram nas fianças públicas. A fonte de receitas transferiu-se para as demais possessões e mesmo os Açores atingem valores mais elevados que a Madeira. A situação vinha evoluindo assim desde 1588. O quadro financeiro do ano de 1607 revela a precariedade das finanças madeirenses conduzindo a que a despesa representasse 94% da receita, o que correspondeu ao valor mais elevado. Mesmo assim a despesa não suplanta 1,5% do total. Já em 1619 é evidente a recuperação económica da ilha subindo o saldo para os cofres do reino a 5,9%.

MOVIMENTO FINANCEIRO DA MADEIRA. PERCENTAGEM EM RELAÇÃO AO TOTAL 1607 e 1619

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EVOLUÇÃO RECEITAS. 1506-1588 (EM MILHARES DE REAIS)

Um dado abonador da nova situação está no facto de Francisco Rodrigues Vitória ter contratado em 1602 a arrecadação da receita da ilha por 21.400$ réis, 1072 arrobas de açúcar e 2 arrobas de cera. No quadro das ilhas a Madeira continuava a apresentar uma posição destacada mas os Açores assumem a posição cimeira no quadro das ilhas. Por outro lado nas terras ultramarinas afirmam-se em definitivo como a principal fonte de receita. Aqui, a Índia assume uma posição cimeira. Assinala-se de novo que, em qualquer dos casos, a despesa é muito diminuta, porque também a estrutura administrativa não era muito pesada.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Se atendermos apenas à participação madeirense na receita da coroa no decurso dos séculos XVI e XVII somos confrontados com uma forte intervenção, tendo em conta a superfície, que se articula de forma directa com as condições económicas da ilha. Assim, o açúcar foi o principal gerador de um forte excedente de riqueza que diminuiu de forma espectacular com a crise do século XVII.

Perante o quadro somos forçados a afirmar que a partir do século XVI os dados estatísticos revelam que Portugal tinha a principal fonte de riqueza nas ilhas e possessões ultramarinas. Apenas a conjuntura resultante da união dinástica na década de oitenta conduziu a uma quebra acentuada da receita das colónias. Em qualquer das circunstâncias os novos espaços gerados com os descobrimentos revelam-se em todos os momentos dos séculos XVI e XVII como a mais valia e principal fonte de financiamento.

Escultura a virgem e o menino. Igreja de Machico

EVOLUÇÃO DAS RECEITAS NAS ILHAS. 1607-168 (em milhares de reis)

RECEITA DA MADEIRA: PERCENTAGEM EM RELAÇÃO AO TOTAL DO REINO

EVOLUÇÃO PERCENTUAL DA RECEITA DO REINO E POSSESSÕES

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Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

Funchal. 2003

ENCARGOS FISCAIS Para o período da segunda metade do século XVII dispomos de algumas cartas de quitação dos almoxarifes, que permitem avaliar da dimensão das receitas arrecadas como da importância dos diversos produtos taxados no total. Portão dos Varadouros(destruído em 1911). Gravura do século XIX

ALMOXARIFE

DATA

Cristóvão Faria Cristóvão Valente

1620-24 1645 1652-54 1656-58 Luís Soares Pais 1660-62 Luís Soares Pais 1670-72 Manuel Soares Pais 1677-79

TOTAL 49.264$261 12.738$951 39.292$894 40.532$298 49.546$497 70.178$733 62.389$244

AÇÚCAR Arrobas Arráteis 52.266 261/2 469 28 ? 3.649 21 2.390 19 702 12 1256 24 ? 351 9?

338 1035 1.035 1.038 ? 1039 ? 1340 ?

21 21

1

11 11

274 819 814 810 822 941

32 45 15 45 45 3

SUMÁRIO DA LEGISLAÇÃO 1855 17-Julho

Para os anos de 1670-167133 temos os dados diferenciados dos diversos produtos:

1858 14-Agosto

Produto Vinho Açúcar Trigo Frangos Cabritos Cevada TOTAL

1861 20.Agosto

1670 346 ? 3629 274 12 12

1671 1672 346 ? 346 ? 423 470 274 274 12 12 12 12 5 5 21.088$434 22.977$937 25.412$362

33 . ANTT, PJRFF, nº.966, fl.5, 24 de Dezembro de 1675

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VINHO TRIGO Pipas Almudes canadas moios alqueires

1864 25 Junho 27 Junho 1870 27 Dezembro

Lei aumentando para 4$000 reis em 100 arráteis direito importação mel e melaço estrangeiro por 3 anos Lei e decreto prorrogando por mais 3 anos isenção direitos importação máquinas e utensílios de fabrico produtos da cana. Lei fixando por mais 3 anos o imposto de 6$000 reis por 100 Kg, importação mel, melaço e melado. Lei reduzindo direitos importação açúcar, na Madeira, aos da Pauta Geral das alfândegas Lei renovando por mais 3 anos quantitativo do imposto sobre importação de mel e melaço estrangeiro: 6$000 reis, por 100 Kg Decreto estabelecendo para o açúcar madeirense entrado no continente o direito de $600 réis por arroba

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1876 4 FEVEREIRO 1878 4 FEVEREIRO 1881 18 MARÇO 1884 25 JUNHO 27 JUNHO

1886 22 MARÇO 1895 30 DEZEMBRO

1896 27-Março

28-Abril 15. Maio 1903 24 SETEMBRO

1911

24 DEZEMBRO 20 MARÇO

1912

24 FEVEREIRO

28 DEZEMBRO

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1913

4 JANEIRO

1916

25 FEVEREIRO

Carta de Lei suspendendo por cinco anos os direitos pagos pelo açúcar da Madeira no continente. Lei, admitindo no Continente, livre de direitos, por espaço de cinco anos, o açúcar produzido na Madeira. Lei, prorrogando por cinco anos o prazo para a admissão do açúcar da Ilha da Madeira, sem pagamento de direitos. Lei reduzindo os direitos de importação do Açúcar na Ilha Madeira aos da pauta geral das alfândegas Lei, prorrogando por 3 anos o prazo de lei, de 20 de Agosto de 1881 que fixou em 6$000 reis por cada 100 quilogramas do direito de importação do mel e melaço estrangeiro na Alfândega do Funchal. Lei, prorrogando por mais três anos, a isenção de direitos de importação sobre o açúcar produzido na Ilha da Madeira. Decreto, estabelecendo novos direitos sobre o açúcar superior e melaço da cana-de-açúcar, importados para consumo no Distrito do Funchal e isentando de direitos a importação para consumo no Continente e Açores do açúcar originário da Ilha da Madeira. Carta de lei aprovada proposta Cortes de 16/03 do imposto de 15 reis Kg sobre todo o açúcar refinado que a 27/03 não esteja alfândegas Continente e Ilhas nem completamente embarcado. Carta de lei sobre o imposto fabrico e consumo açúcar e situação especial Madeira Decreto aprovando regulamento medição reservatórios fábricas destilação álcool Decreto que reforma o regime sacarino, determinando que o açúcar exportado para o continente estava isento de direitos. Regulamento do decreto de 24 de Setembro. Decreto, aprovando as instruções provisórias para a cobrança do imposto de produção de aguardente no Distrito do Funchal. Decreto, estabelecendo as instruções provisórias que devem ser adoptadas para cobrança do imposto de produção de aguardente no Distrito do Funchal durante o corrente ano sacarino. Decreto, aprovando o regulamento para a cobrança do imposto da fabricação de aguardente no Distrito do Funchal. Portaria, nomeando uma comissão para proceder à escolha dos contadores destinados às fabricas de aguardente do Distrito do Funchal, para o efeito da cobrança do respectivo imposto. Decreto, dissolvendo a comissão administrativa, nomeada pelo decreto n.º 4830, para desempenhar as funções que competiam à Junta Agrícola da Madeira, e encarrega outra de gerir o fundo constituído pelo imposto de fabricação de aguardente no Distrito do Funchal.

Canaviais, Açúcar e Aguardente na Madeira • Séculos XV a XX

1919 2 Fevereiro 1925 23 MAIO

Lei estabelecendo imposto de revenda da aguardente Portaria, promulgando várias disposições relativas à entrada de aguardente, álcool e bebidas alcoólicas, não especificadas, no Arquipélago da Madeira. 24 JUNHO Decreto, introduzindo várias alterações na pauta dos direitos da importação e sujeitando os assúcares, importados no Arquipélago da Madeira aos direitos estabelecidos para o Continente pelo presente decreto. 26 JUNHO Rectificação do decreto n.º 10.864, que introduz várias alterações na pauta dos direitos de importação e sujeitos os assúcares importados no arquipélago da Madeira aos direitos estabelecidos para o Continente, pelo mesmo decreto. 1926 12 NOVEMBRO Decreto autorizando a Junta Geral do Distrito do Funchal a estabelecer um imposto sobre cada litro de aguardente fabricada no mesmo distrito e permitindo na Ilha da Madeira, pelo Porto do Funchal, a importação mensal de 25.000 litros de vinho tinto do Continente e proibindo a alcoolização dos vinhos importados ou a sua lotação com vinhos produzidos na Ilha da Madeira, bem conto a sua destilação. Proíbe também este decreto o desdobramento, de álcool em aguardente. 1928 31. Julho Decreto criando taxa “de salvação nacional” sobre o açúcar, gasolina e os óleos minerais leves importados 1930 2 ABRIL Decreto 18155, isentando das guias de trânsito, a que se referem os artigos 44º do Decreto 16083 e 160 do contrato aprovado pelo Decreto 16159, a aguardente velha, tipo rum, ou de bebidas similares, vendidas aos retalhistas pela Companhia da Aguardente da Madeira, depois de devidamente beneficiada ou quando pelos retalhistas seja revendida a particulares em quantidade superior a 5 litros.

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