História do Urbanismo em Portugal - ponto da situação e perspectivas de investigação

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FRANCISCO QUEIROZ1

HISTÓRIA DO URBANISMO EM PORTUGAL - PONTO DE SITUAÇÃO E PERSPECTIVAS DE INVESTIGAÇÃO

É relativamente recente a maior parte da investigação já feita sobre a evolução dos núcleos urbanos portugueses. Aliás, o interesse por esta área é crescente, interesse esse certamente cada vez mais aliado a questões práticas que se colocam de forma intensa às autarquias quanto à gestão dos seus centros históricos. Existem já vários estudos monográficos realizados sobre aspectos urbanísticos de cidades portuguesas. Alguns destes estudos são muito válidos, mas outros (a maioria) são superficiais ou parciais. Aliás, são muito raros em Portugal os estudos de História do Urbanismo que abranjam um largo período cronológico. Mesmo os estudos mais válidos sobre História do Urbanismo em Portugal possuem quase sempre - pelo menos - um destes três grandes óbices: 1. são estudos de carácter tendencialmente "paroquial", que não têm em conta a comparação com outras cidades portuguesas, resultando em conclusões pouco fundamentadas ou até mesmo ilusórias; 2. são estudos que procuram sobretudo fazer uma história do planeamento urbanístico ao longo dos tempos e não propriamente a leitura histórica do espaço urbano tal como ele se apresenta (fig. 1), sobretudo do espaço urbano que não foi planeado (que é, geralmente, a maior parte).

Fig. 1 - Uma verdadeira História do Urbanismo pressupõe a leitura do urbano tal e qual este se apresenta, determinando as suas causas. Montalvão, com o seu plano medieval regulado e com os seus trilhos de origem orgânica transformados em ruas, incarna o típico exemplo desta mistura entre o planeado e o espontâneo, mistura essa que deve ser destrinçada mas também estudada como um todo articulado.

3. são estudos com uma abordagem metodológica restrita e um âmbito cronológico e espacial limitados. Uma das razões para o ponto 3. é o facto destes estudos serem conduzidos por pessoas de áreas científicas diversas, que incidem a investigação em apenas uma ou duas das vertentes possíveis de análise de uma cidade. 1 Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto. Docente de História da Arquitectura e Urbanismo no Curso Superior de Arquitectura da ESAP. Email: [email protected]

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Fig. 2 - Fazer História do Urbanismo é também procurar determinar causas para fenómenos urbanos singulares, como este em Castro Daire, certamente não derivado de um qualquer plano urbanístico.

Fig. 3 - Vila Viçosa. Apesar do planeamento urbano ocorrido ao longo dos séculos ser o principal objecto dos estudos publicados sobre História do Urbanismo em Portugal, há ainda muitos núcleos urbanos, muitos quarteirões e muitas ruas de matriz planeada cujo interesse reclama há muito um estudo de investigação consistente.

Por exemplo, os geógrafos focam sobretudo os aspectos de ocupação do espaço, distribuição das funções/serviços, mas não estão geralmente habilitados para fazer uma consistente leitura histórica por camadas e, sobretudo, uma leitura arquitectónica e estética. Quanto aos historiadores, quase sempre valorizam excessivamente os documentos, sem por vezes perceberem que os indícios in situ podem contradizer os documentos e reflectir uma alterabilidade bem maior da cidade, alterabilidade essa que - muitas vezes - não deixa sequer rasto documental e só pode ser inferida depois de um aturado trabalho de campo. Por vezes, uma tortuosidade num arruamento ou um determinado tipo de edifício dão-nos mais pistas sobre o seu significado do que os próprios documentos (fig. 2). Mas estes documentos são também frequentemente neglicenciados quando os estudos de História do Urbanismo são realizados por arquitectos, que se preocupam sobretudo com os volumes e a ordenação das malhas urbanas, havendo quase sempre a intenção subjacente de propor intervenções e de corrigir disfuncionalidades. Há pouco mais de uma década, o historiador de urbanismo português Walter Rossa afirmava: "Não é por acaso que as análises feitas por historiadores de arte e, em parte, por arquitectos, andam muito em torno da constatação da regularidade e do estabelecimento dos modelos teóricos de base e não sobre o objecto em si. É que o discurso sobre os aspectos espontâneos da cidade, a sua "organicidade", são normalmente redundantes porque descrevem o óbvio, impossíveis de manter dentro da esfera científica e pouco permeáveis às

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metodologias das análises estéticas".2 Como é evidente, esta afirmação encerra uma perigosa falácia. A referida organicidade não é verdadeiramente algo de espontâneo, pois quase tudo na cidade tem uma justificação, mesmo que não seja possível conhecê-la objectivamente em termos históricos. Toda a organicidade encerra em si mesma um planeamento, não à escala da cidade ou do quarteirão, mas à escala do edifício, quase sempre de um edifício vernacular. Deste modo, há que compreender que motivações, que causas, que leis orientaram estes procedimentos avulsos de construção que, em conjunto e articuladamente, sedimentaram as cidades onde predomina uma matriz orgânica. É certo que não é por acaso que os historiadores de arte e arquitectos (e outros) se têm dedicado às questões da regularidade e do planeamento teórico da cidade. Porém as principais razões para tal facto não são bem as apontadas por Walter Rossa. A verdade é que esse tipo de abordagem é securizante, uma vez que existem âncoras fortíssimas: as plantas, os documentos escritos, os nomes dos arquitectos e engenheiros militares. Ou seja, estamos convencidos que a generalidade dos investigadores portugueses que se dedicam à História do Urbanismo opta por esse tipo de abordagem simplesmente por ser a mais fácil de fazer e também por ser aquela para a qual estão melhor preparados academicamente (fig. 3). Abordar o lado orgânico da cidade limitando-se a constatar "o óbvio" reflectirá grandes carências de formação científica por parte de quem assim procede. É certo que não é possível evitar que isto continue a suceder enquanto não existirem bons manuais em português que abordem o urbanismo orgânico de forma problematizada, pois só compreendendo estes processos de evolução dita "espontânea" é possível ter capacidade de previsão relativamente à forma como a cidade vai responder perante os actuais projectos de intervenção que lhe são induzidos. Assim, relativamente a uma qualquer cidade, se tivéssemos de colocar, de um lado o estudo histórico dos planos, dos arquitectos e engenheiros militares e, do outro, o estudo histórico do objecto urbano tal e qual se apresenta - incluindo tudo o que não aparente vestígios de planeamento prévio a uma escala mais lata que a do edifício; então só poderíamos concluir que a última abordagem é a mais útil para a prática da arquitectura e do urbanismo actuais, sobretudo quando esta prática se enquadra na gestão e salvaguarda dos núcleos históricos. Encontrar fórmulas geométricas em planos de cidades, descobrir nomes de projectistas, dar à estampa elencos de planos; tudo isto é geralmente um tipo de produção científica interessante mas também algo estéril, pois quase sempre nada adianta ao que necessitamos hoje mais de saber sobre as nossas cidades - como elas evoluem, que leis estão por detrás do seu crescimento ou definhamento, quais os seus mais relevantes aspectos estéticos e patrimoniais de matriz vernacular. Assim, seria bom que a investigação actualmente desenvolvida em Portugal sobre a História do Urbanismo deixasse de redundar tanto na produção de obras com um conteúdo

2 ROSSA, Walter - A cidade Portuguesa. In "História da Arte Portuguesa", vol. 3, p. 234. O sublinhado é nosso.

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Figs. 4 e 4A - Angra do Heroísmo (detalhe de planta do início do século XIX) e projecto iluminista para o Largo de S. Domingos, no Porto. Por vezes, parece existir um grande interesse em publicar cartografia antiga (de modo a reclamar o mérito da sua retirada do limbo dos "documentos inéditos") e não tanto um interesse em estudar ao detalhe essa mesma cartografia. Consequentemente, muita cartografia antiga tende a ser publicada numa escala de tal modo reduzida que fica impossibilitado o posterior confronto e estudo da mesma sem voltar a ser efectuada uma análise directa ao original. Fig. 5 - Miragaia (Porto) é um dos exemplos mais interessantes de como o planeamento à escala do lote sobrepõe-se geralmente a um plano com escala mais ampla. Na imagem, um dos capilares de acesso à antiga praia.

algo livresco (porque pouco útil para a prática actual da arquitectura e do urbanismo), com a desculpa da pretensa maior cientificidade (figs. 4 e 4A). Se continuarmos neste caminho, qualquer dia ainda poderá surgir alguém a defender publicamente não ser possível compreender a História da cidade portuguesa sem documentos! Admiti-lo seria quase desistir do estudo histórico da cidade e tal não pode ser feito, sobretudo hoje, quando o fenómeno urbano abrange a grande maioria da população portuguesa, sabendo-se que muitos erros de urbanismo têm sido cometidos por deficiente formação e por desconhecimento dos mecanismos orgânicos das cidades. Se o carácter orgânico das cidades não é geralmente passível de ser estudado por documentos, tem de ser estudado por outras formas. O carácter orgânico de qualquer cidade é sempre a tendência de base da sua evolução urbana. O planeamento é uma forma de contrariar esse processo e procurar ordenar a cidade a uma escala superior à do lote, isto de modo a beneficiar a estética, determinadas concepções de poder ou mesmo filosofias sobre o que deve ser a cidade (fig. 5). Através da investigação por nós já carreada, é possível afirmar que mesmo todo o planeamento acaba por ser corrompido organicamente, até naquele plano que eventualmente logre ser controlado por uma só entidade desde a fase do projecto até à execução. Deste modo, é absolutamente fundamental entender os mecanismos orgânicos do urbanismo, quanto mais não seja para evitar que o planeamento actual vá frontalmente contra esses mecanismos e acabe por se tornar prejudicial à própria vida urbana, como hoje sucede com perigosa frequência em Portugal. 3 ROSSA, Walter - A cidade Portuguesa, p. 234.

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Fig. 6 - O chamado "bairro judeu" de Salzedas, tipicamente orgânico e vernacular, é um dos vários sítios em Portugal que há muito merecem um estudo consistente, o qual possa fundamentar os pressupostos para a sua salvaguarda.

Ao contrário do que afirma Walter Rossa, também não é verdade que as abordagens ao carácter orgânico das cidades sejam "pouco permeáveis às metodologias das análises estéticas"3. Tencionamos demonstrá-lo em obra a publicar futuramente. Não negamos a nossa formação em História da Arte, muito pelo contrário. Contudo, temos noção do valor histórico e material da componente vernacular da arquitectura portuguesa, algo que muitos investigadores da História do Urbanismo (e da própria História da Arte) ainda não assimilaram devidamente, habituados que estão a focar apenas os grandes monumentos, de certo modo para agradarem aos seus mestres académicos e seguir-lhes as suas pisadas, incorrendo, pois, numa História do Urbanismo (e numa História da Arte) metodologicamente algo ultrapassada. Uma cidade não é feita de grandes monumentos. Esses são simplesmente a "cereja no topo do bolo". Ninguém hoje se atreveria a intervir num núcleo histórico português demolindo tudo o que é vernacular, para deixar ficar somente alguns edifícios mais eruditos. Felizmente parece que já ultrapassámos essa fase. É necessário que o subjacente preconceito metodológico também passe de vez ao nível da própria investigação histórica sobre as cidades (fig. 6). Para alguns autores, a própria palavra "urbanismo" é quase um antónimo de "orgânico". Não entraremos por esta questão da terminologia. Também não vamos esmiuçar, como outros já o fizeram, a questão da diferença entre História do Urbanismo e História Urbana. Idealmente, deveriam ser uma mesma coisa, mas a realidade actual não é bem essa. Muitas vezes, debaixo do epíteto de "história urbana" deparamo-nos com trabalhos que são sobretudo de pura sociologia urbana. Não queremos com isto dizer que não sejam importantes para o estudo das cidades. Porém, não são trabalhos de matriz histórica ou estética e, mesmo os que o são, geralmente não recuam para lá da Época Contemporânea. Ora, os nossos cascos históricos são bem anteriores a essa época. Não poderá haver uma efectiva história urbana para esses núcleos urbanos mais antigos? A urban history da poderosa "escola" americana está sobretudo baseada nos séculos XIX e XX, como seria natural: terão os norte-americanos uma verdadeira história urbana anterior a essa época? E uma história do urbanismo? Mesmo a história do urbanismo é, para a generalidade dos autores norte-americanos, uma história do planeamento urbano. Trata-se de um facto de explicação óbvia: o fenómeno urbano nasce nos EUA quando a figura do riscador de cidades está plenamente instituída e já mesmo com um corpo teórico/académico, o que jus-

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tifica a quase ausência de abordagens da História do Urbanismo norte-americano ao carácter orgânico das cidades. Apesar disso, alguns autores norte-americanos têm-se dedicado também às cidades europeias, bem mais antigas, não escondendo um certo fascínio precisamente por essa organicidade que falta na quase totalidade das cidades norte-americanas. Gutkind foi um desses exemplos4, tendo sido talvez o primeiro autor internacional interessado no urbanismo português como um todo. Apesar da sua abordagem ter sido imbuída de uma certa ingenuidade e de um espírito de curiosidade pelo não planeamento das cidades, Gutkind não poderia fazer mais, dado que - há quarenta anos - não existia um suporte bibliográfico minimamente à altura em português. Assim, julgamos que a História do Urbanismo Português deverá basear-se sobretudo e cada vez mais na já vasta produção científica da "escola" italiana, nomeadamente em autores como Enrico Guidoni ou Cesare de Seta, embora nos revejamos também em muitas das teorias de Spiro Kostof - investigador que exerceu a sua actividade docente nos EUA, apesar de se ter dedicado com rigor à história da cidade europeia. Nas suas duas principais obras5, Spiro Kostof fez também uma abordagem bastante válida a questões do urbanismo orgânico, mesmo que resumida e sem sistematização das leis que o regem. Como se pode constatar, não nos filiamos facilmente nas tendências de investigação ainda vigentes dentro da História do Urbanismo Português, pois duvidamos da sua real utilidade em muitos casos; rejeitamos o carácter hermético e elitista das abordagens e a rigidez de métodos de investigação, bem como as já referidas lacunas ao nível do estudo do urbanismo orgânico. Quem intervém nas cidades, sobretudo nos núcleos históricos, precisa essencialmente de compreender a evolução orgânica, as suas leis e as subsequentes causas de decadência dos cascos urbanos antigos. Supomos que a total ausência de bibliografia sobre esta temática em português ajuda a explicar porque razão se tem geralmente "marcado passo" na reabilitação integrada dos nossos núcleos históricos e - pior - cometido mesmo sucessivos erros irreparáveis. Ainda assim, reconhecemos que nos últimos anos têm sido publicados bons trabalhos sobre urbanismo planeado no mundo português. Destacamos sobretudo dois livros: - TEIXEIRA, Manuel C. / VALLA, Margarida - O urbanismo português. Séculos XIII-XVIII, Portugal - Brasil. Lisboa, Livros Horizonte, 1999. Este livro representa o máximo que se atingiu até hoje em Portugal, em termos de bibliografia de síntese minimamente abrangente nesta área do saber. Trata-se de uma obra arriscada e corajosa, tendo em conta que empreende várias análises propositadas, de modo a poder chegar a algumas sínteses. Por essa mesma razão, é uma obra que está sujeita a muitas correcções no futuro, ainda que no presente desempenhe um importantíssimo papel como o manual possível para o ensino universitário.

4 GUTKIND, E. A. - Urban development in Southern Europe: Spain and Portugal. Vol. III. New York, The Free Press / London, Collier-Macmillan, 1967. 5 KOSTOF, Spiro - The city assembled. The elements of urban form through history. London, Thames & Hudson, 1999; KOSTOF, Spiro - The city shaped. Urban patterns and meanings through history. London, Thames & Hudson, 20012.

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De facto, tal como o título indica, apesar de inúmeras virtualidades, este é um estudo que não aborda o importantíssimo século XIX. Por outro lado, dentro dos séculos XIII a XVIII, centra-se somente nos aspectos planeados dos núcleos urbanos e, por essa mesma razão, foca especialmente aqueles para os quais subsistiu cartografia antiga, mesmo que estes não sejam os mais representativos do urbanismo português. - FERNANDES, Mário Gonçalves - Urbanismo e morfologia urbana no norte de Portugal. Viana do Castelo, Póvoa de Varzim, Guimarães, Vila Real, Chaves e Bragança entre 1852 e 1926. Porto, FAUP publicações, 2005. Este livro representa também o máximo que se atingiu até hoje em Portugal em termos de produção científica sobre o urbanismo de uma época em particular, uma vez que tem o mérito de abordar detalhadamente vários núcleos urbanos de uma mesma região. Contudo, trata-se de uma tese de geografia urbana, na qual as componentes estética, arquitectónica e patrimonial estão praticamente ausentes. Por outro lado, a edição em livro manteve as características de uma tese, tornando a obra pouco acessível à compreensão por parte de leigos na matéria, assim como dos estudantes. De facto, neste livro existe certa desproporção entre análises muitíssimo depuradas e sínteses algo lacónicas, característica compreensível com base no típico princípio académico da precaução.

Fig. 7 - Apesar de abordada já em mais do que uma obra, a abertura no século XVI da Rua de S. João do Souto, em Braga, carece ainda de maior aprofundamento e de uma contextualização baseada no confronto com modelos internacionais.

Em termos de bibliografia de qualidade sobre História do Urbanismo em Portugal, para além das duas obras que acabámos de referenciar, existem sobretudo parcos estudos sobre núcleos urbanos medievais concretos e sobre alguns exemplos de renovação urbana no período da Renascença (fig. 7), para além de algumas publicações sobre arte efémera no período barroco. Sobre o período iluminista, quase só Lisboa, Porto e Vila Real de Santo António foram já objecto de algum tratamento exaustivo. Sobre a cidade no Romantismo, quase só Lisboa e Porto possuem já alguns trabalhos monográficos consistentes publicados. Quanto à cidade portuguesa no século XX, o panorama editorial actual não é melhor. Lembramos que quase todos os supramencionados estudos sobre núcleos urbanos portugueses têm carácter monográfico mas não são interdisciplinares.

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Conclusão Perante todas estas lacunas bibliográficas, ainda não será possível nos próximos anos elaborar um manual verdadeiramente consistente e exaustivo sobre a História do Urbanismo em Portugal. Para que tal obra seja viável, falta sobretudo fazer: - Uma abordagem efectivamente interdisciplinar da evolução histórica do fenómeno urbano em Portugal; - Uma abordagem mais comparativa que monográfica, ainda que sejam também necessárias muitas novas monografias históricas sobre cidades, vilas e antigas vilas portuguesas; - Uma abordagem muitíssimo mais assumida e aprofundada sobre o urbanismo não planeado da Idade Média, por serem maioritariamente de morfologia medieval orgânica os cascos históricos portugueses; - Uma abordagem específica sobre os diversos fenómenos de crescimento orgânico ao longo de vários séculos, fenómenos esses que não foram ainda objecto de qualquer estudo em Portugal; - Uma abordagem mais aprofundada e efectivamente interdisciplinar à cidade do Romantismo, porque representa o início da modernidade em termos de urbanismo e porque a sua compreensão permitirá também entender melhor os processos de abandono e de decadência dos núcleos históricos, que hoje ainda sofremos de forma aguda (fig. 8).

Fig. 8 - Porto, Cruz do Souto e entrada da Rua da Bainharia. Apesar desta fotografia de cerca de 1902 representar o âmago do burgo medieval, praticamente todos os alçados que se vêem (sobretudo à esquerda) são da segunda metade do século XIX, não se vislumbrando sequer nenhum elemento arquitectónico anterior ao século XVIII. Este exemplo é clarificador das mudanças ocorridas durante o Romantismo nos cascos antigos daqueles núcleos urbanos portugueses mais expostos a uma influência cosmopolita.

De qualquer modo, e porque todos estes propósitos demorariam várias décadas mesmo que fossem empreendidos por grupos numerosos de investigadores de diversas áreas do saber, defendemos que deve ser desenvolvido para já um estudo que possa ser publicado como manual de apoio ao ensino universitário e que sirva de base a todos quantos gerem e intervêm nas cidades, sobretudo nos seus aspectos mais físicos - a malha urbana, o edificado, o espaço público, etc. Arquitectos, urbanistas, paisagistas, historiadores de arte e estudantes dentro destas áreas, bem como outros técnicos ligados à recuperação e reabilitação de núcleos históricos serão talvez os destinatários preferenciais deste estudo, o qual deve tomar

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Fig. 9 - Em trabalho publicado há alguns anos conjuntamente com Ana Margarida Portela, demonstrámos como o Convento de Nossa Senhora da Saudação de Montemor-o-Novo, mesmo sendo Monumento Nacional, não estava estudado do ponto de vista urbanístico. Note-se que é precisamente pelo prisma da relação com o espaço público que este convento de fundação quinhentista se destaca dos demais em Portugal. Apesar de algumas alterações já sofridas, o seu terreiro é talvez o mais interessante exemplo português de um modelo estético quinhentista de praça urbana que viria a ser levado às últimas consequências nas praças maiores de Madrid e Salamanca, assim como no Terreiro do Paço pombalino. Fig. 10 - Em Portugal existe ainda um conjunto numeroso e interessante de calvários urbanos, praticamente por estudar, como é o caso do calvário de Escalhão.

o formato de um manual que compare fenómenos urbanos em todo o país e estabeleça as primeiras macro-sínteses históricas (fig. 9), ainda que provisórias; um manual com carácter efectivamente nacional, mesmo que não possa ser exaustivo neste mesmo carácter. Julgamos que tal estudo de investigação deverá seguir a seguinte metodologia: - Recolha e análise crítica de bibliografia dispersa sobre aspectos da História do Urbanismo em Portugal (especialmente monografias e obras de carácter local). - Contextualização crítica dessa bibliografia dispersa, em função de bibliografia estrangeira de referência e de ulterior confronto com o trabalho de campo. - Trabalho de campo realizado em praticamente todas as cidades de Portugal continental com origem anterior ao século XIX e em grande parte das vilas cujo urbanismo se consolidou antes desse século, ainda que estas vilas actualmente não sejam sede de concelho. Este trabalho de campo deverá incluir fotografia de espaços e edifícios, bem como o registo escrito de muitos outros aspectos urbanos relevantes e posterior análise interpretativa desses aspectos - alinhamentos, vãos, sacadas, decoração de fachadas, epígrafes, azulejo, elementos de religiosidade (fig. 10), mobiliário urbano, etc.

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Fig. 11 - Detalhe de uma vista de Viana do Castelo tirada por Pier Maria Baldi no século XVII. Até hoje, muito raramente a pouquíssima iconografia antiga existente sobre as cidades portuguesas tem sido utilizada de forma exaustiva. As famosas vistas de Pier Maria Baldi só em alguns casos foram já usadas para fundamentar trabalhos de História do Urbanismo, mas em nenhum desses casos parece ter sido aproveitado todo o potencial de informação dessas vistas. Geralmente falta trabalho de campo suficientemente exaustivo e que sedimente o sentido crítica necessário para discernir quais são os aspectos mais ou menos fiáveis destas vistas seiscentistas.

Fig. 12 - Porto, detalhe do desaparecido Mercado do Peixe da Cordoaria. Tal como sucede com a cartografia e a iconografia antigas, tem-se usado as fotografias do século XIX sobretudo como mero complemento visual do texto, sem uma análise dos detalhes, os quais por vezes são importantíssimos.

- Recurso a fontes manuscritas, impressas, cartográficas e iconográficas (fig. 11), sobretudo imagens antigas de cidades, tais como postais antigos e fundos fotográficos do século XIX / início do século XX (fig. 12). Esta pesquisa arquivística, iconográfica e cartográfica, pela natureza do estudo que se pretende, tem de ser feita em grande parte nos próprios locais onde é realizado o trabalho de campo, em arquivos municipais e nas respectivas autarquias (sobretudo no que diz respeito à cartografia). - Confronto de todos os dados e investigação comparada, de modo a buscar aspectos sincrónicos comuns (constantes) e a fundamentar as leis do urbanismo orgânico, que necessitam de urgente sistematização em Portugal. - Investigação comparada direccionada para uma síntese de aspectos diacrónicos: as soluções mais interessantes do urbanismo português na sucessão dos vários séculos, o seu significado histórico, a compreensão dos núcleos urbanos no seu todo (localizando a flutuação de fulcros urbanos, determinando causas e assinalando os efeitos desta flutuação na cidade actual). Sempre que se justifique, devem ser compilados e tratados dados sobre construtores, arquitectos e promotores de obras. "Enquadramento dos principais marcos da História do Urbanismo em Portugal no contexto da Europa central e mediterrânica, de modo a ser mais facilmente entendido o significado da urbanística portuguesa e também a sua especificidade (fig. 13).

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Fig. 13 - Belíssimo conjunto dos paços do concelho adossados à porta da cerca medieval de Moura. A solução urbanística é tipicamente portuguesa e muito comum nos séculos XV e XVI, embora os resultados estéticos tivessem variado muito caso a caso. Contudo, tendo sido Moura um dos primeiros núcleos urbanos em Portugal contemplados com um Plano de Pormenor para o centro histórico, poder-se-á aceitar facilmente que os seus principais valores urbanísticos continuem ainda hoje sem ser objecto de estudo aprofundado?

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