HISTÓRIA E IMPRENSA: REFLEXÕES SOBRE O USO DE TEXTOS JORNALÍSTICOS COMO FONTE DOCUMENTAL PARA O TRABALHO HISTORIOGRÁFICO

May 31, 2017 | Autor: Benedita Sipriano | Categoria: Bakhtin, História Da Imprensa, História e Imprensa
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SIPRIANO, B.F. História e Imprensa: reflexões sobre o uso de textos jornalísticos como fonte documental para a História. In: ZAVAM, Aurea; ARAÚJO, Nukácia (Org.). Anais do I Colóquio Nacional de Língua, Documentos e História – Diacronia e sincronia: diálogos possíveis. Fortaleza: EDUECE, 2013. p. 206-217. Acesso em < http://coloquio-nacional-chronos.webnode.com/news/anais-chronos-2013/>

HISTÓRIA E IMPRENSA: REFLEXÕES SOBRE O USO DE TEXTOS JORNALÍSTICOS COMO FONTE DOCUMENTAL PARA O TRABALHO HISTORIOGRÁFICO Benedita França Sipriano (UECE) 1

Resumo Este trabalho objetiva discutir as relações entre imprensa e história, em especial a utilização de textos jornalísticos como fonte documental para a pesquisa historiográfica. A partir de um levantamento bibliográfico, em autores como Martins & Luca (2008), Luca (2005), Capelato (1988) e Zicman (1985), articulando com a discussão sobre discurso jornalístico Rüdiger (2003) e Mariani (1999) e linguagem Bakhtin/ Volochínov (1990); Bakhtin (2002), pretendemos trazer uma contribuição para o debate acerca das relações entre história e imprensa brasileira. O jornalismo é uma atividade de linguagem, assim, nesta pesquisa, consideramos que os textos jornalísticos não são transparentes, nem meros instrumentos transmissores de informação. As práticas de linguagem, na perspectiva aqui trabalhada, devem ser compreendidas a partir de sua historicidade, de sua efetivação nas mais diversas situações concretas de interação (Bakhtin/ Volochínov, 1990; Bakhtin, 2002). É importante destacar que a utilização da imprensa como fonte documental requer um questionamento à ideia de que os textos jornalísticos são registros precisos, “espelhos da realidade”, pois o discurso jornalístico está situado historicamente e é palco de embates ideológicos, da tensa relação dominação x resistência dos vários grupos sociais. Palavras-chave: Linguagem, Imprensa, História Considerações iniciais

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Mestranda do Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Graduada em Comunicação Social- Jornalismo (UFC) e em Letras - Português/Literatura (UECE). E-mail: [email protected]

No final do século XIX e início do século XX, o trabalho do historiador tinha como principal objetivo a busca pela “verdade dos fatos”, que seria atingível por meio dos documentos. Assim, os jornais não eram considerados documentos objetivos, pois seriam marcados por imagens parciais e subjetivas da realidade. Nesse sentido, Tânia Regina de Luca (2005) destaca que, até a década de 1970, ainda era pequeno o número de trabalhos que utilizavam os jornais como fonte para o estudo historiográfico. Essa autora enfatiza que os periódicos, e o jornal em particular, eram considerados, até então, como fontes não confiáveis, pois não teriam o critério de neutralidade, objetividade e mesmo de credibilidade, requisitos considerados básicos para que um documento fosse alçado à categoria de objeto de estudo pelo historiador. Conforme Luca (2005, p.112), Para trazer à luz o acontecido, o historiador, livre de qualquer envolvimento com seu objeto e senhor de métodos de crítica textual precisa, deveria valer-se de fontes marcadas pela objetividade, neutralidade, fidedignidade, credibilidade, além de suficientemente distanciadas de seu próprio tempo. Estabeleceu-se uma hierarquia qualitativa dos documentos para a qual o especialista deveria estar atento. Nesse contexto, os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que “essas enciclopédias do cotidiano” continham registros fragmentários do presente, realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez de permitirem captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas.

Assim, o uso da imprensa como fonte documental surge no bojo de uma renovação das problemáticas, objetos, fontes e procedimentos metodológicos do fazer historiográfico. 1 O jornal como fonte documental para a História Segundo Zicman (1985), nas relações entre História e Imprensa, destacam-se dois grandes campos de estudos: a História através da Imprensa e a História da Imprensa. O primeiro engloba trabalhos que utilizam a imprensa como fonte primária para a pesquisa histórica e o segundo reúne trabalhos que objetivam reconstruir a trajetória e as características dos órgãos de imprensa em determinado período da História. A autora destaca que a “Imprensa é rica em dados e elementos, e para alguns períodos é a única fonte de reconstituição histórica permitindo um melhor conhecimento das sociedades ao nível de suas condições de vida, manifestações culturais e políticas, etc.” (ZICMAN, 1985, p. 89).

O presente trabalho tem como foco a abordagem do primeiro campo de estudos: a utilização da imprensa como fonte documental para a História. Luca (2005) destaca que, até a década de 1970, no Brasil, já era possível verificar um considerável número de trabalhos voltados para a escrita da História da imprensa, entretanto ainda havia certa relutância em se utilizar os periódicos para a escrita da História por meio da imprensa. O uso do jornal como fonte para a pesquisa historiográfica começa a se acentuar a partir dessa década e está inserido em um processo de reação ao paradigma tradicional de História. Oliveira (2011) destaca que tal mudança representa um reflexo da rebelião historiográfica contra a velha Escola Metódica. “A „rebelião‟ buscou não apenas uma nova interpretação do conhecimento histórico, mas também novas fontes de pesquisa para o historiador” (OLIVEIRA, 2011, p.126). Essa ruptura com as práticas tradicionais da História se intensifica na segunda metade do século XX, mas já vinha sendo desenvolvida anteriormente, em especial a partir da década de 1920, com a fundação da revista Annales, que tem como principais articuladores Lucien Febvre e Marc Bloch. Peter Burke (1997) destaca que o movimento dos Analles trazia como principais propostas, em sua primeira fase2: a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema; a superação da restrição dos estudos historiográficos ao campo da política; e a aproximação da história com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a economia e a linguística. Assim, autores como Le Goff (1998) associam a chamada História Nova a esse processo de renovação dos estudos historiográficos, empreendido pelo movimento dos Analles. De acordo com esse autor (1998, p.30) Sobretudo, a história nova já tem uma tradição própria, a dos fundadores da revista “Annales d‟historire économique et sociale”. [...] Antes de tudo, tirar a história do marasmo da rotina, em primeiro lugar de seu confinamento em barreiras estritamente disciplinares, era o que Lucien Febvre chamava, em 1932, de “derrubar as velhas paredes antiquadas, os amontoados babilônicos de preconceitos, rotinas, erros de concepção e de compreensão”.

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Segundo Peter Burke (1997), o “movimento” dos Annales pode ser dividido em três fases. A primeira, de 1920 a 1945, tem como principais representantes Lucien Febvre e Marc Bloch e caracteriza-se pela crítica à História tradicional rankeana. A segunda fase, de 1946 a 1968, marcada pela presença de Fernand Braudel, é a fase em que o movimento “mais se aproxima verdadeiramente de uma „escola‟” (Burke, 1997, p.12). A terceira fase, iniciada em 1968, é liderada por Jacques Le Goff e Georges Duby e é marcada pela fragmentação e diversidade de abordagens.

Conforme Burke (1992) a chamada História Nova (ou Nova História) representa uma reação deliberada ao paradigma tradicional e possui algumas características que se opõem a essa tradição, entre elas: o interesse por toda atividade humana, não só a política; “a história vista de baixo”, ou seja, a visão de que o estudo historiográfico não deve concentrar-se nos feitos dos “grandes homens”, pois deve estar voltado para as pessoas comuns; a crítica à suposta objetividade do trabalho do historiador e à concepção de tradicional de documento, segundo a qual as fontes do trabalho do historiador deveriam ser os registros escritos e oficiais. Sobre esse aspecto, Peter Burke (1992), destaca que, na perspectiva tradicional, os estudos historiográficos deveriam utilizar como fonte registros emanados do governo e preservados em arquivos, entretanto, “os registros oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial. Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos rebeldes, tais registros necessitam ser suplementados por outros tipos de fonte” (BURKE, 1992, p. 11). A partir da História Nova ocorre o que Le Goff (1998) chama “revolução documental”, pois o campo do documento histórico é ampliado e incorporam-se outros tipos de fontes e não apenas as oficiais. De acordo com Le Goff (1998, p.28). Produtos de escavações arqueológicos, documentos orais, etc., uma estatística, uma curva de preços, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais distante, um pólen fóssil, uma ferramenta, um ex-voto, são, para a história nova, documentos de primeira ordem.

A proposta de novas abordagens e novos objetos na pesquisa historiográfica resultou na busca de novas fontes para suplementar as oficiais, assim a utilização do jornal como fonte documental surge no contexto dessa mudança de paradigma. Capelato (1988, p.13) destaca que “o periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época”. Essa autora (1988, p. 24) enfatiza, ainda, que: O respeito sagrado pelo documento [da história positivista] desaparece e com ele o mito do historiador-cientista, dono da verdade absoluta. Desta forma, sua tarefa [do pesquisador, sob paradigmas “modernos” ou “pósmodernos”] se tornou mais complicada. Antes dele se exigia coleta, crítica e organização das fontes; agora deve questionar e analisar seu instrumento básico de trabalho,

A utilização da imprensa como fonte documental, assim, requer um questionamento à ideia de que os textos jornalísticos são registros precisos, “espelhos da realidade”, pois o discurso jornalístico está situado historicamente e é

palco das relações de poder que se materializam na linguagem. A respeito dessa questão, Oliveira (2011, p.126) salienta que: Ao selecionar o texto jornalístico como sua fonte de pesquisa, o historiador deve levar em conta que sua fonte não é um documento “puro e cristalino” que contenha todas as verdades. É importante dialogar com essas fontes, fazer entrecruzamentos com outras informações e, às vezes, buscar as razões do seu silêncio ou de sua omissão. Acima de tudo, o historiador procura manter o seu olhar crítico, pois considera que a objetividade da notícia de um texto jornalístico é “vista como uma falácia, até para o mais ingênuo dos profissionais” (OLIVEIRA, 2011, p.126).

O jornalismo é uma atividade de linguagem. Nesse sentido, as práticas de linguagem devem ser compreendidas a partir de sua historicidade, de sua efetivação nas mais diversas situações concretas de interação (Bakhtin/ Volochínov, 1990; Bakhtin, 2002). Assim, o olhar lançado pelo pesquisador sobre os textos da imprensa deve ser questionador e deve considerar fatores como as condições de produção da atividade jornalística e as relações de confronto e poder em determinado momento histórico. 2 Sobre as origens do jornalismo no Brasil De acordo com Rüdiger (2003), a configuração do jornalismo como prática social relativamente consistente está ligada à formação do mundo moderno, no final do século XVII. As primeiras publicações da imprensa brasileira, porém, surgiram apenas em 1808, com a vinda da família real portuguesa para a colônia. Até essa data, a metrópole proibira a imprensa no Brasil. Assim, com a criação da Imprensa Régia, órgão oficial de publicação do governo, foi possível o lançamento, em setembro de 1808, da Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal produzido e publicado em terras brasileiras. Alguns meses antes da impressão da Gazeta do Rio de Janeiro, Hipólito José da Costa lançara, em Londres, o Correio Braziliense. A publicação mensal era enviada de forma clandestina ao Brasil e circulou até 1822. Conforme Oliveira (2011), “com a criação da tipografia oficial, começam a ser produzidos não apenas a Gazeta e a documentação governamental, mas também outras obras populares como folhinhas, almanaques e textos literários e de cunho científico” (OLIVEIRA, 2011, p. 132). Nos primeiros anos da imprensa no Brasil, não houve uma atividade jornalística periódica, pois proliferaram os pasquins, publicações sem periodicidade

definida, geralmente, anônimas, nas quais predominavam, muitas vezes, o insulto e o deboche3. Conforme Sodré (1999, p.155,157) O ambiente do país, na época em que surgiram e se multiplicaram os pasquins, explica de forma nítida a fisionomia áspera assumida pela pequena imprensa, comprovando que suas características eram ligadas diretamente às condições do meio. [...] Eram vozes desconexas e desarmoniosas, bradando em altos termos e combatendo desatinadamente pelo poder que lhes assegurasse condições de existência compatíveis [...]. Não encontrando a linguagem precisa, o caminho certo, a norma política adequada aos seus anseios, e a forma e a organização a necessárias, derivavam para a vala da injúria, da difamação, do insulto repetido.

Rüdiger (2003) destaca que, após 1850, há um declínio na presença dos pasquins e o início de uma atividade jornalística propriamente dita, com a predominância do jornalismo político-partidário, que desenvolveu a concepção de que “o papel dos jornais é essencialmente opinativo, visa veicular organizadamente a doutrina e a opinião dos partidos na sociedade civil” (RÜDIGER, 2003, p. 37). Segundo o autor, essa tendência predominou até a década de 1930, quando se consolida a hegemonia da grande imprensa, com os conceitos de jornalismo informativo e indústria cultural4. Esse modelo de jornalismo informativo tem como um dos princípios a suposta imparcialidade jornalística, segundo a qual o real deve ser descrito de forma isenta, precisa e objetiva, em busca da verdade dos fatos. Porém, longe de ser imparcial, o discurso jornalístico5 é mercado pelas forças políticas em confronto em determinado momento histórico. Conforme Benites (2002, p.12) Sendo a subjetividade uma característica inerente a toda atividade de linguagem, pode-se afirmar que não existem textos objetivos, mas recursos discursivos que constroem, tanto o efeito de objetividade como o de subjetividade. Cabe ao leitor, depreender a subjetividade e a ideologia presentes no texto, a partir do reconhecimento do conjunto de opções

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Rüdiger (2003) destaca que é importante distinguir jornalismo e imprensa. Segundo esse autor, o jornalismo é “uma prática social componente do processo de formação da chamada opinião pública; prática que, dotada de conceito histórico variável conforme o período, pode estruturar-se de modo regular nos mais diversos meios de comunicação, da imprensa à televisão” (RÜDIGER, 2003, p. 11). 4

Nilson Lage considera que “a história do jornalismo brasileiro pode ser dividida em quatro períodos distintos: o de atividade sobretudo panfletária e polêmica, que corresponde ao Primeiro Reinado e às regências; o de atividade dominantemente literária e mundana, que corresponde ao Segundo Reinado; o de formação empresarial, na República Velha; e a fase mais recente, marcada por oposições aparentes do tipo nacionalismo/ dependência, populismo/autoritarismo, tanto quanto pelo uso intensivo na comunicação no controle social” (LAGE, 2001,p.20). 5 Utilizamos o termo discurso jornalístico, pois, na perspectiva teórica aqui trabalhada, os textos jornalísticos são atividades discursivas, construídas por sujeitos históricos em situações concretas de enunciação.

estilísticas utilizadas pelo locutor e da própria organização do material verbal.

Os textos jornalísticos são, pois, produtos culturais carregados de sentidos ideológicos. O jornal surge como instrumento de que o capitalismo necessitava para o trânsito de informações e mercadorias. Entretanto nem sempre são visíveis os processos histórico-sociais que constituem os sentidos do discurso jornalístico e os jornais, muitas vezes, são lidos como espelhos da realidade. Porém, a linguagem não é um simples instrumento transmissor de informações. É sobre as implicações do jornalismo como prática de linguagem que trataremos a seguir. 3 O jornalismo como atividade de linguagem Para mobilizarmos a discussão sobre o mito da transparência, imparcialidade e objetividade do discurso jornalístico, tomemos como ponto de partida o conhecido modelo dos elementos básicos da comunicação, elaborado por Roman Jakobson (1989).

Segundo este modelo, todo processo de comunicação verbal se dá quando um REMETENTE transmite uma MENSAGEM a um DESTINATÁRIO, através de um CANAL, que seriam os meios técnicos ou uma conexão psicológica, que possibilitam o contato entre REMETENTE e DESTINATÁRIO. Para que se estabeleça a comunicação, também é necessário um código comum entre emissor e receptor, condição para que a mensagem seja compreendida. Ainda de acordo com o esquema proposto por Jakobson, a MENSAGEM, para ser operante, requer uma situação um CONTEXTO ao qual ela remete, isto é, um referente. Este modelo descritivo dos fatores constitutivos do processo de comunicação trouxe uma importante contribuição para os estudos da teoria da informação ao colocar em cena os protagonistas, sujeitos, do discurso (REMETENTE) e

(DESTINATÁRIO), e, ao considerar o contexto da mensagem. Entretanto, conforme destaca Charaudeau (2009), é “um ponto de vista ingênuo” valorizar um modelo de comunicação social segundo o qual tudo acontece como se houvesse entre uma fonte de informação e um receptor uma instância de transmissão encarregada de fazer circular o saber. Esse autor (2009, p.35) enfatiza ainda que A fonte de informação é definida como um lugar no qual haveria certa quantidade de informações, sem que seja levantado o problema de saber qual é a sua natureza, nem qual é a unidade de medida de sua quantidade. O receptor é considerado implicitamente capaz de registrar e decodificar “naturalmente” a informação que lhe é transmitida, sem que seja levantado o problema da interpretação, nem o do efeito produzido sobre o receptor.

Nessa perspectiva, no processo de comunicação não há, simplesmente, transmissão de mensagens e informação. Assim, linguagem nem sempre é sinônimo de comunicação. Tampouco, comunicar quer dizer necessariamente informar. A construção do discurso jornalístico, portanto, é marcada pelo contexto histórico-social. Os jornais produzem leituras possíveis sobre a realidade. Tais leituras constituem-se como um olhar, dentre tantos outros possíveis. E este olhar é parcial. Além disso, os jornais não conseguem dar conta da totalidade e complexidade da vida real, em consequência, pegam determinados fragmentos do real, enquanto muitos outros ficam de fora. De acordo com Mariani (1999, p. 104), Sendo inseridos na ordem do discurso jornalístico, alguns acontecimentos são transformados em fatos, i.e., conseguem ganhar espaço e se tornarem públicos. O que se escreve nos jornais são interpretações do mosaico que constitui historicamente uma formação social, mas são é do mosaico inteiro que se fala, apenas de sua parte hegemônica, i.e., da parte que se impõe a ler.

O jornalismo, portanto, é uma atividade de linguagem, sendo, assim, é constituído a partir de todas as implicações ideológicas em conflito na sociedade. As empresas jornalísticas ocupam uma posição política e econômica na sociedade, dessa forma, muitas vezes, interesses políticos e econômicos têm um papel predominante na construção do discurso jornalístico. Trabalhamos, aqui, em uma perspectiva que considera a natureza social da linguagem, a qual se efetiva em situações de enunciação e está ligada às condições de comunicação e às estruturas sociais, conforme preconizado por Bakhtin/ Volochínov (1990) e Bakhtin (2002). Para esses autores, as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações

sociais: “a palavra é signo ideológico por excelência”6. Bakhtin/ Volochínov (1990) afirmam que o signo linguístico se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Nesse sentido, há uma crítica a visão estruturalista que compreende a língua como entidade abstrata, desvinculada do contexto histórico e da prática social concreta. Segundo Bakhtin/Volochínov (1990, p. 33), Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, mas uma sombra da realidade. (...) Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações e reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior.

A língua se constitui a partir do fenômeno social da interação verbal, ou seja, há uma troca, um constante diálogo entre os atores da enunciação e destes com o seu contexto histórico-social. Conforme Bakhtin/ Volochínov (1990, p.113), Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo falto de que precede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre o locutor e o interlocutor. Se ela se apoia sobre o locutor numa extremidade, na outra apoia-se sobre o interlocutor.

A palavra, então, é plurivalente, múltipla, e os sentidos são construídos na interação verbal. Vale ressaltar que essa troca não se dá, necessariamente, de maneira harmoniosa e cooperativa, pois a língua é o espaço de materialização das forças sociais em embate. Nessa perspectiva, Bakhtin/ Volochínov (1990) preconizam o princípio dialógico da linguagem, segundo o qual todo enunciado é uma resposta a um já-dito, ou seja, toda fala dialoga com outra precedente, um discurso sempre fala em relação a outros. Ele não é isolado, único ou primeiro, mas faz parte de uma cadeia de discursos que foram se constituindo historicamente. Nesta perspectiva, o dialogismo é considerado “um princípio constitutivo da linguagem e a condição de sentido do discurso” (BARROS, 2011, p.2). A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com 6

Miotello (2012) esclarece que, na teoria bakhtiniana, a ideologia não é tratada meramente como falsa consciência ou como expressão de uma ideia, mas sim como expressão de uma tomada de posição determinada, “como a expressão, a organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens” (MIOTELLO, 2012, p.171).

ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 2002, p 88).

A língua, portanto, é compreendida a partir de sua historicidade, de sua efetivação nas mais diversas situações concretas de interação. Assim, toda fala dialoga com falas que a precedem e a sucedem, formando um elo da cadeia da comunicação verbal. Daí o questionamento à imagem do Adão bíblico, o qual utopicamente seria o primeiro a designar o mundo. Entretanto, toda fala se configura a partir de sua relação com o outro, pois está repleta de “ecos e lembranças de outros enunciados aos quais está vinculada no interior de uma esfera comum da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2002, p. 317). Nessa perspectiva, as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais: “a palavra é signo ideológico por excelência”. Bakhtin/ Volochínov (1990) afirmam que o signo linguístico se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. A língua se constitui a partir do fenômeno social da interação verbal, ou seja, há uma troca, um constante diálogo entre os atores da enunciação e destes com o seu contexto histórico-social. A linguagem, portanto, não é transparente, nem isenta. Os jornais emitem interpretações sobre os acontecimentos a partir de determinado lugar social. Este lugar ocupado pela empresa de comunicação acarreta toda uma implicação ideológica, o que nos permite afirmar que noticiar não é um ato neutro. Mariani (1999, p.111) destaca: O discurso jornalístico, como qualquer outro discurso, é produzido em condições históricas de confrontos, alianças e adesões que gerenciam e constituem as interpretações produzidas. Ao mesmo tempo, o processo através do qual isso se dá fica apagado. [...] A eficácia ideologia da transparência da informação intervém na construção, dentro do funcionamento discursivo dos jornais, de interpretações que se apresentam para o leitor como expressão da realidade.

Assim, o discurso jornalístico produz múltiplos sentidos a partir das diversas posições sociais em conflito em dado momento histórico. O apagamento de todo esse processo tem uma eficácia ideologia grande, pois garante a legitimidade do discurso jornalístico como expressão da verdade. No que se refere à escrita da história, o discurso jornalístico é palco de acirrados conflitos que contribuem para a

constituição da memória histórica oficial. A esse respeito, Mariani (1999, p.112) enfatiza que: O discurso jornalístico, em resumo, funciona desambiguizando o mundo, construindo modelos de compreensão da realidade. Daí seu caráter ideológico: por contribuir na construção das evidências, a imprensa atua no mecanismo de naturalização e institucionalização dos sentidos, apagando alguns processos históricos em detrimento de outros. A imprensa, então, ajuda a construir/ desconstruir a memória histórica oficial num processo que para o leitor comum passa despercebido [...]. O discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social repetidora de certa ideologia quanto, direta ou indiretamente, se deixa atravessar pelas muitas vozes divergentes também constitutivas da história.

O jornal, portanto, traz em suas páginas, as diferentes vozes sociais em conflito. Supostamente, a presença dessa multiplicidade de vozes indicaria que o discurso jornalístico, de fato, é neutro e imparcial. O discurso jornalístico seria, então, isento de juízos de valor: “a voz da verdade”. Entretanto, lembremos que o jornalismo é uma atividade de linguagem, sendo, assim, é constituído a partir de todas as implicações ideológicas em conflito na sociedade. As empresas jornalísticas ocupam uma posição política e econômica na sociedade, dessa forma, muitas vezes, interesses políticos e econômicos têm um papel predominante na construção do discurso jornalístico. No discurso jornalístico, portanto, materializa-se essa tensão entre as vozes e os sentidos hegemônicos e as vozes e os sentidos marginalizados. Conforme Capelato, “o confronto das falas, que exprimem ideias e práticas, permite ao pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o significado da atuação de diferentes grupos que se orientam por interesses específicos” (1988, p.34). Considerações finais Os processos históricos que constituem os sentidos do discurso jornalístico nem sempre são levados em conta e os jornais são lidos, muitas vezes, como “espelhos da realidade”, “verdade histórica”. Os textos jornalísticos, porém, não podem ser compreendidos, simplesmente, como uma fonte de informação, como um meio para se revelar a “verdade” dos fatos. O discurso jornalístico, portanto, como atividade de linguagem, “é fruto de determinadas práticas sociais de uma época. A produção desse documento pressupõe um ato de poder no qual estão implícitas relações a serem desvendadas” (CAPELATO, 1988, p. 24).

Cada jornal vai construindo uma visão de mundo específica e diferente [...] o discurso jornalístico produz leituras do mundo, isto é, se temos consciência de que ele interpreta (e, até mesmo produz) os acontecimentos, qual e como poderá ser o gesto de leitura do pesquisador interessado em analisálo? (MARIANI, 1999, p. 103)

Nesse sentido, a utilização da imprensa como fonte documental exige do pesquisador uma postura questionadora sobre o material utilizado, tendo em vista que os textos jornalísticos são práticas de linguagem, são construídos a partir de um contexto histórico, permeado por relações de poder, portanto não são registros transparentes e objetivos da realidade. Referências CAPELATO, M.H. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2002. BAKHTIN, Mikhail (V.N. Volochínov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahub e Yara Frateschi Vieira. 5. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. BENITES, S. A. L. Contando e fazendo a história: a citação no discurso jornalístico. São Paulo: Arte&Ciência, 2002. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de.; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 2. ed. 2. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. p.1-9. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997. _____. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP, 1992. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias (Tradução de Ângela S. M. Corrêa). São Paulo: Contexto, 2009. JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1989. LAGE, Nilson. Ideologia e Técnica da Notícia. Petrópolis: Insular/UFSC, 2001. LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Ed. da Unicamp, 1990.

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