História e Estratégia

September 26, 2017 | Autor: Carlos Afonso | Categoria: History, Strategy (Military Science), História, Estrategia, Estratégia
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Publicado em "Estudos de Homenagem Abel Cabral Couto", coord. Luís Machado Barroso e Luís Falcão Escorrega. Lisboa, Instituto de Estudos Superiores Militares: 2014, pp. 133-157.

História e Estratégia Carlos Dias Afonso

Introdução O Tenente/General Abel Cabral Couto deu/nos a Estratégia. Não só a nós, militares de profissão, mas a todos os que, em Portugal, necessitam de trabalhar com estes assuntos. Acima de tudo, deu a Estratégia à própria Estra/ tégia, na perspetiva da concetualização. Não conhecemos nenhum oficial do Quadro Permanente que não saiba isto. É este sentimento de profunda gratidão que nos motiva a desbravar terreno por uma temática tão arriscada e sobre a qual o próprio “mestre” teria certamente muito a dizer. Propomo/nos, pois, dar cumprimento, da forma mais dedicada possível, ao privilégio de termos sido convidados a tomar parte nesta homenagem. A experiência histórica é literalmente, a nossa única fonte de provas sobre o fenómeno estratégico. Esta afirmação, de Colin Gray (2006a, p. 1), é a grande justificação da pertinência do presente ensaio. Aparentemente, esta frase pode arrogar/se à pretensão de encerrar o assunto aqui mesmo; a relação entre Estratégia e His/ tória é uma evidência porque a primeira necessita da segunda. No entanto, o ter/nos sido endereçada a proposta de redigir algumas linhas sobre esta temáti/ ca sugere que se trata de um assunto passível de debate e de desenvolvimento. Num primeiro impulso, fomos tentados a elencar e discorrer sobre os pontos de contacto entre os dois campos do saber, ideia que abandonámos depois de constatar que, pela multiplicidade de ligações possíveis, uma tarefa de tal índole seria tão hercúlea quanto improfícua. A opção para este texto foi encontrar, na relação entre Estratégia e Histó/ ria, pontos de benefício mútuo e não somente a utilização da segunda pela primei/ ra. Uma tomada de posição prévia, que interessa manter presente durante todo o texto: uso da História não é o mesmo que uso do Passado. Precisamente porque estas diferenças podem parecer subtis, mas são, de facto, determinantes, enten/ demos iniciar o presente ensaio com o estabelecimento das linhas gerais dos _____ 135 133

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conceitos de Estratégia e de História que adotaremos, seguidas das ligações e fluxos mais evidentes entre ambas as disciplinas, uma vez delimitadas. Num segundo momento, abordaremos a presença da Estratégia na História, salientan/ do alguns pontos de divergência e de convergência presentes num conjunto de autores que se debruçaram sobre esta temática. Seguidamente, observaremos a História na Estratégia, arrolando alguns dos contributos que a ciência histórica pode trazer aos estrategistas. Finalmente, proceder/se/á a uma síntese conclusiva.

Que Estratégia stratégia e que História? Em torno de ambos os concei onceitos. tos Parece sensato que, antes de procurar uma relação entre as duas ativida/ des, se procure perceber o que são, à vez, Estratégia e História. Quer num caso, quer noutro, um bom refúgio para a prossecução do presente ensaio seria esco/ lher uma definição consagrada por um autor reputado em cada um dos campos de estudo para, a partir dessa posição de conforto, explorar os caminhos aber/ tos pelo cruzamento de ambas as semânticas. No entanto, uma vez que nas duas disciplinas existem debates em aberto sobre as suas naturezas, ao mesmo tem/ po que os esforços de concetualização de diferentes autores resultam numa multiplicidade de definições, a escolha de uma única para a Estratégia e outra para a História incorreria no risco sério de tornar as conclusões reféns dos textos das definições escolhidas que, por mais abrangentes que pudessem ser, teriam sempre um cunho estático. Por conseguinte, na presente secção, dedi/ car/nos/emos a identificar as principais componentes de cada uma das realida/ des, com especial incidência na natureza, no objeto e nos sujeitos, quer da Estratégia, quer da História. Não se pretende com isto negar a utilidade de uma definição, principal/ mente porque, por princípio, é resultado de anos de estudo e reflexão, do soma/ tório de condicionantes de diversa ordem (muitas vezes em mudança constante), e que vê a sua redação, não raras vezes, alterada pelo próprio autor original, ao longo dos tempos. Encaremos, portanto, qualquer definição como um ponto de partida, mas mantenhamo/nos disponíveis para a entender como uma espécie de “estado da arte” e não como um postulado final e absoluto.

Que Estratégia? No tempo atual, o termo “estratégia”, para além de fazer parte do voca/ bulário comum, com sentidos, muitas vezes algo difusos, está presente, com _____ 134 136

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sentidos mais objetivos, em diferentes áreas de atividade. De um modo geral, o termo alude para planos, processos ou metodologias que, uma vez implementados, conduzem a um objetivo. A este respeito, encontramos em António Barrento uma reflexão muito completa sobre a multiplicidade de atividades que utilizam o termo e os diferentes sentidos que toma1. Também Horta Fernandes (1998, pp. 129/131) salienta que a estratégia se expandiu, a partir do seu contexto original, para ambientes como o empresarial e o desportivo, sempre associado a uma noção de competição, acabando por munir esses novos espaços de intervenção com o seu vocabulário específico. O sentido de estratégia que nos interessa, mais restrito, é a continuidade natural do dos significados (re)inaugurados no Século XVIII e, especialmente, no século XIX pós/napoleónico, por Clausewitz e Jomini2. As concetualizações acei/ tes nos dias de hoje apresentam um conjunto de pontos comuns que se foram consolidando após a Segunda Guerra Mundial e a entrada na Era Nuclear. Incontornável, neste âmbito, é a obra de Gérard Chaliand, Anthologie Mondiale de la Stratégie (1990), que apresenta os principais estrategistas ao longo dos tempos. É revelador verificar que, mesmo após a segunda metade do século XX, altura em que o conceito de estratégia se foi estabilizando sensivelmente com a significância que lhe reconhecemos nos dias de hoje, diferentes autores preco/ nizam diferenças, mais ou menos significativas, nas suas conceptualizações. Só no último capítulo, consignado aos principais estrategistas da Era Nuclear, Chaliand apresenta quinze autores diferentes, sendo que três (Gallois, Beaufre e Poirier) surgem por duas vezes, em momentos distintos, indiciando releituras nas suas teorizações. Na introdução à antologia, o próprio Chaliand assume a sua posição, afirmando que a Estratégia se ocupa “das vias e meios para contrariar o adversá/ rio e impor/lhe uma vontade(…)”3. Por princípio, os teorizadores que selecionou para a sua obra deverão expressar um pensamento compatível com a definição que assume, que tem a vantagem de ser bem abrangente: centra/se essencialmen/ te na finalidade, mas deixa em aberto quer o objeto, quer os sujeitos.

1 O autor explica o processo pelo qual a palavra se foi afastando do seu significado origi/ nal e apresenta várias áreas de utilização, como a organização, a gestão e a investigação, em grande medida porque se trata de um termo passível de encerrar múltiplos conteúdos (Barrento, 2010, pp. 96/99). 2 É praticamente unânime esta consagração da estratégia associada a Clausewitz e Jomini. Hervé Couteau/Bégarie fala deste momento como a “generalização do modelo e primeiro ensaio de definição” (Coutau/Bégarie, 2010, p. 59). Vejam/se também Fernandes, 1998, pp. 49/50, Garcia, 2010, p. 120 e Borges, 2013, p. 26. O desenvolvimento do conceito, numa perspetiva histórica, será apresentado na secção dedicada à Estratégia na História. 3 Ver Chaliand, 1990, p. XI. Optámos por iniciar os termos “estratégia” e “história” por minúsculas quando apresentam uma significância mais generalista, reservando o uso da inicial maiúscula quando nos estamos a referir às disciplinas num sentido mais restrito.

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A metodologia quase invariavelmente seguida pelos estrategistas que se ocupam da problemática da concetualização, inicia pela recolha de concetuali/ zações anteriores. Horta Fernandes (1998, p. 60) selecionou quatro protagonistas na concetualização estratégica contemporânea: Beaufre, Abel Cabral Couto, Lucien Poirier e Jean/Paul Charnay, por considerar que os estrategistas france/ ses se destacam em matéria de análise concetual e que Cabral Couto é a figura incontornável no que respeita à concetualização portuguesa. Beaufre surge, para Horta Fernandes e para Cabral Couto, em lugar de destaque4, por considerarem estar perante o afastamento definitivo da Estratégia do campo exclusivamente militar, escolhendo a dimensão “hostilidade” e não a guerra como ponto focal, chegando também a uma concetualização claramente vertical, tendo o general francês protagonizado a sua divisão em três níveis5. Este tipo de concetualização, assente numa metodologia “fundamentalmente opera/ cionalista”, encontrará em Abel Cabral Couto e em Lucien Poirier muitos pontos comuns. Para Beaufre (1998, p.36), a Estratégia é “a arte da dialética das vontades que utiliza a força para resolver o conflito que entre elas se estabelece”. Poirier assume também o critério vertical, mas faz assentar as competên/ cias diretivas num critério horizontal, relacionando/as com uma competência diretora inerente às altas chefias político/militares. Para Horta Fernandes (1998, p.74), é esta competência diretora, atribuída somente a uma cabeça político/ militar, que entra em conflito com a estratificação vertical natural das entidades sociopolíticas, materializando/se, aqui, alguma fragilidade na conceção de Poi/ rier. No entanto, em Poirier esta opção é consciente e atribuída ao maior avanço relativo da Estratégia Militar, no campo da teorização, quando comparada com outras Estratégias6. Para Poirier (1982, p.40), a Estratégia é um duelo de vonta/ des autónomas com diferentes graus de liberdade no seu campo conflitual; é a dialética de forças concebidas, realizadas e empregues para atender aos objeti/ vos [estratégicos] como meios dos fins da política7.

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Abel Cabral Couto considera, como “figuras tutelares” dos seus Elementos de Estratégia, Hans Morgenthau, Raymond Aron e, especialmente, o general André Beaufre (Couto, 1988, p. 5). 5 Beaufre, em 1963, explica que, entre outros fatores, as visões tradicionais careciam de uma análise abrangente dos fatores da Estratégia, razão pela qual “os conflitos escaparam ao controlo dos governos e produziram horríveis catástrofes internacionais” (Beaufre, 1998, p. 44). Ver também Fernandes, 1998, p. 62 e Couto, 1988, p. 196. Beaufre estratifica a Estratégia, quanto às formas de coação, no nível da Estratégia Total, nas Estratégias Gerais, suas subordinadas, sob quais, por sua vez, estariam as estratégias particulares. A Estratégia Militar surge, assim, a par de outras Estratégias Gerais – Política, Económica e Diplomática (Beaufre, 1998, p. 45). 6 Uma observação sobre o anexo de Poirier, dedicado à “estrutura estratégica”, permite dete/ tar, mesmo graficamente, a preponderância da estratégia militar (Poirier, 1982, pp. 124/125). 7 Ver também Poirier, 1987, pp. 107/108.

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Embora no mesmo alinhamento, no dizer de Horta Fernandes, Abel Cabral Couto suplanta a concetualização de Beaufre em vários pontos, desta/ cando/se logo o facto de circunscrever que os objetivos políticos passíveis de tratamento estratégico são somente aqueles capazes de desencadear hostilida/ de, ou seja, que pressupõem um opositor. Em 1968, para Cabral Couto (1988, p. 209), a Estratégia era “a ciência e a arte de desenvolver e utilizar as forças morais e materiais de uma unidade política ou coligação, a fim de se atingirem objetivos políticos que suscitam, ou podem suscitar, a hostilidade de uma outra vontade política”8. Posteriormente, já no final da década de 1990, Cabral Couto ampliaria a sua concetualização, para que passasse a contemplar qualquer ambiente de conflito ou competição (que designa como ambiente agónico)9 e estendendo o agente da Estratégia a qualquer entidade ou organização e não só a unidades políticas. A esta “ampliação” não será alheio o contributo do último teorizador invocado por Horta Fernandes, que referiremos de seguida. É Jean/Paul Charnay, cujo Essai Géneral de Stratégie data de 1973, quem vem adicionar um ingrediente mais filosófico à concetualização da Estratégia. E acima de tudo, com relevância para o presente ensaio, fá/la encontrar as ciências humanas em geral. Um dos aspetos inerentes a Charnay é o não comprometi/ mento com uma definição estanque, mas antes o avanço de várias definições, dotadas de uma importante carga abstrata, mas que têm como lugares comuns a presença de hostilidade, a relação com a política e a abertura da Estratégia a outros sujeitos que não as entidades políticas ou político/militares. Também se infere um inequívoco conceito vertical na organização da Estratégia. Horta Fer/ nandes lamenta, ainda assim, que mesmo numa concetualização com muito maior abertura como a de Charnay, tal como nos outros três teorizadores referidos, a Política é a “enquadrante superior” da organização vertical da Estratégia, não se considerando a possibilidade da Economia assumir esse papel10. Pensamos que no contexto do presente ensaio, a concetualização da Estra/ tégia não estará completa sem a referência a outros dois vultos militares nacio/ nais, no que toca ao pensamento estratégico contemporâneo. Loureiro dos Santos define/a como “a ciência e arte que tendo como referência a guerra,

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A edição consultada dos Elementos de Estratégia é a do IAEM, de 1988, mas a definição de Cabral Couto corresponde à avançada em 1968, data da primeira edição de um estudo que o autor chamou de “apontamentos”. 9 “A ciência e arte de, à luz dos fins de uma organização, estabelecer e hierarquizar objeti/ vos e gerar, estruturar e utilizar recursos, tangíveis e intangíveis, a fim de se atingirem aqueles objetivos, num ambiente admitido como conflitual ou competitivo (ambiente agó/ nico)”. Apesar de publicado em Couto, 2002, p. 20, o conceito remontará já, pelo menos, a 1998. Ver Barrento, 2010, pp. 108/110. 10 A este respeito, no que toca às sociedades abertas, na atualidade, poder/se/ia perguntar onde acaba a conflitualidade económica e inicia a conflitualidade política (Fernandes, 1998, p. 88).

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gera, organiza e emprega a força para atingir os objetivos definidos pelo poder político com maior rendimento”11. António Barrento (2010, pp.109/110) regressa deliberadamente à restrição dos sujeitos da Estratégia, afirmando que esta não deve procurar abarcar as dimensões que as modernas ciências de gestão das organizações chamam de “estratégia”. Por conseguinte, afirma que, apesar de num contexto concorrencial, organizações em competição possam empregar o “método estratégico”, a Estratégia deve ser encarada como bem mais do que o método em si, pelo que considera que esta é “a ciência/arte que trata da prepa/ ração e utilização da coação para, apesar da hostilidade dos opositores, atingir os objetivos fixados pela entidade política”. Este percurso concetual português é largamente influenciado pela escola francesa. A escola norte/americana foi, entre 1945 e 1989, bem mais pragmática e com plena consciência de que existia para apoiar a prossecução dos objetivos da Nação (os EUA, em sentido restrito e o Bloco Ocidental, num sentido mais vasto). Neste particular, nomes como Edward Mead Earle, Bernard Brodie, Henry Kissinger, Robert Oppenheimer, Albert Wohlstetter e Bogislaw Von Bonin são incontornáveis e materializaram as vias que os EUA tiveram que adotar enquanto protagonistas no âmbito da Estratégia Nuclear. O resultado foi o grande desenvolvimento da Estratégia enquanto atividade prática e um menor volume de estudos no campo da concetualização. Entre os pensadores mais libertos do papel norte/americano de Estado/diretor num mundo bipolar, encontram/se Edward Luttwak e Thomas Schelling. O primeiro analisa a lógica da Estratégia nas dimensões vertical e horizontal, materializando a aplicação prática da estratégia integral preconizada por Poirier. O segundo protagonizou, ainda em 1960, através da obra The Strategy of Conflict, uma simbiose interes/ sante entre as perspetivas humanista, científica e economicista da Estratégia12. Um outro aspeto inerente à concetualização da Estratégia, é o que se desenvolve em torno da sua categorização tendo por balizas os campos da ciên/ cia e da arte. Beaufre (1998, p.29) chama/lhe mais arte do que ciência, embora escape à armadilha deste debate, preferindo referir/se/lhe não como uma dou/ trina, mas como um “método de pensamento”. Também para Poirier, a Estraté/ gia é um método de pensamento13.

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Esta definição surge com o texto apresentado em Barrento, 2010, p. 104. Da leitura da obra referenciada, de Loureiro dos Santos, essencialmente direcionada para a integração da Estratégia Geral Militar na Estratégia Total, a definição pode ser inferida no capítulo I da Terceira Parte. Ver Santos, 1983, pp. 269/290. 12 Sobre os pensadores norte/americanos, veja/se o trabalho de João Vieira Borges (2013) O Terrorismo Transnacional e o planeamento estratégico de Segurança Nacional dos Esta

dos Unidos da América, especialmente a síntese em Borges, 2013, pp. 41/42. 13 A este respeito, ver Fernandes, 1998, p. 74.

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Um dos autores que mais obras tem dedicado aos estudos estratégicos e às relações entre as teorizações e a prática é Colin Gray. No que respeita a este assunto, não considera que os estudos estratégicos sejam uma disciplina ou um campo de investigação “autossustentado”, dedicado a perseguir uma visão absoluta da realidade. A sua prioridade é focarem/se nas relações “meios/fins” pelos quais as entidades políticas, na sua maioria governos, se movimentam em função do objetivo “segurança” (2006b, p.34). Abel Cabral Couto (1988, pp. 205/207) refere/se a este debate quando classifica a Estratégia segundo o critério da forma de produção, afirmando que, entre os vários autores, se encontram aqueles que a classificam como pura arte, como ciência, e ainda como ciência e arte, simultaneamente. Distancia/se dos primeiros, pelo motivo de haver aspetos do campo da Estratégia que são clara/ mente do domínio científico e, dos segundos, porque uma ligação total à ciência esvaziaria a Estratégia de algumas das caraterísticas inerentes ao exercício práti/ co da atividade. Segue, então, a via da ciência/arte, afirmando que para além da aplicação científica, a atividade estratégica tem uma componente criativa. Horta Fernandes, aludindo também a Stephen Walt como um dos auto/ res que muito aprofundou este debate (e que concluiu pela não cientificidade da Estratégia) afirma não ser particularmente importante, nem possível, classificar a Estratégia no campo da ciência ou no campo da arte. Mais do que indagar se é ciência ou arte, importa entendê/la como uma realidade “afetada intrinseca/ mente por uma racionalidade social alargada, que a converte numa ética da confrontação ou do conflito, entendidos enquanto hostilidade”14. Sem o pretensiosismo de avançar com uma definição, podemos assumir a Estratégia como método de pensamento, que conterá elementos de cariz cien/ tífico mas também de outras naturezas. Os sujeitos da Estratégia são, tenden/ cialmente, elites sociais, em si mesmas ou em representação de entidades políticas vastas, ao mesmo tempo que todos os setores da sociedade estão, de forma direta ou indireta, implicados na Estratégia. O seu objeto é a coação e a sua finalidade é a consecução de objetivos políticos, através do desenvolvimento e aplicação da força. No que respeita ao panorama nacional, este é, em traços gerais, o alinhamento de Abel Cabral Couto15, de Loureiro dos Santos e de

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Ver Fernandes, 1998, p. 140 e também 186. Num outro momento, anterior, mas muito próximo, reconhece uma “carga de cientificidade” na estratégia que mantém, no entanto, um certo grau de precaridade, uma vez que está associado ao paradigma pós/moderno que se vive conjunturalmente, na atualidade (Fernandes, 1997, p. 180). 15 Já vimos, anteriormente, a transição efetuada por Abel Cabral Couto entre 1968 e 1998, embora, a nosso ver, o alargamento da Estratégia a outros campos e a outros sujeitos não represente um empobrecimento do conceito.

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António Barrento, no âmbito dos teorizadores militares, e de Horta Fernandes, destacada referência fora do ambiente militar, na atualidade.

Que História? Tal como a Estratégia, o termo “História” também tem um uso popular. Alude, vulgarmente, ao conjunto da atividade humana relativa ao passado. Uma manifestação desse conceito popular da história pode ser identificada quando estamos perante um evento político importante, ou uma vitória desportiva sig/ nificativa e se escuta a afirmação, muitas vezes jornalística, de que “se fez histó/ ria”. A visão popular também encara a história como um conjunto cronológico de eventos, mais do que os eventos em si mesmos. O conceito de História está também longe de se encontrar estabilizado. De acordo com Braudel (1970, pp. 205/206), trata/se de uma atividade pouco estruturada e bastante aberta a ciências vizinhas (como a Sociologia ou a Antropologia), a ponto de haver vozes que não lhe concedem existência pró/ pria. Na “Histoire et Sciences Sociales. La Longue Durée”, defende uma ciência social histórica e uma conceção de História em consonância. Afirma que a His/ tória sofre de um atraso de desenvolvimento em relação às ciências sociais em geral e que deve ser vista na perspetiva do estudo do presente através do estu/ do do passado, incidindo no chamado estudo do “tempo longo” (longue durée). Embora na superficialidade pareça que estamos a falar do mesmo objeto, esta História de Braudel e da chamada escola dos Annales16, surge, na França do final da década de 1920, por oposição à que passou a ser conhecida como “História tradicional”. A designada “Nouvelle Histoire” despendeu, e continua a despender, bastantes energias a demarcar/se desse “paradigma tradicional” que tem, até aos dias de hoje, trilhado simultaneamente o seu percurso. O para/ digma tradicional encontra raízes milenares (que poderíamos fazer remontar a Heródoto). A dialética entre as duas “histórias” perdura e pode ser apresentada através das suas divergências principais. Em primeiro lugar, a História tradicional diz respeito essencialmente à política, fazendo com que alguns ramos da História (como a da arte ou da ciên/ cia) sejam relegados para segundo plano. Por seu turno, a Nouvelle Histoire 16

Em 1929, um conjunto de pensadores franceses, dos quais se destacam Lucien Febvre, Marc Bloch, fundou a revista Annales d'histoire économique et sociale, que representou um corte com a historiografia tradicional, ao preconizar a multidisciplinaridade, a busca do entendimento do “tempo longo” (“la longue durée”) e uma história de mentalidades mais do que uma história política e das elites. Braudel, orientando de Febvre, é represen/ tante da segunda geração dos Annales, nas décadas de 1960 e 1970.

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preocupa/se com toda a atividade humana (essencialmente social, portanto), tendo inclusivamente dado origem ao conceito de “História Total”, ou abordagem holística da História. Um outro aspeto da História tradicional é ser pensada como uma narrativa dos acontecimentos, ao passo que a nova História se foca na análi/ se das estruturas e nas suas transformações visíveis no “tempo longo”. Verifica/ se, também, que a História tradicional se ocupa da visão das elites, beneficiando, inclusivamente, da facilidade de obtenção de fontes. Pelo contrário, a nova Histó/ ria prefere pensar as estruturas “de baixo para cima”, debruçando/se frequente/ mente sobre o “subalterno”. Finalmente, e para não sermos exaustivos, referiríamos ainda que a História tradicional tem tendência para buscar a objeti/ vidade, apresentando ao seu público “factos”. A nova História considera irrea/ lista esta abordagem, porque não é possível evitar olhar o passado sob um ponto de vista particular (por razões culturais, étnicas, religiosas, etc.)17. É pelo facto da nova História coexistir com uma História tradicional, que se continua a insistir em chamar “História” a trabalhos alegadamente direcionados ao público em geral, encarados como “não académicos”, escritos por autores de proveniências muito diversas. São frequentemente elaborados recorrendo à bibliografia que se encontra mais à mão, sem a noção do que já foi sendo escrito sobre o assunto em apreço, ou mesmo sobre outros tópicos direta ou indireta/ mente relacionados com o assunto, que poderiam ajudar a estabelecer o seu con/ texto e são essenciais para conhecer o tema em análise (Torgal, 2012, p. 51). Ao longo de mais de oito décadas, os principais representantes da escola dos Annales preconizaram conceções distintas do trabalho do historiador, mas o movimento defendeu sempre a interdisciplinaridade e a abertura a todas as ciências sociais, ao mesmo tempo que reivindicou permanentemente a existên/ cia da História enquanto disciplina autónoma. O que não se conseguiu, até hoje, foi uma concordância sobre a delimitação concreta da disciplina. As próprias ciências sociais constituem um campo bastante indeterminado em que os argumentos que servem de base à delimitação entre campos do saber são muito débeis. As diferenças entre as disciplinas parecem residir nas práticas científi/ cas específicas de cada uma (Bosa, 2011, pp. 161/164). A História não pode nem pretende substituir a Ciência Política, a Sociolo/ gia ou a Antropologia nas suas próprias áreas de conhecimento. Há um território comum à maioria das ciências sociais, que é o passado. No entanto, enquanto a História faz dele o seu objeto de estudo, as outras ciências sociais recorrem ao passado mais como instrumento auxiliar do que como objeto, para dar densidade

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Para uma sistematização mais completa das diferenças entre uma História Tradicional e a Nouvelle Histoire, consulte/se Burke, 1990, p. 4.

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aos seus estudos que, caso se concentrassem somente no presente ou no passado imediato, ficariam “como se lhes faltasse a terceira dimensão” (Gilly, 2010, p. 218). O conceito de História com relevância para o presente trabalho é mais próximo do preconizado pela escola dos Annales do que qualquer outro. Trata/se de uma ciência social que tem como objeto de estudo o passado. Possui uma forte carga científica e está permanentemente aberta à interdisciplinaridade, não só para com as ciências sociais, mas para com todos campos científicos em geral. Mais do que a ciência dos factos, é a ciência do questionamento constante do passado e crítica apurada às fontes, veículos privilegiados de aquisição de informação sobre o objeto.

Que relações podem ser ser estabelecidas? O entusiasmo de Colin Gray pela História (autor de inúmeros trabalhos sobre a dualidade Estratégia/História) tem, segundo o próprio, duas bases. A primeira é o elementar interesse pessoal. A segunda, mais séria, radica na evi/ dência de que não existe alternativa (Gray, 2006a, p. 5). Para António Barrento (2010, p. 49 e 67), a História é o “laboratório possível da guerra” e, por mais estranhas que pareçam as manifestações atuais do fenómeno, é na intimidade com a História que podemos esperar “encontrar algum conforto e sabedoria”. Talvez por necessitar constantemente da História, a coincidência do estrategista com o historiador na mesma pessoa é comum. Considerem/se, por exemplo, Tucídides, Júlio César, Ferdinand Foch, Hans Delbrück. No panorama nacional, temos a figura incontornável de Loureiro dos Santos. Por vezes, surgem correntes de pensamento que tendem a relegar a His/ tória para segundo plano no que toca aos estudos estratégicos. Um exemplo paradigmático foi o contexto da Guerra Fria. Muitos estrategistas e analistas estavam tão obcecados pelos novos problemas colocados pela arma nuclear, que não viam muito valor no estudo da experiência pré/nuclear. Passado este impacto inicial, verificaram que a gestão das alianças era um problema para os EUA da segunda metade do Século XX tal como era para os atenienses e os espartanos na Antiguidade. A supremacia naval era vital para Atenas e para o Império Britânico, tal como passou a ser para a Aliança Atlântica. Em 1946, Bernard Brodie não viu grande relevância nas Marinhas numa Era Nuclear, mas a maioria dos analistas e, seguramente, os governos americano e soviético, não concordariam com ele trinta anos mais tarde (Gray, 2006a, p.6)18.

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Ver também Gray, 2006b, p. 22.

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Vista a inevitabilidade do recurso à História por parte da Estratégia, inte/ ressa agora perceber como pode ser otimizada essa relação. Nesta perspetiva, a primeira questão que se coloca é sobre qual é a História a que a Estratégia recor/ re (relembrando o debate entre História tradicional e Nouvelle Histoire). Impõe/se a assunção de uma posição inicial: não nos parece que do recurso à História tra/ dicional advenha grande prejuízo para a Estratégia. Na realidade, um conheci/ mento, ainda que genérico, de eventos políticos e de “relações internacionais” do passado, já deve constituir uma boa base de trabalho. O que nos interessa é son/ dar em que medida se podem obter mais vantagens se, para além da História tradicional, se recorrer à Nouvelle Histoire. Mas, para isso, interessa ver como e quando se criaram as condições para que as duas disciplinas se intercetassem. Num primeiro impulso, o movimento dos Annales, ao considerar a História tradicional – Histoire Événementielle – como menos significativa do que as forças geográficas, demográficas, sociais e psicológicas que estão na origem da confli/ tualidade, afastou/se da historiografia da guerra vigente no início do século XX (que insistia numa história de batalhas). Embora as experiências pessoais de Marc Bloch e Lucien Febvre, na Primeira Guerra Mundial, tenham influenciado os seus programas e contribuído para neles destruir a fé depositada no progresso (tão caraterística de muita historiografia do século XIX, eivada do pensamento positi/ vista), inicialmente, a escola dos Annales não tratou a guerra como objeto central (mas também não a ignorou). A aproximação à temática da guerra foi gradual, pela mão de historiadores como Braudel, que relacionou as medidas de financia/ mento da guerra com o crescimento do Estado. Um seu discípulo, Le Roy Ladurie, viria, inclusivamente, a desenvolver uma Antropologia do Conscrito. A Segunda Guerra Mundial catalisou grandemente a aproximação entre o campo científico e os campos político, militar e económico, fenómeno bem perce/ tível nos EUA (convém relembrar que, apesar de beligerantes, o seu território nacional manteve/se intocado pela violência da guerra). As principais universida/ des americanas associaram/se, desde o início, aos esforços de guerra, criando condições para se constituírem, no pós/guerra, num poderoso instrumento de consolidação geopolítica do seu país. Foi neste quadro que as ciências sociais aproveitaram as circunstâncias históricas e políticas, determinadas sobretudo pelas questões de segurança, para justificar a seu crescimento no interior das universidades, ao mesmo tempo que aumentava o reconhecimento público dos seus méritos. É o “boom” da Antropologia, da Ciência Política, da exportação dos modelos da Economia, da interferência da Psicologia nos processos de tomada de decisão ao nível do Estado e no apoio à guerra e também da Sociologia, na pro/ moção dos equilíbrios de ordem social doméstica (Curto, et al., 2010, pp. XII/XIV).

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Foi nesta senda que, nos EUA do final da década de 1950 e início da década seguinte, esteve muito vivo o debate sobre se o assunto “guerra e socie/ dade” deveria pertencer a historiadores militares ou se deveria caber a especia/ listas no âmbito de outras disciplinas, como a Sociologia. A aproximação entre a especialização e a universalidade e a compreensão da sua necessidade mútua para o estudo do “tempo longo”, contribuíram para a reabilitação da História Militar e, com ela, numa nova abordagem interdisciplinar, abriram/se as portas a um novo olhar sobre a conflitualidade em geral (Paret, 2009, pp. 1291/1292). O primeiro avanço neste sentido é no campo da Sociologia Militar – datam desta época os trabalhos precursores de Samuel Huntington e Morris Janowitz, res/ petivamente The Soldier and the State: The Theory and Politics of Civil Military Relations (1957) e The Professional Soldier (1960). Ora, esta reconciliação da História com o estudo da guerra, em particu/ lar, e da conflitualidade, em geral, é sensivelmente coincidente, no tempo, com o surgimento das teorizações da Estratégia que preconizam a “Estratégia Inte/ gral”. Dizemos “sensivelmente” coincidente porque, durante as décadas de 1950 e 1960, quer na Estratégia, quer na História, mesmo depois da Introdução à Estratégia de Beaufre, em 1963, coexistiram correntes de pensamento que con/ tinuavam a preconizar uma Estratégia encerrada no domínio militar (e subordi/ nada a este). Veja/se o caso de Éric Muraise, pseudónimo do coronel Suire, que, tal como o general Beaufre, servia no Exército Francês e que publicou, em 1964, a sua Introduction a l’Histoire Militaire. A abordagem de Muraise advoga que a Arte Militar está condicionada por dois domínios gerais, o Político e o Técnico, sendo que a Estratégia é um subdomínio deste segundo, a par da Doutrina Táti/ ca, da Logística e da Organização. No entanto, Muraise (2008, pp. 23/24) admitia, talvez numa perspetiva ao mesmo tempo defensiva e premonitória, que as noções de Tática e Estratégia não eram estáveis, dado que cada época tinha uma conce/ tualização própria. A abordagem de Muraise, enquanto historiador, continua a fazer sentido. Ao olhar para o passado, com os olhos de 1964, vê a Estratégia como “assunto eminentemente militar”, embora careça de uma filtragem ao uso do termo, que o faz incorrer em anacronismos quando o utiliza, com o mesmo significado, para toda e qualquer cronologia que trate19. Seja como for, a partir da década de 1960 passamos a assistir a uma Nouvelle Histoire que já não encontra pruridos em estudar assuntos como a guerra, ao mesmo tempo que passamos a ter uma concetualização vertical da 19

Esta situação constitui, aliás, uma questão ainda hoje presente. Com efeito, o termo “estratégia”, entendido no seu sentido abrangente, no âmbito do senso comum, tem/se estabelecido na própria historiografia quando se assumem com naturalidade expressões como “estratégias de poder dos soberanos medievais” ou “estratégias de Portugal na expansão marítima”.

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Estratégia, que é a base da que se utiliza hoje em dia. Mas o mais relevante des/ te encontro é que, uma vez estabelecida a ligação entre as duas, já não faz muito sentido que a Estratégia se ligue a uma História tradicional (que até tem vindo a perder adeptos no campo científico), quando a Nouvelle Histoire lhe pode ofere/ cer mais, tendo em vista os seus propósitos. Marc Trachtenberg, em The Craft of International History (2006, pp. 34/ 39), uma obra dedicada essencialmente a questões metodológicas, expõe, de uma forma muito prática, a relação entre qualquer campo científico no âmbito das Relações Internacionais (e isto inclui a Estratégia) e a História. Fá/lo nos dois sentidos: (i) A Teoria das Relações Internacionais não oferece respostas ao historiador, mas dá/lhe pistas claras para formular questões ajustadas no seu processo de investigação, e guia/o na busca de fontes adequadas à obtenção dessas respostas. O uso de uma teoria permite também formular um conjunto de hipóteses, à partida, que poderão ser confirmadas ou infirmadas após a aná/ lise das fontes históricas; (ii) Em sentido inverso, a Teoria das Relações Interna/ cionais só tem a ganhar se se mantiver aberta aos novos argumentos gerados pelos historiadores. Além disso, a razão mais evidente para que os teorizadores conheçam a história é o simples facto de que é nela que encontram os exemplos que lhes permitem ilustrar os aspetos teóricos. Historiadores e estrategistas têm muito a aprender mutuamente, mas é importante manter presente que expressam culturas diferentes e buscam ver/ dades diferentes. Os historiadores estão sempre prontos a encontrar o extraor/ dinário; os estrategistas, em sentido oposto procuram, e quase sempre encontram, padrões de comportamento (Gray, 2006c, p. 54). O papel fundamental que o passado (e, se quisermos, a História) tem para a Estratégia é óbvio. Talvez não tão evidente, mas igualmente admissível, é o papel que a Estratégia pode ter na História, nomeadamente o modo como a própria Estratégia se descobre na História. As duas secções que se seguem abordam estas duas perspetivas.

A Estratégia na na História A importância de detetar a Estratégia na História está relacionada com o corpus escrito herdado pelos teorizadores da Estratégia. Este talvez seja o pri/ meiro grande contributo da História para a Estratégia: ser capaz de elaborar a História da própria Estratégia. A Física não se estuda sem ter em conta Newton, Faraday ou Einstein; a Psicologia tem de conhecer o pensamento de Freud e Jung e o que realizaram. Por esta ordem de razões, conscientes de que pode/ ríamos inserir a História da Estratégia no rol dos contributos que a primeira _____ 145 147

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pode oferecer à segunda, expostos na secção seguinte do presente ensaio, optámos por destacar esta temática no presente subcapítulo, independente. Tho/ mas Khun, físico e filósofo da Ciência, questionava/se acerca do interesse da sua geração pelo estudo da História da Ciência. A razão foi encontrada na “insatisfa/ ção acerca da tradição e na procura de pistas comportamentais que permitissem a reformulação da própria Ciência” (Trachtenberg, 2006, p. 36). Estudar a História da Estratégia é indispensável para fazer progredir a Estratégia. Colin Gray é, talvez, o estrategista que mais trabalhou nas relações entre a Estratégia e a História, na perspetiva do contributo que a segunda pode dar para a primeira. Salienta, como fator preponderante, que uma das mais/valias que, no imediato, a História pode conferir à Estratégia é o já vasto corpus escri/ to, que acabou por ser incontornável pelos estrategistas da Guerra Fria: a maio/ ria deles tinha pelo menos ouvido falar de Sun Tzu, Maquiavel, Saxe, Guibert, Clausewitz, Jomini, Bloch, Mahan, Foch, Douhet, Liddell/Hart e Fuller, para citar somente alguns (Gray, 2006b, p. 25). Com efeito, o estudo dos autores que, no passado, se debruçaram sobre a Estratégia e as suas problemáticas (não entrando, aqui, no campo do anacro/ nismo do termo para períodos anteriores ao século XVIII) revela/se indispensá/ vel. Em primeiro lugar, porque só através deste corpus se pode mapear a evolução, quer do lavor estratégico, quer do próprio conhecimento teórico, de modo a percecionar as evoluções e os trajetos, quer dos conceitos, quer da sua aplicação prática. Em segundo lugar, porque conhecimento novo no campo da Estratégia só é possível quando edificado sobre o “estado da arte”, que só pode ser conhecido através do legado escrito. Um aspeto relevante é a dialética entre a necessidade prática do uso do conceito referido a períodos longos e o facto do seu uso anacrónico correr riscos ao nível da justeza das realidades que se pretende expressar. O que dizer dos trabalhos relativos ao “pensamento estratégico português”, desde a formação do reino, no século XII, quando, em sentido restrito, o termo Estratégia só surge no século XVIII?20. No entanto, é inquestionável a necessidade de perceber os per/ cursos e mecanismos inerentes à prática da atividade, que hoje conhecemos como “estratégica”, ao longo dos tempos. Podemos assistir a duas formas de contornar este problema, muitas vezes mais “semântico” do que real: centrando o estudo histórico, não na Estratégia propriamente dita, mas nos contributos do passado para a “estratégia nacional”, como fez Loureiro dos Santos (1985), ou centrando/o na guerra ou na conflitualidade, como fez António Barrento (2010, pp.49/67). 20

Sobre este tipo de abordagens consulte/se, especialmente, um trabalho que assume explicitamente a existência de um conceito estratégico nacional: Cadete, et al., 1991, mas também, embora já com mais reservas, Ramos, 1991 e Cardoso, 1992.

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Esta necessidade de utilização do conceito em tempos mais recuados (onde este se encontrava “camuflado” por outras designações) é, em princípio, indiciadora de que a atividade estratégica é, pelo menos, tão antiga quanto os primeiros registos invocados pelos autores que se ocupam do seu percurso ao longo do tempo que, habitualmente, remonta à Antiguidade Clássica. O que está em causa é o momento do nascimento da Estratégia, tal como hoje a conceptualizamos. Horta Fernandes (1998, p. 40 e 46) chega a falar de uma época que designa de “a/estratégica”, admitindo que a atividade é empre/ gue como expediente técnico, que assume várias designações diferentes e que não beneficia de concetualização alguma ou, quando muito, está num quadro de infra concetualização. Uma outra observação, agora especificamente sobre o historial da Estraté/ gia, remete/nos para a conclusão de que, sendo os autores mais ou menos con/ cordantes ao descrever o percurso histórico da atividade (de um modo geral, todos efetuam um percurso cronológico semelhante), a organização em períodos ou fases está quase sempre presente, mas não é coincidente, de autor para autor. Gérard Chaliand (1990) organiza a sua antologia em quinze capítulos, num misto de correspondência cronológica e espaço/cultural. Inicia pelos autores da Antiguidade Oriental, seguindo/se Grécia e Roma, Bizâncio, China, Índia, os Ára/ bes, os Persas21, os Turcos, os Mongóis e a Ásia Central, Séculos XV e XVI, Século XVII, Século XVIII, Século XIX, Século XX e, finalmente, Era Nuclear. Horta Fernandes, talvez o mais “purista” dos autores consultados no que toca à utilização do termo “Estratégia”, na sua Genealogia Crítica do conceito (1998, pp. 29/54), utiliza três períodos: a “Antiguidade Clássica”, a “Idade Média” e a “Modernidade e o verdadeiro nascimento da Estratégia”. Hervé Coutau/Bégarie (2010, pp. 52/64) considera dois grandes momentos. Um primeiro, que designa “A Constituição da Estratégia”, engloba o tempo desde a Antiguidade até ao Século XIX; seguidamente, “A extensão da Estratégia”, vem até à atualidade, passando pelo surgimento das que designa por “Estratégias não/ militares” e pela “terceira/extensão: a generalização da Estratégia”. Num trabalho recente, Vieira Borges (2013, pp. 15/16), por “razões essen/ cialmente pedagógicas”, opta por dividir a evolução do pensamento estratégico em quatro grandes fases a que chama, respetivamente, “Estratégia das Ori/ gens”, da Antiguidade Clássica a Clausewitz; “Estratégia ao Serviço da Guerra”, de Clausewitz a Beaufre; “Estratégia Intergal”, de Beaufre até à Agenda pra a Paz, de Boutros/Gali; e “Estratégia Mundial”, até aos dias de hoje.

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Sassânidas, correspondendo ao período pré/islâmico e islâmico e não à Antiguidade Clássica.

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É claro que existem pontos de unanimidade. A origem do vocábulo está perfeitamente identificada, remontando à Antiguidade Helénica. Deriva etimo/ logicamente da palavra grega stratêgos, com o significado de “comandante de um exército”, responsável pela cidade ou o “comandante da frota”. A palavra consiste na composição de duas outras: stratos, o equivalente a exército; e agein, o sinónimo de “conduzir” (Fernandes, 1998, pp. 29/30 e Borges, 2013, p. 17). O período de sombra que corresponde, sensivelmente, à Idade Média Ocidental é, normalmente, preenchido com o florescimento oriental, nomeadamente na China, de uma tradição de pensamento estratégico que remontaria ao século V a.C. e a Sun Tzu. É também consensual que as condições para o surgimento e re(início) do desenvolvimento do termo em direção à significância atual, começa/ ram a ser criadas com o advento do estado/nação e o aumento da complexidade da arte da guerra. Em 1732, a palavra Stratège ou Stratègue, surge contemplada no Dictionaire Universel de Français et Latin, geralmente dito “de Trévoux”, desig/ nando o comandante das tropas, em linha com o sentido original helénico. O termo seria introduzido com o significado clássico, de grande tática ou de tática dos exércitos, em 1772, por Joly de Maiseroy, nos seus Comentários sobre as Insti

tuições Militares” (Fernandes, 1998, p. 48 e Borges, 2013, p. 25).

A História na na Estratégia Uma vez que a relação primeira entre Estratégia e História é a inevitabili/ dade da primeira necessitar da segunda, diríamos que, em maior medida que a necessidade contrária, poder/se/ia perguntar por que razão não são os historia/ dores, detentores do conhecimento do passado, a protagonizar os estudos estra/ tégicos. A resposta de Colin Gray (2006b, p.30) é que é pouco provável que o historiador esteja munido com as ferramentas que lhe permitam trabalhar como um cientista político. Mas possui outras ferramentas, próprias da investigação em história, que, sendo utilizadas pelo estrategista, podem contribuir, em grande medida, para a obtenção de melhores resultados. Nesta secção mencionaremos três dos contributos que, acreditamos, a História pode fornecer à Estratégia.

A Estratégia e a abertura abertura à interdisciplinaridade da Histó História A abertura à interdisciplinaridade protagonizada pela escola dos Annales é, mais do que compatível, convidativa ao entrelaçar de métodos e de visões entre a Estratégia e a História. Esta interdisciplinaridade, indispensável ao bom _____ 148 150

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desempenho da Nouvelle Histoire, faz da ciência histórica o ponto de encontro entre vários campos do saber, aos quais a Estratégia não é alheia. Este primeiro contributo é o que designaríamos de “contributo/chave”, pois é à luz dele que os dois seguintes, por extensão interdisciplinar, poderão ser aplicados a outros campos do saber que não a História, mas que lidem igualmente com o passado. A intervenção de diferentes campos científicos num mesmo espaço tem a enorme vantagem de poder colocar teorizações em teste. As teorias, em qual/ quer campo científico, são modelos e, por conseguinte, simplificações da reali/ dade. O trabalho do historiador pode contribuir para fornecer a “sintonia fina” das teorizações; para acrescentar aquele pormenor que faltava para aproximar a teorização, ainda mais, do mundo real (Trachtenberg, 2006, p. 41). À interdisciplinaridade da História poder/se/á acrescentar aquilo a que chamaríamos de multidisciplinaridade dentro da História. Com efeito, o estudo do passado é de tal maneira vasto, que torna necessária a setorização através de pontos de observação específicos. Uma modalidade, comum no mundo acadé/ mico, mais por uma questão de afinidade de fontes e de metodologias de inves/ tigação, é a setorização da História em “cronologias” ou períodos (História Antiga, História Medieval, História Moderna…). Mesmo assim, no mundo da investigação, cada uma destas cronologias específicas tende a conter especiali/ zações (como a História da Escrita, na Antiguidade, ou História da Arquitetura Militar Renascentista, por exemplo). Estas podem estar relacionadas com a área geográfica, com áreas bem delimitadas de atividade humana ou, dentro delas, com campos de estudo ainda mais restritos. As especializações que, pelo menos em teoria, servirão mais ao estrategista, são as temáticas, mas que atravessam várias cronologias: uma História Política, uma História Económica e Social, uma História Militar, são disciplinas que, dentro da História, oferecem mais poten/ cial no apoio ao estudo da Estratégia porque, por inerência, têm mais apetência para lidar com o tempo longo. A História deve funcionar, portanto, como ponto de encontro dos vários saberes, permitindo estabelecer, a todo o momento, relações “win win” ou, por outras palavras, a multidisciplinaridade, à qual a História está aberta, cria um terreno propício à geração de sinergias não só entre a Estratégia e a História, mas também entre a Estratégia e outros campos do saber, assumindo que todos têm em comum a necessidade de utilização do passado como “material de trabalho”.

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A Estratégia e o tempo tempo longo A preocupação com o tempo longo, largamente introduzida pelos Anna

les, serve em grande extensão os interesses da Estratégia. O primeiro sintoma da incontornabilidade do recurso ao tempo longo é a já referida frequente coin/ cidência do historiador e do estrategista na mesma pessoa. René Chaliand é, também, exemplo desta simbiose. Na introdução à Anthologie Mondialde de la Stratégie (1990, pp. IX/LIX), não hesita em recorrer permanentemente ao tempo longo para explicar a evolução da Estratégia, sob o título de “Guerras e culturas estratégicas através da História”. Mais do que um panorama geral evolutivo, a preocupação de Chaliand com o tempo longo permitiu/lhe desmistificar algu/ mas ideias tradicionalmente vigentes, das quais o autor salienta quatro, que se apresentam nos parágrafos seguintes. Verifica que a teorização sobre a oposição entre potências marítimas e potências continentais, levada a cabo pelas escolas geopolíticas é recente. A corrente vigente durante mais tempo no Ocidente, entre o século IV a.C. e o século XV, foi a de oposição entre os nómadas da Ásia Central e as civilizações sedentárias ocidentais. Alude ao quadro histórico europeu de conjunto, cuja grande oposição, ao longo da história, é a da Europa/Islão. Alerta, no entanto, para o panorama noutros espaços do globo, espelhado igualmente no tempo longo. Afirma que, em espaços mais vastos, o elemento que sofreu pressão foi o Islão: só na Histó/ ria Moderna, na Ásia Central e Cáucaso, o Império Russo pressionou constan/ temente os poderes islâmicos; na Índia, a dominação britânica colocou um ponto final num domínio muçulmano de mais de três séculos e, aquando da independência, conduziu os hindus ao poder, a ponto de uma parte significativa dos muçulmanos da Índia optarem pela secessão. Afirma que o nacionalismo moderno, que nasceu na França no final do século XVIII e se difundiu pela Europa no século XIX e XX e a ideologia quasi/ universal do estado/nação, fizeram esquecer o caráter intereuropeu e mercená/ rio (multiétnico) da maioria dos exércitos europeus até meados do século XVII, mesmo já num quadro de “Estados” dinásticos. Sem negar a importância do nacionalismo, importa perceber até que ponto a reinterpretação nacionalista da História, depois de sair da Baixa Idade Média, não será excessiva. Por fim, alude aos critérios moralizadores utilizados por Montesquieu ou Toynbee para condenar a guerra ou ilibar as causas de uma decadência, que parecem perdurar nas apreciações sobre o declínio dos impérios. Roma, como todos os impérios, usava de crueldade, mas nós temos pouco em conta a perce/ _____ 150 152

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ção dos seus adversários (o fenómeno é inverso quando estudamos os Mongóis: porque são os vencidos que relatam). Por sua vez, Colin Gray chama a atenção para a função operativa dos con/ ceitos da Estratégia, que encontra paralelo com uma função análoga dos concei/ tos da História, observação que só é possível, e só faz sentido, mediante a visão do tempo longo. Usa, como objeto do seu argumento, o debate sobre a existência do conceito de Revolução dos Assuntos Militares22. Nota que, utilizando os mesmos dados do passado, há estudiosos que defendem a existência de Revoluções dos Assuntos Militares e outros que a negam, defendendo estes últimos que a mudança nos assuntos militares é constante ao longo do tempo, que qualquer grande mudança aparente tem uma proveniência muitas vezes lenta e diversa e que, ao fim e ao cabo, a História não é marcada por grandes descontinuidades. Em suma, pode/se, portanto, utilizando exatamente os mesmos dados do passa/ do, identificar uma ou várias Revoluções nos Assuntos Militares, ou pode/se, simplesmente, considerar que as revoluções não existiram. A escolha depende da conveniência para o investigador; não é ditada pelos dados (Gray, 2006g, p. 114). Se assim é, poderemos perguntar/nos para que serve o tempo longo, se, em última análise, o investigador pode “fazer com ele o que mais lhe convém”. A Chaliand, permitiu “desmistificar” algumas ideias enraizadas na historiogra/ fia, mas Gray demonstrou que quaisquer conclusões podem ser conduzidas mediante um certo uso seletivo dos dados (o contributo seguinte apresentará alguns métodos para reduzir este risco, mas, por agora, concentremo/nos na questão da utilidade da noção de tempo longo). Parece/nos que a principal mais/valia se encontra na circunstância de que a observação de uma mesma tipologia de fenómenos, em cronologias alargadas, permite estabelecer relações causa/efeito que, ainda que possam estar rodeadas de incerteza, constituem o passo fundamental para o estabelecimento de teorizações. Permite, pelo menos, perceber as “constantes” e as “variáveis” de determinado fenómeno, algo que não seria possível atendendo somente os acontecimentos per se.

A Estratégia e os métodos de investigação em História História A Crítica e a História Comparada são dois métodos comummente aplica/ dos na investigação histórica e que podem ser facilmente transpostos para o estudo da Estratégia, resultando, cremos nós, em valor acrescido. Importa salientar, desde já, que estes métodos não são exclusivos da história, antes 22

Conceito que advoga que em certos momentos da História, novas doutrinas ou tecnolo/ gias conduziram à mudança drástica na condução da guerra.

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extensivos às Ciências Sociais e a sua utilização não significa que um investiga/ dor no campo da estratégia tenha de se tornar um historiador, mas o primeiro pode obter conclusões mais sólidas, quando observa a História, se dominar alguns aspetos metodológicos. Uma das maneiras de diferenciar as disciplinas sociais das restantes tem a ver com o uso do chamado “método crítico”. Nesta lógica, a especificidade dos historiadores e a sua autoridade legítima estariam ligadas a um método particular, centrado no uso crítico do documento. Como se verifica claramente a partir da leitura da revista dos Annales, as normas da crítica e do testemunho tanto podem aplicar/se ao passado como ao presente e, por conseguinte, não deveriam ser consideradas como um domínio reservado da História, mas como um bem comum a todas as ciências sociais (Bosa, 2011, pp. 167/168). O método crítico é utilizado, em História, para avaliar a condição que um documento tem para a investigação pretendida (crítica externa) e a consistência dos dados (crítica interna). Quando falamos de um documento, podemos igual/ mente referir/nos a qualquer tipo de fonte de informação, incluindo uma entrevista. A crítica externa procede de forma análoga a um tribunal, quando avalia a idoneidade de uma testemunha. É preciso verificar em que medida a fonte ou o conjunto de dados em apreço está “bem posicionada” para nos dar a informa/ ção pretendida (Rego, 1963, pp. 113/116). Esta avaliação é passível de efetuar quer o objeto se trate de jornal periódico de 1914, em História, quer se trate de uma relação entre terrorismo e estratégia da guerra subversiva, estabelecida por um teorizador contemporâneo, no campo da Estratégia. Neste segundo caso, o que deve ser avaliado é o produtor da informação e o seu contexto de produção (a matriz cultural, a tendência política, etc.). A própria nacionalidade do teorizador, a época e a conjuntura em que produziu o seu trabalho devem ser alvo desta visão crítica. Poirer, por exemplo, é francês, num quadro em que a França é potência nuclear e “expulsara” a OTAN do seu território, com De Gaulle, em 1967. Teoriza, ainda nesse ano, sobre a dissuasão do “fraco contra o forte” e o proble/ ma da credibilidade23. Um investigador que tenha presente o contexto de Poirer, e sobre ele um olhar crítico, terá uma leitura necessariamente diferente de um outro, que não conheça o background do estrategista em estudo. A crítica interna ocupa/se, essencialmente, em determinar o grau de con/ cordância de uma informação com dados da mesma natureza obtidos a partir de outras fontes. Em História, esta crítica pode ser de interpretação ou herme/ nêutica, de originalidade, de autoridade ou grau de qualificação de um autor sobre a matéria que trata e de veracidade (a mentira pode ser voluntária ou

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Ver Poirier, 1982, pp. 131/219 e também 235/284.

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involuntária). Em Estratégia, este tipo de crítica é igualmente válido. Horta Fer/ nandes (1998, pp. 55/127), por exemplo, efetua constantemente uma crítica interna bastante profunda no seu capítulo sobre as concetualizações contempo/ râneas da estratégia. Outro método, o da História Comparada, pode igualmente contribuir para o estudo da Estratégia e, tal como o método crítico, ser aplicado direta/ mente na concetualização e teorização da Estratégia. Este método consiste em observar um objeto particular e relativamente desconhecido, à luz de um outro, da mesma natureza, que é conhecido. No limite, qualquer teorização no âmbito da Estratégia recorre, implicitamente, a este método. Por exemplo, na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001, os estrategistas esforçaram/se por estabelecer teorizações sobre terrorismo, que só se foram estabilizando a partir de 2006 (Borges, 2013, pp. 76/80). Em 2001, dado o escasso trabalho neste cam/ po e o desconhecimento dos contornos exatos do novo conceito de “terrorismo transnacional”, o único recurso à disposição foi a comparação da nova realida/ de com os conceitos, já consagrados na estratégia, de guerra subversiva24. É indiciadora deste processo comparativo a definição atribuída por Proença Gar/ cia (2010, p. 192) e John Mackinlay (2002, pp. 12/13) de que o terrorismo trans/ nacional é uma “ação subversiva global”. O método comparativo é propício a alguns erros. O historiador, que habitualmente lida com o passado, está permanentemente alerta para os evitar ou, pelo menos, minimizar. A Estratégia só tem a ganhar se os tiver, igualmente, em atenção. O erro de anacronismo surge quando a comparação entre realidades his/ tórico/sociais afastadas no tempo leva ao transporte de elementos de uma sociedade para outra em que estes elementos não se enquadrem ou sejam ine/ xistentes. É útil, por exemplo, comparar os mecanismos essenciais da Guerra do Peloponeso com facetas do quadro internacional atual, mas a sua transposição para a atualidade e aplicação à teorização estratégica não deve deixar de ter em conta aspetos como o conceito de democracia helénico não ser exatamente o mesmo que o atual. Bastante associado ao anterior, surge também o erro da leitura forçada, que consiste na insistência em ajustar todas as realidades de um objeto que se conhece ao que não se conhece tão bem, como se o primeiro se tratasse de um modelo em relação ao qual todos os restantes se podem aproximar ou afastar. Este tipo de erro está igualmente presente quando se recorre à comparação 24

Associação de terrorismo a guerra subversiva, vejam/se Barrento, 2010, p. 83, Garcia, 2010, p. 134. Sobre os problemas que o atentado criou na comunidade de teorizadores da estratégia, veja/se Coutau/Bégarie, 2010, pp. 413/414.

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entre uma teoria (como a “Teoria da Guerra”, por exemplo) e uma situação real observada. O risco do recurso a teorizações é o de forçar elementos de prova, nas fontes (no caso da História) ou na observação do real (no caso da Estraté/ gia), extraindo somente o que corresponde ao quadro pré/concebido ou mesmo enviesando os dados (Trachtenberg, 2006, p. 33). Finalmente, o erro da ilusão sincrónica, ideia de que todas as sociedades são comparáveis e que se encontram em estádios semelhantes de desenvolvi/ mento. É, por vezes, justificada pela constatação de dois objetos análogos, em idênticos estádios de desenvolvimento, levando a deduzir (abusivamente) que o seu percurso, até ao momento observado, foi idêntico. A ilusão sincrónica esquece/se de que dois objetos podem ter dinamismos próprios bem diferentes. Por exemplo, democracia, globalização, debilitamento (ou não) do estado/ nação, são palavras e temas atuais da Ciência Política. No entanto, em diferentes sociedades contemporâneas, essas palavras têm diferente densidade, carga histórica e até significado imediato, ainda que pareçam aludir a realidades específicas similares. Sem a precaução de indagar e precisar estas diferenças, essas palavras, em vez de nos permitirem esclarecer cada realidade, servem, simplesmente, para a mascarar, espalhando a investigação por realidades polis/ sémicas em vez de por objetos de estudo concretos. Nesta indagação, é impres/ cindível o apoio da História (Gilly, 2010, p. 219).

Síntese conclusiva O presente trabalho representa uma incursão, das muitas possíveis, no domínio da relação entre Estratégia e História. Escolheu/se, por isso, uma via assente numa prévia delimitação a cada um dos conceitos. Não se procurou uma definição ou uma delimitação rígida, mas sim o conjunto de caraterísticas suficientes para que as duas áreas do saber se aproximassem o mais possível da ciência (embora sem haver necessidade de um comprometimento acerca do grau de cientificidade de cada uma). Foi desta forma que nos concentrámos numa “Estratégia” em sentido restrito e numa História enquanto ciência, que foram tidos em conta para a identificação de pontos de relação mútua. Esta relação inicia/se desde logo por ambas as disciplinas fazerem uso do passado, caraterística comum a todas as ciências sociais, mas a História desempenha aqui um papel sobejamente dife/ rente de qualquer outra: tem o dever de iluminar o passado, em benefício de todos os que o utilizam. A Estratégia é inseparável do passado. Se esse “passa/ do” for “História”, melhor. _____ 154 156

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Observámos, depois, as duas disciplinas nos dois sentidos de uma mes/ ma direção: a Estratégia na História e a História na Estratégia. A breve incursão efetuada no sentido de perceber a Estratégia inserida na História ou, por outras palavras, observar o modo como a generalidade dos autores visualiza a Estratégia ao longo do tempo, permitiu perceber que esta beneficia de um significativo legado escrito. É este legado que permite detetar a atividade como essencial e operativa no âmbito das relações entre poderes (pelo menos desde que há registo, na Antiguidade Clássica). No entanto, o estudo do passado da Estratégia impõe, por uma questão de necessidade “técnica”, o recurso ao anacronismo na terminologia, quando se tratam períodos anteriores ao século XVIII. A organização do percurso cronológico da Estratégia parece seguir mais a conveniência de cada autor do que um faseamento consagrado, embora existam “lugares comuns incontornáveis” que acabam por ser contem/ plados por todos. A presença da História na Estratégia foi materializada por intermédio de alguns contributos que a primeira pode oferecer à segunda. A abertura à inter/ disciplinaridade é o contributo que abre a porta a todos os outros. Vimos, tam/ bém, que a própria especialização dentro da História pode constituir um bom apoio, dado que algumas especializações constituem pontos de observação favoráveis para as realidades que mais interessam à Estratégia (História Políti/ ca, por exemplo). Por seu turno, o recurso ao Tempo Longo, mesmo com a pro/ blemática de permitir diferentes construções da narrativa do passado, é o principal processo conducente à identificação de constantes e variáveis, pelo que se torna essencial para a formulação de modelos teóricos, tão próprios da Estratégia. Finalmente, vimos como dois métodos de estudo em História – a Crítica e a História Comparada – podem ser utilizados, praticamente sem modi/ ficações, por parte dos estrategistas, acabando estes por obter benefícios seme/ lhantes aos dos historiadores.

Referências bibliográficas Barrento, A., 2010. Da Estratégia. Lisboa: Tribuna da História. Beaufre, A., 1998. Introdução à Estratégia. Lisboa: Edições Sílabo. Borges, J. V., 2013. O Terrorismo Transnacional e o Planeamento estratégico de Segurança Nacional dos EUA. Porto: Fronteira do Caos.

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Estudos de Homenagem – Abel Cabral Couto

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