História e Ideologia: a produção brasileira sobre a Guerra do Paraguai

May 31, 2017 | Autor: Francisco Doratioto | Categoria: Historiography, Ideology, Nuevo Mundo Mundos Nuevos
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História e Ideologia: a produção brasileira sobre a Guerra do Paraguai Francisco Doratioto Universidade de Brasília

A Guerra do Paraguai foi um marco para os países que dela participaram. Guerra do Paraguai se diz no Brasil; Guerra da Tríplice Aliança se fala no Rio da Prata e no Paraguai, sendo que neste também é conhecida como Guerra Grande. Na busca de uma classificação comum se poderia dizer Guerra de 1865-1870, mas dessas designações a que mais se aproxima da realidade é, de fato, Guerra Grande: grande foi sua duração; grande foi o sofrimento humano que desencadeou nas nações envolvidas e grandes foram as conseqüências políticas e econômicas para os países que a lutaram. No entanto, ela também pode ser chamada de Guerra do Paraguai porque, no plano militar, começou com o ataque paraguaio a Mato Grosso – o que na perspectiva paraguaia significava recuperar a posse de um território litigioso-, ampliou-se com a invasão de Corrientes e Rio Grande do Sul e foi travada a maior parte do tempo – por quase 4 anos – no território do Paraguai. Também foi a Guerra da Tríplice Aliança pois nela se assistiu à cooperação argentino-brasileira-uruguaia, pois ao conflito militar antecederam: as disputas entre partidos políticos na Argentina e no Uruguai; o interesse do Império do Brasil de evitar mudanças no

status quo uruguaio,

favorável ao interesses brasileiros (particularmente dos fazendeiros do estado fronteiriço do Rio Grande do Sul) e a demanda do governo de Francisco Solano López de ser parte no processo político platino. A dramaticidade do conflito repercutiu pelas gerações seguintes, o que resultou em leituras e releituras de seu significado e, mais, em seu uso, com finalidades várias, por governos e por movimentos intelectuais.

1 – O pós-guerra

2 No caso do Império do Brasil, a Guerra do Paraguai representou o apogeu do poder do Estado Monárquico. Demonstra-o a capacidade de organizar um exército moderno, em lugar da pequena força mal armada de 16.000 homens existentes em 1864, e uma nova Marinha, capacitada a combater em ambiente fluvial. Apesar da oposição interna à guerra e das pressões externas contrárias ao lado

aliado, o Estado Monárquico sobrepujou-as e

conseguiu sustentar a guerra em teatro de operações longe do território brasileiro, quer dizer, distante de bases logísticas seguras, e em ambiente humano e geográfico hostil. Se a Guerra do Paraguai constituiu o apogeu do poder do Estado Imperial, também prenunciou o início de sua decadência,

quer por ampliar tensões internas na estrutura sócio-política, quer por

emergir do conflito um exército no qual parte da oficialidade transferiu sua lealdade da figura do Imperador, personificação do Estado Monárquico, para a Nação. A persistência do Estado Monárquico em sustentar a guerra teve como respaldo, no plano das idéias, a justificativa de ter sido o Brasil agredido sem prévia declaração de guerra e de que Francisco Solano López era uma megalômano, cuja permanência no poder no Paraguai constituiria permanente ameaça para a paz na região e para a segurança das fronteiras brasileiras. Com esses argumentos,

o Império mobilizou brasileiros de todas as províncias

para a luta e, pela primeira na história do Brasil independente, se combateu pela mesma causa de norte a sul do país. A primeira narrativa brasileira do esforço para rechaçar o invasor foi o livro de caráter épico “A Retirada da Laguna”, de 1868, do jovem engenheiro Alfredo d´Escragnolle de Taunay, dedicada ao Imperador do Brasil. Posteriormente, publicou outros livros a partir de suas duas experiências na guerra, na frente de Mato Grosso (1865-1867) e no Paraguai (18691870), um dos quais suas memórias, escrito no final da vida no início da década de 1890, depositado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e, por cláusula testamentária, inédito até 1.943. Nesses livros, Taunnay manteve a interpretação dada à guerra no pioneiro “A Retirada da Laguna”, cuja primeira edição é de 1868, contando pouco mais de 50 páginas e publicado em francês, idioma internacional na época e de domínio do autor. O livro foi ampliado em 1871, naquela que é sua versão definitiva e publicado pela primeira vez em português em 1874, tornando-se um clássico da literatura brasileira. No primeiro capítulo é feito um breve histórico da guerra, caracterizando como agressivo o comportamento do Paraguai, enquanto nos demais relata a aventura da coluna militar brasileira enviada por terra, desde São Paulo, inicialmente com o objetivo de reforçar a defesa de Mato Grosso, mas que acabou sendo incumbida de expulsar os paraguaios dessa província. “A Retirada da Laguna” narra com dramaticidade os acontecimentos e lhes dá dimensão épica, na qual o inimigo não

3 é só a tropa paraguaia mas, também, a natureza, descrita como majestosa mas, ao mesmo tempo, cruel com os soldados brasileiros devido a pequenas pragas (mosquitos, serpentes, etc.) e obstáculos físicos (pântanos, rios, clima...) Essas características de A Retirada da Laguna estão presentes, em menor ou maior grau, nos livros sobre a guerra escritos após 1870, normalmente tendo como autores homens que estiveram no teatro de operações. E estão presentes não por imitação mas, sim, porque as dimensões dramática e épica eram realidade nos campos de batalha. Afinal, esse tipo de discurso não foi

uma reconstrução intencionalmente deturpada do passado recente mas

tratou-se, sim, de esforço em relatá-lo embora, como se sabe, a memória é traiçoeira e a narração também é interpretação. A interpretação predominante, quer nos anos de guerra, quer posteriormente, foi a de que o Paraguai agrediu o Império brasileiro sem ter motivos diretos para tanto. Na realidade essa interpretação não responsabilizava o país vizinho pela agressão, mas, sim, a Francisco Solano López. O raciocínio era de que López dominava de forma tirânica o seu país pois, como se sabe, no Paraguai a imprensa era estatal; não havia partidos políticos ou tolerância com qualquer tipo de oposição e o Congresso só funcionava quando convocado pelo Chefe de Estado. Todas as decisões governamentais relevantes eram de iniciativa de López, inclusive a de atacar as forças brasileiras em Mato Grosso e, posteriormente, as províncias de Corrientes, na Argentina, e o Rio Grande do Sul, no Brasil. Neste era tão forte a percepção do poder pessoal absoluto do governante paraguaio que, na imprensa na época da guerra e nos livros brasileiros dos anos 1870, classificava-se como “A Guerra do López” o conflito entre o Paraguai e a Tríplice Aliança. Os autores brasileiros, no inicio da guerra, caracterizavam López como um tirano ambicioso que desejava expandir sua influência no Rio da Prata, o que o levou a desencadear o conflito. Este era apresentado como a luta entre a civilização, de um Brasil onde havia monarquia parlamentar e a elite cultivava valores europeus, embora convivesse com a escravidão, contra a barbárie do déspota que mantinha o povo paraguaio tiranizado e alienado do resto do mundo. Nos dois anos finais da guerra, após se conhecer as prisões, torturas e mortes promovidas por López contra civis – inclusive seus irmãos - e militares paraguaios, supostamente por conspirarem, ele passou a ser classificado de sanguinário e assassino. Facilitou a consolidação dessa imagem depoimentos de prisioneiros sobreviventes, como a francesa Dorothéa Duprat de Lasserre que ao ser libertada fez um relato escrito de seu

4 sofrimento, cujo conteúdo tornou-se público, logo em 1.870 por meio de notícias na imprensa e que foi publicado na forma de livro em 1893.1 A guerra implicou em enormes sacrificios para o Estado Monárquico brasileiro. No plano financeiro, foram gastos cerca de 614 mil contos de réis, uma enormidade como pode ser visto ao se comparar com o orçamento do governo imperial referente ao ano de 1864: 57 mil contos de réis.2 A economia do Brasil expandia-se, graças ao aumento da agroexportação, e a guerra obrigou a transformar trabalhadores, produtores de riquezas, em soldados, consumidores de recursos. Em cada cinqüenta brasileiros, um foi mobilizado diretamente para o esforço de guerra e, se considerada apenas a parte alistável da população masculina, a proporção é de um homem para cada vinte na faixa entre 15 e 39 anos de idade. 3 No aspecto político a guerra, com sua longa duração e o enorme custo humano e financeiro daí decorrente, contribuiu para acirrar as contradições políticas – veja-se, por exemplo, os acontecimentos de 1868 -, e para desgastar as regras informais da luta pelo poder, que ocorria sob o controle do Imperador, e seus simbolismos. A guerra teve características particularmente difíceis para os exércitos aliados e a vitória sobre López, em 1º. de março de 1870, foi recebida com alivio e regozijo no Brasil. Após tantos sacrificios e dúvidas quanto à condução do conflito, passou-se à “louvação das glórias militares do Brasil e do Império”. Por encomenda oficial, foram pintadas grandes obras tratando de momentos da guerra: A Batalha do Avaí, de Pedro Américo, e Combate Naval do Riachuelo, de Victor Meirelles. 4 Construiu-se , no plano narrativo, uma guerra épica , utilizando-se de relatos daqueles que estiveram presentes na frente de luta, mas que, se de um lado não mostravam dúvidas quanto a ser o Paraguai de López o causador do conflito, por outra parte já demonstravam algum grau crítico, questionador do desempenho de chefes militares e das condições de vida do soldado. Com o fortalecimento do movimento republicano brasileiro, na década de 1870, apareceram críticas à atuação do Império do Brasil no Prata. Elas podiam ser encontradas principalmente nos jornais “A Reforma” e “A República”. Contudo, não questionavam a legitimidade da guerra mas, sim, a competência de alguns chefes militares e, principalmente, a validade da política do Gabinete Conservador brasileiro de conter suposto projeto 1

Memórias de Mme. Dorothéa Duprat de Lasserre: versão e notas de J. Arthur Montenegro. Rio Grande: Livraria Americana, 1893. 2 DORATIOTO, Maldita Guerra, cap. V. 3 SALLES, Memórias de guerra: Guerra do Paraguai e narrativa nacional, p. 134. Pelos cálculos de Salles, o Império teria enviado entre 150 e 200 mil pessoas para a guerra, enquanto outros autores citam números mais baixos. 4 Idem.

5 expansionista em relação ao Paraguai.5 Na realidade, essas críticas tinham como motivação principal as lutas políticas internas, na medida em que muitos dos altos oficiais brasileiros que lutaram no Paraguai eram filiados aos dois únicos partidos políticos do Império, o Conservador e o Liberal (o Republicano foi fundado em 1870); criticá-los por falhas no comando e aos governos liberais (1864-1868) e ao conservador (1868-1870) por faltas na condução da guerra, significava desgastar o Estado monárquico perante a população.

2 – A nova República brasileira e o surgimento do revisionismo

Após o golpe militar que derrubou o Estado Monárquico em 1889, e instalou a República no Brasil, a legitimidade da guerra passou a ser questionada pelos positivistas brasileiros. A nova realidade política criava uma situação ambígua quanto a Guerra do Paraguai, pois os dois militares de maior patente que participaram do golpe, generais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, haviam lutado no conflito com reconhecida bravura e não manifestaram dúvidas quanto a sua validade. Por outro lado, no imaginário popular boa parte dos heróis haviam lutado na Guerra do Paraguai, sendo o maior deles o general Osorio, morto em 1879. Osorio atuou com grande bravura – reconhecida, inclusive, do lado paraguaio - na batalha de Tuiuti, em 24 de maio de 1866, e sua atuação foi decisiva para rechaçar o ataque dos paraguaios. Em 1892, quando governava o Brasil o general Floriano Peixoto, seus restos mortais foram transferidos para a cripta do monumento erigido em sua homenagem na Praça XV de Novembro, no Rio de Janeiro. Contudo, o novo regime republicano tinha embasamento ideológico positivista e intelectuais adeptos deste pensamento, coerentes com seu caráter pacifista, condenavam a Guerra do Paraguai.6 Eles e outros aderentes da República também atuaram com a finalidade de justificar a nova realidade política brasileira e uma forma de fazê-lo era

criticando

homens e acontecimentos da história do Brasil Monárquico, inclusive o conflito com o Paraguai. Por temerem uma restauração monárquica voltaram-se principalmente contra Pedro II, que tinha sido uma figura popular, e esse temor persistiu por algum tempo. Por volta de 1891 os positivistas organizaram, no Rio de Janeiro, a Commissão Benjamin Constant. Sua finalidade era defender a devolução 5

ao Paraguai dos troféus

“A Reforma” (1868-1878) defendia o programa reformista do Partido Liberal, enquanto “A República” (18711874) era porta-voz do Partido Republicano. DORATIOTO, A imprensa de oposição e a política brasileira em relação ao Paraguai (1869 - 1875) p. 77-102. 6 BOSI, O positivismo no Brasil: uma ideologia de longa duração, p. 175.

6 conquistados pelo Império no conflito de 1865-1870, bem como a de obter o perdão da dívida de guerra paraguaia para com o Brasil. Essa entidade era ativa, tendo, ademais, caráter revisionista ao enaltecer Francisco Solano López. Nos primeiros anos após a instalação da República, travou-se verdadeira guerra ideológica entre intelectuais adeptos do novo regime e aqueles que defendiam a superioridade da antiga ordem monárquica. Destes destacavam-se intelectuais como André Rebouças, Joaquim Nabuco e o visconde de Taunay, herdeiros da corrente liberal progressista que se mantivera fiel à Monarquia. A República, na concepção desses pensadores e de outros intelectuais monarquistas, nada mais era do que “o resultado do concluio entre escravocratas descontentes com a Abolição da Escravidão em 1888 com o militarismo de inspiração platina”, que afastava o Brasil da Europa e da civilização, jogando-o na vala comum do caudilhismo hispanoamericano. 7 Já para os positivistas o regime monárquico era, por definição, incompatível com a forma republicana de governo e, como conseqüência, o Império do Brasil gerou desconfianças e foi agressivo com os países vizinhos, inclusive com o Paraguai. Em 1896 Joaquim Nabuco publicou “Nabuco de Araújo, um estadista do Império”, clássico de leitura indispensável para se conhecer politicamente o Império do Brasil. Nesse livro, Nabuco rejeita ter havido intenção brasileira de desencadear a guerra contra o Paraguai ao fazer gestões diplomáticas no Rio da Prata (Missão Saraiva) e pressão militar sobre o governo uruguaio. Nabuco justifica a ação do Império no Uruguai e, ainda, a Guerra de 18651870 como um intrumento de civilização, da liberdade, contra o despotismo. A interpretação que predominava sobre a Guerra do Paraguai foi essa que, com variações de ênfase e enfoque, definiu Francisco Solano López como chefe de Estado ambicioso e responsável por seu inicio. Na origem dessa versão predominavam os relatos de ex-combatentes, como Taunay, Dionísio Cerqueira e André Rebouças, mas havia, também, ensaios interpretativos. Essa interpretação constitui a historiografia clássica brasileira, assim classificada por ter sido a primeira a surgir e, mais, por ter construido um modelo explicativo que predominou por décadas para explicar a Guerra. Dos livros brasileiros sobre a guerra, de caráter memorialístico, “Reminiscências da Guerra do Paraguai”, de Dionisio Cerqueira é dos mais interessantes quer por seu conteúdo, quer pela condição do seu autor, tendo sido publicado três décadas após o fim do conflito.Cerqueira lutou toda a guerra, iniciando como alferes, e, na República brasileira, 7

COSTA, Resenha do livro ``O Quinto Século: André Rebouças e a construção do Brasil”, de Maria Alice Rezende de Carvalho, p. 173.

7 chegou a general e foi Ministro das Relações Exteriores. Nas suas memórias, ele reafirmou o relato tradicional sobre Francisco Solano López e não só reforçou os relatos brasileiros anteriores no reconhecimento da valentia do soldado paraguaio, como o trata com simpatia em diferentes passagens. As obras clássicas não deixavam dúvidas quanto a origem da guerra, mas muitas delas eram dúbias ao analisar a evolução do conflito. Embora justificassem a luta pela necessidade de responder à agressão de López ao Império, não escondiam a admiração pelos paraguaios que lutaram bravamente, preferindo a morte à rendição. Tamanha coragem não se harmonizava com a explicação de que os paraguaios lutavam devido ao terror que lhes infundia o ditador e as represálias que ele impunha a parentes e companheiros daqueles que não cumprissem suas ordens. A explicação não está errada, pois López de fato exercia o terror. Contudo ela está incompleta por não considerar que os paraguaios se convenceram do que dizia a propaganda lopizta: os aliados, se vitoriosos, poriam fim à independência do Paraguai. Assim, os soldados paraguaios resistiram bravamente porque estavam convencidos de que defendiam a soberania do seu país. Os positivistas do Rio de Janeiro persistiram, porém, na crítica à guerra e, no início do século XX, repercutindo o movimento que se iniciava no Paraguai reivindicando a condição de herói/vítima para Francisco Solano López e que tinha como líderes Ricardo Brugada Filho, Ignacio Pane e, principalmente, Juan Emiliano O`Leary, o qual seria nas décadas seguintes o defensor maior – chamado de “El Reivindicador” - dessa causa. Era a origem do chamado nacionalismo lopizta que preencheu um vazio ideológico da pequena juventude universitária paraguaia da época que buscava referências históricas em que se apoiar, para pensar o futuro do país, e se deparava unicamente com o discurso liberal de crítica do passado e de seus ditadores. Por outro lado, a partir de 1904, com a chegada do Partido Liberal ao poder, portador de idéias cosmopolitas e crítico do autoritarismo político do passado, aquele nacionalismo recrudesceu. Tal ocorreu quer como instrumento de luta política por parte do Partido Colorado, que foi alijado do poder, quer porque o nacionalismo pode se constituir “uma espécie de resposta oposicionista à modernização política”.8 Nesse contexto, foi iniciativa dos descendentes de Solano López de construir r a imagem heróica de Solano López. Ocorre que em agosto de 1869 do governo provisório 8

BREUILLY, Abordagens do nacionalismo, p. 180. John Breuilly escreve pensando na realidade européia, mas creio que merece ser motivo de reflexão sobre o nacionalismo no Paraguai no início do século XX, em um ambiente político no qual o Partido Liberal era cosmopolita, tinha maior força política no meio urbano, enquanto o Partido Colorado, apeado à força do poder, era conservador e tinha sua principal base social no campo.

8 paraguaio, declarou Francisco Solano López traidor da pátria e fora da lei; outro, de 19 de março de 1870, embargou seus bens e de seus familiares, inclusive da "concubina" Elisa Lynch, por serem de origem "bastarda e ilegítima", resultantes do enriquecimento às custas de propriedades públicas. Um terceiro decreto, de 4 de maio de 1870, transferiu os bens de Solano López para o Estado e aqueles que constavam como sendo de Elisa Lynch, foram embargados, devendo ela esclarecer seu enriquecimento. Os decretos foram aprovados pelo Legislativo paraguaio, bloqueando-se a possibilidade jurídica de seus herdeiros reclamar essas propriedades na justiça.9 A busca do reconhecimento, pelos descendentes de Francisco Solano López, do direito em herdar os bens de que seus pais se apropriaram durante a guerra, explica, em parte, a transformação da sua imagem de tirano para a de herói. Os herdeirosse aliaram a paraguaios influentes com vistas a iniciar uma campanha para conseguir a revogação do decreto de 1869 e, assim, resgatar os direitos civis de Francisco Solano López. Alcançado tal objetivo e criado ambiente político favorável, os obstáculos jurídicos seriam contornados para que os descendentes de Solano López e Elisa Lynch obtivessem a devolução das propriedades e dos bens que seus pais possuíram. "O Senhor O'Leary lançou-se na campanha lopizta por interesses inconfessáveis de dinheiro" e nela permaneceu ao dar-se conta de que era fonte de prestígio e vantagens materiais. 10 Cecílio Báez, escritor e político paraguaio, escreveu na década de 1920, que o movimento de recuperação da imagem de Solano López “e simplesmente uma empresa mercantil”. 11 Quando assumiu o cargo de Encarregado de Negócios do Paraguai no Brasil, Ricardo Brugada foi homenageado pela Commissão Benjamim Constant. Esta publicou um folheto no qual constava o discurso de Brugada na cerimônia em sua homenagem, bem como artigos da imprensa e pronunciamentos favoráveis ao revisionismo. Constava dessa publicação um artigo que o deputado Barbosa Lima escrevera para o jornal “O Diário”, classificando López como “bravo”, embora, também, como “ditador”. Referindo-se à idéia de perdoar a dívida de 9

JUNTA PATRIÓTICA PARAGUAYA, El mariscal Francisco Solano López, p. 391-407. Durante a guerra, Elisa Lynch que chegara ao Paraguai na década 1850 sem recursos financeiros, se tornou proprietária de terras e imóveis. Ela recebeu do governo paraguaio 33.175 quilômetros quadrados em território litigioso com o Brasil e também se tornou proprietária de uns 4.375 quilômetros quadrados entre os rios Bermejo e Pilcomayo, território reconhecido como argentino no pós-guerra, e, ainda, outros 135 mil quilômetros quadrados na região oriental do Paraguai. Lynch se tornou proprietária, ainda, de 29 imóveis urbanos, sendo 27 deles em Assunção. DORATIOTO, Maldita Guerra, p. 81-82. 10 Relatório Político sobre o Paraguai (Confidencial), por Arthur dos Guimarães Bastos, 2º Secretário da Legação em Assunção. Anexo ao ofício 122, Assunção, 5.10.1931. Arquivo Historico do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil), LBPOE, 201-4-6. 11 BÁEZ, La tirania de Solano López; su aspecto comercial in JUNTA PATRIÓTICA PARAGUAYA, op. cit., p. 133.

9 guerra, o deputado dizia que o Paraguai não necessitava de perdão, mas, sim, “a cruel política de Pedro II”.12 No Primeiro Congresso de História, em 1910, organizado pelo Instituto de História e Geografia do Brasil, foram apresentadas quatro dissertações sobre a Guerra do Paraguai. Todas eram escritas por militares, mas afastados da censura positivista à guerra. Essas dissertações constituíam um “conjunto bastante homogêneo, cujo enfoque privilegia a arte da guerra , com detalhadas descrições das situações de combate, mas sempre entrecortadas por relatos de episódios de bravura e patriotismo”.13 Persistia, porém, o contra-discurso positivista de recusa em reconhecer legitimidade nas causas do Império do Brasil para ter travado a guerra. Nesse mesmo ano de 1910, em 25 de maio, data da batalha de Tuiuti, o líder Raimundo Teixeira Mendes publicou artigo no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, no qual contestava as comemorações pela derrota paraguaia nesse combate. Segundo Teixeira Mendes, a data somente poderia ser motivo de alegria para os brasileiros e para a Humanidade, quando o Brasil “assimilar a cabal reparação do crime que a Guerra do Paraguai constitui”.14 Faltava aos positivistas documentos que isentassem Francisco Solano López da sua parte de responsabilidade pelo inicio da guerra e colocassem em xeque a historiografia clássica. Esta, por outro lado, apresentava documentos que demonstravam ter López se deixado convencer

– ou simulou que se convencera –, pela diplomacia uruguaia, de que a

intervenção brasileira e argentina na guerra civil do Uruguai, apoiando os rebeldes colorados, se voltaria posteriormente contra o Paraguai. Documentos neste sentido foi publicada por Hélio Lobo, em 1914, no livro Antes da Guerra, na qual transcrevia a polêmica travada, na década de 1880, entre Antonio Saraiva, enviado do governo imperial ao Uruguai em 1864, e Vásquez Sagastume, representante uruguaio em Assunção que afirmou a López estar arriscada a independência uruguaia.15 Teixeira Mendes retornou ao tema em 1920, no livro “A Guerra do Paraguai”, no qual criticou duramente a política externa do Segundo Império. Após analisar a importância da questão da livre navegação dos rios platinos na herança, para Buenos Aires e Rio de Janeiro, da disputa histórica entre as metrópoles portuguesa e espanhola, denunciou Pedro II por rejeitar 12

arbitramentos que poderiam ter substituido as guerras na política do Estado

BRUGADA, Brasil-Paraguay, p. 76-77; p. 97-98 e 151. GUIMARÃES, Primeiro Congresso de História Nacional: breve balanço da atividade historiográfica no alvorecer do século XX, p. 167. 14 In : ALEMBERT, O Brasil no espelho do Paraguai, p. 314. 15 LOBO, Antes da guerra (a Missão Saraiva ou os preliminares do conflicto com o Paraguay). 13

10 Monárquico. Mendes acusou Pedro II de criminoso, de crime de lesa a humanidade, por sacrificar milhares de brasileiros e levar o Paraguai à ruína e interpretou como obsessão a exigência da retirada de López do poder no Paraguai, como constava no Tratado da Tríplice Aliança, para se chegar a paz.16 Na década de 1920 eram poucos os positivistas sobreviventes da campanha contra a Monarquia brasileira, sendo que o próprio Teixeria Mendes morreu em 1927. A influência filosófica e política do positivismo decaiu com a morte de suas lideranças históricas e, ainda, em decorrência das mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira na década de 1920: urbanização; industrialização; desenvolvimento de idéias socialistas; questionamento do poder oligárquico e surgimento de novos valores culturais. As efemérides do cinquentenário do final da Guerra do Paraguai (1920) e o centenário do nascimento de Francisco Solano López (oficialmente nasceu 1826)

permitiram aos

nacionalistas robustecer o movimento de revisão da figura do ditador e do próprio significado do conflito. Construiram um passado mítico, uma “idade de ouro” do Paraguai, que foi, por sua vez, instrumentalizado nas lutas políticas internas do país. Assim, os liberais foram classificados de “legionários”, termo que os nacionalistas transformaram em sinônimo de traidores da pátria e tinha como origem a Legión Paraguaya, composta de exilados paraguaios que viviam em Buenos Aires e que lutou ao lado das tropas argentinas contra López. A invenção dessa “idade de ouro” no Paraguai pré-guerra, que teria sido possível graças ao isolamento do país do exterior e destruída pela ação por exércitos estrangeiros, implicou no desenvolvimento de uma dimensão xenofóbica por parte do nacionalismo lopizta. Esse movimento paraguaio repercutiu no Brasil, levando diferentes autores a contestála. Assim, o jornalista e futuro ministro do Trabalho (1930-1932) Lindolfo Collor publicou vários artigos críticos ao líder paraguaio em jornais e os reuniu no livro “No centenário de Solano López” (São Paulo: Melhoramentos, 1926). Em 1927, Luis da Câmara Cascudo, importante estudioso do folclore brasileiro, publicou “López do Paraguai” (Natal: Editora República), fazendo verdadeira defesa do Império do Brasil, de suas instituições políticas, argumentando que elas permitiram a estabilidade do país enquanto no Rio da Prata isso não ocorrera e, no Paraguai, não se podia confundir o despotismo com estabilidade. No ano seguinte, em 1928, Baptista Pereira publicou conferências que fizera sobre a Guerra do Paraguai no livro “Civilização contra barbárie” (São Paulo: Rossetti&Câmara). Nele ratificou a interpretação clássica de que, no conflito, se enfrentaram a Civilização, os Aliados, cujas

16

MENDES, A Guerra do Paraguai.

11 sociedades eram relativamente liberais, e o Paraguai de López, cujas características despoticas representavam a barbárie. Em seguida, o coronel Mário Barreto lançou o primeiro de três volumes de “A campanha lopesguaya” , em resposta às obras favoráveis a López. O trabalho de Barreto ia além do caráter opinativo e da repetição de conhecidos argumentos; fundamentava-se em documentos do Arquivo Nacional paraguaio, capturado por tropas imperiais em 1869 e levado para o Rio de Janeiro, como presa de guerra. Pouco depois, nos anos de 1934 e 1935, Augusto Tasso Fragoso publicou os cinco volumes de “História da Guerra entre a Triplice Aliança e o Paraguai” (Rio de Janeiro: Imprensa do Estado-Maior do Exército). Trata-se da obra maior da historiografia clássica, quer por consolidar informações e análises anteriores, quer pela aplicação do

método

histórico, com a utilização de fontes primárias escritas; confrontando-as e interpretando-as. Embora Tasso Fragoso fosse general, seu trabalho não tinha caráter o mesmo caráter apologético do lado aliado, como alguns outros estudos. Escrevendo em linguagem comedida, Tasso Fragoso buscava, sim, contextualizar as origens do conflito; entender a lógica que moveu López a desencadear da guerra e avaliar as críticas feitas a decisões tomadas pelos comandantes dos exércitos em luta. A erudição e a qualidade da análise de Tasso Fragoso fez com que seu trabalho persistisse, nas quatro décadas seguintes, como “a última palavra” sobre a Guerra do Paraguai e que continue sendo de consulta indispensável ainda hoje. Nesse período não houve maior interesse sobre a Guerra do Paraguai por parte de historiadores civis interessados nesse tema, de um lado porque tinham sua atenção voltada para a participação militar brasileira na II Guerra Mundial, na qual uma Divisão do Exército brasileiro lutou na Itália. Essa participação seu deu em um contexto no qual o ditador Getúlio Vargas, 17 negociou com os EUA apoio para o desenvolvimento da indústria pesada brasileira (siderúrgica, industria química e fábrica de motores), com contrapartida para o alinhamento brasileiro à causa dos aliados contra o nazifascismo. A Guerra do Paraguai nada trouxe para o desenvolvimento econômico brasileiro, ao contrário, produziu gastos estéreis e causou a morte de milhares de homens, enquanto a participação na II Guerra Mundial fez parte da construção do Brasil moderno; este é um dos motivos para a atração desta última para os estudos de História Militar. Por outro lado, com a instalação do regime militar no Brasil, em 1964, os estudiosos civis priorizaram entender o processo político da República e o papel nele desempenhado pelo Exército, de 17

Getúlio Vargas assumiu o poder em 1930, à frente de um golpe de Estado que pôs fim à República oligárquica. Presidente constitucional desde 1934, em 1937 deu um golpe de Estado que instalou o regime autoritário do Estado Novo. Deposto do poder, em 1945, e a ele retornou em 1951, como presidente eleito, e se suicidou em 1954, como consequência de grave crise política.

12 modo a melhor compreender o regime autoritário que se instalara. Por fim, os arquivos sobre a Guerra do Paraguai estiveram, até há pouco inacessíveis, quer pela desorganização, quer por seu caráter secreto, como foi o caso da famosa documentação existente no Arquivo Histórico do Itamaraty. Esta, ao terminar seu sigilo em 1994, nada revelou de bombástico e, mesmo decepcionou, pois continha documentos de negociações diplomáticas do pós-guerra e, mesmo, um manual de química. Por esses motivos,

após 1964 o tema Guerra do Paraguai foi

praticamente monopólio de militares interessados em História, que produziram trabalhos pontuais sobre batalhas e aspectos organizacionais.

3 – O revisionismo moderno e a Nova Historiografia Essa situação mudou em 1979, quando foi publicado o livro “Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai” (São Paulo: Brasiliense), do jornalista Julio José Chiavenatto. Trabalho critico quanto ao papel do Império na guerra, o livro era particularmente duro com o duque de Caxias, comandante-em-chefe das forças brasileiras a partir de novembro de 1866. Chiavenatto teve coragem pessoal ao publicar esse livro durante o regime militar, o qual, embora já estivesse no ocaso, ainda mantinha o sistema repressivo, e tem o mérito de ter criado maior interesse para a história da Guerra do Paraguai. Contudo, o próprio Chiavenatto reconhece, no livro, seu caráter jornalístico, escrito com “paixão” segundo ele e não com critérios metodológicos historiográficos. No entanto, apesar dessa declaração, os revisionistas brasileiros e de países vizinhos o citam como se fosse um trabalho historiográfico. “Genocidio Americano” constitui-se, na realidade, uma simplificação das idéias do historiador argentino León Pomer, expostas no livro intitulado “La Guerra del Paraguay, gran negocio!”, publicado em 1968. A emoção que Chiavenatto procura criar com seu texto, com descrições indignadas conta ações militares aliadas e a descrição estereotipada – e falsa – das partes em luta, camufla sua incoerência lógica e a fragilidade das suas fontes. O trabalho de Pomer, que sustenta-se em bases menos frágeis, com citações de fontes primárias e secundárias, foi publicado no Brasil em 1980, com o titulo de “A guerra do Paraguai, grande negócio” (São Paulo: Global). Este livro e “Genocídio Americano” constituem marcos fundadores do movimento revisionista brasileiro e se constituíram em fontes repetidas por outros autores que, até meados da década de 1990, reafirmaram a tese do imperialismo inglês para explicar as

13 origens da guerra. 18 Essa interpretação predominou nos livros de História destinados a estudantes de 1º. e 2º. Graus nas décadas de 1980 e 1990. Nos dias atuais, porém, poucos são os livros didáticos que utilizam a interpretação revisionista para explicar a Guerra do Paraguai. No livro “Maldita Guerra” apresentei minha interpretação para os surgimento desse revisionismo e para o fato de seus frágeis argumentos serem repetidos no Brasil, de forma acrítica, por historiadores profissionais que, por formação, deveriam ser críticos. Sob o risco de ser monótono repito o que escrevi:

Os pressupostos e conclusões desses e de outros trabalhos revisionistas sofreram forte influência do contexto histórico em que foram escritos. As décadas de 1960 e 1970 caracterizaram-se, na América do Sul, por governos militares. Uma forma de se lutar contra o autoritarismo era minando suas bases ideológicas. Daí, em grande parte, a acolhida acrítica e o sucesso em meios intelectuais do revisionismo sobre a Guerra do Paraguai: por atacar o pensamento liberal; por denunciar a ação imperialista e por criticar o desempenho dos chefes militares aliados, quando um deles, Bartolomé Mitre, foi expoente do liberalismo argentino, e, no Brasil, Caxias e Tamandaré, tornaram-se, respectivamente, patronos do Exército e da Marinha. Nota-se, ainda, nas entrelinhas de trabalhos revisionistas, a construção de certo paralelismo entre a Cuba socialista, isolada no continente americano e hostilizada pelos Estados Unidos, e a apresentação de um Paraguai de ditaduras "progressistas" e vítima da então potência mais poderosa do planeta, a GrãBretanha.”19

Para o revisionismo brasileiro o processo que desencadeou a Guerra do Paraguai foi mero reflexo da ação e dos interesses do imperialismo britânico. As elites do Brasil e da Argentina são caracterizados como instrumentos desse imperialismo e responsáveis pela manuntenção de economias atrasadas mas das quais se beneficiavam. Francisco Solano López, por sua vez, é apresentado como líder anti-imperialista à frente de um Paraguai progressista, que se industrializava de forma autônoma, sem dependência externa e que se recusava a abrir seu mercado ao capital internacional. Como resultado, segundo o revisionismo, a Grã-

18

Ver MOTA, História de um silêncio: a Guerra do Paraguai 130 anos depois e AMAYO, Guerras imperiais na América Latina do século XIX – A Guerra do Paraguai em perspectiva histórica. 19 DORATIOTO, Maldita Guerra, p. 87.

14 Bretanha se voltou contra o Paraguai, tendo como objetivos como objetivos abrir a economia paraguaia para seus produtos manufaturados; ter acesso ao algodão paraguaio para a indústria inglesa de tecidos , que tivera cortado seu abastecimento tradicional devido a guerra civil norte-americana (1860-1865) e, ainda, de eliminar o modelo autônomo

paraguaio de

desenvolvimento que poderia ser seguido por outros países, comprometendo a predominância britânica na América do Sul. Em síntese, a Guerra do Paraguai teria resultado do confronto entre a estratégia de crescimento paraguaia, sem dependência dos centros capitalistas, e a da Argentina e do Brasil, dependente do ingresso de recursos financeiros e tecnológicos estrangeiros. Contudo, desde meados de 1980 surgiu uma nova corrente historiográfica que buscou as causas da Guerra do Paraguai no próprio processo histórico dos países platinos. Liliana Brezzo a classificou, muito apropriadamente, como “Nueva historiografia sobre la Guerra de la Triple Alianza”. 20 Uma historiografia que se caracteriza por pesquisa sólida em fontes primárias, o que lhe permite concluir que as origens da guerra estão no próprio processo histórico regional; que o Paraguai não constituía exemplo de modernidade econômica e social no período que antecedeu o conflito; que a Grã-Bretanha obtivera fontes alternativas aos EUA no fornecimento de algodão e, ainda, analisar criticamente os personagens que participaram do processo que levou ao enfrentamento armado, em lugar de robustecer mistificações. No Brasil, essa Nova História iniciou-se com a publicação, em 1985, do livro “O expansionismo brasileiro: o papel do Brasil na bacia do Prata; da colonização ao Império” (Rio de Janeiro: Philobiblion), de Luiz Alberto Moniz Bandeira, na realidade tese de doutorado que ele defendera dois anos antes na Universidade de São Paulo.21 Esse trabalho pioneiro permaneceu solitário e pouco divulgado até a década de 1990, quando a ele vieram se juntar estudos que, embora feitos por historiadores de diferentes universidades do país e sem contato entre si, possuiam interpretações semelhantes para as origens da guerra e eram criticos ao revisionismo. São eles, em ordem cronológica: Ricardo Salles com “Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército” (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990); Francisco Doratioto com “Guerra do Paraguai; 2ª. Visão” (São Paulo: Brasiliense, 1991); Wilma Peres Costa com

“A espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e

a crise do Império” (São Paulo: Hucitec, 1996); Victor Izeckson com “O cerne da discórdia: a 20

BREZZO, La historiografia paraguaya : del aislamiento a la separación de la mediterraneidad. No Paraguai, porém a refutação da responsabilidade do imperialismo inglês ocorreu já em 1982, quando HERKEN KRAUER e GIMÉNEZ DE HERKEN publicaram o livro “Gran Bretaña y la Guerra de la Triple Alianza”. 21

15 Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército brasileiro” (Rio de Janeiro: E-papers); Alfredo da Mota Menezes com “Guerra do Paraguai: como construímos esse conflito” (São Paulo: Contexto, 1998); André Toral “Imagens em Desordem: a iconografia na Guerra do Paraguai (São Paulo: Humanitas, 2001) e Ana Paula Squinelo com “A Guerra do Paraguai, essa desconhecida... ensino, memória e história de um conflito secular” (Campo Grande: UCDB, 2002). Em 2002 publiquei meu livro “Maldita Guerra, nova história da Guerra do Paraguai” (São Paulo: Cia das Letras), que teve importante repercussão e que, como se vê, não é um trabalho isolado, encontrando-se inserido em uma tendência historiográfica brasileira. Mais recentemente, Ricardo Salles publicou a bela obra intitulada “Guerra do Paraguai; memória & imagens (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2003). Também foram publicados livros sobre aspectos específicos da Guerra do Paraguai, sem aprofundar no debate sobre suas causas, mas baseados em extensa pesquisa em fontes primárias e seguindo o método histórico, distanciando-os das abordagens revisionistas. São eles: Mauro César Silveira com “A batalha de papel” (Porto Alegre: L&PM, 1996); Jorge Prata Sousa com “Escravidão ou morte; os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai (Rio de Janeiro: MAUAD, 1996); Renato Lemos com “Cartas da Guerra; Benjamin Constant na Campanha do Paraguai (Rio de Janeiro: IPHAN, 1999); André Toral com “Adeus chamigo brasileiro; uma história da Guerra do Paraguai” (São Paulo: Cia. das Letras, 1999) e, mais tarde,Marco Antonio Cunha com “A chama da nacionalidade; ecos da Guerra do Paraguai” (Rio de Janeiro: Bibliex, 2000) e Divalte Garcia Figueira com “Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai” (São Paulo: Humanitas, 2001). A “Nueva Historiografia sobre la Guerra de la Triple Alianza” está isenta de ideologia? Exceto para o pensamento positivista, a resposta só pode ser não. Sabe-se, muito bem, que toda produção intelectual carrega consigo valores da época em que foi escrita e do seu autor. A Nova Historiografia emergiu no contexto de liberdade, após o fim das ditaduras no Cone Sul e, no plano mundial, do término da Guerra Fria. Ela é resultado da liberdade e da ação de estudiosos que, seguindo o método histórico, ousaram expor conclusões próprias, contrárias às dominantes apresentadas pelo revisionismo. Aqueles acontecimentos viabilizaram a abertura de arquivos; proporcionaram maior liberdade acadêmica e a oxigenação de idéias e temas no ambiente universitário, criando as condições para a ousadia intelectual por parte dos historiadores, que passaram a questionar a precária interpretação revisionista sem a preocupação anterior de que essa crítica fortalecesse ideologicamente regimes autoritários no poder. Foi a redemocratização dos países que lutaram na Guerra do Paraguai que permitiu superar o revisionismo simplificador, embora este ainda seja defendido por alguns saudosistas,

16 todos criticos dos valores democráticos. Estes são “burgueses” dirão os marxistas-leninistas e outras correntes totalitárias de esquerda e ainda se enganam interpretando a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS unicamente como vitória do capitalismo, quando também foi uma vitória dos povos em busca de liberdade. Para esses críticos não interessa os documentos dos arquivos, não interessa aplicar o pensamento lógico às causas da guerra e a seu desenrolar, pois ao serem anti-imperialistas e anti-democráticos no presente, projetam sua visão de História no passado. Interessa-lhes a versão, não os fatos; interessa-lhes “ideologizar” o debate sobre as origens da Guerra do Paraguai e praticar o ensaísmo pois não possuem pesquisas para sustentar suas conclusões. Fogem da apresentação de documentos e do raciocínio lógico da relação causa-efeito, bem como a sequência cronológica das origens da guerra e de seu desenrolar. Quanto à direita, bem se sabe que o nazifascismo tinha, em sua origem, um discurso anti-imperialista e que influenciou o pensamento revisionista argentino e paraguaio. O robustecimento do movimento de “recuperação” da figura de Francisco Solano López e sua ascensão oficial a herói nacional paraguaio, nos anos 1930 e 1940, foi também de exaltação de sua ditadura, o que estava em harmonia com a ascensão, no plano internacional, das ditaduras fascistas. Ditaduras do presente buscam legitimar-se fazendo a apologia de ditaduras do passado e a continuidade desta prática, incorporada à cultura histórica/política de um país, por sua vez, não contribui ao funcionamento de regimes democráticos, quer no século passado, quer nos dias atuais. No caso do Paraguai, é evidente a associação da direita com o nacionalismo lopizta: Solano López foi declarado herói nacional em 1.936, pelo coronel Rafael Franco que assumiu o poder após derrubar o presidente constitucional Eusebio Ayala, do Partido Liberal, e foi o ditador Alfredo Stroessner (1954-1989) que elevou o chamado lopizmo à condição de ideologia oficial de Estado.22 Na interpretação da Guerra do Paraguai convergiram a esquerda e a direita mais extremadas e não foi por acaso mas, sim, porque para ambas a democracia não é um valor universal. As vítimas dessa convergência foram várias gerações de estudantes e a historiografia. Se também a Nova Historiografia é portadora de uma carga ideológica, o que a torna superior à revisionista? Basicamente o fato de a Nova Historiografia estar solidamente fundamentada em pesquisas que seguem o método histórico e que foram submetidas, durante as diferentes etapas do seu desenvolvimento, ao controle interno acadêmico/científico

22

Sobre a construção do pensamento autoritário no Paraguay ver RODRÍGUEZ ALCALÁ, Ideologia autoritária.

17 (projetos de pesquisa; exames de qualificação; bancas examinadoras; publicações em revistas especializadas, etc.) e, por último, à crítica externa. Neste aspecto, os autores revisionistas mantiveram-se praticamente em silêncio quanto ao seu questionamento, no Brasil e em outros países, não apontando falhas de lógica interna ou de base documental nos trabalhos da Nova Historiografia. As poucas críticas revisionistas constituem, em si, a prova da superificialidade e da motivação ideológica primária do revisionismo, pois se limitam a tentar rotular os novos trabalhos que surgiram; não são feitas ressalvas às fontes e, menos ainda, à interpretação da documentação.as resenhas críticas externas. A aplicação do método histórico, pela Nova Historiografia, permite restringir o nível de subjetividade e de deturpação ideológica da interpretação do fato histórico. A produção revisionista era militante, tendo como objetivo encontrar no passado elementos que permitissem confirmar sua visão do que deveria ser o mundo no presente e, principalmente, no futuro. Se os fatos históricos não se adaptassem a essa visão, fazia-se “releituras” deles ou, então, os ignorava. Foi desse modo que a sociedade paraguaia da época dos López (Francisco Solano sucedeu no poder a seu pai, Carlos Antonio) foi apresentada quase como uma sociedade protosocialista cuja economia seria avançada e moderna. Eis também o motivo para o revisionismo ignorar que, ao começar a Guerra do Paraguai, o Império brasileiro estava de relações diplomáticas rompidas com a Grã-Bretanha, somente restabelecendo-as em outubro de 1865. Sem argumentos reais, prisioneiros de um discurso sem base documental, os poucos defensores brasileiros do revisionismo buscam adjetivar a Nova Historiografia com rótulos, sendo um deles o de acusá-la de ser uma recaída patriótica. Contudo, são desmentidos pela qualidade de vários trabalhos dessa historiografia. Pode-se aplicar a esse revisionismo um verso da música “O Tempo não pára”, do falecido compositor e cantor brasileiro Cazuza:

As suas idéias não correspondem aos fatos.

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18

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19 SMITH, Anthony D. O nacionalismo e os historiadores in BALAKRISHNAN, Gopal (org.), op. cit.

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