História e Historiografia: a Crônica dos Godos e sua problemática de datação

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2014 HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MEDIEVAL III ENCONTRO DA ABREM CENTRO-OESTE ANAIS | ISSN 2359-0068

EXPEDIENTE HISTÓRIA, POLÍTICA E PODER NA IDADE MÉDIA I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA MEDIEVAL III ENCONTRO DA ABREM CENTRO-OESTE ANAIS | VOLUME 1, NÚMERO 1, 2014 ISSN 2359-0068 CEDOC CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO UEG EDITORES PROF. DR. ADEMIR LUIZ DA SILVA PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES PROF. MS. IVAN VIEIRA NETO COMISSÃO EDITORIAL PROFª DRª RENATA CRISTINA DE S. NASCIMENTO (UFG/UEG/PUC-GO) PROF. DR. FERNANDO LOBO LEMES (PUC-GO/CAPES) PROF. DR. ADEMIR LUIZ DA SILVA (UEG) PROF. MS. IVAN VIEIRA NETO (PUC-GO) COMISSÃO CIENTÍFICA ADEMIR LUIZ DA SILVA (UEG) ARMÊNIA MARIA DE SOUZA (UFG) ADRIANA VIDOTTE (UFG) BRUNO TADEU SALLES (UEG) CLEUSA TEIXEIRA DE SOUZA (UEG) DIRCEU MARCHINI NETO (PUC-GO) EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS (UEG/PUC-GO) JOSÉ JIVALDO (UFG) MARIA DAILZA FAGUNDES (UEG/UFG) RENATA CRISTINA NASCIMENTO (UFG/UEG/PUC-GO) MS. MURILO BORGES SILVA (UFG) PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS ESCOLA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES E HUMANIDADES PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

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DESLOCAMENTOS DEVOCIONAIS: FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM PIRENÓPOLIS/GO João Guilherme da Trindade Curado1 Rosana Romenia Fernades Leal2 Adolpho Randes Mesquita Ferreira3

O desejo de peregrinar está profundamente arraigado na natureza humana (RUNCIMAN, 2003, p. 46).

Refletir sobre a devoção ligada à religiosidade humana é uma atividade que exige um campo interpretativo extremamente amplo, uma vez que o mesmo vocábulo recebeu, ao longo da história, interpretações diferenciadas, assim como as práticas exercidas em nome da fé. Apontamos inicialmente o aspecto temporal como justificativa para a abordagem dos fervores religiosos ligados ao catolicismo, e tendo por foco a tríade constituída pela: ampliação, comprovação e difusão devocional. Para tanto, o foco centra-se em aspectos históricos que ao longo da trajetória humana constituiu práticas sociais que sejam capazes de exemplificar a devoção. Assim chegaremos à Folia do Divino Espírito Santo que acontece na goiana cidade de Pirenópolis. 1

Doutor em Geografia (IESA/UFG). Professor da Rede Estadual de Educação de Goiás. Professor Temporário da Universidade Estadual de Goiás —Unidade Universitária de Pirenópolis. Integrante do Grupo de Pesquisa Saberes e Sabores Goianos. O presente artigo está vinculado ao Projeto de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás” (UEG), e ao Projeto de Pesquisa: “Artes e Sabores nas Manifestações Populares” (Fapeg). [email protected] 2 Acadêmica do Curso de Tecnologia em Gestão de Turismo da UEG/UnU-Pirenópolis. Bolsista UEG/CNPq pelo Projeto de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás”. [email protected] 3 Acadêmico do Curso de Tecnologia em Gastronomia da UEG/UnU-Pirenópolis. Integrante do PIVIC/UEG pelo Projeto de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás”. [email protected]

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Perpassando por alguns momentos pretéritos, voltando desde o surgimento do homem sobre a face da Terra, percebe-se que há indicativos de aspectos devocionais desde aquele momento, como por exemplo, para com a natureza, cujo símbolo máximo para eles era o fogo, que não só protegia como também ampliou a base alimentar dos primitivos (WRANGHAM, 2010), conduzindo-os por outros caminhos que proporcionava, ainda, o festejar entre os grupos diferentes, possibilitando maior sociabilidade. No entanto, sendo a Folia do Divino uma das manifestações que compõem as comemorações ao Divino Espírito Santo, faz-se necessário relembrar que esta devoção chegou ao Brasil no período inicial de ocupação, devido à importância que tinha em Portugal e também em grande parte da Europa, devido à difusão das ideias defendidas e professadas por Joaquim de Fiori (1132-1202), um abade cisterciense que pregava o advento da Idade do Espírito Santo “que seria implantado definitivamente a partir de 1260”, conforme ressaltou Brandão (1978, p. 143). As concepções de Fiori estavam inseridas em um contexto bastante amplo, compreendido no que sistematicamente denominou-se de Idade Média, séculos V ao XV. Período que mereceu alguns recortes, como o apresentado por Camargo (2002), em que a autora afirma:

podemos dividir o período medieval em duas fases totalmente distintas do ponto de vista cultural. A primeira corresponde ao período que se segue à queda do Império Romano (século V) praticamente até os séculos IX-X, quando a situação política e econômica começa a se estabilizar. A fase final (séculos XII-XV) equivale ao desenvolvimento da escolástica medieval e à criação das universidades (século XIII) até a crise do pensamento escolástico e o surgimento do humanismo renascentista (século XV-XVI).

As doutrinas teológico-filosóficas que predominavam no período que segundo Camargo (2002) correspondeu à fase final da Idade Média, caracterizavam-se, sobretudo, pelas dificuldades de relação entre a fé e a razão. Talvez esta seja uma das possibilidades pelas quais se fazia compreender os ideários de deslocamentos realizados por peregrinos e em especial pelos cruzados.

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Mesmo sendo o período em questão bastante extenso, algumas características o permearam e são ainda utilizadas pelos medievos como diretrizes essenciais para interpretações, conforme salienta Franco Júnior (1995):

para o homem medieval, o referencial de todas as coisas era [o] sagrado, fenômeno psicossocial típico de sociedades agrárias, muito dependentes da natureza e portanto à mercê de forças desconhecidas e não controláveis. Isso gerava, compreensivelmente, um sentimento generalizado de insegurança. Temia-se pelo resultado, quase sempre pobre, das colheitas (pp. 150-151).

Um dos exemplos de relação com o sagrado foi esboçado pela agricultura, por meio da colheita, mas havia — ainda segundo Franco Júnior (1995) —, inúmeros outros fatores que contribuíram para a perpetuação daquele ideário ao longo dos séculos que compuseram a Idade Média, como a “presença freqüente das epidemias, que não se sabia combater”, assim como o desamparo “diante de uma natureza freqüentemente hostil” (FRANCO JÚNIOR, 1995, p. 151). Grande parte dos reflexos das mencionadas particularidades ideológicas medievais foram transportadas pelas naus lusitanas que aportaram no Brasil, trazendo significativos aspectos culturais que aqui foram adaptados à vontade, necessidade e às possibilidades locais, como as festanças ao Divino, constituída dentre elas pela Folia ao Divino Espírito Santo que com seus vexilos à frente faziam-se seguir por devotos em caminhadas impregnadas pelas ações de ampliação, comprovação e difusão devocional. As investigações propostas serão discutidas a partir de confrontações provenientes das observações realizadas durante vivências de campo em Folias do Divino em Pirenópolis com alguns estudos bibliográficos — sobre as Cruzadas em especial.

Giros Devocionais

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A construção de igrejas durante o período colonial brasileiro era um mecanismo também utilizado como demarcação territorial. Mas muitas das vezes a presença física e imponente das Matrizes, não supria as necessidades devocionais, agravadas pela ausência constante de representantes do clero, principalmente em áreas mais afastadas dos maiores centros urbanos, então existentes. Assim, é possível afirmar que no Brasil Colônia “a história do catolicismo é antes de tudo a história da fé e das crenças vividas pelo povo” (HOORNAERT, 1974, p. 9). Se para os cruzadistas “o Reino de Jerusalém, centro espiritual e topo hierárquico” (ROUSSET, 1980, p. 10) era o destino inconteste, para os brasileiros e não diferentemente, para os goianos, o transitar por várias propriedades rurais ao encalço da Bandeira do Divino foi, e ainda é, para algumas comunidades ou grupos, elemento significativo da comprovação devocional. O giro da Folia constitui-se em um deslocamento prévio e combinado entre fazendeiros ou moradores (no caso específico da Folia da Rua) e os Alferes, foliões que possuem a hierarquia máxima dentro das Folias, e também os responsáveis pelas negociações que definirão o trajeto dos deslocamentos devocionais pelos arrabaldes. A figura dos Alferes muitas vezes foi comparada à dos paladinos, talvez, também, pelo fato daqueles seguirem à frente portando as Bandeiras do Divino que abrem os caminhos para o séquito de foliões devotos. Ainda sobre o giro faz-se necessário relembrar que tal deslocamento possui dinâmicas variadas dependendo da Folia em questão. Para a Folia dos Reis Magos o trajeto é transposto a pé e durante a noite, uma vez que seguem a Estrela do Oriente, conforme explicações de Pessoa e Félix (2007). Para a Folia de São João, bastante comum no Brasil, o caminhar é diurno, uma vez que a noite é dedicada aos rituais próximos à fogueira, conforme foi observado durante estudo sobre festas que acontecem no distrito pirenopolino de Lagolândia (CURADO, 2011). Para a maioria das Folias do Divino Espírito Santo o giro também é diurno, uma vez que a noite é reservada aos pousos. Um ponto de convergência entre as folias conhecidas e as analisadas é que elas saem e retornam, quase sempre, a uma mesma localidade; o que propicia a ideia de circularidade, obedecendo, ainda, o sair em direção ao poente e o retorno pela nascente, orientação semelhante a adotada pelos cruzados, uma vez que saiam da Europa em direção a Jerusalém.

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Ao considerar que a peregrinação exerce as funções de ampliação, comprovação e difusão devocional, por meio da externalização das dificuldades encontradas no trasladar espaços e enfrentar intempéries, é possível verificar ao longo do tempo as apropriações que as religiões delas fizeram em benefício próprio da instituição que defendiam mediante as convicções da religiosidade de seus adeptos, destarte

o costume da peregrinação, vale dizer, a marcha a uma cidade ou sítio marcado por um acontecimento religioso, é antigo e, se não é universal, é pelo menos peculiar à maioria das grandes religiões (cristã, muçulmana e budista) (ROUSSET, 1980, p. 20).

O ato de despegar-se fisicamente de lugares familiares para, em busca de uma devoção enfrentar dificuldades no trajeto e no destino desconhecido — pela fé —, é uma atitude comum, ainda que às vezes pareça estranho, como o era para “os homens da Idade Média [que] sentiam um profundo respeito por Roma, a cidade que era propriedade do papa, mas nunca esqueciam Jerusalém, a cidade eleita de Deus” (GRIMBERG, 1989, p. 27), para a qual deslocavam, inclusive, sob as bênçãos papais, mesmo quando pretendiam além da chegada a posse daquela localidade. De acordo com Giordani: “a aurora da Idade Média está marcada por um acontecimento bem característico: as invasões” (1992, p. 21). Continua posteriormente relembrando que a “expansão e defesa da fé cristã, primazia e independência da Sé Romana”, ocorria essencialmente pela “integração dos bárbaros na Civilização ocidental cristã” ação que sucedia por meio da “orientação e organização dos quadros espirituais e temporais da mesma Civilização” (1992, p. 23). Ações que constituíam as tarefas elementares da Igreja Católica naquele contexto. Destarte, vale ressaltar que inúmeras áreas anteriormente ocupadas por outros povos foram anexadas ao “mundo cristão” que se incumbiu ainda da conversão da população ali residente, mesmo propiciando confrontos mesclados aos instrumentos conversão, uma vez que o grande inimigo que perseguiam eram os muçulmanos, que contraditoriamente, conforme observou Grimberg “nem uma só

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vez, no decurso do seu cativeiro, procuraram os Árabes levar os cavaleiros do Ocidente a mudarem de religião” (1989, p. 75). Mais uma vez percebemos a tentativa de imposição europeia sobre as demais culturas, neste exemplo, especificamente pela falta de reciprocidade das ações dos católicos em relação aos muçulmanos. Tivemos, posteriormente, reflexos que ainda perduram quando da encenação das Cavalhadas, luta entre mouros e cristãos, sendo que estes representam o exército de Carlos Magno que avançam e convertem os muçulmanos ao catolicismo. Tal manifestação ocorre em diversas localidades mundo afora e constituem-se enquanto elemento cultural de diversas comunidades. No Brasil ainda existem apresentações de Cavalhadas em diversas cidades como em Pirenópolis, cidade goiana que em 2010 teve o conjunto de celebrações ligadas às comemorações de Pentecostes reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil.

As Folias do Divino em Pirenópolis

Não foi encontrada até o presente momento uma documentação que indique o início dos deslocamentos devocionais das Folias do Divino Espírito Santo pelo território pirenopolino. Tudo indica que a Folia ocorresse anteriormente ao registro oficial da primeira Festa do Divino, que de acordo com Jayme (1971) data de 1819. A ruralidade da comunidade pirenopolina após o findar das atividades ligadas à produção aurífera contribuiu sobremaneira para a constituição das identidades locais, assim como para o estabelecimento de uma cultura na qual houvesse predomínio de aspectos voltados para o campo. Inicialmente as Folias do Divino aconteciam na área rural, com uma organização exterior aos domínios do clero, e se constituíam de pessoas devotas que providenciavam todas as etapas do giro, que acontecia após a realização das colheitas, como comprovação das ligações existentes permanentemente entre o homem e o ser sagrado, pois como apontou Hoornaert:

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existe uma ligação quase física entre Deus e o mundo: o criador mestre de todo poder intervém a qualquer momento nos assuntos terrestres [...] Não existe discernimento entre transcendência e imanência: existe continuidade perfeita entre natureza e sobrenatural (1974, p. 112).

Por isso a religião não é algo imaterial para comunidades ainda rurais como a pirenopolina, ela materializa-se nas dádivas da colheita abundante que em troca, torna-se elemento de agradecimento ao Deus, por intermédio do Divino Espírito Santo a quem é ofertado os alimentos que serão consumidos pelos foliões. Estes ampliam ao mesmo tempo em que comprovam sua devoção ao girar e consumir, em comunhão com os demais foliões, a comida agradecida em nome do Divino. Entretanto, tais práticas devocionais nem sempre foram bem vistas ou compactuadas pela Igreja, que quase nunca incentivou a realização de Folias, como observou Silva (2001) ao estudar a Folia do Divino de Pirenópolis. Inicialmente relembra que “as folias do Divino foram o grande alvo da atenção da Igreja Católica no período em que se desencadeou o processo de romanização” (p. 99), normativas que se estenderam ainda, de modo geral, às demais festas populares. De acordo com a referida autora duas eram as preocupações da Igreja: a falta de “controle sobre os festejos rurais” e “o outro aspecto, que talvez instigasse até mais a Igreja, era a coleta de esmolas. Grande parte dessas coletas não chegava aos cofres paroquiais” (SILVA, 2001, p. 99). As esmolas doadas ao Divino pelos devotos e foliões não se destinam à Igreja. São frutos da devoção e utilizadas como meio da comprovação da fé e se destinam à realização da Folia ou mesmo da Festa do Divino. São assim disponibilizadas aos mais carentes, que por promessas, promovem pousos de Folia ou ainda encaminhadas para o Imperador que conduz a Festa. Assim é possível outra comparação das práticas da Folia com o período medieval, ao concordar com Le Goff de que a “Idade Média é feita de matérias, de produtos que se permutam, de desordens físicas e mentais” (2013, p. 32). Em observações promovidas durante os giros de Folia do ano de 2013, foi possível compreender algumas das “desordens” apontadas pelo referido historiador. O folião é um cidadão que em dias comuns, na cidade ou área rural de Pirenópolis leva uma vida simples, pautada em trabalho, obrigações, convívio com a família e com a vida social local; nem sempre é um religioso fervoroso que

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frequenta a igreja e comunga dos preceitos estabelecidos. No entanto, ao se propor a girar a Folia, o cidadão simples se transforma em um devoto que festa, mas que principalmente leva a Bandeira do Divino a locais muitas vezes esquecidos pelos representantes religiosos. Tal situação proporciona ao folião uma responsabilidade de difusão da devoção ao mesmo tempo em que amplia e comprova o próprio fervor ao Divino. Quanto às “desordens” físicas pudemos perceber quão cansativos são os trajetos por estradas cheias de poeiras em meio ao cenário da seca que se faz presente no Cerrado no período em questão; assim como o desconforto dos acampamentos que são montados, desmontados e transportados por carros de apoio a cada amanhecer. Sem mencionar a desagregação temporária com a família e demais pessoas do convívio cotidiano — situação amenizada pela fé ao Divino Espírito Santo protetor durante a jornada que a cada ano contribui para que foliões ampliem, professem e difundam suas devoções. Situação adversa acontecia por ocasião das Cruzadas, como relembra Flori, quando os “peregrinos, assim que partiam, eram protegidos pela Igreja até a volta, bem como suas respectivas famílias e seus bens” (2013, p. 321). As Folias do Divino, assim como as demais, são permeadas por rituais que precisam ser cumpridos para evitarem os “interditos”. Desde a saída da Folia, como no giro e nos pousos a ritualidade tem por premissa principal as Bandeiras, para as quais há todo um respeito mesmo por parte dos não foliões e até mesmo pelos não devotos, quando da circulação das mesmas pela cidade nos momentos da saída e/ou da chegada. Durante a trajetória entre os locais de realização dos pousos, os foliões fazem orações individuais ou coletivas e de quando em quando cantam músicas conhecidas que não necessariamente sejam religiosas. Já nas fazendas que abrigaram os pousos os foliões entoam cantos de teor religioso, que geralmente são de conhecimentos de todos e que são destinados a alguns momentos específicos como o agradecimento de mesa ou o agradecimento do “presente” indicado no arco da entrada o que de acordo com Van Gennep (2011), simboliza a “transposição de mundos”, o que faz da fazenda ser a sede, pelo período de um dia, o pouso das Bandeiras do Divino.

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A cantoria também é improvisada em trovas e versos durantes outros momentos rituais como a chegada da Folia na fazenda que receberá o pouso, uma vez que enquanto os serventes (um dos encargos da Folia) não encontram o “presente” (geralmente uma garrafa de pinga) a Folia não avança para chegar ao altar. Assim, vários improvisos são realizados pelos cantores e músicos, sendo que o mesmo acontece após a janta e agradecimento de mesa, por ocasião da retirada de esmolas, quando os cantores trovam versos improvisados a partir da observação atenta de algumas características que percebem nos devotos que seguram as bandeiras, sendo que o homenageado em seguida aos versos recebidos procede doações, geralmente em dinheiro, aos responsáveis por “retirar a esmola”. Os músicos da Folia em sua maioria são pessoas sem formação educacional e que moram ou possuem vínculos estreitos com o mundo rural. Tocam e cantam de “ouvido” como costumam dizer para informar que não estudaram música, o que os diferem dos trovadores medievais, uma vez que segundo Sabaté “o nobre do século XII domina determinados códigos culturais, que incluem conhecimentos como a poesia trovadoresca” (2013, p. 34). Se estes compunham para agradar a nobreza, os foliões o fazem para comprovar a devoção ao Divino. Talvez, por isso, as músicas de Folia do Divino comovem quase todos que as ouvem. Muitas transformações ocorreram nas Folias nas últimas décadas como pudemos observar a partir dos relatos de foliões que giram há tempos e justificam não terem sido apenas os aspectos ligados diretamente à festa que se alteraram, até mesmo a estrutura das propriedades rurais, que anteriormente eram maiores e a tropa se perdia por bivacavas, dando mais trabalho aos foliões iniciantes que ocupam, segundo a hierarquia da Folia, os foliões tropeiros — os responsáveis pelos cuidados com a tropa, como banho, soltura e recaptura dos animais nos pastos hoje localizados próximos à casa que abriga o pouso. Cruzadistas e foliões, cada um a seu modo e há seu tempo, empreenderam deslocamentos devocionais por difíceis caminhos, enfrentando intempéries, cansaço, falta de conforto, afastamentos dos entes queridos e do cotidiano, para em troca ampliar, comprovar e difundir a devoção, que tanto para os de ontem quanto para os de hoje, constituem os fundamentos essenciais da razão de ser no mundo.

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Considerações Finais Ao ponderar que “a ideia de levar o Cristianismo a outros povos, ditos infiéis, não pode ser desprezada no mundo medieval” (NASCIMENTO, 2013, p. 179), implica em compreender que mesmo diante de tantos embates, e mesmo com a Guerra Santa a Igreja estimula o avanço territorial em busca do domínio de Jerusalém, num ato de extrema violência da imposição da conversão pela fé ou pela espada. Em situação adversa está a Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis que visa expandir a fé por espaços pouco contemplados pelas visitas paroquiais e cujo clero se mostra contrário a tais difusões e perpetuações de tal devoção popular. Como podemos observar em dois momentos significativos: em um passado próximo com a instituição de normativas proibitivas e recentemente com a criação de uma Folia do Divino Espírito Santo da Renovação cristã (a Folia do padre) que objetiva se tornar a única Folia a percorrer as fazendas. Outro ponto que merece destaque é a importância que a Festa do Divino, e não diferentemente a Folia do Divino, possuem, conforme observações empreendidas por Mesquita e Oliveira (2013) que alerta para o fato de que ambas “são bastante estudadas, contribuindo assim para registro e divulgação dos conhecimentos ligados à manifestação cultural pirenopolina e que recentemente teve reconhecimento patrimonial” (p. 517). Enfim, diante das observações relacionadas à Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, durante a festa de 2013, conjugadas com as leituras referentes ao período medieval é possível, por meio de analogia, verificar a existência e a permanência da tríade: ampliação, comprovação e difusão devocional por meio das peregrinações que abrangem escalas diferentes, assim como os interesses da Igreja por meio dos variegados deslocamentos.

Referências Bibliográficas

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UM OLHAR PARA O FAZER HISTÓRICO DA BAIXA IDADE MÉDIA A PARTIR DA CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344 Adriana Mocelim4

A Crônica Geral de Espanha de 1344, atribuída ao Conde Pedro Afonso de Barcelos, é representante de uma Crônica Geral, tendo recebido “forte influência da cronística castelhana que teve na obra historiográfica de Alfonso X de Leão e Castela o seu modelo.”5 Segundo coloca Esteban Sarasa Sánchez, inicialmente as crônicas se ocuparam de elementos ligados à história universal, buscando associar suas origens ao livro do Gênesis, seguindo um modelo proposto por Eusébio de Cesarea. Seguiam ainda

un orden cronológico que combinaba fechas de interés eclesiástico con acontecimientos civiles que informaban dentro de una continuidad histórica providencialista. Los autores de crónicas se ajustaron al esquema de las seis edades de la historia bíblica para encuadrar los hechos narrados, pero con el paso del tiempo la evolución de este género fue complicándose y enriqueciéndose hasta incorporar incluso fuentes no narrativas.6

As crônicas que foram produzidas na Península Ibérica a partir de Afonso III de Leão, inseremse em um contexto historiográfico marcado por um poder político que busca consolidar-se, “adquire conciencia de sí y busca un medio de legitimación, justificación histórica y perduración en el ámbito

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Doutora em História. Professora da PUCPR/NEMED. E-mail: [email protected]. KRUS, Luís. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkin, 1997. p. 20. 6 SARASA SÁNCHES, Esteban. La construcción de una memoria de identidad. El género historiográfico en la Edad Media: de lo europeo a lo hispano. In: IGLESIA DUARTE, José Ignacio de la e MARTÍN RODRÍGUEZ, José Luis. (coord.). Actas: Los espacios de poder em la España Medieval: XII Semana de Estudios Medievales, Nájera, del 30 de Julio al 03 de agosto de 2001. Instituto de Estudios Riojanos: Espanha, 2002. p. 414. 5

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cultural, concretamente, en la escritura cronística; acompañando el dominio político con la hegemonia ideológica.”7 Um novo passo na produção cronística foi dado com a Crônica Geral de Espanha, de Afonso X de Castela. Nesta obra estariam presentes quatro elementos fundamentais que, juntos, formam um conjunto renovador em termos historiográficos, seriam eles: “la utilización de fuentes de forma fragmentaria y selectiva, la inclusión de temas entresacados de la poesia popular, la aplicación de fuentes árabes y el uso de la lengua vulgar.”8 O modelo historiográfico, presente no relato afonsino, ressalta a “importancia que adquiere el nivel de la enunciación cronística, con el interjuego temporal entre el pasado de la historia y el presente de la narración, y la muy elaborada construcción de la categoría del yo-narrador.”9 Esse modelo encontrado na Crônica de Afonso X sofreu inúmeras reelaborações tanto no âmbito castelhano-leonês quanto no ocidente da Península Ibérica. 10 Interessam, nessa análise, as remodelações sofridas no reino português, sobretudo aquela realizada pelo Conde Pedro Afonso de Barcelos, e seus refundidores. O Conde inserido, e participante de muitas ações, junto à Corte do Rei Dinis é tido por Luís Filipe Lindley Cintra como

o mais culto dentre os filhos do Rei, que, já em tempo e certamente sob a influência de seu próprio pai, mas também e principalmente sob a forte impressão causada pelo contacto directo com os meios castelhanos onde então eram prolongadas e refundidas as 7

FUNES, Leonardo. Elementos para una poética del relato histórico. In: ARIZALETA, Amaia (éd.). Poétique de la chronique. L’ecriture des textes historiographiques au Moyen Âge (Penínsule Ibérique et France). Toulouse – Le Mirail, Université, 2008. p. 245. 8 SARASA SÁNCHES, Esteban. La construcción de una memoria de identidad. El género historiográfico en la Edad Media: de lo europeo a lo hispano. In: IGLESIA DUARTE, José Ignacio de la e MARTÍN RODRÍGUEZ, José Luis. (coord.). Actas: Los espacios de poder em la España Medieval: XII Semana de Estudios Medievales, Nájera, del 30 de Julio al 03 de agosto de 2001. Instituto de Estudios Riojanos: Espanha, 2002. p. 423. 9 FUNES, Leonardo. Elementos para una poética del relato histórico. In: ARIZALETA, Amaia (éd.). Poétique de la chronique. L’ecriture des textes historiographiques au Moyen Âge (Penínsule Ibérique et France). Toulouse – Le Mirail, Université, 2008. p. 248. 10 Sobre as inúmeras remodelações pelas quais passou a Crônica Geral de Espanha de Afonso X, consultar as obras: BARROS DIAS, Isabel de. Metamorfoses de Babel: a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV) construções e estratégias textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003; ESTEVES, Elisa R. P. Nunes. A Crónica geral de Espanha de 1344: estudo estético-literário. Évora: Pendor, 1997.

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obras de Afonso X, se dedica insistente e decididamente à imitação dos empreendimentos do grande Rei de Castela no campo da historiografia.11

Esse contato do Conde com o trabalho historiográfico, desenvolvido em Castela, permitiu a ele dedicar-se, segundo Lindley Cintra, a mandar traduzir e ampliar a Crônica dos Vinte Reis, a redigir o Livro de Linhagens e arealizar uma refundição da Crônica Geral de Afonso X. A autoria da Crônica de 1344 atribuída ao Conde Pedro de Barcelos só aconteceu após os estudos realizados por Luís Filipe Lindley Cintra para a edição crítica da obra. 12 Antes dele outros autores já haviam se dedicado a levantar a autoria do texto, destacando-se Ramón Menendez Pidal que apresentou, na obra Crónicas Generales de España,13 três hipóteses acerca da autoria da obra, elaboradas entre meados do século XVI e inícios do século XVII e a sua visão de que a mesma seria anônima.14 É necessário apontar que a presente análise está sendo realizada tendo como base a edição crítica realizada por Luís Filipe Lindley Cintra. Levando-se em conta que se trata da versão da Crônica que passou por refundições e adaptações, porém esse fato não inviabiliza a análise e nem elimina o fato de que inicialmente a obra foi escrita pelo Conde Pedro Afonso de Barcelos. As inúmeras refundições e adaptações, realizadas a partir do texto inicial, demonstram sua relevância para o contexto do reino português e porque não ibérico. A redação da Crônica teria acontecido após a conclusão do Livro de Linhagens, podendo ter sido o mesmo, assim como suas fontes, utilizado como base para sua redação. A respeito da data de 11

LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 413. 12 “Creio porém que, partindo da surpreendente coincidência na utilização de fontes entre a Crónica e o Livro das Linhagens do Conde D. Pedro, da contemporaneidade entre a mesma Crónica, redigida por volta de 1344, e o autor do Livro morto em 1354, e da prévia determinação da origem portuguesa da Crónica, se pode ir além [...] e afirmar que, se não é possível atribuir com toda a segurança a compilação da Crónica de 1344 a D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos, já que nenhum dado documental apareceu até hoje provando que a ele se devesse esta iniciativa, há pelo menos uma série de circustâncias que dão um alto grau de probabilidade a esta nova hipótese.” 12 LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 130. 13 MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Catálago de la Real Biblioteca, Tomo I. Manuscritos: Crónicas Generales de España. Madrid, 1898. p. 17-23. 14 Ibid., p. 22.

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redação da primeira versão da Crônica Geral de Espanha de 1344, é encontrada, no texto da mesma, a seguinte referência:

salvo estes condes de Castella, que nom forom reis, e salvo el Rei dom Sancho de Navarra, o Mayor, que foy senhor de Castella pella raynha dona Elvira, sua molher, e savando el Rey dom Afomso d’Aragõ, que foi tan be senhor de Castella pella raynha dona Orraca, sua molher, que enton era senhor, que nõ vay em esta estória, foron reis de Castella e de Leom trinta e sete. E, co os reis godos, que foron trinta e seis, fazem sateenta e tres e, com el Rey Don Garcia e com outros sete que forom reis de Portugal, foron per toda conta oyteeta e hũu, ataa a era de myl e trezentos e oyteenta e dous annos que este livro foy feito, feria quarta, viinte e hũu dias de Janeiro da dita era.15

Esse trecho, que está inserido no corpo do texto, não corresponde, portanto ao período final de redação da obra, serve como marco temporal de que nesta data, que corresponde à 21 de Janeiro de 1344, o autor chegara a esse ponto da narrativa. Na primeira versão da Crônica havia um esquema de história universal de caráter puramente genealógico, “concebida dentro do mesmo espírito e redigida no mesmo estilo que o esquema de história universal presente no Livro de Linhagens. A Crônica começa, pois como obra de um genealogista.”16 Após essa genealogia universal teria sido realizada a inserção de uma parte das obras do historiador do século X Ahmed bem Mohammed Arrazi, cuja obra é conhecida como “Crônica do Mouro Rasis”. A tradução dessa obra, na primeira metade do século XIV, marca o início da produção historiográfica em língua portuguesa. A iniciativa deveu-se ao Rei Dinis, neto de Afonso X de Castela, que “manda traduzir a Crónica do historiador árabe Ahmed Arrazi, não aproveitada nas obras do

15

Crónica Geral de Espanha de 1344. Vol. II. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 379-380. 16 LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 188.

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monarca castelhano,”17 tomando assim uma iniciativa que o aproximou do que desenvolvera Afonso X em sua Corte castelhana. O Conde fez uso de diversas fontes, tentando “recuperar alguns elementos do passado mais distante ausente das fontes manuseadas para os períodos posteriores.”18 Prolongou as histórias dos reis de Navarra e Aragão, trouxe a história dos reis da Sicília, versões genealógicas dos reis da Bretanha, de Inglaterra e da França, sendo que “nenhuma dessas histórias era abrangida pela Crônica de Afonso, o Sábio.”19 A Crônica Geral de 1344 resulta assim da união de uma versão da Crônica Geral de Afonso X a extensos excertos da Crônica do Mouro Rasis, da Crônica dos Vinte Reis, do Liber Regum, de textos poéticos e históricos. A primeira redação da Crônica de 1344 caracteriza-se por ser uma obra marcada pela heterogeneidade de seu autor que se desloca entre a genealogia e a Crônica, pensando em uma história genealógica universal. Existe, no entanto, uma segunda versão da Crônica Geral de Espanha de 1344 escrita, segundo Lindley Cintra, no período final do século XIV ou início do XV, essa é a versão editada por ele. Sendo difícil, a partir dos registros encontrados, precisar com mais clareza a data efetiva da redação da mesma.

Na segunda redação da Crônica de 1344 os redatores se preocuparam em fazer desaparecer

a heterogeneidade de que lhe advém um carácter de simples rascunho, [...] pela omissão da história genealógica inicial e pela inclusão, em seu lugar, de um prólogo e de uma série de capítulos inspirados na Primeira Crônica. Deram deste modo à obra uma unidade que ela não tinha na sua versão original. 20

17

Ibid., p. 413. BARROS DIAS, Isabel de. Metamorfoses de Babel: a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV) construções e estratégias textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 96. 19 LINDLEY CINTRA, 2009. Op. Cit., p. 35. 20 LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 189. 18

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Recupera-se assim a narrativa dos tempos mais antigos da Península Ibérica, tentando-se minimizar as alusões imperiais presentes no texto afonsino. Essa versão da Crônica, elaborada por volta de 1400, tenta aproximá-la do padrão historiográfico castelhano, afastando grande parte dos textos claramente genealógicos, porém não

sacrificou a perspectiva com que o Conde de Barcelos encarou a história peninsular da Reconquista. Motivado para o registro da gesta hispânica num momento marcante da afirmação da unidade ibérica, o da vitória cristã do Salado, Pedro Afonso concebeu o passado peninsular como herança colectiva de proezas e façanhas, sendo nesse quadro que o Portugal nobiliárquico e régio se devia distinguir com valorizada diferença, mobilizando-se para cumprir um destino libertador e redentor, tal como melhor se define numa outra obra do Conde, o Livro de Linhagens ou Nobiliário. 21

Na versão da Crônica Geral de Espanha de 1344, além da refundição da Crônica Geral de Afonso X, da inserção de trechos genalógicos são encontrados diversos extratos que trazem o autor Pedro Afonso de Barcelos. Tais trechos referem-se de maneira muito particular aos reinados de Dinis, pai do Conde, e de Afonso IV, seu irmão. São textos, que muito possivelmente já estavam presentes na versão escrita por ele em 1344 e que permaneceram na versão do final do século XIV, constituindo-se em relatos de relevante interesse histórico, são “um precioso depoimento de um contemporâneo que, pela sua posição, estava nas melhores condições de observar os fatos.” 22 Para poder escrever acerca desse período o Conde empregou sua vivência na Corte de Dinis, sua ativa participação como mediador na demanda entre Dinis e o Infante Afonso durante a Guerra Civil, que aconteceu no reino português entre 1319-1324, sua participação no reinado de Afonso IV, além de relatos contemporâneos. 21

KRUS, Luis. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 21. 22 LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 399.

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Ao se referir ao reinado de Dinis descreve com uma minúcia de detalhes acontecimentos nos quais ele mesmo esteve presente, como nas viagens do Rei Dinis a Aragão em 1304. Nas referências aos períodos do reinado em que atuou junto ao Rei Dinis, desempenhando importante papel na vida pública, há inúmeras informações relativas à sua atuação, algumas delas com nítido carácter de justificação.23 Tal qual já fizera Afonso X, na Crônica Geral de Espanha, preocupou-se o Conde com a formatação de uma história de abordagem universalista, sendo assim onde ficaria então a novidade em relação aos escritos já realizados na Corte de Afonso X? Segundo Lindley Cintra a novidade encontrase na abundância de novas fontes utilizadas na Crônica Geral de Espanha de 1344 e na ampliação das seções dedicadas a Aragão, Navarra e Portugal. A técnica empregada pelo Conde para redigir a obra seria a mesma já consagrada por Afonso X, “deste ponto de vista, o seu autor revela-se, com a única, mas importante, excepção da reduzida série de capítulos directamente redigidos pelo compilador, um discípulo fiel dos processos compilatórios da escola castelhana de fins do século XIII.” 24 Muito embora em seu conjunto a Crônica Geral de Espanha de 1344 seja fortemente influenciada pela produção historiográfica castelhana, não se pode deixar de observar as diferenças quanto ao conteúdo e a forma empregada na redação da Crônica portuguesa. Quanto ao conteúdo, ao mesmo tempo em que permanece fiel ao ideário de uma história ibérica, trazendo o passado dos diversos reinos cristãos da Reconquista, incluindo Portugal, não “deixa de manifestar uma sistemática hostilidade para com a dinastia real de Castela e uma paralela tendência para exaltar o contributo regional português na construção da história peninsular, acabando, desse modo, por atenuar a tese afonsina do primado castelhano no protagonismo hispânico.” 25 Em relação à forma percebe-se que embora buscasse aproximar-se do processo de compilação das fontes, próprio da cronística afonsina, acaba por proceder de “maneira menos sistemática e organizada, repetindo informações oriundas das distintas fontes disponíveis e cometendo vários 23

Ibid., p. 397. Ibid., p. 416. 25 KRUS, Luis. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 20. 24

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atropelos cronológicos na apresentação global das notícias compiladas, reflexos, por sua vez, de um pouco trabalhado plano historiográfico prévio.” 26 Percebe-se, ao analisar a produção do Conde Pedro Afonso, uma aproximação entre a produção linhagística e a produção cronística, buscando construir uma nova leitura do passado ibérico, integrando o reino Português na história peninsular. Outro ponto que deve ser observado é o de que o Conde Pedro Afonso ao escrever a Crônica, com feições universalistas, representava uma tendência que estava sendo abandonada pela historiografia. Já na segunda versão, da Crônica Geral de Espanha de 1344, percebem-se indícios de restrição do campo historiográfico

desaparecem a história genealógica universal do início e os resumos de história da França, da Bretanha, da Inglaterra e da Sicília. É verdade que se substitui a genealogia inicial por uma refundição de parte dos capítulos da Primeira Crónica Geral, referentes à prehistória fabulosa da Ibéria e aos domínios grego, cartaginês e romano, e que se põe no lugar do simples esquema de história gótica da primeira redacção um extracto da parte correspondente da obra de Afonso X. Mas apesar da maior extensão e pormenorização das partes agora introduzidas, elas dizem respeito só à história da Península. 27

O foco principal da narrativa passa a ser somente o que está diretamente relacionado à Península Ibérica, esta mudança de foco narrativo está diretamente relacionada ao contexto político que marca o final do século XIV e início do XV, período supostamente de redação da segunda versão da Crônica Geral de Espanha O Conde Pedro Afonso estava inserido na Corte do Rei Afonso IV de Portugal, era seu irmão, e tinha trânsito junto à nobreza portuguesa do início do século XIV, tal fato deve ser levado em conta ao analisar a redação da Crônica, buscando interesses e motivações para a redação da obra. Os textos 26

Ibid., p. 20. LINDLEY CINTRA, Luís Filipe. Introdução. In: Crónica Geral de Espanha de 1344. Fontes Narrativas da História Portuguesa. Vol. I. Segunda Edição. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009. p. 397. p. 418. 27

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produzidos na Corte de Afonso X foram sucessivamente copiados, resumidos e reescritos em épocas e lugares diferentes, demonstrando assim a autoridade do texto, gerando ecos e continuações. Formou-se em torno desses textos

uma estrutura complexa de inovações e dependências mútuas, pois à cópia e reformulação do material veiculado pelos textos mais antigos foram sendo adicionados novos factos e opiniões. A estes elementos vão-se ainda sobrepor às diferentes ideologias daqueles que de um modo ou de outro puderam influir no processo e cujas opiniões nem sempre coincidiram. 28

Em sendo a Crônica Geral de Espanha Afonsina uma obra que já alcançara uma posição privilegiada no contexto peninsular, era necessário “reservar um lugar na história para o reino mais recente da Península. Sendo o espaço físico, geográfico de Portugal já uma realidade, era necessário conquistar também um lugar na memória e no imaginário. ”29 Entre as duas versões da Crônica Geral de Espanha de 1344 encontram-se indícios de construção e consolidação de um projeto de identidade própria, e principalmente na segunda versão um projeto de valorização monárquica. No momento de redação da segunda versão, final do século XIV, não seria

muito adequado retomar um texto que fizesse a apologia de um Império Ibérico e/ou supremacia de Castela. Um pequeno reino que não tinha cessado de lutar para aumentar o seu território e para manter a sua independência relativamente a vizinhos cristãos, consideravelmente mais poderosos, teria forçosamente que reflectir, também ao nível da sua produção textual, uma das questões fundamentais para a Península Ibérica: a

28

BARROS DIAS, Isabel de. Modelos heróicos num fluir impuro. In: RIBEIRO, Cristina Almeida e MADUREIRA, Margarida (Coord.). O gênero do texto medieval. Lisboa: Edições Cosmos, 1997. p. 107. 29 BARROS DIAS, Isabel de. Cronística afonsina modelada em português: um caso de recepção ativa. In: Hispania. Revista Española de Historia, 2007. Vol. LXVII, núm. 227, septiembre-diciembre. p. 901.

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afirmação da existência dos diversos reinos autônomos, em oposição a correntes que defendiam a união de um Império. 30

Percebe-se ao longo do relato cronístico uma maneira de refletir outra ordenação da Península Ibérica, marcada pela partição territorial, que contraria as referências imperiais e apologia à unidade ibérica presente nos relatos afonsinos. Ao analisar a Crônica de 1344, Isabel de Barros Dias procura elementos que denotem abbreviatio e amplificatio em relação ao texto base empregado pelos refundidores: a Crônica Geral de Afonso X. A autora coloca que “o que se escolhe omitir, aquando da construção de um texto, mormente de uma crónica que é o lugar da memória do passado, é tão significativo como o que se escolhe integrar.” 31 Nesse sentido a autora aponta para uma série de alusões imperiais que estavam presentes na Crônica Geral de Afonso X e que não mais estão presentes na obra de 1344. Tal fato pode já ser percebido ao se tratar do período da ocupação do território da península ibérica pelos romanos e do próprio Império Romano, sendo a ausência de determinadas descrições justificada na obra

E, porque esta história dos que conquistaram a Espanha até os Godos, fala de muitos que vieram conquistá-la, é necessário, para que a história siga um rumo correto, que aqueles príncipes que a ela vieram e fizeram grandes feitos, sejam colocados na história algumas vezes, ressaltando coisas pequenas que fazem sentido na escrita, ainda que não tenham muita relação com os feitos da Espanha, e deixar de lado alguns outros grandes feitos que eles fizeram e que não pertencem a esta história.32

30

BARROS DIAS, Isabel de. Cronística afonsina modelada em português: um caso de recepção ativa. In: Hispania. Revista Española de Historia, 2007. Vol. LXVII, núm. 227, septiembre-diciembre. p. 902. 31 Ibid., p. 904. 32 Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley Cintra. Vol. II. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 76.

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Ficaram de fora do relato cronístico até mesmo imperadores de origem ibérica, 33 sendo a motivação para essa supressão entendida ao levar-se em “consideração que é graças a supressões deste tipo que a crónica portuguesa pode desconstruir (por omissão) a argumentação e as diversas insinuações imperiais do discurso afonsino.” 34 A autora encontrou ainda amplificações, em relação ao texto de Afonso X, nas descrições relacionadas à Reconquista. Ainda que o relato esteja centrado nos reinos de Castela e Leão, o enfoque dado aos reinos periféricos, em particular a Portugal, é significativo ao acentuar a presença dos reinos menores no contexto da história peninsular. Deve-se levar em conta o maior acesso a fontes detalhadas da história desses reinos, assim como o fato de que “o aumento da extensão textual dedicada aos reinos periféricos altera o peso relativo dos vários reinos, sobretudo, quando também se abrevia, mesmo que discretamente, as narrativas sobre os reis de Castela e Leão.” 35 Através de suas produções o Conde, e posteriormente os refundidores, buscavam criar um espaço na memória e no imaginário da Península Ibérica para o Reino Português. Para tanto fizeram uso da já consagrada historiografia preexistente, textos que remetem a uma autoridade, fazendo em Portugal “o que já tinha sido feito anteriormente em Castela-Leão, aquando da reelaboração dos textos afonsinos: desvia-se, modela-se o Modelo, em consonância com novas ideias e ideais distintos, mantendo, no entanto, a referência prestigiante à Auctoritas do Rei Sábio. ”36 Tanto o Conde, na primeira versão, como os redatores da segunda versão da Crônica trabalharam a partir do texto afonsino, porém não se tratou de uma mera tradução ou transcrição, o texto é interpretado, comentado e recriado, levando-se em conta a realidade portuguesa. Ao escrever uma Crônica tinha-se em mente a percepção da mesma como suporte da verdade, como pode ser visto no trecho a seguir onde a intencionalidade do texto é clarificada: “se prestarmos

33

Segundo Isabel de Barros Dias ficaram de fora Galba, eleito imperador em oposição a Nero na Hispânia, Nerva e Trajano, naturais da Hispânia, assim como Adriano. BARROS DIAS, Isabel de. Cronística afonsina modelada em português: um caso de recepção ativa. In: Hispania. Revista Española de Historia, 2007. Vol. LXVII. Núm. 227, septiembre-diciembre. p. 904. 34 Ibid., p. 905. 35 Ibid., p. 905. 36 Ibid., p. 927.

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atenção no proveito que nos vem das escrituras acharemos que por elas tomamos conhecimento da verdade e somos conhecedores das coisas antigas da criação do mundo.”37 É possível perceber no trecho forte influência das definições ciceronianas da história que, segundo Jacques Le Goff, permanecem válidas durante a Idade Média, cita dentre elas:

Quem ignora que a primeira lei da história é não dizer nada falso? E a segunda, ousar dizer toda a verdade? (Cícero. De Oratore, II, 15, 62). E a célebre apóstrofe em que reclama para o orador o privilégio de ser o melhor intérprete da história, o que lhe assegura a imortalidade e na qual lança a definição da ‘história mestra da vida.’ [...] Cícero chama à história luz da verdade.38

Além de suporte da verdade o texto cronístico era também portador dos exemplos que se desejam preservar para a posteridade, adquirindo assim autoridade também ao nível moral ou ético. 39 Nesse sentido, segundo aponta Le Goff acerca do legado da história para os antigos, o que ela deixa são “os exemplos dos antepassados, heróis e grandes homens. Devendo combater a decadência, reproduzindo a título individual os grandes feitos dos mestres, repetindo eternos modelos do passado.”40 A história é vista assim, como sendo uma fonte de exempla, não estando longe da retórica das técnicas de persuasão. Um texto cronístico ao reclamar para si uma verdade, que se quer

más profunda que la que se apoya en el razonamiento y la evidencia: su verdad es una verdad moral, una verdad de adecuación modélica en la que una comunidad construye su práxis y manifesta su voluntad de participar de una identidad y de una escala de valores. Por lo tanto, esta verdad consensual, profundamente ligada a la tradición y el 37

Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley Cintra. Vol. II. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 5. 38 LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 2013. p. 112. 39 BARROS DIAS, Isabel de. Modelos heróicos num fluir impuro. In: RIBEIRO, Cristina Almeida e MADUREIRA, Margarida (Coord.). O gênero do texto medieval. Lisboa: Edições Cosmos, 1997. p. 109. 40 LE GOFF. 2013. Op. Cit., p. 64.

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rito, sostiene ideológicamente la historicidad de este relato cronístico complementando así la autoridad emergente de sú construcción narrativa 41

A produção historiográfica medieval apresentava em muitos casos a contraposição de versões de autores diferentes, como pode ser observado no trecho da Crônica de 1344 destinado a apresentar como morreu o Rei Tulga, dos godos:

conta o arcebispo dom Rodrigo e dom Lucas de Tuy que a perda deste Rei (Tulgas) foi muito grande em toda a Espanha, que ele era de tão boa conversação, tanto para com eclesiásticos quanto para com os leigos, que todos eram muito contentes em relação a ele; que assim como aquele bom rei Recaredo, que destruiu a heresia dos arianos, trabalhava na honra de Deus e interesse de seu povo, agia assim de forma que todos pensavam dele coisas ainda melhores. Mas Sigeberto conta isto de outra maneira, diz que era um moço ligeiro e de pouco juízo e que os godos lhe tiraram o reino por esta razão e que o ordenaram clérigo de missa. Mas isto não pode ser acreditado, porque o arcebispo dom Rodrigo e o bispo dom Lucas, que escreveram os feitos dos Godos o mais certo e verdadeiro que puderam, são mais críveis que Sigeberto, que era francês. 42

A partir dessa contraposição de versões, ressaltando o fato de que, segundo o autor da obra, dois dos autores seriam mais confiáveis por estarem mais próximos do objeto relatado, ao contrário de Sigeberto, descredenciado para falar do Rei Godo pelo fato de ser francês.ACrônica de 1344 aproxima-se assim do que coloca Leonardo Funes: “las primeras crónicas (alfonsíes e post-alfonsíes), mediante un trabajo de traducción (o de prosificación, según el caso) y de compilación de materiales

41

FUNES, Leonardo. La construccíon ficcional del acontecimiento histórico en el discurso narrativo de mediados del XIV. In: Studia Hispanica Medievalia III. Actas de las IV Jornadas Internacionales de Literatura Española Medieval. Buenos Aires: Universidad Católica Argentina, 1993. p. 66. 42 Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed. Crítica: Luís Filipe Lindley Cintra. Vol. II. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1954. p. 218.

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que ya tenían formato narrativo, fundaban la garantía de verdad de su relato en el hecho de haberlo hallado em fuentes inobjetables.” 43 Outro ponto a ser destacado em relação à Crônica de 1344 é sua aproximação com os Espelhos de Príncipes, obras que circulavam pela península Ibérica desde o século XIII, projetando modelos de ações tanto para a nobreza como para os reis. Durante a análise do Livro de Linhagens, realizada para a elaboração da dissertação de mestrado,44 já foram levantadas características que também o aproximavam dos Espelhos de Príncipes. Ao analisar a Crônica Geral de Espanha de 1344foram encontrados excertos que remetem às características dos Espelhos de Príncipes, inseridos em outra forma textual: a historiografia. Essa inserção “numa estrutura geográfica, temporal e dinasticamente bem situada, diminui um pouco o tom de abstração que pende sobre os specula que circulavam de forma autónoma, mesmo quando dedicados à alguém em particular.”45 Conforme coloca Isabel de Barros Dias esses trechos, inseridos no discurso historiográfico, trazem além do enunciado normativo, dirigido a uma pessoa em particular, retratos específicos dessas personagens, contendo a narrativa de seus atos e gestos. A Crônica pode ser analisada como uma obra que privilegia determinadas “virtudes” ao mesmo tempo em que ressalta o que deve ser evitado. A maneira como são apresentadas as relações entre soberanos e seus súditos pode estar relacionada à ideologia pró-senhorial que marca a historiografia mais tardia, e ainda ao reforço da autoridade monárquica da dinastia portuguesa de Avis, que ascende ao trono no final do século XIV, momento da refundição da obra.

Referências Bibliográficas

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FUNES, Leonardo. La construccíon ficcional del acontecimiento histórico em el discurso narrativo de mediados del XIV. In: Studia Hispanica Medievalia III. Actas de las IV Jornadas Internacionales de Literatura Española Medieval. Buenos Aires: Universidad Católica Argentina, 1993. p. 59. 44 MOCELIM, Adriana. “Por meter amor e amizade entre os nobres fidalgos da Espanha”: O Livro de Linhagens do Conde Pedro Afonso no contexto tardo-medieval português. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, 2007. 45 BARROS DIAS, Isabel de. Modelos teóricos e descrições aplicadas: imagens de soberanos na cronística ibérica de inspiração afonsina (sécs. XIII-XIV). In: LARANJINHA, Ana Sofia e MIRANDA, José Carlos Ribeiro. Actas do V Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 120.

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A MITOLOGIA NACIONALISTA DO SÉCULO XIX Alex Rodrigo Simoni46

Restauração e protonacionalismo

Com o período revolucionário de 1789 na França, e os desdobramentos oriundos da revolução, como a deposição monárquica absolutista e a apropriação de bens da Igreja Católica, a Europa fora contagiada pela euforia iluminista da revolução, e isso afetou a maneira como o homem via a Europa da Idade Média e suas instituições. Instituições e classes estas ligadas ainda ao antigo regime, e que dedicavam muito esforço para sobreviverem aos avanços de uma sociedade cada vez mais impulsionada pelo terceiro estado. Estas instituições eram vista sob um prisma negativo por aqueles que compunham a nova sociedade. Iluministas e membros do terceiro estado viam com desconfiança tudo que representasse ou sequer lembrasse a Idade Média. A sobrevivência destas instituições estava pelo que tudo indica abalada, perante a Europa pós-revolução. Porem as instituições ditas “feudais” sobrevivia à duras penas, incomodando e muito os teóricos e iluministas do século XVIII. Uma manifestação oposta pôde ser observada no século XIX, e bastante enfática e favorável a Idade Média, já que esta mesma sociedade que à muito condenou as instituições “feudais”, passa agora a lançar um novo foco sobre o que veria a ser a Idade Média, e o oficio do historiador foi de suma importância para alavancar esta nova perspectiva sobre um fato histórico que anteriormente era odiado e condenado, e muitas vezes sendo o culpado pelas mazelas da sociedade e de tudo que vinha associado a ela. Podemos chamar o século XIX, como o século da restauração ou contra revolução, e o papel dos historiadores e teóricos, será de grande e significativa importância para consolidar o novo papel da Idade media e das instituições agregadas a este período. A discussão da Idade média da mesma forma Graduando de licenciatura em História – Faculdade de História - ICHS – Instituto de Ciências Humanas e Sociais UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso/ E mail – [email protected]. 46

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que fora abordada no século XVIII, veio à tona no século XIX, porem com uma diferença na função desta discussão. O que antes era importante desconstruir na Idade Média, agora é fundamental restaurar para consolidar as origens da moderna sociedade, juntamente com as instituições “feudais” como a nobreza, e até mesmo a própria igreja. René remond, menciona a volta de um tradicionalismo que deve ser resgatado.

[...] antes de 1789, tudo ia bem, não havia necessidade alguma de justificar a monarquia, mas em 1815, após a experiência revolucionária, os regimes e seus doutrinadores sentem a necessidade de teorizar a respeito. A legitimidade reside no valor reconhecido da perenidade. É legítimo o regime que dura, que representa a tradição, que tem atrás de si uma longa história. A legitimidade é essencialmente histórica e tradicionalista. Essa identificação com o tempo justifica-se, de modo positivo e pragmático: se um regime permanece é porque correspondia às necessidades, é porque encontrou adesão nos espíritos, é porque foi eficaz, é porque foi capaz de burlar as provas do tempo. Aliás, o tempo sacraliza, confere prestígio às instituições veneráveis herdadas de um tempo passado. (2002, pag. 09)

Entender o passado medieval, como forma de conhecer a suas origens, foi de suma importância para consolidar as diversas classes que compunham o cenário politico e social do século XIX, pois “ainda que estivessem estudando o passado, tinham os olhos voltados para o presente” (OLIVEIRA, 1999, pag. 176). Movimento bastante diferente do que propunham anteriormente os teóricos iluministas que tinham o foco na antiguidade clássica, em detrimento a Idade Média. A nação moderna foi muito bem estudada e elaborada, e usar a Idade Média, como forma de consolida-la, foi extremamente necessário, pois esta comunidade foi imagina como nos afirma Benedict Anderson. É claro que as camadas inferiores da sociedade, foram participativas neste

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processo, pois a fé ainda mexia com estes indivíduos, já que a Igreja e a religiosidade não deixaram de ter grande influencia, mesmo com a revolução e todos os desdobramentos oriundos deste acontecimento, tanto na França quanto no restante da Europa. Os movimentos de restauração tiveram ressonância em toda a sociedade, como nos diz Remond.

A Restauração, assim concebida, não seria capaz de limitar-se à pessoa do soberano ou ao ramo dinástico; ela deve estender-se a todos os aspectos, a todos os setores da vida coletiva, às formas políticas, às instituições jurídicas, à ordem social. Ela implica na volta total ao Antigo Regime. Considerada a Revolução como uma espécie de acidente, é bom que se feche o parêntese e que se apaguem as conseqüências do acidente (2002, pag.09).

E a nova burguesia fazia parte deste contesto social, fazendo o uso de um extenso campo de manobra ideológico, para o sucesso da campanha nacionalista e a criação de seus mitos. Segundo Hobsbawm:

[...] estados e movimentos nacionais podem mobilizar certas variantes do sentimento de vinculo coletivo já existentes e podem operar potencialmente, dessa forma, na escala macropolítica que se ajustaria às nações e aos Estados modernos. Chamo tais laços de “protonacionais” (1990, pag. 63).

Entender o protonacionalismo foi crucial, para colocar em prática o sentimento nacionalista, resgatados pelos fatos memoráveis e históricos da Idade Média.

Sacralização da nação ou sagrado nacionalista?

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Segundo Heinz-Gerhard Haupt, o historiador alemão Hans- Ulrich Wehler, elucida, que um vacuum foi criado pelo desmoronamento da igreja e a secularização da sociedade, durante o século das luzes, abrindo brechas a um nacionalismo de estado que veio a ser inserido, tomando a posição que antes pertencia a Igreja (2008, pag. 77). Porem está teoria suscita muitas criticas, já que a teoria de vacuum, torna-se vaga, uma vez que a presença da igreja se manteve constante, apesar dos problemas que vieram a surgir com o período das luzes e suas consequências, na França e em toda a Europa, como mesmo diz Hobsbawm sobre o protonacionalismo latente. Uma secularização no século XVIII, contribuiu para uma complexidade bem maior, onde seria mais apropriado destacar uma sobreposição de tendências, relação entre igreja e estado, fusão ou até mesmo repulsa a religião. Ou seja, não podemos criar uma generalização para os fatos decorrentes no século XVIII e suas consequências a posteriori. O liberalismo também foi participativo e fez uso constante das manifestações religiosas tradicionais no século XIX. Como nos relata Remond.

Em outros países, também, diversas famílias espirituais estão impregnadas dele, porque o liberalismo, mesmo sendo em suas linhas gerais anticlerical, comporta contudo uma variante religiosa; é assim que existe um catolicismo liberal, personificado por Lacordaire ou Montalembert. Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico de grande importância, que dá ao século XIX parte de sua cor e que muito contribuiu para sua grandeza, porque o século XIX é um grande século, a despeito das lendas e do julgamento que se costuma fazer de suas ideologias ( 2002, pag. 15).

A religião não se limitou a uma parte do discurso nacionalista que veio a instalar-se na Europa do século XIX, já que tudo indica para uma discussão mais ampla de sua participação. A nação veio associada à ideia de sacrifício que era preciso legitimar, e a um uso mais favorável à Idade Média que

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anteriormente tinha uma conotação negativa, e agora entrou em um patamar de exaltação das origens do povo europeu. Com isso novas interpretações referentes à Idade Média ganhavam cada vez mais força em diferentes partes da Europa de maneiras e apropriações diferentes, na criação de mitos nacionalistas. Segundo Haupt religião e nacionalismo, compartilham de traços e funções comuns, como mitos de origem, santos e mártires, objetos, lugares e cerimonias santas, como sacrifício e funções de legitimação e mobilização (2008, pag. 77). Religião e nacionalismo tinham laços muito estreitos, o que favorecia a uma fusão ou osmose. O nacionalismo do século XIX almejava firmar-se, como sendo um meio de colocar ordem e estabelecer princípios norteadores na sociedade revolucionaria europeia. E com isso manteve severos atritos com a instituição máxima da representação medieval . Refiro-me, a este instituição como sendo a igreja católica, que até o período prérevolucionário do século XVIII, mantinha uma grande influencia nos cuidados morais da sociedade por meio do ensino, funcionamento interno das Igrejas e organização publica das cerimonias unificadoras, dos heróis míticos e de ideologias integradoras. As resistências foram grandes, por parte dos nacionalistas para conseguir o controle da ótica medieval. O interesse pela Idade Média foi forte entre os nacionalistas, que muito queriam fazer um resgate da origem europeia, e a igreja católica também, empenhou-se neste resgate medieval, até mesmo como forma de estabelecer um avivamento pós período iluminista do século XVIII. “Os católicos desenvolveram uma forma de interpretação do passado que valorizava a fé cristã” (SOUZA, 2012, pag. 136). Foi neste período que o papa Leão XIII, resgatou a Idade Média, elegendo como ilustre filosofo e teólogo Santo Tomás de Aquino, movimento caracterizado como Neotomismo. A escolástica foi colaboradora para restabelecer novamente a grandiosidade e importância que a igreja católica teve para a Europa. A historiografia europeia nacionalista também via a importância deste movimento de resgate medieval. E o turbilhão existente entre igreja e estado pelo direito de interpretação e apropriação da idade media ocorria em proporções dispares pela Europa.

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Na terceira republica francesa, os atritos entre igreja e Estado encontraram uma expressão mais radical. O anticlericalismo teve a sua expressiva participação no cisma com a igreja católica que almejava sua participação no ensino, mas o estado declarava-se laico. Em 1880 foram os hospitais laicizados, que eram anteriormente mantidos pela igreja. Em 1884 foi à vez do divorcio ser legalizado, colocando mais turbulência entre igreja e Estado. Está separação da igreja pelo Estado causava também atritos com a população, por não concordarem com esta separação. Onde, “[...] na Idade Média que os intelectuais católicos se firmaram para a defesa de suas ideias. Para eles, não se pode falar de uma França como ela se encontra no XIX, sem apontar para a constituição do reino da Gália, sobre a égide do cristianismo” (SOUZA. 2012, Pag. 139) O cristianismo católico estava muito presente na França no século XIX, como sempre esteve, pois não podemos falar de secularização olhando apenas para Paris no século XIX, quando temos também todas as outras cidades que mantinham este elo católico, mesmo que as duras penas, pós iluminismo. Na Itália também houve atritos, quando a Santa Sé, se mostrou contraria a unificação, estando do lado da contra revolução. O estado preconizou severas medidas à Santa Sé, como o direito de inspeção e consentimento à ordenação dos bispos. Porem a Igreja não deixou passar em vão este episodio, condenando o Estado através do “Syllabus” os “oitentas erros”, e em 1870 afirmava sua infalibilidade papal. Com isso houve também divisão dentro da própria igreja, onde alguns sacerdotes participavam na unificação italiana, indo de frente com a posição da Santa Sé, que não dava seu apoio a este movimento nacionalista. Remond nos mostra que.

Em 1861, ano que se segue à unificação da Itália (exceção feita de Roma e de Veneza, que ainda não estão unificadas), o país legal não conta com mais de 900.000 eleitores numa população de 22 milhões de habitantes, embora apenas um terço desses 900.000 exerçam o direito de voto, pois os demais se abstêm. Uma das razões que explicam uma taxa de abstenção tão alta é a dissensão que opõe a Igreja à nova Itália, com os católicos fiéis boicotando

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as eleições nos territórios que outrora faziam parte dos Estados da Igreja. A abstenção, ou o que se chama non expedit, depois da tomada de Roma, em 1870, será erigida como regra de conduta pela Santa Sé, e os católicos italianos ver-se-ão impedidos de participar da vida política até 1904, a fim de deixar clara sua intenção de não ratificar a espoliação feita ao chefe da Igreja (2002, pag. 48).

A Itália nacionalista não mediu esforços para uma provocação a Igreja católica, a construção de um movimento em favor de Giordano Bruno, pensador anticlerical, no campo de Fiori, em Roma. E também uma comemoração em 1895, no dia 2 de setembro com a festa da tomada de Roma. E este movimento pôde ser visto como uma construção de um processo de Nation Building anticlerical. No século XIX, também foi observado um atrito severo entre igreja e estado nas partes Checas do império Austro-Húngaro. Em 1848, os nacionalistas se referiam cada vez com mais frequência a Jan Hus, um herético que fora queimado durante o concilio de Constança. Mas que era visto pelo movimento nacionalista como um personagem importante na consolidação nacional, do progresso e em uma religião individual fundada na ética. Tanto para historiadores quanto para os autores de peças de teatro, ou tudo que pudesse enaltecer Hus, como fator de sacralização da nação, que pelo seu sacrifício teria idealizado o nascimento da nação Checa. Uma interpretação nacional e laica de Hus fazia que a igreja católica entrasse cada vez mais em atrito com o Estado por não concordar com esta apropriação mitológica. A figura de Hus tomava interpretações opostas entre igreja e Estado.

Da mesma forma que o mito religioso, o mito politico aparece como fundamentalmente polimorfo: é preciso entender com isso que uma mesma serie de imagens oníricas pode encontrar-se veiculada por mitos aparentemente os mais diversos: é preciso igualmente entender que um mesmo mito é

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suscetível de oferecer múltiplas ressonâncias e não menos numerosas significações. Significações não apenas complementares, mas também frequentemente opostas (GIRARDET, 1987, pag. 15)

Já a Alemanha foi um caso singular, quando o império não fazia uma justa oposição entre estado laico e católico, mas sim entre protestantes e católicos. O conflito causado na Alemanha tinha como foco uma nova interpretação histórica da origem do povo germânico, que não fosse necessariamente católico, mas sim protestante. O imperador declarava-se protestante o que contribuía a sua legitimação. A disputa entre católicos e protestante se acirrava com a Kulturkampf - luta cultural implantada por Otton Von Bismarck. O Chanceler sempre fazia questão de enaltecer a penitencia de Canossa, como algo a não ser mais repetida e não curvar-se perante o Papa, pois a nação alemã, consolidava-se com força e determinismos próprios. Outro exemplo de oposição católica foi Martinho Lutero que também teve uma forte e celebrada memoria. A legitimação nacionalista, pôde ser cada vez mais usada pelas novas construções ideológicas de cunho religioso, com a intenção de sufocar as já existentes, ou na procura de uma origem longínqua, e muitas vezes míticas, como o fundamento da nação. Muitas das novas nações idealizaram-se com base em uma comunidade de fieis utilizando os símbolos cristãos já existentes, tendo a liturgia religiosa para a salvação nacional. O que nos leva a considerar como uma sacralização da nação ou o sagrado nacionalizado. Com isso não podemos afirmar ou usarmos generalizações sobre as premissas nacionalistas na construção dos mitos. Segundo Haupt.

Essas lutas entre, pelo menos, dois sistemas de símbolos, duas logicas de integração e duas organizações da memoria coletiva e oficial opuseram, em vários Estados europeus, o Estado e a Igreja Católica, de Portugal a Itália, da

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França à parte Checa do Império Austro-Húngaro. Nesses conflitos, as lutas de poder para o predomínio efetivo e / ou simbólico ocorriam nos diferentes Estados em formas semelhantes ou diferentes (2008, pag. 80).

As politicas de memoria se apoiavam constantemente no passado para celebrar a longevidade da unidade nacional e na cristianização da nação, [...] São Venceslau, na Checoslováquia; Bonifácio na Alemanha; Joana D’arc ou São Luís, na França ou para comemorar a ruptura com a Igreja católica no passado, [...] Jan Hus, Martinho Lutero, Giordano Bruno [...], mas nunca deixando de utilizar o antigo regime como referencia (HAUPT, 2008, pag. 87). O sentimento nacionalista passou por um leque de direcionamentos, no âmbito de consolidação das origens, tanto com viés religioso, quanto com um viés estadista apoiado na aproximação ou recusa da religiosidade da idade média. Tradições eram inventadas, com bases nacionalistas, protonacionalistas e novos fatos adquiridos através de uma nova couraça mitológica. Tudo com o idealização de pertencimentos e aglutinação nacional. Uma Europa secularizada, pouco se aproxima do século XIX, o que fica mais evidente é uma Europa, que se reinventa no sagrado. A tradição mantem-se primordialmente para a organização social, com laços ainda muito estreitos ao antigo regime. O romantismo e o historicismo, foram propulsores ao alavancar a idade média e seus ícones mitológicos.

Referencias Bibliográficas

SOUZA, Luciano Daniel de. A Apropriação da Idade Média e o Neotomismo como elementos da Reação Católica às Mudanças na França do século XIX. Revista Mundo Antigo, Assis – São Paulo, Ano I, V.01, N 02, pag. 131-40, dezembro, 2012.

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O SENTIDO MODERNO DE UM MITO MEDIEVAL: A PAPISA JOANA NO TRATADO POLÊMICO DE ALEXANDER COOKE (1610) Allan Regis da Silva47

Introdução

O conceito de mito, cuja semântica vai de verdade revelada e/ou velada à quimera, à ideia falsa cuja legitimidade nasce do engano, por ignorância ou ingenuidade, é por isso mesmo problemático quanto a definição - por sua ambiguidade semântica. O mitólogo Joseph Campbell em seu clássico O Herói de Mil Faces, usa o deus grego Proteu, adivinho dos mares e metamorfo, como metáfora das infinitas formas que o mito assume, não obstante para o autor, haja uma essência mítica. 48 Marcel Detienne, em Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica, define o discurso mito-poético como aquele da lógica da contradição, da semelhança dos opostos - onde verdade e engano se confundem.49 Se aceitarmos esta ambivalência como característica fundamental do mito e a usarmos como parâmetro de análise, veremos que ela dá origens a muitas outras, o que vêm mobilizando debates entre os pesquisadores desde o final do século XVIII, quando o mito se tornou objeto do conhecimento científico.50 Contudo, se o mito abarca essa dimensão ambivalente, onde pra uns é verdadeiro e para outros é falácia, a última leva uma vantagem fora do plano teórico maior que a primeira. No cotidiano, universo onde os mass media preponderam e despejam em cascata um fluxo de informações enorme, não é difícil encontrar aqui e ali o vocábulo mito empregado como engano, equívoco, uma ideia falsa que muitos tomam por verdade. Uma pesquisa rápida na internet revela o Graduando em História na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. E-mail: [email protected]. CAMPBELL, Joseph. The Hero with a Thousand Faces. New Jersey: Princeton University Press, 2004, p. 353. 49 DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 apud CAIMI, Claudia. Literatura e Pensamento: A lógica da Ambiguidade e a Lógica da Não Contradição. Matraga, Rio de Janeiro, v. 15, n. 22, pp. 85-98, jan./jun. 2008. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga22/arqs/matraga22a04.pdf. Acesso em: 07 de jan. 2014. 50 O teórico do mito Robert A. Segal divide as questões definidoras da postura dos pesquisadores em: natureza, função e significado do mito. Cf. SEGAL, Robert A. Myth: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2004, pp. 2-4. 47 48

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mito do “gordinho saudável”,51 “mitos e verdades sobre truques de cozinha”52 etc. Esse emprego do conceito é por demais disseminado e seria inútil multiplicar os exemplos. Na academia, muitas obras fazem o mesmo uso semântico de mito, simplesmente o opondo à verdade que se pretende enunciar desconstruindo-o. É o caso de O Mito do Contexto de Karl Popper,53Um amor Construído: O Mito do Amor Materno de Elisabeth Banditer,54 e muitos outros. Quando objeto da etnologia ou antropologia, mito tende a ser um conceito colado às sociedades etnológicas ou primitivas: da antropologia evolucionista de um Edward Tylor ou um James Frazer, passando pelo romantismo de Lucien Lévy-Bruhl ao estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, mito é primitivo. Assim, mito se opõe diametralmente à modernidade; “mito moderno” nessa lógica seria uma contradição de termos. Ao questionar os empregos mais comuns a que mito é associado (ao falso, fantasioso, e ao primitivo) propomos uma definição que vai ao encontro de abordagens funcionalistas como a de Bronislaw Malinowski, e universalistas como as de Joseph Campbell e Karen Armstrong – ambas destoando das abordagens mais comuns. A discussão sobre a natureza do mito não é meramente teórica: ela está amarrada ao problema de se abordar uma fonte histórica do século XVII tratando-a como mito stricto sensu. O tratado de ordem polêmica é o “Papisa Joana: Um Diálogo entre um Protestante e um Papista; prova manifesta, que uma mulher, chamada Joana, foi Papa em Roma” (Pope Joan: A Dialogue Between a Protestant and a Papist; manifestly proving, That a Woman, called Joan, was Pope of Rome), do anglicano Alexander Cooke, publicado pela primeira vez na Inglaterra em 1610.55 ‘Gordinho saudável’ é um mito, diz pesquisa. BBC Brasil. Em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/12/131203_gordinhos_saude_mito_lgb.shtml. Acesso em: 08 de fev. de 2014. 52 FLORES, Magê. Descubra o que é mito e verdade entre 20 conhecidos truques de cozinha. Em: http://www1.folha.uol.com.br/comida/2014/01/1404048-descubra-o-que-e-mito-e-verdade-entre-20-conhecidos-truques-dacozinha.shtml. Acesso em: 08 de fev. de 2014. 53 POPPER, Karl. O Mito do Contexto. Lisboa: Edições 70, 1999. 54 BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 55 COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford.Londres, 1808. 51

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Nele o autor tenta provar a existência histórica de uma personagem conhecida e amplamente acreditada na Baixa Idade Média: a Papisa Joana.56 Para entender a posição de Alexander Cooke e o conteúdo de seu tratado, nosso itinerário passará pela crença incontestada da Papisa na Idade Média; a polêmica sobre sua veracidade na Primeira Modernidade; e finalmente como o Pope Joan: A Dialogue de Cooke se insere no contexto de sua época. A partir daí retornaremos para a questão do mito, e a partir de sua definição analisaremos o tratado do polêmico Alexander Cooke.

A Ambivalência da Papisa no Medievo

A partir do século XIII no Ocidente Medieval, surgiram relatos aos montes sobre uma mulher que teria reinado soberana sobre o trono de Pedro. Inicialmente eram interpolações de manuscritos medievais, principalmente crônicas papais: as menções à Papisa eram feitas nas margens das páginas, as vezes apenas em umas poucas linhas. As muitas versões sobre sua história atestam sua popularidade: segundo Peter Stanford, desde sua gênese até o século XVII, a história da Papisa está registrada em mais de 500 crônicas sobre o papado e outros assuntos religiosos, 57 além de ter se tornado tema de peças de teatro e personagem de tarô. Da Idade Média à contemporaneidade, a história da Papisa Joana vem mobilizando religiosos, artistas, literatos e diretores de cinema. Embora haja uma variedade de versões, tendo em foco somente o período medieval, grande parte dos relatos desenvolvem esse enredo: Travestida de homem, uma mulher constrói uma carreira intelectual proeminente, e tal é seu sucesso que chega a tornar-se papa. Não obstante, o ápice de sua trajetória a leva a um destino trágico: Durante seu reinado engravida de um amante, e ao dar à luz é desmascarada e punida (geralmente com a morte).

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Historicamente falando, a primeira crônica que menciona a papisa é a Chronica Universalis Mettensis (1250), do dominicano francês Jean de Mailly. 57 STANFORD, Peter. A Papisa: A busca pela Verdade Atrás do Mistério da Papisa Joana. Rio de Janeiro: Gryphus, 2000, p. 39. Cf. Frederick Spanheim, de Papa Foemina (1691).

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A Historiografia positivista a desprezava como mero produto da imaginação, 58 contudo na segunda metade do século XX, a ‘imaginação’ ganha relevância como objeto do conhecimento histórico. Dessa nova postura nascem estudos importantes como The Myth of Pope Joan de Alain Boureau, e The Mystery of Pope Joan de Rosemary & Darrol Pardoe. Para todos os efeitos, tanto a historiografia do século XIX como a do XX concordavam em uma coisa: a Papisa Joana e sua epopeia patética não passariam por eventos reais ao olhar crítico do historiador. 59 O maior problema daqueles que tentaram caminho contrário é que há um hiato de séculos entre as primeiras fontes do século XIII e a época de seu suposto pontificado e além disso, a história do papado na época em que dizem que ela reinou é bem documentada e não há brechas cronológicas para encaixar o pontificado de Joana. 60 Entre as respostas sobre o que teria engendrado a lenda, os estudiosos apontam majoritariamente para as tensões políticas entre ordens mendicantes e o papado no século XIII. Inocêncio IV (reinado1243-54) e Alexandre IV (reinado 1254-61) restringem uma série de direitos de ordens mendicantes, em especial com a corrente dos franciscanos espirituais e os dominicanos. Nesse sentido, a história da Papisa Joana seria, ao menos em parte, fruto de uma construção dominicana e franciscana de um papado ilegítimo.61 A despeito do contexto particular em que foi engendrada, a história da Papisa Joana ultrapassou-o, e se disseminou aos quatro ventos no Ocidente, como disse Alain Boureau: “um episódio não sobrevive se não ganha sentido, se não pode ilustrar uma verdade geral”. 62 Não é objetivo deste estudo discutir as condições que renderiam à Papisa uma vida mais longa que a de seus artífices no século XIII, porém é importante o fato de que para os medievais o relato da papisa era verdadeiro,63 58

STANFORD, Peter. Idem, p. 257. Ignatus von Dollinger, teólogo do século XIX, não alivia: para se acreditar na existência de Joana “o sujeito deve lutar violentamente com todos os princípios do criticismo histórico”. In: STANFORD, Peter. Idem, p. 251. 60 O Hiato varia de 705-7 a 1100-1207, mas a data mais consagrada é a de 857-9, o que renderiam 400 anos de escamoteação histórica. 61 RUSTICI, Craig. The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England.Ann Arbor: University of Michigan Press, 2009, p. 10. 62 BOUREAU, Alain. La Papesse Jeanne: Fonctions et Fromes d’une Legende au Moyen Âge, 1984, p. 449 apud JÚNIOR, Hilário Franco. Joana, Metáfora da Androginia Papal. In: ______. Os Três Dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 2010. 63 A Papisa ganhou até um busto na Catedral de Siena, Toscânia, no século XIV, junto a centenas de papas, onde permaneceu até o século XVI. (Citar Pardoe e Pardoe, p. 7 fich.). 59

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e mais importante, que nas das dezenas de versões pulularam até o século XVI, a representação da Papisa era ambígua. Podemos encontrar desde escritos que associam Joana ao demônio, seja o último a denunciando ou, a ajudando a se tornar papa: “sob a direção do Demônio, foi feita cardeal e finalmente papa”,64 até os que a redimem: “...na rua que leva do Coliseu à Igreja de São Clemente, ela deu à luz, como tinha escolhido fazer para a remissão de seus pecados”. 65 As representações pictóricas da papisa, que incluíam no século XV uma carta de tarô, implicavam uma atitude suficientemente “tolerante ou pelo menos ambivalente para permitir representações de Joana no auge de seu sucesso”, isto é, as recorrentes imagens da papisa entronizada.66

A Primeira Modernidade e o Tratado Polêmico de A. Cooke

A grande ruptura na história dessa personagem lendária vêm com a Reforma Protestante. A crença na papisa, que seguia inabalada desde o final do século XIII sofreu grande revés e ironicamente, nunca esteve mais viva! O caso é que a Papisa Joana se transforma no teto de vidro dos católicos e a pedra na mão dos protestantes: em vista das acusações polêmicas de que o episódio da Papisa se ligava diretamente à corrupção e decadência moral da Igreja, e em linhas gerais, os católicos passaram a vê-la como “fábula”. Ficção? Verdade? A Papisa Joana já aparecia em debates nos séculos XIV e XV, mas foi preciso esperar até o século XVI para que a história per si se torna tema de debates. Assim é que, enquanto no Medievo a crença na Papisa era generalizada e ambivalente, com a Reforma, ela se torna unilateral, e suas representações passam a “enfatizar sua queda e degradação”. 67 Entre 1548 e 1700, as trocas e farpas entre protestantes e católicos renderam pelo menos quarenta panfletos dedicados 64

Stephen of Bourbon, De Div. Mat. Praed.; Scriptores Ordinis Praedicatorum, I (1719), p.367 apud PARDOE, Darrol; PARDOE, Rosemary. A Papisa Joana: O Mistério da Mulher Papa. São Paulo: Ibrasa, 1990, p. 22, ps.: a edição original é de 1261. 65 Felix Haemerlein, De Nobil. et Rust. Dial. (c.1490), f.99. In: Ibid., p. 40. O tema do destino da alma da Papisa Joana se tornou recorrente nos séculos XIV e XV, período onde sua ambivalência se torna mais tácita. 66 RUSTICI, Craig. Idem, pp. 18-21. 67 Ibid., p. 18. O busto da papisa na Catedral de Siena foi removido a mando do Duque da Toscana em 1600 não por acaso.

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exclusivamente à Papisa Joana, sem contar as reedições, traduções e textos perdidos que só se tem ciência através de citações.68 Quase todos os países da Europa envolveram-se na controvérsia, e países como Inglaterra e Alemanha foram terrenos férteis para a literatura polêmica.69Pope Joan: A Dialogue Between a Protestant and a Papist é o texto mais elaborado e republicado na Inglaterra na Primeira Modernidade sobre o assunto. Seu autor, o pastor anglicano Alexander Cooke, tinha pelo menos outros três tratados, um dos quais ele dizia que era odiado por todos os católicos que tinham lido seus trabalhos. O tratado sobre a Papisa foi publicado em 1610, depois em 1619, traduzido para o latim e publicado em Oppenheim em 1616 e 1619; traduzido para o francês em 1633 e transformado em monologo em 1675, 1740, e 1785 com o título: A Present for a Papist: or The Life and Death of Pope Joan, publicado sob o epíteto “um amante da verdade.70 Cooke constrói o tratado em forma de diálogo, que era uma técnica bastante difundida entre os escritores dos séculos XVI e XVII. Nele, um protestante e um papista - como os protestantes costumavam chamar os católicos - estabelecem um debate sobre a existência da Papisa Joana e, naturalmente o Protestante leva a melhor: munido de toda erudição e atento a todas as minúcias do assunto, o Protestante de Cooke mostra conhecimento da literatura e tradição eclesiásticas que supera a todo o momento o do próprio Papista.71 O espírito político em sua obra é patente e fulguroso: embora seu objetivo seja provar “para o papista, ou leitor católico” que “uma mulher, chamada Joana, foi Papa de Roma”, sua dedicatória ao arcebispo anglicano de York deixa mais claro o sentido da obra:

É lamentável considerar quantas estrelas caíram do céu recentemente, quantas deusas na terra se afastaram da fé, e deram ouvidos ao espírito de erros e às doutrinas dos caluniadores, quais sejam, os papistas; [...] ...meu propósito, neste momento, é expor a vergonha deles em negar verdades conhecidas; [...] ...contudo mais aparentemente sua imprudência aparece em negar o 68

RUSTICI, Craig, Idem, p. 42. PARDOE, Darrol; PARDOE, Rosemary. Idem, p. 87. 70 RUSTICI, Craig. Idem, pp. 37, 43. 71 PARDOE, Darrol; PARDOE, Rosemary. Loc. cit. 69

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relato da Papisa Joana, que é provado por uma nuvem de testemunhas [...] pois eles [os católicos] são levados a fingir, forjar, enganar, a bancar os tolos, e, em claro Inglês, mentir de todas as maneiras possíveis para encobrir sua vergonha nisso.72

A metodologia de Cooke é a seguinte: para provar ao católico que a Papisa Joana existiu, ele abre mão de jogar com os depoimentos de autores protestantes (Pantaleon, Functius, Robert Barnes, John Bale etc.), “...porque tu [católico] tens condenado eles, e seus livros também, para o inferno;” e em vez disso, o autor argumenta sobre Joana apenas com testemunhos católicos, “...através dos depoimentos de teus irmãos, os filhos de tua própria mãe”.73 Assim, de maneira sistemática o Papista e o Protestante no diálogo debatem sobre todos os pontos obscuros e minúcias que giravam entorno da Papisa Joana. Todavia, como aponta Craig Rustici,74 ao adotar o ponto de vista dos católicos Cooke acaba por conflitar com ideias protestantes básicas, ideias que fundavam e distinguiam o protestantismo do catolicismo, tal como a inconfiabilidade da tradição, das imagens e o obscurantismo dos rituais. Esta é a grande dificuldade retórica que os polemistas tiveram de enfrentar. Por exemplo, Cooke defende que era perfeitamente possível que Joana tivesse conseguido conviver entre homens escondendo seu verdadeiro sexo. Para provar ele defende que a prática do travestimento não era nenhuma novidade:

...se suas estórias forem verdadeiras; que diversas mulheres tem vivido entre os homens, em aparência masculina despercebidas, então a dama Joana viveu seu papado. Pois Marina, dizem, viveu toda sua vida entre monges, e ninguém sabia mas ela era um monge: Eufrosina

72

COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford.Londres, 1808, p. 63-4. Grifo nosso. Todas as traduções são nossas. 73 Ibid., p. 65. 74 RUSTICI, Craig. The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2009, p. 40.

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viveu trinta e seis anos entre monges, e era conhecida como monge: assim como Eugênia, Pelagia, e Margareta e nenhum homem suspeitou de suas fraudes ".75

Todas santas. A dificuldade que impera aqui é que muitos elementos das narrativas dessas santas tem motivos mitológicos e, estão muito mais para o mundo da ficção do que para o da história. Enquanto protestante Alexander Cooke não pestaneja em pôr dúvida na existência de santos, como ele faz mais cedo no diálogo com George, Cristóvão, Catarina de Alexandria e Hipólito, “considerando que em toda a antiguidade, não há nenhuma menção de quaisquer desses santos”.76 E não obstante ele usa da tradição que ele repudia para justificar seu ponto de vista. Assim, Cooke trabalha na zona limítrofe entre o catolicismo e o protestantismo, onde a consciência do outro é um tomar consciência de si. Como veremos, este é um ponto essencial para a articulação com o mito.

Mito: Narrativa, Crença e Justificação do Presente Retornamos ao problema do mito. Não há de fato uma mitologia como “ciência dos mitos”, com seus conceitos próprios e assentada em seu próprio domínio. Cada disciplina abarca várias teorias do mito, quer dizer, o estudo do mito implica sempre uma teoria muito mais abrangente que se ocupa com seu estudo. Assim, as teorias psicanalíticas do mito são sempre teorias da psicanálise aplicadas ao mito, ou estruturalismo aplicado ao mito, e assim por diante. Para complicar, o mito se tornou desde o Oitocentos, objeto de muitas ciências: a filologia, a antropologia, a literatura, a psicologia etc. Na pluralidade das abordagens duas características são gerais: mito implica uma estória e também uma crença. Embora possam ser levadas separadamente, ela frequentemente andam juntos – uma estória em que se tem por verdadeira.77 Estamos por excelência no campo do simbólico. Como mencionei anteriormente, há uma pendulação, para nos focarmos somente no campo acadêmico, dos autores em definir mito como 75

COOKE, Alexander. Idem, p. 114. Ibid., p. 72. 77 SEGAL, Robert A. Myth: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2004, p. 3-4. 76

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falácia ou verdade. No primeiro caso, é claro, o mito ainda é uma a crença em uma estória ou simplesmente uma crença que no entanto, não deve ser acreditada: o papel do autor é justamente desconstruir esse imaginário que invariavelmente destoa da realidade. No segundo caso a questão da crença é levada para o primeiro plano, e é dada a ela algo de verdadeiro: conteúdos inconscientes, coesão social, sentido existencial, contato com o sagrado etc. Outra discordância entre as teorias é sobre o lugar do mito nas sociedades humanas: uns acham que eles pertencem às sociedades “arcaicas” e tradicionais”, outros o apontam como produção universal do gênero humano. As brigas e desconstruções dos mitos não nos levam muito longe. Antes de tudo, é preciso compreendê-los e ponderar sua importância. Depois das contribuições de Bronislaw Malinowski,78 é difícil ignorar alguma “verdade” no mito. Para o antropólogo o mito é verdadeiro porque “funciona”, porque é “eficaz”, tanto no âmbito existencial, reconciliando o homem com os aspectos da existência que não podem ser mudados, quanto social, nesse caso: “O mito entra em cena quando um rito, cerimônia, ou uma lei social ou moral demanda justificativa, garantia de antiguidade, realidade, e santidade”.79 É nesse sentido que a historiadora das religiões Karen Armstrong diz que o mito só acorrera uma vez (nessa dimensão outra do tempo) mas que também ocorre o tempo todo (pois os resultados dos eventos míticos são a atual configuração do mundo).80 Na esteira de Malinowski, Mircea Eliade, Joseph Campbell e Karen Armstrong abrem ainda mais o campo do mito, mostrando como padrões mitológicos das sociedades tradicionais estão presentes no mundo ocidental moderno.81 Esta é o que se pode chamar escola universalista do mito, embora guardem diferenças metodológicas, todos concordam com a universalidade do fenômeno, e também com sua eficácia na economia existencial.82 É necessário porém, não agir como um fundamentalista: o mito não é verdadeiro por si mesmo, é 78

MALINOWSKI, Bronislaw. Myth in Primitive Psychology. In: Magic, Science and Religion and Other Essays. Illinois: The Free Press, 1948. 79 Ibid., p. 84-5. 80 ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 12. 81 Cf. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972; Idem, The Sacred and the Profane: The Nature of Religion. New York: Harcourt, 1987; CAMPBELL, Joseph. The Hero with a Thousand Faces. New Jersey: Princeton University Press, 2004; ARMSTRONG, Karen. Op. cit. 82 LEEMING, David. Do Olimpo a Camelot: Um Panorama da Mitologia Europeia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 10.

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sempre verdadeiro em relação a alguma coisa, seja uma crença religiosa ou a eficácia da ordem social. Por fim, e tão importante quanto, é que o mito, enquanto material simbólico assim como a arte e a religião, opera na lógica da ambivalência, da união de contrários, em oposição ao racionalismo, cuja lógica é a da não-contradição.83

O Mito da Papisa Joana e a Deslegitimação da Sucessão Apostólica

Autores como Pardoe e Pardoe e Craig Rustici não abordam a Papisa à maneira mítica, a estória da Papisa chamam de relato, lenda, estória, eventualmente mito, mas sem um plano conceitual mais sério. Se considerarmos requisitos crença e estória não há maiores problemas em se falar “O mito da Papisa Joana”, já que como vimos, a crença da Papisa no Medievo parecia geral. No século XIII a versão mais popular do mito o colocava o pontificado de Joana 400 anos antes daquele tempo, no século IX. Para Malinowski assim como também para Eliade, esse é um dado fundamental: o mito amarra no passado a fundação a justificação de uma condição presente, ele funda uma realidade. De fato isto é verdadeiro para todas as ressignificações que a Papisa Joana sofreu durante o tempo. No caso da Primeira Modernidade, havia o peso de sete séculos de tradição. No Medievo, a crença generalizada na papisa e sua pendulação entre o santo e o demoníaco expressam sua qualidade mítica, ambivalente par excellence. Na Primeira Modernidade, onde o tratado de A. Cooke desempenhou papel importante, a Papisa perde a ambivalência de sua personalidade - que se torna totalmente negativa “por causa da sordidez do fato”84 – mas em compensação, a “verdade” de sua história acaba por se mostrar revelada e velada ao mesmo tempo: revelada pois a tradição, as crônicas e imagens medievais da papisa perpetuam e atestam uma crença que chega até o período da

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CAIMI, Claudia. Literatura e Pensamento: A lógica da Ambiguidade e a Lógica da Não Contradição. Matraga, Rio de Janeiro, v. 15, n. 22, pp. 85-98, jan./jun. 2008. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/matraga/matraga22/arqs/matraga22a04.pdf. Acesso em: 07 de jan. 2014. 84 COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford. Londres, 1808, p. 82.

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Reforma, velada pois essa tradição é justamente repudiada pelos protestantes, e que não obstante era o único veículo pelo qual eles poderiam alcançar o escândalo a mulher pontífice. Voltando a Alexander Cooke, Pope Joan: A Dialogue é um tratado em forma de diálogo. Assim como o famoso mito da caverna, também exposto em diálogo, do livro VII da República de Platão não poderia tornar a obra em si um mito, não se pode tomar o tratado polêmico de Cooke como mito. Mas em todo o caso pode-se trata-lo como um trampolim: o tratado expõe, a despeito das controvérsias sobre os detalhes, um núcleo narrativo que, na visão de Cooke, é certa: “uma mulher chamada Joana existiu, e foi papa em Roma”, eis a estória. Essa estória carrega, como Cooke não cansa de negar, todo o peso de testemunhos e da crença católica, e mais, o peso da tradição ancorada no “passado”: o século IX, onde quase todos os manuscritos católicos diziam que foi pontificado da Papisa85. Para se estabelecer uma estória como mito é a questão do sentido é importante. Se Joana foi papa no século IX, qual é a justificativa que tornaria essa afirmativa viva no presente? Para Cooke, as consequências da monarquia usurpada, “pois uma mulher não é capacitada para ordens sagradas; uma mulher não pode bancar o papa”,86 é que ela põe seriamente em dúvida o sistema sacramental católico: “Essa não é uma Igreja verdadeira, qual não possa dar, por escrito autentico e simples, completamente legítimo, ordenado, sem qualquer violação, notória solidez na sucessão dos bispos. [...] Através dela [a Papisa Joana] foi aberta uma fenda na sucessão de seus papas; ela, nenhuma tola, mas uma meretriz, estragou seu jogo ".87 Por causa do pontificado de Joana

...os sacerdotes papistas entre vocês podem muito bem duvidar da legalidade de sua missão, pois, a não ser que os sacerdotes papistas sejam tornados sacerdotes por um bispo legítimo, seu sacerdócio não é digno de continuar, a menos que vocês papistas leigos sejam absolvidos por um padre legítimo, sua absolvição nada vale, e, a menos que as palavras da consagração

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COOKE, Alexander. Idem, p. 119. Ibid., p. 139. 87 Ibid., p. 140. “Em uma igreja verdadeira, um bispo deve ordenadamente suceder o outro, ou tudo é manchado”, op. cit. 86

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ser proferida por um padre legítimo, atento ao seu objetivo, não se segue nenhuma mudança substancial nas criaturas do pão e do vinho.88 A existência e as ações da Papisa Joana no nono século, não uma santa, mas uma meretriz, explicam não só o quadro decadente da Igreja Católica, como justificam e conferem legitimidade à própria identidade e tomada das rédeas da Cristandade pelo Protestantismo. À iconografia católica, o Protestantismo opõe a iconoclastia; à obscuridade dos rituais, eles opõem uma liturgia enxugada; à tradição apoiada na... tradição, os protestantes opõem o princípio “sola escriptura”, o que passa invariavelmente a um questionamento do papel e da natureza do papado.89 Uma vez que a jurisdição universal do Papado provinha da linhagem direta de São Pedro, os protestantes não poderiam macula-lo. E isso porque a ideia da “Reforma” era de retorno às origens, à Igreja Primitiva, a qual deve sua fundação justamente ao apóstolo Pedro. Por isso Cooke, em vez de questionar São Pedro ou ‘a Igreja’, questiona a corrupção e depravação de um sem número de papas: “Silvestre o Segundo, aquele famoso mago, que se entregou, de corpo e alma, para o diabo”. “Benedito IX, aquele monstro repulsivo”, “Gregório VII, vulgarmente conhecido pelo nome de Hildebrando, que pôs em chama tanto a Igreja quanto a sociedade”. “João XII, que, quando estava jogando dados, fez suas preces à Júpiter e Vênus, e para esses deuses idolatras dos pagãos”.90 Não é exagero dizer que o tratado de Cooke, pela própria dimensão e pretensão a que é remetido esboça um quadro geral das questões que gravitavam em volta da Papisa Joana em meados do século XVII. Isto também é verdade, uma vez capturando a representação que o pastor anglicano faz de Joana, para se falar com a boca cheia “mito da Papisa Joana”: a estória de “uma mulher, chamada Joana, [que] foi Papa em Roma”; mito que conferia, junto com uma porção de outros, como o da Igreja Primitiva, a legitimidade e a Identidade necessárias à afirmação da Reforma.

88

COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford. Londres, 1808, p. 141. Grifo nosso. 89 RUSTICI, Craig. The Afterlife of Pope Joan: Deploying the Popess Legend in Early Modern England. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2009, pp. 36-60. 90 COOKE, Alexander. Idem, p. 135.

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Referências Bibliográficas e Fontes

Fonte Primária

COOKE, Alexander. Pope Joan: A Dialogue between a Protestant and a Papist; manifestly proving, that a Woman, called Joan, was Pope of Rome. In: The Harleian Miscellany: A Collection of Scarce, Curious, & Entertaining Pamphlets and Tracts, as well in Manuscript as in Print. Selected from the Library of Edward Harley, Second Earl of Oxford.Londres, 1808.

Fontes Secundárias ‘Gordinho

saudável’

é

um

mito,

diz

pesquisa.

BBC

Brasil.

Em:

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SAGRADO OU EFICAZ? O SENTIDO DO MATRIMÔNIO EM CASTELA MEDIEVAL Amanda Oliveira de Faria Junqueira91

As Sete Partidas, corpo normativo do século XIII, representa uma compilação de costumes e leis de Castela medieval, por meio dos quais podemos perceber aspectos característicos da sociedade medieval e compreender melhor a sua dinâmica. O matrimônio é uma das questões apresentadas na obra e que, muito mais do que apenas um sacramento, pode ser entendido como uma das formas de aliança e interação social. A Quarta Partida, que trata sobre os noivados e os casamentos, é introduzida afirmando que “[...] esse é um dos mais nobres, e mais honrados dos sete Sacramentos da Santa Igreja. E por isso deve ser honrado, e guardado […]”92. Essa afirmação enfoca o lado sagrado dos matrimônios. O homem e a mulher seriam fruto de um único corpo que Deus teria criado, dando origem a duas partes que seriam companheiras. Essas deveriam manter-se unidas pelo amor e jamais separadas aos olhos de Deus. De acordo com o documento, a união dessas partes originaria linhagens que manteriam o mundo povoado. No entanto, as leis referentes ao casamento nos levam a observar outros aspectos importantes que demonstram as mutáveis regras sociais e os valores dessa sociedade. Uma delas é o poder da palavra. A palavra de um homem valia mais do que uma assinatura ou um documento em papel, e o compromisso era mantido enquanto fosse conveniente aos envolvidos. A palavra de um homem selava seriamente um compromisso, como mostra a Lei I ao dizer que o noivado é uma promessa feita pelos homens por palavras quando quisessem se casar. Segundo a Lei V, “ [...] verdadeiro é o casamento que

91

Universidade de Brasília. [email protected]. As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Pg. 505. Onde, porque esta orden del Matrimonio establescio Dios mismo por si, por esso es vno (9) de los mas nobles, e mas honrrados (10) de los siete Sacramentos de la Sancta Eglesia. 92

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se

faz

por

palavras

de

presente,

e

o

outro

que

se

faz

por

palavras,

e

se

cumpre de fato [...]”93. O noivado sugere, portanto, uma oposição importante entre o presente e o passado no qual a promessa feita no presente tem mais valor do que a promessa feita para o futuro. Se considerarmos uma mesma promessa de casamento feita da mesma forma e sob as mesmas condições sociais a duas mulheres, a promessa feita no presente tem preferência sobre a promessa futura. As circunstâncias eram diversas e variáveis. Mas, pelo tom do discurso da Partida, o importante era a relevância dos acontecimentos ou das decisões no momento presente, o que nos leva a deduzir que as perspectivas de realizações futuras perdiam importância frente àquilo que podia ser alcançado imediatamente ou brevemente. O futuro é incerto e não compete ao homem preocupar-se com ele com tanto afinco. Pactos, alianças e acordos que beneficiam a sociedade a curto prazo são, nesse sentido, privilegiadas. A Lei VIII apresenta, porém, outra situação em que são feitas duas promessas futuras de casamento. Nesse caso, destaca-se o alto valor que se atribuía ao juramento, quando se afirma:

[...] se alguém noivar simplesmente sem nenhuma jura por palavras do tempo que está por vir; e depois algum destes noivar da mesma forma com outro, ou

com outra, e lhe jurar que a cumpriria […] o segundo noivado

deveria valer, pela jura que foi feita nele […]94.

Sobre este trecho fazemos, no entanto, uma análise diferente; aqui se apresenta o valor do juramento, uma confirmação de cumprimento da promessa feita, levando-nos a refletir além da simples

93

As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley V. Pg. 512.Verdadero es el casamiento que se faze por palabras de presente, e el otro que se faze por palabras,e se cumple de fecho, segund dize en la ley ante desta ; e ha en el la significança de tres Sacramentos (1). 94 As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley VIII. Pg.514. […] si algunos se desposassen simplemente sin jura ninguna por palabras del tiempo que es por venir; e des- sassen, el vno fuesse de hedad complida, pues desto alguno deltas se desposasse en essa misma manera con otro, o con otra, e le jurasse que lo "cumpliría [...]el segundo desposorio deuia valer, por la jura que le fue fecha en el [...]

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promessa, mas sobre os motivos que levam o envolvido a fazer duas promessas, e a jurar sobre apenas uma delas. Aos poucos percebemos que mais do que promessas e juramentos, há motivos e interesses que permeiam as ações de forma significativa. Exemplo disso é a passagem da Lei VI que determina: “Podem noivar, tanto os varões como as mulheres, desde que tenham sete anos, porque aí então começa a haver entendimento, e são de idade em que já apreciam os desposórios”. 95 O trecho expressa a necessidade de que o ator da ação tenha consciência da sua escolha, pois essa seria importante para a sua vida social.

Da mesma forma, a Lei X, Titulo I, diz: “Que os pais não podem noivar suas

filhas, sem elas estarem presentes, ou sem a sua aprovação.”

96

Percebe-se que, embora o pai tenha

interesse na realização do casamento, a filha deve estar presente no momento em que o noivado será formalizado, pois “[…] o matrimônio não se pode fazer por um só, nem os noivados.”

97

O noivado

deve ser realizado com o consentimento dos dois nubentes, o que nos remete à ideia de que um acordo/aliança para ser válido precisa do consentimento explícito das duas partes interessadas. Até aqui, o discurso das Partidas é bastante claro e as deduções que fazemos parecem quase óbvias e naturais. Entretanto, na medida em que os casamentos ajudavam a formar e a alimentar as alianças sociais e políticas, eles também estariam sujeitos às circunstâncias cambiantes da própria política, apesar de estarem revestidos das características sacramentais, o que os tornaria eternos. Mas, o fato, é que o casamento parece estar submetido à lógica do “que seja eterno enquanto dure”; claro que não se trataria do sentimento, mas das condições que permitiram aquele casamento. A eternidade, portanto, não se restringe a um futuro infinito, mas a um presente que pode modificar a situação eterna. Pensemos então que se uma situação eterna, como o próprio casamento, pode ter um fim, seria o sacramento do matrimônio superior às transformações cotidianas da vida medieval?

95

As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley VI. Pg.512. Desposar se pueden, también los varones como las mugeres, desque ouieren siete años (1), porque estonce comiencan a auer entendimiento, e son de hedad, que les plaze las desposajas. 96 As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley X. Pg.516. Que los padres non pueden desposar sus fijas, non estando ellas delante, o non lo otorgando. 97 As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título I; Ley X. Pg.517. [...] porque bien assí como el matrimonio non las puede fazer por vno sol, otrosi nin las desposajas.

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A Lei III, Título II, ensina que os casamentos assentam-se em três bases: fé, linhagem e sacramento. O sacramento seria um bem que nunca deveria ser anulado, pois o que Deus uniu o homem não teria o direito de separar. A mesma lei também reconhece que, embora a lei divina estabeleça a indissolubilidade do matrimônio, ele pode ser desfeito por alguns motivos. A Lei IV, Título II, acrescenta que há duas razões para que os casamentos sejam realizados: a primeira, para fazer filhos e acrescentar as linhagens dos homens; e a segunda para guardar os homens do pecado da fornicação. No entanto, a mesma lei também considera que há outras razões que presidem a realização dos casamentos, como a formosura das mulheres, a riqueza, a inimizade entre linhagens, dentre outras, mas, ainda assim, dever-se-ia observar principalmente as duas razões citadas acima, por serem primordiais aos olhos de Deus. Os exemplos mencionados sugerem a conclusão de que a dimensão sacramental é muito importante para a vida da sociedade medieval, mas que ela se mistura à dimensão política e social, e que é necessário perceber todos esses aspectos em conjunto. De qualquer forma, em outros trechos, as Partidas não deixam de reafirmar a solidez dos laços matrimoniais, como na Lei VII, Título II: […] se algum dos que fossem casados, cegasse, ou ficasse surdo, ou aleijado, ou perdesse seus membros por dores, ou por enfermidade, ou outra maneira qualquer; por nenhuma dessas coisas, nem ainda ficasse leproso, um não deveria separar-se do outro, por guardar a fé e a lealdade, que se prometeram no casamento […] 98.

Essa passagem nos coloca diante de dois aspectos fundamentais da sociedade e que, portanto, também estão presentes nas Partidas, em diferentes momentos: a fé e a lealdade. A fé como manifestação da forte espiritualidade, mas também como cimento político que garante o vigor dos 98

As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Quarta Partida.Título II; Ley VII.: Pg.523. [...] mas si alguno de los que se fuessen casados, cegasse, o se fiziessi bros por dolores, o por enfermedad, o por beuir comunalmente en vna casa con los otra manera qualquier; por ninguna destas otros gafos, de guisa que non ouiessen cacosas,nin aunque se fiziesse gafo (5), non niaras apartadas. Ca estonce el que fuesse deue el vno desamparar al otro; por guar- sano, non seria tenudo (8) de morar con eldar la fe, e la lealtad, que se prometieron en en tal lugar; como quier que de fuera sea el casamento [...]

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laços pessoais que se estabelecem; e a lealdade como característica complementar à anterior, essencial aos arranjos sociais, que embora sujeitos a constantes mudanças são legítimos enquanto valem. A Quarta Partida trata especificamente sobre as leis ou costumes que dizem respeito aos casamentos, mas é importante considerar que todas as partes da obra estão interligadas porque dizem respeito a uma mesma sociedade que é afetada simultaneamente por todos os temas tratados. Essa integração dos diferentes atos constitutivos da vida medieval, sugere a necessidade de estudar também as demais Partidas, com o objetivo de colocar o tema do matrimônio na perspectiva de outros atos e valores e, assim, tentar compreendê-lo dentro do todo. A Primeira Partida apresenta os entendimentos referentes à fé e aos preceitos cristãos. Inicialmente, o Título I constata que “[...] as gentes latinas chamam de leis as crenças [...]” 99. Tal explicação inicial aponta para a fusão entre a razão e aquilo no que se acredita, considerando que não havia uma real diferença entre o que se denominava lei ou crença. Assim como as crenças, as leis eram diferentes, variáveis, e não se aplicavam de maneira absoluta, o que corrobora com a ideia anteriormente apresentada de que o funcionamento da sociedade medieval baseia-se em tradições. De qualquer forma, uma das conclusões a que se pode chegar, ao longo da análise deste documento, é de que a perspectiva em que o discurso apresenta fatos e circunstâncias não é pautada pelos indivíduos, mas por uma chave coletiva que aborda pessoas pertencentes a grupos que, por sua vez, formam a sociedade. Os matrimônios, assim como outros pactos na sociedade medieval, não se limitam a duas partes individualizadas, mas são problematizados e normatizados na perspectiva do corpo social. A primeira lei do Título I diz:

Estas leis são estabelecimentos para que os homens saibam viver bem e ordenadamente, segundo o prazer de Deus, e também como convém à

99

As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título I; Pg.5. [...] las gentes latinas llamam leys las creencias [...]

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boa vida deste mundo, e a guardar a fé do nosso Senhor Jesus Cristo de forma

correta, tal como ela é.100

As Partidas apresentam homens e mulheres vivendo em sociedade, mas, sobretudo, para o bem comum (“a boa vida deste mundo”). Assim, viver bem neste mundo significa não somente viver segundo as leis de Deus, mas viver de acordo com as orientações e preceitos que aqueles que estão preparados para “estabelecer” a boa vida e a ordem assentam como tal. É natural pensarmos que viver bem implica em fazer alianças e arranjos que favoreçam a coesão da sociedade, e considerando que se trata de uma vida coletiva em que as alianças não são somente úteis, mas necessárias, mesmo as alianças consideradas sagradas podem ser desfeitas de acordo com as necessidades do grupo. A Lei VII trata da distinção das leis; as leis dos homens e as leis de Deus ao dizer:

À crença de nosso Senhor Jesus Cristo pertencem as leis que falam da fé. [...] E ao governo das gentes pertencem as leis que juntam os corações dos homens por amor; e isto é direito e razão: e destes dois deriva a justiça correta, que faz os homens viverem cada um como convém. E os que assim vivem não têm porque se desamar, mas se querer bem. Assim, as leis que são direitas, fazem juntar a vontade de um homem à de outro com amizade. 101

Devido à sua origem divina, as leis de Deus devem ser respeitadas, temidas e cumpridas. Já as leis dos homens teriam sido criadas com o objetivo de unir os corações e com o amparo da justiça garantir que cada um viva como convém ao bem comum. Seguindo as boas leis, os homens acabariam

100

As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título I; Lei I. Estas leys son establescimientos porque los omes sepan bivir bien e ordenadamente, segun el plazer de Dios e outro si segundo conviene a la buena vida deste mundo, e a guardar la f[e de nosso senhor Jesu Christo, cumplidamente, assim como ella es. 101 As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título 1; Lei VII. Pg. 7. La creencia de nuestro senhor Jesu Christo pertenescen las leys que fablan de la fé. […] E al governamiento de las gentes pertenescen las leys que ayuntan los coraçones de los omes por amor e esto es derecho e razon: ca destas dos sal ela justiça cumplida que faze a los omes biver cada uno como conviene. E los que ansi biven, no han porque se desamar, mas porque se querer bien. Porende las leys que son derechas, fazen ayuntar la voluntad del um ome com el outro desta guisa por amistad.

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unidos pelo amor e pela amizade. Desta forma, casar-se segundo as leis é conveniente, desejável, mas separar-se também o pode ser. A segunda lei, ao tratar do direito natural, diz:

Ius naturale em latim, e direito natural em romance, quer dizer o direito natural que têm os homens naturalmente, e ainda os animais que têm sentido. Assim, segundo o movimento desse direito, o macho se junta com a fêmea, a que chamamos casamento, e por ele criam os homens seus filhos [...] 102

Segundo essa lei, o direito natural pode significar o direito de toda criatura a unir-se a outra segundo sua própria vontade. E o movimento natural desse direito levaria os homens ao casamento. Portanto, se reconhece uma espécie de impulso da natureza dessas criaturas, que as leva a se juntarem e a procriarem.

Se voltarmos à Quarta Partida, encontraremos a Lei III do título IV, que ampara

a conclusão de que existem diferentes motivos que levam à realização das alianças matrimoniais para satisfazer interesses condenáveis, ao dizer:

Sobre as condições que se põem os homens nos noivados, e nos casamentos, há separação em muitas maneiras. Porque há delas que são convenientes, e podem os homens colocar a sua vontade, são tais; como quando algum diz a uma mulher: Casarei contigo se me deres cem maravedis, ou tal Castelo/ ou outra coisa semelhante destas.103

102

As Sete Partidas de Don Afonso Nono. Primeira Partida. Título 1; Lei II. Pg. 5. Ius naturale em latin, tanto quiere dezir em romance, como derecho natural que han em se los omes naturalmente, e aun los animálias, que han sentido. Ca segund ele movimento deste derecho, el másculo se ayunta com la fembra, a que nos llamamos casamento, e por ele crian los omes a sus fijos. 103 As Sete Partidas do Sábio Don Afonso o Nono. Quarta Partida. Título IV; Lei III. Pg. 539. Cerca de las condiciones que ponen los omes en las desposajas, e en los casamientos, há departimiento en muchas maneras. Ca tales y ha délias que son conuenibles, e guisadas, e tales que non. […] E las que son guisadas , e conuenibles, e pueden los ornes poner a su voluntad, son átales ; como quando alguno dize a alguna muger : Casarme contigo si me ieres (2) cien marauedis, o tal Castillo ; o otra cosa semejante destas.

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No trecho, é possível perceber claramente o interesse por bens materiais na realização de um acordo matrimonial. A Lei III exemplifica um caso em que o casamento seria subvertido por lógicas que favoreciam apenas o interesse egoísta de uma das partes. A Lei IV do mesmo título apresenta outra situação em que os noivos são submetidos a condições para se casarem, mas que estão submetidas a uma lógica que extrapola os interesses particulares.

Condições convenientes são necessárias em todas as vontades, que se faça em alguns noivados e matrimônios e é a que se faz desta maneira, como quando algum cristão noiva com uma mulher judia, ou moura, quer por palavras de presente, ou de tempo que está por vir, dizendo assim: Eu te recebo, ou prometo te receber por minha mulher se te fizeres cristã.104

Essa lei apresenta a conversão como condição para haver um casamento cristão. O sacramento do matrimônio é um pacto entre dois lados cristãos. Talvez se possa também acrescentar, que, com essa exigência, o casamento acabou por contribuir para o alargamento do mundo cristão. Pelas Partidas, percebe-se que o casamento e sua normatização abrange a todas as camadas da sociedade. A introdução do título V coloca em questão a situação de um servo ao querer se casar. O título diz: […] tao depreciada coisa é esta servidão, que o que nela cae, não tão somente perde o poder de não fazer de si o que quiser, mas ainda da sua pessoa mesma não é poderoso, se não enquanto manda o seu senhor. [...] queremos neste dizer, dos outros impedimentos que sucedem outros deles, por razão de ser os 104

As Sete Partidas do Rei Don Afonso Nono. Quarta Partida. Título IV; Lei IV. Pg 543 Conuenible condición ha menester en todas guisas, que se faga en algunas desposajas, e matrimonios: e es la que se faze desta manera, como quando algún Christiano se desposasse con alguna mnger Judia, o Mora (1), quier por palabras de presente , o del tiempo que es por venir, diziendo assi: Yo te recibo, o prometo de recebir por mi muger, si te fizieres Christiana.

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homens de servil condição. E mostrar primeiramente, se podem casar, e com quem, e se casarão com o consentimento de seus senhores.105

A servidão é um fato que não somente afeta a vida de uma pessoa, mas fazia parte da própria concepção de sociedade. Desta forma, a servidão é natural e deve ser regulada na perspectiva do casamento. Em situação de servidão, as pessoas submetiam sua vida à do senhor, pelo que o desejo de se casar dependeria das conveniências do senhor, que deveria julgar o pedido à luz dos benefícios da linhagem que ele comandava. Por último, destacaremos alguns aspectos sobre as interdições matrimoniais. O Título VI apresenta a proibição à realização de casamentos, que merece atenção por tratar-se de uma situação que na atualidade parece muito óbvia e inquestionável, mas que supunha algumas implicações importantes para a vida em sociedade na Idade Média. O título apresenta o tema dos casamentos consanguíneos e diz:

Embora antigamente os membros de uma mesma linhagem casassem entre si, os Santos Padres que vieram depois, com base nas leis velhas e novas, o proibiram. E mostraram muitas razões porque não era ajuizado que assim o fosse. Primeiramente, porque os parentes se criariam e viveriam não se amando por outro amor, senão aquele da linhagem.´...[...] O que provocava entre eles muitas discórdias e muitas inimizades: assim que o que de uma parte se preocuparia em unir seu sangue por matrimônio, separava a outra por inimizades. E, assim, todos os homens viveriam separados, cada

As Sete Partidas do Rei Afonso Nono. Quarta Partida. Título V. Pg. 542. […] tan despreciada cosa es esta seruidumbre, que el que en ella caè, non tan solamente pierde poder de non fazer de lo suyo lo que quisiere, mas aun de su persona misma (aj non es poderoso (3), si non em quanto manda su señor.[...] queremos en este dezir, de los otros embargos que acaescen otrosí en ellos , por razón de ser los ornes de seruil condición. E mostrar rimeramente, si pueden casar, e con quien, e si an de casar con consentimiento de sus señores. E que derecho deue ser guardado, en el casamento que es fecho entre sieruo , e libre. 105

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um por si, em sua linhagem, à maneira de bandos, por não querer se juntar aos estranhos em casamento.106

Segundo o trecho apresentado, o casamento entre parentes era proibido, primeiramente, para estimular a ampliação dos laços políticos e sociais, e por se entender que o reforço endogâmico estimulava a violência. Embora não se diga claramente, mas intui-se uma preocupação pelo futuro da sociedade, caso não se rompesse a dinâmica dos casamentos endogâmicos.

*

*

*

Pode-se perceber, portanto, uma interpenetração entre a razão e a crença, para usar as palavras das Partidas, o que permitia que o sacramento do matrimônio adquirisse um papel político e social importante. Dessa maneira, esse fator interferia nos tipos união e interação social dos diferentes grupos, consequentemente, afetando a formação das famílias e o acúmulo e distribuição de seus bens. Novamente, pode-se perceber a fusão que acontece entre o que hoje se consideraria lado espiritual e os diferentes fatores sociais, colocando em evidência uma lógica social que justifique diferentes acordos e pactos assentados em conveniências coletivas. Esse conjunto de leis, que expressa também uma justiça casuística, nos faz concluir até aqui, que o sacramento do matrimônio não se limita apenas a uma lei divina, mas o teor sagrado desse fenômeno deve ser compreendido na perspectiva da sua eficácia na vida da sociedade. O sagrado que remete ao temor a Deus e ao cumprimento de suas leis se manifesta no cotidiano dos homens

106

As Sete Partidas do Rei Afonso Nono. Quarta Partida. Título VI. Pg. 546. Ca maguer antiguamente (1) los del linaje casauan vnos con otros, los Santos Padres que vinieron después, también en la vieja Ley, como en la nueua, lo defendieron.E mostraron muchas razones (2), por que non touieron que era guisado > que fuesse. Primeramente, porque los parientes se criassen, e biuiessen em vno, non se amando por otro amor, si non por el debdo del linaje. […] e sobre esto vernian entre ellos muchos desacordamientos, e muchas enemistades : assi que lo que de vna parte cuydarian ayuntar su sangre por matrimonios, de la otra despartirían por enemistades. E sin todo esto, porque todos los ornes biuirian apartadamente, por si cada vno, en su linaje, como en manera de vandos (3), pues que a los estraños non se ouiessen de ayuntar por casamiento.

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medievais, mas as vantagens desse tipo de acordo social contribuem para que o casamento continue sendo um costume vivo nessa sociedade.

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O CORAÇÃO DE DOM DINIS Ana Luiza Mendes107

No Paço da Universidade de Coimbra é possível visualizar uma estátua imponente. Dom Dinis (1279-1325)108 está posicionado no local correto. Está altivo próximo à Universidade que fundou. A figura por si só chama a atenção, mas outro aspecto interessante é como os novos tempos estão tratando a imagem do antigo. Havia nessa escultura, em medos de 2012, uma pintura, um grafite, em forma de coração. Num primeiro momento é de se olhar com tristeza ao visualizar o desrespeito que a atualidade tem com o seu passado. Porém, ao observar o monumento e, a partir dele, visualizar a história pertinente ao personagem que o dá forma, é possível conseguir não pensar nesse coração como uma agressão, mas como uma forma de retratar um rei apaixonado pela caça, pelas mulheres, pela poesia, pelo reino que comandou por 46 anos. A pichação foi intencional? Possivelmente nunca teremos uma resposta concreta, porém o que é possível inferir é que ela serviu como fonte de inspiração para escrever sobre Dom Dinis e seu coração. Não aquele da estátua, mas aquele que pulsou em cantigas e no trono de Portugal. Dinis, segundo filho de Afonso III (1210-1279) e Beatriz de Castela (1242–1303), nasce em 1261 sob os auspícios de São Dionísio Areopagita, do qual recebeu o nome. Nome que, como afirma Pizarro, “não é nome de rei de Portugal”109. Seu nome deveria ser Sancho, se a sequência fosse seguida. Mas Sancho não poderia chamar-se, pois o anterior foi tirado do trono pelo irmão, Afonso III. Definitivamente tal nome não traria bons agouros para o infante herdeiro. Assim sendo, chamou-se Dinis, nome de santo, santo patrono da realeza francesa, com a qual a família real portuguesa tinha relações pessoais e familiares. Dinis passou, portanto, a ser nome de rei.

Doutoranda em História – UFPR. E-mail para contato: [email protected] Período de reinado. 109 PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor. D. Dinis. Lisboa: Temas e Debates, 2008, p. 278. 107 108

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Assume como tal em 1279, aos 18 anos, já com a necessidade de legitimar o seu poder perante a rainha mãe que tentou atuar no governo do reino através de uma regência que Dinis rechaçou. Esse fato é tema da Crônica de Alfonso X, mas não aparece em documentos portugueses. O trecho da Crônica parece revelar um jovem Dinis seguro de si como governante, afirmando assim o seu poder ao se desprender da figura materna e também da de seu avô, Afonso X de Castela (1221-1284), que não foi apoiado pelo neto no conflito com o infante D. Sancho (1258-1295), anos mais tarde. Ao analisar esses acontecimentos, é possível perceber que Dom Dinis é um político estrategista e pragmático. Os laços familiares nesses eventos ficam em segundo plano se as vantagens políticas ligadas a eles não são favoráveis. Assim, Dom Dinis rechaça a regência encabeçada pela mãe porque tem a necessidade de se impor como rei. Da mesma forma, a oposição contra o rei de Castela também pode ser compreendido como uma estratégia política, uma vez que o apoio a Sancho lhe traria maiores vantagens políticas. Dom Dinis herda um reino com rendimentos assegurados, mas que ele desenvolve ainda mais110, além de fomentar a economia ao estabelecer tratados de comércio com a França e a Inglaterra, aprimora a atividade náutica e constitui o Almirantado como instituição e, consequentemente, a Marinha portuguesa. Também promoveu uma maior funcionalização e profissionalização ao “exército” e o povoamento do reino ao delegar aforamentos e cartas de povoação destinados a aproveitar terrenos insalubres, a povoar matas e regiões próximas ao mar. Também foi responsável pelo desenvolvimento agrícola, donde recebeu o epíteto O Lavrador, ao qual unem-se O Rei-Agricultor, o Rei-Poeta, o ReiTrovador. Percebe-se pelas alcunhas que o rei se propôs a desenvolver as diversas áreas que constituíam o seu reino e não se esquivou de promover a difusão da cultura que, segundo Antonio Luiz Lachi, a partir de Dinis ganha autonomia e sua corte torna-se um centro cultural apreciável, de forma a deslocar-se de Castela para Portugal.111 Além de contar com uma corte culta, com trovadores e jograis, ele próprio se serviu da pena e lançou seus versos de amor e sátira. Segundo vários autores, 110

MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. A Monarquia Feudal (1096-1480). Editorial Estampa, 1997, p. 211. LACHI, Antonio Luiz. D. Dinis, o pai da pátria de Portugal: a criação da Universidade portuguesa e seu significado para o reino. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 4 | n. 8 | jul./dez. 2002, pp. 199-212. 111

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Dinis foi o melhor poeta da lírica galego-portuguesa. “Sob o olhar da corte, rei é sinônimo de modelo, e Rei-Trovador sinônimo de ‘Arte Poética’ a seguir”.112 De fato, sua técnica era exemplar, usufruindo da mais rica rima poética e dos seus conhecimentos da lírica provençal, contribuiu para o enriquecimento do trovadorismo português com o maior número de cantigas conhecidas (ou preservadas) de um mesmo autor, 137 no total, dentre cantigas de amor, amigo e escárnio e maldizer.113 Ainda na área cultural, Dinis fomentou traduções de diversas obras, como as Partidas de Afonso X, a Crônica Geral de Espanha e da História e Geografia da Península, do árabe Rásis, além de criar a Universidade, em finais do século XIII, donde podia-se escolher entre Teologia, Direito ou Medicina, primeiramente em Lisboa, sendo transferida no início do século XIV, para Coimbra. Percebe-se, portanto, uma profusão no âmbito cultural, sobretudo, em relação ao reinado anterior. Essa situação pode ser compreendida, segundo Lang, devido ao fato de que o reino português gozava de uma maior organização e prosperidade, de forma que se podia dedicar-se mais à sociabilidade refinada e ao entretenimento cultural.114 Tal organização diz respeito à política de afirmação do reino português perante aos demais reinos ibéricos, como a delimitação das fronteiras do reino em relação a Castela, através do Tratado de Alcanizes (1297), efetuado já nos primórdios do reinado de Dom Dinis, corroborando com a sua política de afirmação e legitimação do seu poder como rei exercida também diante da sua própria nobreza quando, em 1283, revoga concessões e privilégios feitos a ela desde 1279, ou seja, desde o início do seu reinado, segundo o argumento de que tais concessões e privilégios foram um engano. Tal atitude faz parte da uma política de controle senhorial, disseminada ao longo do reinado, que culmina na progressiva extinção de cargos exercidos pela nobreza, de forma a demonstrar que os poderes e NOBRE, Cristina. Amor e poesia nas cantigas d’amor de D. Denis. Educação e Comunicação, 6, pp.50-65. Disponível em: https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/242/1/n6_art4.pdf. Acesso em: 26/07/2013, p.50. 113 A Arte de Trovar, manuscrito contido no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, um dos cancioneiros que compilam as obras do trovadorismo galego-português, é que dita as normas sobre como os gêneros se constituem. Assim, as cantigas de amor são aquelas em a voz é masculina; a voz feminina são características das cantigas de amigo; as cantigas de escárnio e maldizer são satíricas, com a diferente de que na primeira a sátira é velada, indireta e na segunda é direta, revelando-se o nome da pessoa a quem se dirige a sátira. Vide: LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Disponível em: . Acesso em: 05/03/2014. 114 LANG, Henry R. Cancioneiro d’el Rei Dom Denis e estudos dispersos. MONGELLI, Lênia Márcia; VIEIRA, Yara Frateschi (org). Niterói: Editora da UFF, 2010, p. 82. 112

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privilégios que detinham não eram um dado adquirido115, mas uma concessão do “verdadeiro” poder: o do rei. Assim, Dom Dinis vai afirmando o seu poder que passa a ser reconhecido e solicitado para contribuir para solucionar querelas entre os outros reinos ibéricos, pois passa a ser “considerado como um interlocutor essencial e como uma autoridade política respeitada por todos”.116 Porém a autoridade precisa ser firmada e reconhecida também no plano interno. Para tanto é preciso desenvolver o reino e é justamente a partir de suas ações nesse contexto que recebe o epíteto de O Lavrador ou O Agricultor, uma vez que promove o desenvolvimento agrícola do reino português conjuntamente com o estímulo ao povoamento de regiões dantes precariamente povoadas e desenvolvidas. Estas ações fazem-nos perceber que Dom Dinis tinha uma exímia habilidade política para se impor, governar e desenvolver. Pode-se inferir que sua educação tendia para isso, mas não somente. Para além do fato de ser neto do rei sábio, seu pai também contava com uma corte em que o trovadorismo recendia. Influenciado por diferentes fatores – a corte do pai e do avô, o contato com os provençais – permitiu que edificasse em si mesmo a figura de um Fiel do Amor. É bom frisar que a fidelidade é ao Amor e não às damas para quem canta de forma efêmera. Efêmera porque não só uma única dama habitou seu coração. Dom Dinis teve 6 filhos bastardos, filhos de diferentes mulheres. Há de se convir que as mães de seus bastardos não foram as únicas a adentrar em seu leito. Leito que, possivelmente, não era muito frequentado pela Rainha, visto o fato de somente terem tido 2 filhos em mais de 40 anos de consórcio. Mas ela fez o seu papel de gerar o herdeiro do trono e, ainda, criou os bastardos do rei. Isabel, portanto, antes de ser santa, foi uma rainha extremamente funcional, ativa, situação talvez influenciada pelo fato de ter tido poucos filhos, o que lhe dava condições para reger o reino ao lado do marido. Marido que a escolheu a dedo, por apresentar as condições políticas mais favoráveis, a de uma aliança com Aragão e, assim um fortalecimento perante Castela, mas também pela formação culta de Isabel que a fez a Rainha ideal para Dom Dinis que teria reconhecido suas qualidades na cantiga Pois que vos Deus fez, mha Senhor, na qual afirma

115 116

PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor. Op. Cit, p.121. Idem, p. 95.

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que a Senhor erades bõa pera rei.117 Esta cantiga suscita dúvidas entre os estudiosos sobre se realmente de destinava à Rainha, mas o fato é que poderia ser, uma vez que Isabel realmente era boa para rei e boa para reinar. Esta é uma das 76 cantigas de amor compostas por Dom Dinis nas quais ele canta as tristezas de amores não correspondidos e as alegrias conquistadas com os amores correspondidos. Através de suas composições também declara a autenticidade do seu sentimento, sobretudo em contraposição ao sentimento cantado pelos provençais. Na cantiga Proençaes soen mui bem trobar ele atenta para o fato de que os provençais dizem amar verdadeiramente, mas que só o fazem na época da flor, ou seja, na primavera. “Nessa cantiga, o rei trovador, através de uma retórica literária, defende não só a sua arte, como trovador, mas a arte do seu reino”118 e, dessa forma, possibilita a identificação de uma produção que se reconhece como independente e distinta daquela que possivelmente contribuiu para a sua formação trovadoresca. Evidentemente que, tanto portugueses quanto provençais irão, através de uma retórica poética, defender a sua arte. Contudo, Dom Dinis teve “uma capacidade de renovação do cânone e uma recepção muito criativa de temas e formas poéticas da poesia trovadoresca provençal, que ele tão bem conhecia”.119 Assim, ele promove a renovação da tradição poética trovadoresca e, deliberadamente, fez da sua língua poética, a língua da chancelaria, moldando tanto a cultura quanto a política e, consequentemente a sociedade medieval portuguesa, uma vez que sua aptidão cultural e social tinha um caráter coletivo. Como afirma Elisa Nunes Esteves, a aptidão cultural e pelas Letras tinha um sentido coletivo “porque D. Dinis não era apenas um aristocrata letrado, era rei, e essa condição régia determina que ele encare a transmissão do conhecimento e da cultura entre os seus súbditos como uma missão de relevo”. 120 Para alguns estudiosos, Dom Dinis teria se imposto pela cultura. Contudo, é possível visualizar pelas suas ações que sua afirmação se deu por meio de medidas que contribuíram para o 117

LANG, Henry R. Op. Cit. p. 204. MENDES, Ana Luiza. A história que se faz cantiga nas barcarolas galego-portuguesas. São Paulo: Ixtlan, 2014. 119 ESTEVES, Elisa, Nunes. ESTEVES, Elisa Nunes. O poeta D. Dinis. Congresso Internacional Dom Dinis. Disponível em: http://rdpc.uevora.pt/bitstream/10174/4207/1/Congresso%20Internacional%20Dom%20Dinis3.docx . Acesso em: 26/08/2012., p. 4. 120 Idem, p. 8-9. 118

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desenvolvimento do reino em suas diferentes facetas. Diante desses elementos, é possível afirmar que Dom Dinis parece ser, portanto, o gestor da conexão de elementos que culminaram na definição do reino e, posteriormente, do ser português. Diante de todas essas medidas tomadas pelo rei, a fim de promover o seu reino, podemos dizer que o seu coração não pertencia à Rainha, nem aos amores literários ou aos reais. O coração de Dom Dinis pertencia a Portugal.

Referências Bibliográficas

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NOBRE, Cristina. Amor e poesia nas cantigas d’amor de D. Denis. Educação e Comunicação, 6, pp.50-65. Disponível em: https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/242/1/n6_art4.pdf. Acesso em: 26/07/2013. PINTO, Américo Cortez. Diónisos. Poeta e Rey. Lisboa: Secretaria de Estado do Ensino Superior, 1982. PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor. D. Dinis. Lisboa: Temas e Debates, 2008. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Verbo: Lisboa, 1979. TAVANI, Giuseppe. Trovadores e jograis. Introdução à poesia medieval galego-portuguesa. Lisboa: Caminho, 2002.

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O CULTO MARIANO NA PENINSULA IBÉRICA: RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE CATÓLICA NO LIVRO DO ROSARIO DE NOSSA SENHORA DE NICOLAU DIAZ121 André Rocha Cordeiro

O presente trabalho é resultado das primeiras reflexões de pesquisas do projeto de Iniciação Científica (PIC) sob o título: “O culto mariano na Península Ibérica: religião e religiosidade católica no ‘Livro do Rosário de Nossa Senhora’ de Nicolau Diaz”. A obra supracitada foi publicada em Lisboa, no ano de 1573, e neste trabalho, nos auxiliará a compreender a importância e a função do culto mariano na Península Ibérica, entre os séculos XV e XVI, principalmente como a figura de Mariafoi utilizada para combater os que se opunham aos dogmas católicos. Neste sentido, a Igreja reformulou e criou novas festas litúrgicas marianas e novas denominações à Virgem tais como Nossa Senhora das Neves, Nossa Senhora Rainha e Nossa Senhora das Dores, entre outras. Além disso, edificou santuários e criou ordens religiosas sua memória, tais como a Congregação Mariana do Colégio Romano, fundada por Juan Leunis (1532-1584), e incorporou no discurso oficial da Igreja a figura de Maria, como instrumentos de fé e de salvação. A figura de Maria está intimamente ligada ao próprio início da Religião Cristã, uma vez que sua imagem e apresentada no Novo Testamento como a Mãe e discípula de Jesus no primeiro milagre das Bodas de Caná, posteriormente em meio às primeiras comunidades cristãs, relacionadas aos grandes momentos da história da Salvação. Teólogos e Mariólogos discutem sobre a personalidade Maria nas Escrituras do Novo Testamento, bem como a sua relação com as mulheres do Antigo Testamento, especialmente Eva, a primeira Mulher. Maria é essencialmente a “Mãe de Deus”, e sua relação com Cristo é defendida pela Mariologia como uma “relação axial”. Segundo Boff (2004, p. 15), “se Jesus é o centro do Cristianismo, Maria é central, por ser a pessoa que está mais próxima deste centro”. 121

Artigo desenvolvido a partir dos resultados de Projeto de Iniciação Científica (PIC) do Departamento de História (DHI) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) sob a orientação do professor José Carlos Gimenez.  Graduando de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]

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Ludimila Campos afirma que a veneração a Maria ganhou destaque entre as primeiras comunidades cristãs, pois a ela foram transferidos muitos dos sentimentos devocional da cultura grecoromana, especialmente da adoração “às deusas da fertilidade e mães da terra” (CAMPOS, 2012, p.20). Ainda segundo Ludmila Campos esta atitude fez com que o número de adeptos da nova religião aumentasse e reconhecesseem Maria características das divindades que antes cultuavam. Prova desta religiosidade e assimilação mariana pode ser comprovada nos “muitos templos, títulos e na iconografia clássica, dedicados anteriormente às deusas greco-romanas e orientais” (CAMPOS, 2012, p. 21). Apesar dessa transferência, a doutrina cristã sempre defendeu que “Maria não é deusa: ela foi criada. Se Ela está integrada na Trindade é por participação graciosa e não por exigência da natureza” (BOFF, 2004, p. 20-21). Outra fonte de propagação da figura de Maria pode ser encontrada no Proto-Evangelho Apócrifo de Tiago, também chamado de Evangelho de Maria que, segundo Klein (2012, p. 82-83), “procura explicar a virgindade de Maria”. Neste aspecto, tanto a relação de Maria com as Deusas da antiguidade como o Proto-Evangelho demonstram que o hibridismo religioso-cultural, responsável pelo culto a Virgem, surgiu da devoção popular e não da cúpula eclesiástica. No século III, durante a perseguição dos cristãos pelo Império Romano, Maria aparece como uma figura que ampara os devotos da nova religião. Deste período, temos a oração Sub tuum praesidium, a mais antiga que se conhece (BOFF, 2004; CAMPOS, 2012), e que foi descoberta em 1917, no Egito. Escrita em grego, essa oração em forma de súplica à Virgem, é atribuída a um eremita egípcio, e nela é solicitando a sua proteção contra os romanos. Nela temos o testemunho de que “Maria já então era “venerada sob o titulo de Mãe de Deus” (Theotókos)”. O desenvolvimento da devoção a Maria entre os séculos II e V provocou uma série de conflitos no interior da Igreja. Para muitos o culto a virgem ultrapassava os limites litúrgicos e doutrinais da instituição, o que fez com que o imperador bizantino Teodósio II, por meio de uma circular, convocasse todos os bispos metropolitas do Oriente e do Ocidente, para o Concílio de Éfeso, em 431. Neste concilio o principal debate se deu sobre natureza de Jesus e a maternidade de Maria. Nestório, bispo de Constantinopla, defendia que Maria deveria ser chamada apenas de “Genitora de Jesus”, ou

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seja, Maria seria mãe apenas da natureza humana de Jesus e não da sua divindade. Por sua vez o bispo de Alexandria, Cirilo, afirmava ser Maria a verdadeira “Genitora de Deus”. (FISCHER-WOLLPERT, 1999). Segundo Llorca, no concilio de Éfeso que Maria foi declarada como a Theotokos (grego: Θεοτόκος), modelo de obediência cristã, antítese da desobediência de Eva, primeira mulher. Desta forma, a figura de Maria surge como portadora de esperança e possibilidade de remissão dos erros da humanidade cometidos pela primeira mulher (LLORCA, 2009). Em memória àquele Concilio e as suas resoluções, o pontífice Sisto III (390-440, papa desde 432), fez aplicar mosaicos como motivos marianos no Arco do Triunfo da Igreja de Santa Maria Maior122, em Roma (FISCHER-WOLLPERT, 1999). Segundo Boff, “consta-se que o culto popular a Maria “cresceu maravilhosamente” na história, “mormente desde o Concílio de Éfeso”(BOFF,2004, p. 116). Segundo Llorca (2009) expressão dessa veneração a Virgem se apresenta na introdução de múltiplas festas litúrgicas em sua honra. Testemunhos indicam que as primeiras festas à virgem estão relacionadas com o próprio ciclo vital de Maria. Ainda segundo Llorca (2009) a festa da Apresentação de Jesus, ou festa da Candelária, celebrada a partir do século IV, em 14 de fevereiro, é a primeira mariana com data fixa. Já a procissão das candeias foi introduzida apenas no século VII. Outra festa importante é a festa da Anunciação de Maria, que surgiu na Ásia Menor e se generalizou pelo Oriente a partir do século VI. A festa da Morte e Assunção de Maria, comemorada em 15 de agosto, tem sua primeira noticia na região de Jerusalém no século V e, dessa região, se espalhou para o Oriente e Ocidente. No século VII, em Roma, fixou-se o dia 8 de setembro como a data de celebração do Nascimento de Maria. Na Hispânia a festa da Anunciação de Anjo Gabriel é a principal celebração mariana, e é realizada no dia 25 de março. No entanto, as festividades à Maria se diversificaram, e a que recebeu maiores denominações foi a festa da Assunção, também chamada de festa de Santa Maria Alta, Santa

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A Basílica de Santa Maria Maior, é uma das Igrejas Papais de Roma (ou basílicas patriarcais). É considerada, pelos cristãos, a Igreja do Ocidente mais antiga dedicada a Virgem Maria.

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Maria a Grande, Santa Maria Maior, Senhora dos Anjos, Senhora da Glória e dos Altos Céus, realizadas em 15 de agosto (Gomes: 2000, p. 378). Ainda segundo Gomes (2000), desde o século X, foram registradas nos calendários litúrgicos de Portugal, as festas da Purificação (2 de Fevereiro), da Natividade (8 de Setembro) e da Expectação (18 de Dezembro). Já no século XIV foram generalizadas as festas da Visitação (2 de Julho), da Senhora das Neves (5 de Agosto) e da Imaculada Conceição (8 de Dezembro). Importante ressaltar, que por ser um culto antigo, a devoção a Virgem no território Ibérico se propagou entre populares, clero, nobreza e realeza. Outra forma de expressar a devoção a Virgem se fez por meio da edificação de Santuários e Basílicas. Cidades, serranias e promotórios marítimos lhe foram dedicados, além de tornar-se “padroeira de todas as catedrais e muitas igrejas matrizes do reino” (GOMES, 2000, p.378). Segundo Georges Duby (1993), Maria tomara lugar de destaque nas expressões artísticas, que as devoções laicas do século XII lhe concederam. Assim, teólogos admitiram que a iconografia de Maria se juntasse com a de Jesus no centro das catedrais. Para Gomes (2000), primeiro representaram Maria associada ao seu filho: na infância, com o Menino Jesus no colo, ou com Jesus em sua morte, junto à Cruz. Na primeira metade do século XIII, os artistas passaram a representam a Virgem em sua Glória, e não mais em dor ou ternura. Porém nos século XIV e XV ocorreu uma evolução na representação das imagens Maria, ao apresentá-la de forma individualizada, “as conhecidas configurações da Virgem Coroada” (GOMES, 2000, p. 379). A iconografia da “coroação de Maria na catedral celebra, de facto, solenemente, a soberania da Igreja romana” (DUBY, 1993, p.156), e esta temática, bem como a de Maria, a direita de Cristo em realeza, espalharam-se em um período que a própria Igreja reivindicava a soberania universal. Miranda (2011) ao estudar as peregrinações à Nuestra Señora de Guadalupe, diz que no final do século XIV o culto à Virgem começou a ganhar destaque em Portugal.

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Já no final do século XIV, Maria não é somente mãe do Senhor, a Virgem Santa, mas também é a rainha que está no céu vestida de glória, ao lado de seu filho e que por Ele tem poder sobre os homens. Mas Nossa Senhora não é uma rainha distante, ao contrário, coopera na redenção dos homens e por isso se faz intercessora, medianeira, advogada. E mais do que isso, sendo a mãe dos homens e assim é consoladora, rica em ternura e justiça, aquela que compreende o sofrimento e a dor. Maria é o vinculo entre os homens e Deus, a devoção a ele enternece os corações, aproxima os homens. (MIRANDA, 1995, p. 94, apud MIRANDA, 2011, p. 19).

Com o surgimento das ordens mendicantes franciscanas e dominicanas no século XIII houve uma alteração na espiritualidade cristã, principalmente por aproximar, ainda mais, a figura de Jesus e de Maria. Esta alteração é percebida por meio das representações marianas, de “Inspiradora Virgen Madre de Cristo, a Madre Misericordiosa Del Pueblo, Mediadora delante de Cristo y Soberana Reina de Cielos y Tierra que protege a sus fieles.” (JOHNSON, 2002, p. 378). Penteado (1995) destaca a importância das ordens religiosas em difundir expressões e cultos religiosos, em especial os dominicanos que espalharam o culto a Nossa Senhora do Rosário. Embora não existam dados seguros de quando esta prática surgiu, acredita-se que o Saltério de Maria composto por 150 recitações marianas tenha surgido por volta do século XIII, porém a forma que atualmente conhecemos apareceu apenas no século XV, difundido pelos Dominicanos. Segundo Miranda, no século XV a figura de Maria-mãe ganhou destaque entre os portugueses, chegando inclusive a ultrapassar a figura de São Tiago Apóstolo, ao atrair um grande contingente de peregrinos que excediam o culto oficial promovido pela Igreja portuguesa. [...] “peregrinavam por santuários dedicados à Maria além das fronteiras lusas, narrativas com a vida e milagres da Virgem, além da expansão de novas devoções” (MIRANDA, 2011, p. 30).

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Segundo Susana Goulart Costa, o culto mariano também contribuiu para dar um novo impulso de renovação cristã no confronto com o Protestantismo, notadamente quando a Igreja promoveu algumas devoções por meio de confrarias e associações. Para esta autora,

[...] os organismos de carácter associativista como as Misericórdias e as Confrarias que, também anteriores a Trento, foram um veículo da expressão reformista ao dinamizarem as devoções ao Rosário, às Almas do Purgatório e ao Santíssimo Sacramento; as peregrinações; os cultos; as devoções; as festas e muitas outras temáticas são vertentes tentaculares que, com maior ou menor êxito, se tornaram um espelho da actividade reformadora. (COSTA, 2009, p. 239).

Penteado (1995) complementa esta análise aoinformar que as confrarias surgidas do Santíssimo Sacramento, das Almas do Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário - devoções promovidas pela Igreja na sequência do Concilio de Trento - não se tratavam de cultos novos, criados na Idade Moderna, mas eram antigas devoções propagadas pela Igreja e que foram retomadas ou reforçadas. Ainda que a devoção ao rosário já existisse entre as confrarias, ela cresceu no Pontificado de Pio V (1504-1572, papa desde 1566), após a vitória de Leopanto, ocorrida contra os turcos no dia 7 outubro de 1571 (PENTEADO, 1995). A vitória contra os turcos foi vista por aquele pontífice como uma providência da Virgem do Rosário. Com isso ele solicitou que nessa data realizasse, em Roma, a recitação em sua honra. No entanto, esta data foi fixada no calendário cristão pelo papa Gregório XIII (1502-1585, papa desde 1572), e o seu culto foi estendido para toda a cristandade por Clemente X, isso no século XVII (GARCIA-VILLOSLADA; LLORCA, 2010, p. 1082). Para reforçar, ainda mais, o culto mariano, a Igreja se empenhou em confirmar as devoções e festas à virgem. Congregações Religiosas, que buscam vivenciar o exemplo de Maria, surgiram neste mesmo período, que segundo Garcia-Villoslada, foi “el jesuita flamenco Juan Leunis estableció en el

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Colegio Romano de Roma la primera Congregación mariana” no ano de 1563 (GARCIAVILLOSLADA, 2009). Os discursos utilizados pela Igreja frente ao protestantismo também podem ser encontrados no Livro de Nicolau Diaz, que além de revelar uma fala institucionalizada, propõe a recitação cotidiana do rosário da Virgem, bem como a forma de adesão a Confraria do Rosário de Nossa Senhora. Apesar das pesquisas já realizadas, os conhecimentos biográficos sobre Nicolau Diaz não são suficientes, e derivam de poucas informações publicadas como textos introdutórios nas diferentes edições do Livro do Rosário de Nossa Senhora. João Francisco Marques (2000, p. 420), assim como Antônio José de Almeida (2006, p. 281) não confirmam a data do seu nascimento, mas apontam o ano 1525, porém afirmam que ele faleceu em 1596. Sabe-se, porém, que ele era Padre Mestre em Santa Teologia e pertencia a Ordem de São Domingos (Dominicanos ou Ordem dos Pregadores). Para Marques ele era “Devoto da Paixão e da Virgem, apostado em conciliar a oração vocal e mental, a piedade interior e as práticas exteriores de devoção escreveu o Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573) e o Tratado da Paixão de Cristo Nosso Senhor (1580)” (2000, p. 420). Segundo Antônio José de Almeida, O Livro do Rosário de Nossa Senhora, de autoria do Frei Nicolau Diaz, teve sua primeira edição no ano de 1573 na cidade de Lisboa, e saiu dos prelos de Francisco Correia. Além desta primeira edição outras três foram publicadas nos anos de 1576,1582 e 1583, todas divulgadas em vida do autor, que faleceu em 1596 (ALMEIDA, p. 281). Segundo Pedro Penteado, o Livro do Rosário de Nossa Senhora, foi uma das obras de maior difusão no início da Época Moderna, em Portugal. Na obra se encontra uma coletânea com as indulgencias e milagres da Virgem do Rosário, e faz uma referencia especialmente a terceira e quarta parte da obra, que são dedicadas à temática (1995, p.35). O Livro do Rosário de Nossa Senhora possui quatro partes distintas, assim intituladas: Livro Primeiro – Princípio do Rosário, Livro Segundo dos Mistérios do Rosário, Livro Terceiro dos Perdões e Livro Quarto dos Milagres.

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A primeira parte ou primeiro livro, o autor expõe a origem da devoção à Virgem do Rosário a partir da ótica dominicana e da missão de Domingos de Guzmán, pai e fundador da ordem. O autor expõe ainda, as diferentes denominações desta forma de piedade (Rosário, Coroa de Nossa Senhora e Saltério de Nossa Senhora), os benefícios concedidos aos que compartilham desta devoção, e que integram a Confraria do Rosário. Um milagre também é apresentado de início deste livro, embora na obra o autor dedique uma parte exclusiva aos milagres do Rosário. Ao final deste primeiro Livro o autor faz a exposição das duas principais orações do Rosário: Pater Noster e Ave Maria, assim como a significação de cada palavra ou frase que o devoto realiza em oração. Na segunda parte da obra, Livro dos Mistérios do Rosário, o autor propõe ao leitor uma forma de se rezar e meditar os mistérios de Cristo, combinado oração vocal, pela recitação dos mistérios e das orações, e oração mental, por meio da reflexão da própria oração realizada, e pelo mistério a ser contemplado. Em um primeiro momento o autor ensina ao leitor como recitar o rosário. Posteriormente, ele expõe os três mistérios: Dos Gozos de Maria, das Dores e da Glória123. Na terceira parte da obra, Livro terceiro dos Perdões, o autor apresenta os benefícios e perdões concedidos aos devotos do rosário. Além disso, o livro traz as bulas e concessões dos pontífices Leão X, Clemente VII, Paulo III, Julio III, Pio IV, Pio V, Urbano IV, João XXII e Gregório XIII. É importante ressaltar, como afirma Penteado, neste período a utilização de perdões e benefícios para a promoção de piedades e devoções, contra o protestantismo, traduzia-se em uma “estratégia eclesiástica que apostava na promoção de indulgências e na criação da sua necessidade para desenvolver o culto do Rosário, e aumentar a apetência pela criação destas associações” (PENTEADO, p.35) A quarta e última parte da obra, intitulada Livro quarto dos Milagres, Nicolau Diaz apresenta alguns milagres concedidos aos fieis e devotos do Rosário de Nossa Senhora. São cerca de cinquenta milagres, além de instruções de como se inscrever como confrade na confraria do Rosário, Benção das rosas e do rosário e instruções para a Festa do Rosário. 123

Em 16 de outubro de 2002, o Papa João Paulo II, publicou sua carta apostólica Rosarium Virginis Mariae, na qual decretou o ano do Rosário (de outubro de 2002 à outubro de 2003). Propôs também cinco novos mistérios, denominados Mistérios da Luz ou Luminosos, para meditação do rosário. Assim o rosário passou a ser composto por quatro terços.

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Por meio do Livro do Rosário, de Nicolau Diaz, publicado no na segunda metade do século XVI, é possível percebermos que o culto à Virgem Maria, faz parte de uma longa tradição que ultrapassou a Idade Média e incorporou e atualizou diferentes temas relacionados ao próprio momento em foi concebido. Sendo assim, este culto se renovou e se renova para proporcionar um contato especial com a mãe de Cristo. Ainda que culto tenha surgido das camadas populares, ele foi, de forma paulatina, incorporado aos grandes temas da Instituição Eclesiástica, ao sustentar a criação de comunidades associativas, sejam elas leigas ou clericais, criar ordens religiosas, patrocinar obras de artes e arquiteturas, denominar localidades e dedicar igrejas à Virgem.

Referências Bibliográficas e Fontes

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GÊNERO E SANTIDADE FEMININA NOS PROCESSOS DE CANONIZAÇÃO E INQUISIÇÃO DA PENÍNSULA ITÁLICA NO SÉCULO XIII – UM ESTUDO COMPARADO DOS CASOS DE SANTA CLARA E SANTA GUGLIELMA Andréa Reis Ferreira Torres124

O objetivo desta comunicação será apresentar o projeto de pesquisa que será desenvolvido ao longo do curso de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, sob a linha de pesquisa Poder e Discurso. Nossa filiação a tal linha de pesquisa se dá por nossa opção por lidar com formas discursivas acerca da santidade feminina medieval, tal como representadas nos processos, inquisitorial e de canonização, bem como por nossa utilização do arcabouço teórico dos Estudos de Gênero, seguindo as reflexões da autora Joan Scott, que envolvem uma reelaboração do conceito de poder como processos discursivos geradores de campos sociais de força. Assim, presente proposta de pesquisa parte de algumas reflexões acerca das possibilidades de construção da santidade no final da Idade Média Central, por meio dos registros de dois processos produzidos na Península Itálica no século XIII, o Processo de Canonização de Santa Clara de Assis e o Processo Inquisitorial Contra os Devotos e as Devotas de Santa Guglielma. Clara viveu de 1194 a 1253 na cidade de Assis e foi a fundadora do ramo feminino da ordem dos franciscanos. Pertencia a uma família da baixa nobreza, sendo seu pai um cavaleiro, mas rompeu seus laços familiares aos 18 anos, fugindo de casa para se juntar a Francisco de Assis e seus frades menores. Os relatos a respeito de sua vida a caracterizam como alguém que buscou sempre o ideal da vida evangélica, propondo uma forma de vida para o grupo de religiosas que se formou ao seu redor. Foi justamente nesse ponto, na sua busca por transportar os ideais franciscanos para a religiosidade feminina, que se constituiu o maior interesse sobre sua figura. A situação de uma mulher medieval ter conseguido implementar uma forma de vida tida como original foi ainda mais peculiar porque, no

124

Mestranda do PPGHC/IH/UFRJ. E-mail: [email protected].

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mesmo momento histórico, o papado permitia apenas a entrada para a vida religiosa baixo uma das ordens já aprovadas.125 O processo de canonização de santa Clara126 consiste em um códice no qual estão registrados os depoimentos de vinte testemunhas interrogadas no período de 24 a 28 de novembro de 1253, realizado a partir da instalação do processo pelo bispo Bartolomeu de Espoleto no claustro de São Damião, a partir da bula Gloriosus Deus, de 18 de outubro do mesmo ano, na qual o papa Inocêncio IV ordenava ao dito bispo o início dos procedimentos referentes à canonização de Clara (SILVA, M. 2012, p. 1). Atualmente o processo se encontra na Biblioteca Nacional de Florença e contém a totalidade das atas preservadas desde fins do medievo. Os historiadores o afirmam por conseguirem encontrar no manuscrito elementos textuais utilizados na redação de hagiografias produzidas posteriormente a 1254, como obras de Tomás de Celano e Mariano de Florença (SILVA, M. 2012, p. 3). Já o processo inquisitorial aqui analisado apresenta as atas contidas no manuscrito A. 227 inf. da Biblioteca Ambrosiana de Milão, referentes à fase final da repressão eclesiástica contra as devotas e os devotos de santa Guglielma.127 No manuscrito estão contidos quatro quaderni deimbreviature (livros de protocolo) do notário milanês Beltramo Salvagno, com os registros dos atos praticados pela Inquisição, em sua maioria no período que compreende os meses de julho a dezembro de 1300. A documentação produzida pelo notário Salvagno não apresenta a totalidade dos atos inquisitoriais

125

As informações introdutórias aqui apresentadas sobre Clara foram consultadas em PEDROSO, 1994, p. 3-18. A edição crítica que estou utilizando foi produzida em 2003, por Giovanni Boccali, padre e religioso franciscano que dedica seus estudos a escrituras sagradas e fontes franciscanas. O autor possui uma extensa produção relacionada aos documentos preservados sobre a vida de santa Clara, incluindo estudos críticos, transcrições e traduções de hagiografias escritas sobre ela e documentos produzidos pela própria santa, além de outras obras tratando de documentos franciscanos medievais. (BOCCALLI, 2003). 127 A edição crítica que estou utilizando foi publicada em 1999, por Marina Benedetti, professora associada do Departamento de Estudos Históricos da Universidade de Estudos Milaneses. Suas principais áreas de pesquisa são história da Igreja medieval e história dos movimentos heréticos e os temas por ela abordados são heresias, inquisição, santidade, história dos frades Menores e Predicadores, história das mulheres, da cultura e da transmissão e preservação de manuscritos medievais e do início da Idade Moderna. (BENEDETTI, 1999). 126

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registrados em tais circunstâncias. Outros textos teriam sido produzidos por outro notário, de nome Maifredo Cera, mas estes não foram transmitidos ou permanecem ainda por ser descobertos.128 O manuscrito teria sido descoberto no século XVII por um monge cartuxo na Lombardia, (BENEDETTI, 1998b, p. 14), e posteriormente transferido para a Basílica de San Lorenzo, em Milão, onde foi estudado por Giovanni Pietro Puricelli, e por fim doado a Biblioteca Ambrosina, na mesma cidade, onde permanece até hoje. Segundo a maior parte dos historiadores consultados, no que concerne às origens de Guglielma, ela teria nascido por volta de 1240, na Boêmia e se mudado para Milão no ano de 1260. 129 Nesta cidade, se estabeleceu em uma propriedade nos arredores da abadia de Chiaravalle e começou a conquistar fama de santidade ainda em vida, reunindo um grupo bastante heterogêneo de seguidores, dentre eles irmãs humiliatas, monges e leigos conversos da abadia cisterciense. Após sua morte em 1281, o grupo de devotos, com exceção dos monges, acabou sendo perseguido por heresia, tendo por principal alegação para isso a crença de que Guglielma seria a encarnação do Espírito Santo. Nosso objeto de análise nesta pesquisa se concentra na construção da santidade dessas duas mulheres, a partir dos processos que trazem relatos de suas vidas e ensinamentos.130 Entendendo as santidades de Clara e Guglielma como concebidas a partir de relações, de poder e interesses, estabelecidas em diferentes momentos e por diferentes agentes, podemos desenvolver algumas reflexões. Primeiro, acerca de como os grupos de devotos vivenciavam as experiências religiosas relacionadas ao culto de suas santas, de maneiras bastante variadas, mesmo dentro de contextos aparentemente próximos, ou seja, comunidades religiosas da Península Itálica do século XIII. E, ainda nesse sentido, acerca de como se formaram as imagens das duas santas, uma exaltada e reconhecida pelo papado e outra renegada e considerada herética por esta instituição.

128

Apesar de sua incompletude, vale ressaltar a importância dos registros de Salvagno, uma vez que são raras as fontes inquisitoriais preservadas referentes a este recorte espaço-temporal (BENEDETTI, 1999. p. 11). 129 A origem boêmia de Guglielma a faria filha do rei Otakar I e, logo, irmã de santa Inês de Praga. Essa ascendência, no entanto, é tema de controvérsias entre os historiadores, sobretudo pelo fato de não existirem documentos diretos que a comprovem (BENEDETTI, 1998, p. 21-29, 141-145, 151). 130 Seguindo o conceito elaborado por Andréia Frazão da Silva, podemos afirmar que em nossa pesquisa entendemos santidade como “o conjunto de comportamentos, atitudes e qualidades que num determinado lugar e tempo são critérios para considerar o indivíduo como venerável, seja pelo reconhecimento oficial da Igreja ou não” (SILVA, A., 2002, p. 8).

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Durante o século XIII, o papado instituiu as bases para um projeto de reforma em que o poder reivindicado pelo pontífice possuía um caráter universal e fundamentado na hierarquia eclesiástica. Assim, neste período, se consolida a imagem de um papado que “vê o seu papel como o de um grande suserano entre todos os outros suseranos seculares” (SILVA, A. 1995). Esse projeto de centralização e de universalização papal teve consequências diretas no controle do reconhecimento da santidade, no combate às crenças e práticas heréticas e na aceitação de determinadas formas de vida religiosa. No caso do combate a heresia, utilizando o exemplo de nossa documentação, podemos dizer que as circunstâncias de produção do processo inquisitorial estão profundamente relacionadas com o fato de que durante o século XIII houve uma virada na qual a cidade de Milão, até então considerada a "mais heterodoxa" do cristianismo ocidental, passou a agir segundo a unidade de interesses entre as autoridades públicas e a hierarquia eclesiástica (MERLO, 1996, p. 543).131 Já no que diz respeito ao desenvolvimento dos processos de reconhecimento da santidade ao longo do século XIII, para o qual teremos como fonte os registros acerca de santa Clara de Assis, percebemos que estes também apresentam elementos de um contexto bastante particular de centralização do poder papal e pode contribuir para um aprofundamento da questão acerca da institucionalização da santidade da qual os processos de canonização são o maior expoente. Acerca da ação papal especificamente relacionada ao reconhecimento da santidade de Clara, um fator chama logo a atenção: a enfática determinação em fixar tal reconhecimento. Inocêncio IV, ao presidir seus ritos funerais, tinha a intenção de celebrá-los como Ofício das Santas Virgens, uma solenidade dispensada apenas em honra de santas já reconhecidas. Tendo sido persuadido a evitar essa atitude pelo Cardeal Rainaldo, futuro Alexandre IV,132 não tardou, após isso, em promover a abertura do processo de canonização de Clara. Este acabou por se tornar um dos mais rapidamente finalizados

131

Com isso, grupos heréticos dualistas e de pobreza evangélica foram perdendo espaço, mas diferentes formas de envolvimento religioso não foram impedidas, apenas passaram a sofrer, de forma cada vez mais enfática, a intervenção das autoridades eclesiásticas, inclusive pelas mãos da Inquisição, instituição recentemente organizada em torno da figura dos frades predicadores. 132 Pelo teor da Bula de Canonização, documento promulgado ao final do Processo pelo próprio papa Alexandre IV, podemos supor que não estava em questão para este papa, então cardeal, a validade da santidade de Clara, mas sim a necessidade imprescindível de seguir as regras que ditavam o reconhecimento da santidade na sua formulação institucionalizada pelo papado (PEDROSO, 1994, p. 133-137).

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do período, além de ter tido a particularidade de ter uma bula papal como iniciadora do procedimento.133 Diante do exposto até o momento, podemos afirmar que nossa problemática se concentrará em responder como a construção da santidade feminina se articulava com o desenvolvimento e a institucionalização de processos de inquisição e de canonização e como, ainda dentro dessa construção, se davam as relações de poder entre leigos, religiosos, entidades eclesiásticas locais e o papado. Quanto às obras que fazem parte de nosso levantamento acerca do processo de canonização de Clara nos concentraremos na bibliografia mais recente acerca de nosso objeto, ou seja, a santidade de Clara tal como representada em seu processo de canonização. De uma forma geral, os autores tendem a enfatizar bastante a ideia de que o papado tinha interesse em promover o culto a Clara como modelo de santidade feminina. Catherine Mooney (1999), argumenta que a maior parte dos historiadores interessados na vida da santa compartilha o ponto de vista de que ela era a perfeita imagem feminina da santidade medieval. Contudo, critica o fato de tais autores não terem discutido mais profundamente os significados que tal alegação poderia ter para o contexto específico em que Clara viveu e em que foram produzidos escritos sobre ela (MOONEY, 1999, p. 53). A autora, em contrapartida, afirma que a tendência a aproximar as imagens de Clara e de Maria – a única mulher perfeita – foi mais enfatizada pelos autores homens que escreveram sobre ela, enquanto a própria Clara, em seus escritos, teria feito de sua imagem a mais próxima possível do ideal da Imitação de Cristo (MOONEY, 1999, p. 75). Com isso, podemos perceber que a autora não faz, ela mesma, nenhuma reflexão maior a respeito da busca pela desconstrução das dicotomias, proposta pelos Estudos de Gênero, mostrando apenas que os homens medievais procuravam reafirmar diferenças tidas como sexuais e que, somente tendo contato com os escritos produzidos pelas próprias mulheres do período, seria possível analisar de que outro modo as imagens destas poderiam ser construídas (MOONEY, 1999, p. 77). 133

Esta particularidade está relacionada ao fato de que, normalmente, os pedidos para abertura de processos de canonização partiam de bispos ou comunidades religiosas fixadas na região onde se desenvolvia o culto ao santo em questão. (PATTENDEN, 2008, p. 210).

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A categoria gênero também é utilizada no artigo de Duarte, Santos, Dias e Silva, para as quais “um processo de canonização emana de um poder constituído, um poder masculino, isto é, da hierarquia eclesiástica católica” (DUARTE et al., 2009, p. 161). Apesar de afirmarem ter desenvolvido sua análise a partir das reflexões de Scott acerca do gênero, é possível perceber que as autoras direcionam seu pensamento para as formas dicotômicas criticadas pela teórica, uma vez que afirmam a existência de poderes e interesses especificamente masculinos enquanto provenientes de homens. Apesar disso, o artigo se mostra relevante para nossa pesquisa ao fazer uma sistemática interpretação das virtudes de Clara enfatizadas ora na Bula de Canonização – documento exclusivamente papal –, ora nos depoimentos das irmãs, mostrando como a Igreja buscou destacar a virgindade como principal característica da santa, enquanto no segundo suas devotas estavam mais atentas a outras qualidades, como a prática da oração, da penitência e, sobretudo, da pobreza (DUARTE et al., 2009, p. 170). Pela mesma linha, mas sem se preocupar em teorizar gênero, segue Miriam Silva (2012) em seu artigo sobre a canonização de Clara. A autora, ao passo que discute os atributos ressaltados por devotas e eclesiásticos, apresenta uma análise acerca dos procedimentos formais elaborados para a oficialização da santidade e os relaciona com textos normativos da época. Jacques Dalarum, por outro lado, mostra uma preocupação maior em definir o que entende como gênero e em alinhar suas análises a essa formulação. Para ele, o conceito de gênero “explica identidades sexuais como uma construção cultural” (DALARUM, 2004, p. 12). Assim, pretende buscar aproximações entre Clara e a masculinidade, bem como entre Francisco e a feminilidade, mostrando o que os dois santos apresentam enquanto diferenças quanto à percepção de suas próprias identidades sexuais. O autor não trata exclusivamente do processo de canonização, no entanto, parecenos pertinente citá-lo pela associação que faz entre Clara e a prática da Imitatio Christi de maneira mais aprofundada. Ele ressalta que as testemunhas alegam que a santa nunca recebe a comunhão, mas “partilha do corpo de Cristo”, o que demonstra uma aproximação da divindade muito maior do que aquela sugerida pela Bula de Canonização ou pelas Legendas (DALARUM, 2004, p. 22). Miles Pattenden, também buscando aprofundar uma análise a partir dos Estudos de Gênero, critica o ponto de vista de Mooney acerca oposição binária que a autora cria entre os escritos

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“femininos” de Clara e o teor “masculino” do que escreveram sobre ela (PATTENDEN, 2008, p. 210). Além disso, o autor faz uma discussão acerca da relação entre o ramo feminino e o masculino da ordem franciscana, mostrando como os escritos relativos tanto a Clara quanto a Francisco expressam os interesses papais voltados ao controle das formas de vida religiosa naquele tempo (PATTENDEN, 2008, p. 225). Os primeiros estudos feitos a partir do Processo inquisitorial contra os devotos e as devotas de santa Guglielma seguiram os passos de Giovanni Pietro Puricelli, o responsável pela primeira edição crítica das atas no século XVII. A partir desta obra, se sucederam inúmeros trabalhos que trataram o processo inquisitorial, mas os autores pareceram mais preocupados com as questões relativas exclusivamente às origens, ao desenvolvimento e a repressão da heresia guglielmita. 134 Uma vez que procuraremos enfatizar a questão da santidade de Guglielma, tais obras não serão diretamente discutidas neste momento. Uma inovação significativa em relação à santidade de Guglielma no contexto da heresia aparece em Stephen Wessley, que traz o tema da Imitatio Christi para o seio dos estudos sobre os guglielmitas. No entanto, não desenvolve a questão e não faz nenhuma associação entre esta prática e o feminino. Por outro lado, traça como principal ponto de surgimento da heresia uma “reação ao sacerdócio exclusivamente masculino”, que poderia “oferecer às mulheres entusiastas a justificação para exercer as funções sacerdotais” (WESSLEY, 1978, p. 293). Em 1984, a historiadora Caroline W. Bynun, em uma de suas vastas obras acerca da espiritualidade feminina na Idade Média, menciona o caso de Guglielma, quando afirma que, em determinadas situações, homens viam em mulheres místicas e profetisas uma via para a renovação da Igreja (BYNUM, 1991, p. 138). Além disso, o ideal da Imitação de Cristo, tão presente nas formas de espiritualidade do século XIII trazia implicações diretas para a forma como vinham se desenvolvendo experiências religiosas associadas a mulheres (BYNUM, 1991, p. 139). A associação entre a

134

Uma discussão bibliográfica para as obras às quais nos referimos aqui pode ser encontrada em Luisa Muraro (1997).

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experiência de sofrimento de Cristo, vista como analogicamente feminina, já que corporal, acabou por conferir às mulheres uma autoridade e lugar de fala que era geralmente ocupado apenas por homens.135 Em 1985 foram lançados dois trabalhos dedicados à história dos guglielmitas, ambos preocupados em resgatar os relatos do processo inquisitorial e dar-lhes uma roupagem mais enfaticamente relacionada a teorias feministas. A obra de Muraro se propõe uma releitura acerca de tudo que já havia sido produzido sobre Guglielma, trazendo, inclusive uma proposta de tradução de partes do processo. Para ela, o ponto principal da heresia dos guglielmitas estava nas representações femininas da santidade, no fato de Guglielma ser Deus e Maifreda sua “vigária” na terra, o que acabaria com uma hierarquia entre os sexos, pelo poder de uma figura feminina como topo da elaboração teológica e da organização clerical (MURARO, 1997, p. 29). Já para Patrizia Costa, a questão central estava na insatisfação, própria do período, com relação à hierarquia eclesiástica. Ou seja, o que estava em jogo era a afirmação da necessidade de substituição da Igreja masculina por uma feminina, uma vez que esta poderia ser a via possível de uma renovação dos valores que permeavam os membros da hierarquia eclesiástica. Alguns outros elementos são discutidos pela autora para afirmar que a heresia se constituiu pelo grupo de devotos, como um todo, após a morte de Guglielma e sem uma maior preeminência desta na formulação teológica tal qual acabou por sofrer com a repressão inquisitorial. A autora chama a atenção para o fato de que embora em vida Guglielma se vestisse de maneira muito simples, as roupas que os devotos haviam preparado para seu uso quando de sua ressurreição, eram luxuosamente elaboradas, assim como as que Maifreda usava durante a celebração da missa, criando uma associação entre santidade e autoridade clerical, aqui representadas por modelos femininos (COSTA, 1985, p. 108). Bárbara Newman talvez seja a autora que mais profundamente analisa a questão da relação entre Guglielma e o Espírito Santo. Ela busca traçar uma linha evolutiva ao longo da Idade Média acerca das representações da santidade e espiritualidade femininas, utilizando para isso dois modelos 135

A relação entre espiritualidade feminina e o controle do corpo é melhor explicada pela autora na obra Holy Feast and Holy Fast: the religious significance of food to medieval women. Berkely: University of Carolina Press, 1987. Neste livro, Bynum argumenta que o jejum e o sofrimento se tornam uma forma de alcançar a divindade e que o sofrimento aqui deixa de ser visto como uma forma de misoginia internalizada, que previa a punição do corpo luxurioso, e passa a ser vista em termos de uma relação com a experiência humana de Cristo, esta vista como metaforicamente feminina.

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que, segundo ela, abarcam as transformações ocorridas neste período. O primeiro modelo seria o da virago, o ideal da virgem viril, ou seja, a mulher que, afastando-se da prática sexual – esta vista como a mais significativa da corporeidade – e internalizando características masculinas, tornava-se capaz de se aproximar do divino e alcançar a santidade. Já o segundo modelo, a Mulher-Cristo, teria surgido a partir do que Newman chama de uma mudança nas “estratégias de gênero”, que levou as mulheres, sobretudo dos séculos finais da Idade Média, a refletirem ou reproduzirem, através de sua espiritualidade, um aspecto feminino de Deus, materializado através da Imitação de Cristo (NEWMAN, 1995, p. 3-4). Marina Benedetti é a autora com a mais extensa bibliografia acerca de Guglielma e seus devotos (1998, 1999, 2010) e com a qual esta pesquisa mais dialogará. Ela trabalha com a hipótese de construções elaboradas pelos inquisidores a partir de alguns depoimentos, que acabaram por delimitar o movimento guglielmita como herético, uma vez que apenas parte dos devotos realmente acreditava na associação entre Guglielma e o Espírito Santo. Portanto, para ela existe uma separação entre Guglielma enquanto santa e enquanto encarnação da terceira pessoa da Trindade (BENEDETTI, 1998, p. 75). Um dos principais pontos ressaltados pela autora para afirmar que a imagem de Guglilema “ao negativo”, herege, foi construída pelos inquisidores a partir do depoimento de alguns poucos devotos, é o fato de ela ter tido sua santidade reconhecida e promovida pelos monges da abadia de Chiaravalle em Milão (BENEDETTI, 1998, p. 52). Podemos perceber, após realizar essa discussão bibliográfica, que são muitas as possibilidades de dialogar com a historiografia acerca de nosso objeto e da nossa problemática. E também que a originalidade de nossa pesquisa se demonstra pela ausência de obras que comparem os dois documentos que iremos analisar. Sendo assim, acreditamos não só poder abordar o tema da santidade a partir de fontes pouco utilizadas para tal, como também contribuir para as múltiplas discussões acerca das construções da santidade de Clara e Guglielma representadas nos seus respectivos processos. Quanto aos nossos objetivos, podemos afirma que o principal deles será analisar e comparar as perspectivas de santidade apresentadas por dois documentos produzidos por autoridades diretamente ligadas ao papado. Para alcançar este objetivo central, delineamos alguns objetivos secundários: 1.

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Determinar, por meio da comparação, as diferenças e similaridades formais entre os dois tipos de processo (canonização e inquisição); 2. Discutir as possibilidades de estudar as questões relativas ao reconhecimento da santidade e de condenação por heresia a partir desses dois documentos; 3. Confrontar, a partir do uso da categoria gênero, os atributos de santidade conferidos às duas santas ao longo da documentação, sobretudo aqueles ligados às práticas que a historiografia tende a identificar como Imitatio Christi; 4. Analisar como se fazia presente nos dois processos o discurso papal acerca da espiritualidade feminina e o enquadramento das comunidades religiosas e semi-religiosas, aqui mencionadas, aos padrões institucionais objetivados pela Igreja; 5. E como esse enquadramento se associou às imagens de santidade de Clara e de Guglielma. Ao nos defrontarmos com a análise dos documentos referentes à santidade tida como marcadamente feminina, observamos que seria de grande importância buscar um aporte teórico que privilegiasse a abordagem dos significados do feminino, enquanto representações que partem de conflitos ligados às relações de poder envolvidas na construção dos ideais de santidade e dos saberes referentes à constituição de discursos136 relativos à experiência religiosa, consideradas no contexto como ortodoxas ou heterodoxas. Encontramos então campo fértil para nossa análise na área dos Estudos de Gênero, que permite uma aproximação à percepção de múltiplas visões do feminino, deslocando a questão de uma posição normativa para o âmbito dos discursos que permeiam o cultural, o social e o político. Essa percepção é balizada pela compreensão de que o gênero está presente em todos os aspectos da experiência humana e de que os saberes acerca da diferença sexual são delimitados por mecanismos de produção que abarcam todas as relações existentes entre os agentes e as instituições de uma determinada sociedade. A noção de gênero como o saber acerca da diferença sexual é proposta por Joan Scott (1990), autora que considera a importância de se incorporar o gênero ao discurso historiográfico por ser uma categoria que permite analisar os elementos mais fundamentais de toda a organização de uma sociedade. Utilizamos o conceito, elaborado por Andréia Frazão, de que discurso é “uma construção humana coerente, coletiva, dinâmica, e organizada sobre uma determinada temática” além de não se limitarem “ao universo das ideias” e não antecederem “a organização social [...], já que é inseparável dela” (SILVA, 2002, p. 195). 136

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Assim, o uso da categoria gênero em nossa análise tem por principal objetivo permitir a compreensão acerca de como as diretrizes de gênero interferem na construção dos ideais de santidade e como esta construção se relaciona com as instituições ligadas ao papado, na Península Itálica do século XIII. Além disso, nos interessa perceber quais são as formas pelas quais os processos interrogatórios constroem discursos genderizados sobre as figuras femininas que receberam diferentes tipos de culto. Seguiremos ainda as ideias de Joan Scott como técnica de leitura do corpus documental. Uma vez que a autora procura no pós-estruturalismo o aporte teórico e metodológico para suas reflexões, o método da desconstrução lhe pareceu relevante para análise de textos em que podem ser percebidas construções de oposições binárias que, dadas como pressupostos naturais, por vezes levam a uma compreensão superficial e funcionalista de categorias como homem/mulher, igualdade/diferença.137 Assim, nos apropriaremos do método tal qual utilizado por ela, ou seja, para desconstruir ideias de igualdade e diferença observadas a partir das duas figuras de santidade selecionadas, de Clara e Guglielma, bem como para tratar do discurso dos devotos, acerca de como vivenciavam a veneração a elas, como presente nos processos. O que buscamos com isso é superar as dicotomias, como santa/heresiarca, religiosidade regular/religiosidade leiga, Imitação de Cristo/Imitação de Maria, dentre outras. Desse modo, nosso método se divide em duas partes principais: identificar as dicotomias e, posteriormente, analisar, comparativamente, as suas contradições e os seus limites. A utilização do método comparativo, por sua vez, será aplicada seguindo os pressupostos de Jürgen Kocka, para quem “comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas singularidades e diferenças de modo a se alcançar determinados objetivos intelectuais” (KOCKA, 2003, p. 39). Pretendemos, portanto, a partir da utilização dos modelos de comparação propostos por Kocka, contrapor a forma como os dois processos, inquisitorial e de canonização, constroem a santidade feminina e articulam os elementos constituintes das relações de poder engendradas em sua produção. Entendemos que o método pode ser de particular valor para nossa pesquisa, uma vez que permitirá analisar as particularidades de cada caso de santidade, a partir da proposta definida como descritiva de 137

Scott usa a definição Jacques Derrida de desconstrução como o método que envolve a análise das operações construtoras de diferença nos textos, ou seja, as formas pelas quais a diferença faz os significados se constituírem (SCOTT, 1994, p. 3).

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Kocka (2003, p. 39), propondo uma abordagem, a partir de cada processo, que não esteja necessariamente afiliada ao que conhecemos a priori acerca do fenômeno da santidade medieval. Além disso, a comparação entre fenômenos permite utilizar um processo inquisitorial para estudar a santidade, no sentido de aprofundar o conhecimento que se tem acerca desta, quando em comparação com o processo de canonização, definido como o documento por excelência adequado ao estudo da santidade em seu nível, e em seu desenvolvimento, institucional.

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CENOBITAS E ANACORETAS: APONTAMENTOS SOBRE AS CONFERÊNCIAS XVIII E XIX DE JOÃO CASSIANO Bruno Uchoa Borgongino138

Em minha recém-iniciada pesquisa de doutorado, o corpus documentalem análise compreende os textos escritos pelo monge marselhês João Cassiano a respeito da profissão monástica. Dentre esses textos, constam as Collationes patrum, mais conhecidas como Conferências, possivelmente redigidas entre 426 e 428.139 O documento é composto por vinte conferências que, segundo João Cassiano, seriam transcrições em latim dos ensinamentos proferidos por proeminentes ascetas orientais. Em cada uma dessas lições era abordado um tema pertinente ao monacato. Nas conferências XVIII e XIX, atribuídas aos abades Piamun e João respectivamente, foram enumerados e descritos os tipos existentes de monges, incluindo os cenobitas e os anacoretas. O objetivo da presente comunicação é realizar alguns apontamentos a respeito da caracterização do monaquismo cenobítico e anacorético nessa documentação.

As tipologias monásticas O monaquismo cristão teve início no Egito, no começo do século IV. 140 A hagiografia dedicada a Antão, escrita por Atanásio de Alexandria, era o referencial de vivência monástica mais difundido nesse momento. Na narrativa, foram enfatizadas a luta perpetrada pelo protagonista em favor do 138

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vinculado ao Programa de Estudos Medievais (PEM). E-mail de contato: [email protected] 139 CHADWICK, Owen. John Cassian. A study in primitive monasticism.London: Cambridge University, 1950. p. 7-50. p. 188-189. Para essa comunicação, utilizarei a edição bilíngue com o original em latim e tradução em francês, publicada pela coleção Sources Chrétiennes da Éditions du Cerf. Publicada em três volumes, as conferências XVIII e XIX encontram-se no terceiro. Cf.: JEAN CASSIEN. Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. 140 Existem diversas tendências interpretativas no que tange à emergência a vida monacal cristã. Para um breve panorama das propostas de explicação para esse fenômeno histórico, cf.: DUNN, Marilyn. The emergence of monasticism, From the Deser Fathers to the Early Middle Ages. Malden: Blackwell, 2003. p. 1-2.COLUMBÁS, García M. El monacato primitivo. Madrid: BAC, 1998.

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isolamento e da renúncia aos bens mundanos.141 Em consonância com tal perspectiva, a documentação do período apresentava como norte para a conduta dos monges a xeniteia, ou seja, a alienação de si mesmo necessária para abdicar dos antigos hábitos e para se devotar inteiramente a Deus.142 Provavelmente na década de 320, surgiu na região de Tebas o movimento pacominiano, centrado na ideia de suporte mútuo entre monges pertencentes a uma mesma comunidade (koinonia). Posteriormente, Basílio de Cesareia, em textos que vinculavam preceitos monásticos, indicava uma forma de profissão comunal pautada na caridade, na ascese moderada e na necessidade de subordinação a um superior.143 No Ocidente,144 autores proeminentes interessaram-se em promover essa modalidade comunitária de monacato. Maribel Dietz destacou que a dificuldade por parte do clero em controlar ascetas carismáticos, sobretudo quando itinerantes, resultou na defesa da estabilidade física (stabilitas)145 – que, além da permanência num espaço determinado, implicava sobretudo na persistência numa vivência social marcada pela solidariedade.146 Conforme apontado por Daniel Carner, os monges detinham autoridade perante o laicato e ainda recebiam patronato aristocrático pelos méritos e serviços espirituais, por vezes resultando numa rivalidade com a elite eclesiástica. Tal conjuntura suscitou debates que concerniam ao lugar e aos privilégios do monge no âmbito da hierarquia clerical.147 A redação de textos que definiam diferentes categorias de vida monacal estava relacionada com o esforço clerical de regulamentar as atividades de ascetas. Segundo Dietz, essas tipologias 141

DUNN, Marilyn. Op. Cit. p. 2-11 CARNER, Daniel. “Not of this world”: the invention of monasticism. In: ROUSSEAU, Philip. A companion to Late Antiquity. Malden: Blackwell, 2009. p. 588-600. 143 DUNN, Marilyn. The emergence of monasticism, From the Deser Fathers to the Early Middle Ages. Malden: Blackwell, 2003. p. 25-41. 144 O início da difusão do monaquismo no Ocidente ocorreu na segunda metade do século V. Para uma síntese desse processo, cf.: MARAVAL, Pierre. D´Antoine à Martin: aux origines du monachisme occidental. Vita Latina, n. 172, p. 7282, 2005. 145 DIETZ, M. Wandering monks, virgins and pilgrims. Ascetic travel in Mediterranean world 300-800. University Park: The Pennsylvania University, 2005. p. 70-71. 146 GOMES, F. J. S. Peregrinatio e stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental nos séculos VI a VIII. In: III Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM, 2001, Rio de Janeiro. Anais do III Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. Rio de Janeiro: ABREM, 1999, v. 1. p. 391-398. 147 CARNER, Daniel. Wandering, begging monks. Spiritual authority and the promotion of monasticism in Late Antiquity. Berkeley, Los Angeles, London: University of California, 2002. p. 1-13. 142

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distinguiam classes “boas” e “más” de monges, explicitando assim as formas apropriadas e inapropriadas de profissão.148 A historiadora apontou como primeira listagem desse gênero o texto anônimo Discussões de Zaqueu e Apolônio, escrito provavelmente entre 360 e 380, no qual foram apresentados cinco tipos de monges – dois bons, dois ruins e um intermediário.149 Em 384, Jerônimo propôs uma nova classificação em sua epístola 22, dirigida à Eustáquia. Nela, apontava a existência três classes no Egito: os cenobitas, que viviam em comunidades, os anacoretas, que habitavam solitariamente o deserto, e a classe remnuoth, composta por ascetas inferiores.150 João Cassiano, ao apresentar uma categorização das modalidades monacais, prosseguiu com um debate iniciado nas Discussões de Zaqueu e Apolônio e na epístola 22. Conforme demonstrarei adiante, as Conferências vinculavam uma listagem muito próxima da realizada por Jerônimo, porém, com algumas especificidades.

Tipologia proposta por João Cassiano

Provavelmente entre 378 e 388, João Cassiano habitou num mosteiro em Belém, onde recebeu sua formação. Após abandonar o local o seu colega Germano, peregrinou pelo Egito e visitou diversas comunidades do Delta do Nilo. Entre 400 e 403, foi ordenado como diácono em Constantinopla, onde permaneceu até 403 ou 404 – ocasião de sua deposição do cargo e exílio. Após um período em Roma, estabeleceu-se em Marselha durante a década de 410.151 Nas Conferências, o monge narrou encontros que teve com destacados ascetas durante seu itinerário no Oriente. Segundo Augustine Casiday, alguns especialistas avaliaram que o documento teria apenas valor teológico, uma vez que vinculava diversas imprecisões históricas a respeito do

148

DIETZ, M. Op. Cit. p. 71 Ibidem. p. 75. 150 JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome. New York: Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37. 151 CHADWICK, Owen. John Cassian. A study in primitive monasticism. London: Cambridge University, 1950. p. 7-50. 149

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monaquismo oriental. Criticando tal perspectiva, Casiday sublinhou que o objetivo de João Cassiano não era estabelecer uma exposição fidedigna dos acontecimentos, mas transmitir uma tradição.152 A conferência XVIII, em que João Cassiano apresentou sua tipologia monástica, foi atribuída ao abade Piamun. Segundo o relato, o personagem foi encontrado na cidade de Diolcos, localizada num dos afluentes do rio Nilo. O planejamento do trajeto teria como objetivo justamente conhecer os ascetas da região, tendo em vista que os mosteiros locais foram fundados pelos antigos.153 João Cassiano iniciou a abordagem do tema em questão no capítulo IV da conferência. Primeiramente, enumerou classes de monges semelhantes às de Jerônimo: duas boas, o cenobita e o anacoreta, e uma ruim, os sarabaítas.154 Porém, no capítulo VIII, acrescentou uma quarta, que não nomeou e qualificou como ruim.155 Cabe frisar que as duas maneiras negativas de profissão monástica eram diametralmente opostas às duas positivas. Assim, enquanto os sarabaítas consistiam numa forma decadente de cenobitismo surgida ainda no período apostólico, a quarta espécie apresentava uma vã imagem do anacoretismo. Quantos às duas modalidades qualificadas como boas, foram aprofundadas na conferência XIX. Contendo ensinamentos atribuídos ao abade João, teria ocorrido poucos dias depois do encontro com Piamun, no mosteiro do abade Paulo. Segundo João Cassiano, João foi um anacoreta que abandonou o deserto para viver num cenóbio por motivos que são esclarecidos no decorrer da conferência. 156 Por ocasião dessa narrativa, o autor do documento indicava o ingresso numa comunidade, mais adequado à maioria do que o ascetismo solitário.

152

CASIDAY, Augustine. Tradition as a governing theme in the writings of John Cassian. Early Medieval Europe, v. 16, n. 2, p. 191-214, 2008. p. 191-192. 153 JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 11. 154 Ibidem. p. 13-14. 155 Ibidem. p. 21-22. 156 JEAN CASSIEN. Conférence XIX: de la fin du cénobite et de celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 38-39.

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Portanto, a tipologia delimitada por Cassiano instituía os preceitos a serem adotados tanto profissão comunitária quanto na solitária, desqualificando os monges que não observassem o prescrito. Além disso, promovia a classe cenobítica ao avaliá-la como mais apropriada que as demais.

Cenobitas

A epístola 22 de Jerônimo caracterizava os cenobitas como monges que perseveravam numa comunidade que era unida pela subordinação completa a um superior. 157Os atributos conferidos por João Cassiano à essa categoria eram os mesmos: “La prémière est celle des cénobites, c´est-à-dire de ceux qi vivent ensemble dans une communauté, sous le gouvernement et a discrétion d´um ancien”.158Na conferência XIX, afirmou que a perfeição cenobítica consistia em mortificar e crucificar todas as suas vontades e jamais pensar no dia de amanhã.159 Contudo, o marselhês distanciou-se de Jerônimo ao apresentar uma origem histórica para o cenobitismo que o vinculava à sociedade dos primeiros cristãos conforme descrita no Ato dos Apóstolos:160

La vie cénobitique prit naissance au temps de la prédication apostolique. C´est elle, en effet, que nous voyons paraître à Jérusalem, dans toute cette multitude de fidèles, dont le livre des Actes nous trace ce tableau (...).161

157

JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome.New York: Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37. 158 JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 14. 159 Idem. Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 46. 160 A menção à sociedade formada pelos apóstolos como referência ao monaquismo já havia sido realizada por autores precedentes, conforme levantamento realizado por Bartelink. A especificidade dessa alusão na obra de João Cassiano consiste em defini-la como origem do monacato cristão. Cf.: BARTELINK, G. J. M. Monks: the ascetic movement as a return to the aetas apostolica. In: HILHORST, A. (ed.). The apostolic age in patristic thought.Leiden, Boston: Brill, 2004. p. 204-218. 161 JEAN CASSIEN. Op. Cit. p. 15.

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Na perspectiva adotada por João Cassiano, a morte dos apóstolos e o aumento do número de crentes de fé débil resultaram na perda do fervor primitivo. Dessa forma, tanto os gentis quanto os líderes da comunidade cristã relaxaram da antiga austeridade.162 Os cenobitas, entretanto, mantinham o mesmo espírito dos primórdios do cristianismo. O marselhês apontou que esses crentes fugiam das cidades e da companhia daqueles que consideravam lícito viver negligentemente. Ao se estabelecerem em lugares isolados, formavam cenóbios.163 Assim, os monges que conviviam com outros praticavam as regras que os apóstolos destinaram a toda a ecclesia. Somente com o passar do tempo que os cenobitas constituíram um grupo distanciado dos demais fieis.164 Em oposição ao cenobita, João Cassiano estabeleceu o sarabaita – categoria muito similar ao remnuoth de Jerônimo. Assim como os cenobitas, viviam conjuntamente em mosteiros, contudo, apenas tangenciavam a perfeição ascética, sem adotá-la verdadeiramente. João Cassiano acusava-os de não observarem a disciplina adequada, nem subordinarem-se aos superiores e, por fim, de não aprenderem a controlar suas vontades.165 Em decorrência da falta de obediência e de uma conduta arbitrária, trabalhavam arduamente, até mesmo de noite. Ao contrário dos cenobitas, que, segundo João Cassiano, disponibilizavam seus ganhos à comunidade, os sarabaitas guardavam o dinheiro. Enquanto os cenobitas renunciavam aos bens e adotavam a pobreza perpétua, os sarabaitas viviam com abundância.166 De acordo com os ensinamentos atribuídos ao abade Piamun, essa categoria ruim de monge surgiu da decadência no seio da comunidade cristã, tendo como primeiros adeptos Ananias e Safira.167 Na narrativa do Ato dos Apóstolos, o casal descumpriu a norma de doar todos os seus bens no momento de ingresso na comunidade dos fiéis, escondendo parte do patrimônio dos outros fieis. Por 162

Ibidem. p. 15. Ibidem. p. 15-16. De acordo com João Cassiano, “mosteiro” designa somente o lugar onde habitam os monges, enquanto “cenóbio” nomeia tanto o caráter da profissão quanto o gênero de vida daqueles que vivem em comum sob o mesmo teto. Cf.: JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 22. 164 Ibidem. p. 16. 165 Ibidem. p. 18-19; 22. 166 Ibidem. p. 20. 167 Ibidem. p. 18. 163

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conta desse delito, ambos foram severamente punidos por Pedro. Na conferência XVIII, a sanção do apóstolo foi apresentada como um exemplo que deveria impedir outros de cometerem a mesma infração.168 Isabelle Rosé demonstrou que, entre os séculos II e VIII, os autores cristãos frequentemente referiam-se a Ananias e Safira no intuito de estabelecer um contra-modelo de vida cristã. No começo da literatura monástica, interpretava-se o comportamento do casal como uma conservação particular das suas posses. Na análise da autora, Cassiano empregou o vocabulário e os esquemas argumentativos dos polemistas anti-heréticos ao estabelecer um ancestral para os adeptos de uma forma errônea de monaquismo.169 Saliento, ainda, que atribuir aos cenobitas e aos sarabaitas um passado apostólico presente nas Escrituras contribuía para corroborar suas ponderações sobre a temática. Robert Louis Wilken classificou as Escrituras como inescapáveis no começo do medievo, tendo em vista que influíam na maneira de pensar e eram utilizadas para dar forma para a vida comunal e política. 170 Segundo Lobrichon, os escritos que compunham o conjunto das Escrituras eram considerados como a lei dos cristãos, um código ou norma intangível marcada por um sinal sagrado.171 Portanto, o recurso às Escrituras na narrativa sobre a origem e desenvolvimento das formas de monaquismo comunitário consistia, implicitamente, em estabelecer quais categorias de ascetas estavam em conformidade com os desígnios divinos. Pelas características positivas associadas ao cenobitismo, prescrevia como diretrizes o controle de si, a obediência a uma liderança e a abdicação do patrimônio pessoal. Os atributos desqualificados nos sarabaitas indicavam as práticas ascéticas condenáveis.

Anacoretas 168

Ibidem. p. 18. ROSSÉ, Isabelle. Ananie et Saphire ou la construction d´um contre-modèle cénobitique (IIe – Xe siècle). Médiévales, n. 55, p. 33-52, 2008. p. 34-38. 170 WILKEN, R. L. The novelty and inescapability of the Bible in Late Antiquity. In: DiTOMMASO, L.; TURCESCU, L. (eds.). The reception and interpretation of the Bible in Late Antiquity. Leiden, Boston: Brill, 2008. p. 8; 13. 171 LOBRICHON, Guy. Bíblia. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. 2v. V.1, p. 105-117. p. 105; 110. 169

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Jerônimo definiu o anacoretismo como um isolamento no deserto.172 João Cassiano acrescentou um elemento à caracterização:

La deuxième est celle des anachorètes, qui, après avoir ètè formés aux maisons des cénobites et s´être rendus parfaits dans la vie ascétique, ont préféré le secret de la solitude.173

O cenobitismo, nesse sentido, consistia num antecedente necessário ao monge antes de experimentar a solidão ascética. A conferência XVIII, inclusive, alegou que os primeiros anacoretas surgiram no âmbito das comunidades monásticas, sendo Paulo e Antônio seus primeiros adeptos. O desejo de afastar-se da sociedade foi associado à busca por desenvolvimento espiritual:

Ce ne fut pas, comme pour certains, la pusillanimité ni le vice de l´impatience, mais le désir d´um progrès plus sublime et le goût de la divine contemplation, qui leur firent gagner les secrets de la solitude; bien que, dit-on, le premir [Paulo] ait été contraint de fuir au désert par les embûches de ceux de as parenté, em um temps de persécution.174 Na conferência XIX, o autor definia o que seria a perfeição anacorética: “la perfection de l´ermite est d´avoir l´esprit dégagé de toutes les choses terrestres, et de s´unir ainsi avec le Christ, autant que l´humanie faiblesse em est capable”.175 De acordo com João Cassiano, esses solitários imitavam personagens das Escrituras tais como João Batista, Elias e Eliseu.176 Enumerou, ainda, passagens das Escrituras que, em sua perspectiva, aludiam a este tipo de monge – a saber: Epístola aos Hebreus, Jó, Salmos, Lucas, e Atos dos 172

JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome.New York: Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37. 173 JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 14. 174 JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 17. 175 Idem. Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 46. 176 JEAN CASSIEN. Op. Cit. p. 17.

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Apóstolos.177 Por meio da associação entre o anacoretismo e as Escrituras, o marselhês ressaltava o valor dessa profissão. Em contraposição aos anacoretas, havia a quarta classe de monge. Na avaliação de João Cassiano, essa categoria era composta por monges que adotavam uma vã imagem do anacoretismo. Oriundos de mosteiros, optavam pela reclusão por não conseguirem perseverar na paciência e na humildade e por desdenhar da submissão aos superiores. Por conta do prestígio dos solitários, essa categoria má de monges não eram acusados dos vícios, ainda que destituídos de virtude.178 Então, o abandono de um cenóbio para fugir ao deserto não necessariamente era uma opção legítima, na perspectiva do marselhês. Aludindo ao intento pecaminoso no afastamento do quarto tipo de monge, a conferência possibilitava o rechaço dos impulsos ascéticos rigorosos por meio de um critério subjetivo e inverificável – mas preservando o prestígio dos renomados anacoretas antigos. Por fim, estabelecia o ingresso num mosteiro como etapa necessária no curso da progressão espiritual.

A preferência pelo cenobitismo

Conforme exposto, João Cassiano caracterizava a anacorese como uma iniciativa de cenobitas que se isolavam em busca de maior perfeição. Ao final da conferência XVIII, o autor alegou que a lição do abade Piamun estimulou um desejo pré-existente de adotar a profissão anacorética:

A ce discours de l´ábbé Piamun, le désir qui déjà nous avait inspiré de quitter l´école élémentaire du monastère cénobitique, pour tem,dre au degré supérieur des anachorètes, s´enflamma encore davantage.179

177

Ibidem. p.17-18. Optei por listar na ordem de citação na conferência em análise. JEAN CASSIEN. Op. Cit. p. 22. 179 JEAN CASSIEN. Conférence XVIII: de trois espèces de moines. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 10-36. p. 36. 178

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A despeito da exaltação da modalidade monacal solitária, João Cassiano definiu o cenobitismo como a forma mais apropriados de vida ascética. No decorrer da conferência XIX, o marselhês argumento em favor dessa ideia por meio do discurso do abade João. Conforme relatado no começo do texto, o personagem que ministrou os ensinamentos integrou uma comunidade monástica por trinta anos, abandonando-a para ir ao deserto. Após duas décadas de isolamento, retornou ao um cenóbio. Por meio da sua fala, elucidou os motivos que suscitaram a mudança de profissão: os perigos espirituais presentes no anacoretismo e as vantagens de habitar um mosteiro.180 O abade João não desqualificou a vida solitária, pelo contrário, enalteceu seus méritos: durante a reclusão, esquecia-se do fardo do corpo frágil, da percepção sensorial do mundo externo e até mesmo se havia comido, tamanha dedicação à contemplação às coisas de Deus. Contudo, as constantes visitas de outros monges diminuíram o fervor pela perfeição e as preocupações materiais eram grandes entraves à atividade ascética.181 Ainda de acordo com a narrativa, o personagem preferiu aderir novamente ao ideal cenobítico por nessa profissão a necessidade de atenção às demandas mundanas seriam menores:

Ici, nul besoin de prévoir le travail quotidien; nulle préoccupation de vente ni d´achat; rien de cette inéluctable nécessité de faire as provision de pain pour l´année; point l´ombre de sollicitude à l´endroit des choses matérielles, pour parer, soit à ses propres besoins, soit à ceux de nombreux visiteurs; aucune prétention, enfin, de gloire humanie, qui souille, aux yeux de Dieu, plus que tout le reste, et rend parfois inutiles même les grands travaux du désert.182

Na avaliação do conferencista, os anacoretas de seu tempo não mantinham a mesma austeridade dos predecessores. Novamente, João Cassiano utilizou a proposição da decadência

180

Idem. Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 40. 181 Ibidem. p. 41-42. 182 Ibidem. p. 43.

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histórica dos fiéis, mas sublinhando, dessa vez, a impossibilidade de seus contemporâneos de obterem os benefícios do isolamento por conta do relaxamento disciplinar.183 Ainda que delimitando o que seria a perfeita profissão no cenobitismo e no anacoretismo, João Cassiano negava que um homem fosse capaz de concretizá-las – salvo algumas notáveis exceções, como o abade Moisés, Pafnucio, Macário do Egito e Macário de Alexandria. Em comunidade, o asceta não alcançaria a pura contemplação; em solidão, não se apartaria das perturbações dos bens materiais. Entretanto, o fracasso do anacoreta decorreria do ímpeto de sair do cenóbio antes de completar sua formação e corrigir antigos vícios.184 Assim, mesmo para que possa haver possibilidade de algum sucesso no deserto, seria indispensável a permanência prévia numa comunidade. Robert A. Markus, em sua análise das conferências XVIII e XIX, atestou que João Cassiano, ao propor que o mosteiro constituía no último lugar para uma vivência genuinamente cristã, não se interessava nas consequências desse argumento para o restante da ecclesia. Seu intento era caracterizar os monges como uma elite ascética que observava os preceitos apostólicos. Por outro lado, ao estabelecer o anacoretismo como objetivo quase inatingível, prescreveu o cenobitismo como a única opção viável de ascetismo.185 Logo, as ponderações de João Cassiano visavam instituir a classe cenobítica como um grupo superior no âmbito da comunidade cristã, favorecendo sua adoção em detrimento de outras modalidades.

Considerações finais

Em sua origem, o movimento monástico caracterizava-se pelo isolamento ascético pautado na abdicação de bens terrenos e de si próprio em favor da contemplação a Deus. O surgimento das experiências monacais comunitárias possibilitou ao clero promover o monacato numa forma passível de ser regulamentada e adequadamente inserida na hierarquia eclesiástica. 183

Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 4344. 184 Conférence XIX: De la fin du cénobite et celle de l´ermite. In: Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. p. 37-55. p. 4548. 185 MARKUS, Robert A. O fim do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997. p. 169; 183-184.

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As tipologias monásticas consistiam em listagens que discriminavam as modalidades aprováveis e reprováveis de vida monacal. Por meio de suas Conferências, João Cassiano participou desse debate, apresentando uma relação com os dois tipos bons e o tipo ruim de monge previstos por Jerônimo, porém acrescentando uma quarta classe, que seria desprezível. Para cada categoria positiva, havia uma negativa diametralmente oposta. A profissão cenobítica, baseada na partilha comunitária de bens, no controle de si e na sujeição a um superior, tinha como antagonista os sarabaitas; o anacoretismo, adotado por ascetas que optavam pela solidão após uma formação num cenóbio, contrapunha-se ao quarto tipo. João Cassiano associou as origens do monaquismo à sociedade formada pelos primeiros cristão relatada no Ato dos Apóstolos. Em sua perspectiva, os apóstolos estabeleceram preceitos a serem seguidos por todos fiéis, mas que, em decorrência da decadência do fervor espiritual, houve um relaxamento disciplinar. O cenobitismo teria nascido com homens ainda estimulados pelos preceitos apostólicos formando comunidades para perseverar na antiga austeridade. Dessa forma, as outras modalidade surgiram posteriormente à profissão cenobítica, seja por anseio de aperfeiçoamento ou pela perda do antigo rigor ascético. Sem desqualificar completamente o anacoretismo, João Cassiano recomendou a adoção da modalidade cenobítica. Sendo a perfeição em qualquer tipo de monaquismo possível apenas para homens excepcionais, aderir a uma comunidade representaria uma possibilidade mais viável à maioria. Na solidão do deserto, o monge estaria propenso à distração com questões materiais; no cenóbio, tais preocupações mundanas seriam menos recorrentes. Foi por esse motivo que o abade João, protagonista da conferência XIX, abandonou o anacoretismo para regressar ao cenobitismo. As ponderações do marselhês concernentes às classes monásticas relacionavam-se com um esforço, presente ao longo das Conferências, de ressaltar os méritos dos ascetas e caracterizá-los como uma elite espiritual, mesmo que isso significasse a depreciação dos demais fiéis. Ao fim, a categoria favorecida na documentação analisada foi a cenobítica – a mais suscetível à normalização.

Fontes e Referências Bibliográficas

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JEAN CASSIEN. Conférences. Paris: Cerf, 1959, 3v. V. 3. JEROME. Letter XXII. To Eustochium. In: SCHAFF, P. Jerome: the principal works of St. Jerome. New York: Christian Literature, 1892. p. 22-41. p. 37. BARTELINK, G. J. M. Monks: the ascetic movement as a return to the aetas apostolica. In: HILHORST, A. (ed.). The apostolic age .in patristic thought. Leiden, Boston: Brill, 2004. p. 204-218. CARNER, Daniel. “Not of this world”: the invention of monasticism. In: ROUSSEAU, Philip. A companion to Late Antiquity. Malden: Blackwell, 2009. p. 588-600. ___. Wandering, begging monks. Spiritual authority and the promotion of monasticism in Late Antiquity. Berkeley, Los Angeles, London: University of California, 2002. p. 1-13. CASIDAY, Augustine. Tradition as a governing theme in the writings of John Cassian. Early Medieval Europe, v. 16, n. 2, p. 191-214, 2008. CHADWICK, Owen. John Cassian. A study in primitive monasticism. London: Cambridge University, 1950. COLUMBÁS, García M. El monacato primitivo. Madrid: BAC, 1998. DIETZ, M. Wandering monks, virgins and pilgrims. Ascetic travel in Mediterranean world 300-800. University Park: The Pennsylvania University, 2005. DUNN, Marilyn. The emergence of monasticism, From the Deser Fathers to the Early Middle Ages. Malden: Blackwell, 2003 GOMES, F. J. S. Peregrinatio e stabilitas: monaquismo e cristandade ocidental nos séculos VI a VIII. In: III Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM, 2001, Rio de Janeiro. Anais do III Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM.Rio de Janeiro: ABREM, 1999, v. 1. p. 391398. LOBRICHON, Guy. Bíblia. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002. 2v. V.1, p. 105-117. MARAVAL, Pierre. D´Antoine à Martin: aux origines du monachisme occidental. Vita Latina, n. 172, p. 72-82, 2005.

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MARKUS, Robert A. O fim do cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997. ROSSÉ, Isabelle. Ananie et Saphire ou la construction d´um contre-modèle cénobitique (IIe – Xe siècle). Médiévales, n. 55, p. 33-52, 2008. WILKEN, R. L. The novelty and inescapability of the Bible in Late Antiquity. In: DiTOMMASO, L.; TURCESCU, L. (eds.). The reception and interpretation of the Bible in Late Antiquity. Leiden, Boston: Brill, 2008. p. 8; 13.

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O QUE VEMOS É O QUE LEMOS? UMA ANÁLISE DO BEATO DE LIÉBANA – COMENTÁRIO A APOCALIPSE DE SÃO JOÃO / CÓDICE DE FERNANDO I E D. SANCHA (1047) Carolina Akie Ochiai Seixas Lima186

A temática que cerca esta pesquisa de doutorado relaciona-se à obra Commentarium in Apocalypsin (Comentário ao Apocalipse de São João), texto escrito pelo monge hispânico, Beato de Liébana187, em 1047, na região de Astúrias a pedido de Fernando I – Rei de Leão. O interesse por esta obra se explica pelo fato de que tal códice ganhou notada importância na Alta Idade Média e durante os séculos seguintes por suas fortes descrições e atraentes simbolismos relacionados ao Apocalipse. Sua linguagem apocalíptica vinculada ao Anticristo foi muito importante para os escritos patrísticos e

186

Doutoranda em História pelo PPGHis-UFMT (Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso) e pesquisadora do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo. Contato: [email protected] 187 Em ARAGUZ e MARTÍNEZ temos, Beato de Liébana (? – 798), também conhecido como São Beato (nome que aparece no calendário litúrgico de santos), um santo católico cuja festividade se celebra no dia 19 de fevereiro, foi monge do Monastério de São Martinho de Turieno (atual mosteiro de Santo Toríbio de Liébana), viveu na comarca cântabra lebaniega na segunda metade do século VIII. Posteriormente foi abade do Monastério de Valcavado e também conselheiro e confessor da Rainha Adosinda (filha de Afonso I, das Astúrias, foi rainha consorte das Astúrias até o ano 783), sua obra mais conhecida é o ‘Commentarium in Apcalypsin’, texto enormemente difundido durante a Alta Idade Média devido ao seu enfoque de alcance teológico, político e geográfico, foi escrito para explicar o mais complexo e hermético texto bíblico ‘Apocalipse’. Isto faz do texto do Beato um texto de capital importância por sua riqueza iconográfica e por seu valor testemunhal. Pouco se conhece da vida deste lebaniego, seu nome real era Beato (masculino de Beatriz), foi um grande defensor da ortodoxia católica. Ao Beato devemos também o hino ‘O Dei Verbum’ , de onde pela primeira vez na história se apresenta o apóstolo Santiago como evangelizador da Espanha, criando uma devoção que facilitou o descobrimento de sua tumba por Teodomiro, bispo de Iria Flavia . Este acontecimento foi fundamental para unir os cristãos do norte em uma causa comum, a do nascimento de um sentimento nacional, a partir desse momento a Hispânia começou a ser conhecida em âmbito internacional altomedieval. Provavelmente, o Beato foi o primeiro escritor espanhol influente neste contexto europeu medieval.

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para as homilias no medievo188. Para a realização deste estudo será usado o Códice de Fernando I e D. Sancha, datado de 1047, fac-símile disponível na Biblioteca Nacional da Espanha, em formato digital189. Como tema desta pesquisa, trabalharemos com os aspectos mais característicos desta obra, que naturalmente cercam a interpretação de suas iluminuras e seu conteúdo textual. Nesse sentido, analisaremos os elementos léxicos que se relacionam ao apocalipse, tais como: Cristo entronado e cercado pelos quatro cavaleiros evangelistas, o Juízo Final, o inferno, imagens diabólicas, dragões no abismo e bestas com sete cabeças, elementos esses muito recorrentes no imaginário medieval em correlação imediata com seu texto, escrito em latim cristão, em escritura visigótica190. “El Beato de Liébana”, como é conhecido pelos estudiosos na Europa, foi um monge espanhol que faleceu no ano de 798, escreveu o manuscrito intitulado “Comentário ao Apocalipse”. Durante os séculos posteriores (IX, X, XI), esta obra foi copiada e ilustrada em estilo moçárabe. As cópias, conhecidas como “Beatos”, se destacam pelo valor artístico de suas iluminuras, estas, por sua vez, se caracterizam pelos fortes contrastes de cores e pela disposição em que se encontram no decorrer da obra, ora em posições horizontais, ora em diferentes ângulos, hoje se conservam mais de 20 cópias

188

Estudos que fazem menção à importância do Beato: ROCHA, F. L. Arianos entre inimicos ecclesiae catholicae: um afrontamento no comentarii liber apocalipses de Apringio de Beja – séc. VI, 2009.; PARMEGIANI, R. F. Leituras imagéticas do apocalypse na alta idade média, 2011.; PARMEGIANI, R. F. O maravilhoso apocalíptico: representações do inferno e de seres diabólicos nas iluminuras dos Beatos, 2011.; PARMEGIANI, R. F. Leituras medievais do apocalipse: comentário ao Beato de Liébana, 2009.; KLEIN, P. K. Beatus a Liébana: In Apocalypsin Commentarius, Manchester, The John Rylands University Library, Latin MS 8, 1990.; COSTA, R. Beato de Lébana (730-785) e uma iluminura dos quarto cavaleiros do apocalipse de São João: análise iconográfica, 2001.; IRUSTA, M e ANGUIS, F. El Beato de Liébana, 2013.; Factum arte: The digital recording: Beato de Liébana – Commentary on the Apocalypse of Sait John, 2005.; JIMÉNEZ, M. J. Beato de Liébana, profeta del milenio, 2009. ARAGUZ, A. M. e MARTÍNEZ, Las visions apocalipticas de Beato de Liébana, 2003.; ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana y los terrores del año 800, 1999. GARCIA, E. R. Beato de Liébana: um testigo de su tempo (S. VIII), [pdf]; HERNANDEZ, A. C., ECHEGARAY, J. G., FREEMAN, L. G. e SOTO, J. L. C. Obras completas y complementarias II Documentos de su entorno historico y literario, 2009. POOLE, Kevin. Beatus of Liébana: Medieval Spain and the Othering of Islam. In: KINANE, Karolyn & RYAN, Michael (ed.). End of Days: Essays on the Apocalypse from Antiquity to Modernity. Jefferson: MacFarlane & Co., 2009, p. 47-66. WILLIAMS, John. The Illustrated Beatus: The eleventh and twelfth centuries. Harvey Miller, 2002. CURT, J. The book of revelation: its historical background and use of traditional mythological ideas, 1973. 189 Este códice está disponível on-line no endereço http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/1806167 ou na http://www.wdl.org/pt/. Último acesso em:18/agosto/2013. 190 MARCOS, Jose-Juan. Fuentes para Paleografia Latina. Caceres, España: Edição do autor, 2011. Esta obra nos auxiliará nos estudos referentes à escritura visigótica.

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deste manuscrito191. A vida deste religioso também tem sido estudada, dada a importância de sua obra, foi abade do monastério de Valcavado e também conselheiro e confessor da Rainha Adosinda. Defensor da ortodoxia católica, combateu com sua obra literária a teoria do adocionismo, em que Cristo era um simples homem sobre o qual desceu o Espírito de Deus192. Os “Comentários ao Apocalipse” se compõem basicamente de um prólogo, um resumo e 12 livros de núcleo da obra. Algumas das cópias incluem também outros textos. As várias edições desta obra, encontradas em diversas bibliotecas do mundo, foram escritas em épocas diferentes e respondem a um modelo pictórico que tem origem hispana e norte-africana, suas imagens demonstram influências carolíngias, islâmicas e irlandesas. Uma característica inovadora para a época, presente na obra, são as ilustrações que acompanham todo o desenrolar do tema apocalíptico, o que não se via nas Bíblias até então193. Lembrando que tanto o texto escrito quanto suas inúmeras iluminuras contribuíram de forma efetiva para a formação de uma leitura do texto bíblico Apocalipse, último livro do Novo Testamento da Bíblia Cristã é que nos propomos a realizar durante o doutorado uma análise que trace a relação mais efetiva entre a imagem e o texto. O texto escrito pelo Beato marcou profunda e duradouramente a cultura eclesiástica medieval, notadamente da península Ibérica. Seus ‘Comentários’ ecoaram nas visões sobre a história, na teologia da salvação e na eclesiologia partilhada por bispos e monges ibéricos por inúmeras gerações. Sua obra é diretamente constitutiva do que se pode chamar de tradição cristã e seus ecos podem ser encontrados, inclusive, no Novo Mundo. Em 1995 um grupo de estudiosos194 do Beato publicou uma obra bilíngue, aliás, única, do ‘Commentarium in Apocalypsin’, uma versão latino-espanhola acompanhada de estudos introdutórios e notas. Sabendo-se que há apenas esta obra traduzida em espanhol hodierno e não havendo obra de tal vulto publicada em português, nem na Europa e nem no Brasil é que nos

191

EVANS, Joan. Cluniac Art of the Romanesque Period. Cambridge: Cambridge University Press, 1950; HAMSAY, H. L. The Manuscripts of the Commentary of Beatus de Liebana on the Apocalypse.Londres: E. Bouillon, 1902. 192 HERNÁNDEZ, A. C. (org.) Beato de Liébana: obras completas y complementarias II...op. cit.. 193 KLEIN, Peter K. Beatus a Liébana. InApocalypsin… op. cit.Os ‘beatenses’, como são conhecidos aqueles que estudam o Beato de Liébana, podem encontrar nesta obra um estudo detalhado das cópias dos manuscritos. 194 HERNANDEZ, A. C., ECHEGARAY, J. G., FREEMAN, L. G. e SOTO, J. L. C. Obras completas.

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propomos a realizar a leitura integral da obra manuscrita em latim e traduzi-la para o português, apresentando ao final uma versão bilíngue latino-portuguesa que obviamente será a primeira. E para ilustrar, apresentamos a árvore genealógica do Beato, ou seja, seu stemma, as famílias em que os vários manuscritos ilustrados podem ser divididos:

De acordo com o stemma apresentado por Klein195 podemos apresentar as seguintes famílias nas quais se subdividem os manuscritos do Beato nas bibliotecas de vários países: Família I 1. Madrid, Biblioteca Nacional, Ms. Vtr. 14-1 (olimHh 58); Kingdonof León, ca. 930-950 (=A1). 2. Paris, BilbiothèqueNationale, Ms. Lat. 8878; Saint-Sever (Gascony),between 1028 and 1072 (= S). 3. El Escorial, Biblioteca delMonasterio, Cod. &.II.5; Castile, second half of the tenth century (= E).

195

KLEIN, Peter K. Beatus a Liébana. InApocalypsinCommentarius… op. cit.

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4. Madrid, Real Academia de la Historia, Cod. 33; San Millán de la Cogolla (Castile), early and lat eleventh century (=A2moz and A2rom). 5. Santo Domingo de Silos, ArchivodelMonasterio, Fragm. 4; Northern Spain, late ninth or early tenth century (= Fc). 6. Burgo de Osma, Museo de la Catedral, Ms. 1; Northern Spain, 1086 (= O). 7. Rome, Biblioteca Cosiniana (Academia dei Lincei), Ms. Lat. 369; Spain, eleventh – twelfthcentury (= C). 8. Lisbon, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cod. 160; Lorvao, 1189 (= L). 9. Lean, ArchivoHistorico Provincial, Perg.,Astorga 1; Northern Spain (León?), second half of the twelfth century (= Le). 10. Paris, BibliothèqueNationale, Ms. Nouv. acq. lat. 1366; Navarre, about 1200 (= N). Família IIa 1. New York, Pierpont Morgan Library, M. 644; San Miguel de Escalada, (León), ca. 950-960, by the painter Magius (= M). 2. Valladolid, Biblioteca de laUniversidad, Ms. 433; Kingdomof León (Valcavado7), 970 (= V). 3. Seo de Urgel, Archivo de la Catedral, Cod. 4; Northern Spain (Rioja ?), second half of the tenth century (= U). 4. Madrid, BibliotecaNacional, Ms. Vitr. 14-2 (olim B.31); San Isidoro at León, 1047, by the scribe Facundus, for King Fernando I of Castile-León (= J). [OBS: Este é o manuscrito selecionado para esta pesquisa]. 5. London, British Library, Add. MS 11695; Santo Domingo de Silos (Castile), completed 10911109, by the painter Petrus (= D). Família IIb 1. Madrid, ArchivoHistorico Naciona1, Cad. 1097 B (olimeod. 1240); San Salvador de Tabara (Kingdom León), completed 968-970, by the painters Magius and Emeterius (= T). 2. Gerona, Museo de la Catedra1, Ms. 7; Kingdom of León (Tabara ?), 975, by the painters Emeterius and Ende (:::G).

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3. Turin, Biblioteca Nazionale, Ms. I.II.l (olim lat. 93); Catalonia (Ripoll?, Gerona?), earlytwelfthcentury (= Tu). 4. Manchester, John Hylands University Library, Latin MS 8; Castile, late twelfth century (= R). 5. Madrid, Museo Arqueológico Nacional, Ms. 2 + Paris, Private Collection (olimMarquet de Vasselot) + Madrid, Biblioteca de laFundaciónZabálburu (olimHeredia Spínola) + Gerona, Museo Diocesano; from San Pedro de Cardeña (Castile), late twelfthcentury (= Pc). 6. Paris, BibliothèqueNationale, Ms. Nouv. acq. lat. 2290; from San Andrés de Arroyo (Castile), early thirteenth century (= Ar). 7. New York, Pierpont Morgan Library, M. 429; from Las Huelgas, near Burgos (Castile), 1220 (= H). 8. Mexico City, Archivo General de la Nación, Ilustr. 4852; Castile, mid- thirteenth century (= Mex).

Partindo desta divisão em famílias e do stemma em que se encontram os manuscritos é que podemos afirmar que o nosso objeto de pesquisa pertence à família IIa. Esta divisão pode nos fornecer alguns dados fundamentais, tais como, a localização dos manuscritos e seus iluminadores. A escolha pelo manuscrito que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid justifica-se pelo fato de ser esta a mais importante de todas as cópias espalhadas por bibliotecas do mundo inteiro, a sua importância se dá pelo fato de que este códice é considerado o mais valioso dentre os 35 exemplares sobreviventes da referida obra. O principal argumento para a escolha do códice em questão (ver Família IIa – item 4) está relacionado ao fato de que este códice, conhecido por hispanistas como ‘Beato de Fernando I y DoñaSancha’ (também chamado Beato Facundo ou J de Neuss) seria já plenamente Românico e incluso no período Proto-gótico – séculos XI e XII – considerado o mais interessante do ponto de vista histórico e artístico196. Este trabalho objetiva fundamentalmente realizar o estudo e a tradução para o português da obra ‘Comentário ao Apocalipse de São João’ do Beato de Liébana (1047). Levaremos em

196

ARAGUZ, A. M. e MARTÍNEZ, C. B.

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consideração o fato de que este texto foi um dos textos patrísticos mais utilizados na arte e na literatura. Autores espanhóis como ARAGUZ e MARTÍNEZ197 no artigo Las Visiones Apocalipticas de Beato de Liébana (2003), ECHEGARAY198 em seu artigo Beato de Liébana y los terrores Del año 800 (1999), de forma incansável, tratam das representações imagéticas do Beato como uma das mais extraordinárias manifestações da arte ocidental. Afirmam estes autores, que os Beatos serviram de modelo para artistas de todos os tempos, pois suas iluminuras constituíram um dos grandes valores da arte espanhola, legado que deixou marcas até os nossos dias. Suscitamos um trabalho além da imagem e para o texto, pretendendo aliar as duas questões texto-imagem e imagem-texto. Sendo assim, em uma primeira etapa, iniciaremos com a tradução do latim para o português, afim de que se possa efetivamente realizar a estruturação da primeira versão bilíngue latim-português do Beato, utilizando, como já foi apresentado, o códice Beato de Fernando I y DoñaSancha (também chamado Beato Facundo ou J de Neuss) que é o nosso objeto de pesquisa e nosso corpus. Seguindo uma segunda etapa onde faremos a seleção dos elementos léxicos que cercam o universo maravilhoso e imaginário ligado à tradição teológica apocalíptica. O que nos impele ao trabalho com esta obra do Beato de Liébana é o fato de que, nas palavras de Zumthor 199, “... a Idade Média – também – uma idade da escritura...”, e é exatamente, a escritura o fato que nos apresenta uma problemática para a pesquisa, o porquê da relevância de um trabalho realizado no século XI levou tantos escritores, especialistas, teóricos, historiadores, linguistas e estudiosos afins ao interesse por seu conteúdo verbal e não-verbal? De acordo com Jiménez200 em seu artigo, Beato de Liébana, profeta del milenio, o Apocalipse é um dos livros mais difíceis de entender e mais enigmáticos dos que compõem a Bíblia Cristã, assim, 197

ARAGUZ, A. M.; MARTÍNEZ, C. B. Las Visiones Apocalipticas de Beato de Liébana. Ars Medica. Espanha: Revista Humanidades, 2003. 198 ECHEGARAY, J. G.Beato de Liébana y los terrores delaño 800, 1999. 199 ZUM THOR, P. A letra e a voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. 200 JIMÉNEZ, Manuel González. Revista on-line Universidade de Sevilha. (institucional.us.es/revistas/rasbe/37art_8pdf) “... los Comentarios sobre el Apoclipses, de Beato de Liébana que, desde su redacción em los finales de siglo VIII hasta bien entrado El siglo XIII fue, junto com las Etimologias de San Isidoro de Sevilla, uno de los libros de mayor circulación

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a obra do Beato segue sendo uma dos monumentos iconográficos românicos mais importantes para a compreensão do último livro revelado e das leituras que se sucederam a ele até os nossos dias. Para realização desta pesquisa, utilizaremos como apoio os estudos do medievo que se relacionem com a história cultural, a cultura eclesiástica e a cultura folclórica na Idade Média e, ainda, estudos filológicos que versem sobre a questão do latim cristão. Nesse sentido, tomamos o que diz Elia201, ‘... o próprio latim cristão popularizante, como nota Devoto (Storia dela Linguadi Roma, p. 526) não é ao pé da letra “popularizante” e sim um sistema onde abundam as construções “simples, realistas, adaptadas a quem, tendo a convicção, deve atentar primeiro nas coisas, depois nas palavras”.’ Assim, o estudo da palavra em relação à imagética e à iconografia nos impelirá à busca dos corpora desta pesquisa. Segundo Araguz e Martínez202 as fascinantes visões apocalípticas foram motivos de inspiração para os monges artistas que ao longo de cinco séculos criaram e recriaram suas escrituras e imagens que se cristalizaram nas bases da arte medieval e, sobretudo românica. O estilo plano, colorido e abstrato dessas iluminuras conferiu um ar inusitado de modernidade a estes códices. Os Beatos dos séculos IX-XI pertencem ao período hispano-visigótico e são os mais interessantes do ponto de vista histórico e artístico. Entendendo que os Beatos serviram de modelo para artistas que esculpiram e pintaram murais de igrejas românicas e posteriormente góticas é que concentraremos nossos esforços nesta pesquisa para adentrarmos ao mundo beatense. Propomo-nos, então, a estudar o Beato, tanto pelo seu conteúdo simbólico-doutrinal como pela sua estética muito adequada a mentalidade medieval, ávida de signos transcendentes e de sua necessidade em evadir-se das tentações terrenas através deste simbolismo

em Europa. Com sin miniaturas. Porque éstas –a pesar de su beleza sobrecogedora y de su indudable influjo sobre la iconografia romanica y gótica- no se superponen o se sobre imponen al texto, sino que dimanan de él y son criaturas suyas. (...) La obra de Beato es todo um monumento impressionante de erudición e interpretación.” 201 ELIA, S. Preparação à Linguística Românica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. 202 Araguz, A. M. e Martínez, C. B. Las visiones apocalipticas de Beato de Liébana. In: Ars Medica. Revista de Humanidades, 2003. (p.55-6) “Los beatos son, pues las copias iluminadas Del Comentario al Apocalipsis de Beato de Liébana. No ay ninguna outra obra alto medieval hispana ricamente ilustrada como este conjunto de códices, (...) cada beato suele tener um centenar de miniaturas – y calidad de lãs ilustraciones, que se difundieron ampliamente durante más de cinco siglos. Sus imágenes dieron lugar, según Humberto Eco, a las mas prodigiosas creaciones iconográficas de toda la historia del arte occidental.”

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verbal e imagético. A temática das ilustrações que compõem a obra constitui um suporte argumental da religiosidade do período Românico – séculos XI e XII – incluindo temas que perduraram até a chegada do Gótico. A trajetória que cercará esta pesquisa nos levará finalmente a uma terceira etapa, em que será organizada a edição bilíngue (latim-português) da obra estudada. Nesta etapa do trabalho de doutorado, daremos preferência pela edição modernizada da obra para que possamos atender aos mais diversos leitores e pesquisadores interessados no contexto que cerca o tema apocalíptico e, também, atender um público leitor não especializado. Levando em consideração tudo o que foi exposto, podemos dizer que a hipótese levantada nesta pesquisa deva cercar o fato de que até agora os pesquisadores beatenses, mencionados anteriormente, tem se preocupado incansavelmente em analisar a imagem, ou seja, as iluminuras presentes no Beato de forma que esta se apresente separadamente do texto em si. Assim, pergunto por que até o momento nenhum teórico aventou a possibilidade do trabalho teórico-metodológico através de uma análise da imagem-texto e do texto-imagem do Beato? Pretendo responder essa indagação lançando mão do que diz Didi-Huberman a respeito da imagem:

Toda continuação do texto, que mereceria um comentário específico, acaba por desenvolver uma verdadeira dialética da imagem: sugere uma ampla compreensão histórica na qual a arte religiosa – e seu “realismo metafísico”, como diz Carl Einstein – sofreria o momento da antítese de um “ceticismo” que dissocia “não apenas as crenças e as noções abstratas, mas também a visão e a herança visual” tradicionais...203

Entendemos que para este estudo não há como dissociar a imagem da escrita e ainda, não há como estudar uma interdependência entre imagem-escrita sem ao menos nos perguntarmos o quê de

203

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.p. 222.

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fato as imagens representam no interior e para o interior desta obra de tão notada relevância para o mundo cristão. Reafirmando a importância que daremos ao enfoque interpretativo das imagens para o texto e para o contexto em que estas nos são apresentadas é que tomamos, novamente, o que diz DidiHuberman:

Uma imagem, ao contrário, é aquilo no qual o Pretérito encontra o Agora num relâmpago para formar uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética em suspensão (Bildist die DialektikimStillstand). Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a relação do Pretérito com o Agora é dialética: não é de natureza temporal, mas de natureza imagética (bildlich). Somente as imagens dialéticas são imagens autenticamente históricas, isto é, não arcaicas. 204 Neste ponto há a necessidade de frisar a importância da análise da ‘imagem dialética’ de DidiHuberman205 para o nosso trabalho em relação ao olhar sobre a imagética e a iconografia postulado por Panofsky206. Entendemos que a posição do primeiro nos permitirá traçar a interrelação que aqui nos propomos fazer, entre imagem-texto e texto-imagem, o que a nosso ver, Panofsky não consegue suprir através de sua teoria da interpretação da imagem. Nesse sentido, podemos recorrer ao que dizem Araguz e Matínez:

A partir delsiglo X, las miniaturas de losbeatosconstituyen uno dos los grandes valores del arte español de todos los tempos. Estas ilustracioneshan adquirido una modernidadinusitada, dado que únicamente dentro de laactualvaloracióndelsigloXXi es como mejor se admiran em todo su esplendor.207 204

Idem, p. 182. DIDI-HUBERMAN, G., p.182 206 PANOFSKY, E.Significado nas artes. São Paulo, 2004. 207 ARAGUZ, A. M.; MARTÍNEZ, C. B. Las Visiones Apocalípticas de Beato de Liébana. Ars Medica. Espanha: Revista Humanidades, 2003. p. 64. 205

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Na etapa de edição do códice, para elaboração da versão bilíngue (latim-português) serão utilizados dicionários, manuais de paleografia e obras afins que nos auxiliem na tradução, compreensão e interpretação da obra datada de 1047, que contém 317 páginas escritas em escritura visigótica e 98 gravuras iluminadas. Levando em consideração a importância e a relevância dos estudos do medievo é que nos interessamos por esta obra que já foi estudada por inúmeros pesquisadores de áreas afins, mas ainda carece de um estudo que traga aos pesquisadores brasileiros uma análise acerca da relação textoimagem ou imagem-texto no sentido de que os estudos já realizados trazem insuficiências interpretativas. Por fim, Echegaray, um dos maiores estudiosos do beato, nos lembra que: la figura de Beato de Liébana, consagrada por ladifusión prodigiosa de su obra y la beleza extraordinaria de sus códices miniados (los “beatos”), debe ser considerada como la de uno de lospersonajes de mayortrascendencia em todo el alto Medievo.208

Para exemplificar, apresentamos o fólio 17r do Beato de Líebana (1047), disponível na Biblioteca Digital Hispânica, Sala Cervantes – Biblioteca Nacional de Madri:

208

ECHEGARAY, J. G. Beato de Liébana dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/563027.pdf

y

los

terrores

delaño

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800.

1999.

p.

94

In:

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Para seleção e análise dos elementos léxicos e imagéticos relacionados ao Apocalipse presentes no códice, tomaremos como base o que postula Elia (1979, p.54) no sentido de que “... já não é mais possível querer traçar os lineamentos dos idiomas neolatinos sem colocar, na base de tais pesquisas, a contribuição vigorosa trazida pelo Cristianismo.” O autor nos apresenta uma distinção importante que faz a escola do latim cristão entre “cristianismos diretos” e “cristianismos indiretos”. Utilizaremos, então, para análise dos termos relacionados ao Apocalipse, o seguinte:

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a) Cristianismos diretos – são as formações vocabulares que designam “coisas cristãs”, em sentido lato: ideias, usos, instituições, etc. b) Cristianismos indiretos – aqueles que, por sua natureza, não estão associados ao Cristianismo, e que, portanto, não estão em relação direta com a doutrina cristã. Nesse sentido, tomemos as imagens apresentadas no fólio 17r de onde extraímos os seguintes termos ‘colligitur’; ‘tempus’, ‘mundum’, ‘Ioseph’, ‘Iacob’, ‘Maria’, ‘Anna’ e ‘Deangelo’, vejamos por exemplo: o primeiro termo significa em latim209 ‘reunir, juntar, colher’ ‘que é colhido’, o segundo termo significa ‘tempo, momento, instante’, o terceiro termo significa ‘o mundo, o universo, a criação’, vejamos que estes termos, por sua natureza, não estão ligados ao Cristianismo, portanto poderíamos considera-los “cristianismos indiretos”, já os nomes próprios e o substantivo ‘Deangelo’ que aparecem aqui estão de alguma forma ligados ao mundo cristão, pois em sentido lato designam nomes bíblicos recorrentes, portanto podem ser considerados ‘cristianismos diretos”. Esta pequeníssima amostra de análise pode exemplificar um pouco do que tentaremos fazer durante a trajetória da nossa pesquisa. Assim, diz C. Mohrmann (Apud Elia, p. 58)210 “São principalmente esses fatos linguísticos que nos dão o direito de falar de uma língua especial dos cristãos, já que são os testemunhos irrefutáveis de uma diferenciação social a operar uma diferenciação linguística. (In Etudes, I, p.33).”

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O CASAMENTO NO ISLÃ MEDIEVAL: UMA BREVE ANÁLISE DOS ENSINAMENTOS DE AL-GHAZALI Celia Daniele Moreira de Souza211

Compreender o trabalho do teólogo islâmico Al-Ghazali (1058-1111) não é uma tarefa simples. Primeiramente, o legado de sua obra permanece até hoje como uma fonte de conhecimento acerca da fé islâmica, arraigando um status tão elevado a ponto de ser utilizado ao lado do Alcorão e da Suna212 como forma de compreensão da “mensagem de Deus”. É dele também a iniciativa mais profícua de se distanciar o Islã do pensamento filosófico grego, que marcara fortemente a produção intelectual no período clássico, a ponto desta nunca mais se recuperar após sua crítica. Aliado a esta desaprovação do neoplatonismo de sua época, Al-Ghazali buscou unir a prática sufi com a charía213 no final de sua vida, elaborando de maneira inédita uma confluência de tradições opostas no seio do Islã. Dentre os escritos deixados pelo filósofo persa, temos na obra “O Renascimento das Ciências Religiosas” (Ihya Ulum Al-din) uma tentativa de sintetizar todo o conhecimento islâmico para aplicação na vida do crente. Esta extensa obra, que pode ser definida como um “manual de conduta”, foi dividida em quatro partes temáticas, sendo elas: a Oração (Rubʿ al-ʿibadat), a Vida Cotidiana (Rubʿ al-ʿadat), a Perdição (Rubʾ al-muhlikat) e a Salvação (Rubʿ al-munjiyat), cada uma contendo dez capítulos. As duas primeiras partes dedicam-se aos crentes e à sociedade nas suas atividades e atribuições diárias, enquanto as duas últimas se voltam para o cuidado interior, a alma do crente, os vícios a se superar e as virtudes a se perseguir. 211

Celia Daniele Moreira de Souza é mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Seu e-mail de contato é [email protected]. 212 Literalmente “costume”, “norma”. Tradição certificada que estabelece normas jurídicas e um sistema doutrinal com base em hadices (relatos da vida dos companheiros do Profeta) e na sira (biografia do Profeta). GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p.310. 213 Lei islâmica, a via que Deus indicou à humanidade para que faça sua Vontade, cujo cumprimento provê a salvação. A charía se baseou nas regulações da vida do muçulmano no Corão e no modelo ético que se desprende da vida do profeta Mohamad nos Hadices (coletânea de passagens da vida do profeta) e na Sira (biografia do profeta). Ainda que a tradição sustente que a charía emane diretamente de Deus e, portanto, seja eterna e universal, foi por meio da interpretação humana das fontes primigênias (no Corão há cerca de noventa versículos que tratam de questões legais), que se formularam as leis civis e morais através da fiqh, a ciência islâmica do Direito. Ibid, p.59.

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O capítulo dois da segunda parte, “O Livro de Etiqueta do Casamento” (Kitab Adab al-nikah), é a fonte aqui analisada; nele encontram-se as considerações de Al-Ghazali acerca do casamento, e assim como em toda a obra,combinam-se os elementos da ortodoxia sunita e o misticismo sufi, os quais demonstram um modelo ideal de muçulmano para a sociedade, visando claramente criticar e reprimir quaisquer desvios desta fórmula pré-estabelecida. Neste artigo, pretendo analisar as primeiras impressões a respeito da fonte citada a fim de contribuir para as pesquisas de minha dissertação de mestrado. AL-GHAZALI: “O MAIOR MUÇULMANO APÓS O PROFETA”214

Para compreender a dimensão da obra de Al-Ghazali, assim como a abordagem escolhida pelo autor para estabelecer as regras do casamento dentro da sociedade arabopersa no final do séc. XI, é necessário conhecer, ainda que brevemente, a sua trajetória enquanto “doutrinador” e também como “doutrinado” na fé islâmica. Nascido na Pérsia, Abu Ḥamid Muhammad ibn Muhammad Al-Ghazali teve seu destaque nas ciências religiosas em Bagdá como professor na madrassa215 de Al-Nizamiyya, a maior do mundo de então. Apesar do grande êxito, quatro anos depois abandonou seu posto para percorrer o mundo em busca de iluminação religiosa, quando assim obteve um próximo contato com a tradição sufi e redefiniu sua forma de pensar a própria religião. Após dois anos nesta jornada, em 1097, começou a escrever o “Renascimento das Ciências Religiosas” e retornou à Pérsia, onde permaneceu atuando como professor, porém renunciando à vida de antes e vivendo na pobreza.216 O contexto da época de Al-Ghazali demonstra a motivação de seu discurso conservador. Na sua jornada espiritual entre 1095 e 1097, em que percorreu as cidades de Damasco, Jerusalém, Hebron,

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Segundo o arabista Montgomery Watt, Al-Ghazali teria sido aclamado por tal título. Preface. In: Al-Ghazali: The Muslim Intellectual. London: Kazi, 2003. p. VIII. 215 Lugar onde se estudam as ciências religiosas (ilm), especialmente a jurisprudência islâmica (fiqh). GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 195. 216 GRIFFEL, F. A Life between public and private instruction: Al-Ghazali’s biography. In: Al-Ghazali’s Philosophical Theology. Edição Kindle, 2009. s/p.

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Meca e Medina, Al-Ghazali certamente tomou conhecimento217 do avanço dos franj218 em sua Primeira Cruzada a partir de 1096, com os relatos de atos bárbaros por estes perpetrados, até mesmo de canibalismo.219 O motivo para sucessivas conquistas dos francos fora justificado pelo ambiente de disputas de poder que permeavam a realidade do Califado Abássida, na época de Al-Ghazali, subordinado à figura de um Sultão de etnia turca seljúcida. 220 Essa desestruturação política teria começado além das fronteiras abássidas com o surgimento da Ordem dos Assassinos devido a contenda de sucessão do Califado Fatímida, expandindo-se para o contexto seljúcida, quando passou a perseguir e matar todos aqueles que se opusessem ou representassem um perigo à sua seita, como no caso do vizir Nizam Al-Mulk (idealizador e fundador da madrassa onde Al-Ghazali trabalhou) em 1092, e quem de fato exercia o poder no sultanato.221 A sua morte teria ocasionado o agravamento da fragmentação política, com a perda de legitimidade dos governantes a tal ponto que até mesmo as menores cidades se colocavam como emirados independentes, e tomavam suas decisões à revelia do poder central.222 Em contrapartida ao caos político, a reorganização econômica no período seljúcida se voltou para a vida religiosa: as madrassas representaram os centros de ortodoxia, uma releitura da tradição islâmica que vinha como uma resposta generalizante à heterodoxia revolucionária representada também pela seita ismaelita223 dos Assassinos.224 A produção de Al-Ghazali decerto fora influenciada pelo contexto vivido, como o mesmo alega que a sua vida pregressa estivera fora do caminho de Deus, e ele construiria esse caminho fundindo o escolasticismo dos sunitas com a mística dos sufis.225

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Griffel informa que na autobiografia de Al-Ghazali o mesmo não comenta sobre os cruzados, entretanto em um obra em persa lhe atribuída, há uma referência da luta para reaver as terras muçulmanas. Ibid, s/p. 218 Como eram chamados os cruzados, uma corruptela de “francos”. 219 MAALOUF, A. Os canibais de Maara. In: As Cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 2001. p. 45-47. 220 LEWIS, B. O Eclipse dos árabes. In. Os árabes na História. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. p. 152 e 163. 221 LEWIS, B. Op. cit., p. 168. 222 MAALOUF, A. Op. cit., p. 49. 223 Ramo xiita que mescla uma hermenêutica alegórica do Alcorão com teorias neoplatônicas, articulando uma cosmogonia esotérica e uma concepção cíclica da história da humanidade. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 171. 224 LEWIS, B. Op. cit., p. 169. 225 GRIFFEL, F. Leaving Baghdad, Traveling in Syria and the Hijaz, and Returning to Khorasan. In: Al-Ghazali’s Philosophical Theology. Edição Kindle, 2009. s/p.

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A mudança do paradigma da vida de Al-Ghazali é extremamente importante na análise de sua obra e na própria definição de sua posição nesta sociedade: a que ponto a sua obra estabeleceria uma continuidade ou uma ruptura com os valores clássicos deixados pela sahaba226? Em todas as temáticas de “Renascimento”, Al-Ghazali buscou manter um equilíbrio equidistante entre o misticismo e a ortodoxia, algo que explicaria o seu sucesso, pois isto abrangeria a maioria dos muçulmanos de ambas as tradições, até mesmo aqueles na intercessão delas (como seria o caso dele mesmo).227 Além disso, Al-Ghazali se utilizaria de um ponto de vista que, ao invés de excluir, agruparia as formas de religiosidade, uma vez que sua proposta seria clara no que concerne ao monoteísmo e a unidade, pois a ideia não seria questionar esse pressuposto, mas para além do “Existe apenas um Deus” e “Não há outro deus, senão Deus”, verificar todo o universo e tudo que se apresenta como expressões deste único Deus.228 Essa natureza conciliadora e doutrinante de seu trabalho é percebida no capítulo sobre casamento, em que o autor busca legitimar um código de conduta que ao mesmo tempo atenda à tradição e ao misticismo, esta como uma intimidade com o divino. A proposta de Al-Ghazali é criticar a importância dos assuntos mundanos na vida do crente, lembrando-os que a vida humana é passageira, devendo estar atentos ao Dia do Juízo, seja para serem recompensados ou punidos.229 Assim, ao construir uma aproximação entre tradições religiosas originalmente dissonantes, AlGhazali quer também se aproximar do que seria a essência do Islã, aquilo que levaria o crente à salvação. A sua escolha, portanto, possui um caráter paradoxal, por buscar uma origem combinando elementos novos, algo que se assemelharia, por fim, a sua própria trajetória pessoal. 226

Todos aqueles que tiveram contato com o Profeta e seu testemunho constituiu os hadices, a base da Suna. Ibidem, p. 292. 227 Hanif sugere que o número de seguidores e admiradores de Al-Ghazali se justificaria, porque sua obra abrange a maior parte das pessoas, sejam elas teólogos ortodoxos ou sufis, ou ainda quem tivesse a fé dividida entre essas duas tradições; Al-Ghazali abordaria, ao mesmo tempo, aquelas atitudes que seriam constantes no inconsciente religioso islâmico, expressas tanto na espiritualização quanto no fundamentalismo. HANIF, N. Al-Ghazali (1058-1111). In: Biographical Encyclopaedia of Sufis: Central Asia and Middle East. New Delphi: Sarup & Sons, 2002. p. 179. 228 O autor usa a palavra “psicologia” como equivalente de “conhecimento de Deus”, para afirmar que Al-Ghazali elabora uma psicologia em sua obra, entretanto não considerei “confortável” o uso deste termo, e sim sendo melhor a noção de “proposta” e “abordagem”. BAKHTIAR, L. Introduction. In: Al-Ghazzali on love, longing and contentment. Trad. de Jay R. Crook. Edição Kindle, 2001. s/p. 229 GRIFFEL, F. Causes and Effects in the Revival of the Religious Sciences. In: Al-Ghazali’s Philosophical Theology. Edição Kindle, 2009. s/p.

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O CASAMENTO: A RELAÇÃO LÍCITA ENTRE HOMEM E MULHER

Em suas primeiras considerações acerca do casamento, Al-Ghazali atesta que o matrimônio é um suporte da religião e que o objetivo do presente capítulo é explicar suas causas, meios e fins, visto o quão digno este é para fortalecer o crente frente às investidas do “inimigo de Deus”.230 Passada essa apresentação da “necessidade” do casamento para a fé, o autor inicia uma seção com as “Vantagens e desvantagens do casamento”, que apenas pelo título é um contrassenso à tradição islâmica; como casar constitui uma obrigação na vida do muçulmano, a “metade da religião”231 considerar haver desvantagens confere certa “heresia”, por se afastar daquilo pregado pela ortodoxia islâmica. Tal abordagem das desvantagens, entretanto, possui o caráter integrador da obra de AlGhazali, já que o mesmo tenta justificar e por fim conciliar com a charía, a prática sufi do ascetismo. Pensando nestas condições, Al-Ghazali ao longo do capítulo enumera didaticamente prós e contras para o matrimônio, assim como as virtudes que devem ser buscadas em uma esposa e os defeitos que devem ser execrados, as obrigações do homem para com sua família e os seus direitos dentro do casamento. Dentro desta perspectiva, Al-Ghazali basicamente forja dois tipos de homens “bons muçulmanos”: aquele que busca por meio do casamento elevar sua espiritualidade até Deus, tendo filhos, tratando bem sua família e trabalhando dignamente; e aquele que visa a “amizade de Deus” (wilayah232) em uma solitária jornada, sem a preocupação em lidar com atividades mundanas. 233 Cabe ressaltar que o ascetismo comentado por Al-Ghazali não significa “falta de sexo”, ou até mesmo a oposição ao casamento, mas sim uma oposição à constituição de uma família. O desejo sexual não poderia ser negado ao crente, e o autor mesmo afirma que “quando um homem experimenta

AL-GHAZALI, M. Al-Ghazali’s introduction. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. XIX. 231 MAHDI, A. A Família no Islã. Disponível em: http://www.islamreligion.com/pt/articles/390/ Acessado em: 04 Mar 2014. 232 Termo na lexicografia sufi que corresponde a “santidade” ou “amizade de Deus”. JABRE, Le Lexique de Ghazali, p. 278 apud AL-GHAZALI, M. Advantages and disadvantages of marriage. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 5. 233 AL-GHAZALI, M. Op. cit., passim. 230

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uma ereção, ele perde dois terços de sua religião”234. Por tal motivo, ele sugere que o crente, antes da oração, deveria ter relações sexuais com sua mulher ou concubina, a fim de purificar seu coração e assim poder experimentar a graça de Deus em sua plenitude. 235 A concubina, a escrava, é a solução encontrada para aqueles que não possuem condições para se casar ou têm medo de arcar com as obrigações de uma família, entretanto Al-Ghazali alerta: “A menor destas (transgressões) é se unir a uma concubina, o que leva a escravizar sua prole; pior que isso é a masturbação; e mais abominável das três é a fornicação”.236 A união sexual com uma concubina é permitida sob o status de um “casamento”, mas não havendo obrigação e normas para com a escrava ou quaisquer direitos e deveres dela como esposa, algo semelhante a um “casamento temporário” (muta)237, porém plenamente permitido no Alcorão238. A questão para o sufismo, segundo o autor, não é a negação do desejo sexual, mas a libertação do crente das obrigações maritais que, por uma incompetência pessoal ou do destino, o impeçam de elevar sua espiritualidade. O ideal é que o homem encontre a Deus por meio do casamento, mas alguns empecilhos poderiam prejudicá-lo, como a falta de condições financeiras e dignas para sustentar uma família (que Al-Ghazali denuncia em sua sociedade e que, segundo ele, levava homens bons a cometerem atos torpes); a incapacidade de ter relações sexuais (logo, gerar progenitura); e a falta de postura para ser o chefe de uma família (gerando a desobediência e infidelidade da esposa, e falta de controle de seus bens), o que por fim faria com que fosse melhor não casar para não ser corrompido pela própria vida.239 Nesse ponto, entre prós e contras ao casamento, a relação entre homem e mulher aparece com aspectos conflituosos: ao mesmo tempo em que ele fala que a companhia feminina alivia o coração

234

Ibid, p. 32. Ibidem, p. 35. 236 Ibid, p. 37. 237 É uma prática xiita empregada a todas as mulheres, ainda que estritamente a passagem corânica apenas reconheça a possibilidade de estabelecer relações maritais de caráter temporário com escravas. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 236. 238 ALCORÃO. As Mulheres. O Alcorão: Livro Sagrado do Islã. Trad. de Mansour Challita. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. Surata 4, vers. 24. 239 AL-GHAZALI, M. Disadvantages of Marriage. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 52-64. 235

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com seu humor “pouco inteligente”240, traz a alegria dos filhos e livra o homem das obrigações domésticas, deixando-o livre para se dedicar a Deus241, ela também é vista como a imagem do “mal”, como um potencial risco de desviar o fiel do caminho de Deus, se o mesmo não estiver preparado para o casamento e/ou não tiver escolhido uma boa esposa. Al-Ghazali alerta:

(...) esteja a salvo de suas maldades (mulheres); porque sua intriga é enorme, seu mal é propagador; suas maiores características são as más maneiras e as mentes fracas, e isto não pode ser corrigido exceto por meio de certa quantidade de gentileza misturada com diplomacia. (tradução nossa).242

A relação entre homem e mulher seria movida, sobretudo, pela cautela deste para com ela, e a segurança de um homem que tivesse condições de casar seria buscar uma boa esposa, a fim de que ela fosse um auxílio à fé, e não uma distração.243 Para cumprir essa proposição, Al-Ghazali dispõe as qualidades requisitadas para uma mulher, como fé e um bom caráter para manter a família no caminho da retidão; beleza do rosto para produzir o desejo do marido; um pequeno dote 244 que demonstre sua humildade; ser capaz de gerar muitos filhos e assim aumentar as chances de ir para o paraíso245; virgindade para evitar que a mulher possa comparar a qualidade do sexo do marido com de outro homem, e também para o homem não ter nojo da esposa por ela ter sido tocada intimamente por outro homem; e boa linhagem, pois isto garantiria que os filhos fossem criados bem. Ainda que haja uma preocupação com o bem-estar da família, a mulher possui claramente para o autor um papel secundário no casamento. Ela é fundamental para que haja a família, mas sua posição é desprovida de mérito, como uma ferramenta a ser utilizada pelo homem para concretizar os desígnios 240

AL-GHAZALI, M. Op. cit, p. 95. Ibid, p. 160. 242 Ibidem, p. 105. 243 Ibid, p. 57. 244 Segundo a tradição islâmica, o noivo deve pagar o dote à família da esposa, a qual deve estipular o valor pela noiva. Este dote é utilizado como garantia à esposa em caso de divórcio, para que a mesma não fique desamparada. Al-Ghazali critica os dotes exacerbados, pois para ele seriam formas de enriquecer às custas do noivo. 245 Ao longo do capítulo, Al-Ghazali faz diversas referências aos filhos mortos ainda na infância como salvo-conduto dos pais para entrar no paraíso. Ele também faz referência a um filho para abonar cada pecado. 241

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de Deus. Al-Ghazali salienta que o casamento é como a escravidão para a mulher, um pai deve saber a quem dar a mão de sua filha, pois ela se tornará literalmente escrava de seu marido 246. Suas vontades, suas escolhas, sua vida seria totalmente subordinada ao marido, e este deveria ser um bom muçulmano para manter sua família na religião. A impressão passada ao se ler o texto de Al-Ghazali é que se considera a mulher eternamente infantilizada, sem condições plenas de gerir a própria vida; o amparo masculino não seria apenas uma consequência ao se formar uma família, mas uma necessidade, para que a mulher não desvirtuasse seu caminho e o daqueles que a cercam. Todavia, para manter a mulher sob sua jurisdição, o homem deve seguir regras de boa convivência. Al-Ghazali lista os deveres masculinos para com sua família: a harmonia conjugal deve ser buscada, o autor pede que o marido tenha piedade das limitações mentais das mulheres e tolere suas ofensas, pois Deus o recompensará por ser indulgente com as maneiras más delas; para isso ele sugere outro dever, o de namorar, brincar e divertir sua esposa para alegrar o coração dela, pois Deus detestaria o homem áspero e arrogante com sua mulher. A postura de autoridade do homem seria fundamental ainda para essa harmonia, como ele diz: “Miserável é o homem que é escravo da sua esposa”247 e “Na verdade, quem obedecer aos caprichos de sua esposa, será lançado por Deus ao fogo”248. Deste modo, a postura firme do homem é necessária para a retidão da família, pois as boas ações só poderiam vir dele. O ciúme masculino, ainda, aparece como algo gerado pelas atitudes da mulher, pois o homem deveria ser moderado em seu ciúme, não suspeitar sem fundamento da sua esposa. Para tanto, a mulher não poderia dar “motivos”, não saindo na rua e não sendo vista por ninguém, a fim de resguardar o coração do marido de desconfianças. A compensação por isso seria a forma como o marido cuidaria do bem-estar da esposa e de sua família: ainda que seja recomendada moderação ao gastar, o homem deveria dar todo o apoio financeiro à sua mulher, como assevera o autor: “o mais favorecido dentre vós é aquele que é o mais generoso com sua esposa”249.O homem deveria zelar ainda pela igualdade entre 246

AL-GHAZALI, M. Conditions of the woman. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 91-92. 247 Ibid, p. 103. 248 Idem. 249 AL-GHAZALI, M. Cohabitation, marriage and obligations. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain

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as esposas, e caso não fosse possível ser justo com todas, se divorciar. O autor cita o caso de Mohammad e de sua esposa inegavelmente preferida Aisha, e que mesmo a amando mais, passava igualmente uma noite com cada cônjuge; entretanto, uma delas ficou velha e feia, não mais despertando o desejo do Profeta, logo ele decidira se divorciar dela; a mesma, como solução, pediu que ele a mantivesse como esposa e em troca ela daria sua noite para que ele passasse com Aisha. Como foi um acordo entre ambos, o Profeta pode passar duas noites com Aisha, permanecendo justo com todas as esposas.250 Outras recomendações são também dadas no tratamento à esposa visando à concórdia no lar, e a questão sexual é algo a ser destacada. Al-Ghazali literalmente descreve as etapas de como deve ocorrer a relação sexual, começando por uma recitação do Alcorão, em seguida elencando regras quanto à posição, não devendo o crente deitar com o rosto em direção a Meca; o homem deveria estar por cima da mulher e cobrir seu corpo e o dela com um tecido (não se pode ficar nu como “um burro selvagem”, segundo o autor). A mulher ainda seria orientada a ficar quieta e, no fim, o homem deveria louvar a Deus na ejaculação.251 Essas orientações mostram-se muito diferentes dos diversos tratados a respeito do sexo elaborados no Islã clássico,252 em que o desfrutar do prazer sexual em sua magnitude seria uma forma de praticar a fé, sendo até mesmo um dos deleites a ser vivenciado no paraíso (no exemplo recorrente das huris253). Para Al-Ghazali a única finalidade do sexo seria a procriação, o que não exclui o prazer, mas este não poderia ser o objetivo principal, pois seria considerado uma forma de

Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 114. 250 Aisha, por sinal, é frequentemente citada pelo autor para exemplificar a harmonia no lar e as qualidades de uma esposa ideal. Ibid, p. 120. 251 Todas as descrições deste parágrafo estão referenciadas nesta nota. Ibid, p. 123-125. 252 No período pré-moderno, havia uma ciência a respeito do sexo chamada ilm al-Bah, sob cujos princípios se produziram diversas obras, semelhante ao que Michel Foucault definiu como ars erotica. FRANKE, P. Before Scientia Sexualis in Islamic Culture: ‘Ilm al-Bah between Erotology, Medicine and Pornography. Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13504630.2012.652843#.UjPDqMYjK3o Acessado em: 2 Set. 2013. 253 Virgens companheiras dos crentes no paraíso.

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“politeísmo oculto”254. Ele cita a necessidade de satisfazer sexualmente a mulher, e mais ainda a preparação para o sexo com “preliminares”, e relata um hadiz:255 O Profeta disse, “Não permitais que nenhum de vós vá ao encontro de vossa esposa como um animal, permitais que haja um emissário entre eles”, ele foi questionado, “O que é esse emissário, oh mensageiro de Deus?”, ele disse, “O beijo e as palavras doces”.256 (tradução nossa) Dessa forma, Al-Ghazali estabelece toda uma conduta para que o casamento seja um meio de concordância com a religião, e fortaleça a ligação entre homem e Deus, tal como pregada pelo sufismo como um caminho de elevação espiritual.257 Ao lado da premissa do casamento, o autor recorre à possibilidade do ascetismo como condição para manter a retidão diante de Deus, e não apenas como um ato egoísta frente à sociedade, pois melhor seria evitar a geração de uma prole do que tê-la e condená-la ao inferno.258 As atitudes do homem muçulmano o tempo todo refletem a sociedade como um todo, e este é um aspecto do Islã, o “homem singular” e o “homem coletivo” são duas realidades que se inter-relacionam, pois tudo é realizado em vista da coletividade e ao mesmo tempo possuindo um valor para o indivíduo.259

AS FUNDAMENTAÇÕES DE AL-GHAZALI

Quanto à forma como Al-Ghazali aborda o casamento, é importante salientar os fundamentos religiosos que utiliza para justificar suas passagens. Primeiramente, a massiva maioria dos exemplos é fundamentada por hadices, e neste caso em alguns há um problema de legitimidade. Para explicar tal problema, é necessário compreender como os hadices são considerados fidedignos dentro da tradição islâmica. 254

Ele afirma ainda que o sêmen deve apenas ser despejado no útero, pois o mesmo pode não ser uma alma, mas é uma alma a existir. AL-GHAZALI, M. Cohabitation, marriage and obligations. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 129 e 134. 255 Breves relatos que se referem a palavras, gestos e comportamentos de Mohamad em diversas circunstâncias. GÓMEZ GARCÍA, L. Op. cit., p. 125. 256 AL-GHAZALI, M. Op. cit.,p. 125. 257 SCHUON, F. A Via. In: Para compreender o Islã. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006. p. 240. 258 AL-GHAZALI, M. Op. cit., p. 53. 259 SCHUON, F. Op. cit., p. 36-37.

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Os hadices são relatos orais de histórias vivenciadas pelos companheiros do Profeta ao seu lado, e que posteriormente foram compilados por autor e verificados conforme sua veracidade. O atestado de autenticidade de um hadiz é determinado por sua cadeia de transmissões (isnad), isto é, remontando a relação de geração em geração do autor do hadizcom o Profeta. Com base nessa metodologia, existem três tipos qualitativos de hadices, conforme a comprovação de sua autenticidade: a) Hadiz Sahih: seria um hadiz forte, o qual possui o isnad completo, com todos os autores encadeados precisos e considerados justos. b) Hadiz Hassan: seria um hadiz intermediário, o qual possui as características acima do Sahih, entretanto com uma precisão incerta em suas informações. c) Hadiz Daif: é aquele que possui um encadeamento frágil, sendo considerado fraco. Dentro desta classificação, temos quinze tipologias que justificam a fragilidade do hadiz, as quais basicamente refletem alguma falta (caráter duvidoso do transmissor, invenções de transmissores) ou omissão do encadeamento de autores.260 Baseando-se nestas informações, verificamos os hadicesutilizados por Al-Ghazali, sendo no total 192 hadices levantados, 41 tidos como sahih, 83 como hassan e 58 como daif, além de 9 serem de origem desconhecida (não foram encontradas quaisquer referências sobre os mesmos) e um considerado puramente falso. Al-Ghazali cita o Alcorão 50 vezes como legitimação de seu código de conduta.261 A maioria dos hadices considerada fraca relaciona-se com a doutrina sufi, como quanto à possibilidade do homem não casar pelo risco da família destruir a sua integridade espiritual, o corpo ser corrompido pelos órgãos sexuais, filhos e mulher como razão da ruína financeira do homem, quantidade de filhos como salvo-conduto de pecados (logo um homem sem pecados não precisaria ter

260

ISBELLE, M. Sunnah: breve histórico. Disponível em: http://sbmrj.org.br/biblioteca/acervo-virtual/sunnah-brevehistorico. Acessado em: 03/03/2014. 261 O levantamento dos hadices foi realizada pelo teólogo al-Hafith al-Iraqi (1325–1403) e destacada na trad. de Madelain Farah aqui utilizada. Para este artigo, apenas verifiquei a quantidade de hadices presentes e separei os mesmos quanto à autenticidade e autor.

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filhos); alguns também se relacionam a uma visão misógina, simbolizando a mulher a imagem do mal encarnado, impedida de sair à rua ou incitando a obediência cega da esposa ao marido,262 entre outros. Ainda assim, muitos hadices com caráter misógino são considerados genuínos na tradição islâmica, como a descrição da mulher como só interessada por “joias e roupas”, sendo mentalmente inferior ao homem e mais suscetível ao “pecado”. Essas passagens não são apenas relatos de homens, mas atribuídas a mulheres, como Umm Habibah, seguidora do Profeta e Aisha, esposa dele, esta última possuindo 17 hadices citados ao longo do capítulo. O uso destes hadices reflete claramente aquilo que Al-Ghazali quer contestar e, sobretudo, derrotar, recorrendo no texto a referências religiosas (ainda que algumas frágeis), a fim de evocar uma superioridade fundadora por meio da religião. É sabido, no entanto, que os hadices devem ser lidos de acordo com seu contexto, visto que a sua aplicabilidade, por mais que pareça “genérica”, corresponde a uma realidade histórica, e não deveria ser utilizada em qualquer circunstância.263 Mais que ser fidedigno à essência da religião, o texto de Al-Ghazali foca em combater as práticas sociais e culturais em voga que, para ele, estavam em desacordo com os princípios do Islã. Em muitos momentos no texto, o autor critica as “inovações” na conduta do casamento, que para ele refletem a infidelidade do crente à fé islâmica.264 A força de seu código de conduta nitidamente advém destas referências religiosas, mas também (senão principalmente) por sua notoriedade enquanto jurista em Bagdá e, posteriormente, na Pérsia.

CONCLUSÃO

O estudo dos ensinamentos de Al-Ghazali a respeito do casamento lícito propicia uma visão pluralizada da sociedade islâmica arabopersa do século XI: de um lado a doutrina sufi, com seu esoterismo, misticismo e a interiorização da fé, do outro a doutrina sunita, com a estruturação política 262

AL-GHAZALI, M. Advantages and disadvantages of marriage. In: Marriage and Sexuality in Islam. Trad. de Madelain Farah. Selangor: Islamic Book Trust, 2012, p. 48. 263 SAEED, A. Parallel texts from the Qu’ran and dealing with hadith. In: Reading the Qu’ran in the twenty-fist century: a contextualist approach. Abingdon: Routledge, 2014, p. 81. 264 Ibid, p. 34, 48, 149, 155.

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e social da religião islâmica. Dentre elas, o embate entre o novo e o antigo, as críticas de Al-Ghazali para conter o que ele considera “inovações” desviantes do Islã trazidas por outros grupos étnicos; a questão social delicada, em que o governo era dirigido pelos seljúcidas, uma dinastia turca com exército igualmente turco e sunita, a qual se encontrava em constante disputa de poder, sob a supervisão de um Califado Abássida sem mais o esplendor de outrora; e ainda o início da Primeira Cruzada. Do outro lado, estava também outra dinastia, o califado fatímida, que representava não só um forte oponente no âmbito político à Bagdá, como também religioso, por ser xiita, e a dissidência da Ordem dos Assassinos.265 Assim, ler o manual de Al-Ghazali é encarar uma tentativa de sistematizar uma tradição, de fazê-la presente na vida em sociedade, que estava em intensa troca cultural. O receio de Al-Ghazali às “novidades” era justificado por sua realidade social, mas seu próprio apego às tradições sufis interiorizadas em sua viagem mostra que a busca por uma origem imaculada da religião não pôde escapar às novas influências que se apresentavam em seu contexto. Como teólogo e jurista, AlGhazali demonstra no texto que temia que a mensagem do Islã se perdesse ou se deturpasse, portanto seu apelo categórico para a normatização da vida do crente em todos os seus aspectos pretendia mais que sintetizar a lei de Deus em um prático guia, mas sim tornar a lei palpável e diária no cotidiano dos muçulmanos de seu tempo.

Referências Bibliográficas

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265

Pornography.

Disponível

em:

HOURANI, A. O mundo muçulmano árabe. In: Uma História dos povos árabes. São Paulo: Schwarcz, 2007, p. 121.

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http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/13504630.2012.652843#.UjPDqMYjK3o Acessado em: 2 Set 2013. GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. GRIFFEL, F. Al-Ghazali’s Philosophical Theology. Edição Kindle, 2009. HANIF, N. Biographical Encyclopaedia of Sufis: Central Asia and Middle East. New Delphi: Sarup & Sons, 2002. HOURANI, A. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Schwarcz, 2007. ISBELLE, M. Sunnah: breve histórico. Disponível em: http://sbmrj.org.br/biblioteca/acervovirtual/sunnah-breve-historico Acessado em: 03 Mar 2014. LEWIS, B. Os árabes na História. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. MAALOUF, A. As cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 2001. MAHDI, A. A Família no Islã. Disponível em: http://www.islamreligion.com/pt/articles/390/ Acessado em: 04 Mar 2014. SAEED, A. Reading the Qu’ran in the twenty-fist century: a contextualist approach. Abingdon: Routledge, 2014. SCHUON, F. Para compreender o Islã. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006.

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DOMINGOS DE GUSMÃO E A CONSTITUIÇÃO DA ORDEM DOS PREGADORES César Evangelista Fernandes Bressanin266

Introdução

Esta comunicação faz parte da pesquisa em andamento no Mestrado em História da Pontifícia Universidade Católica de Goiás que busca historicizar a missão dominicana francesa em Porto Nacional, antigo norte de Goiás, atual estado do Tocantins, no período de 1886 a 1940. Neste trabalho busca-se conhecer as origens da Ordem Dominicana, reconhecida como a Ordem dos Pregadores, no século XIII, e o trabalho de seu fundador, Domingos de Gusmão, canonizado em 1233, pelo Papa Gregório IX. Objetiva-se aqui entender um pouco sobre o movimento de Domingos de Gusmão e a institucionalização de sua Ordem nos anos posteriores à fundação e buscar compreender alguns elementos que foram essenciais à constituição dela, como os estudos e a pregação.

Domingos de Gusmão e a Ordem dos Pregadores

No final do século XII, mais exatamente no início da década de 1170, nas planícies de Caleruega, uma pequena cidade da região de Castela, na Espanha, nasceu Domingos de Gusmão. Filho de Joana de Aza e de Félix de Gusmão, descendentes de famílias nobres e importantes daquela província. Era uma família católica como a maioria das famílias desta época. Neste berço cristão Domingos foi educado e encaminhado para a vida eclesiástica. Aos sete anos foi entregue a um seu tio sacerdote que lhe ministrou a primeira educação. Em sua juventude foi encaminhado pelos pais à Universidade de Palência onde estudou artes antes de prosseguir os estudos teológicos. 266

Graduado em História (UFT). Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Técnico em Assuntos Educacionais (UFT). E-mail: [email protected]

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Um episódio interessante durante seus estudos na universidade foi em relação aos livros. Eram poucos os estudantes que possuíam seus próprios pergaminhos. Como era de família abastada estas obras não lhe faltavam. Sobreveio à região uma grande crise, uma carestia que castigou o povo, de forma especial os mais pobres. Contam os biógrafos de Domingos que ele não hesitou em vender seus preciosos pergaminhos feitos de pele de ovelha para comprar comida e distribuí-la aos pobres. Justificou sua ação dizendo que não podia estudar sobre peles mortas enquanto tantos pobres morriam de fome. Seria este episódio uma antecipação da futura opção de Domingos pela pobreza e pelos pobres ao longo de sua trajetória eclesiástica e na organização da instituição que fundou? São questionamentos que a pesquisa em fluxo, objetiva responder. Concluído os estudos teológicos, que por sinal foram anos intensos de dedicação, Domingos ordenou-se padre e entrou para a comunidade dos Cônegos Regulares de Osma, na Espanha. Era uma comunidade de sacerdotes que se dedicavam à vida comunitária, à oração e ajudavam o bispo na tarefa de pregação e na pastoral da diocese. Este estilo de vida religiosa rígida foi implementada no catolicismo no século XII num processo de reforma do clero (FORTES, 2011). Aos poucos Domingos, como membro desta comunidade, tornou-se o braço direito do bispo Diego de Acebes. Por volta de 1203, o bispo de Osma, Diego de Acebes, empreendeu uma missão diplomática ao norte da Europa em nome de Affonso, rei de Castela. Nesta empreitada, Diego levou consigo Domingos. Passando pelo sul da França, depararam-se com a dura realidade do arrefecimento da fé por parte dos cristãos. Existia na região um grupo de pregadores hereges denominados de ‘Cátaros’267 que influenciava o povo cristão a afastar-se da comunhão com a Igreja Católica e com seus representantes.

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Grupo de heréticos que desafiou seriamente os principais dogmas do Cristianismo ortodoxo. Suas crenças derivavam dos ensinamentos de um mestre religioso do século III na Mesopotâmia chamado Mani, que tentou conciliar o Cristianismo com antigas idéias persas e interpretou o mundo como o campo de batalha entre as duas poderosas forças do Bem e do Mal, a vida do espírito e a vida da carne. As atitudes resultantes, vagamente rotuladas de maniqueísmo, levaram à rejeição da teologia cristã básica referente ao papel de Deus na criação, à humanidade do Cristo na Encarnação e à ressurreição do corpo. A desconfiança profunda dos cátaros em relação às coisas materiais, consideradas províncias do demônio, fez com que os mais convictos dentre eles renunciassem à atividade sexual, especialmente quando se tratava de procriar, praticassem uma forma austera de vegetarianismo e se recusassem a cumprir obrigações seculares, como aquelas que pediam a formulação de um juramento. Os cátaros entraram na Europa ocidental no começo do século XI, vindos da Bulgária, e muitos foram condenados à morte e executados, por suas crenças heréticas, em Orléans. O mais famoso grupo

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Como sabemos,

O século XIII foi um período marcado por vários movimentos religiosos. Já no século anterior começavam a se multiplicar e fortalecer as “seitas heréticas” que incomodariam os planos homogeneizantes da Igreja. Como reação a esse e outros fenômenos, o século XIII vê nascer as ordens mendicantes, que tinham como um de seus principais objetivos expor aos fiéis a fé cristã, tentando, desta forma, erradicar as interpretações heterodoxas do cristianismo, disseminadas pelos hereges (FORTES, 2011, p. 23).

Os cristãos católicos dessa região deixavam-se influenciar por este grupo e se convertiam à pregação dos hereges em virtude da força com que pregavam e pelo exemplo de vida evangélica que davam. Muita gente se revoltava contra os maus exemplos dos sacerdotes e monges católicos que pouco tinham de vivência evangélica e acabavam por abraçar o exemplo e o testemunho dos cátaros. Esta realidade chamou a atenção do bispo de Osma e de Domingos. Eles perceberam que o modo de vida que os hereges tinham era a causa do sucesso de suas pregações: andavam de dois a dois, nada levavam consigo, viviam das esmolas que recebiam e conheciam profundamente as Sagradas Escrituras. Por isso convenciam o povo e confundiam os clérigos que se dispunham discutir com eles. Assim, Diego e Domingos, ao retornarem da missão diplomática instalaram-se no sul da França e começaram a pregar contra os hereges. Juntou-se a eles outros clérigos e alguns enviados do Papa, da Ordem dos Cistercienses, que comandados pelo Bispo de Osma empreitaram um trabalho intenso de pregação (SAXÔNIA, s/d). É neste contexto que começa a surgir a Ordem dos Pregadores, conhecida como Ordem Dominicana. Em meio ao conturbado mundo herege do sul da França, Domingos se destaca como floresceu no sul da França em fins do século XII, e foram chamados de albigenses por terem seu principal centro em Albi, no Languedoc. Os adeptos estavam divididos em duas categorias: os perfecti, ou “perfeitos”, e os credentes, ou “crentes”, que viviam uma vida normal mas se esperava que recebessem a absolvição ou consolamentum em alguma fase da existência, antes de morrer. Após a absolvição, esperava-se que também esses se sujeitassem à intensa austeridade dos perfecti (LOYN (Org.), 1997, p. 202-203).

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pregador do evangelho. Foram muitos anos de profícuo trabalho entre os movimentos heréticos. Neste espaço de tempo, Domingos268 fundou um mosteiro de monjas “para acolher algumas moças nobres, cujos pais, por motivo de pobreza, as tinham confiado aos hereges que as sustentavam e instruíam” (SAXÔNIA, s/d, p. 18). Este mosteiro ficava entre Fanjeaux e Montreal, num lugar chamado Prouille, no sul da França. Esta fundação foi fundamental para os trabalhos de pregação entre os incrédulos, pois dava sustento espiritual à empreitada evangelizadora e era referência para os pregadores. Com o retorno do Bispo Diego para sua diocese de Osma e a volta dos monges cistercienses as suas terras, Domingos ficou sozinho com alguns companheiros que não o deixaram. Aos poucos outros homens foram se juntando a Domingos na pregação. Os primeiros a se apresentarem foram de Tolouse, Pedro de Seila e Tomás.

O primeiro, Frei Pedro, doou a Frei Domingos e seus companheiros as belas e nobre [sic] casas que possuía em Tolosa e nos arredores de Narbona. É a partir desse tempo que eles começaram a morar nessas casas de Tolosa e todos os que estavam em sua companhia começaram a se aprofundar na humildade e adotar as práticas da vida religiosa (SAXÔNIA, s/d, p. 22).

Estavam lançadas as bases da Ordem dos Pregadores. Como a pregação, a vida apostólica e o exemplo de Domingos e seus companheiros cresciam e, aos poucos, se tornavam renomados na região, o Bispo de Toulouse, Fulco, após aprovação do cabido de sua catedral, passou a entregar para Domingos a sexta parte do dízimo de sua diocese para que pudessem investir em sua jornada, na alimentação e na aquisição de livros, que serão sempre os baluartes da Ordem.

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Em relatos anteriores da Ordem Dominicana a fundação deste convento é atribuída ao Bispo de Osma, Diego. A partir da narração de Humberto de Romans a fundação deste mosteiro é atribuída à Domingos de Gusmão.

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O Bispo Fulco foi um grande colaborador para o nascimento da Ordem. Em 1213 convocou-se o IV Concilio de Latrão269 que teve início em novembro de 1215. Domingos de Gusmão se juntou ao Bispo de Toulouse em direção ao Concílio. Domingos aproveitaria a viagem e a oportunidade para solicitar do Papa Inocêncio III a confirmação e a aprovação de sua fundação, a Ordem dos Pregadores. Ao final do Concílio, já em 1216, Domingos retornou de Roma com o mosteiro de Prouille sob a proteção papal e com uma exortação do pontífice: “fazer com que os seguidores de Domingos em Toulouse, que assumiram o ministério da pregação como missão, adotassem uma regra monástica conhecida” (FORTES, 2011, p. 22). Esta era, também, uma exigência que brotou do Concílio e que proibiu a aprovação de novas regras para novas ordens religiosas. Já em Toulouse comunicou seus companheiros pregadores dos resultados do encontro com o Papa. Eles se reuniram e escolheram a Regra de Santo Agostinho incorporando a elas algumas “questões disciplinares concernentes ao modo de viver” (ROMANS, s/d, p. 17), especialmente em relação a “alimentação e jejum, leito e vestuário” (SAXÔNIA, s/d, p. 23), “constituindo desta maneira uma espécie de esquema das Constituições” (FORTES, 2011, p. 33) que futuramente comporão as Constituições oficiais da Ordem dos Pregadores. Mas por que escolher as regras de Santo Agostinho? De acordo com Fortes (2011), existe um grande debate entre os historiadores sobre a adoção desta regra pela Ordem dos Pregadores, Há aqueles que veem nessa escolha uma atitude “natural”, por ter Domingos sido até um cônego regular, sendo a regra agostiniana a forma de vida desses religiosos. Outros querem ver nesta opção uma maneira de o grupo ser

269

Desde os primeiros dias do Império Cristão até o início do século XIV, Latrão foi a principal residência do papa, com sua igreja no local da atual São João de Latrão. Concílios religiosos eram aí realizados regularmente e, durante o período de forte monarquia papal nos séculos XII e XIII, aí tiveram também lugar assembleias gerais ou concílios ecumênicos. Seu objetivo principal era efetuar uma reforma unificadora da Igreja em todo o Ocidente [...] O maior e mais importante, porém, foi o Quarto Concílio de Latrão, convocado por Inocêncio III em 1216 como o clímax de seu enérgico pontificado; ocupouse não só da reforma moral, mas também de decretos que esclareceram a doutrina e abordaram a supressão da heresia. (LOYN (Org.), 1997, p. 548).

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prontamente visto como uma Ordem. Ainda outros consideram que a regra de Agostinho possibilitaria aos pregadores cumprir sua missão como tal, sem abrir mão de sua posição como cônegos (FORTES, 2011, p. 32).

Era o ano de 1216. Escolhida as regras e principiadas as Constituições de uma nova Ordem religiosa, a Ordem dos Pregadores, o Bispo de Toulouse entregou para Domingos e seus companheiros, que eram mais ou menos dezesseis, a Igreja de São Romano. Este lugar funcionou como o primeiro convento da Ordem. Neste mesmo ano faleceu o Papa Inocêncio III e foi eleito novo pontífice o Cardeal Cêncio Savelli, que tomou o nome de Honório III. Domingos temeu que o novo Papa não fosse favorável a aprovação da Ordem como Inocêncio III que abriu muitos caminhos para os frades pregadores. No entanto, o novo Papa foi solícito e concedeu a Domingos de Gusmão, sem nenhum tipo de reservas, a aprovação da Ordem dos Pregadores em 1216 (ROMANS, s/d), mais especificamente a 22 de dezembro de 1216 pela bula Nos atendentes (NEVES et all, 1966, p. 7). O que fascinava Domingos de Gusmão eram a pregação e uma intensa vida apostólica. Para Domingos,

Seguir a vita apostolica quer dizer: viver o ideal dos Doze e dos discípulos, tal como mostra o livro dos Atos, na oração, no culto e na comunhão fraterna; estar inteiramente disponível e desimpedido para a qualquer momento, a tempo e contratempo, anunciar a Palavra de Deus no Evangelho; para isso a abraçar o desprendimento e abraçar a cruz (NEVES et all, 1966, p. 16).

Tudo o que pensava e vivia, Domingos propôs e inculcou a seus seguidores. O evangelismo proposto por Domingos desde seu primeiro contato com os hereges sempre foi a tônica que buscou para sua fundação. Na perspectiva de Domingos de Gusmão,

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Pobreza, despojamento, humildade e obediência, silêncio, mortificação, toda observância monástica como toda atitude interior só adquirem sentido pleno e só são indispensáveis na medida em que se põem a serviço da vocação evangélica que lhe é fundamental: anunciar o evangelho, principalmente aos pagãos (NEVES et all, 1966, p. 17).

A aprovação de uma Ordem de Pregadores foi para o contexto do século XIII um processo explícito de renovação pela qual o catolicismo passava. Renovação ocasionada pela crise. Somente aos bispos e a alguns clérigos era permitido pregar. O alcance do ensinamento do Evangelho era restrito e o exemplo que a Igreja dava em seu esplendor e riqueza era contraditório com o que ensinava. A cristandade medieval do século XIII passava por profundas transformações. O mundo feudal estava em crise. O comércio em desenvolvimento e a sociedade urbana em formação. A Igreja Católica, apesar de poderosa necessitava de novos instrumentos de evangelização para atingir as novas classes que surgiam e combater as heresias (SANTOS, 1996). Domingos “percebeu que a pregação feita única e exclusivamente pelos bispos não era suficiente” (NEVES et all, 1966, p. 23). O seu projeto de evangelização, “essencialmente apostólico e missionário” (SANTOS, 1996, p. 9) visava o novo mundo nascente com seus problemas. A Ordem dos Pregadores, chamada e conhecida popularmente como Ordem Dominicana, nasceu em meio a um grande ardor apostólico de seu fundador. Seus membros tornaram-se “grandes missionários evangelizando os quatro cantos do mundo. A ordem Dominicana foi de fato o primeiro instituto realmente missionário na história da Igreja” (SANTOS, 1996, p. 11). Os frades pregadores eram “totalmente dedicados à pregação da Palavra de Deus [...] para erradicar a heresia, extirpar o vício, ensinar a fé e adestrar os homens na boa moral” (HINNEBUSCH, 1982, p. 50-51). Na visão de Hinnesbusch (1982), Domingos, ao fundar a Ordem dos Pregadores, ofereceu um amplo serviço à Igreja e aos fiéis, pois abriu os caminhos da pregação para sua Ordem.

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Isto se torna claro quando verificamos a pouca pregação que se fazia e o escasso material de pregação produzido durante os séculos que vão desde á época dos grandes padres até os dias de Domingos. Antes da metade do século XIII a grande escassez de pregadores que levara a fundação da Ordem dos Pregadores já tinha desaparecido (HINNESBUSCH, 1982, p. 51).

Os caminhos que Domingos abriu para a Pregação se estenderam para outras ordens religiosas e para outros clérigos que eram proibidos de pregar, pois não eram bispos. O primeiro século da fundação da ordem testemunhou um florescimento significativo na cristandade medieval e mostrou a “potencialidade ministerial da vida religiosa” (HINNESBUSCH, 1982, p. 59). Parafraseando Mandonnet (1938, p.83), podemos afirmar que a Ordem dos Pregadores atendeu as urgências da cristandade dos primórdios do século XIII e, através da pregação e da vida apostólica, mesclando práticas religiosas antigas e inovadoras, atenderam as necessidades de um tempo novo. Domingos de Gusmão vivenciou, especialmente quando esteve pregando aos hereges, a necessidade de que sua comunidade fosse de homens entregues à vida da pregação, pobres, membros de uma comunidade fraterna, assíduos à vida de oração e dedicados aos estudos da Palavra de Deus e da teologia. Aqui estão os princípios básicos da constituição da Ordem dos Pregadores, os elementos fundantes permanentes e característicos deste instituto de homens missionários que os diferenciava de outras ordens nascentes270, também no século XIII. Rapidamente, a Ordem dos Pregadores se espalhou por toda a Europa. Para Domingos de Gusmão, “o grão, se guardado em montes, estraga-se; se porém, semeado, frutifica” (BERNARDOT, 1940, p. 21). Como líder de sua fundação “enviou seus frades a toda parte, espalhando-os como sementes para darem frutos de salvação” (ROMANS, s/d, p. 19). Em 1217 enviou frades para a Espanha, Paris e Orléans e em 1218 para Bolonha.

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Como a Ordem Franciscana, fundada por Francisco de Assis, também no século XIII.

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Com conventos em diversas partes, por conselho do Papa Gregório IX, realizou-se em 1220 o primeiro Capítulo Geral da Ordem dos Pregadores, em Bolonha. Este capítulo foi presidido por Domingos e “foi o ponto de partida de uma expansão missionária ainda maior” (NEVES at all, 1966, p. 40). A partir dele os dominicanos atingiram os pagãos Cumanos, lançaram as bases da fundação dominicana na Dinamarca e na Suécia, nos países do Báltico e da Escandinávia, bem como na Rússia e em países da Europa Central. “Em meados do século XIII, a Ordem possuía não só alguns conventos, mas províncias florescentes na Dinamarca, Polônia, Hungria, Grécia e Terra Santa (NEVES et all, 1966. p. 40). Domingos de Gusmão acompanhou por cinco anos os primeiros passos de sua fundação e a viu crescer e espalhar-se para diversos lugares, conforme era seu desejo. No entanto, em 1221, após o segundo capítulo da Ordem, em Bolonha, Domingos adoeceu gravemente e faleceu no dia 06 de agosto. Sua obra permaneceu e cresceu consideravelmente. Em 2016, a Ordem dos Pregadores completará oitocentos anos de fundação e de atuação. Vale aqui destacar dois momentos distintos no primeiro século de existência da Ordem dos Pregadores. O primeiro momento é o do movimento liderado por Domingos de Gusmão, o processo de formação, as primeiras inspirações e os sonhos que resultou na fundação de uma Ordem religiosa aprovada e reconhecida oficialmente pela Igreja Católica. O segundo momento é o da institucionalização desta Ordem que não acontece com Domingos de Gusmão, mas com os Mestres Gerais da Ordem que o sucederam, em especial, Jordão da Saxônia (1222 a 1237) e Humberto de Romans (1254 a 1263). Para Fortes, “é justamente durante o processo de institucionalização que a identidade [da Ordem dos Pregadores] se afirma mais fortemente” (FORTES, 2011, p. 69). A ideia foi concebida por Domingos, no entanto, seus sucessores foram responsáveis em dar uma identidade institucional à Ordem. Esta institucionalização da Ordem dos Pregadores foi dando a ela características que a fizeram reconhecida ao longo dos séculos. Percebe-se, nesta ocasião, um intenso desejo de continuar na Ordem

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as primícias de sua fundação. Elementos presentes na vida de Domingos e dos primeiros frades foram reforçados no processo de consolidação dessa instituição. Alguns elementos constitutivos essenciais à Ordem dos Pregadores devem ser enfatizados, entre eles os estudos, a pregação e a vida apostólica. A pregação e a vida apostólica já foram caracterizadas anteriormente. Enfatizaremos aqui o lugar e a importância dos estudos para os Frades Pregadores. Os estudos tem um lugar de evidência na Ordem Domincana. “Domingos queria estudar para pregar, e pregar para colocar as almas no reto caminho da salvação [...] antes mesmo de receber o nome ou o status de comunidade de religiosos, adotou esta perspectiva” (FORTES, 2011, p. 121). As Constituições e Ordenações da Ordem dos Pregadores reza no artigo 76 que,

São Domingos, numa atitude bastante inovadora, inclui intimamente no propósito da Ordem o estudo, ordenado ao ministério da salvação. Ele próprio, que levava sempre consigo o evangelho de Mateus e as Epístolas de São Paulo, enviou os irmãos aos centros de estudos e distribuiu-os pelas grandes cidades, para estudarem e pregarem e fazerem conventos (LCO, 76).

Diferentemente dos antigos monges, que apesar de estudarem, tinham o trabalho e a oração como programa principal de vida, os dominicanos consideravam o estudo um meio essencial, especialmente para a pregação e para o trabalho apostólico. “Deve tender nosso estudo, principal e ardentemente, a auxiliar a alma de nosso próximo” (BERNARDOT, 1940, p. 68). A importância dos estudos na vida dos Frades Pregadores é corroborada pela tática que Domingos usou no início da Ordem. Como vimos, ele enviou seus frades dois a dois e às cidades consideradas grandes centros universitários, como Paris e Bolonha. Desde os primórdios a Ordem esteve presente dentro das Universidades, primeiramente possibilitando estudos aos frades, depois estando à frente de centros Universitários e atuando como mestres, especialmente da Teologia.

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Na consolidação da Ordem dos Pregadores e na sua institucionalização, as constituições e ordenações recomendam que em cada convento floresça a vida intelectual e que existam centros onde os frades se dediquem aos estudos (LCO, 91). Domingos em sua juventude foi um grande estudioso e sentiu a grande necessidade que o apóstolo tem de estudar quando esteve em contato com a heresia. Os heréticos eram muito bem preparados e tinham sólidos argumentos. A pregação popular era insuficiente para contestá-los. Sem dedicação ao estudo e à oração era impossível convencê-los e vencê-los. Eis a grande preocupação de Domingos com os estudos (D’AMATO, 1992, p. 51). Humberto de Romans, um dos mestres da Ordem, nas décadas posteriores à morte de Domingos e no período da sua institucionalização, tece grandes elogios aos estudos, enfatizando sua importância e seu lugar na vida do frade pregador. Para ele,

o estudo preserva do pecado, forma o homem interior, mostra claramente a via do dever, torna o religioso mais útil aos demais, aumenta a estima da Ordem entre o povo, liberta da melancolia, dá força para suportar as fadigas da vida religiosa e apostólica, e sobretudo é instrumento de progresso espiritual, pois todo conhecimento da verdade é ocasião para crescer na caridade ( D’AMATO, 1992, p. 52-53). O lugar privilegiado de estudo dentro da Ordem dos Pregadores não significava “um simples trabalho intelectual, uma especulação abstrata e fria” (BERNADOT, 1940, p. 69) nem mesmo um enfeite do espírito, mas um serviço de amor e uma exigência de fidelidade ao próximo. Estudava-se muito, mas não para si. O estudo estava sempre na perspectiva da pregação e da vida apostólica. A formação dos frades pregadores percorre muitos anos de dedicação aos estudos com o intento de obter uma sólida formação doutrinal, tudo em perspectiva do trabalho missionário dos frades que só obtém sucesso se os estudos estiverem constantemente em atualização e aprofundamento.

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Era a dedicação aos estudos o grande diferencial dos frades pregadores em relação às demais ordens e institutos de vida religiosas existentes. O estudo assíduo, comprometido e perseverante dos membros da Ordem dava a ela um caráter erudito e intelectual que rendeu à Ordem dos Pregadores uma tradição singular de personagens que se destacaram na História da Igreja e da própria Ordem quanto ao conhecimento e ao ensino das escrituras sagradas e da Teologia. Entre eles, Alberto Magno e Tomás de Aquino, ainda no século XIII, que com suas pesquisas e reflexões deixaram um grande legado não só aos discípulos de Domingos de Gusmão, mas a toda a cristandade. Tomás de Aquino foi “o fruto mais belo e, diria, o produto típico de uma Ordem que tem paixão pela verdade” (D’AMATO, 1992, p. 53). Verdade que é expressa como divisa no brasão da Ordem dos Pregadores ‘Veritas’ e que só se alcança pelos estudos. No entanto, para a Ordem dos Pregadores, “deve a verdade que se estuda, descer ao coração, apossar-se profundamente da alma e aí tornar-se um princípio soberano e universal de ação” (BERNADOT, 1940, p. 69), resumindo assim o ideal da Ordem dos Pregadores, “contemplata aliis tradere”, ou seja, contemplar e comunicar aos outros os frutos da contemplação (TURCOTTE, 1958, p. 12).

Considerações finais

Este é um texto em gestação, pois em gestação ainda se encontra a pesquisa. Aqui foram esboçadas algumas ideias que precisam ser aprofundadas.

No entanto, não se pode negar que

Domingos de Gusmão deixou uma herança significativa para a História da Igreja e para a humanidade, uma Ordem de Pregadores, fundada em pleno século XIII, onde a pregação no catolicismo era privilégio de quem chegasse ao episcopado. Não vejo como ‘providencialismo’ o surgimento da Ordem Dominicana, neste contexto, como expressa os biógrafos e outros que escreveram sobre Domingos e sua Ordem. Domingos foi, na verdade, um desafiador do catolicismo institucional da época, que pouco ensinava e muito menos exemplificava, pelos modos de viver e de ser de seus líderes.

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Tempos novos, novas necessidades. Domingos foi um homem de seu tempo, aberto às inópias de sua sociedade e do seu mundo. Buscou fazer, a partir do que sabia como eclesiástico, o bem. Assumiu o missionarismo religioso que aprendeu com o seu companheiro e pai espiritual, Diego, o bispo de Osma, e o transpôs para os seus seguidores, os frades pregadores, que continuam inseridos em realidades diversas, tentando ser um pouco de ‘fermento na massa’.

Referências Bibliográficas

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JUSTIÇA PARA O DIABO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA Clarice Machado Aguiar271

As Cantigas de Santa Maria são um corpus documental produzido em meados do século XIII, em Castela. Elas são atribuídas ao rei Alfonso X272. Nesse corpus está reunida uma série de milagres atribuídos à Virgem Maria, sob a forma de cantigas, que são descritas pelo rei, compilador dos milagres, como uma obra de amor dedicada a Santa Maria. A beleza e a bondade da Virgem são sempre destacadas e louvadas em todas as cantigas. O corpus documental em questão é uma das obras mais conhecidas do medievo ibérico. Existem inúmeros estudos que o utilizam como fonte, talvez devido à abrangência de temas que ele registra. Como não se trata somente de uma obra literária, mas também com conteúdo musical e iconográfico, ela é utilizada por medievalistas de todos os campos do conhecimento. Por exemplo, no campo da música, existirem orquestras ao redor do mundo que buscam a reprodução das cantigas no formato medieval tradicional, sendo um dos trabalhos mais peculiares o de um grupo musical japonês273 que há anos trabalha com essas partituras e desde 2005 difunde seu trabalho em áudio digital. No Brasil, há também grupos que se dedicam a estudar a parte musical, como é o caso do Grupo de Música antiga da UFF, mas o maior sucesso das Cantigas de Santa Maria deu-se entre os estudiosos da Literatura Medieval, que publicaram muitos trabalhos baseados nessa fonte. Embora conscientes de que estamos lidando com uma fonte amplamente (para alguns, exageradamente) difundida, a nossa proposta é de analisar a fonte por um viés até agora desprezado: o diabo. A relevância do tema, para a compreensão da própria obra, se assenta principalmente pelo fato

271

Aluna de graduação da Universidade de Brasília (UNB). E-mail: [email protected] Alfonso X foi um rei castelhano-leonês, do sécul XIII, que viveu entre 1221 e 1284. Seu reinado durou 30 anos e iniciou-se em 30 de maio de 1252, quando tinha 31 anos. Foi um rei muito importante que contribuiu para o crescimento econômico de Leão e Castela. É muito conhecido por suas características legisladoras, e foi sob o seu reinado que se compuseram as “Siete Partidas”, e outras obras que se tornaram referência. Entrou para a história com o cognome de “O Sábio”. 273 O trabalho da orquestra encontra-se disponível para download no link . Acesso em: 20 nov. 2013. 272

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de o personagem estar muito presente ao longo dos milagres narrados. Ele assume o papel de tentar e de provocar os mortais que acabam por executar atos considerados vis, e, dessa forma, consegue recrutar um grande número de almas. Ele é um verdadeiro colecionador de almas. O papel de Santa Maria como advogada dos humanos é um assunto bastante trabalhado, principalmente por aqueles historiadores que estudam as representações da mulher nas Cantigas de Santa Maria. Também para o nosso trabalho esse papel é importante, sobretudo no que se refere ao aspecto judicial, uma vez que nosso objetivo é o de compreender a lógica da atuação do diabo na narrativa dos milagres, na perspectiva da justiça. É relevante esclarecer que o corpus documental é importante para o historiador não apenas por registrar milagres, o que ajudaria a perceber a visão religiosa da época, mas sobretudo porque em seu discurso estabelece o que era certo/justo e errado/injusto. Tal constatação pode ser feita em situações esperadas, como a de que o homem bom vai para o céu e o mau para o inferno, como resultado do julgamento a que são submetidas as almas no momento da morte. Nas Cantigas essa dicotomia é incerta, uma vez que com a realização dos milagres, também os pecadores podem livrar-se do fogo infernal. A parte selecionada para esta comunicação desse tribunal celestial é aquela em que detectamos que um dos lados sente-se injustiçado. O Diabo, frequentemente reclama sobre a perda de almas que, com muito custo, havia conseguido, devido a intromissões injustas. Dessa maneira, é possível perceber a lógica da justiça não somente no campo dos homens, mas também na esfera sobrenatural. Antes de entrar no campo da justiça, no que se refere às ações do diabo, faz-se necessário esclarecer a noção de mal que lhe associa diretamente. De que forma o mal é configurado nas Cantigas e como ele se relaciona aos demais personagens presentes no documento, bem como a forma pela qual se entende a justiça na perspectiva do demônio, que se sente lesado pelos milagres, são aspectos que este trabalho pretende responder. O mal é descrito na Cantiga 30274 como o antagônico ao bem, mas a noção de “bem” no documento é muito diferente daquela que vigora nos dias de hoje. Nas Cantigas, a noção de bem está 274

ALFONSO X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 1221-1284. Pg 79. Disponível em: . Acesso em: 7 ago. 2013

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ligada à sua prática, são os atos corretos praticados pelos homens e que lhe propiciam um lugar no céu. Portanto, trata-se de fazer o bem. Nesse sentido, a utilização recorrente do verbo fazer, associada à palavra bem, reforçam a ideia de que tanto a justiça quanto a injustiça existem apenas se derivarem de ações conscientes. Seguindo essa lógica o mal aparece no sentido de fazer o mal, de ir contra os preceitos da sociedade cristã e de pecar. Nas Cantigas o mal é relacionado ao pecado e por isso o Diabo é o principal agente na hora que o homem comete maldades. Exemplos dessa função do bem e do mal estão presentes em quase todo o documento, podendo ser considerada como uma das principais lógicas que liga o discurso como um todo. Por exemplo, na Cantiga 24 275 o narrador, compilador dos milagres, afirma que “fazemos o mal”, na cantiga 42276 diz que não devemos “fazer o mal”. Quando um homem comete atos considerados maus, quase sempre está numa situação em que sofre a tentação do diabo. Entretanto, se a ação do diabo não é explícita, ela é citada durante a cantiga, numa estratégia que dá destaque ao seu papel social na lógica celeste. O comportamento característico do diabo de levar as pessoas a cometer atos errados não é um simples divertimento; é seu castigo após a queda, decorrente do fato de ter desafiado Deus, que lhe deu essa punição. Portanto, fazer o mal e desencaminhar os homens é a sua sentença. No campo dos homens, porém, o mal é apresentado como escolha daquele que o faz e, mesmo que o demônio apareça associado à ação, ele não deve ser considerado o culpado pelos pecados. Para entender melhor, na Cantiga 30,277 o narrador afirma que “se escolhemos o mal não vamos ao céu”. O homem, nas Cantigas, vê-se diante de situações nas quais é tentado a escolher entre o bem e o mal, o verbo tentar é muito importante na lógica do texto, pois indica que há mais de um caminho a seguir. Se a escolha recair sobre o mal, entretanto, há ainda a possibilidade de se redimir e de salvar a alma, por meio da confissão, da oração e, principalmente, do arrependimento sincero. Em diversas cantigas, aqueles que foram condenados por fazer o mal são isentados de seu castigo, ao mostrarem profundo arrependimento. Dessa forma, o reconhecimento do erro pode ser 275

ALFONSO X, op. p 61. ALFONSO X, op. p 110. 277 ALFONSO X, op. p 79. 276

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considerado como um possível antagonista do mal que assumiria o caráter de erro sem consequências. Tal como se pode apreciar nas Cantigas, o mal não é apenas uma característica associada ao diabo, mas é a razão da sua existência e o motivo da sua forte presença entre os homens. É importante compreender que o mal não é apenas o impulso inicial do diabo, mas que os dois constituem uma só coisa. Então, quando alguém faz o mal trabalha para o diabo, como se pode ver na Cantiga 76, que descreve um ladrão que fez muitas maldades da seguinte forma: “ladrão muito forte, jogador e brigão e tanto andou com o demo em torno que o fez cair nas mãos do juiz”.278 Nessa passagem fica claro que homens que cometem o mal, mesmo que não estejam sob a tentação direta do diabo, ‘andam com ele’, pois ele é a maldade . Enquanto o homem tem a escolha entre os dois polos, o demo está condenado a um deles, a maldade, sem a possibilidade de escolha e, dessa forma, seus atos não devem ser considerados injustos, pois fazem parte da sua natureza. Na Cantiga 74, isso fica explícito, quando se diz: “o demo, onde todo o mal há” 279. Essa afirmação reforça a ideia do diabo como o mal em si e não como um personagem que teria a possibilidade de escolher outro caminho. Como parte integrante do plano divino, o demônio aparece como um personagem que cumpre a função que lhe foi designada por Deus, e, nesse sentido, é possível que suas ações possam ser consideradas justas dentro da lógica celeste. Na Cantiga 45 280 aparece um homem que fez maldades durante a vida toda, mas, ao final de seus dias, arrepende-se de seus pecados e retira-se para um monastério. Mas antes de poder se redimir e de praticar o bem, morre. Os demônios aparecem para buscar sua alma, mas são confrontados por um anjo que também a reivindicam. Em um momento de debate, no qual os dois lados discutem quem merece o morto, os demônios dizem, em sua defesa, que sabendo Deus ser muito justo, irá julgar a situação concluindo que, a alma em questão, deve ir para o inferno. No final da Cantiga o homem acaba ressuscitando, ganhando uma segunda chance para se redimir de seus pecados e, talvez um dia, poder subir aos céus. Mesmo perdendo a disputa, fica claro que os demônios se julgam merecedores da alma, e, em sua defesa, recorrem à lógica celestial que é explicitada ao longo da narrativa. Ela consiste na certeza de que Deus sentencia ao inferno aqueles ALFONSO X, op.“ladron mui fort’, e tafur e pelejador; e tanto ll’ andou o dem’em derredor, que o fez nas mãos do juyz vir. ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 1221-1284. p 189. Tradução livre. 279 “o dem', en que todo o mal jaz”. p181. Tradução livre 280 ALFONSO X, op. p101. 278

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que cometem o mal e se desviam através dos pecados. Se o homem comete o mal, sua alma passa a pertencer ao demônio. Outra situação na qual se percebe o apurado sentido de injustiça de que se sente vítima o demônio, é na operação de milagres, uma vez que eles interferem no esforço e no empenho que ele dedica a corromper os homens e a possuir suas almas. Na Cantiga 49281 o narrador explica que Santa Maria guia os homens para não cair nas artimanhas do demo. Essa passagem demonstra que o diabo está realmente tentando enganar o homem por meio de grandes investidas, mas que a Virgem está lá para atrapalhar essa intenção. Na Cantiga 41282, ele é chamado de enganador, uma definição que revela seu esforço, embora na mesma cantiga ele também seja descrito como brincalhão, embora suas intenções não se pautem pelo puro divertimento. O esforço do demônio para desencaminhar os homens fica evidente no tipo de vítimas que geralmente escolhe. Nas Cantigas, os alvos da tentação não são pessoas simples, o que, evidentemente, tornaria sua tarefa muito fácil. Ladrões e desordeiros tampouco recebem sua atenção, pois suas almas já estão condenadas. A associação entre demônios e esses humanos considerados inferiores e simples estabelece-se apenas no momento da morte, quando pequenos demônios (jamais o demônio-mor) aparecem para levar-lhes a alma. Portanto, os escolhidos para serem tentados pelo demônio são homens justos e nobres. Na Cantiga 16,283 o alvo é um cavaleiro que se apaixona por uma bela mulher. No final da cantiga descobre-se que, sem o saber, estava enamorado pelo próprio demônio. Na Cantiga 58,284 o alvo é uma monja tentada a fugir com um cavaleiro trazido pelo diabo que, com muito esforço, tentava desencaminhá-la. Ambas as escolhas e o empreendimento do demônio revelam um trabalho árduo, que as cantigas destacam e reconhecem. Um dos melhores exemplos para demonstrar o grande esforço feito pelo personagem é a Cantiga 57285. Nessa passagem o alvo é um senhor descrito como muito devoto, bom e caridoso. Para 281

ALFONSO X, op. p 118. ALFONSO X, op. p 110. 283 ALFONSO X, op. p 44. 284 ALFONSO X, op. p 138. 285 ALFONSO X, op. p 116. 282

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enganá-lo, o demônio terá que se dedicar muito. Assumiu a forma de um belo homem, morto em batalha, e se apresenta ao senhor, assumindo papel de servo. O narrador descreve que ele começa a fazer todas as vontades desse nobre, atendendo a todos os seus caprichos com tanto esmero que é promovido a escudeiro. Chega até mesmo a praticar o bem e a fazer caridade, mostrando que, embora ele seja a encarnação do mal, fará qualquer coisa para cumprir seu papel. Seu disfarce é tão bom que o único a desmascará-lo é um bispo, descrito como homem de santidade sem tamanho. Ou seja, mesmo o homem nobre e bom não foi capaz de perceber as artimanhas do diabo, pois essas são tão bem feitas que foi preciso um clérigo com grande conhecimento sobre questões teológicas para desmascará-lo. Após observar os três exemplos citados acima, percebe-se a preferência do diabo principalmente por aqueles que integram a ordem dos cavaleiros, ou fazem parte do clero. Homens descritos como justos e caridosos também costumam ser alvos do diabo. O argumento de que o diabo não pode ser entendido como promotor da injustiça nas Cantigas, baseado na possibilidade de escolha dos homens entre o bem e o mal, é reforçado por situações onde ao ver-se frente à tentação o homem decide rezar a Santa Maria, para afastar as artimanhas do demo. Um exemplo é a Cantiga 82286. Nela, um monge bom, casto e muito fiel, que conjuga os atributos preferidos do diabo, que já foram apontados anteriormente, tentava dormir em sua cama quando começa a ver porcos assombrosos ao seu redor. O clérigo começa a espantar essas alucinações, que se revelam como pequenos diabretes. Quando se veem frustrados, o diabo-mor aparece, pois aqueles diabinhos eram fracos diante da enorme santidade do homem. O demônio ameaça feri-lo com seus ganchos. Assustado, o frade concentra seus pensamentos em Santa Maria que aparece e espanta aquele que lhe causava espanto. Essa cantiga é interessante por diversos fatores. Primeiro, mostra um homem que ao perceber que irá cair em tentação concentra-se em sua fé e escolhe seguir outro caminho. Em segundo plano há a questão da maldade contra a santidade. Os primeiros diabretes que aparecem são fracos diante de um homem santo, o que nos revela que praticar o bem já é uma forma de se manter afastado do mal. O diabo-mor é mais poderoso que seus subalternos e que o monge, mas diante de Santa Maria sai

286

ALFONSO X, op. p 199.

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correndo, pois ela é mais poderosa. Outra situação bastante comum narrada nas Cantigas, mostra ser possível que o homem evite o mal e a tentação, bastando amar a Deus e a Santa Maria como é o caso da Cantiga 284 na qual se diz: “Quem bem crer na virgem com todo o coração guardar-se a do demo e de sua tentação”.287 Tal afirmação também está presente em passagens bastante interessantes do documento que são chamadas “cantigas de louvor” que são sempre os trechos do documento cuja numeração é múltipla de dez. Nessas passagens as qualidades da Virgem são sempre louvadas, bem como sua capacidade de proteger do mal e sua piedade com relação às almas pecadoras. Na Cantiga 130 reafirma-se que “Ela faz todo bem entender e entendendo nos faz conhecer nosso senhor e seu bem haver e que perdemos do demo o pavor”.288 Ao longo das cantigas existem diversas descrições físicas do demônio. Quando assume características humanas ele aparece sob forma masculina ou feminina, de grande beleza, para esconder sua verdadeira natureza, pois quando se revela, é uma criatura escura e feia. Na Cantiga 237, o diabo é "repugnante289", e uma característica bastante comum que se lhe associa está descrita na Cantiga 74: "mais negro ca pez290", ou seja, mais preto que o piche. Dentre suas qualidades, destacam-se o ser enganador291, mau e arteiro292. Assumindo todas as características que claramente são consideradas negativas, o ser como pura maldade fica evidente em sua aparência, chegando ao ponto de encontrarmos na Cantiga 137 a seguinte passagem: "demo, que sempre mal cheira 293". Na Cantiga 74 há uma passagem que relata que um pintor costumava retratar o demônio com aparência feia, e, enfurecido, com a situação este resolve tomar satisfações: "porque me tem em desdém, ou porque me faz tão mal parecer aa todos que me vêem?" O pintor, então, lhe responde: "Eu o faço com grande

ALFONSO, X. “Quen bem fiar na Virgen de todo coraçon gurada-lo-á do demo e de ssa tentaçon” . ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela,. P 603. Tradução livre. 288 ALFONSO X, op. p 303. 289 ALFONSO X, op. p 506. 290 ALFONSO X, op. p 181. 291 ALFONSO X, op. “per consello do demo enganador”. p 231. Tradução livre 292 “ ALFONSO X, op. En esta guisa o demo | cho de mal e arteiro” ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 12211284. p 166. Tradução livre 293 ALFONSO X, op. “non caesse pelo demo, que senpre mal cheyra”. ALFONSO, X. Cantigas de Santa Maria. Castela, 1221-1284. p. 324. Tradução livre 287

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razão porque você sempre o mal faz e o bem não294". Enfurecido com a resposta, o demônio tenta matar o pintor. Portanto, depreende-se que o diabo sente-se injustiçado com relação ao julgamento que o pintor fazia de sua aparência. A passagem, assim como outras, é importante para destacar que o demônio percebe quando algo não lhe é favorável e ultrapassa a linha da justiça estabelecida por Deus. Como um personagem ativo das Cantigas, suas falas expressam frequentemente seu sentimento de estar sendo injustiçado, como na Cantiga 45 quando os diabretes reclamam com o anjo sobre a alma que lhes está sendo roubada. A realização de milagres não é o único momento em que se pode comprovar esse sentimento de injustiça ao longo das Cantigas. Nas chamadas cantigas de louvor, que não tratam de milagres, há referências frequentes aos acontecimentos do Éden. Quando Adão e Eva caíram na tentação do demônio condenaram todas as almas ao inferno. Na Cantiga 270 há trechos que fazem alusão à perda do paraíso e à condenação ao inferno: “Quando nossa primeira mãe nos fez perder por desobediência295.” E, posteriormente, completa: “Per Adan e per Eva fomos todos caer en poder do diabo296”. Entretanto, antes da queda dos humanos, o próprio nascimento do diabo está ligado à tentação, quando Lúcifer desafia Deus e se transforma na figura infernal demoníaca como sentença divina. No contexto das Cantigas, o fato é que, desde esse momento até a entrada da Virgem Maria na história, ele tinha cumprido seu papel sem interferências.. A Cantiga 60 também faz alusão à perda do paraíso: “Eva nos foi deitar com o demo em sua prisão”297; “Eva nos encerrou os céus sem chave”.298 O nascimento de Jesus Cristo é um marco que perturba profundamente o poder que o demônio possuía, pois após sua morte na cruz e sacrifício a humanidade recupera a possibilidade de se salvar. Dessa forma, o diabo que, anteriormente, poderia tentar e conquistar as almas, perde a partir de então um número significativo da sua coleção. A sentença que Deus havia estabelecido anteriormente é mudada e, por meio de Santa Maria, o salvador dos homens nasce. Os milagres narrados nas Cantigas 294

ALFONSO X, op. p 181. ALFONSO X, op. p 577. 296 ALFONSO X, op. p 578. 297 ALFONSO, X. “Eva nos foi deitar do dem’en sa prijon” . p 144. Tradução livre 298 ALFONSO, X. “Eva nos ensserrou os çeos sen chave… “ p. Tradução livre 295

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seriam apenas mais uma situação na qual Maria atrapalha os planos do diabo e o impede de realizar seu trabalho; para ele, a maior injustiça de todas tinha sido cometida no momento da anunciação. O nascimento de Cristo é, inclusive, o motivo pelo qual, posteriormente, a Virgem poderá realizar os milagres. Em decorrência desse momento que marca a virada na situação do diabo e das almas humanas, as duas cantigas usadas como exemplo, nas quais se descrevem os acontecimentos do Éden, concluem suas sentenças mostrando que Maria e Jesus agora recebem o papel de corrigir o erro de Adão e Eva. Em ambas as cantigas, depois de apontar o pecado cometido por Adão e Eva, anuncia-se que Jesus e Maria venceram o diabo. Na Cantiga 270, após a afirmação de que por Adão e Eva perdemos o paraíso é dito que um novo Adão cortou a cabeça do dragão299 que , no caso, é uma uma metáfora que evoca o diabo. Na Cantiga 60 também há uma passagem semelhante, pois afirma-se que Eva fechou as portas do céu para todos, mas que Maria as abriu novamente300. Os dois personagens, Maria e Jesus, são vistos como os responsáveis pela salvação do homem e como aqueles que atrapalharam o diabo, pois ele terá de usar suas artimanhas para tentar ganhar todas as almas que foram perdidas. Agora, com muito mais trabalho, frente a dois novos inimigos poderosos. Santa Maria aparece em diversas cantigas como aquela que protegerá o homem e vencerá o demônio, como é o caso da Cantiga 145: “louvando a Virgem que nos é escudo contra o diabo e suas tentações301”. Na Cantiga 160 também aparece questão semelhante, ao se afirmar que devemos orar à Virgem, pois ela sempre por nos rogará e “o diabo vencerá e com ela nos levará302”. O diabo nas Cantigas de Santa Maria sente-se injustiçado devido à atuação da personagem ALFONSO, X. “Per Adan e per Eva fomos todos caer en poder do diabo; mais quise-sse doer de nos quen nos fezera, e vo-sse fazer nov' Adan que britass' a cabega do dragon. Todos con alegria cantand' e en bon son…” p 578. 300 ALFONSO X, op. "Eva nos enserrou os çeos sen chave, e Maria britou as portas per Ave." p 578. 301 ALFONSO X, op. “loando a Virgen que é noss’ escudo contra o diabo e sas tentações”. p 340 302 ALFONSO X, op. “E o demo vencerá e nos consigo levará Santa Maria”. p 365. Tradução livre 299

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principal. Além de Maria atrapalhar suas tentações, transforma-se em escudo que protege os homens dos trabalhos do demônio. A Virgem também aparece, junto ao seu filho, como a causa do diabo ter perdido livre acesso às almas. Sendo a personificação do mal e de sua manifestação em forma pura, o diabo manifesta-se da forma como Deus sentenciou. Ele está sempre tentando desencaminhar os homens, mas suas ações são justificáveis.

Fonte Primária

ALFONSO

X.

Cantigas

de

Santa

Maria.

Castela,

1221-1284.

Disponível

em:

. Acesso em: 7 ago. 2013

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A FILOSOFIA MEDIEVAL E SUAS CONEXÕES COM A CONTEMPORANEIDADE Claudio Pedrosa Nunes303

Introdução

O que é filosofia medieval? Quais os períodos principais da filosofia medieval? Quais as principais contribuições da filosofia medieval para o pensamento jusfilosófico contemporâneo? Estas são as questões básicas que reputamos adequadas para identificar o conteúdo e as utilidades de uma das ciências ou disciplinas mais importantes do conhecimento erudito: a filosofia medieval. Relacionar as principais características da filosofia medieval e identificar seu conteúdo como ciência ou disciplina do conhecimento não são tarefas singelas. Num período temporal de quase mil anos, natural que se vislumbrem variados aspectos, perfis e características desse segmento filosófico. É nesse contexto que procuraremos, em meridiana síntese, elaborar uma incipiente teoria a respeito das bases centrais de reconhecimento e do mérito da filosofia medieval, sugerindo diretrizes capazes de, em nosso entender, instigar a descoberta de perspectivas e vislumbrar os desafios que certamente movem as preocupações dos estudiosos da filosofia da Idade Média. Aliado a isso, reputamos importante sugerir algumas possíveis conexões entre os institutos filosóficos medievais e as categorias jusfilosóficas correlatas do direito contemporâneo, seja no sentido de reunir elementos especiais de auxílio hermenêutico, seja no sentido de corrigir equívocos a que muitos estudiosos das ciências humanas incorrem no tocante ao direito natural.

O que é filosofia medieval?

303

Doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Professor Adjunto da UFPB. Líder e pesquisador do grupo de estudo e pesquisa Direito e Justiça na Europa Medieval. Autor do livro A Conceituação de Justiça em Tomás de Aquino: um estudo dogmático e axiológico, Juruá, 2013.

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A indagação em foco certamente atrai a persecução das características e do mérito da filosofia medieval. A filosofia medieval caracterizou-se sobretudo pela busca de sintonia entre o conhecimento clássico grego e romano com a teologia da Igreja Romana. O desenvolvimento das ciências, o surgimento das universidades e a formação dos conglomerados urbanos também são fatos que identificam o perfil da sociedade medieval e, com esta, o próprio florescimento do pensamento filosófico de então. Nesse contexto, a doutrina cristã, então elevada a dogma constitutivo da razão de ser das instituições, exerceu um papel condensador e aglutinador no sentido de conferir legitimidade ao ambiente secular a partir da sedimentação da cultura da autoridade da Igreja. Tal conjuntura era derivada da afirmação dos eclesiásticos como autoridades estabelecidas por conduto da vontade e da bondade de Deus, por meio dos quais a sociedade humana alcançaria o adequado equilíbrio. Assim, a filosofia medieval avançou nos mais variados sentidos, desde as justificativas da existência do mundo e de seu Criador304 até os pormenores da justiça comutativa305 e do direito contratual, com seus naturais desdobramentos nas mais comezinhas relações interpessoais. No âmbito do direito, o pensamento filosófico medieval revelou-se fértil e profícuo. O direito natural representou a principal categoria jurídica substrato da filosofia do direito e do estado do Medievo, cujo conteúdo emanava da conjugação das teorias gregas e romanas a respeito da aplicação da justiça. Assim é que o direito natural medieval é consequência sobretudo da doutrina clássica do justo, doutrina esta que considerava, entre outros aspectos, a definição da justiça e do justo a partir da observação e do sentido da ordem natural das coisas, tal qual se extrai da contemplação da natureza. Mas o direito natural avançou na atmosfera filosófica medieval especialmente quando estudado e aplicado sob a ótica da razão, destacando-se nesse particular a doutrina jusfilosófica de Tomás de Aquino. Com efeito, a filosofia tomista do direito natural é pautada numa ordem racional das coisas, ordem esta que introduz no mundo jurídico as ideias e construções humanas na definição do que é direito e do que é justo. 304 A existência de Deus e a criação do mundo são especialmente evocadas na prima pars da Suma Teológica de Tomás de Aquino, a partir da Questão 2. 305O tratado da justiça encontra-se na secunda secundae da Suma de Tomás de Aquino, a partir da Questão 58.

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Fiel que era à doutrina aristotélica da razão, Aquino conseguiu conjugar a razão humana à ordem natural das coisas e, com isso, produziu uma doutrina que alçou o direito natural a categoria jusfilosófica de grande autoridade. O direito natural como categoria jusfilosófica de excelência é consubstanciado no exercício da razão do bem, do correto e do justo a partir da inserção da lei natural do bem na consciência dos homens. Em outras palavras, é conatural a todos os homens, por conduto do intelecto e da vontade de Deus, a concepção de que deve fazer o bem e evitar o mal, atribuindo a cada um o que é seu de direito. Assim é que o direito natural não e senão a inserção da lei natural de Deus na consciência e na razão humanas e através do qual o homem é dirigido a agir corretamente em suas relações sociais. Portanto, na jusfilosofia medieval, o direito natural tem franca e estreita relação com a justiça, seja a justiça geral, seja a especial. Afinal, como vem anota Tomás de Aquino, “o direito é o objeto da justiça”306. Por outro lado, o objeto material da filosofia medieval é complexo e multiforme, conquanto nesse período de quase mil anos (Séculos V a XIV aproximadamente) as transformações socioeconômicas e socioculturais tenham sido significativas. Não obstante, se pudermos eleger um objeto material sensível em todo o Medievo, mesmo por mera especulação, diremos que tal objeto é, desenganadamente, Deus. Deus é, na filosofia medieval, o centro das atenções e em face do qual se formulam todos os problemas filosóficos a debater, explorar e resolver. Mas Deus, na filosofia medieval, não é somente aquela entidade ou ser transcendental ou metafísico sobre o qual se exerce uma devoção. Deus é, para os filósofos medievais, uma “instituição”, ou seja, o Criador de tudo o que se tem e se move, formalmente, na face da terra. É a origem, o princípio e a fonte formal, por excelência, de todo o organismo social, político, econômico, jurídico e cultural pulsante na sociedade dos homens307. Eis, portanto, os principais aspectos que perfazem, ao menos em parte, o que podemos conceber por filosofia medieval. Não se trata, pois, de uma pseudo ou falsa filosofia, mas de uma

306Cf. Questão 57, secunda secundae, da Suma Teológica. 307Cf. ETIENNE GILSON. In: A filosofia na idade média, p. 621.

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filosofia sólida cujas intensas investigações conduziram a soluções aceitáveis e adequadas que se revelam úteis e proveitosas até os dias de hoje.

Os períodos centrais da história da filosofia medieval

No tocante aos períodos históricos principais da filosofia medieval, podemos relacionar os seguintes: a) o período de estudo da doutrina greco-romana; b) o período de predomínio da patrística; c) o período efusivo da escolástica. Cada um desses períodos conserva suas peculiaridades e características intrínsecas, que abrangem conjunturas políticas, jurídicas e sociais especiais, como veremos a seguir. No primeiro período citado (estudo da doutrina greco-romana), ocorre o que Kaufmann denomina transição gradual entre a filosofia estóica e a filosofia cristã308. Nesse período, a doutrina do direito natural é preservada em seu assento fundamental segundo o qual o bem está cravado no coração dos homens como a base da ordem social e política, decorrendo, pois, da organização verificável nas próprias coisas da natureza. Essa concepção jusfilosófica, que teve em São Paulo e em Cícero seus principais expoentes, norteou a doutrina medieval do direito natural construída por Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, com as peculiaridades de cada qual. Trata-se de uma filosofia que tem na ordem da natureza (natureza propriamente dita) sua fonte irradiadora. O período da patrística, por sua vez, resultou do predomínio das lições e concepções dos padres da Igreja Romana, em que se inclui o próprio Agostinho. É na patrística que a doutrina agostiniana da vontade pautada na fé aufere sua grande importância na orientação da conduta social. Só a fé em Deus é capaz de conduzir os homens ao bem divino e à salvação, já que a pura razão humana está impregnada do pecado original e da consequente corrupção da natureza humana. Tal concepção pessimista da sociedade, segundo Del Vecchio309, não ofuscou, entretanto, a utilidade da filosofia agostiniana na formação e na organização social, política e jurídica da alta Idade Média. Nesse contexto, a comparação sempre inevitável entre a Cidade de Deus e a Cidade dos 308Cf. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas, p. 74. 309Cf. Lições de filosofia do direito, p. 591.

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Homens não é senão um bálsamo catalisador que promove a orientação do comportamento dos indivíduos e da missão secular que legitima o alcance e a manutenção do poder do Estado. A autoridade da Igreja Romana e de seus padres é, por assim dizer, o fio condutor de ingresso na Cidade de Deus (a eternidade do Céu e do Paraíso) para o alcance do qual o Estado tem significativa importância. Em outras palavras, a obediência dos titulares do Estado (Cidade dos Homens) à Igreja e seus padres é o caminho adequado que constitui a própria razão de ser do Estado e em face do que este logra alguma virtude, minimizando sua origem consequente ao pecado original. Aos padres da Igreja e à patrística em geral coube a sedimentação de um sentido honroso para o Estado a partir do direcionamento de suas ações para auxílio aos fins espirituais da Igreja e da salvação das almas. Desde que o Estado esteja subordinado à Igreja, estará razoavelmente justificada sua existência no mundo secular, atribuindo-se-lhe a utilidade que merecer. Acusa-se, entretanto, a patrística de ignorar a distinção entre a sociedade criada e o mundo de Deus ou, noutras palavras, entre o natural secular e o sobrenatural divino, o que fomentou injustiças como o emprego das práticas ordálias. A vida terrena e a vida eterna, assim, estão intensamente conjugadas, de modo que algo reputado como decorrência da crença em Deus era concomitantemente considerado para as soluções das pendências humanas. Crença e verdade empírica, enfim, se confundiam310. Por conta dessa conjuntura, o direito natural tornou-se dicotômico na filosofia patrísticoagostiniana. O direito natural primário é identificado com a ordem natural anterior ao pecado original, onde reina o paraíso e tudo é comum a todos em bens e virtudes. O direito natural secundário, por sua vez, é identificado com o período pós-queda, isto é, que se seguiu ao pecado original, onde a necessidade da propriedade privada e do governo para debelar a anarquia eram as instituições que, por imperativo natural, conduziriam a um mínimo de ordem. Foi no período da escolástica, por outro lado, que os dogmas reinantes na patrística foram mitigados, senão suprimidos. A reta razão passa a ser um dos institutos mais importantes desse período, onde as coisas emergentes do mundo empírico alcançariam especial relevo. Com raízes na 310Nesse sentido é ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE. In: História da filosofia do direito e do estado: antiguidade e idade média, p. 245.

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filosofia de Aristóteles, a escolástica teve no desenvolvimento da razão a base de seu conteúdo didático. Em outras palavras, não há escolástica sem a busca da explicação das coisas do mundo por meio do emprego da razão. E foi a universidade e os parlamentos o palco principal das manifestações dos filósofos escolásticos. O século XIII notabilizou-se como o tempo do surgimento e apogeu das universidades e do desenvolvimento do racionalismo. Segundo Jean Pépin, a causa da eclosão das universidades no século XIII fora especialmente o desejo dos letrados de defender interesses e ideologias comuns, através de associações corporativas311. O autor menciona a Universidade de Bolonha como a pioneira (onde predominavam os juristas), sendo logo depois criadas as Universidades de Paris e Oxford. Na Idade Média, a cultura e a civilização européias passaram por significativa transformação, tendo como base a doutrina cristã católica. A partir da baixa Idade Média, as descobertas científicas emergiram da efervescência da cultura e da necessidade de organização das cidades. Um novo mundo espiritual e cultural passara a constituir o dia-a-dia da comunidade. Aloysio Ullmann, com acuidade, indica as caracterísiticas mais relevantes dessa nova cultura: a) teocentrismo; b) unidade da fé, embora vulnerada por heresias; c) filosofia e teologia escolástica; d) hipertrofia do Pontificado e do Império; e) feudalismo, corporações e cruzadas; f) ordens mendicantes; inquisição; g) resgate da cultura clássica romana e grega312. Não é por outra razão que a escolástica constituiu-se no período mais efusivo do desenvolvimento das ciências e, com ela, da evolução do pensamento racional. Nesse contexto, a doutrina escolástica, capitaneada por Tomás de Aquino, pensava o engrandecimento do Cristianismo a partir de sua evolução rumo ao saber científico, o que não significava menoscabo, desautorização ou superação dos dogmas religiosos cristãos e da supremacia da autoridade de Deus e da Igreja. Assim é que a escolástica destacou-se como um saber de origem literária. Relacionava-se com os doutores e estudiosos em geral e estimulava a leitura e a pesquisa em tempo integral, tendo em Aristóteles um referencial dogmático por excelência. A escolástica, assim, representou o início de uma 311Cf. São Tomás de Aquino e a filosofia do século XIII. História da filosofia. De Platão a São Tomás de Aquino, p. 257. 312 Cf. A universidade medieval, p. 31. O citado autor bem identifica o ambiente cultural de então com a seguinte e oportuna indagação: “Não é, sob este aspecto, a Idade Média, um contínuo Renascimento?”.

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cultura voltada para o prestígio do saber científico, da pesquisa e da investigação. Numa época em que havia o predomínio intenso da doutrina da fé cristã católica, é fácil entender o porquê dos enfrentamentos entre cientistas pagãos e doutrinadores religiosos. A escolástica identificava-se naturalmente com a filosofia e a teologia porque concentrava um método de estudo voltado para a leitura de textos. Como bem assinala Urbano Zilles, não se conhecia o que se chama “culto dos laboratórios”, mas sim o “culto das bibliotecas”313. Entre as obras mais lidas e estudadas, a Bíblia talvez fosse a principal, do que resulta natural que as grandes disputas científicas envolvessem ciência e religião. O mesmo Urbano Zilles confere três (03) características essenciais à escolástica: a) doutrina e método baseados no ambiente teológico e filosófico reinantes nas escolas medievais; b) conteúdo nuclear de sua doutrina baseado na revelação cristã; c) conteúdo (de seu método) fundado na exegese e na exposição lógico-silogístico (disputatio). Embora a escolástica seja considerada um método originário sobretudo do pensamento cristão, é evidente que seu desenvolvimento é derivado também da influência das doutrinas judaicas e islâmicas, além da inequívoca influência do pensamento filosófico grego, destacando-se especialmente a filosofia de Platão e, posteriormente, de Aristóteles. A escolástica representou, portanto, a confluência entre teologia e filosofia. Esta confluência tornou-se nítida a partir da evolução da doutrina de conciliação entre fé e razão, preconizada por Tomás de Aquino. Com a escolástica tomista a teologia distanciou-se um pouco de sua natureza inicial eminentemente religiosa para, com auxílio da filosofia, aproximar-se de um conceito de ciência. Coube sobretudo ao aquinatense aglutinar teologia e filosofia, consequência direta de sua doutrina de conciliação e harmonização entre fé e razão, isto é, entre religião e ciência. Para isso, o método escolástico então vigente não somente facilitou a difusão da doutrina tomista, mas também lhe deu caráter científico e de aprendizado formal314. Temos para nós que o método escolástico - altamente proveitoso para o aprendizado e desenvolvimento da oratória e da lógica – mantém-se em sua base fundamental até os dias de hoje nas 313Cf. Fé e razão no pensamento medieval, p. 53. 314A propósito da confluência entre teologia e filosofia na Idade Média, vide ainda URBANO ZILLES. In: Fé e razão no pensamento medieval, op. cit., p. 56.

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universidades, sendo de grande utilidade nos cursos jurídicos e mesmo nas ciências sociais em geral. Sua influência se faz sentir mais precisamente no ensino contemporâneo da pós-graduação, em que o discente de cursos de especialização, mestrado ou doutorado nada discute ou escreve sem antes ter como norte um mínimo de leitura de livros, revistas e outras obras científicas sob prévia recomendação e orientação de um mestre. Também não se pode negar que o método escolástico-medieval de ensino repercute grandemente na seara dos debates e argumentos judiciais que hoje se adotam no Brasil e em outros países. Uma ou outra tese jurídica será tanto mais apta a ser acolhida quanto mais acentuado for seu poder de convencimento e sua base silogística adequada. Evidentemente que todos os debates terão como norte um padrão que constitui sua finalidade, qual seja, a busca da verdade dos fatos com o objetivo de aplicação correta da lei com vista à pacificação social. Aliado a isso está a menção das fontes de autoridade que seguramente dão suporte científico aos argumentos. Outrossim, nas audiências instrutórias dos processos, os depoimentos pessoais das partes e a veracidade dos testemunhos dependerão em grande medida da lógica e da segurança das declarações, algo que comporte a medida adequada das limitações e das virtudes humanas numa perspectiva perfeitamente factível. Por isso, não é exagerado aduzir que o método escolástico-medieval de ensino – em que pese despercebido na atualidade – é a base dos sistemas contemporâneos de descobrimento das verdades jurídicas315. Será mesmo difícil prever, a curto ou médio prazo, outro método que suplante o método lógico-escolástico de busca da verdade jurídica e mesmo real, ainda que se utilizando de todo o aparato tecnológico dos dias que correm. Não é exagerado especular, por processo lógico, que a estrutura atual do ensino da pósgraduação pode ter sido consequência direta da eficiência e êxito que a escolástica proporcionou ao ensino científico universitário, desde seu surgimento e apogeu no século XIII, destacando-se o período de ouro do magistério de Tomás de Aquino. 315 Sobre a verdade no direito, ANTÔNIO CAVALCANTE DA COSTA NETO, em saborosa monografia, realça o mito que encerra quando considerada numa clausura ou pureza que culmina por isolar a própria ciência jurídica. Tal maneira de entender a verdade não é alheia ao método escolástico tomista que já considerava também verdade uma teoria que se aproxima ao máximo da certeza do correto, justo e bom (Cf. Direito, mito e metáfora: os lírios não nascem da lei, p. 94).

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Francisco Carpintero ratifica que a hipertrofia e autoridade da razão foi uma das características marcantes da escolástica tomista316. Expõe que o entendimento da razão estava baseado na dicotomia entre razão prática e razão teórica. A razão teórica consubstanciava uma faculdade que conduzia ao conhecimento cognoscitivo. Assim, os dados que extraímos das coisas observadas pelos nossos sentidos compõem a razão teórica que assimilamos. A razão prática, por sua vez, é a que reclama aquilo que havemos de fazer em vista dos dados que nos proporciona a razão teórica. Equivale dizer que a razão prática encerra o exercício das faculdades criadoras do homem. Na escolástica tomista vê-se o desenvolvimento da razão prática mais que da razão teórica. A vontade consequente à razão prática é, pois, resultado de uma potência inteligente do homem, potência esta que a própria natureza dirigiu ao homem para o sentido do bem e não do mal. Em outras palavras, a inteligência natural do homem é sempre dirigida à formulação e promoção do bem, de modo que o não-bem (ou, para alguns, o mal) é algo não-natural às faculdades cognoscitivas do homem. O “mal” supõe, assim, algo alheio à natureza em geral e, por conseguinte, à natureza do homem. A razão prática, portanto, emerge das faculdades cognoscitivas potenciais do homem para conduzi-lo ao caminho da criação do que é (naturalmente) bom, correto e justo. É nesse sentido que a escolástica tomista rompe com o que podemos conceber como a estagnação contemplativa das coisas (razão teórica), alterando as coisas a partir da ação criadora do homem, ação criadora esta naturalmente voltada para o bem, o justo e o correto. Carpintero sustenta ademais que o confronto da razão teórica com a razão prática é a base da teoria moral que vingou no Medievo tomista a partir de uma nova concepção do intelecto humano proporcionada pela escolástica317. O intelecto humano passara, destarte, de um estágio inicial de mera assimilação para um estágio avançado de percepção com vista à ordenação das ações do homem. Tomás de Aquino concebera ademais a idéia de que o bem e o mal não são senão definições emergentes de uma classificação menos qualificada que o homem conferiu ao justo e ao 316 Para o autor “La noción de razón que llega hasta el siglo XVII, esto es, la de la Antiguedad y Edad Media, estaba basada em el juego de la razón teórica y la razón práctica” (Cf.Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros escolásticos, p. 45). 317 Cf. Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros escolásticos, op. cit., p. 48.

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correto. Noutro dizer, havendo sempre algo de bom naquilo que não é bom, o homem retém em si (pensamentos, atos etc.) apenas o que é bom nesse particular e, assim, incorre em injustiças, pecado etc. O homem, assim, superdimensiona a “parte” boa do que efetivamente (no todo) é mal318. Essa explicação formulada por Aquino acerca do bem o do mal também representou inovação em face do sentido pejorativo que se atribuía à dicotomia bem-mal, rompendo, de certa forma, com o rigor da doutrina voluntarista anterior à escolástica tomista.

Contribuições da filosofia medieval para o pensamento jusfilosófico contemporâneo

Na contemporaneidade, o direito é cultivado como uma ciência especialmente autônoma, quase sempre confundida com instrumentos e procedimentos constitutivos do conteúdo do direito positivo319. Nesse contexto, falar em direito é referir-se sobretudo a métodos construídos por grupos de homens para superação de problemas subjacentes à busca do poder e/ou do domínio. Esse modelo de direito-poder ou direito-domínio tem causado complexidades e desacertos que fulminam a natureza própria do direito e as proposições do direito-justo bem delineadas pelos pensadores medievais. Pôr o direito à mercê de fatores e interesses político-partidários, econômicos ou de falsas ideologias e valores é conspirar contra sua essência de objeto do justo, coreto e bom. O direito tanto mais se elevará quanto mais tiver voltado ao sentido do justo bem cultivado no Medievo tomista. Não se trata, é claro, ao contrário do eu pensarão alguns, de verter o direito numa pura categoria teológico-filosófica. Trata-se de atribuir ao direito as qualidades que lhe são ínsitas, isto é, as qualidades de uma ciência (ou não) que esteja voltada para o bem-justo da humanidade. A metodologia medieval-tomista idealizada para o direito sem dúvida resgata as qualidades que nunca deveriam ou devem ser olvidadas pelos cultores do direito, porque ela é alicerçada na natureza própria do homem feito criatura de Deus e, por isso, voltado naturalmente para o bem e para a 318 CARPINTERO anota que “Todo esto se complica por nuestra relativa incapacidad para distinguir lo bueno y lo malo, pues Tomás entendia que en casi todo lo bueno hay algo de malo, y en casi todo lo malo hay algo de bueno; en tal caso el hombre tiende a lo que es malo ‘porque retiene algo de bueno’ y es que el pecador es una persona que actúa mal porque prefiere el bien de menos calidad” (Cf. Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros escolásticos, op. cit., p. 48-49). 319 Nesse sentido, vide ROBERT ALEXY em Begriff und Geltung des Recht, Freiburg-München: Alber, 1992.

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ordem natural das coisas. Noutro dizer, o direito-justo que informa a doutrina tomista do direito natural é, em essência, a melhor qualificação que se pode atribuir ao direito enquanto pretensa ciência humana. Já no Medievo, Tomás de Aquino enfrentou problemas jurídicos tão complexos quanto os que os juristas da atualidade enfrentam e com uma escassez de recursos e auxílios muito maior que nos dias de hoje. Basta mencionar a questão d furto famélico (Questão 66, Artigo 7, secunda secundae, da Suma), do aborto (Questão 118, Artigo 2, prima secundae, da Suma), da atuação do Juízes (Questão 60, Artigos 1 a 5, secunda secundae, da Suma), da legitimidade dos titulares do poder (Questão 96, Artigo 5, prima secundae, da Suma), dentre muitas outras. Nem por isso, o direito foi corrompido em relação àquilo que lhe é mais caro: o justo racional subjacente à natureza e á ordem natural que o Criador revelou ao homem por meio do direito natural. Diante disso, a grande contribuição jurídico-metodológica dos pensadores medievais para a contemporaneidade está principalmente no resgate da natureza própria do direito, natureza esta que reclama estudo e aplicação do direito como instrumento de realização da justiça. Com isso, estar-se-á pondo o direito no lugar natural que possui e para que foi criado, constituindo sua própria razão de ser. Com efeito, o direito natural de Tomás de Aquino encerra uma categoria metodológica que vem oportunamente dissipar incongruências e heresias que hoje conspiram acentuadamente contra o direito e sua essência. Exemplos se sucedem no dia-a-dia judiciário que definitivamente causam grande alvoroço no tocante ao que efetivamente devemos apreender em termos de “direito” (contrário do torto e do errado). Normas jurídicas que deturpam as posições de credor e devedor, de vítima e criminoso, de honesto e ímprobo são reflexos dessa perversão do direito320.

320Em matéria processual civil, por exemplo, o artigo 649 do Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/73) e a Lei nº 8.009/94 tornam impenhoráveis praticamente todos os bens dos devedores, conspirando contra a ordem natural segundo a qual o patrimônio do devedor deve ser destinado ao pagamento das dívidas que voluntariamente contraiu. Em matéria processual penal, o instituto do habeas corpus, previsto nos artigos 647 e 648 do Código de Processo Penal, é quase sempre permissivo automático concedido a autores de crimes graves para permanecer indefinidamente em liberdade, conspirando contra a justiça comutativa. Em matéria eleitoral, por conduto do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65), titulares de governo e parlamentares já condenados em regular processo judicial de improbidade continuam no exercício do cargo executivo ou legislativo até o epílogo de longos e intermináveis recursos (artigo 216), sob a ilógica e falsa premissa de que todos, ainda que sucessivamente condenados, são presumivelmente inocentes.

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Situações de perversão do direito-justo (dar a cada um o que é seu na medida de seus méritos e deméritos) culminam com a utilização do direito para fins nocivos à conivência social, transformando-o em base científica, dita legítima, de dominação, opressão e injustiças. O quadro desolador que desafia o direito do nosso tempo pode e deve ser alterado a partir da superação do preconceito desmesurado proposto a tudo que diga respeito à Idade Média. A cultura jurídica medieval não deve ser confundida com os processos ordálios nem com uma teologia transcendental supostamente cultivada sob interesses deselegantes da Igreja Romana. Ao menos no que toca à jusfilosofia de Tomás de Aquino, o direito alcançou prestígio dogmático e axiológico muitas vezes conflitantes com a doutrina da Igreja. Basta relembrar a refutação de Aquino aos padres da Inquisição, como se observa da Questão 64, Artigo 4, secunda secundae, da Suma Teológica321. A história da filosofia medieval nos revela, efetivamente, um modelo metodológico que representa um ponto de partida fundamental para qualquer direito que se pretenda compatível com as ciências humanas e legitimado pela natureza racional do homem. A invocação de Deus como requisito medular do direito medieval não é senão um qualificativo que, no Século XIII, ostentava a mesma importância que os consensos democráticos talvez ostentem nos dias de hoje na civilização ocidental Fato é que, seja qual for o tempo e lugar, há um direito comum a tudo e a todos, cujo mérito está na especial homenagem que devota à ordem natural das coisas sobre as quais o homem deve militar. Enfim, é direito legítimo aquele que compele o devedor a pagar suas dívidas, que pune comutativamente os autores de delitos, que afasta sumariamente o príncipe que se divorcia da promoção do bem comum. Direito é, portanto, o objeto da justiça, na melhor estrutura jurídicometodológica medieval.

Considerações finais

321 Sobre os julgamentos conduzidos por clérigos, conforme a citada Questão 64, Artigo 4, secunda secundae, da Suma, TOMÁS afirma: “Aos clérigos não é lícito matar, por dupla razão. 1º São escolhidos para o serviço do altar, no qual se representa a paixão de Cristo imolado, ‘que, ao ser espancado, não espancava’. Portanto, não compete aos clérigos espancar e matar (...). 2º Outra razão é que aos clérigos se confia o ministério da Lei Nova, que não comporta pena de morte ou mutilação corporal”.

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Ao que vislumbramos dos fatos e avanços do mundo medieval, surpreende-nos a pertinência da temática em meio às disciplinas e atividades jusfilosóficas em voga no mundo ocidental. O sistema de liberdades e deveres básicos que integra constituições e leis não se distingue, em seu âmago, ao menos teoricamente, das noções do justo e do correto que permeavam o direito natural medieval. Institutos jurídico-filosóficos hoje elevados a princípios constitucionais não são senão uma reprodução, às vezes literal, daqueles construídos desde o Medievo tomista. Exemplos lapidares são os preceitos de justiça social que norteiam variados sistemas jurídicos (vide, v.g.,os artigos 1º e 3º da Constituição Federal do Brasil). Quando se observa retrospectivamente o Século XIII nem sempre se reconhece o fato de que os pensadores medievais foram inovadores e precursores de uma nova concepção teológicofilosófica, com imbricações jurídicas que desafiam e avançam no tempo e corrigem injustiças de normas artificiais. É tempo, pois, de se redescobrir o pensamento filosófico medieval, inclusive com atenção à sua exitosa história, rompendo com a cultura descabida e reproche ao Medievo. Com idéias e ações extraordinariamente empíricas e, como tal, contemporâneas, os medievais são induvidosamente autoridades culturais também no nosso tempo.

Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert. Begriff und Geltung dês Recht, Freiburg-München: Alber, 1992. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, São Paulo: Edições Loyola, 2005. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. História da filosofia do direito e do estado: antiguidade e idade média, São Paulo: Antônio Fabris, 2011. CARPINTERO, Francisco. Justicia y ley natural: Tomás de Aquino y los otros escolásticos, Madrid: Servicio de Publicaciones de La Facultad de Derecho de La Universidad Complutense de Madrid, 2004.

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COSTA NETO, Antônio Cavalcante da. Direito, mito e metáfora: os lírios não nascem da lei, São Paulo: LTr, 1999. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito, 5ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1979. GILSON, Etienne. A filosofia na idade media, São Paulo: Martins Fontes, 2005. KAUFMANN, Arthur. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999. PÉPIN, Jean. São Tomás de Aquino e a filosofia do século XIII. História da filosofia. De Platão a São Tomás de Aquino, vol. I, Lisboa: Dom Quixote, 1995. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A universidade medieval, 2ª ed., Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. ZILLES, Urbano. Fé e razão no pensamento medieval, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.

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O PAPEL DA ECCLESIA NA LEGITIMAÇÃODO REX VISIGOTHORUM RECAREDO E NA DESCONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE HERMENEGILDO Cynthia Valente322

Córdoba, fevereiro do ano do senhor de 584. Hermenegildo está refugiado em uma Igreja Católica. Ao seu encontro chega seu irmão e antagonista Recaredo, vencedor da guerra civil que assolou o reino visigodo de Leovigildo entre 579 e 584. O irmão leva Hermenegildo até seu pai, em Toledo, sede do reino visigodo, onde, segundo as fontes, o filho derrotado ajoelha-se e pede perdão ao pai. O rei Leovigildo, então, levanta, beija o filho, mas o despe de suas vestes reais e o manda em desterro para Valência. Ao que consta, o pai envia um sacerdote ariano para forçar a conversão de Hermenegildo, esse recusa e acaba sendo enviado à Tarragona, onde permanecerá preso. Ali, em 585 é decapitado por um godo de nome Sisberto. Em 587, com a morte de Leovigildo, Recaredo assume o trono visigodo e buscando o apoio do clero católico, se converte e, durante o III Concílio de Toledo, em 589, transforma o Catolicismo em religião oficial. Recaredo era agora é um rex visigothorum, apoiado pelo clero católico. Essa transformação não seria tão estranha se, pouco tempo atrás ele não fosse o antagonista do auto-intitulado rei católico Hermenegildo, que a essa altura já não era mais lembrado como mártir, mas que agora era reconhecido apenas como um déspota que traíra o próprio pai. A manipulação da imagem dos dois irmãos teve total participação do clero católico. Dotados de grande erudição, esses clérigos católicos, e principalmente os bispos, tinham papel de destaque na comunidade, eram formadores de opinião e propagadores da ideologia vigente, ideias que encontravam acolhida em meio a uma população em grande parte iletrada. Pretendemos mostrar aqui a participação da ecclesia visigoda nos âmbitos do poder real visigodo.

322

Mestranda em História NEMED/UFPR –[email protected]

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Começaremos pelo papel de grande importância que teve o Bispo Leandro de Sevilha na conversão católica de Hermenegildo. Em 573, Hermenegildo e seu irmão Recaredo, foram proclamados pelo pai, consortes régios. O primeiro foi enviado em 579 para as províncias do sul, recém conquistadas e com forte presença hispano-romana, para que as administrasse. Juntamente com ele, foi sua esposa Ingunda, neta de sua madastra Gosvintha, e filha de Brunilda, a esposa do rei austrasiano Sisberto. Ingunda era católica, fato que levou primeiramente à uma situação muito conflituosa com sua avó ariana, o que favoreceu sua aproximação com o Bispo Leandro de Sevilha, um ardoroso católico. Portanto, a conversão de Hermenegildo ao Catolicismo era uma questão de tempo. Várias foram as motivações da guerra civil que se seguiu. O filho rebelde teve o apoio da aristocracia hispano-visigoda do sul que estava sob jugo de Leovigildo. Esse grupo era majoritariamente católico. A rivalidade entre católicos e arianos, que perdurou por muito tempo na Península Ibérica, tinha também relação com uma questão de identidade. Os Godos enxergavam no Catolicismo uma questão identitária, para eles essa fé estava ligada aos hispano-romanos, por isso o marco de identidade estava no Arianismo. Desde a conversão dos Godos pelo Bispo ariano Ufila, essa fé permanecia como uma característica de identidade desses bárbaros, em diferenciação com a fé católica hispano-romana. Uma outra questão a ser levada em conta foi a relação que a rainha Gosvintha, madastra de Hermenegildo, mantinha com sua neta Ingunda, que também era a esposa do rebelde. Todas as tentativas de conversão forçada e agressão física sofridas pela princesa austrasiana por sua avó, podem ter contribuído para formar uma rede de intrigas que alimentou o antagonismo entre pai e filho. O historiador Santiago Castellanos ainda levanta a hipótese de uma conexão austrasiana, na qual Gosvintha teria tramado para que Hermenegildo se rebelasse contra o pai e garantisse o poder para a linhagem de Atanagildo, nesse caso, a questão religiosa ficaria em segundo plano, pois o que interessava era a sucessão do reino. A guerra então teria tido uma motivação sucessória323.

323

CASTELLANOS, S. Los godos y la cruz. Recaredo y la unidad de Spania. Alianza

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O apoio do poderoso Leandro de Sevilha também foi fundamental. A ligação do bispo e de Ingunda era grande, tanto que ele batizou e converteu Hermenegildo. Além disso, o grande apoio que esse filho de Leovigildo teve no sul se deu graças à influência de Leandro de Sevilha na comunidade hispano-romana. Leandro era um grande combatente da heresia ariana, sempre pronto para lutar pela conversão de infiéis. Portanto, era uma figura politicamente antagonista do rei ariano. Ao que sugerem as fontes, ele procurou o apoio do Império Bizantino. O fato é que, entre os anos de 579 e 586, o bispo sevilhano viajou para Constantinopla. Sobre tal viagem muito se especulou. Obviamente, Leandro viajou em busca de apoio militar de Bizâncio para Hermenegildo. Constantinopla estava envolvida em outras pelejas e não deu atenção imediata ao caso, mas acabou cedendo e prometeu apoio logístico. Esse apoio não chegou, pois Leovigildo soube da intenção de Leandro e acabou comprando a neutralidade bizantina com ouro. Interessante levantar aqui o fato de que Isidoro silenciou com relação à viagem do irmão Leandro à Constantinopla. Tal atitude por parte do grande Isidoro foi intencional.A situação se invertera, Recaredo tornara-se o rex visigothorum e transformara a religião católica em credo oficial do reino em 589 durante o III Concílio de Toledo presidido por Leandro de Sevilha. Obviamente, Isidoro manipulou o registro da ligação do irmão Leandro com Hermenegildo, inclusive este último foi tratado por ele como tirano e traidor. A manipulação da informação por parte do clero demonstra claramente a participação do mesmo no fortalecimento da imagem do Reino Visigodo sob a coroa de Recaredo. Percebemos, portanto, que a revolta liderada por Hermenegildo visava a usurpação do trono das mãos do rei Leovigildo, e que mesmo enfrentando essa guerra, esse último conseguiu ao final do seu reinado, garantir a hegemonia visigoda sobre a Hispania, como nos mostrou o historiador Renan Frighetto324. Editorial. Madrid, 2007. FRIGHETTO, R. A antiguidade tardia. Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações. Séculos II-VIII. Juruá: Curitiba, 2012. p.170. 324

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Tais transformações, que a monarquia visigoda sofreu nas últimas décadas do século VI, teve total participação de membros influentes do clero católico. A ecclesia desse período na Hispania possuía membros de alta erudição. Fora das camadas mais altas da sociedade visigoda, leia-se a aristocracia e o clero, o restante da população era praticamente iletrado. Isso fez com que a camada eclesiástica fosse vista como uma liderança natural no interior de suas comunidades. Posição cada vez mais interessante e que passou a ser mais incentivada pela ecclesia. Tanto que a preocupação com a instrução do clero torna-se presente desde os primeiros concílios. Os monastérios construídos no território ibérico funcionaram perfeitamente como centro de formação desses clérigos. A partir do período não seriam mais admitidos sacerdotes analfabetos. Essas e outras exigências começam a ser cobradas a partir do IV Concílio Toledano, celebrado em 633, quando ficaram proibidos a assumir o cargo de bispo, além dos iletrados, os culpados de algum delito, praticantes de heresia ariana, batizados ou rebatizados nela, aqueles que sofreram algum tipo de desonra natural ou imposta, os que foram casados duas vezes, os que foram casados com viúvas, os que tiveram amantes, os escravos, os membros dos serviços civis e militares e os homens menores de quarenta anos325. O candidato deveria também ter passado por todos os cargos eclesiásticos e teria que ser eleito pelo povo e pelo clero de sua cidade. Além da consagração, que devia contar com a participação de três bispos em uma cidade escolhida pelo metropolitano326. Todas essas exigências para a nomeação de um bispo eram mais do que coerentes com o papel que a ecclesia vinha construindo dentro da comunidade hispano-visigoda. A melhor formação de clérigos se daria a partir de uma eficaz propagação da ortodoxia católica, e a sua consequente e futura participação no poder do reino. A união de forças que provavelmente ocorreu entre o Bispo Leandro de Sevilha e Ingunda teve como objetivo a conversão e o batismo de Hermenegildo e a penetração católica no seio da nobreza visigoda.

325 326

THOMPSON, E.A. Los Godos en España. Alianza Editorial: Madrid, 2007. p.349. Livre tradução. Ibid. p.350. Livre tradução.

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Com a derrota dessa empreitada, os clérigos católicos, como Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilha, trataram de manipular a participação de Leandro e de membros da ecclesia na frustrada rebelião. Finda a guerra civil, o rei Leovigildo manteve o Arianismo como credo oficial do reino, o que ainda criaria divisões internas na aristocracia nobiliárquica. Com sua morte, em 586, e a ascensão ao trono do seu filho Recaredo, essa situação começou a se modificar. Em 587, o novo rei se converte ao Catolicismo, primeiro passo para unir os segmentos aristocráticos visigodo e hispano-romano. Era de suma importância conquistar o apoio do clero católico que tinha figuras de grande influência como Leandro de Sevilha. Por isso a necessidade de construção de uma nova imagem para o reino e para aqueles que estiveram de alguma forma envolvidos com a guerra. Isidoro de Sevilha, em seu Las Historias de los Godos, Vándalos y Suevos, trata de minimizar o antagonismo do irmão Leandro com o rei Leovigildo, dizendo que esse era muito impiedoso, perseguia os católicos e relegou vários bispos ao desterro, além de confiscar bens da igreja 327. Ao mesmo tempo, qualificou Hermenegildo como usurpador328. Havia um projeto em construção que começou com Leovigildo, cujas arestas foram aparadas por Recaredo, que seria a união hispano-visigoda sob o Reino Toledano, com o auxílio de uma única fé. A conversão de Recaredo foi ao encontro dessa proposta de reino. Sua conversão teve como objetivo um reino unido em uma só religião. O objetivo do monarca era trazer para o reino o apoio dos clérigos católicos e da aristocracia hispano-romana que professava essa fé. A imagem de Recaredo retratada por Isidoro de Sevilha na História dos Godos, Suevos e Vândalos, é exatamente a de um príncipe da igreja. Segundo ele, o monarca em nada lembrava o pai Leovigildo; enquanto esse dominava pela espada, o filho usava a fé. Isidoro ainda afirma que

327

ALONSO, C.R. Las Historias de los Godos, Vándalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Estúdio, edición critica y traducción. Centro de Estúdios e Investigación. León, 1975.p.257. 328 Ibid. p.255. Livre tradução.

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Recaredo, com sua conversão, foi responsável por apagar a mancha da história dos Godos, o Arianismo329. A partir da conversão de Recaredo, o clero católico assume uma posição de muita influência na corte régia. Situação que, apesar da grande influência dos bispos nas comunidades, ainda não fazia com que esses fossem vistos com simpatia pelos monarcas arianos. Juan de Bíclaro, clérigo católico, contemporâneo dos irmãos Leandro e Isidoro de Sevilha, Bispo de Girona, teve grande influência na construção da imagem dos irmãos antagonistas.Não podemos esquecer que os bispos católicos tiveram um papel decisivo tanto na conversão de Hermenegildo, quanto na conversão de Recaredo e do próprio reino. Não nos parece exagerado enxergar nas obras de Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilha, materiais altamente ideológicos que estavam a serviço de um propósito. Na Cronicae, obra escrita pelo Bispo de Girona, ele atribuiu à rainha Gosvintha o papel de instigadora da guerra sucessória que se seguiu. Ela teria ficado furiosa com a conversão do enteado ao Catolicismo pelo Bispo Leandro de Sevilha, e teria apelado ao rei pela unidade330. Podemos supor que dificilmente o rei Leovigildo ficaria inerte diante da conversão de seu filho Hermenegildo ao Catolicismo. Mesmo com a influência darainha Gosvintha, o rei sentiu que seu reinado poderia ruir devido ao apoio que os católicos dariam a ele. Juan de Bíclaro, assim como Isidoro de Sevilha, responsáveis pela transmissão da história oficial goda à época do rex visigothorum Recaredo, utilizaram os termos tyrannum filium331, para Hermenegildo. O termo dá margem à interpretação de que Hermenegildo assumiu ilegitimamente o trono, imagem essa que deveria entrar em harmonia com a história oficial goda escrita por Juan de Bíclaro e mais tarde por Isidoro de Sevilha. Com isso, a conversão ao Catolicismo e o martírio de Hermenegildo serão postos de lado nos trabalhos dos dois bispos.

329

Ibid. p.261. Livre tradução. CAMPOS, J. Juan de Biclaro Obispo de Gerona. Su vida y su obra. Consejo Superior de Investigaciones Científicas. Madrid, 1960. p.132 331 Ibid. p.132. 330

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A ecclesia inaugurava uma época de entrelaçamento com o poder régio, ao assumir para si a tarefa de construção de uma unidade católica régia no trono visigodo. Em 589, o Bispo Leandro de Sevilha preside o III Concílio Toledano, que transformará, pelo aval do rex visigothorum Recaredo, o Catolicismo em religião oficial. Os antagonistas agora tinham o mesmo objetivo e serviam à mesma causa. A essa altura, Hermenegildo era uma lembrança desagradável tanto para o clero quanto para o poder régio. Segundo ressalta Thompson, durante o III Concílio de Toledo nada foi dito de maneira direta ou indireta sobre Hermenegildo e seu martírio332. A manipulação da memória estava em mãos hábeis. A história dos Concílios Toledanos começa no século IV. O primeiro realizou-se em 397, e teve como tema principal a condenação das heresias e a reafirmação do credo niceísta, já que esse tinha se tornado a vertente teológica oficial do Império em 380. Nesse período, os clérigos católicos eram tolerados dentro da Hispania ariana apenas por benevolência do rei. Essa insegurança católica pode ser percebida nesses primeiros encontros, nos quais o clero sempre agradecia a benevolência do rei por permitir a sua realização. Já o III Concílio Toledano tem uma natureza totalmente distinta. O clero católico já apresentava bastante poder. Apesar dos concílios serem convocados somente pelo rei e com a anuência deste, bispos e padres gozavam de muita autonomia e influência dentro das comunidades, inclusive podemos arriscar dizer que tanto o poder régio quanto o poder da ecclesia, estavam em igualdade de forças. A realidade é que a partir da conversão do reino e da construção da imagem do rex visigothorum, clero e monarquia dependerão um do outro, mesmo com rusgas entre seus máximos expoentes. Um bom exemplo sobre essa medição de forças é o caso do Bispo Metropolitano Ildefonso de Toledo, que assume em 657 a sede do bispado, mas durante o período em que esteve à frente da Igreja Toledana, nenhum concílio foi convocado pelo rei Rescesvinto. Somente após a morte do bispo, em 667, é que o monarca convocará uma nova reunião. Provavelmente por divergência entre ambos. O Bispo Ildefonso de Toledo era proveniente do grande Mosteiro de Agali, famoso centro de saber e formação de grandes nomes da igreja como Isidoro de Sevilha. O irmão mais novo do Bispo

332

THOMSON, E.A. Los Godos en España. Alianza editora. Madrid, 2007. p. 120. Livre tradução.

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Leandro assumiria a dianteira na tarefa de construção de uma única identidade dentro da Hispania visigoda. Em A História dos Godos, Vândalos e Suevos, de Isidoro de Sevilha, nota-se já no começo a proposta de união dos povos de diferentes origens que habitavam o reino visigodo. Já no início da obra, Isidoro clama pela Espanha, terra sagrada e mãe de príncipes e povos.333 A obra, de claro matiz ideológico, cita Hermenegildo como usurpador do reino. Apenas uma linha é dedicada para tratar de uma guerra que durou 5 anos e sobre o fato de que seu irmão estava totalmente envolvido com o “príncipe usurpador”. O nome de Leandro de Sevilha não é ligado a Hermenegildo em nenhum momento, assim como o episódio de seu martírio sequer é lembrado. Ao final, há uma comparação entre o rei ariano Leovigildo e o rex visigothorum Recaredo. Falase muito das virtudes do mesmo, e do quanto ele é diferente do pai, para melhor, exaltando sua bondade e fé. Para Hermenegildo, nenhuma palavra. Os feitos de Recaredo são citados de forma a que não restem dúvidas de como esse monarca católico era valoroso, e para tanto, seu passado ariano e a guerra contra o irmão católico acabaram sendo totalmente suprimidos. Recaredo é ainda tratado como um príncipe religiosíssimo.334 As guerras das quais ele participou são justificadas também por Isidoro, pois eram contra povos inimigos do reino e contavam com total apoio da fé. Segundo o bispo, o rex visigothorum Recaredo era tão amável, delicado e de notável bondade, seu rosto refletia tanta benevolência e tinha em sua alma tanta benignidade, que influía no espírito de todos, inclusive ganhava o afeto e o carinho dos maus!335 Portanto, diante de um Recaredo dotado de tamanha perfeição, não haveria contexto para narrar a história de Hermenegildo como mártir. Conclusões Parciais O período histórico em que se situa o Reino Visigodo de Toledo pode ser chamado de Antiguidade Tardia. Um período de transição e de ruptura política dentro do Império Romano. O historiador Renan 333

ALONSO,C.R. Las Historias de los Godos, Vándalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Estudio, edición critica y traducción. Centro de Estúdios e Investigación. León, 1975. 334 Ibid.p.263. Livre tradução. 335 Ibid.p.267. Livre tradução.

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Frighetto chama a atenção para essas transições que ocorreram no Mediterrâneo, cronologicamente, entre os séculos III e VIII.336 Um período no qual se formou a monarquia romano-bárbara na Península Ibérica, em que elementos hispano-romanos foram se misturando aos elementos Godos. Um período no qual o Catolicismo, como ocorreu em outros lugares da Europa, vinha ganhando espaço entre pagãos e heréticos. Mas essas rupturas não foram tranquilas. No que se refere à conversão do reino ao Catolicismo menos ainda. Antes confinadas, em sua maioria, na província de Bética ao sul, onde hoje é a Andaluzia, a aristocracia hispano-romana e católica viu no príncipe Hermenegildo uma forma de chegar ao trono, pois, insuflado pela esposa católica Ingunda e pelo Bispo Leandro de Sevilha, se converteu e reclamou o trono para si. Esse apoio dos grupos aristocráticos e nobiliárquicos do sul a Hermenegildo não passou despercebido a seu irmão Recaredo. Uma das motivações de sua conversão e a do reino foi angariar o apoio desses grupos bem como o do clero católico. Além disso, interessava a ele a construção de uma imagem real onde seu poder fosse amparado por algo divino e incontestável. A construção de um modelo de príncipe serviria para justificar essa realeza divina. O clero católico viu na aliança com Recaredo a possibilidade de chegar ao poder e impor o Catolicismo aos demais súditos reais, enterrando de vez o Arianismo que tanto os incomodava. Obviamente seria necessária toda uma construção identitária para o novo modelo de rei e de reino. Não cabia então o fato do novo monarca estar ligado à uma guerra onde ele lutou contra seu irmão e mártir católico. Daí, portanto, a necessidade de manipulação da história por parte de Juan de Bíclaro e Isidoro de Sevilha. A mudança de fé no reino não se deu rapidamente. No interior, os cultos pagãos continuaram atuando por muito tempo até que a ecclesia se fortalecesse e passasse a espalhar monastérios e com

FRIGHETTO, R. Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Juruá. Curitiba, 2005.p.20

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eles a sua própria ortodoxia. Muitas pessoas que continuaram praticando a fé ariana passaram a ser pressionadas e suas igrejas foram convertidas em católicas. Mas o Catolicismo não retrocedeu, aos poucos a ecclesia se fortaleceu e se constituiu enquanto instituição, passando de uma comunidade para uma Igreja Católica de culto niceísta, a nova ortodoxia oficial. Quando a rusga teológica entre Oriente e Ocidente começou a dar sinais de fortalecimento, o então Papa Gregório Magno, que foi amigo do Bispo Leandro de Sevilha enquanto era Bispo de Roma - e no momento preciso em que se desenrolava a guerra civil visigoda -, escreveu um texto onde defendia a presença de uma grande quantidade de santos e mártires - a cristandade ocidental precisava dos seus para se comparar à oriental e seus inúmeros santos e mártires. Nesse ponto, a conversão e o martírio de Hermenegildo foram resgatados no texto Diálogos do Papa Gregório Magno, dando-nos outra versão dos acontecimentos, diferenciando-se das fontes oficiais que apagaram da memória a história de um príncipe e elevaram a rex visigothorum a figura de outro.

Referências Bibliográficas

ALONSO, C.R. Las Historias de Los Godos, Vándalos y Suevos de Isidoro de Sevilla. Estúdio, Edición Critica y Traducción. Centro de estúdios e Investigación. León,1975 CAMPOS, J. Juan de Bíclaro Obispo de Gerona. Su vida y su obra. Consejo Superior de Investigaciones Cientificas: Madrid, 1960 CASTELLANOS, S. Los Godos y la Cruz. Recaredo y la Unidad de Spania. Alianza Editorial. Madrid, 2007

CASTRO, Ma. R.V. Ideología, Simbolismo y Ejercicio del Poder Real en la Monarquia Visigoda: Un Proceso de Cambio. Ediciones Universidad de Salamanca. Salamanca, 2000

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FRIGHETTO, R. Antiguidade Tardia. Roma e as Monarquias Romano-Bárbaras numa Época de Transformações. Séculos II-VIII. Juruá Editora. Curitiba, 2012 ____________. Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Juruá Editora. Curitiba, 2005 ORLANDIS, J. Estudios de Historia Eclesiástica Visigoda. EUNSA. Pamplona, 1998 RUIZ, J.C. e MELIA,I.R.San Leandro, San Isidoro y San Fructuoso. Reglas Monásticas de la España visigoda. Los tres libros de las “Sentencias”. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid, 1971. SERRANO, R.S. Historia de Los Godos. Una Epopeya Historica de Escandinavia a Toledo. La esfera de los Libros. Madrid, 2009 THOMPSON, E.A. Los Godos en España. Alianza Editorial. Madrid, 2007 VIVES, J. Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos. Barcelona-Madrid, 1963

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A MEMÓRIA COMO ATO EDUCATIVO Divania Luiza Rodrigues Kono337 Terezinha Oliveira338

Refletir sobre a importância histórico-educacional da memória é relevante para conhecermos o valor educacional atribuído à memória pelos homens do passado, como os do século XIII, bem como para a reflexão atual, na qual a memória, como capacidade intelectiva é percebida como pouco necessária até mesmo em ambientes escolares. Lauand (1998, p. 1) ao se referir ao potencial educativo dos sermões de Santo Agostinho (354430) localiza a importância da memória como principal instrumento de aprendizagem naquele momento. O autor afirma que “Ao contrário da pedagogia atual, que não valoriza e até chega a desprezar a memória, muito mais do que a mera faculdade natural de ‘lembrar-se’ ou o exercício de habilidades mnemônicas, era vista como a base de todo o relacionamento humano com a realidade”. Devemos considerar o fato da escassez de recursos de escrita para a época, em que até a escrita manual era dificultosa. Neste caso, ter os textos na memória era imprescindível para que a pregação e a aprendizagem fossem realizadas. Entendemos que pela leitura do passado, buscamos elementos para compreender o homem em sociedade. Todavia, essa busca ao passado é orientada pelo olhar e por perguntas do presente. Marc Bloch (2001, p. 55) – medievalista e um dos fundadores junto com Lucien Febvre, em 1229, da Revista Annales - entende a história como a "ciência dos homens" e acrescenta "dos homens no tempo". Para este historiador, o objeto da história não é o passado e não se resume na acumulação de acontecimentos, mas é preciso compreender os fatos ao longo do tempo, estabelecendo suas relações com o presente.

337

Mestrado em Educação. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPE/UEM). Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected] 338 Pós-doutorado na área de História (USP, 2005). Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected]

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Destacamos, com essas reflexões, que o contexto atual de rapidez e de muitas informações apresenta novos desafios de preservação da memória, portanto, novos desafios ao campo educacional, que tem como uma de suas características fazer lembrar o passado. A memória, enquanto preservação do que é ou foi importante para o coletivo dos homens, ainda é consenso. A necessidade de preservar a memória, o passado que nos identifica como homens de nosso tempo constituem-se como elemento educativo fundamental. Neste sentido, optamos pela pesquisa que se estrutura nas orientações da História Social, que ao valorizar a diversificação de documentos, permite conexões interdisciplinares na análise sobre o passado, valorizando os diferentes sujeitos, suas relações e a compreensão do processo histórico relativo às permanências e às transformações temporais (CASTRO, 1997). Notamos que os fenômenos educacionais se desenvolvem no tempo, nas relações humanas, definindo-se com as mudanças na sociedade e, por isso, a educação que é um ato de formação humana, se transforma. O século XIII é marcado por grandes transformações aos homens do Ocidente, especialmente, pelo desenvolvimento comercial e urbano, pelo surgimento das Universidades e das Ordens Mendicantes, como a Ordem dos Pregadores, da qual Alberto Magno foi membro. No século XIII, há escassez de recursos de escrita e a memória é fundamental para a aprendizagem, o conhecimento, a transmissão de cultura e um dos fundamentos para as relações humanas (LAUAND, 1998). Alberto Magno, também conhecido como Alberto de Colônia, nasceu em Lauingen, na região da Suábia, às margens do Danúbio, na diocese de Augsburg, na Alemanha (CANAVERO TARABOCHIA, 1987). A data de seu nascimento é imprecisa, sendo mencionadas pelos estudiosos, principalmente, os anos de 1193 e 1206, mas há referência também ao ano de 1200. Tarabochia Canavero (1987) - pesquisadora italiana - destaca que, na vida de Alberto Magno há poucas datas seguras e, apenas a data de sua morte em 1280, em Colônia, pode nos ajudar, de certa maneira, a estabelecer a data de seu nascimento.Na cronologia publicada, na Alemanha, pelo Instituto Alberto Magno - responsável desde 1931 pela edição histórico-crítica das obras albertianas e pesquisas - o nascimento do mestre dominicano ocorre em 1200ca.

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Nos estudos de Garreau (1994), há alguns elementos relativos à formação inicial de Alberto Magno, os quais podemos relacionar à importância da memória para a aprendizagem, no contexto do século XIII. Segundo o estudioso francês, as primeiras noções da língua latina, a leitura e a escrita, podem ter sido ensinadas a Alberto Magno por algum clérigo de Lauingen. Um ensino mais completo, no entanto, ocorria nas escolas conventuais, como a dos beneditinos de Santo Ulrico, em Augsburgo. É provável que, Alberto Magno e seu irmão Henrique339, tenham frequentado esta escola renomada. Nesta fase, Alberto Magno aprendeu os ensinamentos pela memória, o que era essencial para a aprendizagem naquele momento histórico que carecia de recursos, até mesmo de livros. “De memória se aprendia o Saltério: papel muito importante é o da memória em um século em que os livros são escassos e custosos”340 (GARREAU, 1944, p. 29 Tradução nossa). Posteriormente, como teólogo dominicano e mestre universitário, Alberto Magno escreveu numerosas obras, das quais muitas ainda não são de acesso ao grande público. Dedicou a sua vida aos estudos, ao ensino e à evangelização. Participou de debates intensos de seu tempo e lutou pela fidelidade ao conhecimento produzido por ele e pela ordem dos pregadores. De seu envolvimento com as questões de sua época, observamos o seu compromisso intelectual, direcionado para o bem comum. O conceito de bem comum, pode ser explicado com a concepção política de Aristóteles. No livro Política, Aristóteles define o Estado, como superior ao indivíduo, ou seja, a coletividade superior ao indivíduo. O bem comum está relacionado ao bem supremo, ao bem geral, ao bem de todos, ao interesse público. Portanto, o bem comum é superior ao bem particular, da pessoa. Ainda que o bem comum se diferencie do bem particular, da pessoa, não o anula, pois um dos fins do bem comum é garantir que cada indivíduo se realize para bem servir a comunidade. Com relação à obra De bono, a matéria principal abordada no documento e da qual se organizam os tratados sobre as virtudes, refere-se, como o título indica, Sobre o bem. Na primeira parte, o bem é enfocado do ponto de vista da moral. Quanto à estrutura, cinco tratados compõem a 339

Alberto teve um irmão mais novo Henrique (Henri de Lauingen), que também participou da Ordem de São Domingos e chegou a ser prior do convento de Würzburg (GARREAU, 1994; CRAEMER-RUEGENBERG, 1985; TARABOCHIA CANAVERO, 1987). 340 “De memoria se aprendia el Salterio: papel muy importante el de la memoria en un siglo en que los libros son escasos y costosos” (GARREAU, 1944, p. 29).

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obra De Bono: o primeiro, do bem em geral; o segundo, da fortaleza; o terceiro, da temperança; o quarto, da prudência; o quinto, da justiça. Esta obra data do período de juventude de Alberto Magno e foi escrita, provavelmente, no ano de 1242, quando era Bacharel na Universidade de Paris. Em Paris, como expõe Steenberghen (1984?), Alberto Magno se dá conta do progresso do aristotelismo 341 na Faculdade de Artes e, a partir disso, empreende sua obra filosófico-científica, que lhe rendeu “renome sem igual”, ainda em vida. Neste texto, abordaremos alguns aspectos do Tratado sobre a Prudência Tratado IV De prudentia - no qual, o mestre dominicano trata com maior ênfase a questão da memória. Alberto Magno, vinculado à Igreja e à Universidade, instituições que exercem um papel fundamental na formação dos homens, no seu papel evangelizador e educador – de religiosos, fiéis e discípulos - apresenta a memória vinculada a uma virtude: a prudência. O mestre dominicano fala da educação da memória e pela memória. A memória apresentada por Alberto Magno leva-nos a pensar na memória retórica, usada como técnica de memorização (mnemotécnica) nos sermões, por exemplo, mas, principalmente, como ato educativo para orientar determinados comportamentos, já que se encontra vinculada a uma virtude. A prudência é identificada como a maior das virtudes, ou o “auriga” das virtudes. A prudência orienta todas as outras virtudes, pois sem a prudência para orientar a reta razão, a tomada de decisão certa, não há amparo para a virtude da fortaleza, da temperança e da justiça. A prudência é a primeira das virtudes cardeais e não só é a primeira entre as outras na classificação, mas, “domina” toda virtude moral (PIEPER, 2010). Ainda que nossos hábitos de pensamento e de linguagem dificultem a nossa concordância e até o entendimento da questão, a prática da Justiça, da Fortaleza ou da Temperança requer ao mesmo tempo, e até antes, que o homem seja prudente. Não basta o desejo de Justiça sem antes conhecer a realidade (PIEPER, 2012).

341

A obra De bono foi escrita no período de juventude de Alberto Magno, quando ele ainda não conhecia toda a obra de Aristóteles. Neste período, do texto grego Ética a Nicômaco - Liber Ethicorum – se conheciam as traduções latinas realizadas por Robert Grosseteste, bispo de Lincoln, entre 1240 e 1249. Dessa obra, de relevância para a Escolástica medieval, Alberto Magno não conhecia o Livro VI. Portanto, ainda não conhecia as páginas relativas à justiça e à prudência em Aristóteles. A tradução latina da Ética a Nicômaco foi completada e revisada por Guilherme de Moerbecke, no ano de 1260, o que consolida um novo vocabulário e um novo quadro conceitual para o pensamento político (TARABOCHIA CANAVERO, 1987; MARTINS, 2011).

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A afirmação da supremacia da prudência, como exposta por Pieper (2010), contém algo mais que uma ordem entre as virtudes cardeais, mas ela possui uma enorme importância prática. A prudência expressa, em linhas gerais, o conceito de base da realidade, que se refere à esfera da moral “[...] o bem pressupõe uma verdade, e a verdade o ser”342 (PIEPER, 2010, 13, Tradução nossa). Assim, a supremacia da prudência significa que [...] a realização do bem requer um conhecimento da verdade. ‘O primeiro que se exige de quem faz é que conheça’ diz Santo Tomás. Quem ignora como são e estão verdadeiramente as coisas não pode fazer o bem, pois o bem é o que está de acordo com a realidade343 (PIEPER, 2010, p. 13, Tradução nossa). A prudência, nesse sentido, inclui, por exemplo, um “axioma pedagógico, pois

A educação e auto-educação, a fim de emancipação moral, deve ter o seu fundamento na respectiva educação e auto-educação da virtude da prudência, ou seja, na capacidade de olhar objetivamente para a realidade a respeito de nossas ações e de regulamentos para o ato, de acordo com sua natureza e importância344 (PIEPER, 2010, p. 14).

Com o autor, notamos que o sentido da prudência e a sua posição privilegiada está em que vejamos a realidade, como realmente são os elementos que compõem a situação que nos exige uma decisão (PIEPER, 2012, p. 96). A tomada de decisão implica conhecimento da realidade, o que se constitui em elemento educacional fundamental: conhecer para tomar decisão. Não só conhecer e “[…] el bien presupone ¡a verdad, y la verdad el ser” (PIEPER, 2010, 13). “[…] la realización del bien exige un conocimiento de ¡a verdad. «Lo primero que se exige de quien obra es que conozca », dice Santo Tomás. Quien ignora cómo son y están verdadeiramente las cosas no puede obrar bien, pues el bien es lo que está conforme con la realidade ” (PIEPER, 2010, 13). 344 “La educación y autoeducación, en orden a la emancipación moral, han de tener su fundamento en la respectiva educación y autoeducación de la virtud de la prudencia, es decir, en la capacidad de ver objetivamente las realidades que conciernen a nuestras acciones y hacerlas normativas para el obrar, según su índole e importancia” (PIEPER, 2010, p. 14). 342 343

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decidir, mas decidir para o bem. As reflexões de Pieper (2012) nos possibilitam pensar que a virtude, desse modo, se refere a uma atitude exigida e realizada, primeiramente, pelo homem individualmente. Não se deve apenas esperar uma mudança da sociedade, mas antes observar a mudança no indivíduo. A virtude, o comportamento moral é que leva o homem a agir para o bem da comunidade; este conhecimento é necessário para o bem do homem, que move-o para a ação, construção e elaboração prática do bem comum. Na segunda parte do Tratado, Alberto Magno aborda as partes que compõe a prudência memória, inteligência e providência - de acordo com as divisões de Marco Túlio (Cícero), de Macróbio e de Aristóteles. Ao tratar da prudência, Alberto Magno, explicitou suas ideias sobre o que é a memória (art. 1) e qual é a arte da memória (art. 2), procurando mostrar que há duas naturezas de memória: a natural e a artificial (471). A memória artificial – que se aprende pelo ensino – é formada por lugares e imagens. A elaboração de Alberto Magno acerca da prudência/memória é fruto de um contexto de transformações sociais, para o qual ele se posicionou e produziu sua obra. Algumas reflexões nos conduzem a pensar o momento vivido pelo mestre dominicano. Em que medida a elaboração Albertiana da memória constituída por imagens contribuiu para atender a educação dos homens de seu tempo? Por que Alberto trata da questão da memória articulada à virtude da prudência? Entendemos que estudar como os homens do passado compreenderam o seu tempo e como elaboraram propostas para os embates que os envolviam possibilita aos homens do presente vislumbrar possibilidades educativas desse conhecimento. Neste sentido, concordamos com Oliveira (2009, p. 683) quando afirma que “[...] os processos históricos, os fenômenos educativos e as instituições escolares e universitárias de outros tempos históricos podem servir de pontos de partida para uma reflexão dos homens contemporâneos diante das suas questões”. A memória recebe maior ênfase no tratado, pois entre as partes da prudência, diz Alberto Magno, ela é a mais importante, pois é a que ajuda o homem a olhar para o passado, orientando as decisões do presente (inteligência) e as do futuro (providência). A memória é entendida como parte da

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prudência, pois - de acordo com a definição de Cícero, “[...] é a faculdade pela qual o ânimo relembra as coisas que foram” (ALBERTO MAGNO, 1951, p. 245). Podemos afirmar que Alberto Magno, no Tratado sobre a Prudência, elabora uma didática para a memória. Para ele a memória é melhor constituída por imagens – de coisas e de palavras posicionadas em série e em um lugar específico. As imagens maravilhosas, segundo Alberto Magno, são imagens exuberantes e que marcam o fato a ser lembrado. É necessário o uso de imagens mentais imponentes para que o sujeito possa lembrar-se de algo importante. Quando olhamos para esta questão, observamos que a proposta de uso de imagens agentes assim denominadas pela estudiosa da arte da memória Frances Yates (2007) - para constituir a memória não é algo recente. Notamos que na atualidade muitos processos educacionais – não apenas os escolares - se orientam para marcar ou registar na memória, por meio de imagens, o que é importante para os homens de determinado contexto social. Hoje, resguardadas as mudanças e as permanências, temos suportes diferentes e específicos para a exibição de imagens surpreendentes e exuberantes para constituir a memória, como as produzidas e veiculadas, por exemplo, por meio da televisão e do cinema. A compreensão do que é ser letrado, educado, nos dias atuais, passa pelo reconhecimento de que imagens e sons são tão importantes para criar conhecimento e comunicar quanto o material impresso. Assim, "[...] as experiências compartilhadas com os outros seres humanos são, na maioria das vezes, derivadas das imagens e sons contidos nas telas" (DALEY, 2010, p. 483). Neste sentido, observamos que a memória e o uso de imagens, na perspectiva Albertiana, são essenciais ao processo educativo. A ação e a obra de Alberto Magno são produtoras de memória e de imagens, cujos elementos nos levam a recuperar alguns pontos da história da educação. Observamos a importância desta questão para a formação humana, visto que sem a memória não há aprendizagem de qualquer saber. A memória é a base para toda a aprendizagem. Desde o nascimento, pela memória, acumulamos experiências fundamentais para toda a vida e para a própria existência humana, pois uma sociedade que não possui memória, do seu passado, não tem história e não tem condições de planejar o seu futuro, portanto, também o presente. Desse modo, consideramos o

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desenvolvimento do tema da memória essencial para a organização dos homens em sociedade. A memória está ligada à preservação e produção de conhecimentos e permite a ligação dos homens com a sua história, a compreensão das transformações das relações humanas, essencial para a sua autonomia e não dominação. Lauand (1995, p. 1) nos ajuda a lembrar que o homem é um ser que esquece e é a partir desta constatação que se desenvolve a educação no Ocidente. Para o autor, a memória, além de um processo intelectual, está associada ao aspecto afetivo, em que nos lembramos do que nos é importante. Assim, ao se referir à relação educação e memória, afirma que a memória, além de uma atividade intelectiva, está relacionada ao afetivo, ao coração. O autor esclarece, por meio de exemplos da linguagem, esta questão, que não é por acaso que “Em diversas línguas, o lembrar, o memorizar está associado não já (ou não só...) a um processo intelectual, mas ao coração: saber de memória é, em inglês, by heart; em francês, par coeur; e esquecer-se de alguém, em italiano, é scordarsi, sair do coração”. Neste aspecto, lembramos que a memória está ligada à produção e preservação de conhecimentos. Guardamos na memória o que nos é importante, o que nos marcou efetivamente e afetivamente. Oliveira (2007, p. 125) considera a memória um elemento formativo do ser “[...] uma questão vital que define o comportamento e a identidade do sujeito histórico”. A autora destaca que a memória não é uma qualidade inata do homem, mas é por meio do intelecto que aprendemos a fazer uso da memória. As nossas lembranças estão relacionadas com a nossa capacidade de associar os acontecimentos importantes e aqui reside o aspecto da afetividade. Desse modo, segundo Oliveira (2007) quanto mais nos afastamos de nossas lembranças, menos nos aconselhamos acerca do presente e do futuro do conhecimento. Nessas leituras notamos que pela leitura do passado, da consulta aos registros, dos clássicos, encontramos elementos para compreender o homem em sociedade. A história nos auxilia na compreensão das transformações de nossas ações, para as quais buscamos o passado com perguntas do presente. Assim, pensamos que os textos medievais ao repercutirem no tempo são obras clássicas e indicam um caminho prudente para a compreensão do passado. A consulta ao De bono pode auxiliar na compreensão da educação dos homens do século XIII - situados em um tempo e um espaço

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específico. Por outro lado, no presente, essas ideias permanecem na medida em que tratam da essência humana (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2009). O fundo permanente da obra está na necessidade de clareza em planejar a educação de modo que atenda a formação do homem para a vida em sociedade. Os autores que se tornaram clássicos, segundo Oliveira e Mendes (201, p. 9) “[...] são aqueles que souberam captar as questões da sua época e as responderam com mais profundidade do que seus contemporâneos”. Neste sentido, Steenberghen (1984?, p. 112) ao falar da importância da obra filosófica de Alberto Magno afirma que “O que caracteriza os grandes gênios é terem a clara visão das necessidades do seu tempo”. O autor ressalta que Alberto Magno teve esta intuição, que se expressa na reorganização dos estudos em bases mais amplas, enriquecendo a cultura cristã com o que o saber profano tinha produzido de válido. Nesta perspectiva, concordamos que o caráter histórico e educacional das obras clássicas se expressa por elas proporcionarem o diálogo com o passado e por traduzirem as grandes questões humanas. A preservação da obra De bono ao longo dos séculos é um exemplo de preservação da memória, de conservação do que é importante, o que nos auxilia na compreensão dos homens no século XIII, as relações destes com aqueles que os antecederam e os posteriores. A arte da memória empreendida por Alberto Magno estava amparada em Tratados clássicos de retórica e a sua repercussão conservou-se séculos depois, influenciando a educação religiosa cristã. Assim, pensamos como Dias (2009, p. 59), que o passado é indispensável para o processo de compreensão das realidades educacionais e de toda a realidade presente. É importante esclarecer que, “[...] para que a história, a memória histórica, faça sentido para os homens do presente, em especial para as novas gerações, é imprescindível o nosso compromisso social, a nossa responsabilidade com a educação dessas gerações” (DIAS, 2009, p. 59). E estudar as produções humanas, está intimamente relacionado ao ato de educar, por meio do qual, relembramos, fazemos recordar, selecionamos, destacamos o que uma sociedade precisa lembrar para não cair no esquecimento.

Referências Bibliográficas

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CÍRCULOS LITERÁRIOS NO PRINCIPADO AUGUSTANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A POESIA DE HORÁCIO Erick Messias Costa Otto Gomes345

O objetivo de nossa comunicação é apresentar uma leitura da obra do poeta romano Horácio (século I a.C.) que leva em consideração as relações de patronagem e clientelismo que se estabelece entre o poeta e Mecenas, e mais tarde entre Horácio e Augusto. São três as características que regem tais relações: 1) reciprocidade ou troca de bens e serviços; 2) assimetria na posição social das duas partes e os tipos de bens comercializados; 3) e duração da relação. Todas essas características aparecem em Horácio, e isso significa que um patrono poderia oferecer benefícios materiais, bem como locais e uma audiência ao poeta, em troca de seus versos, ou seja, em troca de uma poesia que exalte o seu benfeitor. Tais perspectivas corroboram para a análise dos últimos poemas da vida de Horácio, em especial os que compõem o livro IV das Odes e o Carmen Saeculare, em que os feitos de Augusto são mais exaltados. A relação estabelecida entre Horácio e Augusto interfere na construção dos poemas do livro IV das Odes, haja vista que Horácio é cliente de Augusto, devendo lhe dedicar seus poemas e, além disso, é o próprio Augusto quem pede a Horácio para escrever dois dos poemas que compõem o livro. Dessa forma, nosso objetivo é refletir sobre a relação estabelecida entre o poeta Horácio e o imperador romano Augusto, levando-se em consideração as relações de patronagem e clientelismo estabelecida entre ambos. Nosso texto se dividirá em duas partes: primeiro, uma breve discussão historiográfica a respeito do governo e legitimação do imperador Augusto; por fim, será apresentada a relação entre Horácio, Mecenas e Augusto, de forma a esclarecer o porquê de se analisar as imagens do imperador presentes na obra do poeta.

CONTEXTO DA POESIA HORACIANA: O PRINCIPADO DE AUGUSTO Mestrando do programa de pós-graduação da Faculdade de História – UFG. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 345

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De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2001, p. 31), as discussões em relação à natureza do Principado, a despeito de todas as posições, detém o consenso em um aspecto: a concentração de poder nas mãos do princeps em detrimento das instituições que compunham a República romana, como as magistraturas civis e militares e as assembleias. Para o autor, a grande controvérsia refere-se à determinação dos fatores que permitiram a Augusto atrair para si poderes típicos dos diversos órgãos republicanos, e elevar-se em prestígio acima de qualquer outro cidadão (SILVA, 2001, p. 31). Uma primeira vertente é aquela que afirma que o poder de Augusto fundava-se sobre um regime de caráter militar, sendo o imperador capaz de mobilizar força física contra qualquer um que se opusesse ao governo. Martin Goodman (1997, p. 123), em The Roman World: 44 BC - AD 180, afirma que Augusto, a partir de 25 a.C., gradualmente estabeleceu “uma nova imagem de si mesmo em que nenhum indício de violência, ou qualquer necessidade de violência, pode ser vislumbrada.” Essa imagem não tinha por objetivo mascarar seu poder, mas legitimá-lo, afinal, nos anos do triunvirato até a Batalha do Ácio (44 a.C.-31 a.C.), Otávio mostrou pouca simpatia para as regras da res publica, quando recrutou por iniciativa própria um exército de legionários do ex-César, confiscou as receitas fiscais da província da Ásia, sem qualquer justificação, e marchou em Roma, em um estado de alta traição. Augusto acumulou uma variedade de poderes em um grande esforço para disfarçar a obviedade de sua confiança na força militar nua para a sua retenção de poder (GOODMAN, 1997, p. 45). Para o autor, dessa forma, os poderes republicanos adquiridos por Augusto não passariam de uma máscara que encobriria seu verdadeiro poder, o poder militar. Para a elite política em Roma, este se retratou como igual em relação aos outros aristocratas do Senado, superior apenas em virtude do prestígio livremente concedido a eles pelo povo em reconhecimento a excelência de suas qualidades (Augusto, Res Gestae, 34). Entre os poderes, destacam-se o imperium maius proconsulare (para o resto de sua vida), que lhe deu o direito formal de intervir em províncias não especificamente atribuídas a ele, e a partir de 23 a.C., detinha o poder de tribuno para a vida, o que lhe deu o direito indefinido de vetar toda a legislação proposta pelos outros tribunos. Para Goodman (1997 p. 127), esta

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confusão de poderes legais reunidos por Augusto mostrou-se tão eficaz que cada imperador após ele garantiu sua eleição para a mesma combinação. Em Karl Galinsky (2005, p. 3-7) encontramos uma postura mais flexível, pois afirma que Augusto exerceu seu poder de duas formas: uma mais rígida, de caráter militar, e outra baseada em sua auctoritas (“influência”), na qual o imperador influenciou o desenvolvimento das artes e da literatura latina, as quais continham elementos essenciais para sua legitimação. A ideia de restaurar os costumes dos antepassados era uma constante na política, como o próprio imperador afirma em suas Res Gestae, que “nenhum cargo concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei” (AUGUSTO, Res Gestae, VI). Em Walter Eder (2005), no artigo Augustus and the Power of Tradition, encontramos a interpretação segundo a qual Augusto evitaria uma associação do seu poder com um monarca, apesar de buscar o reconhecimento por suas ações, mostrando-se como o restaurador da república romana. Certamente, a res publica não pode ser simplesmente considerado como República, porque seu homem mais poderoso não queria ser visto como um monarca. Pela mesma razão, no entanto, devemos hesitar para caracterizar o governo de Augusto como monarquia (EDER, 2005, p. 15). Nesse ponto, Walter Eder baseia-se em Ronald Syme e considera o sistema fundado por Augusto como um Principado, uma nova forma de governar fundada sobre leis. Mas o autor lembra que não devemos ver o Principado, em retrospecto, como um produto acabado, sendo planejado por Otávio, como se este tivesse um roteiro pré-determinado assim que se formou o triunvirato após a morte de César. As tradições republicanas não foram um obstáculo, mas uma vantagem para Augusto, haja vista que ele soube muito bem lhe dar com as contingências que os distintos momentos impunham às suas decisões. Dessa forma, o autor afirma que devemos periodizar o governo de Augusto em dois momentos: um primeiro, até 19 a.C., no qual Augusto se concentrou principalmente em restaurar formalmente as instituições republicanas cujo quadro foi deixado para um indivíduo poderoso; e em segundo, ele deixou este nível formal e criou a ideia de uma pátria em que o legado do passado se fundiria com orgulho cívico no presente (EDER, 2005, p. 17-18), e, dessa forma, cria-se a imagem da grandeza de Roma, sendo Augusto, o principal cidadão.

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Segundo Erich S. Gruen (2005), no capítulo intitulado Augustus and the Making of the Principate, nem Augusto nem seus contemporâneos usaram o termo “Principado” para definir seu governo. Havia sim uma designação de princeps para Augusto, mas isso indicava um sinal de estima e de autoridade. De acordo com Gruen, a noção de principatus como denominação de um tipo de regime não é encontrada nas memórias autobiográficas de Augusto, a Res Gestae, nem nas obras de escritores contemporâneos. Ou seja, havia os poderes republicanos, não o Principado. Nas palavras do autor, as instituições republicanas podiam ter sobrevivido, entretanto, quem as governou teria sido o poderio militar (GRUEN, 2005, p. 34). Para corroborar com essa hipótese, Erich Gruen afirma que o acúmulo de poderes e seu exercício por um longo período de tempo foi sem precedentes e dificilmente compatível com os princípios da República Romana. Nos autores até aqui analisados, encontram-se duas posturas: por um lado, uma perspectiva segundo a qual o poder de Augusto seria de base militar (GRUEN), e as instituições republicanas serviriam para nada mais do que disfarçar esse caráter (GOODMAN); por outro lado, autores como Galinsky e Eder assumem uma postura mais moderada, afirmando que o poder do princeps se baseava tanto no exército quanto em sua auctoritas (GALINSKY), e que devemos periodizar esse período da história romana para melhor entendermos a natureza do poder augustano (EDER). Não podemos concordar com a primeira posição, segundo a qual o poder do imperador se valeria unicamente de uma base militar, e que as instituições republicanas seriam apenas um disfarce que encobririam a realidade. Por outro lado, nossa pesquisa pretende uma postura mais mediada, segundo a qual não negamos a importância nem a efetividade do poder militar para a formação e permanência do Principado, mas consideramos a auctoritas uma forma de legitimação da potestas, afinal, o poder baseado unicamente no uso da força direta, teria sua existência constantemente ameaçada. Há a necessidade de uma aceitação, um consenso mínimo por parte dos diversos grupos sociais para a legitimação e a permanência de um poder político. Nenhum regime político é capaz de se sustentar se não forem criados valores que possam tornar a ação dos agentes do poder constituído algo perfeitamente admissível, legítimo e até mesmo desejável (SILVA, 2001, p. 33).

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Uma das formas de constituir e propagar essas representações, em ambiente romano, é por meio das narrativas literárias, da poesia, a qual criaria um consenso em determinadas imagens, legitimando, no nosso caso, as ações políticas do governante. Segundo Gilvan V. da Silva, esses valores criariam uma "mística imperial", ou seja, os símbolos que passaram a identificar Augusto, conferindo-lhe, aos olhos dos seus contemporâneos, a autoridade necessária para empreender a tarefa de restaurar a República (SILVA, 2001, p. 39). Tais símbolos, para Silva (idem), são, entre outros: 1) enviado e protegido de Júpiter; 2) ser divino (ou próximo da natureza dos deuses); 3) defensor de Roma; 4) fonte da uirtus romana e, por último, 5) vingador de César. Todos esses símbolos são encontrados de um modo geral na poesia horaciana, e em especial no livro IV das Odes escrito em 13 a.C., ou seja, em um contexto no qual Augusto já havia se estabelecido, eliminado opositores e reconhecido como o salvador da República, o que corrobora para a ideia segundo a qual o governante, mesmo depois de estabelecido, deve se legitimar, construir uma imagem que o mostra como importante e até mesmo necessário para a manutenção da ordem (BALANDIER, 1982). Daí se justifica o recorte de nossa pesquisa na obra horaciana: tais poemas possuem, a nosso ver, símbolos que formam a cultura política em torno do Principado de Augusto.

HORÁCIO E A RELAÇÃO SEUS PATRONOS

Peter White (2005, p. 327), em Poets in the New Milieu: Realigning, afirma que, apesar de Augusto ter influenciado, direta ou indiretamente, o destino de carreiras em oratória, política, jurisprudência e militar, a literatura foi a um campo sobre a qual ele teve menor influência. O autor afirma que o que permitiu o desenvolvimento da poesia sob Augusto foi a relação de patronagem dos poetas com os aristocratas, em especial Mecenas, que também é patrono de Horácio, apesar de ser chamado de “amigo”, e não de “patrono”. Além disso, White propõe que uma coerência social não implica uma coerência ideológica, não sendo possível afirmar que Horácio, por ser cliente de Mecenas, seria favorável ao regime de Augusto, simplesmente pela proximidade do imperador com Mecenas.

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Mesmo se isso fosse possível, as evidências são demasiado escassas para se afirmar uma influência real de Augusto na poesia (WHITE, 2005, p. 331). Contrapondo-se a essa interpretação, Jasper Griffin (2005), em Augustan Poetry and Augustanism, argumenta que não há quase nenhuma menção a Otávio nos poemas antes de sua vitória no Ácio, em 31 a. C. Para a autora isso ocorre porque, após Otávio se estabelecer como único líder, havia uma pressão em torno dos poetas para estes enaltecerem o regime (GRIFFIN, 2005, p. 314), sobretudo dos poetas ligados a Mecenas. Havia duas formas de exaltação do regime: “(a) no sentido diretamente “político” de reforçar a posição pessoal de Otaviano/Augusto como chefe de Estado permanente, ou (b) no sentido mais geral de alistar apoio para o renascimento moral e social, que deve distinguir a sua Roma dos desastres da República tardia” (GRIFFIN, 2005, p. 314). Nesse mesmo sentido, Paolo Fedeli (2009), em Il IV libro delle Odi di Orazio: poesia o propaganda?, afirma que houve uma pressão por parte do princeps sobre Horácio para a escrita do quarto livro das Odes, de modo a comemorar as vitórias dos jovens descendentes da família imperial. Para o autor, Augusto pode legitimamente reivindicar a poesia horaciana, não só pela sua localização, mas também pela amizade íntima e cordial que o ligava ao poeta e a honra que ele havia concedido ao escolher como o poeta da cerimônia solene de 17 a.C. (FEDELI, 2009, p. 104). Nas palavras de Fedeli (2009, p. 106), “devemos concluir que o quarto livro é um poema de pura propaganda, escrito por um poeta, cortesão que colocou seu talento e inspiração a serviço do príncipe”. Consideramos que ambas as análises são extremas sobre a relação do poeta com o princeps: por um lado, White afirma que há quase uma total liberdade de Horácio quando este escreve sua poesia, e por outro, Griffin e Fedeli são deterministas em relação à influência de Augusto sobre Horácio, sendo o poeta um propagandista que escreve sob pressão do princeps. R. G. Nisbet e Nial Rudd (2004, p. xxi), em seus comentários sobre os poemas horacianos, afirmam que uma análise da relação de Augusto com Horácio deve evitar essas posturas extremas, pois, por um lado, se se considera que o poeta aceita a ideologia de Augusto, esquece-se que houve o uso da violência para o estabelecimento do regime; mas, por outro, se se considera Horácio como subversivo e contrário ao governo, não se leva em consideração a proximidade e a amizade de ambos.

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Através de uma interpretação que supera esse impasse, Phebe Lowell Bowditch (2010, p. 55), em Horace and Imperial Patronage, afirma que os membros da elite evitavam usar os termos “patrono” e “cliente” para se referirem às relações entre um benfeitor e seu protegido aristocrático, preferindo as conotações mais igualitárias de amicitia, ou “amizade”. As relações de patronagem possuíam três características principais: reciprocidade ou troca de bens e serviços, assimetria na posição social das duas partes e os tipos de bens comercializados, e duração da relação (BOWDITCH, 2010, p. 55). Todas essas características aparecem em Horácio, e isso significa que um patrono poderia oferecer benefícios materiais, bem como locais e uma audiência ao poeta, em troca de seus versos, ou seja, em troca de uma poesia que exalte o seu benfeitor. Do mesmo modo, Bowditch (2020, p. 71-72) indica que no contexto da publicação do livro IV das Odes, a relação de patronagem de Horácio é estabelecida muito mais com Augusto do que com Mecenas, o que corrobora para uma interpretação distinta daquela proposta por White, na qual podemos afirmar que há uma confluência dos interesses de Augusto com a poesia de Horácio. Corrobora para essa perspectiva a análise de Michèle Lowrie (2007, p. 78), em Horace and Augustus, na qual a autora afirma que a poesia de Horácio está cada vez mais preocupada com a posição do primeiro homem da res publica, em especial quando Augusto se estabelece, pois nesse contexto Horácio já se dirige a ele diretamente, sem a necessidade da mediação de Mecenas. Após os Jogos Seculares (17 a.C.), essa relação se fortalece ainda mais, o que pode ser percebido em referências diretas de Horácio a Augusto nas Odes IV (13 a.C.), em que há elogios diretos a Augusto, como no poema IV, em que o princeps é representado como essencial para a cidade, e o retorno do imperador garantiria paz, segurança e execução de suas leis. Muitos eventos extraordinários são elogiados neste livro, como vitórias militares e a vinda da paz. Um tema recorrente, especialmente na parte final do livro, são os valores romanos. Virtus, uma palavra comum em Horácio, tem um papel especial a desempenhar aqui, assegurando aos líderes os padrões do mosmaiorum (“vamos cantar nossos líderes, que têm realizado a virtude conforme nossos pais,” Odes IV.15.29). As referências diretas e indiretas à pessoa do imperador, mostrando-o como o guardião dos valores dos antepassados e, sobretudo, como o único capaz de manter a res publica, são cada vez mais intensas. Através da

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leitura da obra, percebemos que há um tom laudatório nesses poemas, em que a pessoa do imperador é elogiada (nem sempre diretamente) em boa parte da obra (HORÁCIO, Odes IV, 2, 4, 7, 10, 14, 15). Em termos gerais, as relações clientelistas romanas eram muito profissionais. O patrono estendia favores e proteção aos seus clientes, que vão desde o desembolso de dinheiro ou pequenas doações de alimentos, de apoio jurídico, financeiro ou social em larga escala. Em troca, o cliente realizava, por seu patrono, quaisquer serviços que poderia oferecer, como assistir ele na sua atividade diária, apoiando-o na política ou simplesmente preenchendo sua lista de convidados em uma festa (McNEILL, 2001). Clientes literários possuíam habilidades únicas, é claro, e cumpriam as suas obrigações por outros meios mais adequados; era prática comum para os poetas produzir poemas que visam garantir a fama imortal de seus patronos. Ser apoiado por um poderoso patrono poderia, na melhor das hipóteses, ser muito positivo para um escritor. O favor de um grande indivíduo pode oferecer um caminho seguro para o sucesso e a fama: a sua riqueza proporciona segurança financeira, enquanto o seu destaque social e influência eleva o artista entre os círculos mais amplos. No entanto, o artista que aceita o apoio de um patrono também corre o risco de exposição a uma série de dificuldades imprevistas e potenciais fontes de constrangimento. Se o seu patrão é ruim, ele enfrenta a possibilidade de maus-tratos. Em qualquer caso, ter um patrono é assumir o risco de perder a independência pessoal, como ser gradualmente forçado a aderir à vontade do patrono ou adaptar seu trabalho, de modo a acomodar seus gostos e interesses. Nesses casos, até mesmo o patrão mais bem-intencionado pode inadvertidamente interferir na individualidade de seu cliente. De acordo com Randall McNeill (2001, p. 10-11) o mecenato é, nesse sentido, sempre um jogo de poder. Existem muitas armadilhas potenciais a ser contornadas, mas os benefícios potenciais são igualmente grandes. Nem há um padrão fixo de interação que todas as relações patrão-cliente são obrigadas a seguir. As relações podem transcender as limitações inerentes ao relacionamento formal e tornar-se, através do contato regular e estreito, uma verdadeira amizade entre o cliente e seu benfeitor. Dessa forma, associação de patrocínio permitiu o desenvolvimento de uma relação de intimidade, cujo grau de interação podia variar de acordo alteração das circunstâncias sociais, embora

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as trocas recíprocas permanecessem constantes. Para Horácio, os benefícios diretos de Mecenas, como a fazenda em Sabina e o apoio financeiro que Mecenas pode ter oferecido ao poeta, numa fase inicial, exigia semelhantes serviços de sua parte em troca, apesar de suas reivindicações de liberdade de tais obrigações. Horácio por sua vez, cumpriu as suas obrigações sociais, dedicando as Sátiras, Epístolas 1, e as Odes 1-3 para Mecenas, bem como, fez referências específicas de seu patrono em muitos poemas individuais (McNEILL, 2001, p.28). Sua relação com Augusto, por sua vez, também se baseou nesse tipo de relação, como pode ser percebido na realização dos Jogos Seculares, nos quais Augusto oferece a Horácio um público e um evento para sua poesia ser cantada, e em troca o poeta exalta as virtudes associadas ao governo augustano. Dessa forma, concluímos lembrando que qualquer tipo de análise da poesia de Horácio, desde seus primeiros escritos até os últimos, deve levar em consideração as relações de patronagem e clientelismo, haja vista que são essas interações sociais que lançam luz sobre uma série de temas que aparecem na obra do poeta, como as imagens de Augusto, objeto de nossa pesquisa.

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UMA CONSTELAÇÃO DE SANTOS: HIPÓTESES SOBRE A DISSEMINAÇÃO DA SANTIDADE MINORITA NOS CATÁLOGOS HAGIOGRÁFICOS DA ORDEM DOS FRADES MENORES (ITÁLIA, SÉCULOS XIII-XIV) Felipe Augusto Ribeiro346

Introdução

Este trabalho constitui uma etapa de nossa pesquisa de Mestrado. Nele, procuraremos percorrer o trajeto de elaboração e institucionalização que a Ordem dos Frades Menores fez de uma santidade para si própria, enraizada na região central da Itália. A problemática do artigo busca entender os motivos e procedimentos que levaram a Ordem a terminar mapeando, já no século XIV, os seus santos por toda essa área. Para tanto, parte-se da premissa geral de que esse procedimento se justificou nas relações políticas que a instituição estabeleceu com o mundo comunal, ou seja, foram as demandas feitas pelas comunas das cidades onde os frades se sediavam que fomentaram, justificaram e legitimaram a construção dessa santidade profundamente localizada. O nosso percurso se inicia em 1245, data da redação do Dialogus de gestis [ou vitis] sanctorum fratrum minorum, uma compilação hagiográfica, de autoria anônima347, que recolhe as Vidas de 20 frades espalhados por toda o centro da Itália, dentre eles Santo Antônio de Pádua (1195-1231) e o próprio São Francisco de Assis (1182-1226) – os dois primeiros biografados na obra, porque os únicos canonizados dentre os 20 –; daí, a estrutura da obra parece derivar a santidade dos demais frades do fundador e de Antônio, entendido como o ápice dessa dignidade. Então saltamos para 1335, quando se faz outra compilação de Vidas, o Catalogus sanctorum fratrum minorum, também anônimo (mas

346

Mestrando em História e Culturas Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail: [email protected]. 347 Alguns editores dessa obra, como Fernando Delorme e Vergilio Gamboso, atribuem a sua autoria a Tomás de Pavia O.F.M. (1212-1280), mas sem certeza. Ficamos, portanto, com o anonimato. De qualquer forma, certamente o autor era um minorita, porque ele se declara assim.

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também de autoria minorita). Essas obras (juntas de outras que aqui não citaremos) compõem um verdadeiro catálogo e mapa santoral das províncias minoritas.

Motivações e públicos dos catálogos minoritas

Quanto à sua estrutura retórica, o Dialogus é bastante interessante. A princípio, trata-se de uma hagiografia como qualquer outra, inclusive no que tange à repetição dos topoi pertinentes ao gênero – como também nota Vergilio Gamboso (1986: 30) –: a manifestação da graça divina nos feitos e nas vidas dos santos e o seu consequente potencial para ensinar os homens através dos exemplos 348. No entanto, ele caracteriza-se por dois traços bastante peculiares, revelados pelo autor em seu prólogo. Primeiro, ele informa que compôs sua obra num estilo de gesta e numa narrativa sucinta, visando a estimular os “modernos” (isto é, seus contemporâneos) quanto à sua fé349; diz também que optou por redigi-la em forma de um diálogo entre dois frades (que não são identificados; são personagens através dos quais o autor falará) – um “narrador” e outro “ouvinte” – para melhor agradar ao “leitor” e aos seus religiosos ouvidos350. Toda a obra é oralmente muito marcada, o que denuncia a sua intenção de ser lida em público (um uso comum que se dava às hagiografias). A estruturação da narrativa em forma de diálogo tem o claro objetivo de melhor convencer o público dessa leitura:

assim, se a verdade dos fatos contados causará estupor ou dúvida nos fracos, ofuscando a questão que importa [da graça e da fé provadas nos santos], poder-se-á demonstrar como a “In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. Amen. Venerabilium gesta patrum dignosque memoria titulos antiquorum studio [studia] pietatis annalibus commendare fructum utilitatis plurimae posteritati fidelium consuevit afferre. Primum, quidem, ut omnium artifex et virtutum altissimus operator in sanctis suis majestate mirabilis praedicetur; alterum autem, ut fides tenera parvulorum experimento sensibili provocata virtutum infirmioris aetatis pocula desuescat adhibitoque sibi vitae perfectioris speculo cibi solidioris edulo roboretur [...]” (DIALOGUS, 1923: 1). 349 “[...] praesenti opusculo compigenda suscepi, ut habeat pia fratrum devotio gestorum seriem stilo compedii coaretatam [sic] gaudentesque brevitate modernos sermo succinctus [ilegível] ad divinae laudis judicia propensiori studio devotius admiranda” (Idem: 2). 350 “Ad tollendum denique fastidioso lectori stomachum et uberiorem audiendi gratiam religiosis auribus afferendam duorum fratrum personas ad invicem conferentium more dialogi ad medium deducentes, unum narrantis vice proponimus et alterum audientis [...]” (Idem: 3). 348

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coisa concorda com as leis da sagrada Escritura e que nada é difícil para a onipotência criadora quando há uma fé capaz da graça divina e dócil ao adestramento351.

Destacam-se também as fontes que seu autor acusa ter empregado:

Porém, não pretendi aqui escrever todos os mais destacados feitos das suas virtudes [dos santos], manifestadas em quase todo lugar da terra; restringi-me, de preferência, às ocorrências das quais, sob ordem do sumo pontífice e na presença dos investigadores delegados pela sé apostólica, foi feita deposição com testemunho fidedigno, aprovada depois de um controle diligente e do registro pelo notário público; outras [ocorrências] foram colhidas, com certeza, de verídico testemunho tomado de frades ainda pertencentes à nossa ordem352.

Essas fontes foram, portanto, o material colhido pela comissão inquisitorial indicada pelos papas para conduzir os processos canonizatórios dos santos biografados – ao menos é esse o caso das narrativas sobre Ambrósio de Massa (†1240) e Benvindo de Gubio (†1232), que foram alvos de inquisitiones (e dos canonizados Francisco e Antônio, é claro); os demais não o foram –, e os testemunhos de outros frades que haviam convivido com os pretensos santos. O motivo para ambas as escolhas é o mesmo: convencer o público. Fosse pelo prazer da audição, fosse pela origem fiável das informações. Num primeiro momento, essa motivação se explica pelo próprio paradigma pedagógico da hagiografia: seu métier é ensinar, e para ensinar é preciso convencer. Gamboso (1986) lembra que essa estrutura dialógica inspira-se no modelo oferecido por Gregório Magno (540-604. Papa entre 590 e a data de sua morte) em seus famosos Dialoghi. A

“[...] quatenus, si quid stuporis aut dubii rerum gestarum veritas enarrata conduxerit auribus infirmorum, quaestione vicaria vere sacrae Scripturae legibus ostendatur accommodum nec quidquam omnipotentiae creatici fore difficile, sed divinae capax gratiae fides adsit credula disciplinae” (Idem: 3-4). 352 “Nec sane singula quaeque virtutum illorum insigna toto paene terrarum orbe difusa duxi praesentibus exaranda, sede ea potissimum, quae vel de mandato summi pontificis coram disquisitoribus per sedem apostolicam delegatus fideli narratione deposita et examinatione testium diligenti pariter approbata sunt ac per manum publicam annotata, sive etiam fratrum nostri ordinis adhuc superstitum veridica mihi relatione comperta” (Idem: 2-3). 351

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vinculação à grandeza dessa obra justifica em si mesma a escolha do anônimo por imita-la: amparado em uma forma de grande autoridade, o autor poderia manusear melhor o seu conteúdo. O destinatário imediato da obra é composto pelos “fracos” (infirmus), por aqueles que não creem na potência divina e na ortodoxia católica, ou seja, os hereges. A tópica do combate às heresias é alvo da insistência do autor, como quando ele reafirma os propósitos de sua obra:

[...] a fim de que este ensaio de perfeição, colocado à luz, sirva de incitação aos imitadores por meio do exemplo das virtudes e que a provada sinceridade da vida acompanhe a fé nos milagres, os quais, sabe-se, são oferecidos aos que creem, mas não aos incrédulos353.

É a essas pessoas que o esforço de convencimento da obra se destina. Para ver quem são esses incrédulos é preciso recorrer a outras passagens da obra. Logo no início de seu prólogo, o autor assinala a terceira – e, aparentemente, a mais importante – finalidade dela:

O último fruto [da compilação dos feitos dos venerabilium patrum] é: que a teimosia da depravação herética, que se esforça para ofuscar, com a nuvem do rancor, os raios da verdade conhecida, convencida sobre a louvável vida dos pais mortos e sobre os sinais prodigiosos, rejeite os erros e retorne, arrependida, à unidade da fé católica, ou então que, serrando o mordaz e rangente dente da inveja, se contenha, barrada no gargalo da iníqua cegueira354.

Traça-se um retrato bastante expressivo da heresia. Estão presentes as metáforas canônicas da serpente venenosa, de dentes mordazes, e da nuvem que obstrui os raios de luz. Também emprestam sua força à assertiva do hagiógrafo as imagens da inveja, do rancor e do erro. Os hereges são retratados como “cegos”, conforme acima, e “adormecidos”, como no trecho a seguir: “[...] quatenus declaratum perfectionis specimen aemulatores suos exemplo virtutis invitet et signorum fidei, quae nequaquam fidelibus, sed incredulis data noscuntur, probata vitae sinceritas suffragetur” (Idem: 3). 354 “[...] postremum vero, ut haereticae pervicacia pravitatis, quae veritatis agnitae radios livoris nubilo nititur obumbrare, patrum decendentium vita laudabili signorumque prodigiis obtestata spretis erroribus resipiscat in catholicae fidei unitatemaut certe rigentis invidiae mordaci dente compresso perfidae caecitatis augustiis interculsa tabescat” (Idem: 2). 353

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[...] ultimamente, nos nossos dias, querendo [Deus] despertar novamente a fé adormecida, depois dos admiráveis feitos dos antigos pais, revivendo a lembrança dos seus milagres, renova os prodígios e potentemente repete as suas maravilhas355.

A santidade dos minoritas é apontada, portanto, como remédio contra as heresias: a veritas que ela carrega consigo pode tirar os hereges de seu erro e trazê-los de volta à “unidade da fé católica”. Seus feitos virtuosos, bem como os seus milagres – em vida ou em morte – veiculam a mensagem apostólica que se requer de um candidato a santo, convertendo os “incrédulos”. 90 anos depois, o Catalogus aparece com um prólogo bastante restrito, se comparado ao Dialogus, conquanto a obra também liste santos frades. Ainda que seu autor introduza o texto com as mesmas tópicas retóricas – que visam também a legitimar seu trabalho – e marque a necessidade do combate às heresias, não se fala nada quanto ao método que será empregado (naturalmente, porque tratar-se-á somente de uma lista) nem se desdobra tanto sobre as motivações que impulsionam a compilação.

Agora, porém, nestes dias novíssimos, nos quais se aproxima o fim dos tempos e a caridade se resfria, porque o mal continua grande e a iniquidade continua abundando, o mesmo sol Cristo é coberto e obscurecido, no céu, por uma nuvem de vícios. Mas, neste mesmo céu, Francisco, o assinalado de Cristo, fez resplandecer o claro e reluzente sinal do sol, assim como a beata Clara [de Assis] fez brilhar a lua [a Virgem Maria], para que a luz permitisse caminhar por onde Jesus Cristo indicou [...]356.

Mas a tópica da atualização de Cristo por Francisco vai além: “[...] novissime diebus nostris consopitae quodam modo fidei somnum satagens excitare post stupenda priscorumpatrum magnalia mirabilium suorum memoriam afferens signa renovat et miranda potenter immutat” (Idem: 4). 356 “Nunc autem diebus istis novissimis, in quibus finem saeculorum devenerunt, caritate frigescente, quia dies mali erant et sunt et nimis iniquitas abundavit, ipse sol Christus in eodem coelho vitiorum nube operto et obscurato ad ipsum coelum clarius illustrandum signatum solem idest Franciscum Christi signiferum splendere fecit et lunam idest beatam Claram incendentem clare per semitas Jesu Christi clare voluit [...]” (CATALOGUS, 1903: 1). 355

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[...] e neste mesmo céu está a santa igreja, que conta não só com doze estrelas, mas com inúmeras outras, que são os santos frades menores que aqui serão inscritos, nomeadamente, e que, cremos, agora também estão conscritos no céu. Eles fizeram parte de sua ordem iluminadamente, e com sua palavra e seu modo de vida manifestaram milagres que iluminam toda a orbe terrestre; agora, porém, na perpétua eternidade, como fúlgidas estrelas, permanecem fixas e estáveis no céu, junto da santíssima Trindade357.

Ou seja, os santos frades menores atualizam toda a igreja e renovam toda a christianitas e sua fé. Logo em seguida o autor acrescenta:

Mas estão ausentes [no céu da igreja], por mais que sejam estrelas luminosas, os santos conscritos nesta obra, porque são muitos os frades, em 128 anos [de Ordem Minorita] e cerca de trinta e seis províncias para toda a ordem, que professaram a regra evangélica de vida e a assumiram, e porque ainda há muitas milhas de terra para tão exíguo número deles358.

Crê-se, portanto, que, embora a igreja não tenha reconhecido esses santos, eles merecem tal reconhecimento, porque:

[...] vale lembrar, fazer prodígios não é prova de santidade, conforme [asseverou o papa] Gregório [IX], porque o milagre que deve ser considerado é aquele que vem de Deus, porque é melhor senti-lo dessa fonte do que de si mesmo. Este são os prodígios dos santos frades

“[...] et in eodem coelho idest sancta ecclesia non solum stellas duodecim numeravit, vero etiam multitudinem stellarum, scl. Sanctorum fratrum minorum infrascriptorum, omnibus eis nomina vocans, qua nunc in coelis, ut credimus, sunt conscripta; qui manentes in ordine suo cum luce et língua conversationis et manifestis miraculis orbem totum clarius illustrassent, nun autem in perpetuas aeternitates ut perfulgidae stellae fixae manent et stabiles in coelho et cum coelho beatissimae Trinitatis” (Idem: 2). 358 “Sed absit, ut tantam multitudinem fratrum a CXXVIII annis citra in triginta sex provinciis totius ordinis, qui fuerunt et sunt professi regulam et evangelicam vitam et ex hac vita assumpti, et adhuc multa milia degunt in terris, ad tam exiguum numerum redigam, ut istos dumtaxat sanctos et stellas reputem luminosas, qui in hac cédula sunt conscripti” (Ibidem). 357

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menores; seus milagres são seus veneráveis exemplos [de vida], os quais consistem em uma moral santa e em obras de perfeição359.

Esse trecho nos faz pensar que o destinatário do Catalogus fosse o papado, a quem ela poderia ter tentado convencer sobre as canonizações desses frades, pois o autor tenta validar essas santidades segundo os novos critérios teológicos definidos por Gregório IX na bula Dei sapientia, com a qual ele abriu o processo de canonização de Ambrósio de Massa, um dos biografados pelas compilações (e que nunca fora inscrito no catálogo universal, mas apenas recebeu a traslatio em 1252). Ali Gregório diz justamente que o milagre legítimo é o que se manifesta post-mortem, como prova divina de uma vida perfeita. Contudo, em seguida o autor explicita que não direcionou seu texto ao papado: “não pretendo oferecer o testemunho da santidade dos bons frades menores à observância da regra apostólica, mas, em parte, à devoção das pessoas e, em outra parte, à insistente fraqueza [da fé]”360. Ora, é esta mesma a direção que o autor do Dialogus dá à sua obra. Sem ignorar, como ficou claro, que ambas as obras estão conversando com uma questão posta pelos papas, elas não parecem estar se submetendo a uma nova análise por parte dos pontífices, como se esperassem mudar seus vereditos; ao contrário, o Catalogus fala claramente para os irmãos, como neste trecho:

Então, vós, caríssimos frades, não quereis, com a leitura desta obra, desejar ou procurar milagres nos frades menores, porque esses milagres podem tanto ser verdadeiros como falsos; amai, ao contrário, os milagres da caridade e da piedade, porque, embora invisíveis, eles são mais importantes e melhor retribuídos pelo Senhor, já que a glória que produzem entre os homens é menor361.

“Quia, ut verum fatear, signa facere non est secundum Gregorium probatio sanctitatis, sed unumquemque ut se diligere, de Deo autem vera, de próximo autem meliora quam de se ipso sentire. Ista ergo sunt sanctorum fratrum minorum signa mirifica, ista miraculorum testimonia veneranda, quae in morum sanctitate et operum perfectione consistunt” (Ibidem). 360 “Ideoque sufficeret cuilibet bono fratri minori ad suae testimonium santitatis apostolicae regulae servata professio, nisi aliud interdum exposceret partim tepor, partim devotio populorum” (Ibidem). 361 “Vos igitur, fratres carissimi, hanc chartam lecturi nolite in fratribus minoribus solum amare vel quaerere signa, quae possunt boni cum reprobis habere communia, sed caritatis atque pietatis miracula amate, quae tanto sunt securiora, quanto occulta, et de quibus apud Dominum maior sit retributio, quo apud homines minor est gloria” (Ibidem). 359

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Embora oDialogus se proclame para um público maior que a própria Ordem, as suas condições de produção são as mesmas do Catalogus; Gamboso concorda que o público principal da obra, embora não seja isso o explicitado pelo seu autor, são os próprios frades: o louvor que se faz à Ordem exorta os irmãos a seguirem o caminho da perfeição e a obedecer os ensinamentos do fundador, imitando os exemplos oferecidos, a ponto dos diálogos parecerem uma “conversação em família” (1986: 31). Ambos os catálogos, enfim, foram feitos para servirem de instrumento ao estudo e à pregação dos frades. A intenção era muni-los de exempla da própria ordem, a serem oferecidos aos “incrédulos”, como mostra o Dialogus. E, mais que isso, o objetivo primeiro parece ser exortar os próprios frades a seguir esses exemplos, em especial quanto a duas características marcantes que se repetem na imagem elaborada para os frades narrados: a obediência e a humildade. Essas qualidades permeiam todo o relato que se faz de Ambrósio de Massa, por exemplo, um dos mais extensos e detalhados da obra. É como se Ambrósio fosse feito de arquétipo para os demais frades (e, por que não, para todo cristão). Não porque os modelos de Francisco de Assis e Antônio de Pádua não bastassem: o caso é que se parece querer deriva-los para os demais irmãos, numa continuação dessa santidade.

Entre tensões minoríticas e resistências aos papas

Para Roberto Paccioco (1990), a representação que esses catálogos fazem dos frades, bem como o uso da tópica do combate às heresias e a atualização da santidade franciscana (sem mencionar o procedimento dialético e as fontes de que se valeram o Dialogus) situam-se num contexto muito preciso, o do desenvolvimento da auto-sacralidade minorita. Para ele, a busca pela universalidade de seus santos, através da canonização, mostra o empenho da Ordem em tornar unívoca a santidade de seu fundador, que fora objeto de disputa – e, consequentemente, sempre reescrita, remodelada e resignificada – até meados do século XIV. O Dialogus teria sido, portanto, o primeiro passo desse continuum, e o Catalogus uma etapa capital dele.

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No entanto, embora Paccioco não esteja errado, para nós essa não é uma explicação suficiente. Conforme pontua Gamboso, esses catálogos nunca ultrapassaram as províncias do centro da Itália (1986: 15), portanto jamais poderiam dizer respeito a um processo pertinente a toda a Ordem. Como citamos na nota 13, o autor do Catalogus, por exemplo, faz questão de lembrar que os santos dessa área foram esquecidos durante a expansão da Ordem. De maneira que, se esses catálogos querem resolver conflitos internos à instituição, esses são os conflitos referentes aos minoritismos particulares da Úmbria e do Vale do Pó, onde se disputava intensamente a herança franciscana362. Da mesma maneira, Paccioco (1996) também não erra em propor que essas compilações hagiográficas tenham servido de resistência dos minoritas à crescente regulação e controle do papado sobre a santidade e à restrição e normatização dos processos inquisitoriais, mas as nossas fontes não se colocam nessa resistência. Gamboso novamente nos dá outra baliza, assinalando que o autor do Dialogus, por exemplo, não se posiciona nem nas querelas internas nem nas externas à Ordem (1986: 66-67), ou seja, não toma partido de nenhuma facção de frades, nem se opõe – muito menos apoia – os papas. Logo, limitar o lugar desses catálogos a essas duas dinâmicas é, a nosso ver, perder de vista um bocado de sua importância. É certo que, como o próprio hagiógrafo revela363, o Dialogus fora encomenda de Crescêncio de Iesi (†1263), Ministro-Geral da Ordem entre 1244 e 1247, comumente vinculado pela historiografia à facção “espiritual” da Ordem – e Gamboso (1986: 11-12) recorda que sua eleição enfrentou oposições de todos os lados, inclusive dessa suposta facção – e que também encomendara a Vita secunda sancti francisci a Tomás de Celano (1200-1265) – segundo Paccioco (1990), com o mesmo intento de consolidar uma santidade franciscana ainda fragmentada. Entretanto, o mais certo, talvez, fosse dizer que Crescêncio se vinculou ao grupo dos primeiros companheiros de Francisco, pois são eles que atendem prontamente a um decreto seu, do qual não temos registros mas é denunciado pela famosa Carta de Greccio (1246) como o requisitante da coleta de milagres e memórias que darão, pouco 362

Sobre o tema das tensões e desenvolvimentos minoríticas, especificamente, referenciamos Pellegrini (1984) e Merlo (1991). 363 “Eapropter et ego temetsi inutilis servus Christi ad divinae gloriam majestatis et laudem mira virtutum opera, quae [per] sanctos suos quosdam ordinis nostri fratres in diversis mundi partibus exhibere dignata est omnipotentia Conditoris, obedientia reverendi patris ministri generalis fratris scl. Crescentiipraeceptrice veritate praevia praesenti opusculo compigenda suscepi [...]” (DIALOGUS, 1902: 1-2).

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tempo depois, por todo o centro da Itália, material aos catálogos – o que houve, portanto, foi a vitória de um projeto particular para a santidade de Francisco, longe de um consenso. O restante da “base” da Ordem pouco se mobilizou em prol dessa iniciativa, porque tinha outros projetos para ela. Mas se essa santidade pretendia solucionar conflitos, para além daquela região não havia nada a resolver.

Outras hipóteses para o contexto de produção e consumo dos catálogos

A questão é que, em primeiro lugar, esses catálogos relatam os frades com tamanha parcimônia (fosse por falta de informações acerca deles ou não) – o Catalogus vai limitar-se a mapeá-los, província por província, dizendo, com pouquíssimas palavras, quem eram e onde morreram (onde estão suas relíquias) – que nos dá a impressão de que pretendiam somente organizar o elenco dos irmãos mortos em fama de santidade mesmo. Provavelmente porque serviriam de fonte para os martirológios locais, de cada convento, cada província; nesse sentido, Paccioco parece esquecer que o papado concedia relativa liberdade para que esses martirológios (e cultos sobre seus santos) locais e particulares fossem criados, mantidos e atualizados364. Em segundo lugar, a insistência que o Dialogus faz sobre a tópica do combate às heresias parece carregar consigo um significado a mais além do retórico, de legitimar a santidade registrada. Já no Catalogus, a construção da imagem de uma constelação de santos que reluz – não através de milagres, mas de exempla! – e abre os olhos dos fiéis para a ortodoxia acentua e continua, quase um século depois, a carga semântica de uma ordem repleta de homens virtuosos e extremamente úteis às comunidades onde estão. Afinal, os frades não estão presentes nessas obras apenas para fazer imagem: os autores enfatizam sua eficácia na conversão dos hereges mobilizando as imagens (de significados deveras intensos) que transcrevemos; a “a louvável vida dos pais mortos” e os seus “sinais prodigiosos” devia ser, segundo o Dialogus, colocada diante da testa (obtestata) dos hereges (ver transcrição na nota 9), porque só assim eles perceberiam seus erros. 364

Vale lembrar que os mendicantes foram privilegiados nisso, com ampla liberdade na organização de sua própria liturgia. O dito martirológio romano, esse sim gerenciado pelos papas, não era algo absolutamente universal, em contraste com os catálogos particulares: ao contrário, era destinado à cidade de Roma e àquelas igrejas seculares que não gozavam do privilégio de ter um martirológio próprio. Entre os minoritas, que em tudo seguiam o Rito Romano, os santos da Ordem eram inseridos conforme os dia do martirológio romano, completando-o e tornando-o híbrido.

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A santidade dos frades é capaz de dissuadir a heresia porque manifesta de forma sensível a graça divina; essa sensibilidade não está tanto nos milagres quanto na perfeição da vida, e, sutilmente, essa perfeição é colocada sobre o duplo pilar da obediência e da humildade. Ora, essas não são as duas coisas que se esperava do herege – visto como um prepotente e indisciplinado – para que ele se convertesse à ortodoxia e retornasse “à unidade da fé católica”? Se, como bem mostra Alfredo Lucioni (2009: 279-281), a divergência dos que foram taxados de hereges podia dizer respeito, por exemplo, à adesão a um partido político oposto ao papal, a qualificação de “desobediência” torna-se identificadora do herege; ele é um desviante voluntário, que conhece a verdade mas não a aceita por conta de outros interesses que não os religiosos, e o discurso de fé é empregado para reenquadrá-lo no todo da obediência (que implica tanto a subserviência política quanto a comunhão religiosa, entorno de uma verdade defendida por um dos lados litigiosos). Similarmente, no campo teológico e religioso os movimentos heréticos da época caracterizaram-se pelo retorno constante e radical às Escrituras e ao cristianismo primitivo; isso pode justificar a tentativa dos autores dos catálogos de asseverar que seus frades compõem o corpo da igreja, bem como repetem, atualizam e continuam os seus antigos pais. Por isso, cremos, redunda o discurso anti-herético nos catálogos, voltado para províncias onde dissidentes eram encontrados e fugiam à influência política de uma instituição imaginada e criada para evangelizar e moralizar365. A disseminação das heresias justificou a elaboração de um verdadeiro discurso (que é difícil, para nós, verificar se foi traduzido em um sentimento), durante a chamada Reforma Gregoriana acerca da necessidade da renovação da fé e do reavivamento de uma christianitas cansada e distante do caminho da salvação (LUCIONI, 2009: 286; PACCIOCO, 1990; GAMBOSO, 1986: 12-13); os prólogos de nossas fontes se inserem nesse discurso perfeitamente. Mas quase sempre as questões heréticas tinham como subsídio problemas relativos à autonomia de uma ou outra região, igreja ou diocese (LUCIONI, 2009: 295).

365

Também nos escusaremos de repassar toda a extensa discussão sobre o lugar e as motivações político-sociais da Ordem Minorita. Por ora, basta-nos recomendar algumas referências a esse respeito: Todeschini (1977; 2007), Lambertini (2010) e Evangelisti (2002).

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Se o mapeamento da santidade tiver sido realmente concebida como um instrumento na solução desses conflitos, torna-se óbvio o procedimento de regionaliza-la, pois os problemas eram regionais. Leonhard Lemmens (1903) frisa que, embora para quase todos os frades retratados faltasse informações substanciais para se fazer uma hagiografia, as que foram coletadas pelo Dialogus (e outras fontes) eram de conhecimento do autor do Catalogus, 100 anos depois; no entanto, este hagiógrafo se limitou a fazer apenas uma listagem rápida porque era o necessário: dar a conhecer, aos confrades e ao restante do mundo, esses santos. Tomando novamente o exemplo de Ambrósio de Massa: se o Dialogus lista 55 milagres seus (depois de traçar um perfil apresentador para ele), isto é tudo o que dele temos no catálogo: “em Orvieto frade Ambrósio, homem santo, célebre por muitos milagres”366. A intenção era mesmo marcar, em cada diocese, os santos frades cuja fama de santidade pudesse ser instrumentalizada pela Ordem e, além disso, cuja reputação pudesse garantir a aceitação de seu ofício político-religioso. Ademais, tratava-se de personagens que, antes de serem representados, imaginados, viveram nos lugares onde se relata, e estabeleceram laços e vínculos com a comunidade local, portanto, ao contrário de evocar santos “estrangeiros” para providenciar essa legitimação, cada província procurou proclamar seus santos domésticos, muito mais significativos e, por conseguinte, eficazes para as suas comunidades Para Paccioco (1990), os santos desses catálogos não foram canonizados porque não atenderam ao perfil requisitado pelo papado: não foram representados satisfatoriamente como anti-heréticos e evangélicos, apostólicos. De fato, a tomar como exemplo do relato que o Dialogus faz de Ambrósio de Massa, embora o prólogo da obra insista nesse perfil (porque o autor está sintonizado com a demanda papal) em nenhum momento ele aparece pregando ou convertendo hereges. Ao contrário, o seu perfil é o de um personagem extremamente vinculado à sua comunidade, da qual ele cuidava, em vida, socorrendo os pobres e os doentes, bem como ouvindo as suas confissões, e, em morte, beneficiandoos com milagres de cura e exorcismo, principalmente, e com o exemplum que sua virtude deixara (DIALOGUS, 1923: 133-188). Algumas cartas que versam sobre problemas que a cidade de Orvieto, onde Ambrósio viveu, mostram-no intervindo em conflitos, pacificando litigantes e socorrendo a

366

“In Urbe veteri frater Ambrosius, vir sanctus, multis miraculis claruit” (CATALOGUS, 1903: 13).

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população. E eram muitos esses problemas! De maneira que justifica-se a propaganda que os catálogos fazem de seus santos, capazes de proteger e conduzir moralmente suas comunidades por meio de seus exemplos.

Considerações finais

Por isso os catálogos são, a nosso ver, mais reflexos dessas demandas do mundo citadino do que das querelas intestinas da Ordem. Demandas de um universo fragmentado pela dissidência, fosse a dos frades, dentro da instituição, fosse a da comunidade inteira, povoada de grupos atrelados a posicionamento político-religiosos diversos. E, mais que isso, as hipótese que aqui delineamos pretendem, numa etapa posterior da pesquisa, levar em conta o momento político das cidades abordadas nos catálogos: elas se encontravam sob regimes comunais tão ansiosos por se sacralizar quanto a própria Ordem Minorita. Nesse sentido, Paccioco (1990) tem razão em falar de uma “territorialização da santidade” minorita. A gestão do sacro era local, não universal. Os catálogos atrelam essa santidade muito intimamente a uma comunidade, porque, na falta do reconhecimento papal, vale o reconhecimento dos fiéis. Uma vinculação que não fora unilateral, sem dúvidas: estamos falando de um período de declínio dos regimes comunais no centro da Itália. A insistência dos prólogos que aqui analisamos talvez comungue, então, a uma ideia de que as comunidades sob esses regimes declinavam porque seus cidadãos afastavam-se do caminho da retidão. E a Ordem se apresenta, diante disso, como um guia iluminado, capaz e orientado por Deus, para reconduzir essas sociedades rumo à salvação, à salus. A historiografia tem mostrado, já há algumas décadas, que os regimes comunais, ansiosos por construir a própria sacralidade e assegurar a própria legitimidade, apegaram-se intensamente a santos novos, e no atendimento dessa ansiedade os minoritas foram pródigos; o que não é de se espantar, afinal, a sua busca institucional, regionalmente, era a mesma367. Nesse processo de auto-representação

367

Sobre esse tema indico a leitura dos anais compilados por André Vauchez (1995), sobre a religião cívica.

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e auto-construção, o discurso de uma renovação religiosa e do combate às dissidências cumpriu papel decisivo. Por fim, não se pode esquecer que, por trás da alegação de que os processos canonizatórios de frades como Ambrósio de Massa não satisfizeram os critérios papais e por isso não foram aceitos, o que o papado tentava fazer era controlar o poder e a liberdade que dava tanto aos minoritas quanto às cidades sobre as quais exerciam influência, e dar um santo a uma cidade era dar-lhe bastante poder e glória. Este parece ter sido, afinal, o caso de Orvieto e Corneto – onde eram cultuados Ambrósio e Benvindo, respectivamente –, cidades de menor envergadura (em relação a Assis ou Pádua, por exemplo), que não eram imponentes o bastante para barganhar com os pontífices, malgrado tenham se esforçado nisso, como mostram as bulas através dos quais os papas respondem às frequentes súplicas de seus cidadãos, representados sempre por embaixadores nomeados pelas comunas (como a já citada Dei sapientia). Mais um indício, portanto, de que a demanda pela santidade não parte somente dos frades ou do papa, mas, sobretudo, dos seus consumidores finais, os cidadãos (como vimos, o Catalogus dirige-se nomeadamente à “devotio populorum”)368.

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Franciscana.

Roma:

Tipografia

Salustiniana,

1902.

Disponível

em:

. Acesso em: 14 mar 2014.

368

Crucial em nossa hipótese é entender a importância que essa devoção, cotidiana, exercia na vida política, comunitária, religiosa medieval. Para tanto, ver Thompson (2005).

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FONTES MEDIEVAIS PARA O ESTUDO DA ORDEM FRANCISCANA Fernanda Amélia Leal Borges Duarte369

Introdução

A Ordem Franciscana é conhecida desde sua formação por ser adepta da renúncia material e da pobreza como condição de vida religiosa. Mas como foi este processo de formação? As fontes que iremos utilizar neste estudo são: as regras não Bulada e a Regra Bulada. As regras foram escritas durante o século XIII com a finalidade de delinear as convicções religiosas da Ordem Franciscana e formam sua base estrutural. A discussão deste texto está centrada numa análise de comparação dos documentos citados e na compreensão das propostas iniciais de Francisco de Assis no que se remete aos aspectos da pobreza como um modo de vida durante o século XIII. Chiara Frugoni (2011) salienta a perspectiva de Francisco como um homem comum que se converte a vida religiosa. Para o desenvolvimento do texto utilizou se também como fonte o testamento de Francisco escrito antes de sua morte no ano de 1226. Na analise deste documento compreende a posição de Francisco diante dos novos caminhos que seguia a ordem e seu pedido de que todos os irmãos mantivessem os princípios do evangelho.

Breve histórico da formação da Ordem Franciscana.

A Ordem Franciscana teve seu inicio no século XIII e seu fundador foi Francisco de Assis. Nasceu e viveu na cidade de Assis com seus pais, começando sua vida religiosa segundo a tradição no ano de 1206. Antes de seguir os preceitos religiosos Francisco era um jovem comum gostava de se 369

Graduada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/UFMS e atualmente esta no curso de mestrado em História na PUC GO.email: [email protected]

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divertir com os amigos e ajudava o pai na loja de tecidos da família. Sobre sua juventude compreende se que: (...) “nessa fase da vida Francisco é movido não pela compaixão pelos mais fracos, e sim pelo código social dos amigos nobres,” (...) (FRUGONI, 2011; p.22) A historiografia franciscana tradicional relata que Francisco se converteu em 1206 após ouvir um “chamado” do crucificado na Igreja de São Damião. A partir deste dia Francisco modifica seu modo de vida. O moço que tinha uma vida de nobre passa a adotar uma vida em condições de pobreza. A pobreza era assumida de forma voluntária, seja para o auxílio ao próximo. Sobre esta a relação do pobre como a sociedade pode-se dizer que:

(...) o Franciscanismo contribuiu para a introdução no mundo medieval de uma nova representação do pobre, não mais visto como mero instrumento para a salvação do rico, e nem como alguém imerso em um estado pecaminoso, mas sim como um ser humano a ser valorizado por si mesmo (....) (BARROS, 2011;p118)

O modo de vida, a perspectiva religiosa e as mudanças na visão social em relação à pobreza proposta por Francisco logo foram se expandido e alcançando pessoas que se identificavam com esta nova singularidade, de vivenciar o evangelho na prática cotidiana. A partir do momento que o número de companheiros de Francisco aumenta surge à necessidade de fazer este modo de vida, ser regulamente aceito pela Igreja, que na época era rígida com os novos movimentos religiosos. Francisco viaja a Roma com seus companheiros para conversar e apresentar ao papa Inocêncio III uma Regra que mostrava sobre sua proposta de vida religiosa cristã, e obediência a Igreja. Depois de avaliações do papado sobre o modo de vida dos Franciscanos a regra é aprovada verbalmente. Esta primeira “regra” apresentada ao papa se extraviou no decorrer do tempo, não se tem documentação oficial da Igreja a respeito desta regra. A historiografia tradicional da ordem a descreve. Mas o testamento370 escrito por Francisco descreve sobre este primeiro encontro com o Papa. 370

Fontes Franciscanas, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004. O documento Testamento p.83

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E depois que o senhor me deu Irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu o fiz escrever com simplicidade e com poucas palavras e o senhor Papa mo confirmou.

Após ter aprovação papal inicia os trabalhos missionários dentro das convicções religiosas de Francisco. Nesse momento começa a pregação itinerante. De tempos em tempos, haverá nessa pregação uma etapa marcada por um episódio célebre ou significativo, e nos demoraremos nos pontos extremos da viagem – para Roma ou fora de Itália. Mas, salvo breves retiros, Francisco e seus companheiros estão sempre nas estradas, pregando nas cidades e nas aldeias. (...) (LE GOFF; 2005, p 69 e 70)

Os trabalhos foram se ampliando e também o número de frades foi aumentando e novamente às dificuldades de oficialização da Ordem Franciscana apareceram. Diante deste fato foi necessário que Francisco escrevesse outra regra.

Regra não Bulada e Regra Bulada

A Regra não Bulada e Regra Bulada foram os documentos escritos por Francisco como objetivo de delinear as convicções do modo de vida que a ordem Franciscana deveria seguir. Mas porque Regra Bulada e Regra não Bulada? A regra não Bulada foi a primeira escrita por Francisco em 1221, e que não foi aceita pelos membros da ordem e pelo Papa Honório III. A Regra Bulada seria a segunda escrita em 1223 e supervisionada pelo ministro geral Frei Elias de Cortona e pelo papa Honório III e que viria a ser a regra oficial da Ordem Franciscana.

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A regra não Bulada foi escrita diretamente por Francisco de Assis, durante a leitura deste documento percebe - se logo de inicio a preocupação da ordem de estar dentro dos preceitos e obediência à Igreja, mas no decorrer desta leitura compreende que os capítulos estão determinando um modo de vida em obediência ao evangelho e que em muitos momentos tem citações dos versículos. Como no primeiro capítulo Os irmão devem viver sem nada de próprio, em castidade e em obediência371:

A regra e a vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem nada de próprio e seguir a doutrina e os vestígios de Nosso Senhor Jesus Cristo, que diz: se queres ser perfeito, vai e vende tudo o que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no Céu; e vem, segue-me. (...)

O ato da obediência entre Igreja e evangelho faz refletir sobre: o preceito obediência se deve ter pelas regras da Igreja ou pelas regras do franciscanismo proposto por seu fundador na vivência do evangelho? A leitura leva a compreender que obediência aos legados do papa são importantes e necessários para manutenção da Ordem. Mas o principal objetivo da Regra é a solidificação do modo de vida que os frades deveriam seguir dentro dos preceitos do evangelho. As principais regras de obediência são a castidade, pobreza e caridade. A pobreza está presente em quase todos os capítulos, mas além de um modo de vida é a busca por uma prática de caridade nas atividades pastorais.

Para boa parte do monaquismo tradicional o século XII, por exemplo, a vita apostólica que ansiavam por viver era pouco mais do que uma vida comum de pobreza individual e orações, não apresentando um programa de trabalho pastoral e de ação no mundo junto às populações mais humildes. Contudo, no próprio seio 371

FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documento Regra não Bulada, p.41

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do movimento monástico, e também entre os cônegos, foi se desenvolvendo a idéia de que uma verdadeira vita apostólica deveria passar a incluir algum tipo de atividade pastoral. É este ideal que iria se materializar nas primeiras décadas do século XIII com a proposta dos mendicantes. Desta maneira, o franciscanismo deverá ser visto dentro de quadro geral onde se desenvolve uma nova forma religiosa de se situar no mundo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma forma de responder aos desafios de seu tempo. (BARROS; 2011, p. 113).

O modo de vida franciscano na regra não Bulada é voltado para a vivência do evangelho, e compreende isto quando os capítulos pontuam os caminhos da humildade, pobreza, amor ao próximo e também quando são citandos os cuidados com os doentes principalmente os leprosos que eram rejeitados pela sociedade na época. Portanto a regra não Bulada tem características de um seguimento espiritual. “Ao formular as normas de vida para si e seus companheiros, havia considerado como ponto de referencia apenas o evangelho, a ser difundido sobre a terra” (...) (FRUGONI; 2011, p.117) Como observou nono capítulo Do pedir esmola372:

Todos os irmãos empenhem-se em seguir a humildade e a pobreza de nosso senhor Jesus Cristo e recordem-se de que nada mais nos importa ter do mundo inteiro, a não ser, como diz o apóstolo: tendo alimentos e com que nos vestir, estejamos contentes com isso, e devem alegra-se quando estiverem entre pessoas vis e desprezadas, pobres e débeis, enfermos, leprosos e mendigos de rua. (...)

A regra Bulada é uma documentação que tem objetivo de oficializar a Ordem Franciscana. Alguns capítulos são iguais ou parecidos com a da regra não Bulada, mas não tem a profundidade nos assuntos da obediência na vivência do evangelho. Tendo a característica de determinar a

372

FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documento Regra não Bulada,p.47 e 48.

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institucionalização e os preceitos das hierarquias dentro da ordem deixando praticamente de lado a igualdade entre os frades.

(...) A maior parte das citações do evangelho da regra de 1221 foi suprimida, como foram suprimidas as passagens líricas, em favor de fórmulas jurídicas. Um artigo que autorizava os frades a desobedecerem aos superiores indignos também foi suprimido. Da mesma forma, tudo que se referia aos cuidados a serem dispensados aos leprosos e todas as prescrições que exigiam uma pobreza rigorosa a ser vivida pelos irmãos. A regra não insistia mais na necessidade do trabalho manual e não mais proibia que os frades tivessem livros. (...) ( LE GOFF; 2005, p. 86)

Quando se faz a leitura da regra Bulada compreende que seus capítulos são menores comparados com a da regra não Bulada. Alguns capítulos encontram se resumidos e no mesmo espaço várias advertências ou conselhos do modo de vida, como por exemplo, no capítulo terceiro: Do oficio divino e do jejum e de como os Irmão devem ir pelo mundo373.

(...) em outros tempos, porém, não estão obrigados a jejuar, a não ser na sexta-feira mas, em tempos de manifesta necessidade, os irmãos não sejam obrigados ao jejum corporal. Aconselho ainda, admoesto e exorto os meus irmãos no senhor Jesus Cristo que, ao irem pelo mundo, não entre em letígios, nem em brigas de palavras vãs , nem julguem os outros. Mas, sejam brandos, pacíficos e modestos, mansos e humildes falando honestamente com todos, como convém. E não devem andar a cavalo a não ser quando coagidos por manifesta necessidade ou enfermidade. Ao entrarem numa casa, digam primeiro: paz a esta casa. (...) 373

FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documentos Regra Bulada, p.64

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Neste capítulo argumenta a necessidade de se fazer os jejuns e as orações durante a quaresma e depois inicia o assunto sobre como deve ser o comportamento dos frades em suas missões pelo mundo, não utilizar o cavalo como transporte e somente em caso de enfermidade e um conselho de desejarem a paz em todos os lares que entrarem. Enquanto na regra não Bulada cada um destes assuntos tem um capítulo especifico e é argumentado detalhadamente com advertências e conselhos374. O capítulo sétimo Da penitência a ser imposta aos irmãos que pecam é outro ponto de discordância em relação a primeira regra, pois neste capítulo compreende a necessidade de dar a penitência ao frade que não está dentro da obediência das regras da ordem Franciscana. Além de ser contrário às propostas do fundador da ordem, (...) “O mesmo Francisco que se recusava a punir e corrigir os frades insurgentes à pobreza e simplicidade originais, pois, dizia, o próprio magistério se fundava no evangelho e não no poder” (...) (FRUGONI; 2011, p.161) Estes foram apenas alguns pontos de comparação e analise para compreender a necessidade da Igreja Católica em oficializar em breves preceitos uma ordem que foi capaz de modificar o pensamento religioso e social no século XIII. A modificação nas representações da pobreza e destacando a verdadeira pratica do evangelho no cotidiano. Francisco, já no final de sua vida escreve outro documento, o testamento que aborda brevemente sua trajetória na vida religiosa e adverte sobre o seguimento da regra dentro dos preceitos do evangelho. (...) “o próprio altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo evangelho375” (...). A autora Frugoni também faz algumas argumentações a respeito da insatisfação de Francisco com a regra Bulada.

374

Na regra não bulada os capítulos são: Capítulo 3 Do divino e do jejum, capítulo 11 Os irmãos não blasfemem nem se destratem, mas amam-se uns aos outros, capítulo 14 Adverte como os frades devem ser quando saem para fazer suas missões e o capítulo 15 Os irmãos não andem a cavalo. 375 FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004. Documento testamento, p 84

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Foi provalvemente

em Celle, durante um período de melhora, que ditou o seu

testamento. Poucas páginas, complexas e trágicas, nas quais recapitula sua vida e sua experiência, reafirmando pela fidelidade à sua primeira Regra, ao trabalho manual, a assistência dos leprosos, obrigando a si e os frades ao mesmo respeito: como se pudesse recomeçar desde o inicio e confiar, como irmãos que está prestes a deixar, num longo futuro novos projetos. Reivindica a originalidade de sua obra desejada por Deus, e não por uma Igreja pela qual tem respeito, mas na qual também guarda distância. (...) (FRUGONI; 2011; p.161)

A proposta de vida na prática da pobreza e da vivencia do evangelho na regra não Bulada poderia ter causado grandes mudanças nos aspectos religiosos cristãos e seria um perigo para a estrutura das normas eclesiásticas. Talvez este seja o motivo das modificações realizadas no segundo documento, a chamada regra Bulada.

Breves considerações

Estes são breves considerações sobre algumas fontes medievais que auxiliam a entender a formação do franciscanismo e as suas propostas e mudanças no decorrer de sua composição no contexto do século XIII. Estas indagações que foram norteadas ajudam a entender a influencia e o poder da Igreja Católica medieval, analisando se as praticas de uma regra que propõem viver o evangelho e outra que determina a oficialização e os seguimentos de uma ordem que representou os marginalizados da sociedade na sua época. A ordem Franciscana como instituição deixa de um lado de preservar na sua pureza original as convicções de Francisco, mas teve papel importante no contexto medieval ao abrir as discussões sobre o trabalho de assistência e da vida apostólica tendo como base somente o evangelho. Discussões que

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permearam o franciscanismo no século XIII e que possibilitam estudos na historiografia no âmbito da religiosidade e social.

Fontes e Referências Bibliográficas

FONTES FRANCISCANA, organizada pelo FreiDorvalino Francisco Fassini (OFM). Santo André, São Paulo; Editora O mensageiro de Santo Antonio, 2004. BARROS. José D´ Assunção. Considerações sobre a história do franciscanismo na Idade média. In Estudos da Religião, v.25, n. 40, 110-126, jan/jun. 2011. FALBEL. Nalchman. Os espirituais franciscanos. São Paulo; Perspectiva: FAPESP: editora da Universidade de São Paulo, 1995. FRUGONI. Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo, Companhia das Letras, 2011. LE GOFF. Jacques. São Francisco de Assis. 7ª edição; Rio de Janeiro, 2005. LE GOFF. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. MIALETO. André. A Transcendência imanente no ordenamento social da Idade Média: os limites da dicotomia sagrado e profano. In Veredas da História. Ano III - Ed. 2 – 2010; ISSN 1982-4238. www.veredasdahistoria.com VAUCHEZ. André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

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A CRISE NO CAMPO E A PROTEÇÃO À NOBREZA: A LEI DAS SESMARIAS EM PORTUGAL DURANTE O REINADO DE D. FERNANDO (1367-1383)*

Fernando Lobo Lemes PUC/Goiás | PNPD/CAPES

Retomar o estudo da Lei das Sesmarias pode parecer redundância ou mesmo, caso se percorra caminhos ainda não trilhados, pretensioso. Apesar do desafio que representa, a intenção de buscar compreender melhor o contexto no qual foi elaborada, correlacionando-a com acontecimentos coetâneos, nos aparece como elemento propulsor para tal iniciativa. Mesmo porque, fala-se muito na Lei das Sesmarias, mas o conhecimento histórico do período no qual foi gestada, parece relegado a planos de pouca importância para o estudioso. Deste modo, imaginamos ser fundamental a compreensão dos motivos que conduziram à sua concepção já que, apesar de filha do século XIV, transcendeu o próprio tempo de sua criação e ultrapassou os limites do solar lusitano espalhando-se pela vasta extensão dos domínios ultramarinos portugueses. Deslocando a problemática do domínio jurídico para um mergulho mais detido no emaranhado histórico do Trezentos medieval português, pensamos contribuir para um maior esclarecimento aos interessados no estudo de história rural, pois com a Lei das Sesmarias, “aproveitando e fazendo reviver certos preceitos antigos, leis esparsas e costumeiras isoladas, erige-se uma das primeiras leis agrárias da Europa que mereça tal nome”.1 Procuramos através da correlação do texto da lei e a história de seu tempo, demonstrar o que nos parece determinante na sua elaboração e aplicação: a Lei das Sesmarias num contexto em que conflitos entre trabalhadores rurais e proprietários de terra permite-nos entrever a aurora de um novo

* Uma versão preliminar deste estudo foi publicada com o título A Lei das Sesmarias e Portugal no século XIV na Revista Jurídica da UniEVANGÉLICA, nº 9, jan-jun, 2004, p. 99-119. 1 RAU, Virgínia. Sesmarias Medievais Portuguesas. Lisboa, Presença, 1946, p. 26.

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modelo de relações, levadas a cabo por transformações políticas, econômicas e sociais que desencadearam, por sua vez, uma alteração profunda nos valores e na visão de mundo da época. A Lei das Sesmarias, como toda produção histórica e social dos homens, é indissociável de sua própria gênese. Qualquer referência a ela, portanto, implica necessariamente noutras: espacialmente, a nação lusitana – o Portugal de D. Fernando (1367-1383), último rei da primeira dinastia. Temporalmente, o século XIV. Os séculos XIV e XV são genericamente tidos como período de transição, contudo constituem uma época cujas referências na historiografia ocidental em sua maioria não discordam: tempo de crise profunda, ampla, que atingiu indiscriminadamente toda a sociedade e espaço europeus. Embora tomados em conjunto, é prudente não exagerar nas conclusões, ora homogeneizando, ora unificando peculiaridades e características próprias do período. Nos diz A. H. de Oliveira Marques, estudioso do assunto, referindo-se especificamente a Portugal, mas cujo raciocínio podemos certamente generalizar para toda a Europa: “A crise não foi una [...] Subdividiu-se em crises várias, parcelares, quer no tempo quer no espaço. Assumiu formas várias também, mais ou menos acentuadas e actuantes conforme as décadas e os locais”.2 Quanto ao mesmo assunto nos diz também Bernard Guenée: “[...] quaisquer que sejam os pontos comuns, são grandes as diferenças entre 1300, 1400 e 1500 [...]”.3 Portanto, precaução inevitável para o historiador que se aventura por este território: atenção e cuidado com as demarcações espaço-temporais que envolvem a análise dos acontecimentos do século XIV e XV. Neste contexto, Portugal “[...] não destoou do panorama geral europeu, antes se integrou perfeitamente nele, conquanto com aspectos ‘sui generis’, próprios da sua situação geográfica excêntrica e do regionalismo intenso que caracterizava o mundo feudal”.4 Ao longo destes dois séculos Portugal caminhou lado a lado com os demais reinos do continente europeu. Até certo ponto o mesmo solo, os mesmos sistemas políticos, os mesmos ideais, a mesma crise. 2

MARQUES, A H. Oliveira. Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa, Presença, 1987, p.152. GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: Os Estados. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1981, p. 325. 4 MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 47. 3

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Contudo, “[...] Em poucas épocas da história medieval portuguesa terá havido um tão grande sincronismo entre acontecimentos verificados em Portugal e acontecimentos semelhantes verificados noutras partes da Europa, como durante o reinado de D. Fernando”.5 Vale também dizer que, se uma onda torrencial de crise invadiu toda a Europa durante o século XIV, em Portugal foi exatamente durante o reinado de D. Fernando o seu ponto mais agudo. Era como se num crescendo constante, todas as dificuldades do reino caminhassem sem solução, durante toda a extensão do século XIV, em direção ao governo de D. Fernando. Palco de implacável convulsão, antecâmara da guerra civil que se instalaria logo após sua morte, seu governo, fazendo chamar “[...] comdes, e prellados, e meestres, e outros fidallgos, e cidadaaos de sua terra [...] E feito huum dia jumtamento de todos”,6 promulgou, provavelmente em 1375 (ou pouco antes), elaborada por juristas da época, a Lei das Sesmarias. Ao longo dos séculos, acusada de violentar a liberdade do cidadão e de ser um verdadeiro ataque à propriedade individual, além de recurso violento para aumentar os proventos do erário régio, nela encontramos uma harmonia imparcial com as condições de seu tempo: a violência da lei correspondeu à violência da crise. A possibilidade de uma legislação que assume força e importância cada vez maior durante o fim da Idade Média, advém, na verdade, das diretrizes de um governo cujas características básicas definem um constante processo de centralização administrativa que, neste caso específico, oferece condições para compreendermos melhor a elaboração de tão amplo código legal, tal como se observa na Lei das Sesmarias. O modelo administrativo que sobrevive no século XIV, em todo o mundo ocidental europeu, característico de um Estado burocrático centralizado utiliza-se, cada vez mais, de uma legislação e impostos gerais que “[...] foram gradualmente impondo uma única administração, um único senhor e um único conceito de súdito”.7

5

Idem, p. 512. LOPES, Fernão. Crônica de D. Fernando. Porto, Civilização, 1986, p. 237. 7 MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 48. 6

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CRISE NO CAMPO E DIVERSIFICAÇÃO DA ECONOMIA

Não se pode duvidar da importância indiscutível da agricultura na Europa dos tempos medievais. Tal importância podemos ver espelhada no progresso técnico galgado nesta atividade durante os séculos XIV e XV, como também em tempos precedentes, muito ao contrário do que se tem ensinado ao longo dos anos. Os aperfeiçoamentos técnicos e adaptações a situações novas, às vezes inesperadas e adversas, apesar de insuficientes para conter as crescentes dificuldades, permitiram amenizar os sofrimentos diante da crise que se instalou já no século XIV. Sabemos hoje que as dificuldades podem promover avanços. Os homens do Trezentos e Quatrocentos português, no anseio por medidas que dessem solução aos problemas vigentes, para além das técnicas, elaboraram e decretaram leis, ordenações e circulares que pudessem servir de remédio para os males detectados. A agricultura, que acudia no essencial não apenas as necessidades nacionais como alimentava a exportação crescente para o estrangeiro, responsável e mantenedora da riqueza e privilégios dos grandes senhorios, carecia, em meio à crise que se avultava, do fomento imediato que lhe restituiria a força e o impulso produtivo. Foi assim que, num movimento praticamente simultâneo entre os reinos europeus, buscou-se a redenção da agricultura. Primeiro na Inglaterra, onde o parlamento decretou, em 1349-1351, o Estatuto dos Trabalhadores cujo texto, na opinião de Virginia Rau, “[...] podemos comparar com a Lei das Sesmarias não só nos males a remediar, como também em relação à taxa dos salários e a limitação da faculdade do trabalhador rural procurar livremente ocupações mais remuneradoras”.8 A Ordonnance francesa de 1351 repetia dispositivos semelhantes. Aquém Pirineus, no mesmo ano, as cortes de Castela, reunidas em Valladolid, decretaram a regulamentação dos salários. Os príncipes germânicos impuseram controles similares na Bavária, em 1352.9

8 9

RAU, Virgínia. Op. cit., p. 87. ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 196.

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Em Portugal, duas décadas mais tarde, D. Fernando reconheceria, no preâmbulo da Lei das Sesmarias, a necessidade vital da agricultura, “[...] mais profeitosa e necessária pêra a vida e mantimento dos homeens e das aljmaljas que Deus criou pêra serviço do homem e ajnda pêra ganhar e auer algo sem pecado e com homrrra e em boa forma colhando em esta razom”.10 Fundamento do Portugal Trecentista, Portugal agrário, cujo processo de urbanização traçou, a partir de então, perenes linhas que demarcaram, e ainda demarcam, relevantes divisões no interior de suas próprias fronteiras, a agricultura interligou-se às condições gerais do reino. Uma má condição agrícola, portanto, refletiria, na estabilidade geral da sociedade e da economia portuguesa. Entretanto, a indicação de uma queda na produção aparece clara nos documentos da época, em todas as partes do reino. A falta do trigo e da cevada, elementos essenciais para economia, conseqüência de uma queda abrupta na produção, promovia a ausência destes produtos e sua conseqüente alta nos preços.11 Contudo, o que teria realmente provocado a queda na produção e levado à falta e carestia dos cereais? A lei dirá: o desamparo e o abandono das terras “[...] deitadas em rossijos sem proll e com dapno dos poboos”.12 Sem sombra de dúvida, o documento não mente. Mas estaria nele, na superfície do texto, explícita claramente toda verdade? A complexidade da crise que envolve o século XIV e, particularmente, o reinado de D. Fernando, nos leva a uma afirmação negativa para a questão colocada: não, ainda outros elementos estariam a dificultar o equilíbrio da produção agrícola portuguesa e, até mesmo, induzindo ao abandono e desamparo das terras. O solo europeu havia sofrido “intensos desbravamentos [...] que provocaram uma transformação radical das paisagens, a mais espetacular na história do campo. Por toda parte, os

10

Lei das Sesmarias. In RAU, Virgínia, Op. cit., p. 267. Interessante notar que em todo o texto da Lei das Sesmarias não se percebe a preocupação dos juristas em considerar as sucessivas desvalorizações monetárias, das quais trataremos adiante, ocorridas durante o século XIV e, especialmente, durante o reinado de D. Fernando, como causa, nem ao menos parcial, da elevação dos preços dos produtos agrícolas. A ênfase é dada “antre todallas razões”, na queda da produção ou, como diz o próprio texto, “per mingua das lavouras”. 12 Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 267. 11

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camponeses fizeram recuar os bosques, as landas e as terras incultas”.13 Os pauis portugueses, que exemplificam a “[...] conquista dos grandes pântanos, tão difícil e embora imperfeitos é, com certeza, a realização humana mais espantosa da época”.14 A este respeito, diz Anderson que a “derrubada de florestas e as terras desoladas não haviam sido acompanhadas de um cuidado considerável em sua conservação” e, ainda, que “as terras aradas mais antigas estavam sujeitas ao desgaste e deterioração pela própria antiguidade de seu cultivo. Desta forma, conclui: “[...] o processo da agricultura medieval incorria agora em suas próprias perdas”.15 Dificuldades na aplicação de fertilizantes, de maneira que a camada superior do solo era rapidamente exaurida, enchentes e tempestades de poeira freqüentes, complementam o rol das manifestações de um equilíbrio ecológico precário que incidiam sobre os limites de uma técnica cuja evolução se processava de forma relativamente lenta. Tudo isso impelia a um emperramento dos mecanismos de reprodução do sistema vigente à época, agrário por excelência. Conseqüência nefasta desta insidiosa situação, o século XIV viu pontilhado ainda nos seus anos iniciais a face cruel da fome: 1315 e 1316 foram anos de péssimas colheitas, fazendo mesmo decair o índice de nascimentos em toda a Europa.16 Particularmente em Portugal, já em 1349, circulou em todo o reino, lei de D. Afonso IV, endereçada aos “[...] juyzes e uereadores e homens boons”, sobre o impacto inicial da “[...] pestilência que hy ouue”17 que, se não faz referência direta à outras causas da crise que não a Peste Negra de 1348, pelo menos nos deixa entrevê-las: as condições da agricultura do reino iam já de mal a pior. Um pouco mais tarde, D. Pedro, em lei datada de 18 de fevereiro de 1364, dirigida aos “homens boons e concelho de Santarém”, queixava-se, referindo-se à falta de mantimento naquela vila, que “[...] os reis que antes mym foram morauam per longos tempos e auyam auondamento de todas

13

HEERS, Jacques. O Ocidente nos Séculos XIV e XV: Aspectos Econômicos e Sociais. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1981, p. 31. 14 HEERS, Jacques. Op. cit., p. 31. 15 ANDERSON, Perry. Op. cit., pp. 191-192. 16 Idem. p. 193. 17 Livro das Leis e Posturas. Folhas 158v-160. In RAU, Virgínia. Op. cit., pp. 260-263.

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aquellas cousas que lhe cumpriam sem graueza”.18 Aqui o saudosismo denota a crescente debilidade agrícola. Uma vez mais, a legislação veio a reboque dos fatos. A crise agrícola apontada pela maioria dos documentos da época parecia não se permitir limites: ao desgaste inevitável do solo, juntavam-se outras conseqüências de um desequilíbrio ecológico produzido pelos avanços da própria agricultura. Além disso, outros fatores de não menos relevância, somados à situação ecológica precária, viriam agravar ainda mais os momentos de profunda dificuldade pelos quais passavam os campos do reino português. Que a produção de cereais foi sensivelmente reduzida durante os séculos XIV e XV, não resta dúvidas. Em contrapartida, “forçoso é reconhecer que o vinho, o azeite, o sal e a fruta conheceram fases de expansão, tornando-se fonte de riqueza e objeto de exportação para o estrangeiro”.19 Portugal seguia então uma tendência mais ampla de internacionalização de sua economia, pois, de acordo com Anderson, “[...] a diversificação da economia feudal européia junto com o crescimento do comércio internacional haviam levado algumas regiões a diminuir a produção do milho, dos cereais, às custas de outros (vinhas, linho, lã ou pecuária), e assim, a um aumento na dependência da importação – e aos perigos correlatos”.20 Neste sentido, na expressão de Oliveira Marques, Portugal “europeizou-se”. O panorama geral do século XIV revela, então, uma crise avassaladora ou uma transformação profunda no processo produtivo do reino português ? Assim, melhor talvez que definir esta condição através da noção de crise, seria dizer, ainda com Oliveira Marques, “[...] que houve, sobretudo uma transformação na economia portuguesa que, se a tornou mais dependente de compras no exterior, a converteu também em economia de troca com a demais Europa”.21 Tal foi a transformação que se pôs em marcha que às dificuldades do campo se contrapunham os movimentados portos das cidades litorâneas portuguesas, sobretudo Lisboa e Porto. 18

A.N.T.T., Chancelaria de D. Pedro I, livro I, folha 93. Idem. pp. 264-266. MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 50 20 ANDERSON, Perry. Op. cit., p.192. 21 MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 51. 19

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No reinado de D. Fernando quando, de acordo com Fernão Lopes, “começou de reinar o mais rico Rei que em Portugal foi ataa o seu tempo”, passavam por Lisboa, “[...] assim como Genoeses, e Prazentjns, e Lombardos, e Catelãaes Daragom, e de Maiorgua, e de Millam, que chamavom millaneses e Corsijns, e Bizcainhos, e assi doutras nações, a que os Reis davom privillegios e liberdades”. Neste tráfego intenso, “[...] faziam vijr, e enviavom do reino gramdes e grossas mercadorias”, e “afora as outras cousas de que em esta çidade abastadamente carregar podiam, soomente de tonees, afora os que levarom depois os navios na segumda carregaçom de março”.22 Fernão Lopes nos dá a medida da abundância. A dar-lhe crédito, não detectaríamos crise alguma, pelo menos não em Lisboa, para onde se dirigiam “[...] de desvairadas partes mujtos navios a ella, em guisa que com aquelles que vijnham de fora, e com os que no reino havia jaziam mujtas vezes ante a çidade quatro centos e quinhemtos navios de carregaçom”.23 Assim, uma ambigüidade, uma dicotomia entre campo e cidade parece preencher os olhares voltados para o reino português do século XIV. Entretanto, considerando este século na perspectiva de um afunilamento, digamos assim, da crise em direção ao governo de D. Fernando, nele se chocará o observador com uma conjuntura nunca antes mais negra, nunca menos alentadora. Desalento que, provavelmente, superou em muito as expectativas otimistas dos centros urbanos com relação aos campos. Agravando ainda mais as sérias e já seculares dificuldades do reino, o governo de D. Fernando, o Inconstante, instalou o temor sobre a população. Em primeiro lugar, a persistente tendência belicosa do rei, cujo reinado, “de quase um quarto de século não foi pacífico, quer interna quer externamente”.24 Envolveu-se em três guerras contra Castela, cujas causas não podem ser compreendidas perfeitamente fora do quadro europeu da Guerra dos Cem Anos. Por outro lado, de acordo com Oliveira Marques, e bem ao contrário de seu pai, “[...] desdenhava da companhia de populares,

22

LOPES, Fernão. Op. cit., pp. 4-5. Idem, Ibidem. 24 TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. “Para o Estudo do Pobre em Portugal na Idade Média”. In Revista de História Econômica e Social, v. 11, Lisboa, 1983, p. 35. 23

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preferindo-lhes a nobreza”.25A mesma nobreza que esteve nos bastidores das aventuras bélicas em que se envolveu. Tais guerras, enfim, empurravam ainda mais intensamente o reino português rumo ao abismo que atropelava a vida do povo. A destruição dos campos e das cidades levava ao empobrecimento da população, dificultando o trabalho e a produção.26 Fernão Lopes, fonte indispensável para o estudo do assunto, nos dá noticias, também, da eclosão de revoltas e uniões populares. No entanto, “[...] reflexo evidente da profunda instabilidade social em que mergulhava o reino à entrada do último quartel do século XIV”,27 estes movimentos tiveram profunda relação com as guerras com Castela e a situação geral durante o reinado de D. Fernando e não apenas com o casamento do monarca como o quer Fernão Lopes.28 A resposta régia a tais movimentos assumiu sempre o caráter de extrema violência, o que não impediu a eclosão de novas manifestações.

Outro acontecimento determinante para os anos

fernandinos e indicador da inconstância e variações de posições que caracterizaram o seu governo foi o Grande Cisma do Ocidente.29 A política externa promovida por D. Fernando, fez oscilar as opções, flutuando “[...] de obediência em obediência, consoante o fazer e o desfazer das alianças diplomáticas: de Urbano VI passou a Clemente VII (1378) – embora com hesitações no começo -, deste novamente a Urbano VI (1381) e, uma segunda vez, a Clemente VII (1382)”.30

25

MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 510. “A política belicista do reinado de D. Fernando tivera graves conseqüências para todo o país. As reservas de ouro foram gastas na sua quase totalidade, tanto em despesas de armamento (exército e frota) quanto por envio para Aragão. A moeda teve de ser desvalorizada sucessivas vezes, entre 1369 e 1373. Os preços subiram em flexa. As destruições causadas pelo inimigo irritaram profundamente as populações atingidas em especial os lisboetas cuja cidade fora em grande parte saqueada e incendiada”. Idem, Ibidem. 27 ANTUNES, José. OLIVEIRA, Antônio Resende de. MONTEIRO, João Gouveia. “Conflitos Políticos no Reino de Portugal entre a Reconquista e a Expansão – Estado da Questão”. In Revista de História das Idéias, v. 6, Lisboa, 1984, p. 27. 28 Após a primeira guerra contra Castela, assinou-se a paz cujos termos foram definidos no Tratado de Alcoutim, no qual D. Fernando obrigou-se a casar com D. Leonor, filha do rei de Castela. De acordo com Arnaud, o rei “[...] jura perpétua amizade aos reis de Castela e França”. Mas, tal condição, para Arnaud, “foi um desastre com um sem número de conseqüências sucedendo-se em cadeia”. ARNAUD, Salvador Dias. “D. Fernando: o Homem e o Governante”. In Anais, v. 32, Lisboa, 1989, p. 22. 29 A partir de 1378 a eleição do “antipapa” Clemente VI dividiu a Cristandade em duas obediências, caracterizando o Grande Cisma do Ocidente. 30 MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 519. 26

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Some-se, ainda, a tudo isso as ações da implacável natureza: os maus anos agrícolas de 1371 e 72 (a que se seguiram outros em 1374, 75 e 76) degeneraram a cinzenta conjuntura, até quase o inimaginável. A complexidade estrutural das transformações que envolviam todo o século XIV e, particularmente, a difícil conjuntura fernandina, devem ser adicionadas ao desamparo e abandono das terras, a fim de compreendermos as causas reais que teriam induzido à mingua das lavouras e à queda na produção de cereais e, portanto, à sua falta e carestia. Finalmente, havendo consenso a respeito das dificuldades que se abatiam sobre o reino e tendo tomado conselho “como o inffamte Dom Joham nosso jirmãao e com o comde dom Joham Afomso e com os prelados e Prioll do Spital e meestres da caualarija e com os outros fidalgos e çidadãaos e homeens boons dos nossos regnos”, D. Fernando tentou remediar o mal, ordenando “[...] que todos que ham herdades suas próprias ou teuerem emprazadas ou aforadas ou per outra qualquer quisa ou título (...) seiam constranjudos para as laurar e semear”.31 Caso não pudessem fazê-lo, “por seerem mujtas ou em muitas desuairadas comercas”, que utilizassem parte da propriedade e cedessem a outrem “por a parte ou a pensom çerta ou a foro”. 32 O não cumprimento da ordenação levaria à expropriação. Além disso, ordenou a nomeação de dois homens bons que seriam responsáveis pela aplicação da lei, por vigiar e constranger ao cultivo, por fazer um inventário onde constassem nomes de todos os indivíduos aptos ao trabalho, cada um em sua respectiva região, e, enfim, por determinar o valor das propriedades. Para os que não cumprissem suas determinações, caso fossem nobres, seriam punidos com o pagamento de 500 libras. Se não nobre, a quantia se reduziria a 300 libras, muito embora seguida de desterro. Como se vê, à falta e carestia de cereais a Lei das Sesmarias contrapõe a necessidade imperiosa do aumento da produção, através da compulsão daqueles que possuem terras à atividade produtiva. O

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Lei das Sesmarias. In RAU, Virgínia. Op. cit., p. 267. Lei das Sesmarias. Idem, Ibidem.

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termo “constranger”, várias vezes utilizado no texto, dá o tom da ação imposta pela legislação em apreço. O fato é que a Lei das Sesmarias, ao diagnosticar a crise, toma como norteadores de suas linhas os sintomas mais aparentes aos olhos dos homens da época, mas deixa entrever uma eleição de causas da crise que guarda, nas entrelinhas do texto, um jogo de interesses que encontra na lei mecanismos utilizados num conflito entre partes com expectativas opostas.

A FALTA DE BRAÇOS E O ABANDONO DAS ÁREAS RURAIS

Se frente à falta e carestia de cereais a opção da Lei das Sesmarias é pelo aumento da produção, coagindo o proprietário a cultivar a terra mediante a sanção da expropriação, outras medidas foram impostas com a intenção de dar solução ao problema do abandono das terras. De acordo com a Lei das Sesmarias “[...] os homens deixam e se partem delas entendendo em outras obras e outros mesteres, que não são tão profeitosos para o bem comum”.33 Parece, então, correto entendermos que os interesses do camponês encontravam-se direcionados noutro sentido que não o das lavouras de cereais. Uma questão se coloca: o que teria conduzido os trabalhadores ao abandono das lavras? As condições precárias da agricultura, tratadas anteriormente, certamente devem ter tido peso significativo para que tal fato ocorresse. Contudo, ainda outros motivos se nos aparecem como argumentos que elucidam a ausência de homens nas lavouras e até mesmo, a “opção”, digamos assim, do trabalhador rural diante das violentas transformações que se operavam na sociedade portuguesa. A falta de braços nas áreas rurais do reino é queixa constante durante os séculos XIV e XV. Somada à queda do índice de natalidade, em conseqüência dos constantes declínios na produção,34 a Peste Negra parece ter provocado uma aceleração no que poderíamos chamar de crise de mão-de33

Lei das Sesmarias. Idem, Ibidem. De acordo com Oliveira Marques, “[...] o rol das crises frumentárias permite afirmar que a fome em Portugal constituía fenômeno tão normal e recorrente como a peste. [...] Nem todas elas, é óbvio, produziram fomes gerais no país. Mas todas 34

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obra que, por sua vez, dá-nos indícios de que foi anterior à epidemia, datada pelos historiadores de 1348. As conseqüências da Peste abalaram e marcaram profundamente a história demográfica européia e portuguesa. Na opinião de Heers, “[...] é difícil avaliar exatamente as perdas, mas sabe-se que impediam qualquer recuperação demográfica e provocavam uma queda no número de casamentos e nascimentos”. E, prossegue ainda Heers, “durante todo o século XV, a peste graça em estado endêmico; está presente na mente de cada um e aumenta o sentimento de angústia e miséria”.35 À época, por vezes exagerados, chegaram a reclamar a perda de 2/3 da população. No entanto, Oliveira Marques chega a admitir que um terço a metade dos povos pereceram em poucos meses. O mais agravante é que à epidemia de 1348, seguiram-se outras, impedindo a normalidade demográfica.36 A peste encontra-se, em Portugal, com o governo de D. Afonso IV que, na circular de 1349, tentou dar alento à agricultura do reino, considerando como problema principal a falta de braços provocada pela peste, argumentando que, devido às heranças recebidas, muitos trabalhadores “nom querem obrar de seus mestres e serujços como antes faziam e que por esto os dessa vila e termho rrecebem grandes perdas e danos”.37 Devastado pela peste, o reino sofria da escassez permanente de mão-de-obra, o que impulsionava para o alto o valor dos soldos pagos ao camponês. Como diz a circular, apenas se sujeitavam (os camponeses) ao trabalho, “se lhis derem quanto eles quyzerem”.38 A Lei das Sesmarias constitui-se num diploma complexo que, nas palavras de Virgínia Rau, resume e incorpora leis precedentes oferecendo-nos a possibilidade de dela extrairmos e compreendermos as características gerais da legislação utilizada na época.

elas ajudaram a travar uma recuperação demográfica e a manter reduzido o nível de habitantes”. MARQUES, A H Oliveira. Op. cit., 30. 35 HEERS, Jacques. Op. cit., p. 80. 36 MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 21. 37 Livro das Leis e Posturas. Folhas 158v-160. RAU, Virgínia. Op. cit., p. 260. 38 Livro das Leis e Posturas. Idem, Ibidem.

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Praticamente, todas as leis que lhes são coetâneas fazem referência à escassez de braços e à alta dos preços e soldadas indicando como causa a mortalidade incontrolável introduzida pela peste. Ora, não se pode reduzir os efeitos da peste sobre a escassez de mão-de-obra no reino, durante o século XIV. Mesmo porque, tendo provocado a redução no número de homens, pode ser considerada como forte componente explicativo para o abandono das lavouras pelos camponeses, já que o mesmo volume de trabalho teria de ser realizado por uma quantidade menor de trabalhadores. Contudo, terá tido realmente a Peste Negra os efeitos avassaladores sobre as relações no campo ou terá ela sido habilmente utilizada como pretexto para a confecção de leis que coagissem o camponês a se submeter às baixas pagas e às condições precárias de vida e trabalho, num momento em que por todo o reino sofria-se as conseqüências de um processo de transformação geral da sociedade? Vale lembrar que as áreas rurais não foram tão atingidas pela peste como se pensa. Heers nos alerta que “[...] as cidades e as comunidades eclesiásticas foram acometidas mais duramente que o campo”.39 Vários autores situam na peste de 1348, o início de uma crise que se alongará por todo o século XIV. Deles não discordamos. Contudo, a questão da paga ao camponês, tema indissociável da legislação da época, ou mesmo a existência de um conflito de interesses entre aqueles que pagavam e aqueles que trabalhavam, certamente é menos recente que a peste. “Episodicamente”, recorda Borges Coelho, com termos talvez pouco adequados ao estudo da época, “a peste pôde provocar a alta dos salários e a rarefação da mão-de-obra, mas ainda que ela não tivesse atuado, a luta entre empregadores e assalariados não teria perdido a agudeza”.40 Acontece, assim nos parece, que, ao advento dos novos tempos que representam os séculos XIV e XV, no contexto da Idade Média lusitana, correspondeu um maior acirramento das relações no campo, já que para a produção e comercialização de cereais a demanda maior, embora ainda existente, parece ceder lugar a produtos direcionados de antemão para a exportação. 39

HEERS, Jacques. Op. cit., p. 80. COELHO, Antônio Borges. A Revolução de 1383 – Tentativa de Caracterização. Lisboa, Editorial Caminho, 1981, p. 39. 40

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É sintomática a preocupação, constantemente expressa no texto da Lei das Sesmarias, com a produção apenas do trigo, cevada e milho, o que leva, inclusive, Virgínia Rau a afirmar que “[...] o verdadeiro vício que macula tal lei é o de ter tentado organizar toda a vida rural portuguesa em volta das searas, da agricultura propriamente dita, menosprezando o montado e o rebanho, o olival e a vinha, a importância das colheitas arbustivas e arbóreas”.41 Desta forma, imaginamos poder dizer que a Lei das Sesmarias tentava obliterar um processo que há muito se desenrolava, pois, como veremos, ao constranger o trabalhador, sob várias penalidades, ao trabalho na lavoura, procurou manter, ou ao menos prolongar, a sobrevivência de um tipo de senhorio completamente abalado pela crise transformadora. No entanto, sabemos que “[...] embora permanecendo feudal, a sociedade portuguesa conseguiu, gradualmente, ir sapando o senhorio típico, apropriando-se da exploração direta da terra e das casas, empurrando o senhor para uma condição de arrendatário e tornando-o vulnerável às flutuações da moeda e dos preços”.42 Entretanto, se a Lei das Sesmarias em parte beneficiava o típico senhor medieval, ela também o tolhia em certos aspectos, como, por exemplo, ao fixar o valor das pensões, ou rendas, que deveriam ser pagas pelos lavradores aos proprietários, impossibilitando, assim, exigências ou pressões por parte dos senhores das herdades sobre os camponeses. O que equivale dizer: perda de privilégio e limite imposto ao poder do senhor. Que a Lei das Sesmarias constitui-se em violento recurso para ampliar o erário régio, já afirmamos em páginas anteriores. Mas, é preciso não se esquecer que a coroa não agia só ou isoladamente. Cabe então perguntar: quem velava pelo cumprimento da lei? Ao longo do texto notamos claramente que todo o poder de constranger, “[...] assim os senhores das herdades [...] como os lavradores que os filham”, 43 passava pelas mãos dos homens-bons.

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RAU, Virgínia. Op. cit., p. 144. MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 22. 43 Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 272. 42

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São eles que, desde o mais tenro ataque aos privilégios dos senhores feudais, se ocupavam da administração das vilas, através dos concelhos espalhados pelo reino, fazendo uso das leis de forma a legislar em causa própria. Sobre eles, Borges diz o suficiente: “A classe dos homens bons alardeia força e poder. Tem nas mãos o governo das principais vilas, [...] impõe leis e determinações agrícolas favoráveis aos seus interesses e desenvolvimento; recebe nas próprias mãos o poder de as aplicar”.44 Portanto, permitimo-nos entender que a Lei das Semarias ao mesmo tempo que propõe mitigar os grandes problemas portugueses, o fez de forma direcionada, privilegiando extratos ou estamentos sociais em detrimento de outros. Talvez, por esses e outros motivos, poderíamos classificá-la como uma lei que, de diversas formas, tentou entravar a marcha de uma sociedade que se transformava.45 Se é verdade que os interesses dos camponeses encontravam-se direcionados noutro sentido que não o da produção de cereais, evidentemente induzido pelas dificuldades de caráter ecológico, técnico, epidêmico, pelo baixo preço das soldadas, pela baixa taxa de natalidade e, cabe considerar, pelas imposições legais que tornavam tensa sua relação com os senhores das herdades e, mesmo, com outros grandes proprietários de terras, que outras direções o atraiam produzindo, então, as tão propaladas lavras abandonadas? Que sentido tomavam os passos dos trabalhadores rurais num reino cercado por tamanha carestia? Que outras obras e atividades atraiam camponeses em pleno século XIV? Naquele momento, as cidades representavam, por excelência, o espaço das novas relações. Talvez mesmo o símbolo de uma até então inexistente liberdade. Apesar ter sofrido muito mais intensamente que o campo aqueles períodos difíceis, “[...] as cidades dominavam a vida da época nos séculos XIV e XV, afirmando e opondo-se nitidamente às áreas rurais”.46 Mesmo acompanhando o surto da explosão urbana européia durante o período, Portugal teve freada sua expansão demográfica durante o século XIV o que, entretanto, não impediu um considerável 44

COELHO, Antonio Borges. Op. cit., p. 143. RAU, Virgínia. Op. cit., p. 143. 46 HEERS, Jacques. Op. cit., p. 125. 45

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crescimento urbano em toda a extensão do reino. Registre-se, ainda, exatamente em detrimento da produção agrícola, uma imigração incontida oriunda do campo.47 A respeito de seu processo de urbanização, tal como toda história da agricultura portuguesa, o desenvolvimento urbano, mesmo concomitantemente à reconquista, sofreu significativa diferenciação quanto às regiões norte e sul, onde podemos entrever o elevado grau de influência deixado pelos povos árabes, fixados desde longa data em praticamente toda extensão da península. Borges Coelho chega mesmo a encontrar em Portugal da segunda metade do século XIV, uma agricultura do tipo feudal, estabelecida mais ao norte no Entre-Douro, Minho e Ribeiras e uma “nova agricultura” desenvolvendo-se na Estremadura, Alentejo e Algarve onde, coincidentemente, encontravam-se os principais centros urbanos da época. Isto ao mesmo tempo em que “[...] os núcleos mais consideráveis de burgueses rurais encontravam-se no centro e, particularmente, no sul”.48 Anotemos de passagem a relação intrínseca entre campo e cidade, urbanização e agricultura, cuja polarização talvez tenha determinado o perfil e as características principais do processo de desenvolvimento mais amplo do Portugal Trecentista.

AS OPÇÕES DA LEI: COAÇÃO AO TRABALHO E PROTEÇÃO DA NOBREZA

De rarefeita e mal distribuída constituía-se essencialmente a população portuguesa. Fator complicante diante da mobilidade populacional que se instalava ante o advento de uma espectativa que impulsionava os passos do agricultor em sentido inverso ao campo: às atividades urbanas associava-se maior liberdade e melhor paga. À itinerância dos homens do campo e ao êxodo para as cidades correspondiam centros urbanos super povoados onde a promiscuidade e comportamentos devassos faziam deles espaços propícios para freqüentes crises.

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MARQUES, A H. Oliveira. Op. cit., p. 510. COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 34.

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À medida exata do abandono das áreas rurais, se justapunham cidades em franca expansão que lhes roubavam, num crescendo constante, os braços indispensáveis que no campo serviam. Se opondo ao fato, a Lei das Sesmarias projeta soluções: visando evitar o êxodo ou, melhor ainda, retroceder ou fazer ceder o movimento de abandono das lavras determinou a obrigatoriedade do regresso às atividades da lavoura a “todollos os quer fooram ou soyam a seer lauradores. E outrossy filhos e netos dos lauadores e todollos os outros moradores asi nas cidades e villas como fora dellas”. Que usem “do dicto mester e oficio da lauoira”, em propriedades suas ou servindo a outrem por soldadas, de acordo com a ordenação ou contrato local.49 A lei contudo, deixando transparecer suas preferências, como lembrou Fernão Lopes, cria e permite exceções: “[...] que fossem constrangidos pêra lavrar, salvo se ouvessem de seu vallor de quinhemtas libras [...]”.50 Na busca incontida, cujo objetivo maior era conter os males sociais que afetavam a agricultura do reino, a lei agrária de D. Fernando demonstrou o quanto as cidades funcionavam como imãs, exercendo uma incontrolável atração sobre diferentes grupos em todo o reino. Eram pra elas, para as cidades medievais, no sentido dos centros urbanos portugueses, que caminhavam os homens do campo, quando não ficavam a saltitar de herdade em herdade à procura de melhor soldada. Foi na diversidade inovadora das obras e trabalhos urbanos que esbarraram as duras e violentas determinações legais fernandinas, o que determinou, pelo menos em parte, a sua inutilidade como lei agrária que, limitada mesmo no âmbito da agricultura, tentou condicionar os movimentos de toda uma complexa sociedade, cujo ritmo intenso das mudanças impunham a necessidade de medidas para as quais a visão dos homens sobre sua própria época torna-se o verdadeiro entrave e impedimento, a intransponível barreira que se constrói na incapacidade de uma sociedade ver-se tal qual é. Com o abandono persistente das lavras, problema nunca ausente, tentou-se, por outras vias, aumentar o contingente de trabalhadores rurais.

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Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 269. LOPES, Fernão. Op. cit., p. 239.

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A conjuntura social no reinado de D. Fernando, e mesmo antes dele, fez proliferar grupos e bandos de desocupados e vadios. A pobreza nunca ampliara tanto os espaços de sua atuação. Verdade seja dita, durante o reinado de D. Fernando a nobreza cresceu em número e opulência, em detrimento do povo, da chamada arraia miúda, sobre os quais “[...] incidia toda a força dos impostos, pois eles eram os não privilegiados numa sociedade de privilegiados”.51 Nobreza a quem o rei deu rédeas soltas, “[...] favorecendo a criação de opulentos senhorios e multiplicando a concessão de títulos nobiliárquicos”.52 Paralelamente, no entanto, e de forma talvez inevitável, a pobreza crescia em bem maiores proporções. “Época paradigmática [...]”, nos diz Maria José Tavares, “foi sem dúvida o final do século XIV. De norte a sul, do litoral à raia castelana, a documentação fala-nos de um empobrecimento generalizado”.53 Para o governo de D. Fernando as expectativas não desmetem o agravamento da situação e a ampliação incontida da miséria: “A pobreza e o despovoamento era a situação de boa parte do reino”.54 Guerras, peste e fome compunham um cenário enegrecido ainda mais pelas emissões e revalorizações monetárias, levadas a cabo durante a década de 1370. A fim de obtermos, ainda que inexata, uma idéia parcial da situação difícil que envolvia o período, é suficiente passarmos os olhos por sobre as revalorizações ocorridas de 1371 a 1372. De acordo com Tavares, “[...] a primeira revalorização se cifrou num reajustamento de 30 por cento, enquanto a segunda atingia, em relação ao primeiro curso, o valor de 88,3%, aproximadamente”.55 Cortes realizadas no mesmo período, queixavam-se da carestia, alegando o aumento dos preços. Neste âmbito negro de crise, pobres e envergonhados pela pobreza não se confundiam com os falsos mendigos, vadios e ociosos, a que faz referência a Lei das Sesmarias. 51

TAVARES, Maria J. P. Ferro. Op. cit., p. 39. MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 512. 53 TAVARES, Maria J. P. Ferro. Op. cit., p. 34. 54 Idem. p. 35. 55 TAVARES, Maria J. P. Ferro. “A Nobreza no Reinado de D. Fernando e sua atuação em 1383-1385”. In Revista de História Econômica e Social, n. 12, Lisboa, 1983, p. 49. 52

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Foi então que a lei projetando suas garras exibiu-as resolutamente. Em primeiro lugar, tratou daqueles que iam servir nobres, se excusando, assim, do trabalho na lavoura, recolhendo-se “[...] aos paços dos ricos homeens e fidalgos pêra o auerem viuenda mais folgadas e mais solta”,56 mandando-lhes, após identificados, ao trato das lavras. Num segundo momento, a lei procurou debelar os vadios e ociosos que andavam pela terra sem que se dedicassem ao trabalho “[...] em prol das lavouras do reino”.57 Entre eles, detectou-se, numa ordem especificada seqüencialmente, três tipos. Aos falsos criados, aqueles que estão a “[...] andar chamandosse nossos ou da raynha ou do jfante ou de quallquer outro que nom seia conhoçudo [...]” a lei mandava que “[...] seiam logo presos e recadados pellas justiças dos lugares [...] E se certidões nom mostrarem como viuem [...] que sejam constrangidos para seujr”.58 Aos que se opunham à determinação, seguia-se a pena: seriam açoitados e depois obrigados a trabalhar por preços fixados. Aos pedintes, aparentemente numerosos no reino, se as justiças dos lugares “[...] acharem que som taes e de taes corpos e de tal hidade que possam serujr em algum mester ou obra de seruiço”, mesmo que em alguma parte do corpo fossem minguados e com toda essa mingua pudessem fazer alguma obra, que fossem “[...] constranjudos pêra serujr”.59 Aos falsos religiosos, cuja existência refletia o estado de corrupção do Clero (condição de conhecimento popular à época), que se acham a andar e a viver em “[...]abito de religiosos que nom som professos dalguuas das hordeens aprouadas” a lei mandou dizer-lhes que “[...] uâo laurar e husar do mester da lauoira fazendosse lauradores per ssy se o fazer poderem e quiserem, ou sse nom que siruam aos outros lauradores no mester da lauoira”.60 Ainda quanto a esses últimos, diz a lei que devem ser desmascarados e, caso não sejam “[...] achados tam fracos ou uelhos ou doentes [...] que nom possam servir”– o que possibilita que a justiça dê-lhes alvarás para que possam pedir – serão, na primeira vez que forem apanhados, 56

Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 270. Idem. p. 271. 58 Idem, Ibidem. 59 Idem, Ibidem. 60 Idem, Ibidem. 57

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açoitados. Reincidindo, seriam açoitados com pregão e expulsos ou, nos termos da lei, “[...] deitados fora de nossos regnos”.61 Esta referência aos pedintes, falsos criados e religiosos, nos leva a constatar que a pobreza, promovida pelas dificuldades crescentes, espalhava-se por todo o reino, e seus atores (mendigos, falsos pedintes, bando de vagabundos e vadios) certamente ansiavam, se não pelo conforto da nobreza, ao menos pelo básico para a sobrevivência. À falta de braços no campo, a Lei das Sesmarias indicava ainda outra solução: constranger ao trabalho as mãos ociosas e desocupadas que vagavam improdutivas e oneravam o reino. Imaginavam os juristas de D. Fernando ser possível transformar em remédio para os problemas do reino os sintomas da própria crise.

RESTRIÇÃO À PECUÁRIA: PENALIDADES PARA O PEQUENO PRODUTOR

As centúrias do Trezentos e Quatrocentos em Portugal, conviveram desde cedo com outro delicado problema que a Lei das Sesmarias, por sua vez, reconheceu e também procurou remediar: a pecuária. Se a fatalidade das epidemias, do desequilíbrio ecológico, da fome, das transformações na economia e na sociedade portuguesas, empurravam o reino para o agravamento das dificuldades agrícolas no decorrer no século XIV, a esses fatores se incorporava a criação de gado, pois “[...] não tardou que a extensão das pastagens e o aumento do gado criassem problemas aos agricultores”.62 Tal foi a gravidade dos problemas que o eco dos conflitos entre agricultores e pecuaristas ressoou insistente nas violentas linhas da Lei das Sesmarias. A falta de bois para a lavoura foi logo detectada e na hierarquia do próprio texto da lei antecedeu a vários outros problemas, o que provavelmente demonstra a grande preocupação dos juristas com o tema.

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Idem, Ibidem. MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 104.

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À falta de bois a lei respondeu com a obrigatoriedade da posse deles para a lavoura. Acontece, porém, que não “[...] poderiam achar pêra os comprar se non por muy grandes preços mais que o que ualeriam aguisadamente”. Ora, se o preço era excessivamente elevado, a lei acenou para o tabelamento do preço de venda dos bois, “[...] segundo for taussado pellas justiças dos lugares”.63 Convém anotar, e não podemos deixar passar desapercebido, e a lei não o deixou, que num momento de crise de mão-de-obra, onde impera a falta de braços, a pecuária não sofre tão cruelmente as conseqüências como a agricultura, já que, por suas características próprias, exige menos braços para sua manutenção e, por outro lado, pode compensar a baixa nos rendimentos devido à forragem dos animais ser de fácil obtenção nos campos anteriormente cultivados.64 Diante disso, a lei, que essencialmente visava o fomento à agricultura, indica o parco aproveitamento de extensas terras utilizadas para a criação do gado, que deixam de ser lavradas. Restringe, então, a criação de gado a apenas aqueles indivíduos que mantivessem uma atividade agrícola: “[...] Porém defendemos e mandamos que daquj em deante não sofram nem consentam a nenhuu que aia nem traga guaados seus nem doutrem se nom manteuer lauoira”.65 Olhando assim, num primeiro momento, temos a impressão do caráter contrário da lei ao aumento da atividade pastoril, parecendo mesmo menosprezar o montado e o rebanho.66 Mas na visão de Borges, a Lei das Sesmarias não se opõe ao aumento da criação de gado, ao contrário, o que ela faz é decretar “[...] o enterro dos pequenos produtores de gado”. Pois, nas suas palavras, “[...] o pequeno criador que vive somente do mester [...] não pode mais subsistir”. E, ainda, “[...] o grande e rico proprietário que traz os seus gados pastoreados por mancebos ou vaqueiros seus assoldadados é praticamente o único que pode dedicar-se à criação de gado”.67 Para Borges, não há como detectar oposição da lei ao aumento da criação de gado, mas sim uma concentração dessa rendosa atividade nas mãos dos mais ricos.

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Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 268. MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., p. 105. 65 Lei das Sesmarias. Op. cit., p. 279. 66 RAU, Virgínia. Op. cit., p. 274. 67 COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 36. 64

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Quanto a nós, vemos nos limites impostos para a criação de gado mais uma demonstração, na Lei das Sesmarias, da tendência de sua utilização em prol dos grupos mais abastados do reino, aqueles que detinham o poder de aplicação das leis, “[...] ao poderoso, nobre ou não, ao oligarca municipal, normalmente um letrado ou um homem bom”68 que, na verdade, se opunham ao povo miúdo presente nos documentos da época.

CONCLUSÃO

Vestida com os adereços de seu tempo, que conformam a imagem de uma estrutura legislativa composta ao longo da história portuguesa, desde a reconquista, passando pela delimitação dos espaços geográficos do reino - que ainda hoje permanecem -, até a data da sua elaboração pelos juristas fernandinos, a Lei das Sesmarias vinculou-se diretamente, à antiga idéia de tirar a terra aos proprietários que a não cultivassem, obrigando-os a faze-lo ou, mais diretamente, determinando a obrigação de cultivo e o aproveitamento como condições de posse. Contemporânea singular de um século em transformação pode informar as gerações posteriores o quanto “[...] a economia da terra tinha perdido o seu equilíbrio, e a desorganização agrária corria a par com a instabilidade monetária e a alteração dos valores sociais”.69 Filha valorosa da conjuntura decadente de um governo expôs o drama do período fernandino, onde a profundidade e o alcance das contradições podem levar à perplexidade o analista contemporâneo, cujos olhos alcancem a desintegração de valores que por toda parte se mostrava. É bem verdade que, na Lei das Sesmarias, não se exclui a possibilidade da pequena produção, do cultivo familiar ou do pequeno produtor de gado. Mas a simples obrigatoriedade de cultivar trigo, cevada e milho e não todos os produtos comuns à auto-subsistência, e as limitações impostas à pecuária, dificultando a vida do pequeno criador, lançava geralmente esses fora da corrida. “Aliás, as numerosas disposições sobre a obrigatoriedade de trabalhar por soldada, até os aleijados, a necessidade de mais vultosos meios de produção e a particularidade de serem os homens bons a 68 69

TAVARES, Maria J. Ferro. Op. cit., p. 49. RAU, Virgínia. Op. cit., p. 103.

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velar pela aplicação da lei, até no estabelecimento da renda justa, indicam qual o caminho favorecido pela lei”.70 Apesar de realçada como feito principal do reinado, a agricultura não foi a única preocupação do governo fernandino. Há anos foi a produção agrícola, agora também o comércio teria a sua atenção.71 Isso não nos deixa dúvida alguma: D. Fernando não se fechou às conturbadas transformações impostas pelo seu tempo, nem tampouco cedeu inocentemente às pressões que sofria pelos flancos na acirrada batalha social em que se transformou seu reinado. Acarinhou, sim, a nobreza. Mas antes, em meio à tormenta que o envolvia, procurou dar saídas à nação que comandava. A par da agricultura, estimulou a navegação antes e como nenhum outro rei o havia até então feito. Pecou, contudo, na direção em que, durante toda a sua vida, insistiu avançar: o desejo incansável de expansão dos limites do reino em direção as fronteiras castelanas. Porque, como nos diz Virginia Rau, “[...] sabemos que foi nos portos movimentados, nas cidades marítimas e comerciais, nas rotas do oceano, nas possessões ultramarinas, que se alcançou a estabilidade e o equilíbrio da grei”.72 Com relação à Lei das Sesmarias, cremos agora poder melhor divisá-la, colocada, mesmo que de forma simplificada, como produto de um conturbado momento da história portuguesa e européia como foi o século XIV. Resíduo dos acontecimentos daquele século constitui-se, por isso mesmo, num portal de entrada indispensável que nos pode introduzir à análise da condição dos homens do Portugal Trecentista. Em Lisboa, a 22 de outubro de 1383, morria D. Fernando, sepultado no convento de São Francisco, na mesma cidade. Mas a produção essencial de seu reinado, a Lei das Sesmarias, legado histórico-

70

COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 43. Além de acudir a agricultura através da Lei das Sesmarias, D. Fernando ainda “[...] protegeu a marinha e o comércio externo [...], discriminou contra os judeus [...] reformulou a administração pública, tanto civil [...] quanto militar [...], discriminou os mercadores estrangeiros e até se virou episodicamente contra os privilégios senhoriais. Mas as medidas que mais devem ter agradado respeitam ao amuralhamento das cidades e vilas [...]. Menos populares terão sido os agravamentos de impostos (sisas) com o respectivo regulamento em 1374 e, claro está, as quebras de moeda determinadas de 1369 a 1372.” MARQUES, A. H. Oliveira. Op. cit., pp. 518-519. 72 RAU, Vigínia. Op. cit., p. 110. 71

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legislativo de seu tempo, permaneceu perene, embora adaptada às conjunturas e governos de monarcas posteriores. Foi-se D. Fernando, deixando atrás de si dezesseis anos de “[...] contradições: guerras, alvorotos, queixas, protestos a um lado; leis extraordinárias de fomento agrícola e marítimo ao outro”.73 Partiu-se D. Fernando, sucumbindo ao tempo, deixando à sua frente a Revolução.

Referências Bibliográficas

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73

COELHO, A. Borges. Op. cit., p. 65.

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TAVARES, Maria José Pimenta Ferro. “A Nobreza no Reinado de D. Fernando e sua atuação em 1383-1385”. In Revista de História Econômica e Social, n. 12, Lisboa, 1983, pp. 45-89.

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A CRÔNICA DO ANÔNIMO DE CANTERBURY: CONFLITO E DIPLOMACIA NA GUERRA DOS CEM ANOS (1346 – 1365) Fernando Pereira dos Santos376

Crônicas na historiografia medieval inglesa

Desde o final do século XIII, o reino inglês testemunhou alterações climáticas uma grande mudança climática que ocasionou déficits na produção de lã e nas safras agrícolas, que movimentava em grande parte a economia do reino. Concomitantemente ocorriam turbulências políticas, com um Parlamento cada vez mais organizado em grupos de magnates e gentry, interessados em garantir os interesses locais perante ao reino; o coup d’état sofrido por Eduardo II, culminando em sua deposição e suposto assassinato; as epidemias de Peste Negra, ou Great Pestilence, como eram chamadas contemporaneamente (WAUGH, 1991, p. 85), que afetaram em escalas distintas vilarejos e cidades e logicamente, os duradouros conflitos contra escoceses e franceses. Todas estas questões não poderiam passar desapercebidas despercebidas pelos escritores coevos. Chaucer, em seu Pardoner’s Tale, aponta para a grande mortandade causada pela peste377; Ockham, em tratados escritos no exílio, questionava as isenções da Igreja em relação ao pagamento de taxas para a Coroa em períodos de conflitos (OCKHAM, 2002, p. 141 – 197); e Froissart, que com suas belas descrições dos embates cavaleirescos, povoaram o imaginário ocidental acerca da profissão de armas. Além deles, indivíduos cujos nomes não viriam a reveberar pela posteridade, como seus supracitados contemporâneos, permaneceram no anonimato, porém, seus registros atentam para as vicissitudes de ordens diversas. O autor da Song against the king’s taxes (WRIGHT, 1839, p. 182 – 187) alerta para o risco de rebelião das camadas camponesas devido as onerosas cobranças das Mestrando em História - Programa de Pós Graduação em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP – Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca, São Paulo - Brasil. Pesquisa realizada sob o fomento da Fundação de Amparo à pesquisa de São Paulo (FAPESP). Email: [email protected] 377 Cf. Beidler, G. P. The Plague and Chaucer’s Pardoner. Disponível em: http://www.jstor.org/discover/10.2307/25093795?uid=2129&uid=2134&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21103334147741 Acessado em 30 jan 2014. 376

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purveyances378, assim como o clérigo responsável pela composição da Vita Edwardi Secundi credita a ameça escocesa e francesa a liderança política titubeante de Eduardo II (VITA EDWARDI, 2005, p. 107 – 109) após a derrota sofrida em Bannockburn em 1314. Dentre esses indivíduos anônimos que nos legaram suas impressões, um deles ganha destaque com a tradução de seu texto lançada em 2008. Trata-se da chamada The Chronicle of Anonymous of Canterbury (Crônica do Anônimo de Canterbury), realizada pelos professores Chris Given-Wilson, da Universidade de Saint Andrew, e Charity Scott-Stokes, da Universidade de Cambridge, ambos no Reino Unido. O emprego de crônicas medievais oferecem uma ampla perspectiva não apenas sobre os “fatos” ali narrados, mas também, sobre os lugares comuns dos saberes para homens e mulheres que registraram os eventos passados. Entretanto, a delimitação entre o que poderia ser entendido como passado e presente, os usos da memória e as finalidades a serem alcançadas pela composição de tais manuscritos tem sua própria historicidade, cada vez mais enfatizada pelos estudos históricos contemporâneos. Sob a perspectiva oferecida pelos olhares lançados sobre as crônicas entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do XX por nomes como Gabriel Monod, Thomas Tout e Jans Verbruggen, tais documentos eram relegados a um segundo plano em detrimento de outros tipos de fontes. Monod parte do princípio de que os medievos empenhados em tal tarefa sequer poderiam ser considerados historiadores, por serem incapazes de representarem os eventos e de relatá-los de uma maneira original e pessoal, o que, segundo a abordagem da escola positivista onde o mesmo se insere, aloca os cronistas ao papel de meros compiladores (MONOD, 1876, p. 1). Tout faz uma crítica ambivalente. Por um lado, ele ataca os que acreditam que a simples consulta aos registros oficiais, como as atas do Parlamento, poderiam trazer a verdade sobre o passado à tona sem qualquer tipo de crítica sobre as mesmas. Por outro, embora seja um defensor do uso de crônicas em pleno início do século XX, o mesmo afirma que os cronistas possuiam parcas oportunidades de lidar adequadamente com a história de períodos distantes. Tais indivíduos teriam 378

As camadas camponeses foram duramente sufocadas não somente pelas pesadas taxações mas também pela corrupção dos agentes do monarca, que praticavam atos ilícitos e abusavam de seu poder, segundo fontes contemporâneas, para seu próprio benefício (WAUGH, 1991, p. 159 – 160).

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pouca noção de historicidade, seriam incapazes de apreenderem atmosferas que distavam das deles e, “como crianças, não eram capazes de distinguir entre a verdade, buscada por um processo intelectual, e o produto romântico da imaginação” (TOUT, 1922, p. 10 – 12). Já Verbruggen, em meados da década de 1950, faz uma severa crítica sobre o uso de tais crônicas, afirmando que “a narrativa é incompleta, e como o clero (de onde provieram a grande maioria dos textos medievais) era ignorante sobre questões militares, inventavam relatos [...], e pela carência de critérios, geralmente apresentam uma ingenuidade surpreendente”379 (VERBRUGGEN, 1997, p. 10). Richard Southern (1912 – 2001), afamado historiador de uma geração privilegiada que teve entre seus congêneres Jacques Le Goff e Bernard Guenée, destaca no primeiro de seus quatro discursos à Sociedade Histórica Real (Royal Historical Society) o papel dos historiadores do medievo, ou melhor, suas inserção dentro de uma tradição intelectual vigente, seu “lugar social” e as intencionalidades que permeiam seus escritos não apenas como fontes repositórias para eventos, mas como objetos de estudos em si. Nesse sentido, ele aponta para os usos da história pela geração que o precede e, consequentemente, da qual é herdeiro, onde enfatiza o trabalho realizado por William Stubbs, antiquário responsável pela edição de inúmeros manuscritos medievais. Segundo Southern, Stubbs e seus contemporâneos realizaram um trabalho meritório e vigoroso na edição e catalogação daquela corpora de textos, porém com um grande demérito:

[...] (Stubbs) contentou-se em usar as crônicas e histórias (histories) do passado como simples depositórios de fatos que precisam ser peneirados e purificados cuidadosamente para se tornarem utilizáveis para nossos propósitos, mas que não requerem nenhuma profunda investigação profissional dos princípios de seleção, ênfase ou composição que determinaram sua preservação. [...] Elas (as fontes textuais) eram um material bruto para seus próprios trabalhos e de outros historiadores. Ele as examinou pela confiabilidade, e se perguntou se as mesmas forneciam novos fatos que não poderiam ser encontrados em qualquer

379

Todas as traduções doravante realizadas são de minha autoria.

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outro lugar. Em suma, ele pouco se importava com as mentes dos homens que inconscientemente determinavam que materiais deveriam estar disponíveis para seu ofício (BARTLETT, 2004, p. 11).

Assim, a crítica feita por Southern ressoa uma preocupação que começa a tomar corpo, já em meados da década de 1960, quando as noções de cientificidade da disciplina histórica são colocadas em cheque por nomes como Paul Veyne e Hayden White. Até então os estudos sobre a história medieval eram amplamente devotados à identificação do que poderia ser entendido como historicamente “verdadeiro”, e tal abordagem é extremamente problemática para tratar de questões acerca das noções contemporâneas de história, realidade, fato e ficção. Para a compreensão dos textos medievais, é necessário que se entenda seus artifícios retóricos e suas técnicas literárias (SPIEGEL, 1997, p. XV), ao qual podemos acrescentar, dependendo da natureza do mesmo, o emprego de estudos em áreas correlatas, como a filosofia e a teologia. No campo específico da cronística, os textos e seus compositores não mais passam a serem abordadas como os supracitados “repositórios de fatos”, mas sim como partes constituintes de uma realidade fragmentada na qual estavam inseridos e que podem fornecer indícios sobre os modos de pensar e entender o mundo em voga naquelas sociedades. A inserção do manuscrito medieval em seu contexto leva em conta inúmeros elementos, dentre os quais sua relação intra e intertextual com textos que o precedem, pois estão inseridos dentro de tradições que abarcam tanto aquilo que era válido de registro como a sua forma de composição e escrita, continuando-os ou mesmo citando-os ipsis litteris; ou mesmo no aspecto físico, onde vários manuscritos eram organizados e catalogados em um conjunto único. Atualmente, um grande número de estudos acerca dos textos cronísticos tem sido realizados por pesquisadores de áreas diversas como a História e a Literatura, passando pela Linguística e Codicologia. Dentro da medievalística britânica, historiadores de diferentes gerações como Antonia Gransden, John Taylor e Andy King, cada qual a seu modo, trabalham com as especificidades que aquele tipo de documentação possui e, deste modo, impulsionam o uso daqueles textos em conjunto

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com outros documentos. Portanto, nossa meta não é atentar às especificidades dos códices onde os quatro manuscritos da The Chronicle of Anonymous of Canterbury existentes se encontram380 e nem mesmo problematizar a questão da validade de análises de tais textos como fontes, mas sim apresentar, concisamente, questões diversas, as quais consideramos relevantes naquela narrativa.

A crônica e seus elementos

Na última década, crônicas igualmente escritas durante a segunda metade do século XIV foram igualmente vertidas para o inglês moderno por historiadores, como a The Chronicle of Geoffrey le Baker (A crônica de Geoffrey le Baker); a Scalacronica e a The True Chronicles of Jean le Bel (As crônicas verdadeiras de Jean le Bel). Tais traduções são de extrema importância, uma vez que a escrita da história, no reino da Inglaterra, foi relegada para segundo plano entre as décadas de 1340 e 1360, e assim são contabilizados escassos registros contemporâneos legados por aquele período. O declínio na produção histórica deve-se a fatores diversos381, merecendo destaque a disseminação e alta mortandade causada pela Peste Negra no período entre 1348 - 1355, uma vez que os responsáveis pela composição e manutenção de tais crônicas não estavam imunes as vicissitudes daquele momento382 (GIVEN-WILSON; SCOTT-STOKES, 2008, p. XXXVII). Escrita a partir de 1357, a The Chronicle of Anonymous of Canterbury não pode ser dissociada dos eventos de grande magnitude ocorridos nos últimos anos, como as vitórias inglesas nas batalhas de Crécy, Neville’s Cross e Poitiers, além da captura dos monarcas João II da França e Davi II da Escócia (GRANSDEN, 2000, p. 109).

380

As duas únicas edições impressas da crônica, realizadas respectivamente por James Tait (1914) e Chris Given-Wilson; Charity Scott-Stokes (2008), apresentam informações levantadas a respeito das origens e disposição atual que se encontram os manuscritos. 381 Uma discussão mais detalhada sobre o declínio da produção da escrita da história, principalmente aquela produzida em casas monásticas na Inglaterra entre finais do século XIV e início do século XV são apontadas mais detalhadamente por Given-Wilson (2008). 382 Devemos atentar, entretanto, que a disseminação da Peste Negra ocorreu de maneira disforme pela Ilha, e enquanto algumas áreas foram severamente afetadas, outras parecem ter sofrido pouco ou quase nenhum dano (WAUGH, 1991, p. 85 – 92); (Horrox, 1994).

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Na presente edição, a tradução do texto é feita através do cotejamento entre os quatro manuscritos existentes, que até então não haviam sido estudados como cópias de um mesmo texto original. Mesmo não sendo possível precisar quem foi seu autor, duas hipóteses foram traçadas para tentar evidenciar ao menos seu local de composição. Na primeira, elaborada no século XVI pelo historiador Henry Wharton, atribui a autoria do texto a Stephen Birchington, monge de Canterbury, baseado em similaridades apresentadas entre o texto daquela crônica em comparação aos outros que também fazem parte do mesmo conjunto de manuscritos. Tal hipótese, entretanto, é descartada por seu editor do século XX, James Tait (TAIT, 1914, p. 63). Para Tait, o autor do manuscrito não poderia ser o referido Birchington, porquanto a narrativa é terminada pouco após da batalha de Nájera, em 1367, e Stephen Birchington teria começado sua carreira em Canterbury apenas em 1382. Acredita-se, embora não se chegue a uma denominação precisa, que seu autor tenha sido um clérigo da catedral de Canterbury, o qual possivelmente tomou proveito de sua posição geográfica privilegiada entre Londres e Calais, o porto de desembarque de tropas inglesas no continente, para aceder ao contato com viajantes que obrigatoriamente teriam de passar por aquela região (TAIT, 1914, p. 69). Como as crônicas de Le Bel e Thomas Gray, há evidências ao longo do texto de que o cronista não apenas realiza sua narrativa baseado em crônicas anteriores, mas de algum modo é testemunha dos eventos que narra devido a sua localização, permitindo-lhe ouvir também indivíduos diretamente envolvidos nos conflitos, desde guerreiros até mesmo o próprio rei da França durante seu cativeiro na Inglaterra na primeira metade da década de 1360. Seu principal interesse, assim como os cronistas anteriores, é na guerra. Entretanto, o interesse de seu autor é voltado majoritariamente a diplomacia, aos tratados firmados com os inimigos continentais e a burocracia concernente ao conflito em dissonância a alguns de seus contemporâneos mais insignes, tais como Jean Froissart, Thomas Gray, Geoffrey le Baker e o heraldista de Sir John Chandos em sua La vie du prince noir (A vida do príncipe negro), que apresentam como seu mote os eventos descritos e narrados em torno da figura e dos feitos guerreiros do rei ou de personagens destacados durante o conflito.

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Por conseguinte, quando relata eventos bélicos como as chevauchées383, cercos e batalhas, o Anônimo faz de forma breve e concisa, porém dedica inúmeras páginas a descrições sobre quem, quando, como, e, se possível, quais resultados obtidos pelas assinaturas de tréguas, ordenamentos parlamentares, etc. Do mesmo modo, esse cronista nos oferece a listagem e enumeração dos nobres mortos, feridos ou capturados em batalha, bem como de questões ligadas à política interna do reino que foram tratadas apenas de forma sumária por outros congêneres. Um exemplo disto é a descrição do First Treaty of London (Primeiro Tratado de Londres), datado de 1358, que lida com os termos de pagamento de resgate do monarca João II da França, capturado pelos ingleses e levado à Londres como refém. O crônista em questão aponta para os termos deste tratado, e sua descrição destoa de todas as outras conhecidas até hoje, sugerindo assim que ele possa ter tido acesso a um “rascunho”, ou mesmo que ele tenha visto uma cópia em posse dos religiosos encarregados da condução de negociações diplomáticas em seu retorno às terras continentais (SCOTT-STOKES; GIVEN-WILSON, 2008, p.XXVI). Um segundo ponto que merece destaque é a descrição que o Anônimo realiza sobre os inimigos, majoritariamente franceses. Ao longo do século XIV, foi um lugar comum a descrição dos adversários sob um viés depreciativo, onde suas ações bélicas são adjetivadas de forma pejorativa. Cronistas ingleses e escoceses, por exemplo, tinham por dentre suas metas, de forma velada ou não, uma espécie de “propaganda de guerra”. Assim, a lista de adjetivações imputadas aos escoceses em crônicas inglesas na primeira metade do século XIV passa por vocábulos como thieves (ladrões), traitors (traidores), deceivers (enganadores), wretches (vis), sots (beberrões) e cursed caitiffs (covardes malditos) (PENMAN, 2007, p. 218), e ao longo da presente crônica igualmente observamos a presença desse tipo de nomenclatura que, de modo geral, atribue aos inimigos atitudes que não condizem com a conduta esperada no campo de batalha segundo os parâmetros cavaleirescos. Desse modo, seu autor afirma que os franceses são malefactors (malfeitores) e emitem palavras enganosas (deceitfull words), fogem em pânico (flee in fear) da batalha, violam mulheres (ravish women) e comem carne (eat meat) em 383

De acordo com Coredon e Williams (2004, p. 70), as chevauchées consistiam na queima e pilhagem do território de um inimigo, com fins de enfraquecê-lo e forçá-lo tanto ao combate direto como para destruir as fontes de provisões que alimentavam guarnições de mais difícil acesso.

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períodos sagrados como a Quaresma. Ainda nesse sentido, posteriormente a ratificação do tratado de Brétigny em 1360, o cronista destaca a ação bélica dos oponentes no extremo sul da ilha, onde um grupo de franceses secretamente desembarcou em Wilchesea e “atacou com intenções hostis (hostiliter intrauerunt) a cidade, e cruelmente tiraram a vida de todos os que conseguiram e, após tais ações, embarcaram o botim em seus navios e atearam fogo a vinte e quatro embarcações” (SCOTT-STOKES; GIVEN-WILSON, 2008, p. 59 - 63). Imputar às ações do inimigo atos de “crueldade” fora uma das estratégias retóricas empregadas ao longo do medievo como uma ferramenta para tornar ilícitas suas ações em âmbitos diversos. Logo, eram comuns representações e esquematizações imputadas ao outro, sejam elas a de pagãos, como ocorridas durante a Reconquista, ou mesmo de contraventor das leis seculares e divinas, que a seu modo ganham nuances demeritórias com fins de justificar o embate àquele grupo que partilha de um mesmo éthos. Pode-se conjecturar que, se em períodos anteriores a Baixa Idade Média, o inimigo a ser combatido vinha de regiões exteriores a cristandade ocidental, naquele momento, observavam-se grandes conflitos entre grupos internos àqueles territórios, como no caso dos reis e nobres da Inglaterra e da França (BARAZ, 2003, p. 123). Como dito previamente, o autor demonstra grande interesse pela documentação oficial tanto para fins de divulgação dos resultados da empreitada inglesa em solo francês como também sobre a política interna do reino, dominada pelos constantes pedidos de Eduardo III frente ao Parlamento para alimentar sua máquina de guerra. Nesse sentido, o autor copia quase literalmente o estatuto do Parlamento de 1362 concernente às taxações sobre os gêneros mercantis conhecidas como purveyances, que de modo geral eram compras compulsórias de bens a preços inferiores a seu valor real, e em muitos casos sequer eram pagos, além de inúmeras outras denúncias de desvios e apropriações indevidas de víveres e dinheiro por parte dos agentes do rei (WAUGH, 1991, p. 204 – 205). Registros prévios acerca de queixas contra tais medidas no reinado de Eduardo III datam de 1327, 1344, 1346 – 1348 e 1352, levando-nos a inferir sobre o grande impacto causado na economia local por aquele tipo de ação, tornando seu registro, com finalidades de recuperação daqueles bens em

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momentos futuros, de grande relevância para o cronista e também,possivelmente, para seus mantenedores laicos. O cronista anônimo de Canterbury realiza uma compilação de dados, sem qualquer tipo de comentário, quando insere outros textos em sua obra, ao contrário de contemporâneos como William of Pagula e Walter of Milemete, cada qual a seu modo, tomam posições particulares acerca de tal prática. Seu conteúdo não se destaca em relação à outros textos contemporâneos, como dissemos anteriormente, devido a seu caráter meramente compilatório, que o coloca, a primeira vista, dentro de um enorme conjunto de textos marcados por tal característica. Porém, podemos encará-la sob um outro viés. Todo documento histórico é uma construção permanente (KARNAL; TATSCH, 2009, p. 12), e assim as fontes tornam-se elementos de interesse para o historiador e ganham importância justamente pela problematização que realizamos. Logo, a opção do cronista por majoritariamente compilar dados, mesmo para períodos contemporâneos a produção daquele texto, nos faz considerar o que para ele foi o método válido para atestar a verdade depositada nos escritos tão almejada naquele tempo. Ao contrário de seu contemporâneo Walter of Milemete, que emprega a técnica retórica amplamente difundida de comparação das ações do monarca do presente com as de outros governantes de períodos anteriores para justificar a cobrança das purveyances (MILEMETE, 2002), o clérigo cantuariense recorre a cópia da documentação para legitimar a veracidade de sua narrativa. Observa-se, que ao descrever de modo reprobatório as justas ocorridas em 1362 em Smithfield, ele inicialmente cita a Proclamação Pública (public proclamation) feita pelo rei Eduardo III naquele ano em favor da realização das mesmas, atestando assim que o episódio ocorrera, para apenas então emitir seu ponto de vista (o de um clérigo contrário a realização do evento). Desse modo, ao reportar que houve um grande incêndio no convento do hospital de São João de Jerusalém em Londres, bem como “a morte de um cavaleiro durante o torneio” (GIVEN-WILSON; SCOTT-STOKES, 2008, p. 121), também é observado o emprego de outra técnica retórica, onde associa a ocorrência de infortúnios a ações que iriam contra a vontade de deus. Destarte, tal estratégia integra a concepção de história presente em boa parte das crônicas naquele período. A função exemplar dos textos, indissocíavel da já supracitada retórica, buscava a

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persuasão moral dos indivíduos para que seguissem os bons exemplos do passado e se afastassem dos maus. Um dos propósitos básicos da escrita da história era a edificação, mais preocupada com a propagação de uma espécie de “idealismo moral” do que com a análise concreta da realidade (SPIEGEL, 2002, p. 79). Somado a função exemplar, no século XIV, os cronistas ingleses registram de forma mais ávida dois tipos de eventos em particular: os conflitos anglo-franco-escoceses e as tensões políticas internas em grande parte decorrentes de tais contendas (TAYLOR, 1987, p. 3). Não obstante, as histórias provenientes de crônicas aristocráticas e monásticas demonstravam que gradualmente surgia um novo interesse no registro de detalhes dos eventos, com vistas a uma apreciação do passado como algo distinto da sociedade presente, embora ainda não seja possível precisar o grau desta distinção, pois ela é envolta pela utilização de antigos modelos para a organização de informações sobre o passado, como a história universal, empregados até o século XIII, ainda em voga. (GELLRICH, 1995, p. 124). No reino inglês especificamente, não houve um centro de produção da história oficial, como a Torre do Tombo em Portugal, mas sim cronistas que representavam os interesses monásticos e aristocráticos aos quais estavam ligados, e no caso do cronista em questão é possível que seu texto tenha servido, ou ao menos, tencionado asseverar os direitos do monarca em território francês. Se a forma de governança passa por uma lenta transformação em relação a períodos anteriores devido a produção de um imenso volume de documentação burocrática produzida em âmbitos que vão do gerenciamento dos manors384 por proprietários de terras em vilarejos até os registros das atividades do parlamento, a escrita da história também é tocada pelo letramento crescente, e em sua maioria os agentes burocráticos do rei eram clérigos formados em universidades. O cronista anônimo de Canterbury pode justamente ser um destes clérigos que aparentemente possuia grande mobilidade nos escalões governamentais, colocando-o em posição vantajosa para a coleta de material para sua crônica, pois as habilidades adquiridas pelos eclesiásticos para cumprir suas tarefas nas paróquias tornavam-os exímios administradores (WAUGH, 1991, p. 141 – 142). Conclusão 384

Uma propriedade rural que compreende aos domínios do senhor (incluindo as terras de seus servos campesinos) e outros bens fixos empregados para arrendamentos e atividades diversas (COREDON; WILLIAMS, 2004, p. 184).

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Nossa exposição sobre alguns dos elementos constituintes da crônica, bem como de seu contexto de produção, é voltada para a reflexão de questões que permeiam os estudos medievais contemporâneos. Se a crônica do Anônimo de Canterbury não figura entre as grandes crônicas de seu tempo, como o “best-seller” Polychronicon de Ranulf Hidgen, ao menos permite novos olhares sobre questões da diplomacia e dos descontentamentos gerados em um período de guerra no medievo. Concluindo, o texto ganha valor meritório não apenas pela relação entre fato/ficção na Idade Média, mas também pelas seleção de temas e documentos feita pelo Anônimo para representar sua realidade. Comumente, as guerras no medievo são recordadas pelas nomenclaturas topônímicas e pelas descrições de feitos de membros dos grupos governantes, porém não se deve relegar ao segundo plano os esforços feitos nas últimas décadas para que igualmente seja concebida a história daqueles que registraram e construíram a história do período. Homens e também mulheres sobre os quais por vezes não se sabe muito mais do que sua ocupação em alguns períodos da vida, data de nascimento e morte, e cujos nomes evanesceram, como temia Henry Knighton no prólogo de sua Chronicon, legaram textos que nos possibilitam, nas palavras do clérigo agostiniano “reavivar questões que, caso não tivessem sido escritas, teriam definhado” (GIVEN-WILSON, 2004, p. 57-58). Nesse caso, resta-nos a dupla tentativa de repensar sua imagem de agentes passivos, altamente dependentes dos mantenedores laicos que muitas vezes foi pintada pelos períodos posteriores, e também historicizar o seu fazer não como algo preso a fixidez de regras para sua escrita, mas sim na permeabilidade exercida sobre tal atividade por escolhas pessoais no modo de composição e seleção de materiais, afetando assim diretamente o conteúdo produzido e divulgado em suas crônicas.

Referências Bibliográficas

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REFLEXÕES ACERCA DA FIGURA DO BISPO NO REINO VISIGODO E SUA REPRESENTAÇÃO NO CÓDIGO LEGISLATIVO VISIGÓTICO Flora Gusmão Martins385

Introdução

A presente comunicação vincula-se ao projeto de pesquisa intitulado As relações de poder nos reinos romano-germânicos: o processo de organização eclesiástica e a normatização da sociedade, sob a orientação de uma das coordenadoras do Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professora Leila Rodrigues da Silva. Neste trabalho pretendemos expor parte da minha pesquisa de iniciação científica, que consiste em estudar as referências ao episcopado na Lex Visigothorum, um código de leis compilado no reino visigodo do século VII. Neste texto apresentaremos algumas reflexões acerca da figura do bispo na conjuntura acima mencionada, com base na bibliografia lida sobre o assunto, bem como uma análise parcial do código legislativo visigótico, com o objetivo de compreender melhor

a caracterização do episcopado na Lex

Visigothorum, um documento de caráter jurídico e político, e o papel do mesmo no contexto em questão.

Sobre o reino visigodo e o episcopado

Os visigodos exerceram, em grande medida, hegemonia na Península Ibérica principalmente nos séculos VI e VII, até a chegada dos árabes, no início do século VIII. Foi um reino bastante instável, principalmente na questão da sucessão ao trono real, além de enfrentar frequentes ameaças externas. Uma característica marcante deste reino é a relação estabelecida entre a monarquia visigoda e o cristianismo, na qual o episcopado, como veremos, é figura central. De acordo com Ruy de O. 385

Graduanda em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista de iniciação científica pelo CNPq no Programa de Estudos Medievais. Email: [email protected]

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Andrade Filho essa aliança apresentava vantagens para ambos os lados – o cristianismo pretendia se consolidar como religião hegemônica e sua estreita relação com a monarquia visigoda era uma forma de enfrentar os desafios e tornar mais sólido seu predomínio, enquanto para a monarquia essa aliança representava um reforço ao poder real, e uma tentativa de elevar o monarca acima das disputas aristocráticas.386 O bispo, como mencionado acima, assumia um papel central nessa relação, e também na administração do reino como um todo. Segundo Martín Viso as condições do desenvolvimento do poder episcopal no periodo estão marcadas pelo caráter de religião oficial do cristianismo, e da relação do mesmo com o poder real. Para este autor, já na época de Constantino, o bispo havia sido incorporado no aparato estatal, com funções judiciais, e já no século V, este já havia chegado a uma posição de grande liderança na civitas. Desta forma, membros da aristocracia passam a fazer, cada vez mais, parte do episcopado e, nos séculos seguintes, a maior parte dos bispos era pertencente a famílias aristocráticas.387 Neste sentido, Fuentes Hinojo reforça

El trato honorífico que dispensaban emperadores y reyes bárbaros al clero, unido al progresivo incremento del patrimonio, privilegios y autoridad espiritual de la Iglesia, hizo del episcopado uma dignidad apetecible para la aristocracia romana. Cuando, hacia 470, los notables de las Galias e Hispania cobraron conciencia de la incapacidad del Estado romano para ayudarles y ofrecerles perspectivas de carrera, optaron por asumir el gobierno de la Iglesia, lo que les permitía alcanzar privilegios y mantener un estatus elevado a nivel local. Los habitantes de las ciudades no se opusieron. Antes bien, en una época de inseguridad y violencia, prefirieron contar con hombres que poseían la experiencia y relaciones políticas adecuadas para ayudar a la comunidad.388

386

ANDRADE FILHO, Ruy de O. Um espelho esmaecido. O reino visigodo de Toledo: cristianismo e monarquia. Revista Signum, Cuiabá, v. 14, n. 1, p. 124-151, 2013. 387 MARTÍN VISO, Iñaki. Organización episcopal y poder entre la Antigüedad Tardía y el Medievo (siglos V-XI): Las sedes de Calahorra, Oca y Osma. Iberia, v. 2, p. 151-190, 1999. 388 FUENTES HINOJO, Pablo. Patrocinio eclesiástico, rituales de poder e historia urbana en la Hispania Tardoantigua (siglos IV AL VI). Studia historica. Historia antigua, Salamanca, n. 26, p. 315-344, 2008.

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Desta forma, o episcopado passou a ser formado por membros de famílias aristocráticas, geralmente que já haviam recebido uma formação voltada para cargos de liderança ou já estavam inseridos na política e administração do reino. No caso do reino visigodo do século VII, o episcopado já estava consolidado como posição de grande poder e, por meio de sua relação com a monarquia e seu caráter de religião oficial, e também de sua consolidação como autoridade da instituição eclesiástica, participava efetivamente da administração e da política da Hispania visigoda, conjuntamente com suas funções religiosas de líder da comunidade cristã. Tanto a monarquia como a instituição eclesiástica empreendiam esforços para normatizar a sociedade e, considerando a aliança existente entre as duas, ambas dialogavam e, de certa forma, participavam das tentativas de legislação uma da outra. Um fator a ser ressaltado que reforça ainda mais a relação existente entre elas é o concílio geral. Nesta assembléia, convocada pelo monarca, na qual estavam presentes bispos e importantes figuras da nobreza do reino, eram tomadas decisões que não concerniam apenas a questões religiosas, mas também a questões políticas, econômicas e administrativas. Determinadas decisões, para adquirirem força legal, eram incorporadas ao código legislativo visigótico. Além disso, podemos também atentar para o ofício palatino389, no qual alguns autores defendem a possibilidade da participação ou assistência episcopal no mesmo; porém, de acordo com Ortiz de Guinea, essa possibilidade não pode ser de fato determinada, pela falta de documentação sobre o assunto390, apesar de defender que a assembléia estava aberta à assistência dos bispos. O que podemos notar é que os membros do episcopado eram figuras centrais na Hispania visigoda, personagens de poder que agiam diretamente no funcionamento do reino. Assim, vamos primeiramente apresentar o corpus documental a ser analisado e, posteriormente, tentar demonstrar como o bispo é representado no mesmo, exemplificando com algumas leis escolhidas por sua relevância no ponto a ser ressaltado.

389

Chamado também de Aula Regia, ou Palatium Regis, consistia em uma assambléia que reunia um grupo de pessoas de cargos importantes que tinham como objetivo aconselhar o rei em suas decisões, na justiça, principalmente nos delitos de traição, intervir na eleição de um novo monarca e deliberar acerca da legislação. 390 ORTIZ DE GUINEA, Lina Fernández. Participación episcopal en la articulación de la vida politica hispano-visigoda. Studia Historica. Historia Antigua, Salamanca, v. 12, p. 159-167, 1994.

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Lex Visigothorum

O documento

A Lex visigothorum é um código legislativo do reino visigodo do século VII. Até a sua publicação, o Direito no reino visigodo consistia em uma legislação escrita, que foi sucessivamente compilada em diversos códigos, por diferentes reis, que coexistia com um direito consuetudinário. O rei Chindasvinto (641-652), desde seus primeiros anos de governo, pretendia publicar uma nova legislação, tendo promulgado diversas leis, algumas baseadas no direito romano e outras no direito godo, mas seu projeto foi de fato realizado por seu filho Recesvinto (653-672). Ambos os monarcas tinham como um dos principais objetivos equilibrar as diferenças legais existentes no território, estabelecendo uma única legislação para todos os habitantes do reino. A Lex Visigothorum proibia a utilização de outros códigos junto ao novo, excluia o emprego do direito consuetudinário e do livre critério do juiz, e afirmava que se aparecesse um caso que não estivesse previsto na lei, este deveria ser levado ao soberano. Wamba, Ervigio e Égica, monarcas posteriores, acrescentaram ou modificaram algumas leis. A LV está dividida em doze livros, cada livro em capítulos/títulos, e cada um destes possui determinado número de leis. Estas se distinguem da seguinte forma: leis antigas, antiquae, que pertenciam ao direito visigótico mais antigo e leis de monarcas anteriores, sendo que algumas foram alteradas ao serem incorporadas ao código; as leis de Chindasvinto, as leis de Recesvinto, e posteriormente as dos reis Wamba (672-680), Ervígio (680-687), que chegou a fazer uma revisão do código, e Égica (687-700). Segundo o autor Zeumer existem três classes de fontes para a história da legislação visigótica: as leis datadas - (aquelas que sabemos quando foram elaboradas, sejam por conter a data específica ou por conter o nome do legislador, que são a Lex Romana de Alarico II, uma lei do rei Têudis, numerosas leis soltas do rei Recaredo I e seus sucessores, a Lex Visigothorum compilada por Recesvinto e sua nova edição feita por Ervigio); as leis não datadas (fragmentos do palimpsesto de Paris, leis visigóticas admitidas pelo direito nacional bávaro e as leis chamadas antiquae); notícias de

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outras fontes sobre a legislação visigótica (um exemplo é a Historia Gothorum, de Isidoro de Sevilha, que informa sobre Leovigildo e sua revisão das leis antigas). 391 Garcia Gallo, outro estudioso da Lex Visigothorum, levanta a publicação de novas fontes, tal como uma nova caracterização e uma nova datação daquelas já conhecidas. Ele afirma, assim como Zeumer, que somente as seguintes fontes chegaram completas e com as datas e autores até nós: o Breviário de Alarico II, 506, a lei de Teudis, 546, e a Lex Visigothorum, em duas redações – a de Recesvinto, 654, e de Ervigio, 681. Os textos restantes encontram-se incompletos, diversas vezes não foi possível definir a data, o autor, e até mesmo seu caráter, e muitos tem trabalhado com as possibilidades e conjecturas, considerando que inúmeros códices chegaram até nós muito deteriorados, em estados que dificultam a leitura e a sua caracterização, e que os especialistas, por mais que se esforcem para apresentar o texto mais correto possível, muitas vezes consideram dados hipotéticos.392 A versão por nós analisada foi traduzida por S.P. Scott para o inglês em 1910, e encontra-se disponível on-line.393 Análise do documento A partir de uma análise inicial394 selecionamos algumas leis presentes no código visigótico que podem esclarecer melhor a figura do bispo no contexto do reino visigodo do seculo VII. Anteriormente mencionamos a incorporação do episcopado ao sistema judicial e sua consolidação como uma figura de autoridade não somente religiosa, mas também civil. Na Lex Visigothorum encontramos diversas leis que apresentam essas características, como a B02T01 lei XXVIII 395 que afirma que se qualquer magistrado, investido de funções judiciais, tomar uma decisão infundada, ou impor uma sentença injusta sobre qualquer um, então o bispo em cuja diocese isso foi feito, deve convocar o juiz acusado 391

ZEUMER, Karl. História de la Legislacíon Visigoda. Barcelona: Universidade de Barcelona, 1944. GARCIA GALLO, Alfonso. Consideraciones críticas de los estúdios sobre la legislación y las costumbres visigodas. Anuario de historia del derecho español, n. 44, p. 343-464, 1974. 393 SCOTT, S. P. (Ed.). The Visigothic Code (Forum Judicum). Boston: Boston Book Company, 1910.Disponível em: http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm 394 A primeira etapa desta pesquisa de iniciação científica foi realizar um levantamento das referências ao episcopado em todo o código visigótico, e, a partir deste, criamos uma tabela tipológica, na qual as leis em que aparece a palavra bispo foram divididas nos seguintes temas: trasngressão da legislação civil, função de juiz/autoridade civil, refugiados, punição do clero, bens e propriedades da igreja e judeus. 395 Utilizaremos aqui a letra para nos referir ao livro (book) em que se encontra a lei, a letra T para o capítulo (title) e o numeral romano para o número da lei. 392

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de ter agido injustamente, e, juntos tomarão a decisão correta, na presença de eclesiásticos ou de outras pessoas de respeitabilidade. Porém se o juiz recusar-se a corrigir o julgamento injusto dado por ele, depois que bispo exortou-o a fazê-lo, o bispo tem o privilégio de rever o caso, e de julgar sozinho. Ou a B06T04 lei III, na qual se o juiz é incapaz de julgar a verdade, por causa da intervenção de alguma pessoa poderosa, ou o patrocínio de um nobre, ou pelo medo do poder real, ele deve levar o assunto à atenção do rei. Caso não seja possível, deve levar a informação ao bispo, ou ao governador da província, a fim de que se possa investigar devidamente. Neste caso podemos notar o poder do bispo de tomar decisões, e mesmo de corrigir aquelas tomadas por algum juiz acusado de injustiça. É interessante pensar a autoridade que os membros do episcopado possuem nessa conjuntura, sendo considerados líderes religiosos e, por isso, honrados e justos. A autora Claudia Rapp apresenta em seu livro três modelos de autoridade associadas ao bispo: autoridade espiritual, autoridade ascética e autoridade pragmática. A primeira significa que o indivíduo recebeu o “espírito” de Deus, a sua fonte é externa ao indivíduo, sem uma preparação ou participação pessoal, e pode existir no indivíduo independetemente do reconhecimento por outros. A segunda tem sua fonte no esforço individual, na prática de um comportamento virtuoso, na tentativa de atingir um ideal pessoal de perfeição, é acessível à todos, é visível e depende do reconhecimentos por outros. A tercecira é baseada nas ações do indivíduo, mas diferentemente da prática ascética, esta se volta para o benefício dos outros, e é restrita, pois depende dos recursos de cada um, de sua posição social e riqueza, é sempre pública, e seu reconhecimento depende do sucesso dessas ações. Os três tipos se relacionam e precisam todos estar presentes para se compor a autoridade do bispo.396 Podemos considerar que os três tipos mencionados contribuíram para que os bispos no geral recebessem funções de ordem judicial, se tornassem autoridades reconhecidas pela comunidade. Assim, o bispo se torna uma autoridade reconhecida. Devido a diveras questões, como a estreita relação existente entre a monarquia e a instituição eclesiástica, sua posição de liderança dentro da comunidade cristã, que implica determinados valores cristãos como a honestidade e a justiça, os 396

RAPP, Claudia. Nature of Leadership in Late Antiquity. In: ___. Holy bishops in Late Antiquity. The nature of Christian leadership in an age of transition. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California, 2005. p. 03-22.

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bispos se tornam autoridades não somente na esfera religiosa, mas também política e civil, adquirindo funções como a de juiz. Podemos ressaltar outras leis que demonstram o poder decisório dos mesmos, como nas leis que fazem referência a refugiados. No código são apresentados dois casos. O primeiro trata do rapto de mulheres - se os pais da mulher raptada resgatarem-a, o raptor deverá ser entregue a eles, e de forma alguma deverá ser permitido que ela se case com ele, e se esta fosse a intenção, os dois devem ser condenados a morte. No entanto, se refugiarem-se com o bispo, suas vidas serão concedidas, mas eles devem ser separados e entregues como escravos para os pais da mulher.397 O segundo é sobre oficiais do exército que desertam ou permitem que seus subordinados façam o mesmo - sempre que um centurião desertar, em face o inimigo, e retornar para casa, ele será decapitado. Porém, se ele buscar refúgio no altar, ou com o bispo, ele deve pagar 300 solidi ao governador da cidade, e não será condenado à de pena de morte. Em ambos os casos é interessante notar que o bispo tem o poder de decidir em relação à vida ou à morte dos transgressores. Até agora ressaltamos leis que reforçam o poder episcopal, porém, como dito anteriormente, a aliança existente entre monarquia e cristianismo gerava, além de benefícios para ambos os lados, conflitos. Além

disso podemos lembrar que ambas as instituições empreendiam tentativas de

normatização do reino visigodo e, por meio de sua estreita relação nessa conjuntura, podemos perceber que questões de ordem religiosa são tratadas no processo legislativo da esfera política, e vice-versa. Algumas leis, apesar de seu caráter civil, demonstram tentativas de legislar sobre algumas questões concernentes à instituição eclesiástica, como aquelas que tratam dos bens e propriedades das igrejas398, ou da relação de membros do clero com mulheres399 que no geral reafirmam as decisões tomadas nos concílios, ou que o bispo, apesar de ser uma figura de autoridade, também pode ser punido se trasngredir a lei, como no caso se este ignorar uma convocação ao tribunal 400 ou se fugir diante de um invasão do reino401, entre outros.

B03T03 – Lei II. B05T01 – Lei II; B05T01 – Lei III; B05T01 – Lei IV; B05T01 – Lei V; B05T01 – Lei VI. 399 B03T04 – Lei XVIII. 400 B02T01 – Lei XVII. 401 B09T02: Lei VIII. 397 398

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Conclusão

Após esta análise do documento, na qual temos como objetivo elucidar a caracterização do bispo, figura principal no corpo eclesiástico no contexto em questão, num código legislativo de caráter civil e político, podemos perceber o bispo como figura central no reino visigodo, tendo funções que perpassam pela esfera religiosa assim como pela política. Lembramos também que o episcopado passa por um processo de consolidação de sua autoridade religiosa, e, na conjutura em questão, em que a aliança entre monarquia e instituição ecleiástica é bastante marcante, já apresenta um caráter de autoridade também civil. As leis selecionadas para este trabalho apresentam essa característica que o episcopado adquire no reino visigodo, demonstrando que o mesmo é uma autoridade religiosa e civil reconhecida naquela comunidade. Vale lembrar que estas esferas caminham juntas na conjutura estudada, e que a relação entre monarquia e cristianismo está muito presente no código legislativo visigótico. Estudando este corpus documental podemos compreender melhor o episcopado, como este tinha diversas funções baseadas em sua autoridade, e de que forma se constituiam as relações de poder entre o corpo eclesiástico e a monarquia.

Referências Bibliográficas

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O ACRÉSCIMO DA BORDADURA DOS CASTELOS NO BRASÃO NACIONAL PORTUGUÊS POR

D. AFONSO III (1248-1279): O CONCEITO DE DIFERENÇA

HERÁLDICA

Franklin Maciel Tavares Filho

Ainda cabem esclarecimentos acerca do momento em que se estabelece o entendimento típico da heráldica no sentido de que os membros da família devem diferenciar suas armas das do chefe familiar, de forma que o observador compreenda os diferentes graus de pertencimento àquela casa. No caso dos quatro primeiros reis de Portugal, carecemos de fontes que nos permitam levar o sentido das armas reais mais além do contexto puramente dinástico. No mais, qualquer interpretação das armas reais como sinais de identidade do reino, pelo menos até então, me soa anacrônica. Contudo, com D. Afonso III, as armas reais são objeto de uma alteração que parece envolver a essência da entidade representada. Com efeito, D. Afonso III introduziu no escudo real uma bordadura vermelha carregada de castelos dourados. Esta bordadura corresponde a uma diferença: por se tratar de um filho segundo, o infante D. Afonso não poderia usufruir das armas plenas que pertenciam a seu irmão maior D. Sancho II, deposto em 1245 pelo papa Inocêncio IV. Segundo a explicação tradicional, estes castelos dourados representariam os castelos conquistados por D. Afonso III aos mouros. Contudo, Rui de Pina, no início de sua crônica do reinado de D. Afonso III, ao tratar deste tema, declara que circulavam três versões a respeito da origem da bordadura. A primeira afirmava tratar-se dos castelos da região de Riba-Coa, o que o cronista rechaça sob o argumento de que este território foi anexado somente por D. Dinis mediante o tratado de Alcañices (12 de Setembro de 1297). Outra defendia que esta bordadura fazia alusão ao Condado de Bolonha, hipótese também refutada por Pina com base em argumentos óbvios, ou seja, ainda que Afonso III usasse estas armas a título meramente pessoal, nunca poderia passar a seus sucessores na Coroa Portuguesa.

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A última defendia tratar-se a bordadura de uma alusão aos castelos do Algarve, idéia também defendida por Pina: “Porque depois de com a dita Dona Beatriz lhe foram dadas vilas e castelos do Reino de Algarve, e pôs na Orla do dito Escudo, e Quinas, os castelos dourados em campo vermelho.” Além disso, segundo o autor, estes castelos não eram fixos. Esta interpretação de Rui de Pina foi utilizada pelos diversos autores que se ocuparam deste tema até o século XX. Ao aceitar sem crítica a versão divulgada por Rui de Pina, os autores dos séculos XVI ao XIX tenderam a aumentá-la em diversas ocasiões. No século XX, diversos estudiosos retomaram sem questionamentos esta causalidade. Coube a Armando de Mattos disponibilizar novas pistas para a investigação do tema, rejeitando a ideia de Santos Ferreira, visto haver encontrado exemplares sigilográficos de D. Afonso III em que o escudo já ostentava a bordadura com castelos, anteriores ao seu casamento com D. Beatriz de Guzmán. Ao invés desta explicação, Armando de Mattos sustentou que a bordadura seria a diferença do infante D. Afonso, como filho secundogênito, citando como exemplo casos similares ocorridos na Casa Real Francesa. Entretanto, se prestarmos atenção no trecho do Vocabulário de Santos Ferreira acima transcrito, notaremos por certo a presença desta ideia, embora me pareça haver faltado a este autor promover um vínculo lógico subsequente. Ainda que tenha apontado a datação imprecisa atribuída por Armando de Mattos ao referido selo de D. Afonso III, o Marquês de São Payo apoiou a tese relacionada à diferença colocada no escudo por conta de D. Afonso tratar-se de filho segundo. Complementaria posteriormente sua argumentação apresentando como prova o selo armoriado de Afonso III enquanto era Conde de Bolonha. Afonso, com efeito, fez uso na França, quando Conde de Bolonha, de um escudo dividido em duas partes, as armas de sua mulher Matilde de Bolonha junto com castelos. Segundo Miguel Metelo Seixas, a utilização destes castelos, uma clara alusão às armas de Castela herdadas de sua mãe D. Beatriz, revela a importância deste vínculo genealógico para D. Afonso. Com efeito, a monarquia castelhano-leonesa vivia então um período de esplendor ao qual não era alheio o próprio renome pessoal de Alfonso VIII de Castela (1158-1214), soberano cuja brilhante política matrimonial havia lhe

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permitido vincular a Casa de Castela as mais importantes famílias reais da Cristandade Ocidental. Este prestigioso monarca era avô de D. Afonso III, assim como de Luis IX da França (São Luís). O brilho da monarquia castelhana, neste momento, justifica o fato de todos os netos de Alfonso VIII tomarem das armas de Castela os elementos de diferenciação para seus escudos de armas, com exceção evidente dos primogênitos e soberanos D. Sancho II e São Luís, os quais traziam as armas de seus reinos sem qualquer diferença, como demonstrou Faustino Menéndez Pidal de Navascués. O castelo de ouro sob o campo vermelho integrou, com efeito, as armas dos seguintes netos de Alfonso VIII: na casa de Portugal, D. Afonso III e seu irmão D. Fernando, senhor de Serpa; na casa de Leão, Fernando III de Castela e Leão e seu irmão Alfonso, conde de Molina; na casa da França, Roberto, Conde de Artois, Afonso, Conde de Poitiers e Carlos, Conde de Anjou; e na casa de Aragão, Alfonso, o príncipe herdeiro. De todos eles, dois usaram uma bordadura vermelha carregada com castelos de ouro bastante similar à de Afonso III: Alfonso, conde de Molina e Carlos, conde de Anjou. Desta forma, o prestígio das armas castelhanas era tão intenso que figuraram sempre de forma privilegiada na descendência de Alfonso VIII. A título de exemplo, temos a abundante presença de castelos de ouro nos vitrais da Saint-Chapelle de Paris, erguida por São Luís em homenagem à sua mãe, a rainha e regente Branca de Castela, em contraste com as armas de sua esposa, Margarida de Provença, de presença insignificante. Cabe mencionar a presença de D. Afonso na corte francesa durante a regência de sua tia Branca de Castela, sendo possivelmente influenciado a assinalar de forma clara a origem de suas armas. Resta, contudo, uma questão a ser explicada: se de fato se justificava o uso desta diferença heráldica enquanto seu irmão D. Sancho estava vivo, depois de sua morte nada impediria que o novo rei assumisse as armas do Reino, sem diferença alguma. Na verdade, este era justamente o procedimento mais corriqueiro do ponto de vista dos usos heráldicos, visto que D. Afonso deixava de ter de recorrer a uma diferença, podendo ostentar armas plenas, em princípio, mais prestigiosas. Por que razão não o fez? Em primeiro lugar, durante os anos de guerra civil entre os dois irmãos, as armas com a bordadura já haviam se convertido em sinal ou símbolo dos partidários de D. Afonso. Em segundo, o

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próprio prestígio da monarquia castelhana terá influenciado decisivamente na manutenção dos sinais da genealogia comum. De fato, devemos recordar que numa monarquia tão ciosa de seus símbolos próprios e de seu caráter sagrado como era a Casa Real Francesa, especialmente durante o reinado de São Luís, seu monarca mais prestigioso, a capela palaciana, lugar privilegiado da emblemática real, encontrava-se repleta de sinais da aliança com Castela. Contudo, cabe evidenciar que na versão tradicional, defendida por João Paulo de Abreu e Lima, a bordadura com castelos se associa com a posse do Algarve pela Coroa portuguesa, como se este reino houvesse possuído armas próprias incorporadas a partir de então às armas reais portuguesas paralelamente à adoção do título de rei do Algarve associado ao de Portugal. Este processo corresponderia a uma manifestação de heráldica territorial, pois pressupunha a criação de armas para um território conquistado por D. Afonso III. As armas reais portuguesas passariam, então, a constituirse num núcleo central dinástico, de certo modo identificativos do Reino de Portugal, e por uma “periferia” territorial identificativa do reino do Algarve. Ainda que hoje se rejeite, pelos motivos antes apresentados, a ideia da bordadura com origem nas armas do Algarve, a verdade é que esta foi sustentada pelos diversos cronistas dos séculos XV e XVI, sendo posteriormente repetida por diversas obras da Idade Moderna e do século XIX. Só o fato de os cronistas conceberem a existência das armas do Algarve prova que possuíam noção da heráldica territorial. Na Idade Moderna, este raciocínio foi levado às ultimas consequências, criando-se um ordenamento imaginário para as armas do reino do Algarve separadas das do reino de Portugal, um escudo de gules com sete castelos de ouro. Estas armas foram utilizadas, sobretudo, para ilustrar mapas, ou seja, uma vez mais em um contexto de simbologia territorial. Quando pensamos, contudo, na origem da bordadura de castelos como diferença de filho segundo, podemos concluir que quando D. Afonso III criou estas armas, isto apenas contribuiu para reforçar o caráter dinástico da heráldica real. Em verdade, o acréscimo da bordadura possui um cunho claramente genealógico, ao fazer referência à dinastia castelhana a qual, seguida de sua varonia, constituía a ascendência mais ilustre do rei.

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O fato de que esta diferença tenha se perpetuado além da morte do primogênito D. Sancho II só se explica por razões políticas: as armas com a bordadura constituiriam uma insígnia do novo soberano e de seu projeto de renovação da monarquia portuguesa, sendo retomada por seus sucessores. Assim sendo, a perpetuação da bordadura reflete a interferência de dimensão dinástica na simbologia da Casa Real, incorporando-se um elemento de origem genealógica no simbólico estatal. O conceito de diferença heráldica é uma das grandes invenções criadas pelos heraldistas medievais. Uma vez organizada a Heráldica, esta foi, durante longo período, coletiva e nunca individual. De fato, em seus primórdios, concentrou-se principalmente em quatro pólos: os brasões familiares, de corporações, imaginários, e eclesiásticos. Em momento posterior, outros campos vieram a surgir, entre eles, a heráldica estatal. Assim, a genialidade dos teóricos, ao terem criado o conceito de diferença na heráldica familiar, por volta de 1175, tratou-se de verdadeira revolução. Entretanto, este conceito, que veio a ser usado principalmente nos brasões familiares, conservou uma das características medievais, mantendo os conjuntos, mas dividindo-o. Individualizou um ou mais ramos, mas da mesma estirpe. Bártolo di Sassoferrato, em seu Incipit Tractatus de Insigniis et Armis (1355), aceita haver diferenças de ramos na mesma família; entretanto, segundo o autor, estes não são individuais visto que, tal como o sobrenome, pertencem à família. Daí que seu uso não traga qualquer qualidade pessoal ao usuário. De fato, no que se refere à heráldica, o estigma da bastardia, num primeiro momento, era inexistente. Para Sassoferrato, os brasões familiares não indicam um estamento social sendo, unicamente, um meio de identificação. Este jurista entende a diferença como um artifício heráldico utilizado unicamente a fim de distinguir os diversos ramos familiares. Com regularidade, uma série de marcas distintivas era exposta nos brasões de cada irmão de uma mesma família. De fato, a diferença é um conceito intrinsecamente ligado à heráldica familiar. Seu funcionamento e suas regras estão intimamente ligadas, principalmente, aos hábitos familiares, às modas, épocas, a uma série de circunstâncias. O banco de pinchar foi a diferença mais utilizada entre 1270-1275. Entretanto, com o tempo, seu uso se restringiu aos membros das famílias reais. Entre 1250 e 1350 torna-se corriqueiro o uso

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como diferença de figuras de leões e aguietas, entre outras. Todavia, já na segunda metade do século XIV prefere-se o uso de um pequeno móvel. O cumprimento da posição jurídica proposta por Sassoferreto era de responsabilidade dos Oficiais de Armas. Eles detinham o poder de corrigir os brasões que não estivessem dentro das regras da armaria e registrá-los. Quando um escudeiro nobre passava a cavaleiro o arauto lhe dava as armas da respectiva família, com a diferença e a registrava de imediato. Segundo Paul Adam-Even, mesmo os brasões dos eclesiásticos, das mulheres e crianças portavam diferenças. Entretanto, segundo Michel Pastoureau, as mulheres não estão sujeitas a esta: as jovens que não estão casadas, em geral, possuem as mesmas armas que seu pai, enquanto que as mulheres casadas, em geral, possuem armas que combinam dentro do mesmo escudo as armas do pai e do marido. O estudo das diferenças contou com dois teóricos com posições diferentes a respeito do tema. John Ferne (1560-1609) defendeu a posição de que as primeiras diferenças que existiram na heráldica familiar se tratavam de cargas de figuras ou peças. Em contrapartida, Robert Gayre (1907-1996) parte do princípio de que as primeiras diferenças utilizadas foram as alterações das cores, embora aceite a existência, no primeiro quartel do século XIII, de cargas com figuras e peças. Ao estudar as diferenças heráldicas, este segundo autor teorizou uma distinção estrutural, agrupando-as em diferenças maiores e menores. As diferenças maiores são as alterações das cores nos brasões familiares. As menores consistem na carga do brasão familiar de figuras e peças. Aceitando-se esta posição, importante no que se refere ao desenvolvimento do método de estudo das diferenças, Jean Baptist Christyn, em sua obra Jurisprudentia heróica, de jure belgarum circa nobilitatem (1668), e o clérigo inglês Nicholas Hupton, em Libellus de Officio Militari (1446), teriam sido os primeiros a, além de já usarem as diferenças maiores e menores, juntarem a esta última a bordadura. Estabelecia-se, desta forma, a concepção de que as peças também poderiam servir de diferença. Podemos considerar a alteração das cores como a forma mais lógica de se introduzir uma diferença heráldica. De tal maneira se desenvolveu este gênero de diferença que Jean Baptist Christyn,

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na obra citada acima, informa que nas regiões anglo-francesas a alteração das cores era usada vulgarmente. Seu uso normalizou-se e, no Sacro Império tornou-se a diferença mais usual. Entretanto, embora a alteração das cores tenha sido a primeira diferença aplicada, também acabou sendo a primeira a ser abandonada, no século XIII. Em fins da Idade Média, deu-se uma evolução heráldica diversa nas diferentes regiões européias. Na região do Sacro Império as diferenças menores acabam por desaparecer, passando as cores a funcionar como diferença maior no brasão. Na Escócia, o sistema desenvolveu-se até a sua regulamentação, ocorrida no século XVII. Na Itália, a expansão aragonesa no Reino de Nápoles levou à difusão da diferença maior ao passo que no norte esta ia desaparecendo. Da França, a diferença menor e as figuras foram transmitidas à Inglaterra. Com o decorrer do tempo, a diferença menor extinguiu-se na França, visto que uma de suas principais figuras, a flor de lis, era de uso exclusivo da família real. Entretanto, na segunda metade do século XIII, entre 25 e 30 % dos brasões familiares franceses recenseados possuíam diferenças, embora sejam raras na região sul. O apogeu do uso das diferenças situa-se entre 1320-1330. Em Portugal, a partir do reinado de Afonso III o ordenamento do escudo, já portando a diferença mencionada, se manteve estável até o advento da dinastia de Avis. Em momento posterior, a iconografia das armas reais foi sendo aumentada com ornamentos exteriores: a coroa, os anjos tenentes, o elmo, o timbre etc.

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REPRESENTAÇÕES RELIGIOSAS NO MEDIEVO (SÉCULO XII - XIII): UMA LEITURA ATRAVÉS DA PERSPECTIVA SEMIOLÓGICA Golda Meir Gonçalves da Silva402

Considerando que o cristianismo institucional marcou com sua produção sígnica a prática e a ideologia social do Baixo Medievo, analisaremos dinâmicas e representações403, investidas semanticamente no seu percurso histórico gerativo, que revelam continuidades, similitudes e diálogos. Através da dialética comunicativa proposta por Barthes (1974) pensamos neste trabalho as relações entre plebe, trono e altar. O saber passando pelo crivo do dogma, aliou-se a “verdade divina” no medievo. Todos os objetos, instrumentos e paramentos tornaram-se pretextos para a expressão e contextualização da fé cristã. Inclusive a literatura e a filosofia greco-romana foram significadas para fornecer arquétipos de autoridade e legitimação do imaginário cristão medieval. A Igreja cristã por muito tempo se esforçou por ritualizar seu culto, revestindo-o com o brilho e o ornato litúrgico dando-lhe sentido e formalizando sua mensagem através da articulação do signo e do ser. Mas, entre os séculos XII e XIII, começou a perder o monopólio e o controle do saber. Desenvolveu-se concomitantemente uma cultura laica, mais técnica e concreta, voltada as necessidades econômicas e políticas do momento histórico referido segundo Le Goff (1991). Naquele período, apesar de mudanças já se anunciarem, revelando transformações na geografia populacional, a vida no campo prevalece sobre a vida nas cidades o que pode justificar, na semiologia religiosa, um sistema sígnico composto de tantos elementos da experiência cotidiana camponesa. O conhecimento no medievo estava ligado a religião, não apenas no que se refere a teologia, mas também as artes, a filosofia e ao direito. Ele é constituído de algo subjetivo, intangível e misterioso de acordo com Verger (1999). A Igreja controlava o saber humano e estar informado não 402

Graduanda do curso de Licenciatura em História, na Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí. E-mail: [email protected]. 403 Termo da filosofia clássica será aqui utilizado para insinuar que as linguagens são signos representativos das coisas do mundo. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 382-383.)

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era um valor social coletivo, mas privilégio de alguns. Mesmo no medievo, a Igreja, detinha o conhecimento do poder de comunicar, porém essa comunicação era prioritariamente unilateral. Quanto mais passivo o receptor se mantivesse, maior se considerava o êxito do emissor. Porque, ainda que a condição de um signo seja a interpretação, conforme a compreensão de Eco (1991), deve se entender que na liturgia do medievo o interpretante era o próprio produtor do signo e que aos demais cabia internaliza-lo. A Igreja ocidental visando solidificar o modelo da cristandade tendo por base o Sacro Império Romano-Germânico buscou subsídios no legado cultural da Antiguidade, fundindo personagens históricas e mitológicas com a visão eclesiástica do Baixo Medievo. Para tal incorporou, mesclou e sintetizou o conhecimento conforme as necessidades intelectivas do seu contexto, habilitando emissor e receptor para entender, do mesmo modo, as manifestações que propôs através de ícones404; símbolos405; e signos406. Na mística religiosa, a Igreja compartilha a cultura e o espírito de seu tempo. E, como ideologia, o valor sígnico adquire peso de identidade, paralisando, ainda que parcialmente, a construção e desconstrução dos sujeitos envolvidos e assim (quase) perdendo seu aspecto de crise constante. O objeto religioso é demasiadamente abstrato para a concretude medieval. A construção sígnica de um reino divino que alcançasse o reino terreno através da verossimilhança entre o poder daquele que representava e o poder do representado, criou significados e significantes convincentes da realidade existente para além do mundano. A partir da análise de Eco vemos que Ícones, signos e símbolos conseguiram correlacionar corpo e alma, divino e terreno, poder secular e poder espiritual

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Ícone aqui entendido conf. Peirce como um signo definido por sua relação de semelhança com a realidade exterior, oposto a índice e que se caracteriza pela relação de contiguidade natural. Aqui pensados como resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeitos de sentido condicionado pela concepção cultural da realidade e pela ideologia dos produtores e usuários. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 222-223.) 405 De acordo com Hjelmslev símbolo é uma grandeza suscetível a várias interpretações. No rastro de Saussure e Peirce esta grandeza possui um estatuto autônomo, não admitindo, num contexto sócio-cultural dado, uma única interpretação, mas sendo mesmo assim fundamentado numa convenção social. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 423-425.) 406 E os signos pensados como unidades constituídas pela relação de pressuposição recíproca entre grandezas do plano de expressão e conteúdo. Este elemento pode ser considerado como uma forma de expressão encarregada de traduzir uma ideia ou uma coisa investindo-a de uma manifestação expressa de acordo com uma determinada conceituação. (GREIMAS; COURTÉS. 1979, p. 422-423.)

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como “entidades emitidas” ou “emissíveis intencionalmente com o fim de comunicar”, “organizadas num sistema descritível segundo categorias precisas” (1991, p. 22) Nas imagens de síntese, dos desdobramentos desse poder, construídas a partir do discurso religioso, constituídas de códigos visuais, conceituais e verbais, o divino se tornou possível e desafiou as leis físicas e naturais, se transformando na própria natureza. A Igreja se esforçou para apagar os sinais dessa construção, tentando aparenta-la como simples gestos da realidade. Mas, a partir das reflexões de Eco esse construto pôde ser percebido ao analisarmos o sentido dessas significações em seu lugar de produção e onde ele aflorou como mais um aparato expressivo (1991, p. 31) conforme veremos nas dinâmicas e representações referenciadas neste trabalho. Nos processos comunicativos entre sociedade e Igreja podemos observar que através de ícones da literatura e filosofia clássicas se ajuizavam os comportamentos que poderiam motivar reprimendas e louvor. As figuras literárias e filosóficas ganharam funções didático-moralizantes. Os elementos culturais pagãos foram assimilados e compreendidos dentro de uma ótica cristã, cuja função fora reprimir vícios e espalhar a virtude de acordo com Curtius (1957, p. 51). Utilizava-se o legado cultural clássico, mas não se pretendia imitar seus padrões, como assevera Pernoud407. A proposta desse mundo de referências fora promover, segundo Eco, “atitudesproposicionais”, possibilidades intencionais a partir de “fenômenos extensionais”, porque reelaborou um significado convencional de acordo com a situação dada (1991, p. 71-72). O mito clássico fora utilizado para demonstrar que a aproximação dos prazeres mundanos acarretaria o afastamento de uma vida santa. Portanto, não imbuído de qualidades e virtudes cristãs, o mito manifestaria características perversas e nocivas à comunidade de Cristo. Nesse sentido os significados e significantes foram estruturados enciclopedicamente, como parte de um conjunto de interpretações postuladas de forma progressiva de onde se deduziam os dados, favorecendo mais o uso que a interpretação dos elementos simbólicos. Procedimento que favoreceu construções semânticas parciais. A censura à postura das personagens clássicas, nesta perspectiva, legitimava a ótica cristã medieval. O amor feminino, por exemplo, elemento de louvor na tradição clássica, na cultura cristã

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Luz sobre a Idade Média. Publicações Europa-América, versão s/d.

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medieval fora elemento distanciador da palavra bíblica. E serviu de contraponto ao primado do homem sobre a mulher e do espírito sobre o corpo corruptível. Já os textos de Ovídio, foram ornados com significados constituídos a partir das virtudes de Cristo. Essas representações textuais, em termos de conteúdo, apontavam para um vazio nas escrituras consideradas sagradas segundo Bragança Júnior (1998). Historicamente, no entendimento de Moser, os símbolos são carregados de informações que apontam para uma dimensão transcendente (2014) e sincretizam os elementos significativos naturais ao corpus expressivo, próprio da Igreja medieval, composto por elementos locais e temporais. Para Bragança Júnior, os discursos clássicos representavam no medievo antigos valores, que poderiam ser reprimidos e/ou louvados, mas também adquiriram e expressaram novas ideias permeadas pela mensagem cristã (1998), funcionando como elemento referencial. O uso de símbolos pela Igreja é tradicional, já se prestou a elemento de identificação dos cristãos em meio a perseguições político-religiosas, como ornamentos nos templos e vestes, como elemento de evangelização aproximando e identificando os seus fieis. E assim como afirma Buyst:

Essa capacidade de manifestar o mistério de Deus e de nos colocar em relação com ele é própria dos símbolos e do pensamento simbólico. A lógica racional não alcança o mistério. Ou seja, o pensamento simbólico é mais amplo, ultrapassa o pensamento racional e o complementa. (2002, p 31).

O celibato como discurso reformador teve sua primeira imposição no Concílio de Elvira em 306. Mas foi no I Concílio de Latrão, em 1123 que se proibiu o casamento e o concubinato de sacerdotes católicos. Instituído para atender a um projeto de reforma social, conhecido como Reforma Gregoriana, ocorrido entre os séculos XI e XIII, cujo fim era a solidificação do poder da Igreja na Idade Média. De acordo com Bourdieu (1998, p. 85-96), esta foi uma prática construída gradualmente, um esquema social conduzido pela Igreja mostrando que os códigos de conduta e as ideologias podem se atualizar e ainda ocupar uma posição dominante. E, ainda que toda representação significasse a

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deidade conforme afirma Moser (apud GREIMAS/COURTÉS, 1979, p. 103), o celibato foi confirmado e reafirmado ao longo da história e está vinculado a construção identitária do sacerdócio católico. O ideal de pureza e castidade, desde o século XI, baliza o discurso de autoridade hierárquica eclesiástica. Pessavento (2003, p. 39) dirá que “as representações são matrizes geradoras de práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativas do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade”. E sobre si mesmos, não apenas na imediaticidade, mas ao longo do tempo. O celibato garantia ao clero, no contexto medieval, uma aura de virtude distanciada e superior ao restante dos cristãos. A Igreja converteu uma opção de fé individual em um sinal de superioridade dos clérigos sobre os leigos segundo Vainfas (1986). De acordo com Jacques Le Goff (1992, pp. 150162) a diferença entre clérigos e laicos era marcada pela castidade e pelo casamento respectivamente, ou seja, pela pureza e impureza. A Igreja impôs um modelo exclusivista de conduta clerical convocando a sociedade a rejeitar os resistentes ao celibato. É nesse contexto que a mulher foi tornada o maior inimigo das virtudes clérigas. A culpa de Eva legitimava a culpa das mulheres medievais por todos os desvios sexuais dos clérigos e da sociedade como um todo. O celibato fora utilizado pela Igreja como metáfora fundada por uma moral cristã medieval e fundadora de uma identidade clerical. A ação, nesse caso, remete a uma implicação, é o signo simbólico de uma ideologia. Os signos icônicos litúrgicos e os simbólicos sacramentais também revelam a relação de poder entre a Igreja e a sociedade e sustentam o seu discurso purificador e santificador. A consagração da hóstia, como corpo vivo de Cristo, fora descaracterizada por Lutero como ato sacrificial e tida a partir desse pensador como ritual de comunhão, o que revela os desdobramentos semânticos de um ícone, que escapando ou não ao objeto é pura significação. Para Carlo Ginzburg (2001, p. 102), o dogma da transubstanciação negando os dados sensíveis em prol do real profundo e invisível pode ser tomado como uma vitória extraordinária da abstração no medievo, porque o significado extrapolou o significante sem dele se desvincular. A confissão é outro símbolo do poder da Igreja medieval, representa um ato de julgamento, purificação e preparação para a comunhão com Cristo e preconizou a extinção do desejo como

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sacramento. Assim como a postura corporal, ato significativo na celebração da liturgia onde todos os gestos e palavras conferiam ritmo e harmonia, mas também indicavam um código de conduta, um modelo de comportamento social e um espaço-tempo de hierarquias bem demarcadas. Estas manifestações verbais e gestuais funcionaram como metáforas. Porque de acordo com Conesa e Nubiola (1999), os elementos simbólicos eclesiásticos no medievo não se voltavam apenas às faculdades visuais, mas para todos os demais sentidos, se manifestando como sinais dos pensamentos, da vontade e dos sentimentos humanos na sua relação com o mundo e com o espiritual. Os símbolos, no entendimento de Santaella (1983), estimularam a capacidade contemplativa, conduziram a uma distinção e discriminação das diferenças e induziram a capacidade de generalizar classificando e categorizando as observações realizadas sobre o contexto. Portanto, aplicados coerentemente proporcionaram uma linguagem harmônica para o significado a que se propuseram. A suntuosidade e a qualidade das vestes sacerdotais também foram influentes meios de comunicação na Igreja Medieval. Através da pompa, beleza e luxo das vestimentas se fazia analogia entre o poder espiritual e temporal. Entre os elementos utilizados na liturgia observa-se a combinação entre cores, que procurava atrair a atenção dos fieis, exprimir a realeza divina em seus diversos tempos, definir o lugar dos sujeitos e a ordem eclesiástica. Utilizadas como elementos mediadores, as cores foram sinais simbólicos muito importantes na celebração litúrgica e demarcaram, desde o medievo, a hierarquia eclesiástica. O simbólico tentou explicar a complexidade da experiência demonstrando que o tecido do mundo conhecido não era acidental, mas necessário, essencial e convencionado culturalmente. Que a operação atua sobre a expressão na produção do tecido social e implica transformações significativas no nível do conteúdo. Portanto o signo pôde oferecer um significado indireto, sujeito a interpretações sucessivas de acordo com as inferências sofridas espaçotemporalmente. Em Eco, a partir da “união de um significante e de um significado”, a veste como signo icônico diferenciou o sacerdote e comunicou uma ideologia (1991, pp. 17-19). Os paramentos, revestidos de elementos simbólicos, reviveram na ação litúrgica do medievo a experiência de Cristo e dos cristãos.

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O sistema sígnico religioso medieval fora pensado para potencializar o respeito e o temor social. Todas as técnicas disponíveis no período foram utilizadas para amparar este construto que amplificou a comunicação entre o divino e o terreno através de aparatos, icônicos e simbólicos, que assessoravam as habilidades físicas, sensoriais e cognitivas dos sujeitos sociais envolvidos segundo Carniello (2007 apud PROSS, 1972). O emissor se aparatava para compor mensagens que poderiam ser decodificadas pelo receptor, cuja atitude pode ser tida como ingênua, mas apenas se desconsiderarmos a limitação de acesso às fontes dessa construção. Os espaços hierárquicos no medievo não se limitavam apenas as esferas de poder, mas especialmente as esferas do saber. Assim as mensagens surgidas de tais artifícios adquiriram significação ideológica e moral. Na esteira de Martin (1990) compreende-se que as imagens reproduzidas nessas mensagens conduziram a movimentos afetivos e que sua produção implicou uma fusão entre interior e exterior, verossimilhança e realidade. Eco (1991, p. 17) concebe esse sistema de oposições, por entender que algo, percebido como ausente fora postulado por outra coisa como presença. E que esta ausência demarcada simbolicamente precisava, para significar, ser solidária com seu fantasma. A simbologia nas construções discursivas da Igreja medieval pôde ser observada através da liturgia da palavra408, batismal409 e eucarística410. Segundo Todorov (1978 apud ECO, 1980) há, “em todo discurso, uma produção indireta de sentido”. Portanto, deve-se entender que o estímulo-resposta não é movido por um ideal totalmente explicitado. O texto como símbolo, nesse caso, é uma experiência mística. Com efeito, na leitura de um texto simbólico, cada elemento exprime uma riqueza de sentidos, porque a expressão e compreensão de um sentido total está além da capacidade humana. As festas litúrgicas também foram símbolos que demonstravam o fervor religioso no medievo. Podiam ser de louvor, em honra, em agradecimento ou em memória. Ambas representavam a presença da Igreja na vida da sociedade medieval. O espaço do louvor também pôde extrapolar o objeto concreto e guardar a significação simbólica que representava o mundo invisível. O modo simbólico aqui remete a critérios de controle social da vontade individual e coletiva. Supondo que todo signo 408

Rememora os feitos históricos de Deus e dos seus ao longo do tempo. Renova e reforça a passagem para uma vida cristã. 410 Transubstanciação da hóstia no corpo de Cristo. 409

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religioso deva ser utilizado como símbolo, se encontra nele aquilo que nele é projetado de acordo com a compreensão de Eco(1991, pp. 223-231). Portanto, os espaços demarcados dentro da Igreja se relacionam com as divisões sociais estabelecidas política, econômica e/ou culturalmente. Na Idade Média o corpo também fora utilizado como objeto significante entre Igreja e sociedade, pensado como punição para o ser e como pecado para negação do ser. Neste sentido as expressões corporais nesse período foram signos do imaginário religioso do momento histórico. São vários conceitos de corpo na história do pensamento ocidental medieval. Santaella (2012) analisa o corpo, nesse período, como pulsional e, ao mesmo tempo, como imaginário e simbólico.

Para

Foucault (2013) o corpo é parte do campo político, de suas relações de poder e de acordo com o pensamento medieval é um sistema prisional. No entendimento de Greiner (2005) o corpo está dividido no medievo em soma e dema, ou seja, corpo morto e corpo vivo, sendo morta a matéria e viva a alma. O corpo sólido, tangível, sensível, visível, que possui uma forma, segundo a compreensão deCardim (2009) é o túmulo ou a prisão da alma. Nessa esteira Le Goff (2007) entende que a Idade Média fora inicialmente o período de renúncia do corpo, por este ser compreendido como fonte de pecado. A partir dessas perspectivas, podemos considerar que o corpo fora espaço de informações e de manifestações culturais no medievo. E que tudo no ser comunicava o ser. Os rituais de auto sacrifício do corpo, por exemplo, foram utilizados como forma de comunicação, contenção, controle e expressão religiosa, quando da espetacularização desse ato na Baixa Idade Média. A autoflagelação era tida como forma de comunicação interior entre o indivíduo e Deus, mas também com o mundo exterior entre o sujeito religioso e a sociedade. Nessa prática, que tem sua origem na visão providencialista medieval, tanto o corpo, quanto o sacrifício foram formas de expressão e linguagem, que ora se comunicava com o mundo tangível, ora com o intangível. E obedecendo a função didático-moralizante imposta a produção sígnica da Igreja, a exemplo do sacrifício de Jesus era preciso expiar esse objeto corrupto e corruptível. O sacrifício representava o poder sagrado atuando sobre o corpo, ou seja, a vida atuando sobre a morte. Nesse ato a coisa consagrada era o instrumento mediador entre a humanidade e Deus, entre a perdição e a salvação. Mas, era a intervenção religiosa que dava o verdadeiro sentido simbólico

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ao ato de acordo com Mauss (2005). Eco compreende que “O homem medieval que vive na própria carne o modo simbólico” vagueava num espaço onde tudo queria dizer outra coisa, portanto onde tudo era de algum modo um poder semiótico, com um sentido a ser decodificado (1991, p. 234). Esse teatro também servia como construção simbólica de uma espécie de realidade, onde as representações objetivavam um mesmo movimento, de acordo com Boudieu (2010). E Martín-Barbero (2008) diz que a Igreja fora a grande distribuidora dessas imagens de devoção e flagelo. Debord (1997) entende que a espetacularização do flagelo não era apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediadas por símbolos comunicativos de um imaginário significante contextualmente. Existindo assim uma função de poder e dominação, que combinava o imaginário social e o sacrifício corporal espetacular. Portanto, esse espetáculo tinha a função de informar, divertir, universalizar ideias e acorrentar o pensamento de acordo com a análise de Berthold (2011). O tema explicito era a submissão do mundo a Deus personificado pela própria Igreja no corpo de seus fieis submetidos ao flagelo, e em cujas mãos estavam céu e inferno. O modo simbólico se encontra aqui na manifestação artística, pensado poeticamente e disposto estrategicamente para ser reconhecido a fim de veicular novos conteúdos implicitos, exigindo para tal circunstâncias comunicativas sobredeterminadas pelo contexto. As relíquias também foram elementos do sistema sígnico litúrgico medieval, nos quais o sagrado era essencial para a sua existência. Porém o sagrado precede ao objeto e permanece sem ele. Contudo esses objetos eram os signos icônicos que comunicavam este sagrado. Suas formas emitiam um poder simbólico informativo proporcionando a dialética, proposta por Roland Barthes (1974), da produtividade comunicativa respaldada na fé e na religiosidade medieval católica, como bem se vê em Pseudo-Dionísio, o Aeropagita, já no século V:

Contudo, este Raio divino não poderá nos iluminar se não estiver espiritualmente celado na variedade de figuras sagradas, acomodadas ao nosso modo natural e próprio, conforme a paternal providência de Deus.

Por isso, nossa sagrada hierarquia foi estabelecida por

disposição divina à imitação das hierarquias celestes, que não são deste mundo. Mas as

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hierarquias imateriais se revestiram de múltiplas figuras e formas materiais para que, conforme nossa maneira de ser, elevássemos-nos analogicamente desde estes signos sagrados até a compreensão das realidades espirituais, simples, inefáveis. Nós, homens, não poderíamos de modo algum elevar-nos pela via puramente espiritual para imitar e contemplar as hierarquias celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiassem, como requer nossa natureza. Qualquer pessoa que reflita se dá conta que a aparente formosura é sinal de mistérios sublimes; o bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual; as luzes materiais são imagem da copiosa efusão de luz imaterial; as diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa capacidade contemplativa da mente; as ordens e graus sagrados daqui de baixo simbolizam as harmoniosas relações do Reino de Deus; a recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da participação em Jesus, e o mesmo ocorre com os seres do Céu que, de modo transcendente, recebem os dons, dados simbolicamente a nós. A fonte de perfeição espiritual nos proveu de imagens sensíveis que correspondem às realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua semelhança. Deu-nos a conhecer as hierarquias celestes; instituiu o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste; enquanto é possível humanamente, em seu divino sacerdócio, revelou-nos tudo isso por meio das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos espiritualmente desde o sensível e conceitual através de símbolos sagrados, até o simplíssimo cume daquelas hierarquias celestes. (1995, p. 119-122) Anselmo de Aosta também elabora um pensamento sobre a produção simbólica de sua época: Pois uma coisa é a coisa estar no intelecto, e outra, entender que a coisa existe. Porque quando o pintor pensa antecipadamente o que tem de fazer, certamente o tem no intelecto, mas ainda não entende que exista o que ainda não fez. [...] Contudo, após pintar, ele a tem no intelecto, e entende que existe o que fez. (apud GUERREIRO, 2002, p. 128).

Não sendo os objetos materiais os únicos componentes do sistema signico religioso no medievo, buscamos a reflexão de São Boaventura (1996) sobre a palavra como elemento simbólico da

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teologia. Este pensador lhe define três aspectos correspondentes: em relação ao emissor a considera signo de um conceito da mente, que se transforma em voz sem desprender-se do conceito mental que a gerou; em relação a enunciação a palavra é regra e esta submetida a ser modo, espécie e ordem; e em relação ao receptor a palavra consiste em exprimir, instruir e mover. Portanto a palavra é o símbolo que move os fieis e a expressão máxima da linguagem religiosa no medievo. Pedro Abelardo (1994, p. 33-35), sobre a importância da linguagem diz que ela revela algo de si, a si pertinente. Talvez por esta razão a palavra seja na liturgia símbolo do mando de Deus, representação da divina voz criativa, uma fala impositiva, uma ordem. Duby diz que a Idade Média é resolutamente um período masculino (DUBY/PERROT, 1990). E que as exigências na postura das mulheres eram complexas, limitadoras e revelavam a significação moral do conjunto sígnico religioso. O simbolismo religioso fora responsável pela concepção do que deveria ser uma mulher, o padrão estabelecido estava estampado no modelo sacrossanto de Maria, “a Virgem”. Weinmann (2008) diz que o mundo de mulheres e crianças, por volta dos sete anos, entre os séculos XII e XIII, era indiferenciado, um mundo de contatos face-a-face, de palavras faladas e não escritas. E que a comunicação com esses grupos se efetuava simbolicamente, através de imagens visuais e verbais. Os signos referenciais aqui foram necessários para a projeção do modelo desejado e não importa se esse modelo era uma mentira, porque isto em nada influenciaria no seu funcionamento como símbolo. Em semiótica a falácia tem função, posto que haja sempre significação nas mentiras. O importante para esta análise, de acordo com Eco é identificar “condições de significação e condições de verdade”, ou seja, “uma semântica intencional e uma semântica extensional” relacionada (1980, pp. 48-49). Apesar do discurso misógino característico do medievo, pelo menos as mulheres voltadas para a vida religiosa adquiriram certa autoridade e autonomia. Segundo Pernoud (1984) a mulher se tornou naquele momento uma síntese da perfeição sensual e racional, a mediadora fundamental para mudar e enobrecer o homem. A sistematização simbólica tentou universalizar o culto e, por conseguinte, os componentes e comportamentos em torno. O contexto da baixa Idade Média não permitia a manutenção da exclusão do feminino, portanto fez-se necessário submete-lo ao seio da Igreja, que

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estrategicamente o promoveu ao mesmo tempo em que o silenciava. O objeto aqui não é o mais importante, porque é conduzido por meio de uma interpretação restrita assemelhando-o ao seu conteúdo semântico. Sua presença visa satisfazer a um valor de verdade da expressão dada apenas a fim de inseri-lo em sua função sígnica. Outro ícone importante da liturgia sagrada medieval fora os santos, vistos a partir do século XII como símbolo do vínculo local com a “Igreja universal”. Inicialmente escolhidos pela origem nobre e pelo envolvimento nas atividades sociais. Com a Reforma de Gregório VII, passa-se a considerar o exemplo de vida e os milagres realizados. A figura do santo era o auxílio simbólico. E o santo o reflexo do criador, o representante de determinado grupo, dentro do corpo amplo da Igreja, o intercessor, que inscrevia e incluía a diferença dos membros no corpo homogêneo da religião. Em Eco podemos compreender que a falácia aqui está interessada na extensão dos enunciados como “proposições assertivas semióticas” (1980, pp. 52-53), porque são atribuídos conteúdos a um código convencionado, no qual os componentes são unidades de um sistema semântico amplo, que permite compreende-los individual e culturalmente. Portanto, a crença no mito, se mito, é relevante, independentemente do fato, posto que revele a força social dos signos. A estrutura arquitetônica religiosa também se tornou ícone representativo da vida comunitária. As Igrejas atraiam o mercado em torno de si, as cidades medievais se desenvolviam em torno dessas construções. A grandeza de sua expressão reduzia a importância dos elementos terrenos para glorificar a superioridade de Deus. Nesse contexto a Igreja é o próprio mundo. Fora dela o quadro de destinos possíveis antes composto por céu e inferno, ganha mais um elemento simbólico o purgatório. Bem representado pela condição humana na imagem do labirinto, sendo a escolha dos fieis ou infiéis o determinante do caminho na vida para além da morte. E o cristianismo a única doutrinação que oferecia um Deus pessoal e único capaz de salvar a humanidade de sua miséria material. Essa entidade concreta se tornou uma “unidade cultural” distinta e diversa de outras que “permaneceu imutável através da substituição dos significantes que veiculava” (ECO, 1980, p. 57). As referências imagéticas foram utilizadas para conferir poder, velar e desvelar o mistério divino através da Igreja. A produção sígnica religiosa em sua relação com a realidade medieval

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objetivava afetar os sentimentos e adquirir significado ideológico e moral de acordo com a compreensão de Martin (1990). Esta cultura não é só comunicação e significação, mas pode ser entendida semioticamente, porque todo o conteúdo cultural pode tornar-se uma “entidade semântica” (ECO, 1980, pp. 21). Mesmo os objetos físicos concretos podem adquirir valor simbólico socialmente quanto ao seu funcionamento. E a Igreja se tornou um produtor ideal de signos, por construir um sistema de códigos altamente formalizado e por se ligar a fenômenos sujeitos a mutações e reestruturações, com seus significantes e significados instituídos para comunicar e influenciar todo o universo em torno a cada signo forjado. Percebe-se que a produção de sistemas sígnicos para expressar ideias não é recente, remonta desde a Antiguidade Clássica. E considerando os métodos semióticos para a análise, Eco (1977, pp. 180) estudou os signos e os compreende como qualquer processo visual que reproduza objetos concretos para comunicar um objeto ou um conceito correspondente seja ele mental, visual ou verbal. E Tzvetan Todorov em 1978 (apud ECO, 1980) distingue dois grupos de estudos possíveis para estes signos: os “códigos”411, e os “sistemas de comunicação”412. Dessa perspectiva a produção simbólica do medievo elege os elementos, os processos, as formas artificiais ou naturais que representam a ordem de realidades e de valores que estruturam os esquemas ideológicos, culturais e sociais do período. Tal esquema fundamenta, expressa e legitima os padrões de conduta ritual da Igreja, estabelecendo modelos de conduta social. Sendo a Igreja, ao mesmo tempo, produto e produtor dessa cultura. Le Goff (1992) entende que o historiador precisa analisar sua fonte segundo o imaginário em que esta está imersa. Mas Eco propõe que todas as verdades são risíveis. A simbologia, assim como qualquer documento ou método não anula a realidade, mas pode ser um instrumento mediador poderoso na análise das relações sociais e dos processos comunicativos. A Igreja soube explorar o potencial comunicativo de seu produto simbólico, utilizou-se desse recurso com o objetivo de estabelecer um modo de vida e garantir-se como a ideologia dominante e este uso não fora ingênuo. 411

Os códigos reúnem, dessa perspectiva, as formas de linguagens. Nos sistemas de comunicação os diferentes modelos de comportamento social servem para comunicar ideologias e modelos de conduta. 412

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Como interpretante assegurou a validade dos signos que produziu, tornando-se, ela mesma, um signo cuja definição implicaria um processo semiótico ilimitado. A Igreja viveu uma situação de fronteira, na qual a produção sígnica permitiu formar e interpretar mensagens e textos, conferindo sentido a amplas porções do seu discurso em que a inferência obedecia a uma regra, objetivando como resultado uma função semântica pré-definida para comunicar ideias e estabelecer um sistema de controle social e cultural rigoroso que se estendeu por longo período e do qual a cultura atual ainda guarda inúmeros vestígios.

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O SAGRADO E O PODER RÉGIO: O MOSTEIRO DA BATALHA ENQUANTO PANTEÃO DINÁSTICO DE AVIS Hugo Rincon Azevedo413

Estudar a função real perpassa obviamente o campo das representações. Obras arquitetônicas, a imagem construída pelos cronistas, pelos intelectuais e pela literatura dos séculos XIV e XV sobre a importância e a conduta dos monarcas de Avis constituem-se em fontes essenciais que tem por princípio difundir uma imagem consentida de rei, no dizer de Armindo de Sousa414 (1996, p. 5 e 6). Os estudos relativos à construção de um ideal de monarca, amparado por uma simbologia própria, fortaleceram-se, como objeto de pesquisa, desde a obra percussora de Marc Bloch 415, Os Reis Taumaturgos (1993), onde este analisou a sagração dos reis da França, conferida através de um ritual carregado de símbolos. Para Jacques Le Goff416, “pesquisando as origens, Bloch já encontra os dois temas essenciais de sua obra: o vínculo entre o poder taumatúrgico e a sagração (ou, mais precisamente, a unção); e as políticas desse recurso ao sagrado”. (LE GOFF, 1993, p.20). Ao longo da Idade Média, os soberanos ocidentais foram ampliando seus poderes, buscando uma aproximação e igualdade dos poderes temporais aos atemporais. Os monarcas desejavam possuir tanto poder quanto tinha a Igreja. Segundo afirma Marc Bloch, “os soberanos do Ocidente haviam-se tornando oficialmente sagrados graças a uma nova instituição: a consagração eclesiástica e, mais particularmente, seu rito fundamental, a unção.” (BLOCH, 1993, p. 75). Nesse aspecto, a obra Os Reis

413

Graduando em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-mail: [email protected] 414 Armindo de Souza. Imagens e Utopias em Portugal nos fins da Idade Média: A Imagem Consentida de Rei, in Revista Portuguesa de História, Tomo XXXI, Volume II, Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de História Econômica e Social, 1996. 415 Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos - O caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra, SP: Companhia das Letras, 1993. 416 Jacques Le Goff. Prefácio. In: Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos - O caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra, SP: Companhia das Letras, 1993.

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Taumaturgos417 discute a crença no rito régio da cura das escrófulas. Essa concepção de uma realeza que dialoga com a sacralidade também está presente nas concepções medievais que tiveram lugar em Portugal. Vejamos, por exemplo, a construção de um modelo lusitano de “Rei Sábio”, inserida na obra literária de D. Duarte418. No Leal Conselheiro o autor exprimia as “speciaaes condiçooes e virtudes que se requerem ao boo consselheiro419”. Múltiplos aspectos da conduta régia foram objeto de análise ao longo das obras duartinas, destinadas em grande parte a nortear o perfeito comportamento de reis e príncipes. Até a organização das atividades cotidianas de forma cronológica, aspecto bastante estudado por historiadores e literatos especialistas nos escritos de D. Duarte, associa-se a ideia de uma maior eficiência das atividades administrativas do monarca ideal. Este discurso doutrinal foi algo característico nos monarcas de Avis. Estes, inseridos na prática de centralização presente nos séculos XIV e XV, necessitavam de meios que garantissem e fortalecessem seu poder. Segundo Marcella Lopes Guimarães 420, “a vida virtuosa é para D. Duarte, sobretudo necessária aos reis cujos reinos não lhes foram outorgados pera folgança e deleita çom, mas pera trabalhar de spritu e corpo mais que todos”. (GUIMARÃES, 2004, p.75). A idealização do monarca, em sua função de árbitro, precisava garantir a superioridade do poder real frente aos demais segmentos sociais. A privança régia se constitui, devido a isso, em aspecto fundamental na balança do poder político. Os mecanismos de poder mais essenciais no jogo político fundamentavam-se, como se sabe, no direito e na justiça, assim, o melhor rei seria aquele que conserva seu reino em paz. A superioridade régia baseava-se também na prática de se fazer leis. Todas as leis postulavam a submissão dos súditos ao monarca. Não devemos esquecer, contudo, que o rei antes de ser rei, é cristão e como qual deve se comportar. As várias funções do rei como justiceiro, protetor, legislador e juiz estavam imbuídas do 417

Marc Bloch. Op. Cit. 1993. Filho de D. João I e segundo monarca da casa de Avis, D. Duarte I de Portuga teve em seu governo uma importa preocupação com a construção da memória da nova dinastia. 419 D. Duarte (Obras), introdução e seleção de Afonso Botelho. Edição comemorativa aos 600 anos do nascimento do rei. Lisboa: Verbo, 1991. 420 Marcella Lopes Guimarães. Estudo das Representações de Monarca nas Crônicas DeFernão Lopes (Séculos XIV e XV) O espelho de rei“Decifra- me e te devoro”, Curitiba: Tese de Doutorado mimeo. UFPR, 2004. 418

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idealismo cristão. O reino e/ou o povo estavam confiados ao governo do rei, o que significa que o poder do rei não derivava do povo, do reino ou de qualquer indivíduo, mas da graça divina, embora através da colaboração humana. Se o poder do rei é de origem divina, o poder real é, portanto, sagrado. Para Mircea Eliade421, o sagrado “manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturais” (...) equivale ao poder, e em última análise à realidade por excelência”. (ELIADE, 2010, p. 16 e 18). Dentro desta perspectiva de sagrado, pretende-se ao longo deste texto, analisar as relações entre o sagrado e a construção simbólica do poder monárquico em torno dos Avis, a partir da figura do fundador da dinastia, D. João I. Acreditava-se que “o poder real provinha directamente de Deus”. (MARQUES, 1987, p. 286). Segundo Oliveira Marques422, ao longo do século XIV e XV essa doutrina ganhou força em Portugal, principalmente a partir dos finais do reinado de D. Dinis. Para Marques, essa doutrina, paradoxalmente laica, tinha cunho “nacionalista” e buscava colocar o poder do soberano local frente ao poder papal, não aceitando autoridades imperiais, buscando garantir a independência do reinado. Segundo Marques423,

Já desde finais do reinado de D. Dinis, pelo menos, era esta a doutrina corrente em Portugal. , afirmava Afonso IV em 1340, cabendo aos reis , continuava D. Fernando. Na própria eleição de 1385, os eleitores haviam sido somente instrumentos da vontade divina, que fizera vagar a coroa a fim de a transferir para D. João I. Assim, o rei era-o , fórmula desde havia muito consagrada pelo uso mais reinterpretada em função dos interesses do Estado. (MARQUES, 1987, p. 286).

421

Neste texto, pretende-se utilizar do conceito de sagrado presente na obra: Mircea Eliade. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 422 A.H. de Oliveira Marques. Nova História de Portugal, vol. IV – Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV. Lisboa, 1987. 423 Idem. Ibidem. 1987, p. 286.

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A sacralização da imagem de D. João I, dentro do contexto da doutrina citada por Oliveira Marques424, provavelmente, se inicia nas batalhas contra Castela durante a Crise Dinástica (13831385). A vitória no Cerco de Lisboa (1384), possivelmente, deu inicio a construção da imagem de D. João I, como rei escolhido por “Deus”. Neste ano, em meio a inúmeras derrotas e baixas do lado português, mas que em meio a essa derrota na guerra, que aparentava ser eminente, aconteceu o que na visão dos partidários de D. João, era um “milagre”;

Mas a salvação chegou. Pela peste. Os sitiantes morriam às centenas por dia e quando a rainha foi tocada pela epidemia. Juan I mandou levantar o cerco. Corria o dia 3 de Setembro de 1384. A explicação deste acontecimento, na prosa do cronista, como no coração do povo à época, só poderia ser lida à luz do milagre. O Senhor enviara um Messias para salvar o seu povo. Assim, acreditariam as gentes, assim o gravou em memória Fernão Lopes, nas profecias messiânicas e milenaristas sobre predestinado chefe. (COELHO, 2010. p. 455). Com a vitória de D. João sobre as forças de Castela, através da “ajuda” que a epidemia da peste425 deu aos combatentes portugueses (que na visão do cronista foi por uma “intervenção divina”), iniciou a criação de uma imagem do Rei Salvador, aquele que foi escolhido por Deus para salvar seu povo, como é demonstrada na crônica de Fernão Lopes426 e por Maria Helena Coelho427 (2010) quando afirma que para os seguidores de D. João, “Deus” enviou um “Messias” para salvá-lo, fazendo parte do

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A doutrina do Poder Real de providência divina. Grande epidemia, com origem do Oriente, que devastou a Europa entre os séculos XIV e XV, a Peste Negra também influenciou na disputa da Crise Dinástica portuguesa, segundo os levantamentos bibliográficos e documentais, beneficiou na guerra os partidários de D. João I. Para ver mais sobre os efeitos da Peste Negra em Portugal, ver a obra “Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV” de A. H. Oliveira Marques, 1987. 426 Cronista português do século XV, Fernão Lopes escreveu sobre a História portuguesa, desde a fundação até os monarcas da Casa de Avis no século XV. Este foi contratado por D. Duarte, segundo rei da Dinastia de Avis e filho de D. João I, possivelmente, com o intuito de deixar registrado o legado e a memória do Mestre de Avis. 427 Maria Helena da Cruz Coelho. D. João I. In: MENDONÇA, Manuela. (Org.) História dos Reis de Portugal – Da Fundação à perda da independência. Lisboa: Academia Portuguesa de História. 2010. 425

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imaginário da cristandade medieval por seu caráter messiânico. Esse acontecimento pode ter sido um dos primeiros elementos a serem usados através do imaginário religioso para a legitimação de D. João, que no período ainda estava em meio à crise dinástica e na disputa pelo trono português. Essa ideia de “rei predestinado” surgido a partir dessa vitória portuguesa pode ter sido um marco inicial para a construção da legitimação da Casa dos Avis e a idealização do poder monárquico desse que viria a ser o futuro Rei de Portugal. No ano de 1385, segundo relatos de Fernão Lopes e cronistas da época 428, D. João já era aclamado rei por parte do povo. Segundo Coelho, a justificativa para a legitimação e recebimento do título de rei a D. João era de que o Mestre de Avis “era filho de rei, lutara pela defesa do reino, partilhara com os seus concidadãos o cerco de Lisboa e mostrava-se devoto, caritativo e justo para com os seus súbditos. Exercia, pois, com correcção, o poder”. (COELHO, 2010. p. 458). A grande batalha que contribuiu para a consolidação de D. João enquanto rei foi batalha de Aljubarrota. A produção historiográfica produzida no século XV, especialmente as crônicas de F. Lopes, trazem diversas informações sobre a valorização dos feitos do monarca, visando consolidar o poder da nova Dinastia. Nas narrativas a cerca da batalha, os números de soldados entre os exércitos portugueses e castelhanos divergem entre os cronistas e autores pesquisados. Mas o que todos estes tem em comum em é que o exército castelhano havia mais que o dobro de homens em relação ao exército português.429 A impressionante vitória portuguesa em uma batalha onde o lado inimigo era mais forte possuía maior contingente de homens e arsenal bélico, além de confirmar a ascensão de D. João I como rei de Portugal, pode ter contribuído dentro do imaginário da cristandade medieval portuguesa, para idealizar o poder do rei através de seu caráter messiânico, centralizando o poder em

Relatos presentes em a “Crônica de D. João I de boa memória”, escrita por Fernão Lopes. Maria Helena Coelho, em sua obra sobre D. João I, em “História dos Reis de Portugal” (2010), reforça o relato de Lopes, no qual parte do povo de português naquele momento aclamava D. João I rei de Portugal. 429 Vale ressaltar, que este texto não pretende tomar as narrativas sobre a Batalha de Aljubarrota como verdade indiscutível ou absoluta, até porque se considera que este não é a ideia deste texto. Mas a batalha épica narrada por Fernão Lopes em que essa impressionante vitória portuguesa sobre Castela, na qual o número de soldados do lado rival era bem superior, pode se discutir a própria valorização dada pelo cronista pelo acontecimento histórico. Remete-se também ao mito fundador de Portugal, quando D. Afonso Henriques derrota os mouros e o reino de Leão, com “ajuda divina”, fundando o reino de Portugal. Essa valorização e tom épico dado à batalha pelo cronista podem ser mais um elemento a ser analisado para a tentativa de consolidação da dinastia avisina e para a idealização do poder monárquico dos reis da Casa de Avis. 428

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suas mãos, com o maior apoio do povo, que conseguiria a partir deste acontecimento. Ao vencer a batalha de Aljubarrota,

D. João I justificava pelas armas o seu título de rei e viabilizava o reino de Portugal. E à luz da religiosidade da época este sucesso teria sido mesmo abençoado por Deus, pela Virgem e pelos santos, por todos S. Jorge. À Virgem se entregara D. João em sua honra virá a erguer o grande Mosteiro de Santa Maria da Vitória. (COELHO, 2010. p. 462).

Durante seu reinado, D. João I procurou ritualizar e propagandear o poder real, demonstrando-o em cerimônias régias e religiosas, utilizando-se de representações e símbolos que demonstravam seu poder. (COELHO, 2010, p. 486). Uma dessas representações será o Mosteiro da Batalha. Outra representação de poder desde período pode ser encontrada na tentativa da ligação do Mestre de Avis com o fundador da monarquia portuguesa, D. Afonso Henriques. Segundo Gomes (1997), ao citar duas semelhantes narrativas sobre o “mito fundador” português, produzidas no final do século XIV 430 e início do século XV431 no mosteiro de Coimbra. Estes são;

Textos muito próximos, quase preparados para uma oração solene a proferir diante de D. João I, o monarca fundador da nova dinastia de Avis e simbólico Em uma memória produzida em 1385, sobre o rei fundador e a construção da nova “nação”, encontra-se que: “El Rey Dom Afonso primeiro rey de Portugal Em lide E em canpo veençeo .V. Rex Mouros .silicent. em o campo d’Ourique. Onde lhe apareçeeo noso Senhor lhesu Christo posto em cruz por cuja Semelhança do divinal misterio pos em seu escudo as armas em cruz, as quaaes ora trazem os rex de Portugal. E so este pendom E sinal da cruz que auante dele andaua Em todalhas batalhas E escaramuças que entrava ele era vencedor. O qual Rey ante da dicta batalha se chamou Rey dos portugueses jectando fora os emfiees E poborando o reeino”. António Cruz. Op. Cit. 1968, p. 29. In: Saul António Gomes, Op. Cit. 1997, p. 288. 431 Em outra memória datada de 1420, relata que no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: “jaz o mujto Exçelente primeiro Rey em Purtuguall Dom Afonso Anrriquiz mijlitante senhor. Este foy o que acreçentou a muj alta fama e honrra da dinjdade da Coroa dos Rex de Purtuguall. O qual vençeo .V°. Rex mouros Em canpo d’Ourique. Onde lhe apareçeo lhesu Christo posto em Cruz. E aly foy alçado por rey. E pos em o seu escudo das armas que a uossa Senhoria traz. E uençeo o conde de Trastamara que lhe Ocupaua o reino. E vençeo Mjramollim com XII rex mouros daalem E daquém mar. Este Rey geitou fora os emfiees. E poborou a terra dos fiees Catolicos E a sua fama e nome nom he pera esquecer”. António Cruz. Op. Cit. 1968, pp. 29-30. In: Saul António Gomes, Op. Cit. 1997, p. 288. 430

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refundador da independência nacional portuguesa tal como esta se entendia em Quatrocentos. (GOMES, 1997, p. 288). Para o autor, nesse período o discurso cronistico entra no patamar da “mitologia politicoreligiosa”, e D. João I, enquanto rei de origem divina, “escolhido por deus” para salvar Portugal do domínio castelhano e que por procedência divina venceu as batalhas garantindo a independência do reino, aproximou-se da figura do rei fundador, D. Afonso Henriques, sendo o Mestre de Avis o “refundador” da “nação”. Segundo Gomes,

Entrando em Quatrocentos, efetivamente, o discurso cronistico português sobre a morte regia, particularmente a dos reis fundadores, eleva-se ao nível da mitologia politica, por um lado, e de uma mitologia religiosa, por outro, procurando fazer germinar um surpreendente processo de postulando, como se verificaria logo deste os alvores do século XVI, tendem a beatificação canónica de Afonso Henriques. (GOMES, 1997, p. 289).

Dentro do contexto de aproximação da imagem dos dois monarcas, as vitórias nas batalhas de Aljubarrota (1385) e Ourique (1139), de D. João I e D. Afonso Henriques, respectivamente, aproximam-se também no contexto da “providência divina” ao rei escolhido. Segundo Maria Eurydice Ribeiro (2012),

É na dimensão mítica que o acontecimento adquiriu na memória coletiva. (...) A vitória alcançada, apesar da desigualdade das forças, exigiu uma explicação que no século XII só poderia ser encontrada na providência divina. Tratava-se, afinal, de uma guerra santa, e nada mais natural que o príncipe guerreiro recebesse a ajuda dos céus. (RIBEIRO, 2012, p. 163).

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As produções cronisticas nos mosteiros portugueses, especialmente Coimbra e Alcobaça, acerca da fundação de Portugal e da valorização da imagem de D. Afonso Henriques surgiram especialmente a partir do reinado de D. João I e posteriormente de seus sucessores da casa de Avis. Dentro de um contexto de uma dinastia nova, que necessitava de meios que garantissem sua legitimação, a construção da imagem do Mestre de Avis ligada ao do rei fundador, provavelmente contribuiu para a exaltação do poder do novo monarca. Se Afonso Henriques foi o fundador, D. João I garantiu a independência do reino, ambos por “providência divina”, reis escolhidos “pelos céus” para governar Portugal, e por tanto, com seus poderes de origem sagrada. Assim como o rei fundador, o Mestre de Avis era um rei escolhido por “Deus” e deveria defender a fé cristã e combater os inimigos de Cristo, política adotada por D. João I e seus sucessores na casa de Avis de combate aos infiéis e na expansão em África. Segundo Ribeiro (2012),

Logo, era a Cristo que Afonso Henriques devia o título real. A fundação do novo reino, prossegue o documento, estava ligada diretamente à defesa da fé cristã; o rei deveria combater os inimigos de Cristo, fundamentando seu reino na vitória dessa fé. (RIBEIRO, 2012, p. 176).

O combate ao infiel e a defesa da fé cristã foram processos fundamentais do reinado de Afonso Henriques e essas características são retomadas no reinado da nova dinastia. Para Renata Nascimento432 (2013), A defesa da fé cristã frente ao islã permaneceu no imaginário ibérico, e esse objetivo serviria de “pano de fundo” para a ação dos monarcas portugueses em

432

Renata Cristina de Souza Nascimento. A Expansão das fronteiras da Cristandade no século XV: sacralidade e legitimidade do projeto político da casa de Avis. In: Fátima Regina Fernandes. Identidades e fronteiras no medievo ibérico. Curitiba: Juruá, 2013.

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África após o advento da Dinastia de Avis no poder (1385). (NASCIMENTO, 2013, p.177).

A expansão da fé cristã e o ideal cruzadístico presente na representação de poder da casa de Avis entram em um contexto de sacralização da nova dinastia. Para Nascimento433,

O processo de sacralização da monarquia, a partir da ascensão de D. João I, insere-se na necessidade da construção de um cerimonial de poder representado por diversos elementos que constituíram a legitimidade de Avis após um complicado processo de substituição dinástica. (NASCIMENTO, 2013, p. 177).

Outro processo fundamental na sacralização da nova monarquia foram os rituais e cerimônias religiosas propagadas no reinado de D. João I. Maria Helena Coelho (2010) afirma que D. João I durante seu reinado, procurou,

Ritualizar e mesmo propagandear o poder real, dando-lhe visibilidade em cerimónias, representações, e símbolos que o ostentavam, o legitimavam e o engrandeciam. Esse simbolismo e ritualidade consolidavam a íntima relação entre rei e a comunidade dos súbditos do reino. (COELHO, 2010. p. 486)

A utilização da representação como elemento simbólico faz parte da interpretação de Bourdieu434 (2010) referente à utilização do poder simbólico pelos grupos dominantes. Para o autor, “com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe são sujeitos ou mesmo que o exercem”. (BOURDIEU, 2010. p. 9). Esse pode 433

Idem. Ibidem. 2013, p. 177. Pierre Bourdieu. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. (português de Portugal) – 14. ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2010. 434

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ser utilizado pelo grupo dominante para “a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções”. (BOURDIEU, 2010. p. 10). O poder simbólico descrito por Bourdieu, possivelmente esteve presente nos ritos, cerimônias e monumentos utilizados pelos monarcas de Avis como meio de propagar a sua autoridade e poder real. “Em mosteiros e igrejas, patrocinados pela Coroa, esculpiam-se ou pintavam-se o nome e os símbolos do rei e do reino, inscrevendo-os a sacralidade régia no interior da sacralidade eclesiástica”. (COELHO, 2010, p. 486). Nesse contexto, o grande representante do poder da Dinastia de Avis, e de seu fundador, D. João I, provavelmente foi o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, que se tornou o símbolo mor de seu reinado. Os rituais fúnebres eram as passagens de maior representação do poder régio avisino, e estes rituais, ligados ao Panteão da Batalha, contribuíram para a idealização do poder da casa de Avis em Portugal quatrocentista. Como afirma Le Jan435 (1995), uma das grandes formas de representação de poder da nobreza e a realeza medieval foram os ritos funerários, ao analisar a importância dos ritos funerários da Dinastia Merovíngia436, Le Jan afirma que,

Os ritos funerários servem também para os nobres manifestarem seu poder a superioridade de seu grupo familiar. Antes mesmo da cristianização, membros das elites principescas, a exemplo dos “pequenos chefes” rurais, eram inumados em sepulturas privilegiadas, visíveis e reconhecíveis. Com a cristianização, a difusão da inumação ad sanctos – próxima das relíquias de santos em igrejas privadas festem até na morte sua superioridade social, por meio de uma maior proximidade com o sagrado, bem como inscrevam suas virtudes oriundas de seus ancestrais em um contexto que se tornou cristão. Os 435

Régine Le Jan. A ideologia do poder no reino dos francos. Trad. Marcelo Cândido da Silva. In: Néri de Barros Almeida, Marcelo Cândido da Silva (Orgs.). Poder e Construção Social na Idade Média. História e Historiografia. Goiânia: Editora UFG, 2012. 436 Dinastia governante do Império ou Reino Merovíngio, o império perdurou entre os anos de 481 a 751, governando a região da antiga Gália, província do Império Romano. Império formado por reinos franco-cristãos constituíram no mais poderoso reino da Europa Ocidental.

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nobres possuem suas igrejas privadas, onde há altares com relíquias e objetos litúrgicos e para as quais designam a pessoa consagrada para assegurar o culto. A cristianização não modifica o exercício do poder, mas transforma profundamente a ideologia do poder nobre: o sagrado. (LE JAN, 2012, p. 37).

Os rituais funerários enquanto símbolos de representação de poder ganharam força ao longo das formações dos reinos cristãos e posteriormente, das monarquias nacionais. Possivelmente, no caso da instauração da Dinastia de Avis, D. João I e seus sucessores, utilizaram do Mosteiro da Batalha como Panteão Régio e espaço do sagrado, que os permitiriam propagar o poder real através de ritos e cerimonias fúnebres e religiosas. Construído no local da vitória de Aljubarrota, o Mosteiro da Batalha mais tarde torna-se também a necrópole real da Dinastia de Avis. Inspirada pelos majestosos mosteiros que abrigavam os corpos de membros de grandes dinastias europeias, este mosteiro, tornou-se o local escolhido pelo rei para o seu “descanso eterno” e o de sua linhagem. A primeira a ser sepultada no mosteiro foi à rainha D. Filipa (esposa de D. João I), que faleceu em 1415. A rainha havia sido sepultada no mosteiro de Odivelas, mas posteriormente levada para o mosteiro da Batalha;

Em 1416 D. João I promoveu a trasladação da sua amada rainha para o mosteiro de Batalha, que, ainda em obras, o acolheu primeiro numa cripta e depois na capela-mor. Finalmente, em 1434, D. Filipa uniu-se, de novo, para além da morte, ao seu rei, num túmulo conjugal, religiosamente albergado na capela do Fundador. (COELHO, 2010. p.472). Para a autora, “o Mosteiro de Santa Maria da Vitória assume-se, na verdade, como a memória pétrea mais grandiosa do rei de Avis e de sua dinastia”. (COELHO, 2010. p. 489). Nesse contexto, o Mosteiro da Batalha como Panteão Régio da casa de Avis, entra como um monumento, uma estrutura

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física que represente a idealização do poder monárquico e que faça a representação política dessa nova dinastia perante a cristandade, como Saul Gomes437 (1997) afirma:

A sociedade do poder político tardo-medieval, corporizada na jovem dinastia de Avis, que exercita fios plurais de propaganda por toda a Cristandade da sua prática de poder como atitude essencialmente legitimadora. A edificação deste rico

e

magnificente

complexo

arquitetônico

contextualizar-se-á,

necessariamente, num projecto de promoção internacional duma imagem política desenvolvido pelos monarcas portugueses quatrocentistas, bem integrados numa Europa dominada por cortes mecenáticas que disputavam entre si o reconhecimento da maior força, prestígio e riqueza. (GOMES, 1997, p. 19).

A sacralização do poder monárquico da Dinastia de Avis, a partir de seu fundador, D. João I, partiu de diversos elementos de demonstração pública de poder real, da construção simbólica da nova monarquia e do projeto de legitimação dinástica da casa de Avis. Como visto neste capítulo, havia a ligação do sagrado com o caráter divino da figura do rei, sua imagem associada à construção do “mito fundador”, D. João I comparado a D. Afonso Henriques, enquanto fundador e “refundador” da monarquia lusitana e os ritos e cerimônias de propagação pública do poder régio foram elementos importantes na consolidação da nova casa reinante. Estudar o poder real e a construção de poderes políticos que legitimem a autoridade e relação de superioridade de poder de grupos dominantes perante outras camadas sociais, possui grande relevância para compreender os mecanismos políticos e de meios de propagação e de representações de estruturas de poder e coesão social. É fundamental analisar como certos grupos, no caso uma dinastia em processo de consolidação e centralização do poder monárquico de sua linhagem, utilizou de uma construção arquitetônica, o Mosteiro da Batalha, como símbolo mor e de demonstração pública 437

Saul António Gomes. Vésperas Batalhinas – Estudos de História e Arte. Leiria: Edições Magno. 1997.

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de poder. Vale ressaltar que o período tardo-medieval, um período de consolidação das monarquias centralizadas, outras dinastia em diferentes reinos tomaram de diversas práticas para a centralização do poder em torno da figura do rei, as construções arquitetônicas ganharam força como recurso simbólico de poder para esses monarcas. Estudando outros períodos da História, nota-se também a existência de líderes políticos que utilizaram de monumentos que se tornaram uma demonstração física de poder. Nesse contexto, pretende-se analisar a relação entre o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, enquanto monumento (construção arquitetônica), o sagrado, o processo centralizador, de consolidação e legitimação da Dinastia de Avis em Portugal no século XV. Gomes (1997) diz que o Mosteiro da Batalha, que se inicia com um ideal religioso, como cumprimento de uma promessa, posteriormente ganha um grande monumento da “memória política da nação”, o mosteiro tornou-se o símbolo da vitória e independência portuguesa perante Castela, ele representa a ascensão ao poder de uma nova dinastia, a casa de Avis, e representa um ideal de “grandeza que importava propalar nos círculos diplomáticos internacionais da época”. (GOMES, 1997). Para Renata Nascimento, “o mosteiro da batalha era uma demonstração pública do poder real, baseado na tentativa de afirmação de um reino centralizado”. (NASCIMENTO, 2013. p 147). Segundo Gomes, “a demonstração pública do poder real que teve, ao longo do século XV, uma caminhada triunfante no sentido da afirmação da sua dimensão absolutista”. (GOMES, 1997, p. 33). É possível que esses ideais construídos pela dinastia de Avis a partir de D. João I em torno de seu poder simbólico, baseado em ritos, cerimônias, rituais fúnebres, sua atuação como árbitro nas disputas sociais do reino e como rei cristão tenha aumentado o poder do monarca, levando-o a práticas centralizadoras, o aproximando da autoridade de um rei absolutista. Mas apesar da crescente centralização de poder em torno da figura do rei, o poder deste não era absolutista. Como afirma Marques438,

438

Oliveira Marques. Op. Cit. 1987. p. 287.

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O Rei, contudo, não era um déspota nem o seu poder absoluto se mostrava ilimitado. Tinha deveres para com Deus – que o pusera no cargo – e para com o Povo, tomado no seu conjunto. Estava submetido ao direito divino, ao direito natural e às leis do Reino, mesmo as que ele próprio fizera. (MARQUES, 1987, p. 287).

Neste contexto, o monarca português possuía poderes cada vez mais centralizados, na qual submetia as outras camadas sociais sobre sua autoridade. Em meio a um projeto legitimador, a autoridade do rei estava acima de outros grupos, e necessitava-se representa-la principalmente frente à nobreza lusitana. Mas seu poder não era ilimitado, e estava sujeito às leis do reino, mas principalmente as leis divinas. Para compreender o processo do Mosteiro da Batalha enquanto Panteão Régio, as seleções das fontes passam por crônicas régias e fontes reunidas e organizadas por Saul Antônio Gomes na obra Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha - Séculos XIV- XVI (Volumes I IV).439 Possivelmente, o marco inicial para a escolha do Mosteiro de Santa Maria da Vitória enquanto Panteão Dinástico foi à translação do corpo da Rainha D. Filipa para o mosteiro, após ter sido, em um primeiro momento, sepultada no Mosteiro de Odivelas. Em seu testamento, encontrado na obra de fontes organizadas por Gomes (2002), D. João I deixa clara a vontade de ser sepultado junto a sua esposa, neste que naquele momento se tornava seu Panteão Dinástico;

Item mandamos que noso corpo se lamçe no Moesteiro de Samta Maria da Vitoria, que nos mandamos fazer com a rrainha Felipa, mynha molher, a que Deus acreçente em sua glorya, em aquell moymento em que ella jaaz, nom com os seus ossos della, mas em huum ataude, asy e em tall guisa que ella jaça em seu ataude e nos em o noso, pero jaçamos ambos em humm moymento, asy 439

O historiador reuniu em quatro volumes diversas fontes históricas a cerca do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, entre os séculos XIV e XVI. Esse acervo organizado por Saul Antônio Gomes é o principal referencial de fontes primárias utilizadas nesta pesquisa. Ver: Saul Antônio Gomes. Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha Séculos XIV- XVI(Volumes I- IV), 2002.

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como o nos mandamos fazer. E esto seja na capella moor, asy como ora ela jazz, ou na outra que nos ora mandamos fazer, despois que for acabada. (GOMES, 2002, p. 135).

A eleição do Mosteiro de Santa Maria da Vitória para se tornar o local de descanso após a morte, possivelmente, foi realizada pelo primeiro monarca de Avis, para cultuá-lo e preservar a memória do seu reinado, dialogando com a sacralização do poder real. Segundo Gomes, “erigido para um cerimonial em torno da morte, do passamento régio, o panteão batalhino acabou por transformar-se num centro modelar dos rituais fúnebres do reino. Nele, as cerimônias ganharam o brilho próprio das grandes Cortes europeias”. (GOMES, 1990, p. 353). Por tanto, a necrópole real e o espaço onde permanecem os corpos dos reis, devem ser cultuados, pois o rei é sagrado, seu cargo é fruto da “escolha divina”, o Mosteiro da Batalha, assim, é um espaço do Sagrado. Para Mircea Eliade, “todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente”. (ELIADE, 2010, p. 30). Dentro da concepção de Eliade, o Mosteiro da Batalha seria um espaço do sagrado, ou melhor, uma hierofania, um espaço onde ocorre a manifestação do sagrado. Pois ali estão os corpos de membros da realeza, que possuem poderes de “origem divina”, portanto, sagrados, e este espaço, um local de memória, que pode ser representada por uma ponte que ligam os vivos aos mortos440. O Cronista Rui de Pina (1977, p. 489), relatou que D. João I “desposera ser enterrado no Moesteiro de Santa Maria da Vitoria, que elle em memória da batalha vencêo, alli novamente fundára...”, D. João I menciona o motivo inicial da edificação do Mosteiro, que era o agradecimento a Virgem pela vitória perante Castela. No seu testamento, D. João escreveu que “porque nos prometemos no dia da batalha que ouvemos com el Rey de Castela, de que Noso Senhor Deus nos deu vitoria, de mandarmos fazer aa homra de dita Nossa Senhora Samta Maria”. (GOMES, 2002, p. 135).

440

Renata Cristina de Souza Nascimento. As Exéquias Fúnebres no Mosteiro da Batalha. Mirabilia - Revista de História da UFES, p. 253. 2013.

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A preocupação dos monarcas da Casa de Avis com a memória post-mortem reflete em possibilidades da idealização do poder dos reis através do seu Panteão Régio. Para Nascimento,

As diversas concepções perante a morte não diminuem a demonstração pública de poder real, expressando a dimensão da importância da nova casa reinante. O panteão também é uma representação do projeto expansionista preconizado por Portugal nos fins da Idade Média, mesmo que este possa ser visto como extensão da reconquista. Permanece, portanto a ideia da licitude da guerra feita em defesa da cristandade.” (NASCIMENTO, 2013, p. 256).

O Mestre de Avis demonstrou preocupação com os cultos e missas a serem realizadas no mosteiro, em sua memória e da rainha D. Filipa. A preocupação do monarca de Avis com a realização dessas missas, provavelmente, transcende a preocupação com os destinos de sua alma, envolve também a memória e ato de cultuar o seu reinado, sua pessoa, pois este rei, assim como seus descendentes e sucessores, tem o poder por procedência divina. Em seu testamento, D. João I exige que;

Nos dias dos finamentos da dita rrainha e meu, os frades d Alcobaça e os do dicto Moesteiro e outros quaaesquer frades e cleriguos que hy venham digam hum trimtayro rrezado em cada humm sahimento aalem das missas e Oras que ham de dizer. E sejam sempre pagadas as ditas mysas pello proveedor e scrivam do Moesteiro, segundo se custumarem de pagar as missas rrezadas aaquelles tempos que se fezerem os ditos saymentos. (GOMES, 2002, p. 137).

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A importância do Mosteiro da Batalha enquanto Panteão Régio é registrado também no testamento441 do Infante D. Fernando442. Datado de 1437, o infante reforça sua vontade de ser sepultado em Santa Maria da Vitória. Em uma das clausulas, o infante manifesta o desejo de que,

Me levem ao Mosteiro de Santa Maria da Vitoria, onde escolhi minha sepultura, e esto seja sem nehua pompa, nem outra sobeja despeza, mas asim chamente, como leverião hum simples cavaleiro, e ali me ponhão na Capella de El Rey meu Senhor e padre, no derradeiro arco, na outra parece que esta junto com ele por altar e seja posto em hum moimento de pedra alto e cham, sem nehum lavor nem pintura, salvo com hum escudo de minhas armas, e hum tituleiro escripto em ele que diga asim aqui jaz o Infante D. Fernando Filho do muy alto e mui poderoso Principe El Rey D. João de Portugal e do Algarve, e Senhor de Cepta, e da muy nobre e excelente Rainha D.Felipa sua mulher, que jazem em esta Capela. (GOMES, 2002, p. 210).

O Infante D. Fernando demonstra a importância do Mosteiro enquanto necrópole real e seu desejo de ser sepultado junto ao seu pai, nas suas palavras o “mui Poderoso Principe El Rey D. João de Portugal”. A preocupação do infante estende-se também a necessidade das missas e cerimônias a serem realizadas para sua alma, D. Fernando pede que,

No dia que eu ali for trazido me fação minhas exequias simpresmente e o trintario de missas rezadas, e outras cinco oficiadas, como no dia de minha sepultura, e se perventura acontecer de eu hi nom ter Capella digam me depois logo seguinte hum annal de missas rezadas, e se hi tiver Capella, comece sse logo de cantar, segundo adiante leixo ordenado. (GOMES, 2002, p. 2010). 441

Testamento presente na obra: Saul Antônio Gomes. Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro e da Vila da Batalha Séculos XIV- XVI(Volumes I- IV), 2002. 442 Filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, D. Fernando, o Infante Santo, morto no cativeiro de Fez, em 1443, após ser capturado durante uma expedição militar no norte da África.

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O mosteiro da Batalha se tornou a necrópole real da dinastia, encontrando-se sepultados nele monarcas da casa de Avis e outros membros da realeza. Sua expressão enquanto Panteão Fúnebre foi de grande significado ao longo do século XV. Praticamente todos os monarcas da casa de Avis, suas consortes e descendentes foram sepultados no mosteiro ao longo deste século. Encontram-se sepultados em Santa Maria da Vitória os reis: D. João I (+1433), fundador da dinastia e do mosteiro, D. Duarte I (+1438), D. Afonso V (+1481) e D. João II (+1495). D. João II foi o último monarca da casa de Avis a ser sepultado no Panteão da Batalha. Já no século XVI, os últimos monarcas da dinastia optam pelo Mosteiro de Jeronimos como Panteão Fúnebre, D. Manuel I, D. João III, suas consortes e descendentes. Para443 Gomes (1990), enquanto panteão de D. João I,

Stª Maria da Vitória ganhou paulatinamente uma importância e dimensão inicialmente, como escrevemos atrás, não previstas. Tornando Panteão régio, o complexo monástico transformara-se num meio de afirmação e reforço da legitimidade da nova dinastia, símbolo da sua dignidade e coesão. Tornou-se um local sacro, princípio segurizante da nova face do poder régio português a que era necessário dar um corpo visível, arquitetônico e simultaneamente paradigma da majestade do monarca. (GOMES, 1990, p. 10).

Panteão de Avis, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória é um “testamento político e de memória fúnebre de um rei, que pretende o descanso eterno na Cidade de Deus e a perene lembrança na Cidade dos Homens.” (COELHO, 2010. p. 487). O Mosteiro de Stª Maria da Vitória, também conhecido como Mosteiro da Batalha, construído no local da grande vitória que consagrou o coroamento de um rei, sendo o monumento “um reforço da legitimidade da nova dinastia”. (GOMES, 1997. p. 137). O 443

Saul Antônio Gomes. O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XVSubsídios para a História da arte portuguesa. Coimbra. Faculdade de Letras. 1990.

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Panteão da Batalha “que teve seu início com D. João I, sua existência enquanto panteão régio é fundamental na tentativa de perpetuação simbólica da Casa de Avis”. (NASCIMENTO, 2013, p. 249). Enquanto panteão dinástico, o mosteiro deu legitimidade ao Mestre de Avis e sua linhagem, consagrou a vitória e independência de Castela, e posteriormente tornou-se a necrópole real e símbolo mor da representação do poder real de uma dinastia, tornando-se seu Panteão Régio.

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A CAVALARIA E AS SIETE PARTIDAS: REPRESENTAÇÕES E APROPRIAÇÕES DE REALIDADES HISTÓRICAS Isabela G. Parucker444

A Europa do século XIX vivenciou intensas mudanças econômicas e políticas, sociais e culturais. Foi palco de novas formas de manifestações da cultura que respondiam aos anseios, ambições e protestos de uma sociedade em transformação. Aquilo que conhecemos como Romantismo – ainda que impossível de se considerar como um fenômeno homogêneo, claramente determinado num intervalo espaço-temporal – marcou não apenas as artes, a arquitetura, a música, a literatura, mas a própria história. Num momento em que os Estados começavam a se organizar em volta de ideais de nacionalismo e nação, a história era fator de suma importância na elaboração e disseminação dessas concepções e ideologias; buscava-se no passado elementos que ajudassem a compreender melhor aquele presente. Ainda, como aponta Eric Hobsbawm445, o Romantismo, movimento difuso e fluido, tem como característica um descontentamento dos jovens e artistas em relação à sociedade que surgiu da “dupla revolução”. Nessa insatisfação, buscaram no passado valores que acreditavam estar perdidos em seu tempo: os românticos apropriaram-se da Idade Média – de maneira bastante idealizada – em sua tentativa de recuperar relações genuínas que não encontravam na sociedade burguesa. Enxergavam na Idade Média o ideal de honra, fidelidade, lealdade; a sociedade capitalista e as novas relações sociais resultantes dela, a seu ver, careciam desses valores. É possível perceber como elementos da sociedade medieval sofreram essa influência romântica em suas diversas apropriações na história. A noção que se tem de cavaleiro ainda nos dias de hoje é marcada por uma visão romântica do que foi a cavalaria. Todavia, surge a questão: o que dizia a própria época sobre a cavalaria?

Aluna de graduação em História na Universidade de Brasília – UnB; membro do Programa de Estudos Medievais – PEM/UnB. [email protected] 445 HOBSBAWM, Eric J. “As artes” In: A Era das Revoluções: 1789-1848. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 275-299. 444

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As Siete Partidas, por serem um documento que constitui o resultado de uma tentativa de compilação de leis, levada a cabo pela coroa castelhana, no século XIII, são uma fonte importante para entender a organização daquela sociedade. Registram costumes e tradições, apontam para a maneira como aquelas pessoas entendiam o mundo de sua época. A cavalaria é uma referência recorrente em diversas leis deste corpus documental: aparece em contextos e situações diferentes. Os cavaleiros são apresentados como os defensores (um dos três estados da sociedade); são os responsáveis pela proteção da comunidade, da terra. Cavalaria, contudo, representa mais que uma função: é vista também como uma honra, como privilégio. Em alguns momentos do documento, a cavalaria é vinculada à ideia de fidalguia, que é honra que vem aos homens por linhagem446, nas palavras do próprio documento. Os cavaleiros devem, como definem várias leis desse mesmo Título, ser homens de boa linhagem. A linhagem é característica essencial que define o homem apto a se tornar cavaleiro; isso significaria que este homem teria, em seu sangue, um sentido apurado de honra, teria consciência de seu papel, do que deve fazer, da maneira correta como se organiza a sociedade, da forma como devem ser as coisas. Essa virtude é o que se entende, nesse sentido, como vergonha:

E sobre isto disse um sábio chamado Vegecio, que falou da ordem da cavalaria, que a vergonha impede que o cavaleiro que fuja da batalha, e portanto que ele vença; uma vez que muitos acharam ser melhor o homem fraco e sofredor que o forte e ligeiro que fugisse. E por isto mais que todas as outras coisas decidiram que fossem homens de boa linhagem, porque eles evitariam fazer coisas que lhes pudesse dar vergonha: e porque esses foram escolhidos de bons lugares e de algo, o que quer tanto dizer na linguagem de Espanha como bem, por isso os chamaram de fidalgos, que os mostra como filhos de bem. (…) E portanto os fidalgos devem ser escolhidos de linhagem direita de pai e de avô até o quarto grau a quem se chama bisavôs: e isto acharam por bem os antigos,

Livre tradução do trecho “Fidalguia segunt diximos en la ley ante desta es nobleza que vien á los homes por linage…”. Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley III, 1807, p. 199. 446

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porque daquele tempo para trás, não se podem lembrar os homens; de quanto mais longe vem a boa linhagem, tanto mais crescem esses homens em honra e fidalguia.447

No Título XVIII da Segunda Partida, Lei XII, a questão da vergonha aparece relacionada à atividade dos que defendem os castelos: não cumprir com este encargo levaria à má fama, tanto para a pessoa que o faz quanto para sua família448. Apesar de não mencionar a cavalaria especificamente, esta lei refere-se à defesa dos castelos, função atribuída também aos cavaleiros, como é possível observar em algumas passagens do documento. Como sugere a Lei, fugir dessa responsabilidade e, consequentemente, cair em má fama, prejudica a linhagem. Nesse sentido, os protetores dos castelos devem ser dotados não apenas de sabedoria, juízo e coragem449, como também da virtude da vergonha, para que saibam cumprir seu dever e realizar sua parte para o funcionamento do corpo, executando a sua tarefa dentro da comunidade. Além de honrados, os cavaleiros são identificados, então, como pessoas dotadas de conhecimento, bom senso e intrepidez. Observa-se, dessa forma, uma cavalaria que indica honra, que é um título, fator que nobilita. Ainda, na passagem supracitada da Lei II do Título XXI, infere-se que a fidalguia e a linhagem são elementos de tradição, uma vez que afirma-se que quanto mais distante é o alcance da linhagem, tanto maior é a honra e a fidalguia desses homens. É possível perceber o aspecto da honra também quando se afirma, nesse mesmo Título, na Lei I, que aqueles que andam a cavalo o fazem de forma mais honrada que os que andam sobre outros animais450. O cavalo é, portanto, signo exterior de posição 447

Livre tradução do trecho "Et sobresto dixo un sabio que habie nombre Vegecio que falló de la órden de caballería, que la vergüenza vieda al caballero que non fuga de la batalla, et por ende le face seer vencedor; ca mucho tovieron que era mejor el home flaco et sufridor que el fuerte et ligero pra foir. Et por esto sobre todas las otras cosas cataron que fuesen homes de buen linaje, porque se guardasen de facer cosa por que pudiesen caer en vergüenza: et porque estos fueron escogidos de buenos logares et algo, que quiere tanto decir en lenguaje de España como bien, por eso los llamaron fijosdalgo, que muestra atando como fijos de bien. (…) Et por ende los fijosdalgo deben seer escogidos que vengan de derecho linaje de padre e et de abuelo fasta en el cuatro grado á que laman bisabuelos: et esto tovieron por bien los antiguos, porque aquel tiempo adelante non se pueden acordar los homes; pero quanto desde adelante mas de lueñe vienen de buen linaje, tanto mas crecen en su honra et en su fidalguia."Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley II, 1807, p.199. 448 Livre tradução do trecho "(…) por ende muerte nin otro peligro que es pasadero, non deben tanto temer como la mala fama que es cosa que fincarie para a siempre á ellos et su linage, si non feciesen lo que debiesen en guarda del castiello." Idem, Partida Segunda, Título XVIII, Ley XII, 1807, p. 160. 449 Partida Segunda, Título XVIII, Ley XII, 1807, p. 161. 450 Livre tradução do trecho "…en España llaman caballería non por razón que andan cabalgando en caballos, mas porque

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social elevada, é um elemento que também nobilita, indica nobreza. O cavaleiro pode ser entendido, então, como alguém dotado de honra e status. A cavalaria sugere que a pessoa faz parte de uma boa linhagem, e que ela é mais honrado que as pertencentes de outros segmentos da sociedade (aqueles que não possuem cavalos, por exemplo). Além disso, o documento reconhece o cavaleiro como o mais honrado dentre os defensores. O preâmbulo do Título XXI apresenta os defensores como um dos três estados pelos quais Deus dividiu os homens na terra:

Defensores são um dos três estados pelos quais Deus quis que se mantivesse o mundo: assim como os que rogam a Deus pelo povo são ditos oradores, e outrossim os que lavram a terra e fazem nela as coisas por que os homens hão de viver e de se manter são ditos lavradores; outrossim, os que hão de defender a todos são ditos defensores…451

Assim, considera-se a cavalaria não apenas como grupo que constitui um estado social, mas como o grupo mais honrado dentre seus pares. Igualmente, é possível observar certa flexibilidade na ideia dos três estados que compunham a sociedade da época, visto que eles poderiam ser formados por grupos associados a uma função comum, mas compostos por pessoas diferentes. É importante notar que o próprio título da cavalaria confere ao cavaleiro algumas prerrogativas. No Título I da Sexta Partida, que define a temática dos testamentos, assinala-se que os cavaleiros podem fazer testamentos tanto em suas casas, da mesma maneira que os outros homens, seguindo as mesmas regras, como também em campo de batalha, caso se encontrem em perigo de morte. Essa disposição legal fortalece laços de parentesco artificial (entre os cavaleiros e suas testemunhas e os cavaleiros e seus novos herdeiros), bem como reforça a ideia de que a cavalaria é um título que implica privilégios. Isso se explica pelo fato de que tal função está vinculada à proteção da comunidade: bien así como los que andan á caballo van mas honradamente que en otra bestia, otrosí los que son escogidos para caballeros son mas honrados que todos los otros defensores." Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley I, 1807, p. 198. 451 Livre tradução do trecho "Defensores são uno de los tres estados por que Dios quiso que se mantuviese el mundo: ca bien así como los que ruegan á Dios por el pueblo son dichos oradores; et otrosí los que labran la tierra et facen en ella aquellas cosas por que los homes han de vevir et de mantenerse son dichos labradores; et otrisi los que han á defender á todos son dichos defensores…" Idem, Partida Segunda, Título XXI, preâmbulo, 1807, p.197.

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E isto foi outorgado por privilégio aos cavaleiros por lhes fazer honra e mercê mais que aos outros homens, pelo grande perigo a que se submetem ao servir a Deus, ao rei e à terra em que vivem.452

Aqueles responsáveis pela defesa do rei, do povo e da terra estão sujeitos a situações arriscadas e perigosas, devem saber lutar e encarar a morte quando necessário. Ainda, a partir dessa definição, é possível inferir que o papel desempenhado pelo cavaleiro requer bravura, força, destreza e sabedoria. Essa concepção da cavalaria concorda com aquela sugerida quando se tratou, nas Partidas, dos defensores dos castelos, dos homens de armas, e vai também ao encontro da imagem idealizada do cavaleiro hábil e corajoso. Ainda no que diz respeito a direitos resultantes da cavalaria, a Lei III do Título IV, Quinta Partida, que trata de doações, informa que aqueles que vivem sob o poder de um pai ou de um avô não podem doar bens a não ser que segundo a prescrição daqueles. Entretanto, caso o filho ou neto faça parte seja um cavaleiro, ele tem a possibilidade de fazer doações daquilo que ganhou em função da sua cavalaria453. Deste modo, nota-se que a cavalaria garante à pessoa certas liberdades e até mesmo regalias, dentre as quais dispor de bens, independentes daqueles da família, e da permissão para fazer doações daquilo que recebe decorrente do cumprimento da sua função e do exercício de seu papel. Outra forma de se perceber a cavalaria é como uma função relacionada às armas, como apresentada na Lei IX do Título XVIII, ainda da Partida Segunda: o cavaleiro aparece como um dos responsáveis pela defesa de castelos, designados por alcaides a servir juntamente com besteiros, escudeiros e outros homens de armas nessa proteção.

452

Livre tradução do trecho "Et esto fue otorgado por privilégio á los caballeros por les facer honra et mejoría mas que á los otros homes, por el grant peligro á que se meten por servir á Dios, et al rey et á la tierra en que viven." Las Siete Partidas, Partida Sexta, Título I, Lei IV, 1807, p.362. 453 Livre tradução do trecho "Fijo ó nieto que estodiese en poder de su padre ó de su abuelo, non puede facer donación á menos de otorgamiento de aqul en cuyo poder está, fueras ende si fuese caballero que hobiese fecho ganancias de su caballeria." Las Siete Partidas, Partida Quinta, Título IV, Ley III, 1807, p. 171.

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O alcaide deve colocar nos castelos quantos cavaleiros e escudeiros e besteiros e outros homens d’armas entender que convém, ou segundo o pacto que tivesse com o senhor de quem é vassalo: e deve guardar para que aqueles que coloca [no castelo], se forem fidalgos, que não tenham cometido traição ou injúria, nem que venham de linhagem de traidores (...). E com relação aos outros homens d’armas que lá forem colocados, deve se certificar que sejam homens conhecedores e fortes para ajudar bem e defender o castelo quando necessário for...454

Aqui, observa-se o vínculo entre a cavalaria, as armas e a proteção da comunidade, e é reforçada a ideia de fidalguia e boa linhagem para cavaleiros. Novamente, na Lei III do Título X, à cavalaria é destinada a defesa do reino: os cavaleiros devem protegê-lo de malfeitores de dentro e de fora, que são os inimigos455. De acordo também com a lei IX do Título XXI da mesma Partida, uma das razões para que os cavaleiros sejam leais é que, se não o fossem, não poderiam ser bons guardiões e defensores de todos: "(…) são postos para guarda e defesa de todos, e não poderiam ser bons guardadores os que leais não fossem...”456. Um dos valores fortemente associados ao ideal do cavaleiro é a lealdade. Essa passagem mostra, portanto, como o modelo funcionava na experiência prática: uma das condições necessárias para ser cavaleiro é compreender a ideia da lealdade, e ser leal é fundamental para a cavalaria. Ainda em relação às armas, a cavalaria é assinalada como grupo daqueles que sabem manejálas quando, na Lei XIX do Título V, listam-se algumas habilidades que o rei deve dominar: usar armas

454

Livre tradução do trecho "Meter debe el alcayde en el castiello caballeros et escuderos et ballesteros et otros homes darmas quantos entendiere quel convienen, ó segunt la postura que hobiese con el señor de quien lo toviere: et debe mucho catar que aquellos que hi metiere si fueren fijosdalgo que non haya fecho ninguno dellos traycion nin aleve, nin venga de linage de traydores (…). Et los otros homes darmas que hi fueren debe catar que sean homes conoscidos et recios para ayudar bien et defender el castiello quando meester fuere…". Idem, Partida Segunda, Título XVIII, Ley IX, p. 157. 455 Livre tradução do trecho "(…) et otrosí debe la caballeria presta et los otros homes darmas para guardar el regno que non resciba daño de los malfechores de dentro nin de los de fuera, que son los enemigos…" Idem, Partida Segunda, Título X, Ley III, p. 89. 456 “(...)son puestos para guarda et á defendimiento de todos, et non podríen seer buenos guardadores los que leales non fuesen…” Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley IX, p. 203.

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e montar cavalos, como os cavaleiros457. Nesse sentido, mais do que associado a uma função, o cavaleiro é apresentado como alguém dotado de conhecimento e habilidades específicos, que domina o uso de instrumentos de luta para defesa e proteção da comunidade. É, portanto, o detentor de um saber. Já na Lei V do Título III, Partida Sétima, o cavaleiro é apresentado como uma das pessoas que podem responder em nome dos reptados. Rieptos eram uma espécie de desafios com efeitos legais por meio dos quais se buscavam resoluções para disputas e querelas. Alguém que fosse acusado e não pudesse apresentar-se ao desafio, teria a possibilidade de responder por intermédio de outra pessoa. A listagem458, nessa Lei, daqueles que assumiriam o lugar do reptado é interessante, pois mostra a complexidade da lógica dos laços de parentesco dessa sociedade: o parentesco artificial (espiritual) é tão importante quanto o sanguíneo. Indício disso é o fato de que companheiros de romaria ou peregrinação, compadres, amigos, herdeiros ou aqueles que tivessem sido armados cavaleiros pelo desafiado estariam aptos a responder pelo reptado. Como apontado na Lei XI do Título XXI, Partida Segunda, não é possível que alguém que não seja cavaleiro “faça cavaleiro” a outra pessoa:

Feitos não podem ser os cavaleiros pela mão de homem que cavaleiro não seja, uma vez que os sábios antigos que todas as coisas ordenaram com razão, não achavam que fosse coisa de direito dar um homem a outro o que ele não fosse. (...) outro tal que não tem poder nenhum de armar cavaleiro senão aquele que o é....459. 457

Livre tradução do trecho "Ca en fecho de armas et de caballeria conviene que sea sabidor para poder mejor amparar lo suyo, et conquerir lo de los enemigos: et por ende debe saber cavalgar bien et apuestamiente, et usar toda manera de armas, tan bien de aquellas que ha de vestir para guardar el cuerpo, como de las otras con que ha de ayudar…". Idem, Partida Segunda, Título V, Ley XIX, p. 39. 458 "Non viniendo el reptado á responder al riepto á los plazos quel fueron puestos, puédolo reptar antel rey el que lo fizo emplazar, tambbien como si el otro fuese presente. Pero si acaesciese hi padre, ó fijo, ó hermano ó pariente cercano, ó sñor ó vasallo del reptado, ó alguno que sea amigo ó compadre dél, ó compañero con quien hobiese ido en romeria ó en otro camino grande en que hobiesen comido et albergado de so uno, ó tal amigo que hobiese casado á él mismo, ó á su fijo ó á su fija, ol hobiese fecho caballero ó herdero, ó quel ficiera cobrar herdat que habie perdido, ó que hobiese desviado su amigo de muerte, ó de deshonra ó de grant daño, ol hobiese sacado de cativo, ó dado de lo suyo para tirarlo de pobreza en tiempo quel era mucho meester, ó otro amigo con quien hobiese puesto cierta amistat, señalando algunt nombre cierto por que se llamasen el uno al otro, á que dicen nombre de corte; cada uno destos bien podrie responder por el reptado si quisiere, et desmentir al que lo reptó. Et esto puede facer por razon del debdo ó de la amistat que ha con él…” Idem, Partida Septima, Título III, Ley V, 1807, pp 546-547. 459 Livre tradução do trecho "Fechos non pueden seer los caballeros por mano de home que caballero non sea, cas los sabios antiguos que todas las cosas ordenaron con razón, non tovieron que era cosa con quisa nin que pudiese seer con

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Nesse sentido, além de ser possível observar um caráter relacional da honra – somente é possível atribuir honra a alguém quando também se possui essa honra –, percebe-se na cavalaria certo grau de parentesco. Aqueles que fazem cavaleiros devem ser também cavaleiros, pelo que compartilham, em certa medida, uma mesma honra. São também pessoas com quem se convive, com quem se sai em jornadas e campanhas e com quem se divide as funções de defesa e proteção do reino. Ao falar de compadres, amigos ou companheiros de romaria, a Lei que trata dos rieptos alude à questão de laços entre homens que viajam juntos por um longo caminho, que comem e se albergam em comum. Dessa maneira, a cavalaria poderia ser entendida aqui como também uma expressão de laços sociais, de parentescos. A imagem que temos comumente de cavaleiros – personagens corajosos, honrados, com forte senso de irmandade e companheirismo – pode ser associada às diversas maneiras pelas quais se representava a cavalaria na Idade Média. As Siete Partidas oferecem uma variedade de situações e contextos nos quais essa concepção se materializa, mostrando que não é um conceito fixo, único, claramente definido: apresenta-se em articulação com outras noções (honra, linhagem, parentesco, função dentro do corpo social). A noção de cavalaria que as Partidas sugerem compõe um modelo que pode ser apropriado e reinterpretado posteriormente. Este modelo, contudo, tem uma origem concreta, assentada em situações vividas e registradas ao longo da história. O modelo de cavalaria encontra nas realidades aqui apresentadas um referente empírico concreto. Infere-se, portanto, que os cenários propostos pelo retrato da cavalaria, segundo o documento, eram inspiradas pela própria vida, uma representação da maneira como se entendia o mundo, a sociedade. É importante observar como uma fonte, um corpus documental pode auxiliar na compreensão de realidades históricas, bem como na tentativa de entender apropriações, ressignificações e releituras feitas acerca delas ao longo da história.

derecho dar un home á otro lo que non hobiese. (…) otro tal que non ha poder ninguno de facer caballero sinon el que lo es…"Las Siete Partidas, Partida Segunda, Título XXI, Ley XI, 1807, p. 204-205.

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OS AGENTES DO CRISTIANISMO NA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DA NAÇÃO INGLESA DE VENERAVEL BEDA Itajara Rodrigues Joaquim460

Devido às diversas possibilidades geradas a partir do referido tema, o trabalho desenvolvido encontra-se ainda em estágio inicial. No ano de 597, o papa Gregório I envia para Bretanha uma missão para tentar restaurar a ordem cristã naquela região. O grupo era composto por bispos e monges, destacando-se Agostinho, que viria a ser o primeiro arcebispo de Canterbury, e tinham como objetivo obter a conversão dos povos saxônicos ao cristianismo. Nesse esforço missionário encontraram lideres saxônicos decididos a utilizar todos os recursos para manterem o seu próprio estilo senhorial local. Venerável Beda, monge de origem saxônica nascido em 672. Em seu livro Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum461, um de seus escritos mais importantes, narra as relações entre os romanos e a Britânia e posteriormente ao estabelecimento dos invasores saxões, anglos e jutos no final do século V até as condições do clero no século VIII. Para Beda, o verdadeiro início da história da nação inglesa enquanto povo seria a chegada da missão de Agostinho e a fundação da Igreja inglesa por esses agentes do cristianismo. A base do processo que conduziu o cristianismo, e os elementos culturais da antiguidade tardia para as regiões alem das fronteiras com Império romano foi no mínimo complexo. Uma das primeiras formas usada para divulgar o cristianismo que se tem memória foi o monasticismo.

Monks were ideally suited for missionary ventures, in that not only were they tightly disciplined and under obedience to their superiors, but the monastic ideal of renunciation involving physical relocation, and the enduring of bodily

Graduando - Vinculação Acadêmica: Universidade Federal de Mato Grosso -UFMT – Bolsista: Iniciação Científica Voluntaria – Grupo de Pesquisa: Vivarium – Orientador: Prof. Dr. Marcus Cruz – [email protected] 461 História Eclesiástica da nação Inglesa. 460

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privation, made them ready to move into potentially hostile territories and to put up with considerable hardship.(COLLINS, 1991.p. 233)462

Com o tempo mostrou-se fácil à administração de territórios diocesano sem nenhuma cidade próxima. Muitos monastérios também serviam como escolas, as dimensões de suas atividades eram muito importantes para a sociedade, principalmente nas cidades onde a antiga educação romana estava em declínio ou era inexistente, eram como microcosmos dentro das sociedades locais. O monasticismo parece ser um instrumento obvio para a expansão física do cristianismo nestes séculos, mas havia algumas lutas contra esse desenvolvimento.“Individual monks and ascetics not under the authority of recognized superiors or resident in fixed location were intensely distrusted”. (COLLINS, 1991.p. 233)463Muitas igrejas locais pregavam contra os monges solitários e sem nenhuma autoridade superior que vinham pregar em suas comunidades, pois a vida monástica estava mais em cultivar uma vida espiritual e contemplativa em olhar para o seu interior, do que realmente manter um trabalho que exigisse algum tipo de esforço físico em nome de Deus. Os mosteiros e santuários imponentes, habitados por monges e freiras com o seus numerosos dependentes leigos, afirmavam-se como uma espécie de oásis do sagrado numa paisagem em grande parte por dominar. (...) O Cristianismo espalhou-se ao nível solo. Irradiou a partir de centros muito afastados entre si, através de contactos intermitentes e muito carregados de emoção com as coisas sagradas. (BROWN, 1999, p. 244).

A Gália era uma das regiões onde já havia uma grande tradição na participação monástica na iniciação e na manutenção da fé cristã, tanto que quando papa Gregório I estava preparando seus

462

Monges eram o mais adequado para as missões, não somente por serem rigidamente disciplinados e obedientes a seus superiores, mas o ideal de monástico envolvia renúncias e deslocamento físico e de privações para o corpo, faz com que eles estejam preparados para se mudarem para lugares potencialmente hostis e com consideráveis dificuldades. 463 Monges individuais e devotos sem o reconhecimento de nenhuma autoridade superior ou sem local fixo de residência não eram confiáveis.

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monges para a viagem ao reino de Kent, ele escreveu para os bispos de várias dioceses Franca, nas quais os monges passariam, solicitando seus apoios aos missionários. Papa Gregório I, também conhecido como Gregório o Grande, foi o primeiro papa a ter seguido a vida monástica. Nascido no ano de 590 em uma rica família aristocrática romana com fortes ligações religiosas, logo após a morte de seu pai, transformou a propriedade de sua família em Caelian Hill no monastério de São André, ele também fundou outros monastérios nas terras de sua família na Sicilia. O período em que Gregório nasceu foi um período de grande agitação na Itália, que havia sido atingida por uma praga que causou fome, desespero e tumulto. Ele foi muito bem educado, aprendeu gramática, retórica, ciência, literatura e direito. Conseguia escrever e ler corretamente em Latim, mas não conseguiu aprender o Grego. Gregório mantinha um respeito muito grande pela vida monástica, mesmo depois de seu pontificado continuou mantendo o estilo de vida monástico de forma um pouco modificada. Foi do mosteiro de Caelian Hill onde saiu o grupo de monges que acompanharam Agostinho na missão de evangelização dos reinos anglo-saxões em 596. No sexto século grande parte dos países ocidentais já havia sido cristianizados com apenas alguns poucos pagãos restantes. Mas Gregório ainda estava muito preocupado em combater esse paganismo existente. “We can see from Gregory’s letters his concerns with the eradication of paganism from Sicily and Sardinia, and other sources tell of surviving heathen practices in Spain and Gaul.”(BLAIR, 1995 p.42)464. A Inglaterra não se encontrava entre os países já cristianizados, pois havia uma grande diferença entre eles, mesmo as partes mais bárbaras do norte da Gália, onde a população rural já vivia entre uma sociedade cristã estabilizada, os anglo-saxões viviam onde as raízes do paganismo era profundamente propagado. Os reinos britânicos que haviam sofrido menos romanização antes de 597, o cristianismo Romano foi substituído pelo paganismo e em algumas outras regiões o cristianismo Romano havia se transformado em um cristianismo Céltico, onde eles apenas agregavam o deus cristão a seus vários outros deuses. O cristianismo romano só sobreviveu nas regiões onde os anglo464

Podemos observar pelas cartas de Gregório sua preocupação com a erradicação do paganismo na Sicilia e na Sardenha e as outras formas de paganismos ainda sobreviventes na Espanha e na Gália.

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saxões não tinham tanto poder. Peter Brown acredita que em certas regiões do Ocidente da Britânia é possível que os saxões tenham recebido o Cristianismo dos príncipes romano-britânicos, ou até do seu próprio campesinato, também ele romano-britânico, para quem o Cristianismo continuara a ser uma religião popular. De acordo com Peter Blair, algumas cartas de Gregório sugerem que talvez tenha sido o seu profundo interesse na igreja gaulesa que levou a ele o conhecimento a respeito do paganismo britânico e o interesse na conversão desse povo ao cristianismo. “The closeness of relations between the two countries, attested historically and by the marriage of a Kentish king with a Frankish princess, is an archaeological commonplace of the fifth and sixth centuries.”(BLAIR,1995 p.45).465 Gregório não estava muito bem informado a respeito da política e da relação ente os anglo-saxões e os francos, em uma de suas cartas diz que escutou que a nação inglesa tinha o desejo de se converter a fé cristã, mas os padres da região não demonstravam o devido interesse por eles.

(...) Gregory is quite explicit both about the wishes of the English and about the negligence of the nearby priest, we can only speculate about the source of his information. He never himself says that he ever met any people of English race, though he may have done so. (BLAIR, 1995. p. 47)466

De acordo com Collins esse senso de responsabilidade pastoral do papa na evangelização do povo, não era apenas um aspecto ideológico isso foi desenvolvido em Roma desde o quarto século como um produto para o crescimento e disseminação das ideias e instituições monásticas. Portanto empreendimento missionário não estava apenas na tentativa de evangelização desse povo, mas também no intuito espalhar a doutrina, os costumes e as praticas litúrgicas romanas.

465

A relação de proximidade entre os dois países é atestada historicamente e pelo casamento entre um de Kent e uma princesa franca, arqueologicamente é uma área comum entre o quinto e o sexto século. 466 Gregório é explicito a respeito de seu desejo dos Ingleses e a negligencia por parte dos padres da região, nós podemos apenas especular sobre sua fonte de informações. Ele mesmo nunca conheceu nenhuma pessoa da raça Inglesa, talvez tenha conhecido.

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A jornada para Inglaterra. As Ilhas Britânicas estavam divididas entre pequenos governantes, também chamados de reinos. “A patchwork of tiny polities had replaced the Roman state. In eastern Britain there was by now a similar set of micro-kingdoms ruled by immigrant Anglo-Saxons” (WICKHAM, 2010, p151).467 Segundo John Burrow, os reis das diversas entidades políticas vigentes, onde o território foi dividido pelos invasores, foram de crucial importância para o sucesso do empreendimento missionário cristão, seu apoio era praticamente uma garantia de sucesso; sua oposição representava um sério revés. As informações que temos a respeito da jornada dos missionários de Roma para Inglaterra são através das cartas de Gregório I, escritas a partir de julho de 596, destinadas a clérigos e leigos que estavam em posição de ajudar na missão. (...) quando Gregório I enviou a sua imponente embaixada a Etelberto, rei de Kent, em 597, esperava talvez a ressurreição rápida da ordem cristã antiga na Britânia, tal como existira no último século do domínio romano: os bispos metropolitanos voltariam aos antigos centros romanos de governo em Londres e York, cada um assistido por doze colegas para as cidades menos importantes.( BROWN, 1999, p. 224).

Beda fala que a comitiva encontrou vários problemas antes mesmo de chegar a seu destino final, o reino de Kent. Mesmo seguindo todas as ordens, os monges foram atacados covardemente enquanto estavam no caminho. Por mais que os romanos já tivessem o conhecimento de guerras e da fome, eles entraram em consenso e decidiram que seria melhor para eles retornarem para casa do que continuar entrando em um território de selvagens bárbaros sem crença e do qual a língua eles nem conheciam. Agostinho foi o escolhido para retornar a Roma e discutir os problemas da missão com Gregório. Gregório acreditava que a missão poderia falhar, não pela falta de fé de seus membros, mas pela falta de liderança. Então ele mandou que Agostinho, agora como abade, retornasse para seus 467

Uma mistura de pequenos governos havia substituído o Estado Romano. No oriente da Bretanha havia agora algo similar à micro reinos governado pelos imigrantes anglo-saxões.

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companheiros com uma carta de Gregório dizendo que eles deveriam confiar em Deus e obedecer e seguir todos os comandos de Agostinho, “they were not let themselves be deterred by the difficulties of the journey or by the tongue of evil-speaking men" (BLAIR, 1995, p. 49).468 Gregório encaminhou também uma carta para o arcebispo de Arles os recebessem e os ajudasse a seguirem viagem. Depois de serem encorajados e com a ajuda de um interprete franco, a comitiva com aproximadamente 40 monges conseguiu chegar ao reino de Kent. Eles encontraram uma Britânia muito diferente, com um rei saxônico decidido a utilizar todos os recursos, incluindo uma nova religião, para manter o seu próprio estilo de senhorio local. O rei era Etelberto, homem muito poderoso que foi casado durante quinze anos com uma princesa franca cristã Berta. Beda, fala que os pais da princesa só aceitariam seu casamento com a condição de que ela pudesse praticar sua fé cristã. Berta conseguiu praticar sua religião com um capelão, também de origem franca. No momento os francos não estavam interessados na conversão de Etelberto ao cristianismo, pois não queriam outro rei cristão e Etelberto não queria estar espiritualmente subordinado ao reino franco. Mas com a chegada dos missionários romanos ele viu a conversão ao cristianismo com uma nova perspectiva, para ele (...) receber o batismo de Roma era completamente diferente. Etelberto podia contactar

com

esse

centro

imaginado

do

mundo

cristão

latino,

tranquilizadoramente distante, e podia até passar por cima de Roma e procurar o reconhecimento pelo próprio Imperador romano (BROWN, 1999, p, 224).

O processo de cristianização dos grandes lideres era muito difícil de se separar o puramente religioso de um contexto cultural muito maior. A conversão ao cristianismo parecia ser algo muito atrativo para aqueles que se convertiam, pois trazia junto com ele outros tipos de benefícios. O cristianismo era uma religião de livros, que dependia do conhecimento da leitura e da escrita para se ter o entendimento de suas características centrais, suas mensagens e as formas como elas eram

468

Eles não podem se deixar desencorajar pelas dificuldades encontradas na jornada ou pela língua do homem mau.

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interpretadas. Essas técnicas eram disseminadas dentro das sociedades onde o cristianismo estava sendo introduzido para que se houvesse esse entendimento. Gregório I, na tentativa de conversão do rei, mantinha contato com Etelberto e muitas de suas cartas eram acompanhadas de presentes, honrarias ao rei e a piedade da rainha também era glorificada em suas cartas. Acredita-se que a própria rainha tenha respondido varias das cartas em Latim de Gregório, pois, ela era uma mulher muito bem educada. Segundo Peter Blair, essas cartas são muito importantes, não só pelo seu conteúdo, mas por que marcam o principio das regras da nação Inglesa e a transformação do barbarismo para uma nação civilizada. Mesmo com todas as honrarias feitas ao rei, ainda existia uma insegurança em relação aos visitantes, principalmente em ambientes públicos. Etelberto agia de forma cautelosa para que o ânimo dos súditos, ainda fieis à religião pagã, não se exaltassem. Nem com o batismo do rei a situação melhorou, eram tratados como “pessoas valiosas, mas potencialmente perigosas, que seria melhor manter sob vigilância perto da corte régia” (BROWN, 1999, p, 225). Por mais que Agostinho tivesse a permissão de fazer suas pregações e pequenas intervenções, foi aconselhado por Gregório a ser cauteloso em suas ações e não tomar nenhuma medida drástica, como por exemplo, Gregório mandou que os templos pagãos não fossem destruídos, e que os sacrifícios ao invés de serem feitos como oferenda ao demônio, agora seriam utilizados de uma maneira diferente. The temples were by no means to be destroyed, but only the images which they housed. If the temples were well built they were to be consecrated to the service of God so that the people might continue to worship in familiar places. They should not be deprived of their customary sacrifices of oxen, (…) now converted to Christian use, and celebrate with religious feasting, their animals no longer sacrificed to devils, but killed for their own food with thanksgiving to God.(BLAIR, 1995, p. 63).469 469

Os templos não deveriam ser destruídos de forma alguma, e sim apenas as imagens estavam alojadas dentro deles. Se os templos fossem bem construídos deviam ser consagrados ao serviço de Deus, para que as pessoas possam continuar a adorar em lugares familiares. Eles não deveriam ser privados dos seus sacrifícios habituais, que agora seriam convertidos para o uso cristão, e comemorações de festas religiosas, e não mais sacrificados aos demônios e sim em ação de graças a Deus.

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Além dessas medidas cautelosas para que o povo pagão fosse se acostumando aos poucos com os costumes e regras cristãs, Etelberto publicou as Leis de Edelberto, fazendo com que se aproxima-se da figura de Clovis, mas suas leis “não foram escritas em latim, mas em anglo-saxão. Trata-se de uma clara indicação de firmeza de objetivos e capacidade de adaptação” (BROWN, 1999, p, 226). As leis foram criadas também para que tivesse um documento que protegesse a igreja, o documento indicava que os estrangeiros, tinham a proteção pessoal do rei e que a honra dos padres cristãos era tão sensível quanto à do próprio rei. Para Gregório os reis não representavam apenas a força profana, deviam também ser pastores. Acreditava que os reis eram responsáveis pelas almas de todo o seu povo, assim como os bispos eram responsáveis pela sua congregação de abades e monges. Posteriormente algumas autoridades demoraram a se converter ao cristianismo, mas quando se convertiam realizavam grandes cerimônias. “Realizaram – se baptismos em massa e predicas – em certa ocasião durante 36 dias a fio (...)” (BROWN, 1999, p, 227). Mas o relacionamento entre o povo pagão e os grupos religiosos cristãos, não continuou em um crescente avanço. Conforme os reis que protegiam missionários morriam ou saiam do poder, os religiosos também acabavam por cair junto com eles.

Nos reinos saxônicos o Cristianismo fora apenas tolerado e, durante mais e uma geração, os seus representantes foram cuidadosamente vigiados por reis e por nobres que sabiam exactamente o que queriam de uma religião estrangeira. (BROWN, 1999, p 228).

Para Veneravel Beda, assim se inicia a história dos ingleses enquanto povo com a missão de Agostinho e a fundação da Igreja inglesa e esse é o verdadeiro ponto de partida de uma de suas publicações mais importantes o Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum.

O Venerável Beda e a História eclesiástica do povo inglês.

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Beda,o primeiro historiados inglês, conhecido também como Venerável Beda, monge de origem saxônica nasceu aproximadamente no ano de 672, não se sabe ao certo seu local de nascimento, é provável que tenha sido aos arredores de Wearmouth e Jarrow. Aos sete anos de idade foi entregue por seus pais ao abade Benedict, para ser criado no mosteiro de Wearmouth e posteriormente foi encaminhado para o mosteiro de Jarrow com o abade Ceolfrid. Não se tem nenhuma informação a respeito de quem foram seus pais, (…) but we may infer that they were Christians and, in view of their association with such a man as Benedict Biscop, probably from the rank of the well-born. At this time it was a common practice for parents who were anxious for their children to be educated, to entrust them to the care of a monastery at an early age, but such a step did not necessarily imply lifelong devotion to monasticism, still less any desire to be rid of an unwanted child (BLAIR, 1995, p, 5)470.

Passou toda sua vida no mosteiro, se dedicou aos estudos e às orações. Foi um grande estudioso de sua época, conhecia latim, grego, filosofia, matemática, teologia, música e hebraico. Ele dividia seu tempo entre seus maiores interesses, “I wholly applied myself to the study of Scriptures (…) I always took the delight in learning, teaching and writing” (BEDE, 1994, p, xiv).471No ano de 691 ele é ordenado como diácono e em 702 como padre. “Bede died in 735, a few years into his sixties” (GOFFART, 2005, p, 241)472. Ele viveu durante um período considerado calmo de sua sociedade, Had he been born half a century earlier Bede might well have found himself involved directly in some of the many wars arising from the attempts of 470

Mas podemos inferir que eles eram cristãos e, tendo em vista a sua associação com um homem como o Bispo Benedito, provavelmente a partir da classificação do bem-nascido. Nessa época era uma prática comum que os pais deixassem seus filhos aos cuidados de um mosteiro para que fossem educados, mas isso não implica, necessariamente, a devoção ao longo da vida para a igreja, nem de se livrar de um filho indesejado. 471 Eu me aplico totalmente aos estudos das escrituras. (...) Eu sempre tenho prazer em aprender, ensinar e escrever. 472 Beda morreu em 735, com um pouco mais de 60 anos.

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ambitious rulers to extend their boundaries or to win supremacy over neighbours, and had he died a little more than half a century later he would have witnessed the first Viking attack on his own monastery (BLAIR, 1995, p, 5)473.

Ele também era muito bem relacionado, a primeira pessoa a ler o manuscrito de sua obra Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, para fazer correções e apontamentos, foi o próprio rei da Northumbria Aldfrith, homem com grande conhecimento. Em seu livro Beda narra à história eclesiástica da nação inglesa, desde a chegada dos Romanos até seu tempo. Para conseguir escrever eventos do qual ele não havia participado, utilizou acervo de livros disponível na biblioteca, “ele tinha acesso a mais de trezentos livros, alguns dos quais tinham estados relacionados com o Vivarium de Cassiodoro.” (BROWN, 1999, p. 233). Boa parte trazida de Roma pelo abade Ceolfridg, e livros emprestados de outros monastérios. Também fazia uso de correspondências do período, mas “it will be never possible to trace the growth of his historical knowledge in detail or to determine exactly what material were available to him at particular times” (BLAIR, 1995, p, 71).474 Beda escreve a respeito de seu próprio povo, ainda que em latim, e não possui sentimentos relacionados com o império romano, apenas com a Igreja romana. Ele é escrupuloso na descrição dos principais episódios da história romano-britânica, afirmava a veracidade de todos os fatos cuidadosamente descritos com seu poder de dramaticidade em seu livro, “I would not that my children should read a lie” (BEDE, 1994, p, xv).

475

Ele foi o primeiro autor a tratar os diferentes grupos de

colonos como uma única Nação Inglesa, de certa forma os ingleses devem a existência enquanto povo aos fatos narrados por Beda e principalmente aos acontecimentos que levaram a unidade católica. Ele 473

Se tivesse nascido meio século antes Bede poderia muito bem ter se envolvido diretamente em algumas das muitas guerras decorrentes das tentativas dos governantes ambiciosos para estender suas fronteiras ou para ganhar supremacia sobre os vizinhos. E se ele tivesse morrido um pouco mais de meio século depois, ele teria testemunhado o primeiro ataque Viking em seu próprio mosteiro. 474 Nunca será possível traçar o crescimento do seu conhecimento histórico em detalhes ou determinar exatamente que material estava disponível em seu tempo. 475 Não deixarei que meus filhos leiam uma mentira.

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tinha uma grande preocupação com a questão da unidade da Igreja. O livro de Beda é a história de como essa unidade foi alcançada, através da conversão da Inglaterra ao cristianismo e do estabelecimento de sua Igreja, ocorrido no inicio do século seguinte à missão de Agostinho e anterior à obra de Beda. (BURROW, 2013, p. 248.). Beda era influenciado por sua profunda e devotada fé cristã. Ele escreveu os fatos não apenas para preservar a história eclesiástica de seu povo, mas com o intuito de ajudar os outros clérigos a combater o paganismo e incentivar a boa conduta através do registro de exemplos notáveis de bondade. Para ele questões disciplinares eram assuntos de bispos, não de monges, exceto dentro de seus próprios monastérios, por isso, ao longo de sua história preferiu reproduzir bons exemplos em vez de maus. Ele também queria obter a conversão do povo, tanto que o texto foi originalmente escrito em latim, idioma utilizado pelo clero e não no idioma comum. Ele gostaria que suas narrativas fossem utilizadas em pregações, mostrando tudo que o cristianismo havia passado para combater o paganismo, e que agora os Britânicos estavam instruídos na fé cristã, eles não poderiam continuar a persistir em seus erros antigos.

Referências Bibliográficas

BEDE. Historical Works. Vol I,Vol II. Ecclesiastical History of the English Nation. London: Harvard University Press, 1994. BLAIR, Peter Hunter. The World of Bede. New York: Cambridge University Press, 1995. BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. 1º edição. Lisboa: Editorial Presença, 1999. BURROW, John. Uma História das Histórias. De Heródoto e Tucídes ao século XIX. 1º edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013. COLLINS, Roger. Early Medieval Europe 300-1000.London: Macmillan, 1991. GOFFART, Walter. The Narrators of Barbarian History. (A.D 550-800).Indiana: University of Notre Dame Press, 2005. WICKHAM, Chris. The Inheritance of Rome. A History of Europe from 400 to 1000.London: Penguin Books, 2010.

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UMA HEROÍNA PARA A TRAGÉDIA DA HISTÓRIA:A CONSTRUÇÃO LITERÁRIA DE LUCRÉCIA BÓRGIA EM FERDINAND GREGOROVIUS (1874) Jéssika Hingridi Rodriguês Vieira476

A encenação milimetricamente orquestrada, a desinibida busca pelo dinheiro, a desenfreada caça pelo poder seguido de mínimos escrúpulos para se manter nele, a urgência das tentações mundanas e o apelo ao discurso moral somente quando conveniente. Estes são alguns dos maiores conflitos morais vividos pelos burgueses europeus do século XIX. E aí está igualmente uma lista de características atribuída à família Bórgia, que governou a Igreja romana por volta de 1500. De fato, são muitas semelhanças que nós temos observado entre o universo da corte papal de Lucrecia Bórgia e o mundo burguês do século XIX. Ferdinand Gregorovius, historiador protestante alemão, escreve uma biografia de Lucrecia Bórgia, filha bastarda do papa Alexandre VI. Percebemos a partir de uma pesquisa rápida a fama perversa de Lucrecia, tida nos inúmeros romances, séries, filmes, revistas em quadrinhos e séries televisivas como uma mulher megera, dadas aos luxos e pouco - ou quase nada - dedicada aos preceitos morais da tradição religiosa. Notamos que a narrativa de Gregorovius possui grande carga de imaginação histórica. Imaginação essa que o auxiliou no preenchimento das varias lacunas que as fontes ainda não haviam suplementado. Mas como bom representante da erudição alemã do Oitocentos, o historiador usou e abusou do uso de arquivos privados e particulares em busca de suprimentos que recheassem as suas linhas. E ainda, como bom burguês do século XIX, soube imprimir em seus escritos o alto teor moral e ético presente em sua sociedade, pois como homem de sua época estava envolvido numa tradição a qual utilizava os seus textos como arma de persuasão social. O erudito procurou relembrar o século XVI através de instrumentos científicos - buscando fontes, comparações e investigações – clássicos da historiografia do século XIX. Porém, não deixou de

476

Graduada e mestranda em história na Universidade Federal de Mato Grosso. Email: [email protected]

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lado a sua subjetividade enquanto autor. Sua Lucrecia traduz uma época. Não a época do Renascimento, mas sim o seu século burguês. As suas impressões, e frustrações para com o catolicismo e a imoralidade, e mesmo sendo ele um homem tão apaixonado pela Itália clássica, atacou os detentores da coroa papal com muita ironia, provocação e erudição. Nosso objetivo geral nesse texto é analisar se a representação de Lucrecia Bórgia (Lucretia Borgia, According to Original Documents and Correspondence of Her Day, Ed.1903) escrito por Gregorovius trata-se de uma obra literária ou se é um texto de cunho puramente historiográfico. A nosso ver Gregorovius, como bom historiador do século XIX se preocupou em escrever uma obra historiográfica, atentada a “verdade”, vasculhando arquivos, a procura das fontes que lhes dessem respostas. Mas com o objetivo de amarrar melhor a sua narrativa, acabou recheando o seu texto com vários elementos literários caros ao mundo erudito burguês, além de estar envolvido em uma tradição erudita da Era Vitoriana.

NARRANDO UMA VIDA: FERDINAND GREGOROVIUS

O século XIX foi um período intenso, abarrotado por guerras e disputas territoriais, ganâncias políticas e desejos de uniões nacionais. Essa era a realidade dos dois países que fizeram parte da vida do nosso historiador-fonte: a Alemanha e a Itália. Ambos possuíam pontos em comum: são regiões de intensos conflitos de caráter liberal e nacionalista. Ambos se unificaram tardiamente, mesmo ouvindo ao longe o burburinho dos vizinhos revoltosos. Tanto a península quanto a Germânia fizeram parte da vida de Gregorovius que embora alemão, estudou a Itália por muitos anos, até que resolveu ser seu morador por cerca de vinte anos. Quando falamos da Alemanha e da Itália pretendemos mostrar a importância dessas regiões na caracterização da burguesia hegemônica, tanto política, social, quanto cultural. Dezenove de Janeiro de 1821, um inverno rigoroso despencava sobre a pequena cidade de Neidenburg (Prússia oriental, hoje Nidzica na Polônia) que na época fazia parte do antigo Reino da Prússia até que a Alemanha se unificasse. Nesse mesmo ano nasciam escritores que mais tarde se

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tornariam leituras clássicas, como os franceses Charles Baudelaire, Gustave Flaubert, e o russo Dostoievski. Mas neste texto nos preocuparemos com outro contribuinte à literatura europeia. Nesse dia vinha ao mundo uma personalidade conhecida pela igreja católica como o “amargo inimigo dos Papas”477, Ferdinand Gregorovius. Nascido e criado no famoso e tradicional castelo dos Cavaleiros Teutônicos, o caçula de oito irmãos preferiu não seguir a carreira tradicional de sua família, como pastor luterano e nem jurista como fora o seu pai. Para a alegria de sua família acabou se formando em teologia e filosofia na Universidade de Königsberg com uma tese sobre o conceito de beleza em Plotino e os neoplatônicos. Na década de 1840 enquanto estourava a Primavera dos Povos, fervilhando a Alemanha e a Itália, Ferdinand escrevia algumas obras478 importantes para o seu crescimento enquanto escritor. No momento em que a Inglaterra estava no seu auge econômico com a Revolução Industrial, e a Confederação alemã restabelecia a Liga, Gregorovius que contava agora três décadas de vida se mantinha muito ocupado intelectualmente. Fora nessa época que o mesmo se mudou para Roma e por lá permaneceu por mais de vinte anos (1852-1874). Enquanto isso o papa Pio IX excomunga Victor Emanuel, o conde Cavour e todos os membros do parlamento de Sabóia e a Itália borbulha com a II Guerra de independência.

Em 1876 Gregorovius foi o primeiro alemão e o primeiro protestante a

ser nomeado membro e cidadão honorário da cidade de Roma pela Academia de Lincei, titulo deveras importante que transforma a pessoa homenageada em conterrânea do local. Mas o mesmo não foi o único a ter suas obras proibidas pelo sumo pontífice (ver pagina 05). A sua paixão por Roma fora compensada, outrossim, com a nomeação de uma rua e uma praça. Alem disso, afixaram na parede do primeiro quarto que usou (outubro de 1852) uma placa para imortalizar a sua estada ali. Provamos a fama e a paixão de Gregorovius pela península itálica com as palavras do critico literário Otto Maria Carpeaux que chega até a criar uma categoria denominada italianofilia. Segundo Carpeaux Gregorovius, 477

Apelido dado ao estudioso alemão pelo jesuíta John A. Hardon. Werdomar und Władislav. Aus der Wüste Romantik, 2 Teile (1845) (Werdomar e Wladislav. O romance no deserto, duas partes); Die Idee des Polenthums. Zwei Bücher polnischer Leidensgeschichte (1848) (A ideia do Polenthums. Dois livros de história da Polônia); Polen - und Magyarenlieder (1849) (Polônia – canções Magyar); e Göthe´s Wilhelm Meister in seinen socialistischen Elementen entwickelt (1849) (Wilhelm Meister de Goethe Desenvolvimento em seus elementos socialistas). 478

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Talvez o mais belo eco lit erári o dessa i t ali anofil i a encont re -s e em Gregorovi us , f i l h o d a longínqua Prússia oriental, que passou a vida inteira no país dos seus sonh o s n ó r d i c o s . N u m a i m e n s a G e s c h i c h t e d e r S t a d t R o m I m M i t t e l a l t e r ( História da Cidade de Romana Idade Média), descreveu, com o colorido de um romance histórico, o período mais sombrio da história italiana: Romana Idade Médi a, em ruínas, devast ada pel os bárbaros e pela pest e, gover nada por prelados ignorantes e fanáticos – em Gregorovius há muito preconceito de protestante. Mas era um poeta nato. A sua obra de medievalista é como o pedestal da magnífica Itália livre da Renascença. A sua emoção revela se na epígrafe que escolheu para a obra máxima da sua italianofilia, os Wanderjahre

in

Italien

( Anos

de

Viagem

na

Itália)

(...).

(C ARP EAUX,1963, p.2,299).

Já na década de 50 do século XIX Gregorovius escreveu obras como a tragédia Der Tod des Tibério e o Geschichte des römischen Kaisers Adriano Zeit und seiner (1851) (A história de Tibério e a história do Imperador romano Adriano) dentre outras479. Envolvido cotidianamente em um cenário medieval e orientado pelo historiador de Antiguidade, senhor Wilhelm Drumann, o jovem estudioso em historia480 se viu arrebatado por uma grande paixão: a época medieval. Essa monumental obra composta por oito maciços volumes que conta minuciosamente a história da Roma medieval se tornou leitura obrigatória ao lado de outros

479

Em 1853 publicou Der Ghetto und die Juden in Rom; (os judeus em Roma e no Gueto); No ano seguinte escreveuCorsica. Em 1857 minutou Die Grabmäler der römischen Päpste. Historische Studien (Os túmulos dos papas. Estudos históricos) e um 1858 um curta épico denominado Pompeji Eufórion, e ainda traduziu as canções de Giovanni Meli (1856). Um volume de poemas foi publicado depois de sua morte em 1891 pelo seu conterrâneo Graf Schack. Mas o que realmente o fez famoso foram Geschichte der Stadt Rom im Mittelalter (1859-1872) (História da cidade de Roma na Idade Média) e Wanderjahre in Italien (1856-1877) (Anos de viajem na Itália). 480 A profissionalização do oficio do historiador só ocorre a partir dos anos de 1880 (DOSSE, 2009, p.172).

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clássicos medieval. Essa foi a primeiro de mais outras quatro obras listadas no temido livro proibido da igreja católica – o famoso Index Librorum Prohibitorum. Gregorovius se tornou conhecido principalmente pelo seu grande amor à Itália. Debruçou muito tempo de sua vida aquele lugar. Escreveu sobre a Península, viajou diversas vezes por lá, morou naquela terra e não se cansou em escrever sobre personalidades importantes daquela sociedade. Quando escreve Wanderjahre in Italien – 1856 à 1877 (Anos de viagem na Itália), se preocupa em descobrir o cotidiano dos moradores das cidades italianas percorridas. Sua peregrinação pela Itália durou vinte e um anos, entre as décadas de 1856 a 1877. O viajante alemão, bem como muitos outros do seu século preocupou-se em relatar as minúcias curiosas dos locais em que visitava, sempre acompanhado de um ilustrador, que deixava gravado nos cinco volumes suas impressões sentidas e vistas no local. Nos anos de 1870 enquanto se dá a unificação alemã e os italianos assistem – enfim - de camarote a entrada triunfal de Victor Emanuel em solo romano, Gregorovius ingressava na Academia de Ciências de Baviera e produzia a obra a qual esse texto focaliza. A mais famosa biografia dedicada aos Bórgia no século XIX: “Lucretia Borgia According to Original Documents and Correspondence of Her Day”, escrita em alemão no ano de 1874.

Gregorovius não procurou seguir o referencial de

verdade iniciado pelo historiador burguês William Roscoe. Nosso protestante desejava “(...) descobrir que tipo de personalidade seria descoberta em Lucrecia Borgia, mas de uma forma totalmente diferente daqueles que tinham sido até agora examinados, mas ao mesmo tempo cientificamente, e de acordo com os documentos originais” 481. (GREGOROVIUS, 1903, p.XXI). A sua Lucrecia Borgia é escrita em homenagem ao duque de Sermoneta, Dom Michelangelo Gaetani, pertencente à família Gaetani, inimiga mortal do “sangue quente” Bórgia. Seu texto trata da vida da filha do sucessor de Pedro, primeiramente em Roma e depois em Ferrara, perpassando por aspectos considerados cruciais aos valores de uma família burguesa: a

481

Tanto este como todos os outros trechos retirados da biografia de Lucrecia Bórgia escrita por Gregorovius estarão traduzidos por mim. Decidi por assim fazê-lo para tornar a leitura mais agradável e de fácil compreensão para os leitores que não se familiarizam ainda com a língua inglesa. De qualquer forma a fonte que utilizo aqui está disponível na internet em formato PDF pelo Projeto Gutenberg: WWW.gutenberg.org.

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trajetória de vida dos seus pais e as suas influências; a sua educação os seus matrimônios dentre outros assuntos pessoais que envolviam a família do papa Alexandre VI. O alemão Ferdinand Gregorovius se tornou, ainda em vida, o grande especialista em História da Roma Medieval e sua Lucrecia surgiria como uma biografia “historicamente verdadeira” no século XIX. Insiste em dizer que:

No trabalho me prendi mais ao período que Lucrecia viveu em Roma do que o tempo que passou em Ferrara, porque este último já havia sido descrito, embora não em detalhe, enquanto o primeiro manteve-se puramente lendário. Como eu tinha que basear meu trabalho inteiramente nas informações originais, me esforcei para tratar o assunto de forma a apresentar um quadro verdadeiramente característico da época, e animado pelas descrições concretas de suas personalidades marcantes. (GREGOROVIUS, 1903, p. XXII)

Nos anos de 1880 nosso germânico produziu Der Kaiser Hadrian. Gemälde der römischhellenischen Zeit zu seiner Zeit (1884) (O Imperador Adriano. Pinturas da época romana – helênica em seu tempo) e outros textos482. Nos textos de Gregorovius todos podiam contemplar o seu descontentamento com os possuidores da coroa papal. Critico, Gregorovius recebeu uma educação burguesa tradicional do século XIX e em seus textos deixa claro a importância que dava as fontes como portadoras da verdade histórica. Bem informado, possuía acesso a bibliotecas e a arquivos importantes, conhecia pessoas

482

Kleine Schriften zur Geschichte und Cultur, 3 Bände (1887-1892);(Pequenos textos sobre história e cultura, 3 volumes); Geschichte der Stadt Atenas im Mittelalter. Von der Zeit Justinians bis zur türkischen Eroberung (1889) (História da cidade de Atena, na idade Média. Desde a época de Justiniano à conquista Turca); Foram nesses anos também que Gregorovius produziu mais quatro de suas obras escandalosas, proibidas pelo papa, a saber: Die Grabdenkmäler der Päpste, Merksteine der Geschichte des Papsttums (1881) (Os graves monumentos dos papas. Pedras comerciais da história do papado); Urban VIII im Widerpruch zu Spanien und dem Kaiser, eine Episode des 30 jähr-Kriegs (1881); Urbano VIII em Widerpruch, a Espanha e o Imperador, um episodio da guerra dos 30 anos); Athenaïs. Geschichte einer byzantinischen Kaiserin (1882) (Atenas, história de uma Imperatriz bizantina); e Wanderjahre in Italien, fünfter Band, Apulische Landschaften (1882) (Anos de viagem na Itália, o quinto volume: campo Apúlia).

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influentes e fora bem quisto nas rodas de conversas eruditas.

Sabemos que a vida privada e

publica dos papas e de seus íntimos nunca fora de todo desconhecida. São muito poetas, cronistas, romancistas e historiadores que se debruçaram não raras vezes sobre o tema papal. Gregorovius não pode nos escapar quanto a isso, historiador protestante soube deixar impressa em seu texto os préconceitos de sua ideologia.

FERDINAND GREGOROVIUS: LITERATO OU BIOGRAFO? O século XIX conheceu um breve, porém intenso – pelo menos entre uma minoria formada pelas pessoas educadas e as que queriam se educar – florescer de produção biográfica, principalmente após a década de 1840. Mesmo não sendo muito procuradas, as biografias testemunhavam o gosto das camadas médias e superior da classe media; quando escrevia, o apetite biográfico – termo cunhado por Carlyle - tinha se tornado natural nos níveis mais elevados da experiência burguesa vitoriana. (GAY, 1999, p. 170). Afinal, Ferdinand escreveu um romance histórico sobre a vida de Lucrecia Bórgia ou se debruçou a escrever uma biografia?Para nos ajudar a responder essa pergunta recorreremos ao francês François Dosse conhecido como um dos principais críticos da Nova História. Quando Dosse escreve “Desafio Biográfico: escrever uma vida”, se preocupa em mostrar uma imagem geral sobre o gênero biográfico, objetivo atingido de forma nada superficial.

Sua preocupação maior é principalmente

verificar os momentos de maior ou menor intensidade na escrita de biografias e mostrar ainda, como o historiador se relacionou com o trabalho biográfico nos últimos dois séculos. Nisso o autor constrói um panorama histórico próprio das produções biográficas, mostrando as diferentescaracterísticas a respeito dessa forma de escrita durante o tempo. Dosse classifica o mapa biográfico em três fases. Na primeira, chamada de idade heroica se inserem desde as obras da antiguidade clássica até a modernidade. Já no século XIX as biografias produzidas são denominadas modais. E por fim, as biografias que expressam a heterogeneidade e a multiplicidade de identidades da contemporaneidade pertencem à era hermenêutica.

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Dosse classifica a biografia como um gênero híbrido, que se encontra entre a imaginação do biografo – imaginação está que não é meramente pessoal, mas está inserida dentro de toda uma tradição cultural vitoriana - e a vontade de reproduzir o real, - ou seja, o conteúdo historiográfico.483 Dosse salienta que o recurso a ficção no trabalho biográfico é, com efeito, “inevitável na medida em que não se pode restituir a riqueza e a complexidade da vida real” (...)ao mesmo tempo em que o biografo se vê tentado a apelar para a “imaginação em face do caráter lacunar de seus documentos e dos lapsos temporais” (DOSSE, 2009, p.55). Nessa discussão não podemos perder de vista a famosa tensão encontrada no trabalho do historiador, que ao mesmo tempo que precisa se preocupar com a escrita de um relato mais verdadeiro possível, também se vê atraído a usar e abusar da imaginação – emprestando à obra certo valor artístico - para organizar e alinhar as peças do grande quebra-cabeça histórico, causada por lacunas que ainda não enxergamos nas fontes históricas. Porem, nem todos apoiam esse ecletismo dos historiadores. Muitos chegam a torcer o nariz, principalmente quando sentem sua ossada sendo-lhes tirada. Um exemplo é o romancista italiano Rafael Sabatini - em seu texto sobre The life of Cesare Borgia, 1946 – que se indigna profundamente com a audácia de Gregorovius em escrever de forma poética. Sabatini fala de Gregorovius de forma dura e irônica, dizendo que,

Os talentos marcantes de Gregorovius são ocasionalmente marcados pelo egoísmo e pedantismo, por vezes, característico dos estudiosos de sua nação. (...) ele afirma com determinação coisas que só Deus pode saber, ocasionalmente, seu conhecimento, transcendendo o possível, sai do domínio do historiador para a do romancista, quando, por exemplo, (...) quando ele nos diz o que se passa na mente de Cesar Borgia na coroação do rei de Nápoles. (SABATINI, 1946, p.149). 483

Essa definição de François Dosse sobre biografia se faz muito esclarecedora, principalmente quando recoremos a discussão iniciada por Hayden White sobre o trabalho do historiador, sua narrativa e a sua busca pela verdade histórica. (ver Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura, USP, 1994).

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A biografia vitorianase confunde com a hagiografia, mas agora as vidas relatadas não eram somente de santos, mas de pessoas que poderiam servir de exemplos para o bom comportamento da sociedade burguesa. (DOSSE, 2009, p.61).484 Não podemos perder de vista a importância da biografia vitoriana, que se tornou como um guia erudito burguês, ou melhor, se traduziu culturalmente hegemônico em toda a Europa ocidental do século XIX, ao qual, vemos Gregorovius como legatário. O cuidado de usar biografia como fonte deve ser o mesmo do uso, por exemplo, de um mapa do século XVI, ambos devem ser investigados com acuidade, devemos prestar atenção nas intencionalidades, discursos e subjetividade do documento. Temos de levar em conta não só as informações que estão postas, mas principalmente observar o que não está.

Devemos trabalhar

ausentes de ingenuidade, tomando todo o cuidado para não sermos seduzidos nem pela narrativa do escritor nem pelas linhas desenhadas pelo cartógrafo. O próprio Michel de Certeau levou em conta o hibridismo da biografia, ao dizer que a mesma: “trata-se de uma mistura de ciência e fantasia, cujo relato parece racional, mas nem por isso esta menos sujeita a controles e possibilidades de falsificação” (DOSSE, 2009, p.68). Mesmo usando em suas linhas o coloridode um romance histórico (ver Otto Carpeaux, 1963) o al em ão não escreveu um rom ance , m as sim um a biografi a históri ca, porém com um a pi t ada de im agi nação hi st óri ca. As características de seu texto nos movem a essa conclusão. Tanto a biografia quanto o romance histórico utilizam a junção do real e da imaginação, porém o romance histórico se apoia principalmente na ficção para descrever fatos, costumes e personagens, ao passo que a biografia é guiada pelo desejo de se aproximar do real.

484

No século XIX a biografia estava na moda, todos estavam curiosos sobre os feitos e vida dos seus contemporâneos. Segundo Baudelaire esse “imenso apetite que temos por biografias nasce de um sentimento profundo de igualdade” (DOSSE, 2009, p.170). É o que Peter Gay caracteriza de reconhecimento do “eu” burguês. As pessoas biografadas só o são porque possuem em si alguma qualidade que o torna de interesse público. Na era moral vemos o sentimento de unidade e a capacidade de colocar acima de suas ambições pessoais o coletivo. Pelas biografias e romances podemos perceber o ato de educar moralmente, levando a essência de pertencimento à sua classe burguesa ainda comprimida, na mesma medida que vincula o seu discurso às louváveis virtudes cívicas.

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O biografo parte da veracidade encontrada nas fontes, mas em sua bagagem carrega a imaginação de poeta. Não podemos classificar o texto de Gregorovius como pertencente à época heroica, pois não o vemos endeusar Lucrecia Bórgia. Pois “o século XIX com o progresso dos valores liberais e democráticos além do aprofundamento da questão social agravou a crise do herói (...) a fim de fazer valer outras lógicas mais coletivas, sociais”. (DOSSE, 2009, p.167). Acreditamos poder inserir Ferdinand Gregorovius na biografia modal, já que a sua preocupação em escrever a vida de Lucrecia Bórgia é de ilustrar o coletivo, revelando ao leitor o comportamento médio das categorias sociais do momento. Nesse século XIX os relatos biográficos se esforçam em articular individualidade e exemplaridade (DOSSE, 2009, 169). Lucrecia, filha do papa Alexandre VI, deveria ilustrar a mais pura devoção ao senhor e aos fieis. Porém tudo a sua volta a afastava de Deus. Seu pai, seus irmãos, seu bairro, sua cidade, seu país, tudo a sua volta a levava aos caminhos tortuosos. A família Bórgia faminta pelo poder, não deixou de atingir a pele alva de Lucrecia. Ao retratar Lucrecia, Gregorovius escreve um tratado moral. Não é a toa que durante todo o seu texto ambientado no século XVI sempre volta à Alemanha do seu tempo, em assuntos caros à burguesia, como a educação, o casamento, o divórcio, a virtude, a moral, a política, o lucro e a religião. Na biografia social escrita por Gregorovius, vemos uma Lucrecia (individuo) como mero reflexo da sociedade burguesa, pois, como ressaltou Lucien Febvre, o individuo é aquilo que lhe permitem ser sua época e seu meio social (DOSSE, 2009, p.216). Assim, em seu Martinho Lutero, um destino, Febvre confronta a psicologia de um individuo com o universo mental da Alemanha do século XVI. A biografia de Gregorovius foi escrita originalmente em alemão em 1874, porém, temos em mãos somente a sua versão em inglês, escrita em 1903, com 477 paginas em PDF disponível no site do projeto Gutenberg (www.gutenberg.org). Trata-se, neste caso, da tradução inglesa, feita por John Leslie Garner, da terceira edição alemã. A Obra está dividida em duas partes: A primeira delas trata da vida de Lucrecia Bórgia em Roma e a segunda narra sobre sua moradia em na cidade de Ferrara, Itália. Observando a disposição da biografia, notamos o cuidado do autor em dispor os capítulos. Notamos a preocupação do autor em ressaltar a família. Ao iniciar sua narrativa espalha diversas informações sobre o outro parente de

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Lucrecia Bórgia, o papa Calixto III e a sua saga papal. Dispõe um capitulo inteiro sobre o pai de Lucrecia, o papa Alexandre VI. O próximo capitulo trata da mãe de Lucrecia, a misteriosa Vanozza Catanei. A seguir discorre sobre seu primeiro lar em Roma, ao lado da amante do seu pai, Giulia Farnese. O próximo capitulo, trata da educação da menina. Assim por diante, a biografia detalha a vida de Lucrecia. Notamos ainda que o título dos capítulos estão recheados de ideais burgueses, como família; educação; casamento, vida social, negociações e outros. No prefacio de seu texto, Gregorovius confidenciou seu fascínio pelo mundo Bórgia, que nas suas palavras, nunca vai parar de fascinar a historia e a psicologia:

Um amigo inteligente me perguntou uma vez porque tudo sobre Alexandre VI, Cesar, e Lucrecia Bórgia, todos os pequenos fatos com relação a suas vidas, todas as novas cartas descobertas deles despertava meu interesse muito mais do que

qualquer

outra

historia

com

características

mais

importantes

(GREGOROVIUS, 1903, p. XVII).

Respondendo a esse mesmo amigo, Gregorovius deixa claro porque se deixou levar pela história dessa família:

Os Bórgias tiveram como fundo a Igreja Cristã. Eles fizeram sua primeira aparição a partir dela. Eles a usaram para o seu avanço, e a contrastante conduta deles com o Estado Santo faz com que pareçam completamente diabólicos. Os Bórgias são uma sátira sobre a ótima forma ou fase da religião, rebaixando e destruindo. Eles estão em altos pedestais, e de sua presença irradia a luz do ideal cristão. Desta forma nós o vemos e os reconhecemos. Vemos seus atos através de um meio que é permeado com ideais religiosos. Sem isso, eles são colocados em um estagio puramente secular, os Bórgias teriam caído em uma posição muito menos visível do que a de muitos outros

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homens, e logo deixariam de ser algo mais do que representantes de uma grande espécie. (GREGOROVIUS, 1903, p. XVII).

Gregorovius procurou em arquivos onde os seus documentos e lembranças são mais numerosos: Roma, Ferrara e Modena nos arquivos da família Este e ainda em Mantua nos arquivos da família Gonzaga. Segundo Gregorovius, desde a história publicada de Guicciardini, a figura de Lucrecia possuía apenas uma lenda, segundo a qual, é a fúria, o veneno de um lado, a adaga na outra, e ainda, que está personalidade perniciosa possuía todo o charme e graça (GREGOROVIUS, p. XVIII). Com François Dosse vemos que o objetivo dos trabalhos biográficos do século XIX era: fazer justiça a certas figuras que a historia oficial esqueceu ou depreciou (DOSSE, 2009, p.76) como uma espécie de “justiceiro histórico”,485 ou também definir seu empreendimento como uma desmistificação da lenda, “em nome da verdade histórica ou ainda reduzir o biografado a um simples pretexto para resgatar um momento, um contexto, uma época”. (DOSSE, 2009, p.100). Na sua biografia Gregorovius obedece à tradição de justificar porque está escrevendo sobre aquele determinado personagem da história renascentista e deixa claro que não é um justiceiro da imagem de Lucrecia Bórgia como o foi William Roscoe:

Eu comecei a minha tarefa sem qualquer intenção preconcebida. Propus a escrever, não um pedido de desculpas, mas uma história de Lucrecia, amplamente esboçado, os materiais para os quais, como os que tratavam sobre o período mais importante de sua vida, sua residência em Roma, já estavam em minha posse. Eu desejava descobrir que tipo de personalidade seria descoberta em Lucrecia Borgia, mas de uma forma totalmente diferente daqueles que Ferdinand Gregorovius se refere à obra de Roscoe do seguinte modo: “Roscoe, doubting the truth of this legend, endeavored to disprove it, and his apology for Lucretia was highly gratifying to the patriotic Italians. To it is due the reaction which has recently set in against this conception of her” (GREGOROVIUS, 1903, p. XVIII).O inglês William Roscoe foi o primeiro no século XIX a reivindicar uma biografia sobre a filha do papa Bórgia que lhes fizesse justiça. Sua intenção era narrar Lucrecia como uma mulher do seu tempo, com responsabilidades, desejos, educação e praticas comuns às mulheres de corte do século XVI. 485

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tinham sido até agora examinados, mas ao mesmo tempo cientificamente, e em conformidade com os documentos originais. (GREGOROVIUS, 1903, XXI).

A preocupação de Gregorovius com os seus pares eruditos é aparente quando explica que a intenção do seu livro é trazer uma escrita perfeitamente clara quanto ao uso consciente da história. Diz com todas as letras que tem substituído história por romance.486Segundo ele, os registros originais serviram como defesa contra aqueles que se esforçam para descobrir um motivo malicioso neste trabalho (GREGOROVIUS, 1903, XXII). Logo mais reforça o caráter cientifico do seu trabalho no trato com as fontes originais, e diz que se esforçou para mostrar um quadro verdadeiramente característico da época, e animado pelas descrições concretas de suas personalidades marcantes (GREGOROVIUS, 1903, p. XXIII). O papado sempre envolvido com a política da península itálica despia sua santidade. Depois do papa Sisto IV, Alexandre VI traçou um plano nepotista, com o claro objetivo de espalhar o seu sangue espanhol por todos os braços de poder que conseguisse. A política de nepotismo é a característica – segundo Gregorovius – que mais traduz a família Bórgia como um grupo feroz, principalmente Cesar – retratado por Maquiavel como o príncipe ideal da Renascença. Lucrecia viveu em um ambiente movido por brigas entre clãs, assassinatos por poder, insurreições na busca por espaço, Na opinião de Gregorovius, a menina nasceu em um período terrível na historia do mundo. O papado estava se despindo de sua santidade, a religião estava completamente material, além de uma imoralidade sem limite algum. (GREGOROVIUS, 1903, p. 14).

Conclusão

Ferdinand Gregorovius projetou a Alemanha do século - em que viveu e que tentava contribuir enquanto critico e produtor de conhecimento histórico – XIX à Itália do século XVI. Para tanto encontrou na figura de Lucrecia Bórgia um perfeito gancho, que lhe permitia falar de forma critica e 486

Não posso dizer por enquanto, se sua preocupação de substituir história por romance esteve presente só nessa biografia, pois ainda não tive contato com outras obras de Gregorovius.

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irônica sobre religião, moral, ética e pudor. Jean Delumeau fez o mesmo em seu clássico A civilização do renascimento I e II, pois qualquer individuo quando escreve, sendo historiador ou não, acaba de uma forma ou outra imprimindo o seu modo de ver o mundo. Quando lemos o texto de Delumeau percebemos que mesmo escrevendo em épocas distintas e tratando de objetos diferentes, acabam percebendo que existem alguns elementos sociais que sempre aparecem. Gregorovius escreve uma biografia, já Delumeau minuta um texto acadêmico, mas em ambos encontramos elementos comuns, como, por exemplo, o anacronismo de ler épocas passadas com os olhos de hoje. A Lucrecia de Gregorovius é um símbolo da mulher burguesa do século XIX, isso porque, quando o alemão à escreve, imprime sobre ela sua época, características e preconceitos presentes na cultura burguesa do seu século XIX. Definimos a importância da literatura como meio de dar sentido àquela nova classe. A burguesia do século XIX, complexa, diversa ia conquistando seu espaço a cada revolta liberal, a cada ato nacionalista. Penetrando em pormenores do cotidiano burguês, a literatura age a partir da sua rica oratória, como persuasão social, afim de convencer e educar os seus leitores, ao mesmo tempo em que se auto-realiza enquanto classe social. A burguesia do século XIX se encaixa em um enorme quadro de pertencimento global, pois, acaba seguindo modas e parâmetros de países ditos soberanos, tanto na política (França) quanto na economia (Inglaterra). A Alemanha precisava - depois de tanto custo – ser soberana em algo, para tanto escolhera a erudição. Se afirmava agora como uma grande nação germânica, e os seus pares teriam de reconhecê-la Grande. Gregorovius nascera nesse contexto histórico, herdou dos seus contemporâneos o manual vitoriano de se escrever. Traduziu em suas entrelinhas sua paixão pela grande Itália renascentista, ao passo que ironicamente denunciava a imoralidade dos papas no tempo de gloria católica. Sabemos da complexidade do tema proposto, e conhecemos ainda que existe um enorme caminho a ser trilhado, e nesta estrada, estamos ainda no inicio. Reconhecemos ainda a necessidade de amadurecimento desta pesquisa e por isso escrevemos aqui uma conclusão inconclusiva. O intuito deste é mostrar que Gregorovius - historiador e apaixonado pela erudição – não se presta a escrever um

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romance histórico sobre a vida de Lucrecia Borgia e o seu contexto familiar. Mas sim, se debruça a historiar de forma cientifica, e assim através de árdua busca documental, acaba escrevendo uma narrativa historiográfica sim, mas não desprovida de imaginação histórica. Portanto, podemos por hora, classificar o seu texto como uma biografia histórica com pitadas de literatura.

Referências Bibliográfica

DELUMEAU, Jean. Civilização do Renascimento. Lisboa: Edições Estampa, 1994. DOSSE, François. O desafio biográfico:escrever uma vida.São Paulo: EDUSP,2009. CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, Vol.5 A época da classe burguesa. Rio de Janeiro: Edições Cruzeiro, 1963. GREGOROVIS, Ferdinand. Lucretia Borgia. New York: Appleton, 1903. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra¸ 2009. HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra¸ 2011. SABATINI, Rafael. Cesar Borgia. 1946 RJ: Editora Vecchi, 1946. WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.São Paulo: Companhia das Letras, 1990. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre acrítica da cultura.São Paulo: Editora USP, 1994.

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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA: A CRÔNICA DOS GODOS E SUA PROBLEMÁTICA DE DATAÇÃO Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira487

INTRODUÇÃO

O historiador, ao voltar-se para o passado, buscando estruturar e projetar sua hipótese, não encontrará terreno suficientemente sólido e seguro de forma a não ter suas colocações passíveis de futuras problematizações. É um caminho fluido, movediço, incerto, totalmente dependente dos alicerces nos quais estarão sedimentados seus provisórios argumentos. Estes, com o passar do tempo, perderão sua rigidez, se de fato um dia tiverem, em virtude de novas proposições, e assim por diante. Ao analisarmos as produções literárias medievais, fundamentalmente as obras produzidas na Península Ibérica,488 a necessidade de uma abordagem cautelosa se apresenta como elemento primordial. Sua importância é verificada em virtude da complexidade que muitas dessas obras exibem nos seus mais diversos aspectos. Dentre estes, e aproximando-se de nossa proposta, destacamos a datação de algumas obras que, em virtude da falta de registros mais claros que indiquem seu momento de produção, ou, mesmo, por estes terem se perdido no tempo, necessitam da hipótese coerente do historiador para sua alocação em data plausível de origem. Seguindo este rumo, trabalharemos a problemática existente sobre a datação das duas versões da Crônica dos godos,489relacionada à qual delas seria a versão primitiva da obra, o que refletiria em suas

Graduado em História pela Universidade Estácio de Sá, e colaborador agregado do Programa de Estudos Medievais – PEM/ UFRJ. E-mail: [email protected] 488 São destacadas as obras produzidas nesta região, especificamente as elaboradas a partir dos séculos IX e X, em virtude de todo o processo de conflitos religiosos verificados na paisagem peninsular, e de ser este o momento no qual a cristandade consegue reunir forças suficientes, segundo a historiografia aponta, para iniciar uma contraofensiva dos reinos cristãos aos “inimigos” localizados mais ao sul, o que acabaria por ser expresso de diversas formas, como uma espécie de discurso, em obras asturianas. 489 A Chronica Gothorum e a Brevis Historia Gottorum. 487

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próprias datações. Nesse sentido, dialogaremos com alguns autores que se debruçaram sobre o tema, discutindo as coerências de seus apontamentos, frente ao que podemos notar do estudo comparado de ambas as produções. Para analisarmos as duas versões da Crônica dos Godos (Chronica Gothorum (CG)e Brevis Historia Gottorum (BHG)), utilizamos as edições preparadas por Alexandre Herculano e publicadas em sua obra: Portugaliae Monumenta Historica: Scriptores.490

CARACTERÍSTICAS E ORIGEM DA OBRA A Crônica dos Godos, escrita em latim vulgar, teria sido produzida, segundo Herculano,491 entre os séculos XII e XIII, na Península Ibérica, no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Ela conta a história “[...] das terras que formaram a Portugal e dos condes que governaram estas terras [...]”,492 desde a chegada dos godos, até a fundação da monarquia portuguesa, com Afonso Henriques. Sua autoria é incerta, só ficando claro, em sua narrativa, que seria oriunda de uma casa religiosa.493 A estrutura interna da obra está dividida por Eras, tendo cada uma delas uma data494 em destaque e sua sequencial descrição de acontecimentos, que se resume, fundamentalmente, aos fatos entendidos como importantes495 e, por tanto, referenciais para o ano destacado.

490

CHRONICA Gothorum. In: HERCULANO, Alexandre. Portugaliae Monumenta Historica: Scriptores. Lisboa: [s.n.], 1856.V.1,p.5-17 e BREVIS Historia Gottorum. In: HERCULANO, Alexandre. Portugaliae Monumenta Historica: Scriptores. Lisboa: [s.n.], 1856.V.1,p.5-17. 491 Ibidem.p.7. 492 [tradução do autor]. Escrita original: “[...] terres qui formeront le Portugal et des comtes que gouvernaient ces terres [...].”. DAVID, Pierre. Études historiques sur la Galice et le Portugal du Vle au XIIe siècle.Lisboa: [s.n.], 1947.p.257. 493 As produções cronísticas portucalenses, até pelo menos o século XII, eram oriundas majoritariamente de mosteiros, como os de St.ª Cruz de Coimbra, de St.º Tirso de Riba d’Ave e de São Mamede de Lorvão, entre outros. É possível que seguissem as características de escritos cronísticos mais remotos, como os asturianos, haja vista as semelhanças estruturais e em informações verificadas entre ambos os corpos produtivos. 494 A datação da obra está de acordo com a Era Hispânica, ou seja, apresentam uma diferença de 38 anos. Nesse sentido, para obtenção da data segundo nosso calendário, é necessário que se subtraia, da data apresentada, 38 anos. Para ver mais dados relacionados a tal datação, ver: La Era hispânica y su origem. Disponível em: . Acesso em: 30 Ago. 2013. 495 Importantes para o autor que via nos elementos trabalhados, verdadeiros referenciais para as Eras que destacava.

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A obra tem sua importância, dentre outros, em virtude de ter sido utilizada, assim como inúmeros outros escritos, por autores posteriores como referencial para produções que se destinavam a contar a história de fundação do reino português, como, por exemplo, a España Sagrada (1758), do Frei Henrique Florez.496 Um dos primeiros autores a trabalharem, de alguma forma, a obra, apresentando-a em sua produção, Monarchia Lusitana, do século XVII, e que daria início a uma incógnita que perduraria até os dias atuais, foi o historiador português Antônio Brandão.497 Em seus escritos, ele informa à existência, nos arquivos de Alcobaça e St.ª Cruz de Coimbra, de fragmentos de uma versão mais resumida da crônica que utilizara. Segundo ele,

[...] ha dous exemplares della [da Crônica dos Godos], o que aqui vay impreffo foy do Meftre Andre de Refende, & o tem em feu poder o Chantre de Euora Manoel Seuerim de Faria. Outro mais breue, cujas palauras por effa mefma caufa allego mais vezes, fe tirou de Alcobaça, & S. Cruz de Coimbra.498

A partir deste apontamento, uma problemática se estabelece: qual das duas versões (a resumida ou a mais longa) seria a produção coimbrana dos séculos XII – XIII? Seria, uma delas, um resumo da outra? Partindo destes problemas, nossa proposta tem por fim, justamente, destacar os argumentos entendidos por nós como os mais coerentes, segundo a historiografia que se debruçou sobre o tema, analisando a plausibilidade dos apontamentos feitos por cada autor.

496

Nessa obra o autor se utiliza da versão longa da crônica (Chronica Gothorum), modificando seu nome para Chronicon Lusitanum. Segundo ele, a alteração do nome seria em virtude de entender que a obra narra os eventos relacionados à formação do reino português, e não aos godos. Cf. FLOREZ, Henrique. Chronicon Lusitanum. In:______. España Sagrada. Madrid: [s.n.], 1758.p.415. 497 Brandão destacaria ter obtido a crônica portucalense de Manuel Severin de Faria, Chantre de Évora. Já este teria tido acesso à obra através de André de Rezende, seu detentor anterior. 498 BRANDÃO, Antonio. Terceira parte da Monarchia Lusitana: que contem a história de Portugal desdo Conde Dom Henrique, até todo o reinado delRey Dom Afonso Henriques. Lisboa: Mosteiro de S. Bernardo, 1632.p.271. Disponível em: . Acesso em: 10 Out. 2013.

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A versão longa, apresentada por Brandão, assim como já destacado anteriormente, recebeu o nome de Chronica Gothorum (CG),499 já a versão breve, citada por este autor, é conhecida por Brevis Historia Gottorum (BHG).

PRINCIPAIS PROBLEMAS LEVANTADOS PELA HISTORIOGRAFIA Alguns autores trouxeram contribuições importantes500 acerca da problemática de datação dessas duas versões. Buscaram respostas, nos corpos estruturais das obras, cujo fim seria o de, entre outros, indicar qual das duas seria a condizente como produção dos séculos XII – XIII. Para Herculano, a versão breve seria a mais antiga, sendo a longa somente uma extensão aprimorada da versão primeira. Segundo ele, conforme apresenta David,

[...] a versão longa da Chronica Gothorum faria uma amplificação literária. Um exame mais aprofundado permite a conclusão que este resumo fora feito no texto longo e apresenta todos os caracteres do século XVII […].501

Ao refletirmos sobre a hipótese de Herculano, em um primeiro momento, não encontramos certa coerência. Tal posição se fundamenta ao analisarmos comparativamente tanto a CG, quanto a BHG com outras obras produzidas, teoricamente, nos séculos XII e XIII.502 Muitas das primeiras obras portucalenses tomavam como referencial, para sua produção, informações provenientes de escritos de épocas mais remotas, mas que se referiam ao passado longínquo peninsular, contributivo para o processo fundacional do reino português. Sendo assim, muitas das passagens verificadas nestas primeiras obras portucalenses acabavam tendo informações

499

Segundo David, a intitulação da obra como Chronica Gothorum seria de responsabilidade de André de Resende e a Brandão. Cf. Op. Cit. DAVID, 1947.p.284. 500 Importantes no sentido de contribuírem, com seus apontamentos, para as discussões que se orientavam na elucidação das complexas questões vinculadas as referidas obras. 501 HERCULANO apud In: DAVID, op. cit., 1947.p.283 [Tradução do autor] 502 Chronicon Conimbricense (CC) e Chronicon Complutense (Com) In: HERCULANO, op. cit., 1860.p.36;52.

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em comum. Trechos inteiros, algumas vezes, eram repetidos, de forma a manter a integridade da narrativa a ser transmitida. Nesse sentido, analisamos, comparativamente, a CG e a BHG com outras obras dos séculos XII e XIII, buscando essas características em comum. Dentre estas, destacamos, por exemplo, num primeiro momento, a lista de reis asturianos.503 Ao fazermos tal comparação, verificamos que: os reis Afonso I, Fruela I, Aurélio, Silo e Mauregato, antigos reis asturianos, eram citados nas Chronica Gothorum (CG), Chronicon Conimbricense (CC) e no Complutense (Com). Tal menção não fora feita na BHG.504 Ainda seguindo nessa mesma linha, avultamos outros dados que aparecem diferentes nas citadas obras. Um deles é a datação de quantos anos teria durado o reinado de Pelágio, filho do duque Fávila, que nas obras aparecem como sendo de 19 anos.505 Já na BHG, consta como sendo de 15 anos.506

503

A remissão aos reis asturianos tinha uma funcionalidade específica nas obras. Segundo Patrick Geary, os monarcas teriam, com a citação linhagística nas crônicas, a possibilidade de manutenção de suas identidades familiares. Cf. GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2006. 2v.,V.2.p.174. É razoável pensar que tal propósito fosse uma manutenção dos mesmos fins almejados pelos monarcas asturianos com as citações linhagísticas nas crônicas, ou seja, demostrar que “... a monarquia (...) era a herdeira legítima do reino visigótico.” MATTOSO, José. Portugal no reino Asturiano-leonês. In: ______ (et al). História de Portugal. Lisboa: Ed. Estampa, 1992. Volume I: antes de Portugal.p.442. Ainda nesse sentido, segundo nos informa Georges Martin, “[...] el linaje fue [...] un imaginario del parentesco que, mirando hacia atrás, vinculaba comúnmente a los parientes a un antepasado primordial [...]” MARTIN, Georges. Linaje y legitimidad en la historiografía regia hispana de los siglos IX al XIII. e-Spania, [S.l.], 2011.p.4. Disponível em: . Acesso em: 19 Set. 2013.Nesse sentido, deixar marcada a linhagem régia através das obras, ligando-as aos reis de um passado mais remoto, ou, mesmo, aos antigos condes governantes da região que viera a dar forma ao condado portucalense, servia como um fator legitimador da posição do monarca reinante. 504 Já Bermudo I, Afonso II, Ordonho I e Ordonho II, só aparecem na CG. Vale destacar que, segundo David, a menção à lista dos reis asturianos, notadamente de Pelágio ao advento de Afonso II, seria uma das características peculiar e identificadora de escritos provenientes do que ele classifica como sendo os Annales Portucalenses veteres, isto é, um conjunto de obras, dos séculos XI e XII, cujo fim fora o de resgatar o passado fundacional do reino português. Cf. David, op. cit., 1947.p.257. 505 Segundo a Chronica Gothorum: “[...] Pelagius Fafilani ducis filius regnauit annis XIX.” In: HERCULANO, op. cit., 1860.p.08 / Segundo a Chronicon Conimbricense: “Plagius regnauit annis XVIIII.” In: Ibidem.p.36 / Segundo o Chronicon Complutense: “Pelagius regnavit annis XVIIII.” In: Ibidem.p.52 Tais dados, de igual forma, se alinham aos presentes em produções ainda mais antigas, como é o caso, por exemplo, da Crônica de Afonso III (Século X). Nela é narrado que: “[...] Pelagius post nonum decimum regni sui annum completum propria morte decessit [...]” GARCIA VILLADA, Zacarías. Textos Latinos de la Edad Media Española. Sección primera: Crónicas, fascículo primero: Crónica de Afonso III. Madrid: [s.n.], 1918.p.67 506 Segundo a Brevis Historia Gottorum: “[...] Pelagius Flauiani ducis filius regnauit an. XV.” In: Op. Cit.p.08.

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Outro seria relacionado ao reinado de Afonso, filho de Ordonho, que segundo as CG, CC, Com e Al, teria sido de 18 anos.507 Já para a BHG, a duração apresentada seria de 8 anos.508 Sendo assim, pelas semelhanças sinalizadas, chegamos à conclusão de ser a CG,portanto, obra provável da conjuntura produtiva das demais obras analisadas, ou seja, dos séculos XII e XIII. Para além, ao retornarmos à hipótese de Herculano (de ser a versão longa uma produção posterior), se tornaria incoerente pensar a elaboração de uma nova obra, escrita posteriormente, apresentando elementos característicos encontrados em outras obras dos séculos XII e XIII, que nem a versão original possuía. Luiz Gonzaga de Azevedo,509pesquisador da primeira metade do século XX, acredita, em oposição a Herculano, ser a versão breve somente um resumo da original. Quanto a este apontamento, também não encontramos a devida coerência, se levarmos em consideração que diversos dados, como, por exemplo, a datação de algumas “Eras” 510 ou, mesmo, os dados numéricos presentes na versão longa, serem alterados na versão breve. 511 Nesse sentido, pensar em um resumo que altere os dados originais não parece ser tão coerente, uma vez que o que se quer é, justamente, abreviar a versão longa, e não a origem de uma nova produção, com novos elementos. Segundo a Chronica Gothorum: “[...] Adefonsus Ordonii filius regnauit annis XVIII.” In: Ibidem HERCULANO, 1860.p.08 / Segundo o Chronicon Conimbricense: “[...] Ildefonsus ordonii filius cepit colimbriam........bracaram et portugalem, uiseum, lamecum, egitania, et regnavit annis X.VIII.” In: Ibidem.p.36 / Segundo o Chronicon Complutense: “Tunc positus est in regno Dominus Adefonsus XVIII [...]” Ibidem.p.52 508 Segundo a Brevis Historia Gottorum: “Alfonsus ab hoc Pelagio Rex XIII, eius nominis III, Regis Ordonii filius, cepit regnare era DCCCCIIII.; regnauit an. VIII [...]” In: Ibidem.p.08. 509 Cf. AZEVEDO, Luiz Gonzaga de. História de Portugal. Lisboa: Edições Bíblion, 1942.V.4, p.174-198. 510 Podemos, notadamente, por exemplo, perceber a diferenciação entre as “Eras” presentes tanto na CG, quanto na BHG,no seguinte fragmento: “Era CCCXLVIIII. egressi sunt Gothi de terra sua.” CHRONICA GOTHORUM In: Op. Cit. HERCULANO, 1860.p.08 / “Era CCCXLVIII. Egressi sunt Gotti de terra sua.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In: Ibidem.p.08. Podemos notar, pelo exemplo dado dos recortes do início de ambas as obras, que as datações das “Eras” destacadas são diferentes. Enquanto que a CG narra a saída dos godos como sendo evento pertinente à Era 349, a BHG apresenta como sendo pertinente a Era 348. Como outro exemplo, destacamos a Era que faz menção a morte do rei D. Afonso, em Viseu. Segundo a CG, “Era MLVI. Obiit rex donnus Adefonsus Viseo.” CHRONICA GOTHORUM In: ibidem.p.09. Já a BHG, “Era MLXVI. Rex Domnus Adefonsus obiit Viseo.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In: Ibidem.p.09. Ou seja, enquanto a CG destaca o acontecido como sendo verificado na Era 1056, a BHG, para o mesmo evento, nos traz a Era 1066. Tais diferenciações são repletas nas obras, não se limitando aos exemplos destacados. 511 A diferenciação de dados numéricos entre ambas as obras fica patente, por exemplo, nos seguintes trechos: “[...] ingressi sunt Hispaniam, et regnauerunt ibi annis CCCLXXXVII [...]” CHRONICA GOTHORUM In: Ibidem.p.08 / “[…] Ingressi sunt Hispaniam, vbi regnauerunt annis CCCLXXXIII.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In: Ibidem.p.08. Ambas são pertinentes à mesma narrativa, ou seja, a quantos anos teria durado o reinado godo na “Espanha”, que, de acordo com a CG, teria sido de 387 anos, enquanto que na BHG, consta como sendo de 383 anos. 507

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Cabe mais pensar a BHGcomo uma nova obra, que toma tanto a CG quanto outras obras portucalenses, ou mesmo, os antigos escritos do século XI, como referenciais para sua produção. Só assim, encontramos coerência na diferenciação dos dados verificados entre ambas as versões, ou, mesmo, pelos que somente a BHGteria.512 Os dados presentes nela, não encontrados nas demais crônicas, podem ser oriundos de textos que desconhecemos, que não os antigos anais ou cronicões portucalenses. Azevedo levanta sobre vários temas. Dentre eles, se destacam as questões em relação: aos supostos fragmentos da versão breve existentes nos arquivos de Alcobaça e St.ª Cruz de Coimbra, conforme informava Brandão; à credibilidade de quem as teria transmitido a este autor, no caso, Gaspar Álvares de Lousada Machado;513 e, ainda, o acesso de Herculano à tais fragmentos. Segundo o autor, “Herculano não viu êstes exemplares, mas admitiu a sua existência, fundado na palavra de António Brandão [...]”.514 Assim, Azevedo reduz a possibilidade de Herculano ter tido acesso aos fragmentos de uma versão breve da obra, supostamente existentes em Alcobaça ou em St.ª Cruz de Coimbra, esvaziando, em importância, qualquer apontamento feito por este autor em relação aos exemplares. Para Azevedo, nem mesmo Brandão teria tido acesso a tais escritos, tendo ele, somente, confundido fragmentos de outros antigos anais (alcobacenses, complutenses ou coimbranos) com uma possível versão da CG.515 Segundo Azevedo,

Contemporâneo e amigo de André de Rezende foi o humanista João Vaseu (...1562), natural de Bruges, professor de Salamanca [...] Também êste conheceu e 512

Dentre esses dados, destacamos, por exemplo, a menção feita pela BHG,do tempo que teria durado a ocupação da cidade de Coimbra pelos ismaelitas, que segundo a obra, teria sido de 70 anos. Dado somente encontrado na BHG. “[...] postea cam Hismaelite reedificauerunt, et tenuerunt cam LXX.an.” BREVIS HISTORIA GOTTORUM In: HERCULANO, op. cit., 1860.p.09. 513 Clérigo nascido em Braga; foi secretário do arcebispo de Braga D. Fr. Agostinho de Castro e escrivão da Torre do Tombo. Cf. SOUSA, António Caetano de. Historia genealogica da Casa Real Portugueza, desde a sua origem até o presente, com as Familias ilustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança, justificada com instrumentos, e Escritores de inviolável fé, e offerecida a el Rey D. João V . Lisboa: Academia Real, 1735.p.75. Acredita-se que somente através dele, Brandão, supostamente, teria tido acesso a versão breve da obra. 514 AZEVEDO, op. cit., 1942.p.175 515 Cf. ibidem.p.176

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citou o exemplar extenso da Crónica dos Godos e devia conhecer e ter na mão o códice de Alcobaça da mesma crónica, se êle lá existisse. Efectivamente, contanos Vaseu que, por influência do Cardial Infante D. Henrique, tirou do cartório de Alcobaça todos os documentos, que lhe podiam servir para o seu trabalho. Ora êle cita, frequentemente, um códice alcobacense, que não podia ser senão o Complutense ou Alcobacense [...] Nada diz do códice, cuja suposta cópia é o exemplar breve da Crónica dos Godos.516

Isto é, conforme o relato, Azevedo tenta dar mostra de que não haveria obra alguma nos arquivos de Alcobaça que se assemelhasse a uma versão breve da Crónica dos Godos. Caso contrário, Vaseu teria feito menção em seus próprios escritos. Em relação à credibilidade de Lousada Machado, ao transmitir um suposto exemplar breve da obra proveniente de Rezende (CG) a Brandão, Azevedo trabalha a ideia de ser, ele, um famoso falsário.517 Segundo apresenta,

[...] a Historia Brevis, ou exemplar resumido, não passa de uma composição, preparada por êste [Lousada Machado]518conhecido corrutor de documentos, e atribuida por êle a André de Rezende, para iludir a boa fé de António Brandão.519

Ou seja, ele, em seu argumento, atribui a Lousada Machado uma intenção de ludibriar Brandão com uma suposta falsificação.520

516

AZEVEDO, op. cit., 1942.p.180 Cf. Ibidem.p.174 518 Grifo nosso. 519 AZEVEDO, op. cit., 1942.p.177 520 A imagem de Louzada Machado como famoso falsário é recorrente em diversas publicações. Nesse sentido, no Diccionario Bibliographico Portuguez, é destacado que João Pedro Ribeiro, nas Observações Dipl., p.83;84, e nas Dissert. Chronolog., Tomo II, p.210, daria prova “... da má fé com que procedia o tão preconisado antiquario, accusado não menos que de fabricador e abonador de documentos apocriphos [...]” SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859.T.3,p.122.. Na mesma obra é citado outros autores que, da mesma forma pensavam sobre Louzada Machado, como: Fr. Joaquim de Sancto Agostinho, Fr. Manuel de Figueiredo e D. 517

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Quanto às suposições de ser a BHG uma falsificação, vale refletir à luz da análise das duas versões da Crônica dos Godos, independente de apontar qual das duas seja a primitiva. A falsificação em relação a uma obra só pode ser considerada quando há uma tentativa de reprodução dos mesmos elementos característicos de uma produção em outra, nesse caso, temporalmente deslocada, com o intuito de fazer com que ela se passe pela original. No caso das duas versões da crônica, não há tal situação, uma vez que ambas as versões são efetivamente diferentes, ainda que com passagens em comum. Uma não é igual à outra estruturalmente. Uma é breve e a outra é longa. Nesse sentido, o que temos não é uma falsificação de uma da outra. Ambas são obras legítimas. Cada uma com sua distinção temporal. Se houver falsificação, ela estará em relação ao período temporal, ou seja, um autor tentando fazer com que uma produção se passe por uma obra temporalmente incoerente. As semelhanças textuais viriam em virtude do referencial utilizado por cada um dos autores para elaboração de suas próprias obras. Azevedo, ainda, questiona, com alguma coerência, o apontamento feito por Lousada Machado, de ser a BHG uma edição de Rezende.521 Segundo Azevedo,

[...] Rezende deveria, ao menos, notar as relações evidentes dos dois cronicões, que por vezes se repetem, o que êle nunca faz, falando só do extenso, e guardando sobre o outro completo silêncio. Nunca cita o breve, a não ser quando êste repete o mais extenso, o que equivale a nunca o citar, pois serve-se, claramente, do extenso em partes, que faltam no breve.522

Assim, Azevedo tem por intento demonstrar que Rezende jamais teria tido acesso a tal versão breve, contrariando o que chegou a acreditar Brandão e Herculano.

Antonio da Visitação Freire de Carvalho. Cf. ibidem.p.122. 521 Acredita-se que Rezende teria copiado uma versão breve de um códice de Alcobaça. Cf. AZEVEDO, op. cit., 1942.p.177 522 Ibidem.p.177,178

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Azevedo aponta, ainda, que algumas passagens, verificadas na BHG, apresentam uma incoerência temporal, fruto da utilização de “[...] frases pretenciosas e de giro mais culto [...]”, não sendo, assim, condizente com escritos do século XII.523 Outro autor, Alfredo Pimenta,524 levantaria questionamentos relativos a algumas passagens da BHG. Buscaria, em seus apontamentos, construir a ideia de existência de possíveis anacronismos literários na versão breve. Nesse sentido, destaca que seus argumentos se baseariam em, pelo menos, quatro passagens da BHG. 1- “Rex Alfonsus Viriatus Christianus vel primus Hercules Lusitanus [...]”; 2- “[...] et a munda Fluuia ad betim... propagauit imperium”; 3- “Eodem Tempore obsidetur Olisipo ad Alfonso Henricio”, e “Castellum de Germanello [...] edificatur a Rege Alfonso Henriquio”; 4- “Obsidetur Castellum Ablantes, Abrantes vulgo”.

Segundo Pimenta, No primeiro trecho, temos ‘Hercules Lusitanus’; em documento nenhum medieval, o potugalensis se identifica com lusitanus. Tal identificação não é anterior a 31 de Agosto de 1481: ‘Alphonsus igitur rex Lusitanorum...’ (D. Garcia de Menezes, discurso ao Papa Sixto IV...). No segundo trecho, temos ‘munda Fluuia’, em documento nenhum da IdadeMédia se dá ao Mondego, o nome que Estrabão, Ptolomeo e Plínio lhe deram – Mundas, Monda, Moúnda, etc. – segundo os Mss. Os docs. medievais dizem sempre: Mondecus, Mondeco, Mondego, Mondegum. O termo Munda é erudito. 523

Cf. AZEVEDO, op. cit., 1942.p.183 PIMENTA, Alfredo. Migalhas Históricas, a chronica dos godos. Idade-Média (Problemas e Soluçoens). Lisboa: Edições Ultramar, 1946. 524

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No terceiro texto, há ‘Alfonso Henricio’, ou ‘Henriquio’; já, algures, provei que D. Affonso I nunca se chamou nem podia chamar-se Affonso Henriques; e nunca, ao tempo lhe chamaram assim. Em filho legitimo do Rei, o patronymico525 era um absurdo. No quarto texto, temos ‘Ablantes, Abrantes vulgo’; no séc. XII, a forma é Ablantes; assim está no foral que D. Affonso I lhe concedeo, em 1179; assim está na Confirmação de Affonso II. A forma que os documentos nos revelam a seguir, é Avrantes. Como se vê, por exemplo, no Liv. 4 de Affonso IV, a fl. 31, em documento de 20 de Agosto de 1338, e assim se mantém até meados do séc. XV, onde começa a apparecer a forma Abrantes. Temos, pois, Ablantes > Avrantes > Abrantes. Esta é que é a evolução historica da palavra. Quem compoz ou cozinhou a Brevis historia, ao deparar, na Chronica Gothorum, com o Ablantes, que lá está, quis esclarecer, e accrescentou: ‘Abrantes vulgo’! Este vulgo matou-o, porque, no séc. XII, não havia tal forma – nem sequer sonhada.526

Assim, pelo anacronismo dos termos utilizados, segundo a análise do autor, dentre outros, ficaria evidente a datação da versão breve como sendo de edição posterior à versão longa. Tal opinião se alinharia a já apresentada por Azevedo, relativo aos termos utilizados. Ao analisarmos as duas versões da Crônica dos Godos, verificamos que a CG, versão longa, que contém elementos estruturais de sacralização da figura régia. Também possui, em sua segunda parte, forte ênfase construtiva da imagem cavalheiresca de Afonso Henriques,527 o que permite concluir que 525

Sobrenome derivado do nome do pai. PIMENTA, op. cit., 1946.p.274,275 527 Características que provavelmente seriam oriundas dos Annales D. Alphonsi (ADA), antigos escritos, do século XII, provenientes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que tinham por fim dar ênfase a construção imagética de Afonso Henriques. As intervenções divinas nas ações do monarca, situações recorrentes em diversas passagens da CG, parecem servir como um fator que validava, pela devida providência, as investidas do monarca frente aos “inimigos”. Nesse sentido, em aspectos gerais, acabavam por funcionar como elemento legitimador da monarquia atuante. Assim, os ADA teriam sido utilizados, pelo compilador da CG, como referencial para construção da imagem de Afonso Henriques, sacralizando suas ações e construindo, em sua figura, um ideal cavalheiresco. Estas características não são encontradas na BHG, o que nos 526

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foi produzida, provavelmente, em um momento de proximidade relacional existente entre a casa produtora e a monarquia referenciada. Pelas características que apresenta, conforme destacamos na nota 41, fica mais próxima à possibilidade de ser, a CG,uma obra oriunda de casa religiosa. Possivelmente do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. O fato de encontrarmos, na CG, passagens comuns de serem verificadas em outras obras dos séculos XII-XIII, já demonstrado anteriormente, que serviam como uma espécie de referencial às produções do período, e, portanto, comuns a elas528nos direciona à hipótese de ser, ela, coerente como possível produção desse recorte temporal. São passagens que não aparecem na BHG, e que de alguma forma funcionam como elementos característicos designadores de uma particular conjuntura produtiva. Já em relação à BHG, a falta de elementos de sacralização da figura régia nos dá indícios de que o autor, provavelmente, não teve a intenção de dar ênfase à construção imagética do monarca de forma a sacralizá-lo. Assim, seríamos direcionados a duas possibilidades: ou a casa produtora não era religiosa, não partindo da linha que se oriente a uma construção de questões destinadas à sacralização da figura régia; ou, se de casa religiosa, não haveria um bom relacionamento entre esta e o monarca referenciado. Nesse sentido, penso ser mais coerente a primeira hipótese, se levado em consideração os argumentos até então trabalhados. Salientamos, que, com os pressupostos apresentados, não busco enrijecer os fatores motivadores da construção imagética do monarca, mas sim, tentar traçar uma linha que aproxime as características estruturais das obras de suas possíveis casas produtoras. Temos em mente que tais proposições são considerações primárias, mas que buscam, justamente, responder, de alguma forma, algumas questões estruturais encontradas em ambas as versões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

leva a crer que provavelmente seu redator não tenha feito uso dos mencionados ADA, narrando somente as ações militares do monarca portucalense. 528 Cf. AZEVEDO, op. cit., 1942.p.184

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Levando em consideração todos os argumentos apresentados, busco reforçar o grupo dos que defendem a hipótese de ser a CG uma produção coimbrana dos séculos XII-XIII; portanto, a versão primária da Crónica dos Godos. Já a BHG, seria uma composição feita posteriormente, provavelmente entre os séculos XIV e XVII, oriunda de casa não religiosa.529 Penso na hipótese de não ser a BHG uma falsificação da CG, haja vista a presença dos dados que somente ela possui, mas sim, uma produção que se utilizou da versão longa, entre outras fontes, 530 como referencial para estruturação de uma nova obra, ainda que contivesse muitas passagens em comum. Devo destacar que a discussão feita até então faz parte de um debate extremamente complexo, que perdura desde o século XVIII até os dias atuais. No entanto, alguns autores que trabalham a Crónica dos Godos, ou a ela fazem menção, negligenciam tal problemática, levando em consideração que a CG é a versão primeira da obra, sem qualquer debate acerca do tema. Busco, com os poucos apontamentos feitos, não, dar fim a tal questão, pois estaria longe disso, mas destacar que tal problemática pode fazer a diferença no destino da pesquisa, e para além, animar os pesquisadores para uma questão ainda não fechada, e que merece uma atenção especial.

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Gouveia apresenta como sendo obra do próprio Louzada Machado, produzida no século XVII. No entanto, não deixa claro como chegou a tal conclusão. Cf. GOUVEIA, Mário. O limiar da tradição no moçarabismo conimbricense: os “Anais de Lorvão” e a memória monástica do território de fronteira (séc. IX-XII). Medievalista. Lisboa,n.8, Jul 2010.p.28. Disponível em: Acesso em: 08 Mar. 2014. 530 A utilização de outras fontes, por exemplo, ganharia força pelo fato de usar outras datas como referenciais para menção de alguns eventos ou, mesmo, para as “Eras” que se apresentam na CG.

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DA REPRESENTAÇÃO531 E ESTIGMATIZAÇÃO532 DOS JUDEUS NA HISPÂNIA MEDIEVAL (TORTOSA, 1413-4) Jordânia Lopes de Freitas533

INTRODUÇÃO

Os judeus ao longo da história sofreram diversos ataques direcionados à sua religião. No período baixo medieval esta atitude hostil foi intensificada por parte da comunidade cristã, que os considerava infiéis, pecadores, avarentos e praticantes de usura. A questão religiosa vai ao encontro de problemáticas que tangenciam o campo político, o econômico, o social e o cultural. Em alguns

531

Utilizaremos a Nova História Cultural como referencial teórico. Esta corrente historiográfica só começou a ser utilizada pelos historiadores culturais no final da década de 80. Conforme Bourdieu (1999, p.179), a religião entendida como um sistema simbólico de comunicação e de pensamento é uma linguagem que torna uma força na sociedade, já que apresenta a meta ordenar o mundo por meio da constituição de grupos. No sentido desta linha de debate poder e religião, a institucionalização do poder e os conflitos ocasionados por este estão presentes na complexidade da esfera religiosa. Um importante conceito a ser trabalhado neste artigo é o de Representação Social. Segundo Sandra Pesavento, as representações substituem o mundo real e mesmo sendo “construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência”. Esta substituição do mundo por sua representação não significa que temos aí uma cópia fiel da realidade, “masuma construção feita a partir dele”. Sendo assim, a categoria das representações é a da “verossimilhança e da credibilidade, e não de veracidade”. (PESAVENTO, 2004, p. 39-41). Chartier (1987, p. 17) esclarece que “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam”. 532 O termo estigma foi criado e utilizado pelos gregos para designar os “sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”. Os sinais poderiam ser feitos com fogo ou cortes pelo corpo da pessoa e indicavam que ela havia sido escravizada, era um criminoso ou mesmo um traidor. Como consequência disso, a pessoa marcada, literalmente, era considerada poluída e deveria ser evitada, principalmente, em lugares públicos. Durante a Era Cristã, “dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais da graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal”. Nesse sentido, o conceito de estigma precisa ser trabalhado em conjunto com o de identidade social, o “alinhamento grupal e a identidade pessoal, o eu e o outro”, levando-se em consideração “o controle de informação, os desvios e o comportamento desviante, detendo-se em todos os aspectos da situação da pessoa estigmatizada [...]”. Ainda, é importante frisar que ao utilizarmos o termo “estigma em referência a um atributo profundamente depreciativo” se estabelece, “na realidade, uma linguagem de relações e não de atributos” (GOFFMAN, 1982, p. 11-4). 533 Mestranda do Programa de Pós-graduação em História das Relações Políticas e Sociais (PPGHIS\UFES). Bolsista do CAPES. E-mail: [email protected]

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momentos, este antijudaísmo veio à tona e as comunidades judaicas foram perseguidas e atacadas, como ocorreu nos reinos de Castela e Aragão no final do século XIV. Tendo em vista esse contexto de conflito entre culturas e religiões diversas levantamos a problemática: qual seria o interesse da Igreja Católica, no reino de Aragão, ao organizar um novo debate (Tortosa) entre cristãos e judeus no início do século XV? O interesse de uma possível conversão em massa de judeus, para alguns setores da Igreja e para os monarcas hispânicos serviria, de fato, para uma reafirmação da identidade cristã que se encontrava em crise? 534 Procuraremos analisar a maneira pela qual a Igreja Católica, por intermédio das suas campanhas contra os judeus colocou obstáculos na interação entre judeus e cristãos. Além do mais, a Igreja buscou isolar ainda mais os judeus ao insistir em preservar a comunidade cristã de toda “contaminação” proveniente dos meios judaicos. Algumas vezes, podemos perceber a tentativa de estimular e intensificar a conversão forçada de judeus ao Cristianismo. Em 1391, no contexto das perseguições, um elevado número de judeus das comunidades aragonesas e castelhanas foi obrigado a escolher entre o batismo ou a morte. A juntar-se a toda essa adversidade para as comunidades judaicas nos reinos ibéricos, promulgou-se, em 1415, a Bula de Benedito XIII cujo teor corroborou para o status construído do Judaísmo como religião “inferior” e desprezível tanto para o monarca castelhano quanto para o aragonês, assim como para alguns setores da Igreja. Analisaremos a disputa judaico-cristã de Tortosa535 (1413-4), fazendo uso da Análise do Discurso,536 promovida pelo monarca de Aragão e pelos prelados cristãos, com o apoio de alguns 534

A identidade cristã se encontrava enfraquecida por uma crise instalada no interior da Igreja haja vista a disputa entre os três papas rivais (Gregório XII, Benedito XIII e João XXIII), bem como a existência de críticas ao poder secular/temporal adquirido pela Igreja e seu distanciamento dos valores apostólicos. 535 Importa destacar que o relato cristão do Debate de Tortosa, em sua versão original, foi redigido por um escrivão papal na ocasião do debate. Já o relato judaico, foi escrito em hebraico por Bonastruc Demaistre na primeira metade do século XV. O editor Solomon ibn Verga fez alguns acréscimos no princípio do século XVI. 536 Com o objetivo de compreender os mecanismos discursivos, utilizaremos como metodologia a Análise do Discurso, que pretende problematizar as formas de leitura de um objeto e seu sujeito, considerando-se as divergências características da linguagem enquanto meio de enunciação de ideias. Conforme Pinto (1999, p. 7) a Análise do Discurso visa à explicação e avaliação crítica das condições de produção, circulação e consumo dos sentidos relacionados aos discursos produzidos na sociedade. Dessa forma, a Análise do Discurso entende que a linguagem não é neutra, mas carregada de sentido e significado. Para alcançar os princípios particulares de uma ideia, seja falada ou escrita, é fundamental comprometer-se em elucidar seu sentido simbólico e político. Por sua vez, o discurso religioso (ORLANDI, 2006, p. 239-240), tipo discursivo no qual se insere o Debate de Tortosa, possui como característica principal a autoridade do sujeito responsável por dar voz

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judeus conversos, visando conferir maior credibilidade à identidade cristã a custo da estigmatização dos judeus e sua religião. Os relatos sobre a disputa de Tortosa, tanto do lado cristão quanto do judeu são fontes importantes, para se chegar a uma compreensão mais apurada das discussões entre as partes envolvidas. O momento foi marcado pela discussão de questões cruciais para Judaísmo e Cristianismo a respeito da função do Messias, o método utilizado para a compreensão das Escrituras e, por conseguinte, a representação formulada a respeito de Deus. Juntamente desses aspectos teológicos, encontram-se também os relacionados às angústias e ao afinco/tenacidade dos debatedores judeus, dispostos a defender sua cultura, religião e, principalmente, sua preservação enquanto grupo étnico e religioso.

A prática de debates promovidos pela Igreja Católica remonta a séculos, sendo que na Península Ibérica os debates começaram no século VI. No entanto, o debate entre cristãos e judeus acontecido na cidade catalã chamada Tortosa (1413-14) adquire maior envergadura não só pelo número de pessoas envolvidas, mas também pelo tempo de duração (quase dois anos) e seu alcance. 537 A disputa foi chefiada por Benedito XIII e teve como objetivo principal a conversão geral dos judeus ao Cristianismo. O cerne da discussão, entre judeus e cristãos, consistiu na retomada de boa parte dos argumentos anteriormente desenvolvidos no debate de Barcelona (1263), por exemplo: a Trindade, o Messias, o Talmude 538(com maior ênfase no conteúdo da Agadá). ao texto, que se configura além dos participantes do debate, assentando sua premissa na orientação divina. O discurso religioso aparece, então, mistificado e carregado de simbolismo. 537 Podemos listar os seguintes participantes do debate no lado cristão: o converso Jerônimo de Santa Fé (cujo nome original era Yoshua ha- Lorqi), Pablo de Santa Maria (bispo de Burgos, que antes de sua conversão se chamava Salomon ben Yishaq ha- Levi). Para representar as comunidades judaicas do Reino de Aragão, Catalunha doze rabinos atenderam ao convite de Benedito XIII (Papa Luna): R. Matityahu ben Mosheh ha-Yishari, o médico e exegeta R. Zerahiah ha-Levi (Ferrer Saladín) de Zaragoza, R. Astruc ha-Levi de Alcañiz, R. Yishaq Albo de Daroca y R. Bonjuda Yahazel Hacaslari de Gerona; além destes tomaram parte no debate também R. Mose ibn Abas (Abenabes) um dos líderes da comunidade de Zaragoza, Profiat Duran el Efodi (Profiat Durán se converte e depois foge e retorna ao Judaísmo); Yishaq ben Mosheh haLevi (depois de converso passou a chamar-se Honoratus de Bonafide), o poeta Salomon Bonafed e Dom Vidal de Caballeria, filho de Dom Benvenisti de Caballeria (morto em 1411). Dom Vidal se converteu ao Cristianismo durante a disputa. 538 O Talmude é também chamado de Lei Oral e sua compilação levou séculos para ser terminada. São duas versões escritas em dois locais e em épocas próximas. A Mishná é o segundo nível; o primeiro é a Bíblia hebraica ou Antigo

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Precisamos problematizar o termo debate ao se levar em consideração as condições sob as quais se desenvolveram. Os organizadores não proporcionaram as mesmas condições para ambas as partes. Exemplo disso aconteceu no debate de Paris (1240) entre cristãos e judeus em que prevaleceu a forma de interrogatório. Os participantes judeus (rabinos e sábios talmúdicos) foram colocados separadamente em salas para que pudessem prestar os devidos esclarecimentos a respeito do teor do Talmude. Com relação ao debate de Tortosa, os judeus tinham que apenas responder aos questionamentos de Jerônimo de Santa Fé; sendo vedada a eles a oportunidade de réplica. Para Serrano, os polemistas cristãos queriam que os judeus reconhecessem falha na própria interpretação que faziam do Talmude, no que respeita ao sentido messiânico, ao substituírem a palavra dos Profetas pelos ensinamentos dos sábios de Israel (SERRANO, 1993, p. 8). Segundo Maccoby (1996, p. 94), o método empregado no debate não privilegiou a discussão, mas a instrução. Isso pode ser confirmado a partir das palavras do próprio Benedito XIII: “Eu não vos fiz virem aqui para provar qual de nossas religiões é a verdadeira, pois para mim é perfeitamente claro que a minha é verdadeira e que a vossa está ultrapassada”. A representação negativa e o estigma (incrédulos, obstinados em rejeitar a verdade, deicidas) que já havia sendo construída sobre os judeus há muito tempo tomou novo impulso com a articulação de governantes e prelados cristãos no Debate de Tortosa.539 Como argumenta Montenegro (1998, p. 37) é preciso evitar os exageros (simplificação abusiva) ao se tratar da representação estereotipada de judeus na Idade Média uma vez que outros grupos sociais excluídos recebiam uma rotulação similar a dos judeus. Entretanto, no período baixo-medieval, ficou comprovado que o modelo depreciativo

Testamento; o terceiro nível são as duas Guemarot. A primeira parte chama-se Mishná e foi organizada somente no final do séc. II, por R. Iehudá Hanassi. Na sequência foi escrita a Guemará (palavra aramaica que significa concluído), que se divide em Guemará da Palestina e Guemará da Babilônia. Em decorrência disso se criara dois Talmudim: o de Jerusalém e o da Babilônia, criados da junção da Mishná com as duas Guemarot. A Mishná ("repetição") é a totalidade da tradição oral que inclui o Midrásh, Halahá e Agadá. A Guemará contém uma análise e comentário detalhado da Mishná e implica toda a exposição estudada pelos chachamim (sábios) contida no Talmude. 539

Conforme Montenegro (p. 26) é importante esclarecer que a representação dos judeus que se fez na Idade Média está relacionada ao aspecto religioso e não étnico. Os traços que definem o judeu seriam adquiridos e não hereditários. Havia uma demasiada preocupação em retratar a questão teológica, em especial, a ideia de salvação

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creditado aos judeus superou o de outros grupos sob marginalidade social ou religiosa, com base na maior homogeneidade de distintas áreas geo-históricas. 540 Na disputa de Tortosa os dois lados envolvidos se julgavam “vencedores”. Como ressalta Feldmam, é importante destacar que a minoria judaica estava sujeita às consequências de sua debilitada condição sociopolítica. Essa situação foi agravada pelo contexto econômico, político e social da Europa Ocidental, onde havia um revigoramento das cidades a partir do renascimento comercial e urbano. Nesse sentido, o clero recebia o apoio da burguesia cristã, que procurava ficar livre dos concorrentes judeus. Na dianteira do processo, os reis estabeleceram uma aliança com a burguesia cristã contra a nobreza com o objetivo de, novamente, conseguir centralizar seu poder. Em troca, os burgueses contribuem com empréstimos, doações e apoio para a concretização de um Estado Moderno e centralizado, com a criação de um exército mercenário para destruir os senhores feudais. Com o intuito de retribuir o “favor” dos burgueses, os reis apoiam seus anseios em afastar os judeus da economia e também da sociedade. A questão religiosa estava relacionada a uma problemática mais ampla (FELDMAN, 2002, p. 3). A intolerância de cunho religioso se apresentou sob uma forma inusitada, cujo exemplo gritante são as perseguições de 1391. Neste episódio se superou a esfera das disputas teológicas entre cristãos e judeus e se gerou a desestruturação cultural e material das comunidades judaicas hispânicas. No ano de 1391, houve uma onda de perseguições e massacres de judeus nas comunidades judaicas de Castela, episódio que também afetou as comunidades das cidades de Aragão e Catalunha. Os camponeses e artesãos se sentiram estimulados pelas pregações de religiosos cristãos e deram ensejo a superstições, atacando regiões no campo e depois nas cidades. Aqueles que se recusavam aceitar a conversão e batismo estavam sujeitos a uma morte trágica. Famosas comunidades judaicas foram destruídas, a exemplo da comunidade de Gerona, onde nasceu Nahmânides (WOLFF, 1971). Nessa tentativa de homogeneização da sociedade, por meio da desqualificação da religião judaica, buscou-se integrar os convertidos em 1391 e também os judeus que possivelmente iriam se converter 540

É fato que a tolerância aos judeus na Europa já vinha sofrendo investidas fortes desde as Cruzadas, com massacres de judeus durante a 1ª Cruzada (1095). À medida que avançou a Reconquista, nos séculos XII ao XV, o diálogo entre judeus e cristãos tornou-se cada vez mais difícil, pondo fim ao equilíbrio pluralista que teve lugar na Península Ibérica.

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nesta campanha. Para o historiador Suárez Fernandez, a obsessão pelo desaparecimento do Judaísmo na Península Ibérica, que fazia parte do plano de homogeneização religiosa, somente foi alcançado definitivamente em fins do século XV com a expulsão dos judeus (SUÁREZ FERNANDEZ, 1992, p. 10). Na versão judaica do debate fica aparente uma atmosfera de terror. Os “delegados” judeus tiveram motivo suficiente para temer por suas vidas. Jerônimo chegou a ameaçar os judeus com um processo de “heresia”541 por não levarem o Talmude suficientemente a sério. Esta mudança de enfoque é reveladora, visto que no debate de Paris a crença judaica no Talmude é que fora declarada “herética” (MACCOBY, 1996, p. 97). Faz-se necessário esclarecer o contexto político, social e religioso à época do debate. No âmbito religioso, Benedito XIII não era o único papa da igreja Católica, pelo contrário, disputava o posto ao pontificado em Avignon (França) com mais dois rivais. Conforme Maccoby (1991, p. 101), a realização do debate foi vista por Benedito XIII como uma boa chance para conquistar o apoio e aprovação dos eclesiásticos, e garantir sua manutenção como papa. No entanto, todas suas expectativas foram frustradas a partir do Concílio de Pisa, em 1409, em que ficou acordado a nomeação de Alexandre V. Em 1414, foi realizado um novo concílio (Constança), que estabeleceu a demissão dos três papas rivais (Gregório XII, Bento XIII e João XXIII) e, nomeou Martinho V como sumo pontífice da Igreja. Dessa forma, haveria somente um pontífice universal, cujo poder temporal ficaria estabelecido, de fato, em Roma. Outra manobra de Benedito XIII deu-se com a aproximação de Fernando de Antequera, --- era membro dacasa real castelhana de Trastâmara ---, que foi indicado para o trono vacante de Aragão, em 1410, passando a se chamar Fernando I. Esta união culminou no estabelecimento de uma significativa aliança política entre Igreja e governo contra os judeus. A partir daí houve uma intensificação das represálias aos judeus. O dominicano Vicente Ferrer, juntamente, com Pablo de Santa Maria (bispo de Burgos) foram 541

Durante a Idade Média, as opiniões judaicas não estavam sujeitas à Inquisição. A queima dos exemplares do Talmude, durante o Debate de Paris, foi posteriormente reconsiderada pela parte cristã, que decidiu revogar esse procedimento por ser ilegal.

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responsáveis por promover as ordenanças de Valladolid de 2 de janeiro de 1412 em que havia diversas regras prejudiciais aos judeus. Essas leis consistiam em 24 proposições acerca da regulamentação das relações sociais entre cristãos e judeus. Em decorrência da união de Castela e Leão sob um monarca, embora os reinos permanecessem separados, as leis de Valladolid eram válidas tanto em Castela quanto em Leão. Em Aragão, Fernando I procurou estabelecer ordenações (1412) parecidas com as castelhanas contra os judeus (BEINART, 1992, p. 176). Algumas das regras prejudiciais aos judeus especificadas nas ordenanças foram: confinações em bairros separados; homens teriam que deixar as barbas crescerem; judeus não poderiam ostentar o título de dom; médicos judeus não poderiam dar atendimento a cristãos; entre outros. No debate de Tortosa, assim como já ocorrera no de Barcelona, o objetivo era desqualificar o Talmude e aproveitar os seus estratos anteriores (escritos na época de Jesus, ou antes), ou seja, procurava-se parte da literatura não contaminada pelo rabinismo. A intenção era demonstrar que o Cristianismo era a “verdadeira concretização do Judaísmo inter-testamental” (MACCOBY, 1996, p.33). Logo, os contendores cristãos não almejavam a destruição do Talmude já que acreditavam que ele poderia tornar-se uma fonte da verdade cristã. O ponto central da disputa de Tortosa foi, portanto, o Talmude.542 A partir dele, foram discutidas variadas temáticas relacionadas às duas religiões, por exemplo: Jesus, o pecado original e seu castigo, a redenção universal, a morte do Messias como expiação do pecado de Adão, as causas da dispersão judaica, entre outras. No entanto, faz-se necessário esclarecer que o objetivo do Talmude era criar uma regulamentação da vida judaica no período pós-destruição do 2º Templo. O propósito almejado com a escrita do Talmude (Lei Oral) não era combater ou sequer denegrir o Cristianismo. O rabino Charles Barouh Abraham argumenta que houve certa confusão, por parte dos prelados cristãos no Debate de Tortosa, ao negarem alguns ensinamentos do Talmude por contrariar os preceitos das Sagradas Escrituras. Segundo Abraham (2008, p. 3), o próprio Jesus viveu e ensinou de 542

Em Tortosa, muitas das acusações contra o Talmude foram aproveitadas do Debate de Paris liderado por Nicolas Donin (o representante do lado cristão). Jerônimo de Santa Fé somente incrementou alguns argumentos antigos. Sendo assim, o debate de Tortosa procurou explorar as posições dos dois debates anteriores de uma maneira contraditória, a saber: fazer uso do Talmude com o objetivo de favorecer o Cristianismo e, ao mesmo tempo, condená-lo como blasfemo, anticristão e obsceno.

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acordo com o sistema ético e moral inerente à Torá. Isso significa que não havia qualquer incompatibilidade com o que posteriormente foi propalado pelo Talmude. Vai mais além ao afirmar que a fé e a convicção, ou ainda a fé na que nasceu e viveu Jesus foi essencialmente um sistema ético e moral: Entonces Jesús se dirigió a la gente y a sus discípulos y les dijo: “En la cátedra de Moisés se han sentado los escribas y los Fariseos. Haced, pues, y observad todo lo que os digan” (Mateo, 23:1-3a). Aqui, de forma clara e inequívoca, Jesús aboga no sólo por la observancia de la Torah she-bi-khtav, la Torah escrita sino, específicamente, por la Torah she-be-al-peh, es decir, la Torah oral, la “tradición de los ancianos” enseñada por los escribas y Fariseos, por aquellos que han heredado la autoridad de Moisés y se han sentado en la “silla de Moisés” (ABRAHAM, 2008, p. 2).

Como já mencionado anteriormente, uma das ênfases da interpretação na disputa de Tortosa foi o papel das Sagradas Escrituras (também chamada de Revelação). As fontes primárias usadas pelos polemistas cristãos foram, basicamente, o Antigo e o Novo Testamento. Os argumentos retirados do Antigo Testamento seguiram uma linha de raciocínio comum à tradição cristã construída de maneira sólida. No entanto, este fato não significou a inexistência de erros cometidos pelos polemistas. Primeiramente, Jerônimo tenta provar a “veracidade” da fé cristã utilizando, muitas vezes, argumentos que não dão subsídio para tanto. Esta estratégia, de um modo geral, faz com que se desacredite de qualquer razão enunciada, já que se busca colocar no mesmo plano proposições cuja insuficiência se apresenta de forma clara. O segundo defeito apresentado por Jerônimo torna-se apreensível quando se percebe demasiada obstinação acerca de alguns episódios em que seria mais prudente ceder por questão de diplomacia. Como nos esclarece Pacio Lopes:

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En una discusión tan larga como ésta, es muy difícil no excedesse alguna vez en puntos secundários, sobre todo siendo por vía oral, en la que por necesidad se lanzan afirmaciones que uno no se ha parado antes a considerar debidamente. Sin embargo, Jerónimo jamás retrocede ni rectifica, sino es muy veladamente. Parece olvidar que las oportunas retiradas contribuyen tanto a la victoria de un ejército como sus avances. Sin duda, juega en esto un papel importante el amor propio. Por vía de ejemplo, citaremos la acusación de herejía, que mantiene tenazmente contra los judíos a propósito del texto talmúdico que afirma haber querido Dios hacer Mesías a Ezequías, impidiéndoselo la virtude de la justicia, al alegarle que no habiendo hecho Mesías a Daniel, que tanto le alabó, menos debia hacer a Ezequías, que ni siquiera le hizo un Canto por la victoria sobre Senaquerib. Si lo que se busca no es humillar, sino convencer y convertir, lo lógico era abstenerse de una acusación que tanto hiere, tratándose de una cuestión accidental que nada influye en el processo. Esto aún tratándose de herejía, cosa no clara, ni mucho menos, ya que puede admitirse perfectamente en el sentido de un decreto divino condicional: Ezequías será el Mesías si hace ese Canto; no lo será si no lo hace, porque el hacelo Mesías en tal caso sería contra la justicia y la equidad (PACIO LOPES, 1957, p. 93).

Por fim, podemos destacar a falta de cordialidade e o excesso de dureza para com os judeus. Preocupado em provar suas hipóteses, ele se baseia tão somente na razão, deixando de lado, por completo, o lado humano dos judeus participantes da polêmica. Mas, é preciso levar em consideração que Jerônimo era um recém convertido, o que potencializava essa característica.

O historiador Fernando Suarez Bilbao faz algumas ponderações acerca do final da disputa. Em parte, não se pode desconsiderar que o debate de Tortosa teve um elevado número de batismos; o que figurou como um êxito pessoal de Benedito XIII. Porém, não se conseguiu uma “solução final” para a

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questão uma vez que à medida que avultavam as pressões das autoridades religiosas e poderes cristãos, crescia entre os judeus a capacidade de enfrentar desafios impostos à concretização de suas crenças. Assim, Bilbao resume a questão: “[...] una persecución que no logra la extiparción del adversario contra quien va dirigida, produz en ese mismo adversario defensas que le hacen superior a lo que antes era; la persecución depura eliminando los elementos débiles” (2003, p. 464).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se fazer um balanço das consequências do Debate de Tortosa, podemos afirmar que elas foram bastante negativas para as comunidades judaicas hispânicas. Um considerável número de judeus se desesperou e decidiu enfrentar as pias batismais. Jerônimo de Santa Fé chegou a defender a retirada de algumas passagens do Talmude. Entretanto, a intenção de Benedito XIII, bem como alguns setores da Igreja, em transformar o Cristianismo um símbolo de identificação “nacional” dos habitantes da Hispânia não surtiu o efeito esperado. Para Serrano, a existência da minoria judaica representava um problema tanto para a Igreja como para a Monarquia visto que a primeira queria a exclusividade religiosa ao passo que a outra desejava conseguir a unificação dos Reinos hispânicos. Os monarcas cristãos tenderam a confundir os interesses de seu reino com os seus próprios, buscando-se a equiparação entre religião e comunidade política; o que levou ao pressuposto de unidade e homogeneidade dos súditos (SERRANO, 1993, p. 19). A Cristandade, portanto, estava imersa em um problema de cunho sociopolítico, religioso e cultural, que estava além de sua capacidade de deliberar juntamente das autoridades laicas cristãs. Nesse sentido, as medidas de caráter formal, --- que se configuravam em leis e ordenanças ---, bem como as de cunho simbólico --- sendo o preconceito e estereótipo seu melhor exemplo --- revelaram-se pouco eficaz para a “solução” do conflito envolvendo religiões diversas. Dessa forma, a solução que a Igreja Católica almejava conquistar verificou-se muito distante da realidade. A situação foi em parte

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contornada já que novas ondas de preconceito direcionadas às crenças e à religião judaica acometeriam a província de Toledo (Castela) em 1449.

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CONVIVÊNCIA E CONFLITO RELIGIOSO NA ÁFRICA DO NORTE: ENTRE TÁTICAS E ESTRATÉGIAS José Mário Gonçalves543

A presente comunicação é parte da minha pesquisa de doutorado, intitulada convivência, tolerância e intolerância na África Romana: identidade e alteridade no epistolário de Agostinho de Hipona (354-430), que escrevo sob orientação do Dr. Sérgio Alberto Feldman (Departamento de História/UFES). Como indica o título, utilizo como fonte a correspondência que Agostinho de Hipona trocou com inúmeros interlocutores, um corpus composto por 307 cartas, incluindo não somente as cartas do bispo de Hipona, mas também a dos seus correspondentes (ENO, 1999). Ao analisar tais cartas, o meu objetivo é verificar como conviviam cotidianamente os diversos grupos religiosos da África Romana, considerando o contexto dacrescenteintolerânciada Igreja e do Impérioemrelação aos diversos grupos religiosos de então. Sabemos que o favorecimento do Cristianismo por parte do Imperador Constantino (306-337), e seus sucessores (à exceção de Juliano), possibilitou um novo arranjo nas relações entre Império e Igreja, invertendo a posição que os cristãos ocupavam nos séculos anteriores. Aqueles que antes clamavam pelatolerânciadasautoridades,assumem agora uma nova posição e uma nova atitude, passando a fomentaraperseguiçãoaospagãos,judeus,cismáticoseheréticos. O Império, por sua vez, passa a interferir nas disputas internas do Cristianismo e na luta deste contra o Paganismo. Com Teodósio I (378-395), o Cristianismo torna-se a religião oficial do Império e os pagãos e hereges passam a ser alvo de franca perseguição. Uma série de medidas legais proíbem o culto aos deuses, determinam a destruição de templos e instituem punições que vão da aplicação de multas à execução dos transgressores (SILVA, 2006).

543 Doutorando em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e professor no programa de Mestrado Profissional em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória. E-mail: [email protected]

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Entreosteólogos

e

bispos,nãofaltaramaquelesqueprocuraramlegitimaranovasituaçãoedefenderozeloimperialemfavor

da

Igreja oficial. Agostinho foi um dos que, no exercício do seu episcopadoemHipona, na África,entrouemconflitocomheregesecismáticosesetornouumdosprincipaisdefensoresdaortodoxiacatóli caedaintervençãoimperialemquestõesreligiosas.Para

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do

episcopadodeAgostinho,representavaamaiorpartedoCristianismonaregião (FREND, 2002). Contraessaameaçaàhegemoniacatólica,Agostinhoinsistenaafirmaçãodequeasalvaçãosomentepod eserencontradadentrodaIgreja

oficialequetodososquepregamdiferentedissodevemserproibidosdefazê-

lo.AsleisdoImpériocontraosheregesecismáticosdevemserfirmementecumpridas,mesmoqueousodaforças ejanecessário. A argumentação agostiniana fez uma longa e triste história no seio da cristandade ocidental. O apelo ao uso da força contra dissidentes em matéria de religião tornou-se lugar-comum nos séculos que se seguiram. O saldo de intolerância justificado e gerado por suas teses é enorme e não deve ser minimizado. Em minha pesquisa de Mestrado, analisamos os discursos agostinianos para verificar de que maneira ele procurou justificar a violência contra os dissidentes da ortodoxia católica (GONÇALVES, 2009). Agora,

em

minha

pesquisa

de

doutorado,procuroquestionaraideiadequeaexistênciadeumdiscursointolerantecorresponda,sempre,auma

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práticaintolerante. A escolha do epistolário agostiniano se justifica, uma vez que se trata de um gênero literário que nos permite acessar, de maneira privilegiada, a vida cotidiana: Ao ter acesso a esses fragmentos, o historiador espia por uma fresta a vida privada palpitante, dispersa em migalhas de conversas a serem decodificadas em sua dimensão histórica, nas condições socioeconômicas e na cultura de uma época, na qual público e privado se entrelaçam, constituindo a singularidade do indivíduo numa dimensão coletiva (MALATIAN, 2009, p. 200).

Estas fontes indicam que a intolerância é sempre contra balança da por algum nível de tolerância, que torna possível a convivência entre grupos dissidentes que não somente disputam, mas também compartilham o mesmo espaço e têm interesses comuns. O cristianismo imperial não conseguiu se impor imediatamente e completamente emtodaaextensãodoImpério, pois as dissidências, sob diversas formas: pagãos, judeus e hereges continuaram a existir, apesar dos esforços do Império e da Igreja para enquadrá-los dentro dos limites da recém-estabelecida ortodoxia. De grande importância para o meu trabalho é o conceito de apropriação como aparece na obra de Michel de Certeau (1994). Em A invenção do Cotidiano, Certeau observa que diante de uma situação de dominação, acontecem práticas cotidianas que revelam uma apropriação e reapropriação, por parte dos dominados, daquilo que lhes é imposto. Tomando como exemplo o caso dos indígenas frente a colonização espanhola, afirma:

Mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes esses indígenas usavam as leis, as práticas ou as representações que lhe eram impostas pela força ou pela sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam com elas outras coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as ou transformandoas (isto acontecia também), mas por cem maneiras de empregá-las a serviço de regras, costumes ou convicções estranhas à colonização da qual não podiam fugir. Eles metaforizavam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro

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registro. Permaneciam outros, no interior do sistema que assimilavam e que os assimilava exteriormente. Modificavam-no sem deixá-lo. (CERTEAU, 1994, p. 94-95)

Também faço uso da distinção que Certeau faz entre estratégias e táticas. As primeiras são construídas a partir de cima e pressupõem um lugar de poder, de onde se pode gerir as relações com um outro que lhe é exterior e que é visto como alvo ou ameaça. A tática, ao contrário, é a ação calculada a partir de baixo, sem autonomia e que age no campo que lhe é imposto, controlado pelo outro. Por isso, aproveitas as ocasiões, age de acordo com as circunstâncias, pois não lhe é dado construir um projeto global. Vive, astuciosamente, daquilo que lhe é dado. Enquanto a tática é a arte daquele que não tem poder; a estratégia é organizada a partir do pressuposto do poder. Estas elaboram sistemas e discursos totalizantes, privilegiam o espaço. Aquelas procuram usar com habilidade o tempo, as oportunidades que surgem e que lhe podem ser favoráveis (CERTEAU, 1994). Na África do Norte, nos tempos de Agostinho, as estratégias pertenciam ao poder estabelecido na Igreja e no Império. Era esse poder, localizado nestas instituições, que determinava o regime de verdade que validava certos discursos em detrimento de outros (FOUCAULT, 1979). Agostinho, como bispo católico, falava em nome dessa verdade e seu discurso visava esclarecer e estabelecer o lugar e o dever de cada um. Aos “outros” - hereges, pagãos, judeus – restavam as táticas, as apropriações e reapropriações desse discurso em seu próprio favor, tornando possível, ainda que de forma precária, a tolerância e a convivência face aos discursos e práticas intolerantes da Igreja e do Império. Na África Romana a realidade, era de intenso conflito religioso. Antes do governo de Constantino, as perseguições aos cristãos deixaram marcas profundas, tanto no número de mártires, quanto no número de traditores544 que produziram. Após a Cristianização do Império, a Igreja cristã se viu dividida entre católicos e donatistas, num conflito que durou até a chegada dos árabes. 544 Traditores eram os cristãos que, durante a perseguição de Diocleciano (284-305), entregaram às autoridades os livros e os utensílios sagrados para escapar do martírio.

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Além do cristianismo, compunham o cenário religioso da África Romana o judaísmo, o culto às divindades romanas e, é claro, os cultos às divindades autóctones (MAHJOUBI, 2010). Este conjunto de crenças e cultos coexistindo num mesmo espaço geográfico e cultural no qual apenas uma delas – o cristianismo católico – tem o reconhecimento oficial era, fatalmente, campo para o conflito. Entretanto, era necessário também conviver, pois, afinal de contas, as pessoas precisavam trabalhar, constituir família, administrar os negócios públicos. Como conviver, então? Como poderiam aqueles que não pertenciam a Igreja oficial enfrentar a intolerância e driblar as interdições que pesavam sobre eles por causa de sua condição de “pagãos”, “hereges” ou “cismáticos”? Que táticas, no sentido acima definido, podiam ser utilizadas a fim de permitir a estes grupos conviver e sobreviver? Como exemplo desse tipo de tática, podemos citar um parágrafo da Epístola 33, de Agostinho a Proculeiano, bispo donatista de Hipona. A carta é de 396, início do episcopado de Agostinho. Assim ele relata a atitude daqueles que o procuram como bispo a fim de resolver demandas seculares:

Os homens desejam trazer a nossa presença os pleitos seculares quando precisam de nós para resolvê-los; então, nos chamam santos e servos de Deus, para que realizemos os negócios de seu interesse terreno. Realizemos. por fim, o negócio da nossa salvação e da deles; não se trata de ouro, nem de prata, de campos ou de gado, coisas todas pelas quais cada dia nos saúdam com a cabeça inclinada, para que resolvamos suas contendas humanas; se trata da nossa mesma Cabeça neste torpe e daninho pleito que há entre nós. Por mais que baixem a cabeça os que nos saúdam para que os levemos a um acordo neste mundo, não chegaram à humildade da nossa Cabeça, que se abaixou do céu até a cruz; e entretanto, não entramos em acordo em relação a esta Cabeça. (Ep. 33,5. Grifo nosso)

Este pequeno texto é bastante revelador de uma tática cotidiana usada pelos donatistas a fim de poder resolver seus negócios perante os bispos católicos. Como se, sabe, a partir de Constantino, os

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bispos foram reconhecidos como possuidores de um certo poder judicial, capaz de resolver pendências seculares antes que elas fossem levadas à justiça comum. A eles recorriam tanto cristãos, quanto pagãos; ortodoxos ou heréticos (SILVA, 2006). O trecho da Epístola 33 mostra como os demandantes se portavam diante do bispo quando estava em jogo seus negócios seculares: chamavam-no “santo e servo de Deus” e também os saudavam com a cabeça inclinada, num gesto de submissão. Ora, tais gestos se enquadram bem naquilo quePierre Mayol apresenta como a conveniência, definida como “o gerenciamento simbólico da face pública de cada um de nós desde que nos achemos na rua” (2009, p. 49). Essa arte do conviver, que produz comportamentos estereotipados, tem como principal suporte o corpo, cujos gestos são códigos socialmente compartilhados e, portanto, compreensível pela maioria das pessoas. O gesto de inclinar a cabeça, acompanhado de palavras religiosas de adulação (“Santo e servo de Deus”) para se saudar um bispo, mesmo que não se faça parte de sua igreja, era muito mais de uma demonstração de educação ou respeito; era uma tática, através da qual se pretendia poder usufruir do benefício de ter a sua causa julgada favoravelmente. O desgosto de Agostinho era que essa mesma reverência não se manifestava quando o assunto era a religião e as questões relacionadas à salvação da alma. Um outro caso interessante é tratado nas Epístolas 46 e 47, que correspondem ao diálogo entre Agostinho e um certo Publícola, por volta de 398. Publícola era um proprietário de terras da região de Arzuges, localizada provavelmente no sul da Tunísia ou na parte ocidental da Líbia (UHALDE, 2011). A Epistola 46, que ele envia a Agostinho, está repleta de questões de natureza religiosa, que traduzem as ansiedades de um cristão, provavelmente recém-convertido, diante da necessidade de conviver e negociar com os “bárbaros” de além da fronteira. Entre as questões levantadas, está a seguinte:

Em Arzugues, segundo tenho ouvido, os bárbaros costumam prestar juramento por seus demônios, ante o decurião da fronteira ou ante o tribuno. Se os contratam para conduzir a carreta ou para cuidar dos produtos, de modo que os proprietários e contratadores costumam contratá-lo como leais e os viajantes o tomam como guias de confiança quando possuem uma carta do decurião. Agora

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me nasce está dúvida no coração: o proprietário que contrata um bárbaro, cuja lealdade lhe parece firme porque jurou por seus demônios, não termina ele mesmo maculado, assim como seus produtos, ou o viajante a quem o bárbaro serve de guia? (Ep. 46,1).

Em sua resposta a esta questão, na Epístola 47, Agostinho afirma: […] quem se utiliza da fé daquele que jurou pelos deuses falsos, e a utiliza, não para o mal, mas para o que é que é lícito e bom, não participa do pecado de quem jurou pelos demônios, mas do bom propósito de quem guarda a fidelidade […] Não resta dúvida que é um mal menor jurar com verdade por um deus falso do que jurar com mentira pelo Deus verdadeiro. (Ep. 47,2).

O relato dos acontecimentos da fronteira que perturbam Publícola bem como a resposta condescendente de Agostinho, apontam para uma atitude que parecia ser comum no trato entre cristãos e bárbaros, especialmente em regiões de fronteira e nas quais estão em jogo tanto a segurança das pessoas, quanto das preciosas cargas comercializadas. Trata-se, antes de tudo de uma atitude pragmática, uma das características da vida cotidiana. Tal pragmatismo permitia aos cristãos e aos bárbaros recorrerem a uma prática comum que garantia a lealdade das partes envolvidas num contrato de negócio, a prática de prestar juramentos, ainda que discordem a respeito das divindades neles invocadas (UHALDE, 2011). Na cultura romana, a prática do juramento era um instituto tanto religioso, quanto jurídico e dizia respeito não aos deuses em si, mas as pessoas que, por meio do ato solene, se comprometiam com aquilo que juravam. Era, antes de tudo, uma questão de fides, de fidelidade (AGAMBEN, 2011). Agostinho manifesta esta compreensão e a usa para tranquilizar a consciência cristã de seu interlocutor. Podemos falar aqui novamente de conveniência, visto que as partes envolvidas nos negócios compartilhavam um código comum de práticas e signos, os quais procuravam obedecer a fim de viabilizar a vida cotidiana. Interessante notar que, nesse caso, é a parte cristã que se encontra no poder

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que se adapta a uma prática pagã, pois aceita o juramento feito em nome dos deuses tradicionais daquelas pessoas. Isto é compreensível, considerando a situação de fronteira na qual eles estão situados, na qual a capacidade do poder Imperial e da Igreja em impor suas regras é menor. A conveniência é uma via de mão dupla. Um último caso que gostaríamos de citar aparece nas Epístolas 22 e 29 dirigidas respectivamente, a Aurélio (bispo de Cartago) e a Alípio (bispo de Tagaste). A primeira é de 391 e a segunda de 395. A questão que nos chama a atenção diz respeito à forma como o povo celebrava a festa dos mártires na África cristã. Agostinho manifesta a sua indignação ao dizer: “As comilanças e as bebedeiras são tidas por autorizadas e lícitas, até o ponto de serem celebradas em honra dos santos mártires; e não somente nos dias de festa (quem não o lamentaria, se não o vê com os olhos carnais?), senão cotidianamente.” (Ep. 22, 3). Tais atitudes, prossegue Agostinho mais adiante, “tem o povo indouto por honra aos mártires e até para a consolação dos mortos” (22,6). Esse costume, conhecido como laetitiae, era um dos mais arraigados do cristianismo africano e remontava às antigas práticas locais de veneração aos mortos (BROWN, 2005). Em 394, Agostinho o enfrentou e o proibiu, mas não sem custo, como escreve a Alípio dizendo que “certos indivíduos se haviam alvoroçado, protestando que não podiam tolerar a supressão daquela solenidade que eles chamam laetitiae” (Ep. 29,2). Em seguida, o bispo de Hipona relata o sermão que pregou no primeiro domingo da Quaresma daquele ano, baseado na passagem do Evangelho que fala da expulsão dos vendilhões do Templo e rico de alusões a outras passagens bíblicas que condenavam a embriaguez. Apesar da comoção geral, os protestos contra a proibição continuaram no dia seguinte, o que exigiu de Agostinho nova investida de retórica sacra. Segundo o seu relato, os reclamantes cederam às exortações do seu bispo e somente os donatistas prosseguiram com o costume (29,8-11). Observamos aqui que aquele costume era indício de uma permanência pagã no seio da religião cristã, que podemos interpretar como uma forma através da qual aquelas comunidades africanas mantinham vivas suas tradições ancestrais a partir de uma tática de apropriação do imaginário cristão, revelando a distância existente entre o ideal de pureza doutrinária do bispo e as práticas cotidianas dos seus fiéis.

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Como é possível notar nos três exemplos citados, o ambiente geral era de conflito e intolerância ou, na melhor das hipóteses, de uma tolerância muito restrita. É digno de nota que Agostinho, representando bem o pensamento do clero católico, deseja restringir ainda mais essa tolerância. Aos que se achavam do outro lado da situação – donatistas, pagãos, hereges e judeus – agir com astúcia, procurando tirar vantagem dos poucos e incertos espaços que lhes restavam.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G. Sacramento da linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. AGUSTÍN, S. Obras completas de San Agustín. Cartas. v. 1. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1967. BROWN, P. Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Record, 2005. CERTEAU,Michel de.Ainvençãodocotidiano:1. Artes dofazer.Petrópolis:Vozes,1994. ENO, Robert B. Epistulae. In: FITZGERALD, Allan D. (ed.) Augustine through the Ages. Grand Rapids: Eerdmans, 1999, p. 298-310. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979 FREND, W.H.C. Donatismo. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 426-431. GADDIS, M. There is no crime for those who have Christ. Berkeley: UCP, 2005. GONÇALVES,J.M.ReligiãoeviolêncianaÁfricaRomana:Agostinhoeosdonatistas.2009.Dissertação(Me stradoemHistória)



ProgramadePós-

GraduaçãoemHistóriaSocialdasRelaçõesPolíticas,UniversidadeFederaldoEspíritoSanto,Vitória,2009. MAHJOUBI, A. O período romano e pós-romano na África do Norte. In: MOKHTAR, G. (org.) História geral da África. v. 2. Brasília: UNESCO, 2010, p. 473-509. MALATIAN, Teresa. Cartas: narrador, registro e arquivos. In: PINSKY, Carla; DE LUCA, Tânia Regina (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 195-221.

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MAYOL, Pierre. Morar. In: CERTEAU, M. (org.) A invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2009. SILVA, G.V. A relação Estado/Igreja no Império Romano (séculos III e IV). In: _.; MENDES, N.M. (org.) Repensando o Império Romano. Vitória: EDUFES, 2006, p.241-266. UHALDE, Kevin. Barbarian Traffic, Demon Oaths, and Christian Scruples (Aug. Ep. 46-47). In: MATHISEN, R. W.; SHANZER. D. (ed.) Romans and Barbarians; Farnham: Ashgate: 2011, p. 253262.

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A BUSCA PELA UNIDADE POLÍTICA E RELIGIOSA: IGREJA E MONARQUIA NA GALIZA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO VI. Juliana Bardella Fiorot545

Introdução

Os primeiros séculos da Idade Média apresentaram-se como um período de desafio para a Igreja Católica. Durante o Império Romano o cristianismo era considerado a religião oficial e a Igreja mantinha uma relação próxima com os governantes. Com as invasões bárbaras somadas as mudanças geopolíticas de território e o paganismo arraigado principalmente entre as populações rurais, a Igreja perdeu grande parte do seu prestígio e se viu em uma encruzilhada: era necessário adaptar-se aos novos tempos ou sucumbir as recentes transformações. A Igreja Católica vislumbrou na unificação política do reino suevo o passo essencial para a concretização de seus objetivos. O apoio da monarquia seria fundamental para legitimar as ações da Igreja, no entanto, era necessário que houvesse entre estas duas instituições uma relação forte e equilibrada. Portanto, nosso objetivo será o de demonstrar, ao longo do artigo, como ocorreu a aproximação entre Igreja e Monarquia de forma gradativa, culminando em uma crescente interferência eclesiástica no âmbito político a medida que a Igreja se esforçava na sua ação pela unidade. Discutiremos ainda a questão da reorganização da Igreja através do seu projeto de evangelização e convocação de concílios visando a instrumentalização e uniformidade do clero. Daremos uma atenção especial para a figura de Martinho de Braga546 que foi extremamente atuante em

545

Mestranda em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Assis).Email: [email protected]. Martinho de Braga, homem letrado, teria nascido na Panônia entre 518 e 525, durante sua vida realizou diversas viagens que contribuíram para sua formação clássica. Martinho teria viajado até a Galiza por estímulos divinos e teria sabido que o reino suevo estava afastado da fé católica. Foi fundador de diversos mosteiros e ascendeu ao cargo de bispo de Braga após reconhecida atuação religiosa na Galiza. Entre seus principais escritos podemos destacar: Formula vitae honestae, De superbia, De ira e os Capitula Martini. 546

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todo o processo de reorganização da Igreja, obtendo destaque na tarefa de evangelização e aconselhamento do monarca suevo Miro (570-583).

A relação entre Monarquia sueva e Igreja

No período de assentamento dos suevos na Península Ibérica as bases monárquicas do reino organizaram-se criando um espaço para que a atuação da Igreja dentro da esfera política se fizesse de forma gradual. Destacaremos ainda os efeitos tímidos das primeiras conversões realizadas no reino suevo, mas que preparariam o ambiente para o andamento do projeto de unificação política e religiosa. Os suevos teriam penetrado na Península Hispânica no ano de 409, tendo sobrevivido do saque por um longo período, o que dificultou a fixação em um território. Em relação as demais tribos germânicas, no que concerne ao tamanho e riqueza, os suevos estavam em desvantagem, portanto as zonas menores e menos ricas da península foram destinadas a eles no período de distribuição de territórios, quando Constantino teria cedido algumas províncias espanholas aos bárbaros (Rodriguez, 1977: 49). Assim sendo, o núcleo de ocupação dos suevos passou a ser a Galiza onde o reino pôde efetivamente se desenvolver. Durante o período de assentamento e organização dos suevos, que praticamente durou um século e meio, verificamos que a postura da Igreja foi de afastamento com relação aos assuntos políticos do reino. Este fato possibilitou a manutenção das características principais referentes ao modo como a monarquia sueva estava organizada, no qual destacamos a valorização do elemento militar e a hereditariedade como os critérios válidos para a sucessão do trono. Estas características são de origem romana, o que atesta a influencia do Império na organização monárquica sueva, revelando traços da romanização presentes também entre os germanos em geral. Renan Frighetto (2000: 50) expõe esta questão: a forma de escolha do rex entre as tribos germânicas foi magistralmente descrita por Tácito em sua Germania no século I d.C. Dentre os membros duma ‘nobreza de sangue’ elegia-se o ‘rei do povo em armas’ aquele que guiaria o povo numa campanha militar. Portanto, a eleição do rei entre os germanos estava diretamente associada a guerra, sendo ele um autentico primus inter pares daquela

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nobreza de ‘sangue’ e das clientelas a ela vinculadas com a função específica de conduzi-las em ações de cunho militar. Para demonstrarmos de forma clara como o critério de valorização militar e hereditariedade era aplicado no reino suevo, destacamos as reflexões de Leila Rodrigues da Silva (2008: 39) acerca do monarca Hermerico (primeiro rei a governar o território galego): (...)acreditamos que Hermerico associou à sua procedência de uma stirps regia o reconhecimento militar que usufruía e introduziu, como critério sucessório prioritário, a hereditariedade, ainda que tal prática não tenha se constituído como algo comum nos anos iniciais dos demais reinos germânicos. Os critérios de sucessão expostos acima se fizeram presentes em toda a dinastia da família de Hermerico, envolvendo seu filho Réquila e seu neto Requiário. No entanto, um vazio documental significativo (entre 469 e 570) acerca dos suevos nos impossibilita de averiguar a continuidade de tais critérios de sucessão se prolongando por outras dinastias deste reino durante este intervalo de tempo. Se durante um século e meio a postura da Igreja foi de afastamento em relação ao reino suevo, esta situação tenderá a mudar a partir das conversões dos monarcas visando determinados objetivos. A primeira conversão ao catolicismo aconteceu em 449, ou seja, no governo do monarca Requiário (pagão). Tal conversão foi considerada um acontecimento de grande importância para o período, pois segundo Casimiro Torres Rodriguez (1977:112) “(...) produziu a fusão dos suevos com os galegos; a maior parte dos suevos começa a constituir a aristocracia galega”. Percebemos, portanto, o início da assimilação entre os germanos recém chegados ao território e a aristocracia local; este acontecimento contribuiria para a unidade política do reino, não provocando disputas entre estes grupos além do fato de que a monarquia passaria a ganhar o apoio da população cristã galaico-romana. Um outro momento de conversão ocorrido durante o reino suevo aconteceu durante o governo do monarca ariano Remismundo que converte-se ao catolicismo por volta de 466. Esta conversão estaria relacionada, segundo Rodriguez (1977:197), ao casamento entre este e a filha de Teodorico II (visigodo). No entanto, tal conversão não surtiu grandes efeitos no reino, ficando restrita apenas a nobreza palaciana e militar (Silva, 2008: 46).

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Os resultados obtidos com as conversões até então realizadas no reino suevo não foram de muito impacto para que a aliança entre monarquia e Igreja se efetiva-se, mas estas preparariam o ambiente para que, de forma gradativa, as autoridades políticas e religiosas se unissem. No entanto, a partir do reinado de Ariamiro (558-561), as relações entre Igreja e Monarquia se tornarão mais próximas quando ocorre a participação deste monarca no primeiro Concílio de Braga. Os monarcas posteriores547 a Ariamiro consumarão a aliança entre monarquia e Igreja alterando os rumos até então tomados pelos governantes acerca do processo de unificação. Durante o reinado de Miro, os suevos, ameaçados pelas forças visigodas de Leovigildo vão procurar apoio entre os católicos francos e bizantinos. A partir deste momento a monarquia sueva decide empreender um novo rumo ao seu projeto de unificação. O problema religioso também passou a ser uma questão que interessava aos governantes. A cristianização possibilitaria aliados no campo militar e proporcionaria uma maior assimilação entre as populações da Galiza (relação já iniciada durante o governo de Requiário, mas que se estendeu somente ao âmbito da aristocracia). A uniformidade da fé traria a unificação política tão desejada pelos suevos. No entanto, a Igreja não concordava que apenas a hereditariedade e a valorização do elemento militar fossem suficientes para garantir o fortalecimento do reino suevo e consequentemente sua unificação. Era preciso que o monarca tivesse características cristãs e se comportasse como um instrumento de Deus garantindo legitimidade a sua monarquia. Ao rei germano interessava estar em um patamar superior dos demais membros da nobreza e as conversões garantiam a legitimidade da monarquia perante Deus, sendo envoltas com o ritual da sagração que tornava o rei um verdadeiro ungido do Senhor. A partir de então a Igreja passa a cuidar da formação intelectual dos monarcas como trataremos mais especificamente ao longo do artigo.

A organização da Igreja na Galiza e os desafios enfrentados para a efetivação da unidade religiosa.

547

Estamos nos referindo aos reis Teodomiro (561-570) e Miro (570-583)

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Especificamente no reino suevo os problemas enfrentados pela Igreja eram diversos, impossibilitando a reorganização e fortalecimento da instituição. Como aponta Silva (2007:208): “Neste contexto, destacaram-se as dificuldades inerentes ao débil grau de cristianização da Galiza e à não manutenção do funcionamento regular das instâncias eclesiásticas.” Os galegos tinham a religiosidade extremamente arraigada em seu cotidiano e a introdução de uma nova fé não seria suficiente para convencê-los de que o cristianismo era melhor. Como a atividade principal dessas populações estava ligada a terra, a maioria de seus cultos possuía uma vinculação com as forças da natureza. Destacamos ainda que o problema do paganismo não era exclusivo nem da época e nem restrito somente a região da Galiza. A religiosidade popular548 estava permeada em todos os estratos sociais e impregnada no cotidiano daquelas populações há vários séculos. Percebemos o quão difícil seria evangelizar549 estes povos para que enfim “aceitassem” o catolicismo como a verdadeira e única religião. Visando a instrumentalização, a uniformidade do clero e a discussão dos problemas que desafiavam o projeto de unidade religiosa da Igreja no reino suevo, analisaremos os dois principais concílios ocorridos na Galiza levando em consideração o período que compreende este estudo. Primeiramente um fato de grande relevância merece ser notado a respeito dos dois concílios que analisaremos a seguir. Os dois concílios foram realizados respectivamente nos anos de 561 (primeiro Concílio de Braga) e 572 (segundo Concílio de Braga). A primeira vista a data da realização dos concílios é algo que merece ser notado, já que em um intervalo de onze anos tivemos a segunda edição com um maior número de participantes (oito bispos no primeiro concílio e doze no segundo). Isto nos mostra um fortalecimento da Igreja local empenhada em combater seus inimigos (paganismo e priscilianismo) além de reforçar as regras de conduta do clero, o que garantiria uniformidade no

Segundo Oronzo Giordano a expressão “religiosidade popular carece de um significado unívoco, de um conteúdo preciso, e nem sempre é aceita e compartilhada pacificamente por todos os estudiosos. (...) A religiosidade humana, no sentido mais amplo da palavra, tem fontes profundas e variadas, que coincidem com a condição existencial do homem e implicam na questão do seu próprio destino.” - Religiosidad popular en la Alta Edad Media. Madrid: Editorial Gredos, 1983, páginas 10-11. 549 Podemos pensar o conceito de evangelização como a ação da Igreja ao tentar levar os ensinamentos e a mensagem do Deus católico, contida nas Sagradas Escrituras, aos povos considerados pagãos. 548

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comportamento destes. Para Silva (2007: 211) “o segmento episcopal institui regras e busca garantir o cumprimento do estabelecido, condição necessária a sua coesão, estabilidade e fortalecimento.” Este esforço de instrumentalização do clero serviu para que os membros da Igreja renovassem sua consciência a respeito das práticas, sendo portanto, mais eficientes e seguros no trabalho de evangelização dos fiéis em potencial. Entre as regras estabelecidas pela Igreja nos concílios citados acima, destacamos a preocupação com o priscilianismo550. No primeiro Concílio de Braga dos vinte e dois cânones que integram as atas, dezessete referem-se ao priscilianismo, inclusive estipulando penas aos clérigos infratores que compactuarem com esta doutrina:

(...) cualquier clérigo o monje o incluso seglar que se descubriere que todavía cree o defiende algo semejante, como um miembro verdaderamente podrido sea cortado inmediatamente del corpo de la Iglesia Católica, evitando de este modo que su compañia inocule su malicia a los que creen rectamente, o que em ló sucesivo a causa de la convivência com estos tales se siga algún oprobio para los ortodoxos.551

O restante das atas referem-se ao modo comum como os bispos deveriam se cumprimentar, a maneira correta do uso da estola, as formas de conduzir uma missa e um batizado, comportamento em caso de mortes, etc. Com relação ao segundo Concílio de Braga, presidido pelo bispo Martinho, destacamos que as atas se compuseram de dez cânones sendo anexados a estes os Capitula Martini552 que focam na 550

O Priscilianismo, movimento condenado e considerado herético pela Igreja foi criado por Prisciliano de Ávila. Tem como idéia principal a crença de que Pai, Filho e Espírito Santo formariam uma única pessoa. Teorias como do autor Lopez Caneda (LOPEZ CANEDA, Prisciliano y su problema histórico. Salamanca, 1966, p.71) consideram a Galiza como a terra pátria de Prisciliano relacionando-a ainda com a origem deste movimento. Os ensinamentos de Prisciliano tornaram-se mais fortes principalmente após a morte deste que foi considerado um mártir pela população. Mas ainda hoje é uma controvertida questão e discute-se sobre sua verdadeira ou não heterodoxia. 551 Segundo Concílio de Braga, 01. 552 Os Capitula Martini são uma tradução, feita por Martinho de Braga, de santos cânones do Oriente que, originalmente, estavam na língua grega e foram traduzidos para o latim pelo bispo.

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questão da instrução clerical, dando atenção ainda para as proibições do clero com relação a feitura de práticas mágicas ou a crença em qualquer forma de superstições, tais como encantamentos, ligaduras, celebração e missa diante de túmulos, festejar as calendas, recorrer a ervas medicinais, etc.. Já as preocupações discutidas nas atas demonstram serem praticamente as mesmas apontadas durante o primeiro concílio. O enfoque maior se deu na proibição de que os bispos não recebessem nenhum dinheiro por desempenharem suas funções como, por exemplo, nas cerimônias de crisma ou nos batizados. Após estas reflexões notamos que o processo de organização da Igreja constituiu-se como uma tarefa árdua. O problema da religiosidade popular ainda se arrastará por séculos na Galiza e não será efetivamente erradicado. No entanto, o próprio relaxamento do clero nas mais diversas situações, como exposto acima, nos indica a falta de preparo da Igreja para a tarefa da evangelização. Para que a unidade religiosa fosse alcançada um respaldo político era necessário, mas não suficiente para a concretização deste objetivo. Seria necessária ainda uma reforma dentro da própria Igreja como atestaram as discussões dos concílios analisados neste item.

A atuação de Martinho de Braga: a religiosidade popular e o modelo de monarca.

Martinho de Braga é reconhecido por sua atuação incansável no processo de organização e fortalecimento da Igreja na Galiza, portanto não tratar das questões que envolvem seu nome no processo de unificação religiosa desta região seria deixar uma lacuna neste estudo. No entanto, devemos ter cautela ao indicarmos que qualquer tipo de sucesso obtido nesta empreitada tenha sido obra somente do bispo em questão. Na verdade, Martinho só obteve resultados positivos em sua tarefa porque a Galiza já desfrutava de um ambiente propício para que as ações do bispo de Braga fossem recebidas e se desenvolvessem com maior facilidade. Como atesta Leila Rodrigues da Silva (2008:100):

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(...)precisamos lembrar que o fato de não dispormos de obras literárias de outros religiosos na região não pode ser interpretado como resultado de sua omissão no processo de reorganização e fortalecimento da Igreja e da aliança que esta instituição estabeleceu com a monarquia. A participação crescente das autoridades locais pode ser verificada, entre outros exemplos, pelo aumento do número de participantes no II Concílio de Braga em relação ao primeiro, bem como na solicitação de orientações que fizeram a Martinho de Braga.

Martinho de Braga priorizou algumas frentes de ação para a consolidação da unidade religiosa do reino. Destacaremos nas próximas páginas o trabalho do bispo no mosteiro de Dume bem como a instrumentalização do clero, evangelização das populações rurais e a relação do bispo com o monarca suevo Miro. Ao chegar a Galiza, por volta de 550, Martinho teria se estabelecido em Dume onde um mosteiro de mesmo nome seria construído através de recursos financeiros obtidos junto aos monarcas. Foi nomeado abade do mosteiro e tratou de transformar o mesmo em uma espécie de escola, onde a instrumentalização do clero seria feita através do aperfeiçoamento doutrinal e leitura e análise de obras latinas. Martinho não teria formulado uma regra monástica a ser seguida pelos clérigos no mosteiro, mas trabalhou na tradução de partes do manuscrito sobre a Vida dos Padres do Deserto que acabaria servindo de base aos ensinamentos necessários. Esta obra, originalmente em língua grega, teria sido trazida do Oriente pelo próprio Martinho. A Vida dos Padres do Deserto abordaria questões como a penitencia, caridade, oração, pobreza, trabalho manual e outros tantos temas relacionados a doutrina e os ensinamentos dos abades egípcios. Este manuscrito teria se espalhado pelos demais mosteiros que integravam a Galiza o que garantiria uma homogeneidade de comportamento e doutrina entre os eclesiásticos da região. A Igreja, portanto, possuía o monopólio do ensino e visava a uniformidade de comportamento dos membros do clero. Com a morte do bispo Lucrécio, metropolitano de Braga, Martinho assume também esta nova função acumulando os cargos de abade e bispo.

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A evangelização das populações galegas por Martinho de Braga era vista como essencial, já que estas pessoas representariam fiéis em potencial que iriam aderir ao projeto de unidade católica ao professarem a nova fé. Seu esforço pela evangelização renderá uma obra extremamente conhecida escrita pelo bispo e intitulada “De correctione rusticorum” (Da correção dos rústicos). Este sermão foi escrito, por volta do ano de 572, a pedido de Polêmio, bispo de Astorga, que teria solicitado a Martinho instruções sobre a correção dos “rústicos”. A intenção de Martinho era fazer uma obra pastoral que instruísse este baixo clero com todas as proibições e obrigações necessárias a um bom católico. As instruções do sermão seriam repassadas por este clero ao restante da população. No entanto, devemos atentar para o fato de que a intenção de Martinho não era destruir as formas de religiosidade praticada pelos galegos, pois como já dito, muitos membros do clero secular também a praticavam, porém ele alerta que essas crenças são mal orientadas, devendo substituir o culto aos falsos deuses da natureza pela verdadeira simbologia cristã, como as cruzes, os santos e as orações, por exemplo. Os elementos ligados a natureza e cultuados pelos galegos não eram bem vistos por Martinho, pois para ele, a natureza foi criada pelo Senhor e ele deveria ser o cultuado. No sermão, o bispo de Braga concentra-se em inculcar algumas lições de moral comprovandoas com textos bíblicos, além de frisar, por muitas vezes, que a idolatria era obra demoníaca acusando que a religiosidade praticada pelos galegos era o oposto daquilo que se deveria seguir para se chegar ao Paraíso e evitar o inferno.Refletindo sobre a dificuldade dos galegos em adotar uma nova crença com promessas de uma vida melhor e garantias de salvação, podemos perceber que talvez o monoteísmo pregado pela Igreja não fosse tão atrativo para a população em geral. A idéia de que Deus era o único responsável em gerir e garantir que tudo funcionasse no cotidiano dos galegos talvez gerasse desconfiança, já que seriam muitas tarefas para que um único Deus atendesse a todos. Veremos, assim, que a Igreja passa a adotar os santos, intermediários entre os homens e Deus, tendo estes as mesmas funções que os deuses pagãos ao receberem os mais variados tipos de desejos e preces dos galegos. O problema da religiosidade popular ainda vai perdurar por um longo período no medievo. Apesar da intensa relação entre a monarquia sueva e a Igreja em busca da unidade, a religiosidade

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continuará a ser praticada com intensidade não somente na Galiza, mas em muitas partes da Europa. De fato, o problema da religiosidade popular constituiu-se como o grande desafio enfrentado pela Igreja no período e nem a interferência ou o exemplo dos monarcas suevos contribuirá de maneira considerável para que este problema seja sanado de forma completa. Por fim, destacaremos a atuação de Martinho de Braga na escrita de obras dedicadas ao ideal de monarca. No entanto, devemos nos perguntar primeiramente qual a intenção da Igreja em moldar os governantes do reino suevo. Como já exposto no artigo, a valorização do elemento militar e a hereditariedade como critério para legitimar o rei como governante não eram suficientes para a Igreja. Para a efetivação da unidade política o monarca deveria estar em conformidade com o cristianismo. Portanto, era necessário que este se tornasse um rei idealizado, isento de vícios e repleto de virtudes. Martinho de Braga dedicou-se, portanto, a escrita de várias obras visando a elaboração de um modelo de monarca ideal segundo os critérios do cristianismo. Silva (2008:102) analisa os objetivos de Martinho com a escrita das obras que compunham o modelo de monarca ideal:

(...)Martinho ressaltou também a ideia de que cabia ao monarca um comportamento capaz de suscitar o respeito e a admiração de todos aqueles que o cercavam. Estas pessoas deveriam, pois reconhecê-lo como uma referencia de conduta. Dessa forma, buscava-se não apenas a preparação de um governante de valores com o modelo apresentado, mas também a introdução de valores para o homem comum, cujo exemplo a ser seguido contribuiria para a cristianização. Ressaltamos ainda que Martinho de Braga representou o auge da atuação eclesiástica no âmbito da política ao propor o modelo de monarca. Assim, o espaço de atuação da Igreja cresceu a medida que os eclesiásticos acumularam a função de conselheiros do monarca:

(...)a ação eclesiástica pode se manifestar na constituição de mecanismos de influencia junto as autoridades políticas. Ao longo do processo de reorganização e fortalecimento da Igreja na região, tais mecanismos puderam ser desenvolvidos e aperfeiçoados. Dessa forma, os

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religiosos passaram a desfrutar de um espaço de atuação crescente favorecido pela possibilidade de orientação espiritual, participação na formação intelectual e aconselhamento pessoal das autoridades políticas do reino. (Silva 1997:10)

Dentro do corpus Martiniano ressaltamos que as obras dedicadas visando um modelo de monarca são: Formula Vitae Honestae, Exhortatio humilitatis, De superbia e Pro repellenda iactantia. O modelo de monarca, proposto pelo bispo de Braga, não encontrava-se portanto em apenas uma obra. Martinho dedicou-se a discorrer uma série de escritos tendo como objetivos principais expor a ideia de um monarca que deveria ser um exemplo a ser seguido além de uma concepção moral de monarquia. Pretendemos fazer uma breve análise sobre as obras dedicadas ao monarca Miro, para tanto, destacaremos os eixos principais de cada uma delas. Na maioria de seus escritos o bispo dedicava as linhas iniciais para referir-se a pessoa a quem a obra estava sendo dirigida. Com relação a Formula Vitae Honestae notamos que esta foi escrita a partir de um pedido do próprio rei Miro a Martinho de Braga: No ignoro, Rey clementísimo, que la ardentísima sed de tu espíritu procura permanecer insaciablemente em las copas de la sabiduría, y que andas ansiosamente en busca de las fuentes de donde manan las águas de la ciência moral. Y por eso, muchas vezes estimulas a mi pequeñez com tus cartas a que escribiendo com frecuencia alguna carta a tu alteza, te dirija algunas palabras bien sean de consuelo o de exhortación.553 Em Formula Vitae Honestae quatro características principais são elencadas por Martinho e que deveriam ser seguidas pelo rei suevo. Destacamos: a prudência, a magnimidade, a continência e a justiça. Com relação a prudência, o bispo de Braga aconselha o monarca a ser prudente em suas decisões. O correto seria que o governante refletisse sobre suas possibilidades e tomasse suas próprias decisões, pautando-se sempre na razão e não na dúvida; seria necessário refletir sobre o passado para tomar as decisões corretas no presente (evitando cometer os mesmos erros passados) que por sua vez

553

MARTINHO DE BRAGA, Formula Vitae Honestae, 01.

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influenciaram o futuro do reino. O monarca deveria ainda ter precaução ao emitir suas opiniões a alguém ou sobre algo. Segundo Silva (2008:109): (...)a definição de prudência, presente no modelo de monarca elaborado no reino suevo, indicava um comportamento vinculado a uma vivência de acordo com a razão e orientada na busca de verdade, e não da dúvida; da essência e não da aparência; do duradouro, e não do efêmero; do equilíbrio, e não dos excessos. No que se refere a magnimidade o bispo ressalta a coragem e a clemência como necessárias a um bom governante. Miro, não deveria guiar-se somente pelos seus impulsos guerreiros; a coragem deveria ser prezada, mas a astúcia em excesso deveria ser evitada. Em situações difíceis o monarca deveria optar pelo perdão ao invés da vingança, mantendo assim a serenidade e uma conduta honrosa (Silva, 2008: 111). A continência ressaltada pelo bispo sugere, tal como a magnimidade, uma conduta serena, no qual os impulsos deveriam ser evitados para que a moderação se fizesse presente durante o governo do monarca. Além disso, Martinho frisa que o governante deve ter cautela com os falsos elogios recebidos, não permitindo que estes influenciassem nas decisões de seu governo. Para Martinho de Braga, a justiça estaria vinculada ao divino, sendo o monarca um instrumento da vontade de Deus procurando ser justo com a população do reino e punindo, quando necessário, aqueles que prejudicassem a harmonia política e social. No caso da justiça aplicada aos galegos que não partilhavam do cristianismo o monarca foi considerado um instrumento de autoridade pelo bispo de Braga: No caso do reino suevo, sabemos que a religiosidade das populações visadas pelo processo de cristianização abarcava, sobretudo entre os habitantes do meio rural, práticas priscilianistas e pagãs. Assim, ao sublinhar a validade da justiça cristã para os que não compartilhavam da fé católica, Martinho conferia a Miro um instrumento de ação junto a todos os habitantes do reino, indiscriminadamente. Em outras palavras, oferecia-se ao monarca suevo, desde que estivesse pautado no conjunto de orientações presente nas obras a ele dirigidas, um importante instrumento ideológico de reforço a legitimação de sua autoridade.(Silva 2008: 119)

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Assim como as virtudes anteriormente abordadas são de extrema importância para a modelagem do monarca suevo, destacamos ainda a humildade presente na Exhortatio humilitatis. Um monarca humilde é aquele que se subordina a Deus e considera que todos os resultados obtidos no reino são frutos da ação divina. Portanto, qualquer tipo de elogio ou agradecimento dedicado ao rei suevo deveria ser reconhecido como obra divina. As obras Pro repellenda iactantia e De superbia não caracterizam as virtudes necessárias ao bom monarca, mas sim os vícios que deveriam ser evitados por este. Um monarca soberbo não estaria valorizando a potencia divina, e repleto de orgulho e vaidade, consideraria que todos os feitos gloriosos de seu governo eram advindos somente do seu sucesso como governante. Na obra De superbia, Martinho chega a caracterizar a soberba como um tumor, ressaltando que este sentimento faz com que os homens desejem ser Deus: “Este tumor de la soberbia, por el contrário, se dirige propriamente contra Dios, y por eso lo considera como enemigo, puesto que dirigiéndose contra o alto, el hombre siempre desea lo que es proprio de Dios.”554 O corpus Martiniano dirigido ao monarca abarca comentários de Martinho acerca das virtudes e os vícios que deveriam ser cultivados ou evitados pelo governante. Desta forma, seus escritos e sua atuação perante Miro não se resumiam apenas a caracterização dos elementos essenciais ao rei, mas auxiliavam, através de conselhos como conservar esta postura, evitando os perigos ou pessoas mal intencionadas que poderiam prejudicar o futuro do reino. A partir da breve explanação sobre as características de cada obra, podemos compreender que o monarca na verdade possuía uma espécie de missão. Sendo um instrumento de Deus que o guiaria nas suas decisões, o sucesso de seu governo estaria associado ao bem estar geral da população, contribuindo assim, para um ambiente favorável a aceitação da monarquia e da religião cristã pelos súditos, mesmo que estes partilhassem de formas de religiosidades distintas.

Considerações acerca da unificação política e religiosa da Galiza no século VI

554

MARTINHO DE BRAGA. De superbia, 07.

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Após as reflexões expostas no artigo podemos perceber que a aproximação entre a Igreja e monarquia sueva efetivou-se a partir da segunda metade do século VI. Verificamos que algumas conversões já haviam se realizado durante o século V, no entanto estas não foram capazes de estreitar os laços de forma eficaz entre as autoridades políticas e eclesiásticas no período. Porém, devemos considerar que estas prepararam o ambiente, para que na segunda metade do século VI, esta aliança de fato se efetivasse. A relação que se estabeleceu entre Igreja e monarquia foi fruto de um processo lento e gradativo, no qual a Igreja compreende que para reconquistar seu espaço como religião predominante após a queda do Império, não bastava fazer uma reforma dentro de sua própria instituição; era necessário legitimar suas ações junto aos governantes, obtendo apoio e o prestígio necessário junto aos mesmos ao professar a “verdadeira e única fé”. Portanto, para a consolidação da unidade religiosa seria necessário um esforço no sentido de também organizarem não só os vários âmbitos da Igreja que se encontravam desgastados, mas também seria preciso organizar a instituição política, para que esta possuísse características que estariam em conformidade com a doutrina pregada pela Igreja. Os critérios necessários para a sucessão do reino suevo como a hereditariedade e a valorização militar não se mostraram suficientes para que a monarquia fosse legitimada perante a concepção da Igreja. Era necessário moldar o “monarca bárbaro” segundo os princípios cristãos (Silva, 2008:142). Para a monarquia sueva a aliança com a Igreja foi extremamente benéfica. Afinal, através das conversões os monarcas puderam, pouco a pouco, penetrar entre a população cristã galega obtendo seu apoio. Assim, de forma gradativa observamos a penetração da Igreja dentro da esfera política, processo que se acentuará durante o reinado de Miro. A conversão significava legitimar as ações tomadas pelo governante no poder, sendo estas inquestionáveis, pois ele era considerado um ungido do Senhor sendo seu instrumento, portanto questioná-lo seria o mesmo que contrariar as decisões estabelecidas por Deus. Quanto aos desafios enfrentados pela Igreja concluímos que a religiosidade popular foi de longe o mais difícil a ser superado. Não somente na Galiza, mas em outras localidades da Europa no período verificamos que a religiosidade pode ser definida como um “problema” permanente dentro da

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sociedade. O trabalho de cristianização deveria ser feito de forma paciente, onde as crenças pagãs fossem sendo eliminadas ou substituídas pouco a pouco para que o projeto de aderência de novos cristãos se fizesse de forma tranquila e sem traumas que pudessem gerar revoltas. A evangelização das populações pode ser observada como uma das etapas do processo de reorganização da Igreja, que contou ainda com a feitura de dois concílios no período que compreende esta pesquisa. O relaxamento do clero era uma ameaça para o fortalecimento da Igreja. Os eclesiásticos deveriam ser reconhecidos por serem diferentes do restante da população, portanto, o cumprimento das regras de conduta era essencial. Os clérigos eram os porta-vozes de Deus e possuíam a capacidade de interpretar a palavra divina, ajudando a conduzir as pessoas rumo a salvação eterna. Por fim, ressaltamos a intensa ação de Martinho de Braga no processo de reorganização da Igreja na Galiza. Como pudemos perceber sua atuação se deu sobretudo no âmbito da evangelização e da criação de um modelo de monarca cristão. Graças ao gradativo processo de aproximação entre Igreja e Monarquia, Martinho pode realizar suas ações sem grandes empecilhos, pois o terreno estava propício para que a receptividade de suas obras e de suas ações se fizesse de maneira mais fácil. O clero, no período do bispado de Martinho, representou o auge da influência religiosa no meio político.

Fontes e Referências Bibliográficas

MARTIN DE BRAGA (1990). Obras completas.Edición castellana de Ursicino Dominguez del Val. Madrid: Fundación Universitária Española. LOPEZ CANEDA (1966). Prisciliano y su problema histórico. Salamanca. FRIGHETTO, Renan (2000). Cultura e poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Curitiba: Editora Juruá. GIORDANO, Oronzo (1983). Religiosidad Popular em la alta Edad Media. Madrid: Editorial Gredos. SILVA, Leila Rodrigues da (1997). Prudência, justiça e humildade: elementos marcantes no modelo de monarca presentes nas obras dedicadas ao rei suevo. In: Revista de História FFLCH-USP, p.09-24.

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_____________________(2008). Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI. O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. _____________________(2007). Limites da atuação e prerrogativas episcopais nas atas conciliares bracarenses. In: BASTOS, M.J; FORTES, C.C e SILVA, L.R (org.). Encontro regional da ABREM, RJ, p. 208-215. TORRES RODRIGUEZ, Casimiro (1977). Galícia Sueva. La Coruña: Fundación “Pedro Barrie de La Maza Conde Fenosa”. Instituto “P. Sarmiento” de Estúdios Gallegos.

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