História e Literatura: considerações acerca do Barranco de Cegos de Alves Redol

August 5, 2017 | Autor: A. Oliveira | Categoria: História e Literatura, Alves Redol
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História e Literatura: considerações acerca do Barranco de cegos de Alves Redol

Este artigo tem como objetivo principal tentar descortinar até que ponto a obra Barranco de Cegos de Alves Redol pode ser lida como uma fonte histórica. Para esse propósito vamos ter, à partida, em atenção dois momentos fundamentais: um primeiro, onde se tentará destacar a própria intenção do autor que, na nossa modesta opinião, pretende construir um “romance histórico” e, um derradeiro, onde será o texto em si a servir-nos de guia para essa demonstração. Estes serão complementados por uma caraterização, embora apenas sumária, da personagem principal da obra: Diogo Relvas. Nessa ordem de ideias, dois problemas ficam, de certa forma, na “sombra” desta pequena preleção, embora se revelem questões pertinentes, a saber, a questão epistemológica, visto que o uso de fontes supostamente “não-científicas” ainda reveste, em certos casos, a forma de tabu e, seguidamente, o problema da definição do romance histórico, ao qual Maria de Fátima Marinho tem dedicado atenta investigação1.

1. Premissas internas

Porém, talvez seja o momento de começarmos a expender a nossa argumentação. Não podemos deixar de asseverar que Redol nos adverte que “certos acontecimentos, decisivos na vida dos homens de então, só aqui aparecem na medida em que a trama romanesca deles precisa para envolver os homens imaginários que vivem e morrem 1

Sobre a discussão epistemológica, Feyerabend defende a ideia que é a proliferação de métodos e de materiais de investigação que é salutar, culminando no “principio todo sirve” (Feyerabend, 1981: 12). No mesmo sentido, Luís Krus, a propósito da lenda da Dama de Pé de Cabra, narrativa inclusa no Livro de Linhagens do Conde Pedro Afonso de Barcelos, da qual Alexandre Herculano nos forneceu uma versão romanceada, certifica que existem “certos preconceitos epistemológico-metodológicos que, relegando as fontes literárias para os domínios da fantasia e curiosidade, não estimulam a sua abordagem histórica” (Krus, 1994: 171). Sobre a problemática do Romance Histórico (cf. Marinho, 1999 e Marinho, 2005). Acerca desta temática não posso deixar de fazer eco de duas opiniões aí expressas: uma de Agustina Bessa-Luís, segundo a qual “a História é uma ficção controlada”, A. Bessa-Luís, Adivinhas de Pedro e Inês, Lisboa, Guimarães Ed., 1983, p. 224; a outra de Carlos Reis que considera que “todo o discurso ficcional é também uma forma superior de enunciação do discurso da História”, C. Reis, “Eça de Queirós e o discurso da História”, in Queirosiana, nº 7/8, Dez. 1994/Jul. 1995 (citados por Marinho, 1999: 30). Por último, convém salientar que Vítor Viçoso considera que a literatura portuguesa contemporânea está imbuída de uma vertente “historicista” que vai para além dos cânones do romance histórico, e acrescenta que o Barranco de Cegos não é “um romance histórico propriamente dito” mas “uma narrativa que se projeta na história portuguesa como modo de iluminação (revelação) relativamente a um presente bloqueado e absurdo, numa surdez dos homens relativamente aos apelos da história” (Viçoso, 2011: 105), os itálicos são nossos. Ora bem, considerá-lo como um romance histórico, embora não propriamente dito, não é admitir que se trata de uma efubalação de raiz histórica, ainda para mais tendo em conta o que Viçoso diz anteriormente, se a tudo isso juntarmos as considerações de Marinho citadas anteriormente, a conclusão parece-me mais ou menos evidente. Por outro lado, e mais significativo, é o facto de o romance “iluminar” a incapacidade do ser humano responder “aos apelos da história”.

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nesta história sem ecos prolongados” (Redol, 1970: 19). Esta observação, se bem interpretámos a perspetiva de Marinho, é uma constante em alguns romances históricos do Século XX e, por outro lado, serve, como não podia deixar de ser, para o escritor poder “desrresponsabilizar-se” das implicações que a obra pudesse vir a suscitar, numa época em que ele seria um dos únicos literatos aos quais a censura exigia exame prévio dos seus trabalhos. No entanto, não se pode deixar de ter em conta que, no mesmo local, ele nos atesta que “a ação deste romance se inicia numa semana de Maio de 1891”. Mas o que é, também, um facto é que o autor de Gaibéus na introdução do romance certifica que “aqui me têm como testemunha sem perjúrio, embora admita também para mim o papel de réu” (Redol, 1970: 24). Esta proposição, num capítulo intitulado “Breve nota de culpa”, que Redol, de forma humilde, pede para acrescentarem aos papéis do seu julgamento (o que parece denotar a sua participação no desfecho do tecido da obra), anuncia, à partida, o desígnio de fornecer o seu próprio testemunho da época, a que não poderá ser alheio o “conheci Diogo Relvas” (Redol, 1970: 23). Ainda adquire maior conteúdo, no episódio de Norberto, que aludiremos mais à frente, o facto de clamar que “esse homem vulgar obrigou a história da minha vida a dar um dos saltos mais prodigiosos da sua existência” (Redol, 1970: 397). No mesmo sentido, não representa um facto simbólico que quando volta a pegar em Fanga e faz um exame espiritual da sua vida e da sua condição de homem empenhado vá exclamar: “Manuel Caixinha sou eu” (Redol, 2011a: 14). Tal asserção, como admite António Mota Redol, “abre a porta a que seja assumido o caráter autobiográfico de muitos dos personagens dos seus romances” (Redol, 2011b: 301, 2). Numa outra perspetiva, não se pode deixar de levar em linha de conta, ainda, o capítulo XVI denominado “A minha avó contou-me…”, onde se descreve um dos dramas da crónica, que, embora com alguns reparos que farei oportunamente, surge como um dos nós górdios de toda a narração e que atua, de modo simbólico, como o culminar de uma época2. É, precisamente, o epílogo do caso amoroso de Maria do Pilar, a quem o progenitor tinha mandado assassinar e castrar o amante campino, em trânsito 2

Os outros acontecimentos que, na minha humilde opinião, são mais decisivos são a greve dos valadores e o não do Norberto caiador. Este último estabelece um paralelo com a afronta do Casco presente na Ilustre Casa de Ramires (Queirós, s/d, Vol. I: 1264 e ss.), aqui se assevera que “pela primeira vez, na história de Santa Ireneia, um lavrador daquelas aldeias, crescidas à sombra da Casa ilustre, por tantos séculos senhora em monte e vale, ultrajava um Ramires” (Queirós, s/d, Vol. I: 1268). Sobre as similitudes entre os dois romances (vd. Ferreira, 1992: 245-253), aqui defende a autora que “o romance de Gonçalo constitui, pois, modelo exemplar da própria génese de Barranco de Cegos” (Ferreira, 1992: 252).

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para o exílio do Monte Pragal, no concelho de Cuba, “para onde os Relvas sempre mandaram de castigo a gente do seu sangue” (Redol, 1970: 353), no entanto, a anciã ainda acrescenta outros pormenores, tinha-lhe cortado “o cabelo como às mulheres más que dormiam com os inimigos no tempo das guerras, toda vestida de preto” (Redol, 1970: 353). Os traços do testemunho direto avoengo aparecem na exclamação que inicia o capítulo: “Ah se visses a nossa menina!...” (Redol, 1970: 352), não deixando de ser curiosa a assunção da propriedade da jovem moça (a nossa menina), transmitindo um certo grau de empatia, embora se possa ir mais longe porque o sentimento difunde alguma medida de identificação com a condição da “noiva” de José Pedro Bordad’Água, necessária para contrastar com o alvitre acerca do pai Relvas: “ouvi também minha avó, de lágrimas nos olhos e ódio na boca, amaldiçoá-lo por mais de uma vez, como se dum tirano se falasse” (Redol, 1970: 24), não se pode deixar de assinalar o condicional que o autor de Avieiros emprega, como a tirania de Diogo Relvas fosse um facto dubitativo, e que expira com a constatação da ocorrência de que “fomos ainda atrás do carro não sei por quanto tempo” (Redol, 1970: 354). Mas talvez o facto mais significativo de que o romance de Redol pretende, à semelhança dos textos de Miguéis sobre a República3, fazer “obra de história”, prendese com o facto de inserir no final da “Breve nota de culpa” um texto de Fernão Lopes, extraído da crónica de D. João I que reza desta forma: “Certo é que quaisquer histórias muito melhor se entendem e lembram se são perfeitamente e bem ordenadas do que de outra maneira. E posto que nossa tenção seja de estas que queremos escrever o serem em bom e claro estilo, porém, tão grande multidão de histórias nos são prestes, mormente neste lugar, que desviam muito de tal ordenança nosso desejo e vontade” (texto extraído de Cronicha Dom Joham I: 51-52).

Esse desígnio, na nossa opinião, parece manifestar-se de duas formas diversas, por um lado, fazendo apelo à obra de um dos nossos primeiros historiadores, tal facto por si não pode deixar de ser indicativo e, de outra forma, ao invocar um excerto que 3

Miguéis certifica que “O Milagre segundo Salomé não é um romance histórico”, mas uma “figuração simbólica de uma época, ambiente e estado de espírito coletivo” (Miguéis, 1984, Vol. II: 345). Contudo, mais à frente, elucida-nos que “nem o mais sisudo e escrupuloso dos historiadores procede diferentemente do ficcionista, ao reconstituir através de documentos (nem sempre suficientes ou fidedignos), de indícios e palpites (nem sempre acertados), um passado que não presenciou. E não lhe damos nós crédito? A diferença, aí, é que o autor deste romance presenciou muito do que narra, e de que dá testemunho e fé” (Miguéis, 1984, Vol. II: 348, os itálicos são nossos).

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está posicionado como preâmbulo de todos os acontecimentos decisivos que vão ter lugar nos anos de 1383-1385, a saber, “elRei de Castella vem pera entrar em Portugall; NunAllvarez outro ssi veemsse a Lixboa; desi o castello da çidade trabalhasse o Meestre com ho poboo de o tomarë; alçamsse villas comtra os alcaides dos castellos pelo rregno; levantã-se hunioões duüs comtra os outros; ffazemsse outras muitas cousas em huüa sazom, de guisa que huüas torvam as outras, a sse nom poderem comtar nos dias que aconteçerom” (Cronicha Dom Joham I, 52)

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Como parece evidente é a partir deste momento que se desenvolve toda a trama na obra de Fernão Lopes, tal facto não pode deixar de ser particularmente pertinente, pois, tal como Lopes descreve o fim de uma época e o primórdio de uma outra, também Redol tem como missão descrever o epílogo de uma era e a aurora de uma nova idade que poderia ser de redenção para a humanidade. Porque, embora não esteja presente, como na grande maioria das obras de Ferreira de Castro, a ideia de remição do ser humano, ela não deixa de estar latente ao longo de todo o texto redoliano. Por último, não podemos deixar de fazer alusão à similitude entre o texto de Redol e a Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queiroz, as analogias são, na perspetiva de Ana Paula Ferreira que partilhamos até certa medida, várias (vd. Ferreira, 1992: 245253, em particular: 248-253). Como é do conhecimento geral, o romance de Eça glosa, embora a seu modo, isto é, de forma irónica, todas as caraterísticas do romance histórico oitocentista, desse modo, postular a paridade entre os dois escritos é, ao mesmo tempo, partilhar a ideia de que a obra de Redol participa, em maior ou menor medida, das típicas formas do romance histórico. 2 – Asserções externas

Se, no nosso entender, está, mais ou menos, demonstrado o intuito do autor de Os Reinegros de nos fornecer um quadro da época e o mesmo é admitido por vários comentadores (cf. Torres, 1979: 278-281, Ferreira, 1992: 244-245 e Viçoso, 2011, 104105), incluindo o prefaciador da obra que nos declara que 4

Veja-se, de forma complementar, a seguinte asserção de Ferreira, “a «crónica» que o texto se propunha (…) é, deste modo, associada às grandes Crónicas do fundador da prosa portuguesa, pioneiro da historiografia e do romance nacionais” (Ferreira, 1992: 246). Na mesma ordem de ideias, defende que, pelo motivo atrás apontado, é “da sua inteira responsabilidade a interpretação particular da história que a dita organização veicula” (Ferreira, 1992: 247).

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“o rigor com que a época histórica é reconstituída, a minúcia com que o latifúndio se descreve, sobretudo através das relações entre senhor e servos, a mentalidade excelentemente observada do senhor agrário que joga tudo por tudo contra a invasão progressiva da indústria, a análise da situação dos servos, dos que logo se descobrem mal ouvem ao longe os passos do cavalo do seu senhor (…) e dos que começam a resistir-lhe, criando associações de classe e voltando a cara ao amo pela primeira vez na história do seu condado, são elementos de importância capital” (Mário Dionísio, “Prefácio”, Redol, 1970: 15).

Fica a minguar, neste momento, averiguar o modo como as coordenadas históricas nos vão sendo facultadas ao longo do texto, tarefa que tomaremos em ombros de seguida. Antes de auscultarmos os marcadores históricos tão salientes em Barranco de cegos, não podemos deixar de pôr em destaque que o que parece um facto é que a obra tem o seu primórdio com uma espécie de “vitória” de Diogo Relvas, talvez para marcar o princípio do fim do seu “condado”, que é o triunfo do capitalismo fundiário sobre o seu congénere industrial, evento que postulava a supremacia dos “fortes” sobre os outros, personalizados, respetivamente, nele próprio e no genro de coração fraco. Tudo isto, porque, como já foi apontado por alguns comentadores, “ a força transformadora da indústria e do progresso constitui para Diogo Relvas uma ameaça do fim iminente do seu poder e da sua casa” (Ferreira, 1992: 249, veja-se também, Torres, 1979: 281-284). No entanto, a atitude do latifundiário não depende do facto de a indústria lhe desagradar em si, não é certamente, pois se for edificada lá longe do seu agro ela é desejável, porque o que verdadeiramente importa é que a produção industrial não lhe roube, nem meta ideias “absurdas” nas suas cabeças, os servos da gleba que trabalham para ele de sol a sol por uma paga irrisória, isso é que é realmente fundamental. Voltando à investigação sobre o romance, vemos que este fornece, desde logo, os primeiros dados históricos da crise de 1891, crise que irá levar Oliveira Martins ao Ministério das Finanças num executivo liderado por José Dias Ferreira, a falência do Barings, de que o Estado português estava dependente, e a consequente inflação. A isso se poderia juntar a implantação da República no Brasil (1889), o Ultimato inglês (1890), a revolta republicana fracassada de 31 de Janeiro do ano seguinte e a Salamancada. A situação catastrófica refletia-se em todos os quadrantes da vida nacional,

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“os câmbios baixos do Brasil forçavam a emigrar os que viviam desses rendimentos em Lisboa e no Porto; e eram muitos. Fechavam-se fábricas e ficavam mais operários sem trabalho. Entre o protesto de letras e o desespero de muitos créditos volatilizados, encerravam-se lojas e muitos comerciantes buscavam no suicídio a saída válida para a desonra. Usava-se a corda, o tiro no céu-da-boca e o rodado do comboio para resolver alguns problemas” (Redol, 1970: 33).

Situação que tem o seu epílogo na “corrida” ao Montepio, onde as forças policiais já não conseguiam controlar as pessoas desesperadas5. Este é um dos marcos primordiais de Barranco de cegos e, embora o texto se espraie até, praticamente, à data da composição do romance, segundo as contas de Alberto Pinheiro Torres até 1957 (cf. Torres, 1979: 281)6, só vai ter uma estrema paralela, o Regicídio (1908), que no seu seguimento, a greve dos valadores e o não rotundo de Norberto caiador, vai estar na origem do esboroar da Casa Relvas. O momento seguinte processa-se alguns meses depois, a ameaça de bancarrota tinha-se tornado uma realidade, o Estado encontrava-se depauperado pelos tributos da dívida pública, as exigências dos bancos franceses e ingleses tornavam-se insuportáveis, tudo isto a aliar a negócios estatais que, cada vez mais, se mostravam ruinosos. E embora o seu interlocutor tivesse fé no Ministério de Dias Ferreira e nas propostas de Oliveira Martins, Relvas mostrava-se profundamente descrente, lembrando “que os republicanos andavam acesos [e] sem que o outro o convencesse das vantagens da lei do Fomento Rural. Agarrar em homens do Norte e pô-los no Sul. Bonita coisa! Escritores, ao resto!” (Redol, 1970: 85-86)7. Também denunciador do sopro de novos ventos é o episódio da vingança contra o primogénito Relvas que por andar em transe amoroso com uma das aldeãs foi, num dia em que os vapores etílicos lhe subiram à cabeça, amputado dum dos lados do bigode e entregue em casa com uma notinha onde no final se exclamava: Viva a República. Nessa ocasião, fazendo apelo à lógica do progenitor, pensa com os seus botões, “se a

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Sobre a crise de 1891 (ver, por exemplo, Santos, 2001: 185-207). António Mota Redol dá como data do lançamento da obra o dia 8 de Dezembro de 1961 (cf. Redol, 2011b: 298, 1). 7 Ministério que pontificou entre 17 de janeiro de 1892 e 27 de maio de 1892 era constituído por José Dias Ferreira (Presidente do Conselho, Ministro do Reino e Ministro da Instrução Pública e Belas Artes até 3 de março de 1892, data do decreto da extinção do ministério); D. António Aires Gouveia, Bispo de Bethesaida (Ministro dos Assuntos Eclesiásticos e da Justiça); Joaquim Pedro Oliveira Martins (Ministro da Fazenda); Jorge Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado (Ministro da Guerra); Francisco Joaquim Ferreira do Amaral (Ministro da Marinha e Ultramar); António de Sousa Silva Costa Lobo (Ministro dos Estrangeiros); Sebastião José de Carvalho, Visconde de Chanceleiros (Ministro das Obras Pública, Comércio e Indústria) (vd. Santos, 1986: 120-121). 6

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doença maçónica já atingira a gente do rio, tão sanitária e humilde, a maior parte do povo deveria estar corrompida de há muito” (Redol, 1970: 130-131). Se abstrairmos as histórias miguelistas, que ocupam todo um capítulo e servem para introduzir o cada vez mais pensamento absolutista de Diogo Relvas, temos novo momento que abarca a depressão austríaca motivada pela crise do lado norte do Atlântico em 1893, no entanto, o maior perigo era o facto de em Portugal, na própria fábrica que era propriedade da família da consorte finada, os operários fazerem greves para exigir dez horas de trabalho e salários iguais. Felizmente, “o Hintze e o João Franco8 se tinham entendido para criarem a ditadura, acabando com essas veleidades liberais (…) a liberdade era um mito perigoso quando chegava ao povo” (Redol, 1970: 145)9. Tudo isso associado à menoridade do povo e ao facto de ele não saber fazer uso das conquistas liberais, levava-o a concluir que o que o povo necessitava era de tutores10, rematando com um “ainda bem que o juiz Veiga estava vigilante e se mostrava de mão firme no castigo” (Redol, 1970: 146). Não deixa, identicamente, a história dos Relvas de fazer referência à lei de 13 de Fevereiro de 1897, ao confronto com o líder jacobino concelhio, às cheias periódicas que assolavam o vale do Tejo, sendo que estas últimas acabaram por lhe ceifar a vida do primogénito, a quem o seu “olho clínico”, baseado no “chicote e açúcar”, tinha errado o caráter, à eleição de três deputados republicanos, pensamos que nas eleições de 1900, ao falhado rapto da filha do cônsul brasileiro, Rosa Calmon, supostamente perpetrado 8

Ministério que durou de 22 de fevereiro de 1893 a 7 de Fevereiro de 1897 era constituído por Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro (Presidente do Conselho); João Ferreira Franco Pinto Castelo Branco (Ministro do Reino); António de Azevedo Castelo Branco, sobrinho de Camilo e colega de curso de Antero (Ministro dos Assuntos Eclesiásticos e da Justiça); Augusto Maria Fuschini (Ministro da Fazenda até 20 de dezembro de 1893) e Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro (Idem a partir de 20 de dezembro de 1893); Luís Augusto Pimentel Pinto (Ministro da Guerra até 7 de abril de 1896) e José Estevão de Morais Sarmento (Idem a partir de 7 de abril de 1896); João António de Brissac das Neves Ferreira (Ministro da Marinha e Ultramar até 16 de janeiro de 1895), José Bento Ferreira de Almeida (Idem de 16 de janeiro de 1895 a 26 de novembro de 1895) e Jacinto Cândido da Silva (Idem a partir de 26 de novembro de 1895); Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro (Ministro dos Estrangeiros até 20 de dezembro de 1893, de 14 de março de 1894 a 1 de setembro de 1894, de 10 de setembro de 1895 a 20 de setembro de 1895), Frederico de Gusmão Correia de Arouca (Idem de 20 de dezembro de 1893 a 14 de março de 1894), Carlos Lobo de Ávila (Idem de 1 de setembro de 1894 a 10 de setembro de 1895) e Luís Maria Pinto do Soveral (Idem a partir de 20 de setembro de 1895); Bernardino Luís Machado Guimarães (Ministro das Obras Pública, Comercio e Indústria até 20 de dezembro de 1893), Carlos Lobo de Ávila (Idem até 1 de setembro de 1894, nessa data transferido para o ministério dos estrangeiros) e Artur Alberto de Campos Henriques (Idem a partir de 1 de setembro de 1894) (cf. Santos, 1986: 124-125). 9 Ver, no mesmo sentido (Redol, 1970: 275), onde se defende um cordão sanitário nos Pirenéus para obviar às liberdades francesas. Constate-se, identicamente, a recusa de uma união à Europa (Redol, 1970: 382), que preludia o “orgulhosamente sós”. 10 Compare-se esta declaração com esta outra retirada de José Rodrigues Miguéis a propósito de MotaSantos: “depois do pão e do circo, a primeira necessidade do povo é um chefe” (Miguéis, 1991: 223), sendo que esse mesmo jornalista falava de Mussolini com um brilho nos olhos (vd. Miguéis, 1991, 226).

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pelos jesuítas (1900-1901)11 e ao novo partido regenerador-liberal encabeçado por João Franco (1901) e a consequente liderança política (1906)12. Desse modo, atingimos o acontecimento capital, que, tal como a crise de 1891, baliza de forma decisiva o romance, o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, no dia seguinte ao aniversário da malograda revolução do Porto. No entanto, deste temos de falar “mais de espaço”. Não deixa de ser premonitório o comentário de Diogo Relvas, em diálogo com a filha primogénita, de que “o mundo vai por uma ladeira”, ao que a interlocutora lhe retorquiu que pensa “que a ladeira vai durar muito” (Redol, 1970: 362), numa tarde em que passeavam de caleche, visto que à noite, à hora do jantar, chega a terrível nova: “Mataram o Rei e o Príncipe Real” (Redol, 1970: 363). Diga-se, de passagem, que o assassínio da família real não é o facto mais significativo desta derradeira parte da obra, embora o capítulo que se lhe segue se denomine “Onde as pessoas entram no reino da anarquia” e vá ter o epílogo nas afirmações categóricas de que “a ditadura do João Franco começou com rompantes de varrer a feira e depois amaciou (…) o decreto veio tarde (…) parece-me que o liberalismo é figurino que não nos serve. Se assim é, meta-se pela ditadura, mas façamo-la a sério. Nada de compromissos” (Redol, 1970: 370 e 371).

Tudo isto parece, de facto, pronunciar o governo ditatorial saído da Revolução de 28 de Maio de 1926 e, em especial, o Estado Novo. Com efeito, o facto mais significativo deste capítulo consiste nos “zunzuns de que os valadores pensavam em fundar uma associação de classe”, ao qual o filho dá, desde logo, ação curativa, “acabar com o mal pela raiz” (Redol, 1970: 369). É precisamente essa ocorrência que vai levar Diogo Relvas a refletir que, com efeito, essa era uma boa oportunidade para a criação da associação, pois um valador não 11

Sobre este caso, pode ver-se, entre outros (Garnel, 2007: 212-216). Já agora que falamos no assunto, talvez por gralha, Redol chama ao cônsul Miguel (cf. Redol, 1970: 259), quando o seu verdadeiro nome é José Calmon Nogueira Valle da Gama e da filha Rosa Maria Calmon da Gama. 12 O Ministério durou de 19 de maio de 1906 a 4 de fevereiro de 1908 e teve a seguinte composição: João Ferreira Franco Pinto Castelo Branco (Presidente do Conselho e Ministro do Reino); José de Abreu do Couto de Amorim Novais (Ministro da Justiça e Assuntos Eclesiásticos até 2 de maio de 1907) e António José Teixeira de Abreu (Idem a partir de 2 de maio de 1907); Ernesto Driesel Shröeter (Ministro da Fazenda até 2 de maio de 1907) e Fernando Augusto Miranda Martins de Carvalho (Idem a partir de 2 de maio de 1907); António Carlos Coelho de Vasconcelos Porto (Ministro da Guerra); Aires de Ornelas e Vasconcelos (Ministro da Marinha e Ultramar); Luís Cipriano Coelho de Magalhães (Ministro dos Estrangeiros até 2 de maio de 1907) e Luciano Afonso da Silva Monteiro (Idem a partir de 2 maio de 1907); José Malheiro Reimão (Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria) (vd. Santos, 1986: 141).

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é qualquer trabalhador braçal que se possa ir buscar ao Norte ou a outro lugar, onde o trabalho seja escasso e mal remunerado. Porque “pessoal capaz de pegar numa pá de madeira, pouco maior do que a mão dum homem, e com ela levantar um valado rijo, desses que aguentam a golada de água bravia duma cheia, abrir uma aberta a preceito, limpar um esteiro ou uma vala, não se arranjam de um dia para o outro, nem se ensinam às pressas” (Redol, 1970: 381)

e cada vez mais esta verdade lhe ecoava na mente, ainda mais, porque esta era a conjuntura certa para a execução de tal empresa. No entanto, o maior perigo das associações do campesinato encontrava-se na pretensão de “em lugar de sol a sol, os rurais quererão trabalhar doze horas de Verão e por mais dinheiro” (Redol, 1970: 373), tal como a indústria, as associações eram um perigo à paz rural relviana e, por esse motivo, defendia-se a interdição de qualquer servo apoiar ou fazer parte da associação, a resolução tinha de ser radical, descobre-se “o nome dos cabecilhas e fazemos pressão sobre eles e os seus (…) tenho a certeza que alguns deles devem ter gente que trabalhe para nós” (Redol, 1970: 377). Concluindo que “antes de tudo põe-se o medo em funcionamento. É a melhor máquina da ordem” (Redol, 1970: 379). Todas estas movimentações, catalisadas por um putativo atentado à bomba contra os Relvas, tiveram como resultado a prisão de um dos cabecilhas da Associação, o António Joaquim Borda-d’Água, mas, do mesmo modo, bastante mais relevante é a ideia de que “se os patrões não gostam da associação é porque ela é boa prá gente…” (Redol, 1970: 383). Porém, a verdadeira brecha no empório Relvas dá-se com o categórico não do Norberto caiador, o próprio narrador admite que “esse homem vulgar obrigou a história da minha vida a dar um dos saltos mais prodigiosos da sua existência”, admitindo mais à frente, que Norberto teria recebido “a raiva de muitos homens emparedados na cobardia, incitado, também, por certo, pelos que tinham lutado por uma associação de valadores, a verdade é que foi ele quem apressou a libertação da nossa irreverência. De repente, sem o esperarmos, saltávamos todos do medo 13

bisonho e venenoso para o gáudio da gargalhada destruidora de mitos” (Redol, 1970: 397)

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A propósito do riso destruidor de mitos, não nos coibimos de citar uma passagem da nossa comunicação sobre Rafael Bordalo Pinheiro intitulada “O pendor ético do humor de Rafael Bordalo Pinheiro” (Oliveira, no prelo): atesta-nos Camilo, na Introdução à obra A Mulher Fatal, que existem três tipos de riso: um a que se chama “espasmo cínico” ou de “cão” e que consiste num “exibir das arcadas

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No entanto, ainda há que descrever o incidente e este depende de poucas palavras. De facto, após a prisão do cabecilha da associação de valadores, determina Diogo Relvas afrontar os carbonários, com tal intuito tinha decidido passar frente à casa do chefe republicano concelhio e na taberna onde os valadores se reuniam, pois “sabia que os trabalhos da associação prosseguiam; já preparara com os outros lavradores a resposta para a segunda fase. Uma resposta adequada. Mas queria encarar os inimigos. Vê-los bem. Dar-lhes a perceber que encontrariam homem pela frente” (Redol, 1970: 391, os itálicos são nossos). É neste trânsito que encara com Norberto, caiador de profissão, que instado a pedir os jornais para Diogo Relvas lhe vai retorquir, não sabemos bem motivado porquê, que está a refletir, “sim, estou a pensar por que diabo não hás-de tu apear-te da pileca e ires tratar duma coisa que é tua…” (Redol, 1970: 394)14, sendo que data do desfecho desta conversa o encerramento do ancião Relvas na Torre dos Quatro Ventos, até se tornar, rigorosamente, em pó. Parecem-me não restar dúvidas que um ciclo se acabava de completar definitivamente, um período sem retorno possível. Não podemos deixar de asseverar que, pelo menos, dois assuntos ficam à margem da lógica desta comunicação, embora por motivos diferenciados, os amores de Maria do Pilar e José Pedro Borda-d’Água e o Livro Terceiro, “O livro das horas absurdas”. Sobre eles queríamos deixar aqui, apenas, uma palavrinha ou duas de forma muito resumida.

dentárias até aos côndilos” e que, segundo ainda o autor de S. Miguel de Ceide, os ingleses chamam horse laugh; outro, que apelida de riso sardónico atribuindo a paternidade aos Sardos, não sabendo nós se haverá razões históricas para tal; um último que “é atributo do ser racional” e, nesse sentido, nos distingue dos demais animais porque, segundo Camilo, “rir é raciocinar”. A este tipo de riso é que o mestre do vernáculo certifica que só se alcança depois de ter chorado, e o que Rafael Bordalo Pinheiro deve ter chorado sabemo-los todos os que, muito ou pouco, conviveram com o seu trabalho, pois este é o riso “que escava, mina e alui teogonias”, “que desfaz religiões”, “que revoluteia as tormentas dos impérios e abisma tronos” (Branco, 1987: 1060-1061). Por seu turno, Ferreira vai estabelecer semelhanças entre este excerto e a “filosofia do riso” presente no texto queirosiano das Farpas, (vd. Ferreira, 1992: 247-248). No que se refere a Queirós (cf. Queirós, 1979: 961), ver, ainda, de forma complementar (Queirós, s/d, Vol. II: 1477-1480). 14 O mesmo admite Ana Paula Ferreira, que certifica que “o momento decisivo no processo da afronta pessoal e familiar de que é vítima a ordem encabeçada por Diogo Relvas só chega, porém, com o heroico e arrogante «Não» que o Norberto Caiador lhe lança cara a cara (…) para o Senhor de Aldebarã o insulto do homem do povo marca o fim, por assim dizer, do seu reinado em Aldebarã” (Ferreira, 1992: 251, de forma idêntica, Ferreira, 1992: 247). Posição semelhante tem Vítor Viçoso que admite que o ponto alto do romance é “quando, numa das suas incursões à vila, um anónimo homem do povo, Norberto Caiador, se recusa a obedecer às suas ordens e se confronta heroicamente com ele” (Viçoso, 2011: 111).

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Em relação aquilo que se chamou “amor de perdição”, não partilhamos da opinião de Alberto Pinheiro Torres de que constitui o ponto mais alto de Barranco de cegos, pois, além do papel que joga na vontade de Relvas não querer fazer mártires durante a greve dos valadores, penso que a sua função é diminuta e, como intuiu Ana Paula Ferreira, “ele representa a «sina» do traidor social, daquele que ignora o amor transcendente da liberdade em proveito de um amor egocêntrico e precário” (Ferreira, 1992: 255)15. Por tudo isso, ele de certa forma funciona como contraexemplo, ou seja, aquilo que não deveria ser a marcha do proletariado rural com vista à satisfação das suas necessidades de subsistência. Em relação à última parte do romance, independentemente de outros vetores que possam estar presentes, existem duas particularidades concernentes à mumificação do cadáver de Diogo Relvas que importa pôr em destaque: uma primeira que estabelece uma analogia com a preservação do Corpo Santo do Cid, que se pode constatar na Crónica Geral de Espanha de 134416, uma outra, que remete para o final da vida de António de Oliveira Salazar e do regime que tinha impulsionado, sendo que esta derradeira afinidade é, obviamente, mais clara e evidente, à semelhança do Cogito cartesiano. É certo que não temos, neste momento, oportunidade para levar mais a fundo estas últimas analogias, mas, certamente, ao tratarmos, de seguida, as caraterísticas do senhor de Aldebarã teremos ocasião de pôr em destaque afinidades entre as duas individualidades que se expressam, por um lado, ao nível ideológico, a que prestaremos maior cuidado e, de outra forma, às suas comuns origens rurais e ruralizantes que se enquadram no próprio substrato do ideário. De qualquer forma, não podemos deixar de asseverar que a restante parte do romance simboliza o homem morto que se recusa a encarar a sua própria situação, quer dizer, postula, na sua rejeição, a manutenção de uma autoridade para lá do termo do seu próprio domínio, situação que Redol associaria, não parece haver qualquer dúvida, ao regime salazarista.

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Isto a despeito da autora afirmar, anteriormente, que “os amores entre Maria do Pilar e o campino constituem núcleo da mensagem ideológica do romance” (Ferreira, 1992: 253). Devido a isso, confessamos que não se entende muito bem qual a verdadeira interpretação que faz das personagens. 16 Sobre a morte do Cid e ocorrências posteriores (vd. Crónica 1344: 178-187).

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– Caraterização do empório Relvas

No que respeita aquilo que melhor pode representar a personalidade de Diogo Relvas já Alberto Pinheiro Torres, na análise exaustiva que fez da obra, destacou um conjunto de atributos que podem elucidar, embora com uma ou outra ressalva e aditamento da minha lavra, com clareza a figura do senhor do Palácio Mãe-do-Sol. As vertentes segundo as quais se articula o ideário relviano, Torres apelida-os de mitos projetando-os, de modo definitivo, para o seu caráter arracional17, são: o princípio da Terra, o conceito de Qualidade, a perspetiva da Racionalidade e a doutrina da Tradição, a que se juntam o tema da inconsciência da massa popular, a monomania contra a indústria, a ameaça do republicanismo e o perigo das associações de trabalhadores, que, embora de forma sumária, já foram questões ventiladas. Ora bem, apenas a primeira e a última, isto é, Terra e Tradição, são substanciais, pois a noção de Qualidade procede da Terra e da Força com os seus pressupostos darwinianos, “a sobrevivência dos mais fortes” expressa na ideia de que “tudo o que é bom, acaba por se impor” (Redol, 1970: 106) e a conceção do morgadio por escolha, pois “é uma maneira de render justiça aos melhores” (Redol, 1970: 278), esta noção, tal como nos lembra Torres, remete para a invenção duma “raça pura” ou “raça superior” da teoria nacional-socialista e que seria coerente com o método desenvolvido por Diogo Relvas para a criação de touros e cavalos. Seguidamente, a vertente de Racionalidade ancora-se no presuntivo de que a lucidez é a prova máxima de força, partindo do princípio que emoções e sentimentos são caraterísticas femininas e, por esse fundamento, são atitudes a evitar, indo ainda mais longe e admitindo-as como sinónimo de irracionalidade, por tudo isso Maria do Pilar responde à perceptora inglesa, que a empurra para devaneios sentimentalistas e emocionais, “aqui em casa aprendemos desde o berço que a fantasia é para os fracos” (Redol, 1970: 169). No que concerne ao princípio da Terra, que surge associado à norma da Força, devemos declarar, desde já, que este é o seu principal sustentáculo e, em sintonia com Torres, admitimos que este se enraíze, efetivamente, num mito, pois à terra Diogo Relvas “atribui um significado místico que transcende os valores materiais” (Torres, 1979: 292) e, por esse motivo, é furtado um lugar no Panteão do Palácio da Mãe-do-Sol

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Digo arracional e não irracional porque entendo que o conceito de Mito remete para uma coerência e lógica diferente da racionalidade e não contrária, embora fique na dúvida se Torres não os pretenderia identificar com o desarrazoamento.

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ao genro que nunca abraçou esse ideal. Ainda de acordo com o pensamento do comentador da obra, “a terra não é só algo de palpável, objetivo, material, algo que está ali para dar lucros. Ela tem um valor sagrado, um valor de escolha, um valor moral, uma virtude, ou implica uma opção ética fundamental, um estilo de vida” (Torres, 1979: 292-293). É dessa vis telúrica que emana todo o tipo de força e o abandono da terra explica todo o mal nacional. É, por outro lado, através da manifestação dessa pujança que o poder dos Relvas se perpetua, daí que Diogo pretenda ser o duplo do avô Bernardo e, por sua vez, Rui Diogo pretenda ser, também, por interposta pessoa, o continuador da obra do trisavô Chicote. Desse modo, Bernardo/Diogo/Rui Diogo são um e um só indivíduo, como de forma tão arguta viu Alberto Pinheiro Torres, nesse facto reside ainda a explicação do porquê das conversas de Diogo com Bernardo na Torre dos Quatro Ventos e a tentativa de perpetuar a autoridade do avô Diogo pelo conservar da sua figura recortada à vista de todos. Por tudo o que acabámos de ver se percebe o papel da Tradição no ideário relviano, pois é ela que aponta para a Terra, é, do mesmo modo, ela que reclama a duplicação de atitudes, comportamentos e costumes, por exemplo, os filhos transviados são enviados para o mesmo exílio imposto pelo avô Bernardo, é, por fim, a grei que se reencontra no fim da vida, aquele talhão especial destinado aos “fortes” que é a suprema recompensa recusada ao pai João, ao genro e, embora de modo subentendido, aos filhos (ainda que se fique na dúvida se António Lúcio a terá merecido). É por esse motivo que faz parte da família quem encarna verdadeiramente os valores chicotianos. É assim que o mal do país é o afastamento das tradições, sendo que é essencial atalhar todas as veleidades do progresso porque a força dos latifundiários provém, fundamentalmente, de um universo ordenado segundo o princípio da autoridade, onde o povo obediente se descubra à passagem do seu senhor e onde comportamentos como o de Norberto sejam sumariamente penalizados. É por essa razão que Torres atesta que na filosofia dos Relvas o tempo não existe, ou melhor, “é preciso agir como se o tempo não existisse”, por que a duração “tem a tendência de mudar as coisas, as relações, as condições de vida e da sociedade” (Torres, 1979: 311), postulado inadmissível para o pensamento de Diogo Relvas. De tudo isto se pode concluir, que a Terra, a agricultura, isto é, a grei é “a madre de [todas] as virtudes rácicas” (Redol, 1970: 382). Tendo em atenção esta afirmação, mas não só porque toda a teoria dos Relvas tem semelhanças com o pensamento contrarrevolucionário, autoritário, nacionalista e 13

tradicionalista do Integralismo Lusitano (daí que as analogias com o salazarismo sejam também bastas), quer-nos parecer que ela surge em sintonia com variados aspetos defendidos em especial por Adriano Pequito Rebelo, também ele um grande latifundiário alentejano e um homem profundamente dedicado às questões fundiárias. Para poder avaliar os escritos de Pequito Rebelo vejam-se as obras seguintes, todas publicadas na Nação Portuguesa, Revista de Cultura Nacionalista, “Teoria do Imposto”, nº 1, pp. 13 a 16, “Uma doutrina de economia agrária (Crítica do livro recente do sr. Ezequiel de Campos - «Lázaro!...» I)”, nº 5, pp. 215 a 221 e “Uma doutrina de economia agrária (Crítica do livro recente do sr. Ezequiel de Campos - «Lázaro!...» II)”, nº 7, pp. 289 a 295 (para uma consulta mais detalhada cf. Oliveira, 2009: 163-165). Na mesma ordem de ideias, pode compulsar-se (Cordeiro, 2011: 227-228). Neste texto salienta o autor que um dos escritos de Pequito Rebelo é “uma apologia à estima pela «terra» e por isso apela para não deixar nunca de se colocar a ciência agrária ao serviço da nação” (Cordeiro, 2011: 228). Por uma questão de curiosidade, aliada ao facto de se tratar duma Dissertação de Mestrado em Estudos Literários que faz apelo a condicionantes históricas (no fundo, algo semelhante ao que intentamos neste artigo), vamos reproduzir o sentimento em relação à Terra de Luís de Almeida Braga, para este autor integralista a Terra também revela algo de sagrado, mas vejamos as suas próprias palavras: “Terra de Entre-Douro e Minho, Bendita sejas! Bendita pelos cuidados e pelos prazeres […]. Bendita pela chuva benfazeja […].Bendita pelo bafo abrasador do estio e pelo inverno iroso. […] Bendita pelo milho verde[…]. Bendita pela carrasca rasteira […]”. E, na mesma ordem de ideias, continua o autor bracarense, “ao contacto da terra maternal a minha alma estremece. […] Terra abençoada, macia como ribeiro de águas mansas e cheia de paz como ermida branca […]. Terra amorável de trabalho doce, que se faz cantando […]. Terra heróica […]. Oh, minha Pátria – mais puro sobe em mim o fogo generoso do meu sangue português e minhoto” (L. A. 18

Braga, Paixão e Graça da Terra, citado por Gonçalves, 2009: 63) .

No que se refere, ainda, à identificação com o Integralismo Lusitano não podemos deixar de destacar, em grande medida em sintonia com Vítor Viçoso (Viçoso, 2011, 105-108)19, que em Relvas se encontra decalcado o nacionalismo agrário e a

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Veja-se, do mesmo modo, o que a autora atesta para a noção de Tradição (Gonçalves, 2009: 66-69). Não posso deixar de salientar as duas referências do analista do movimento do neorrealismo (Viçoso, 2011: 107 e 113) à célebre obra de Nikolai Gogol, Almas Mortas. Aventuras de Tchítchikov, elas não 19

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fundamentação dum poder absoluto20 que tem como regra o miguelismo, ideologia que levará à negação do progresso, da liberdade, do constitucionalismo, etc., sendo que a vinculação relviana é apenas à terra (a grei dos defensores da monarquia orgânica) e aos antepassados (os mortos que os integralistas recuperaram da teorização comtiana), ou seja, à Tradição, como já foi constatado. Por outro lado, é necessário ter em conta, à semelhança dos “filhos de Castanheiro”, que Relvas vai defender um “cordão sanitário nos Pireneus” contra a entrada das doutrinas perniciosas da Europa, isto é, progresso, liberdade, igualdade, fraternidade, parlamentarismo, república, socialismo, comunismo, o que vai levar à recusa de toda e qualquer ligação com o espaço europeu, ideia defendida pelos integralistas e consubstanciada no “orgulhosamente sós” salazarista. Tudo isto nos poderia levar a concluir, glosando um texto de José Manuel Quintas a partir de uma ideia de Luís de Almeida Braga (“filhos de Ramires” e “filhos de Castanheiro”, respetivamente), que os Integralistas poderão ser os verdadeiros “filhos de Relvas”. Uma última questão, concernente ao tema da lubricidade e à sua relação com a decadência, não pode deixar de ser evocada. De facto, a primogénita dos Relvas, embora impelida pelo progenitor que a não deixa voltar a matrimoniar-se - “não podes dar padrasto aos teus filhos, porque eu estou vivo… Não te falta dinheiro, nem outras e várias riquezas para os criares, educares e casares.” (Redol, 1970: 76) -, vira-se para uma vida de deboche, tal como acontecerá às gémeas do irmão Miguel, que nos parece sinal, um pouco à maneira freudiana da disfunção erótica, do exacerbar da decadência que se vai processando à medida que o romance atinge o seu clímax. Curiosamente, também Aquilino, em A Casa Grande de Romarigães, publicado em 1957, parece usar o tema da lubricidade em sentido idêntico21. Resta-nos agora concluir, com Alberto Pinheiro Torres, que o que importa para o autor de Barranco de cegos é: serão certamente inocentes, embora não seja agora o momento para analisar a obra impulsionada por uma sugestão de A. Puchkin. 20 È curioso que a simbólica ligada ao poder relviano sejam o Touro/Boi e o Cavalo que, curiosamente, constituem, embora não possamos ter a certeza de que Alves Redol disso tivesse conhecimento, a iconografia do poder medieval dos Oratores e Bellatores, sendo que a outra representação, a da Vaca, estaria ligada aos Laboratores. Nesse sentido, o poder relviano amalgamaria em si a encarnação do poder medieval, reunido nas suas ordens mais significativas (sobre esta questão, vd. Krus, 1994: 134, nota 12 e 182-185). 21 Veja-se, a título de exemplo, a seguinte passagem referente ao senhor de Romarigães: “ora aconteceu que à desbanda do gineceu de pureza, o homem luxurioso se havia de gozar de quantas servas e criadas pisassem na Casa Grande. A sua norma era a do Galaroz: franga que entra no poleiro, passa por baixo dos esporões. Nisto era implacável (…) depois das servas foi a vez das jornaleiras e das filhas das jornaleiras”(Ribeiro, 2008: 227).

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“retratar uma personagem que incarne a inadaptação crescente a um mundo novo que surge, personagem norteada por mitos e valores soi disant eternos, que são os que correspondem às suas aspirações ou conveniências mais enraizadas. Interessa-lhe ainda traçar o perfil da personagem que, dentro de tal quadro, não abdica nunca de tornar perpetuo o seu mundo, valendo-se, para isso, de todos os meios ao seu alcance” (Torres, 1979: 317).

É, precisamente, o fenecer de uma época dominada por um tipo de mentalidade senhorial, de certa forma, como se constatou, até com resquícios medievais, contra a nova doutrina revolucionária do proletariado campesino em ascensão, trata-se, como nos advertia no prefácio Mário Dionísio, de um romance de “tese”. Podemos, enfim, arrematar que Diogo Relvas é uma figura de tempos que passaram e, de certa forma, pretendem ser eternizados, como na tentativa do neto Rui Diogo disposto a tudo recomeçar, a reviver o tempo ido, mas tal como o avô a quem o embalsamador atestava a existência, ele retorquia: “estamos todos mortos”, e é esta condição de fantasmas o verdadeiro fecho da abóboda da obra.

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A. Paulo Dias Oliveira Departamento de Artes e Humanidades, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve. Seminário Livre de História das Ideias, Centro de História da Cultura, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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