História e memórias do Bairro Padre Cruz - construir cidade à escala humana

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HISTÓRIA E MEMÓRIAS DO BAIRRO PADRE CRUZ Construir cidade à escala humana Fátima Freitas

“A partir do momento em que uma comunidade tem orgulho no seu bairro, o bairro está salvo.” Helena Roseta (vereadora, CML)

“Este bairro não é melhor nem pior do que outros bairros. O que digo é que este é um bairro diferente dos outros bairros.” Paulo Quaresma (ex-morador, Presidente da Junta de Freguesia de Carnide)

“O que é mais positivo é essa cultura de bairro, essencial e de fundo, que vai continuar a influenciar os mais novos.” Elisete Andrade (moradora, Presidente da Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz)

“Por trás disto tudo está a vida. A vida das pessoas, as sensações e a realidade concreta. É isso que faz o bairro. E que é importante descobrir, também nos documentos.” Padre Araújo (em funções no Bairro Padre Cruz de 1968 a 1981)

“Este bairro lembra-me um fado.” Fernando Pereira (ex-morador)

HISTÓRIA E MEMÓRIAS DO BAIRRO PADRE CRUZ Construir cidade à escala humana

são as pessoas que trazem as casas dentro

Fátima Freitas

ÍNDICE

- Apresentação - Agradecimentos CONSTRUIR CIDADE À ESCALA HUMANA - Com que matéria se constrói um bairro? - Bairro Padre Cruz – diálogo e confronto entre paisagens - Sobre a biografia do Bairro Padre Cruz – testemunho a várias vozes - O direito à memória – uma questão central num “bairro periférico” (Fase 0) Até 1958: NO INÍCIO ERA O CAMPO - Quinta da Pentieira – o termo do Termo de Lisboa - Lisboa, uma capital à escala do Império - … e a escala das “aldeias de folhas de lusalite” - O Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira – uma polémica origem - Síntese cronológica (Fase 1) 1959 A 1974: CONSTRUTORES DA CIDADE, ARTESÃOS DO BAIRRO 1959-67: Do bairro anónimo ao bairro das inaugurações - O bairro de lusalite – “o Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira” - O bairro de alvenaria – “tudo à moda da nossa aldeia” - As primeiras gerações – “davam-se à confiança com muita facilidade” - As primeiras impressões – “quando aqui chegámos…” - O interior das casas – “tudo muito minúsculo” - A gestão do bairro – “uma aldeia… um “gueto”? - Os primeiros apoios sociais – “criar um sentido de comunidade” - Equipamentos sociais – “as inaugurações foram muito bonitas” A capela do Bairro Padre Cruz – “o pulmão do bairro” A Escola Primária 167 – “Bom dia, senhora professora!” Centro Cívico – “o nosso salão de festas!” O Cinema – “do tempo do bilhete a sete-e-quinhentos. E até menos!” A Biblioteca Popular Fixa de Carnide – “a nossa Sala de Leitura” Oficinas da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa Posto médico, dispensário e creche do Centro Social, CML - O comércio local – principais referências A mercearia “casa branca” – “um monte alentejano” O mercado, “os ambulantes” e os aviamentos em Carnide - Os caminhos e as acessibilidades ao bairro – “as azinhagas das memórias” - A inauguração do autocarro – “lá vai o quarenta-e-um!” - Vivências e apoios sociais A paróquia, a catequese e a dimensão assistencial – “o bairro tem trabalhos pioneiros” Outros apoios assistenciais – “as irmãzinhas da Assunção” Movimentos e grupos de reflexão da paróquia

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- Clubes e colectividades – um património singular na história local Andorinhas Futebol Clube Clube de Futebol “Os Unidos” Grupo Recreativo “Os Amigos da Luz” 1968 a 1974: Os artesãos do Bairro Padre Cruz – “o bairro éramos nós” - O ambiente do bairro – “O bairro vivia! O bairro respirava!” A forte identidade de rua – “os rios solidários” As rosas nos quintais e as couves nas hortas - Estórias das infâncias – as chinchadas, os esconderijos entre trigos e papoulas - Festas, estórias e personagens emblemáticas - A nova dinâmica da paróquia: “as escolhas eram das pessoas” - O Centro Social Paroquial de Carnide: a consolidação do apoio social - Síntese cronológica (Fase 2) 1974-1990: A VIVÊNCIA LOCAL DO(S) PODERE(S) E DAS CULTURA(S) - O 25 de Abril e a “nova ordem urbana” - Memórias do 25 de Abril – o dia em que o “bairro parou” 1974-1980: Do silêncio à reivindicação da voz – do morador ao cidadão - Formas alternativas de gestão – a primeira Comissão de Moradores - O desinvestimento municipal e a progressiva degradação do bairro - O movimento associativo e os novos clubes – “muita carolice e orgulho bom” Clube Atlético e Cultural – “todos iguais, sendo diferentes” Grupo Recreativo Escorpiões Futebol Clube – “os “toupeiras” Clube de Futebol Os Unidos – “os anos de boa memória Grupo “Amigos da Malha” – “não queremos que a tradição se perca” - Novo comércio: os mesmos espaços, outras funções A mercearia do senhor Fonseca O velho mercado O café do Quim - Outros projectos pioneiros – o primeiro apoio domiciliário da SCML 1980-1990: A(s) cultura(s) de bairro, o capital social comunitário - As festas, os santos populares – “cada rua era um palco” - O reanimar da paróquia – “uma paróquia de relação” - A gestão do bairro – uma gestão comparticipada O Grupo Comunitário – reunir para prevenir - Síntese cronológica

(Fase 3) 1990-2000: BAIRRO DE CONTRASTES – O ALVORECER DO BAIRRO NOVO E O ANOITECER DO BAIRRO ANTIGO - Novas políticas, velhas heranças – os “mal alojados” das periferias sociais - O alvorecer do bairro novo – velhos problemas, novos impactos A paisagem física do bairro novo – o bairro dos blocos coloridos A paisagem vivencial do bairro novo – tensões e conflitos - O “bairro antigo” vs “ bairro novo” – nós e os outros - Vale do Forno – os “príncipes do nada” em terra de ninguém - As relações entre bairros – as novas dinâmicas associativas Estar Alerta – o Agrupamento de Escuteiros 933 Renascer – o associativismo é preciso - Os novos equipamentos de apoio A esquadra 36 da PSP –a segurança na proximidade A Ludoteca – “aprender a brincar” A Biblioteca Municipal Natália Correia – “uma conquista difícil” As escolas e a “ilha de cultura” bairrista - A gestão local do Bairro O Grupo Comunitário e o trabalho de parceria A nova entidade gestora – a Gebalis - As transformações no bairro e a acção paroquial – um reencontro comprometido - Síntese cronológica

- O associativismo no Bairro – novos parceiros Associação Nacional de Futebol de Rua – a bola sempre pr’a frente! LUA CHEIA – teatro para todos & mais alguns - … E os antigos clubes desportivos – Unidos, Escorpiões e CAC - As hortas do Bairro – “porque a Natureza dá tudo!” - Síntese cronológica - Notas e referências - Bibliografia e fontes

(Fase 4) 2000 a 2012: A REQUALIFICAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ – O FUTURO E A MEMÓRIA - O Bairro Padre Cruz nas políticas da cidade – o contexto da intervenção - O fim do Vale do Forno – “uma história muito triste” - Sobre a intervenção no bairro antigo – tempos e projectos Primeiro impasse – requalificar ou reabilitar? O primeiro projecto de requalificação e o segundo impasse A requalificação e o papel do Grupo Comunitário - O Bairro Padre Cruz, hoje – antigas e novas comunidades Os bairros do bairro – diálogos a construir A requalificação – segundo projecto e terceiro impasse O actual projecto de requalificação – criar um “Bairro Integrado” O GABIP e o pioneirismo do Bairro Padre Cruz O contributo do capital social comunitário Sobre o processo de requalificação – o parecer dos moradores - O futuro do Bairro Padre Cruz e os (novos) compromissos da Gebalis - Outros equipamentos centrais na vida do Bairro O papel da escola – “valorizar a escola na comunidade” Biblioteca Municipal Natália Correia – estimular literacias, criar oportunidades Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz – um suporte continuado da SCML A paróquia: reconquistar relação com a comunidade

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APRESENTAÇÃO

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oi numa de muitas reuniões do Grupo Comunitário do Bº. Padre Cruz que este projecto nasceu… Recuperar, valorizar, divulgar e partilhar a riqueza do trabalho comunitário, das relações de vizinhança e das experiências de vida presentes no maior bairro municipal da Península Ibérica… Um território onde cerca de 8.000 pessoas continuam a viver os seus sonhos, as suas alegrias, e uma inabalável esperança no futuro! Em Outubro de 2010 editámos o livro infantojuvenil que recuperou estórias, acontecimentos, factos e momentos do Bº. Padre Cruz. Foi lançado em simultâneo com a inauguração da nova escola do Bº. Padre Cruz. Em Setembro de 2013 editamos este novo livro. Desta vez em simultâneo com a “devolução” à população do edifício da antiga Escola Primária Rio Tejo. Uma escola que, tal como o bairro, sofreu momentos de construção, de alegrias, de ensinamentos, de utilização mas que infelizmente também de abandono e de vandalismo. Agora, após requalificada pela Junta de Freguesia, volta a estar ao serviço da população. Há símbolos que não podemos deixar perder e esta escola é um deles. O local onde muitos moradores estudaram e, depois, sempre votaram...

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A Junta de Freguesia em boa hora tomou a decisão de produzir e editar este livro como forma de dar mais um alento à esperança de uma requalificação plena da zona mais antiga do bairro que respeite o passado, orgulhe o presente e prepare o futuro sempre a pensar nas pessoas. Uma palavra muito especial a todos aqueles que colaboraram para a concretização deste livro. Desde logo ao trabalho incansável da Fátima Freitas mas também à colaboração e à partilha de testemunhos, fotografias e de diversos materiais por parte de muitos moradores. É para mim, enquanto ex-morador do Bairro e Presidente da Junta de Freguesia, uma honra “apadrinhar” mais este livro que agora passa a ser de todos, em particular daqueles, moradores ou não do Bairro, que continuam a ter um carinho muito especial pela freguesia de Carnide e pelo Bairro Padre Cruz em particular. Este livro é seu, é da freguesia, é de todos quantos amam e sentem Carnide. Aproveite-o, usufrua-o e partilhe o gosto de ler e sobre ele conversar com os seus amigos. Paulo Quaresma Presidente da Junta de Freguesia

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AGRADECIMENTOS

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oi perante o grande desafio do processo de r e q u a l i f i c a ç ã o d o B a i r r o Pa d r e C r u z q u e preocupações comuns surgiram. A Junta de Freguesia, na pessoa do Presidente Paulo Quaresma, o Grupo Comunitário (de onde recebemos informações valiosas) e a Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz (com a indispensável colaboração da professora Elisete Andrade), o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, na pessoa da vereadora do pelouro da Habitação e Acção Social, arquitecta Helena Roseta, tomaram por prioritária a salvaguarda do património humanamente vivido num dos bairros mais emblemáticos da freguesia de Carnide. A que se uniu o singular interesse e acompanhamento por parte de Maria Vilar, ex-presidente da Junta de Freguesia, e actual presidente da Assembleia Municipal. Desta motivação conjunta surgiu, em Março de 2010, o projecto comunitário “Construir cidade à escala humana – História e memórias do Bairro Padre Cruz, em Carnide” que pretende registar e divulgar as memórias colectivas num momento decisivo da vida do Bairro. O documentário “Um bairro que seja nosso” (Fátima Freitas e Telmo Botelho) editado pela Junta de Freguesia em Setembro de 2012 complementa, visualmente, algumas das informações e testemunhos aqui reunidos. Posteriormente, este projecto enquadrou-se na “Agenda local 21”, uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa em associação com a Faculdade de Ciências e Tecnologia/Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente, e ficou incluído na “Estratégia para a Cidadania e Participação”, previsto no Plano de Acção para o Bairro Padre Cruz, sob a responsabilidade da equipa do Prof. João Farinha. A todos os moradores e ex-moradores, responsáveis diversos e pessoas intervenientes que, directa ou indirectamente, colaboraram no percurso deste livro, o meu reconhecimento sincero pela confiança partilhada. As conversas com Adelaide Ferreira, Alfredo Amaral, Agostinho Cristino, António Almendra, António Araújo, António Baptista, Amália Lemos, Amélia, António Cristino,

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António José, António Martins, Armando Artur Mendes, Armando Cipriano, Cândida Sanches, Carminda Prado, Carlos “Canhoto”, Carlos Faria, Carlos Pedro, Catarina Pereira, Cremilda, Cristina Santos (professora/directora do agrupamento escolar), Cristina Santos (moradora), Custódia Pereira, Domingas Ferreira, Emídio Pereira, Ermelinda Cristino, Ernesto Costa, Etelviro de Jesus, Fátima Martins, Fernando Pereira, prof. Freitas, Helena Gomes, Ilda Silva, Isabel Dias, Isabel Maria, Isaura Marques, Joaquim Fonseca e Maria Rosalina, Joaquim Libório, Joaquim Marques, Jorge Humberto, José Augusto Gonçalves, José Ferreira dos Santos, José Lamelas, José Martins, José Rodrigues (Zé Lagarto), José Valente, Júlio Vaz, Joaquim Cruz, Leonor Olivença, Laurinda Vaz, Leocádia Conceição, Lídia Pereira, Lucinda Lamelas, Lurdes Rodrigues, Manuel Campos, Manuel Cebola, Manuel João, Manuel Martins, Maria do Carmo Costa, Maria da Graça Cristino, Maria da Graça Pereira, Maria de Lurdes Quaresma, Maria Pilar, Maria Piedade, Maria Santos, Marieta Ferreira, Maximiana Lopes, Natália Santos, Nazaré, Nuno Diogo, Olinda, Paula Rodrigues, Prof. Freitas, Renata Lajas, Rui Gato, Teresa Correia, Teresa Martins, Teresa Pedra, Vanda Ramalho, Vasco Estevão, Vítor Aveiro, Vítor Cacito… são presenças vivas, entre outras mais, neste comum lugar da memória – e que também já se fez (minha) paisagem interior. Aos técnicos da CML, Drs. Carlos Inácio, Estela Gonçalves, Isabel Santana, arqs. Lídia Pereira, Maria Rosa Leitão e Jorge Subtil; arqº Nuno Ventura Bento (EPUL); dras.Helena Gomes e Cláudia Rocha (Gebalis); prof. Rogério Roque Amaro (Proact/ISCTE) pela partilha dos respectivos saberes e experiências. À valiosa disponibilidade de dras. Ana Viana, Isabel Geada, Natália Nunes e Sofia Júdice (SCML); de Júlia Silva (Irmãs da Assunção); dras. Elfrida Reis e Natália Amorim (Biblioteca Municipal Natália Correia); de sub-comissária Luísa Monteiro (PSP). E, ainda, o interesse do pessoal da biblioteca do Gabinete de Estudos Olissiponenses (G.E.O), sempre prestável e colaborador. À cumplicidade singularmente amiga de Albertina Lopes,

Ana Enes, Elisabete Santos, Cristina Virgílio, Carlos e Fernanda Silva, Domingas Ferreira, Fernando Ferreira, Fernando d’Oliveira, Hugo Guerra, João Gualdino, Jorge Nicolau, Jorge Humberto e Ilda Santos, Lurdes Faria, Maria João Trindade, Maria Manuel Passas, Mário Alves, Mário Guerra, Manuel Oliveira, Rosalina Nunes, Teresa Guerra e Vítor (Bom Norte) e, claro, de Zé Luís. Um agradecimento muito reconhecido a Prazeres Sousa, moradora e funcionária da biblioteca Natália Correia, companheira sempre amiga na partilha e descoberta dos “segredos” do Bairro. Aos membros dos grupos no facebook “Intas&Entas”, “Bairro Padre Cruz”, a informação e os diálogos divertidos. Renovado e sincero agradecimento, também, aos empenhos cúmplices de João Oliveira (técnico da Cultura) e Gonçalo Ferreira (designer gráfico) e a todos os demais funcionários da Junta de Freguesia de Carnide que, de algum modo, estiveram envolvidos na feitura deste livro. Encontrados alguns fios que entretecem as vidas comuns com a linha de vida do Bairro é, também, um artesanato feito de momentos e de memórias.

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CONSTRUIR CIDADE À ESCALA HUMANA Com que matéria se constrói um bairro? “O que faz a diferença no Bairro Padre Cruz? É um bairro de sucesso. E porquê?” Jorge Nicolau(1) (ex-morador) B.º PADRE CRUZ, 2010

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ercorrer, nos dias de hoje, as ruas mais antigas do Bairro Padre Cruz, em Carnide, desperta-nos uma sensação de estranheza, um sentir inquieto. Porém talvez seja precisamente esta perturbação que anima a curiosidade para além daquilo que os olhos alcançam no primeiro instante. Rumando ao limite noroeste da cidade de Lisboa, e após atravessar um verde-mar de hortas, encontramos um nicho retirado da freguesia de Carnide. O busto do santo padroeiro serve de farol. Tem a bondade acesa num discreto sorriso que alumia moradores e viajantes. Invadenos a nítida sensação de que estamos a aportar numa aldeia-ilha fora da cidade. É o Bairro do Padre Cruz. Está debruçado para o vale da Paiã a janelas meias com o concelho de Odivelas e de Loures. Aproximamo-nos. Numa teia densa de ruas alinhadas a eito e a direito, correndo pelos nomes dos rios e afluentes – em direcção a que mar? – estão ainda plantadas em paredes meias as casinhas outrora quasebrancas, multiplica-se o que resta dos quintais e hortas importados das saudades da aldeia, amanham-se os alpendres e anexos que cresceram ao gosto, necessidades e posses de cada um. Curiosos, caminhamos por um espaço a que, na gíria local, chamam bairro antigo. “Este bairro lembra-me um fado.” Fernando Pereira (ex-morador) Cada casa, igual à do vizinho, conseguiu o seu rosto singular à custa do trabalho nos ferros forjados dos portões, e os hábitos íntimos dos moradores expõem-se nas peças de roupa dos coloridos estendais. Os periquitos esvoaçam chilreios nas gaiolas. Os vasos das flores vivas e

BUSTO DO PADRE CRUZ, 2010 (FOTOGRAFIA DE HUGO GUERRA)

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garridas têm por mau vizinho o baldio triste e abandonado. Algumas casas ainda respiram saúde, outras estão doentes de corpo e de alma aprisionada por tijolos sinistros. Árvores frondosas e altaneiras incomodam-se ao aperto das ruas mal calcetadas, as suas belas copas e fundas raízes invadem quintais vizinhos. Os resistentes e generosos limoeiros tentam os caminhantes com os seus frutos lembrando os rios de águas que correm nestes subsolos. O primor de algumas poucas ruas contrasta com o desleixo e acentuada degradação de umas quantas mais onde, agora, os cheiros evocam sensações confusas que repelem. Os espaços públicos – que antes haviam sido cuidados jardins – cederam aos matos e gatos bravios. Escutam-se fados na voz da rádio que canta naquela garagem. Os carros mal estacionados protegem os portões da insegurança mas acanham as passagens. Aqui e ali os cães ladram e os gatos fogem à caça da maior ratazana. Algumas pessoas cumprimentam-se nas ruas – ainda se cumprimentam! – e outras espreitam curiosas a cada passo “estrangeiro”. Respondemos aos sorrisos antigos e as mais curiosas convidam à conversa. Ouvem-se bons dias com nomes próprios e o apelo ó vizinha! serve de guia entre as ruas desta aldeia semeada em terra de cidade. Observamos melhor. No ar paira a indefinida sensação de que estaremos a caminhar num caos ordenado ou numa ordem caótica… “O bairro hoje está em mísero estado”; “A tristeza que isto dá! Se o visse como era dantes, tínhamos tanto orgulho nele”, desabafam repetidamente. “Era o príncipe dos bairros de Lisboa!”, suspira-se entre as ruas. Esta geografia de emoções justifica a interior indignação do viajante que aqui aporta pela primeira vez… – Mas porque estará hoje este bairro assim? Que forças e mãos do tempo por aqui passaram? Nas segundas visitas vamos prevenidos. Levamos interrogações que servem de roteiro para captar a tal “vida concreta” que lembrou o padre Araújo. Perguntas, indagações que atravessam tempos, lugares, emoções, afectos, memórias… Quando, quem foram e quem são

estes moradores? Porque vieram residir para este bairro? E que relação foi o bairro mantendo com as azinhagas e hortas envolventes? E com a vizinha freguesia de Carnide – são cúmplices e próximos ou serão vizinhos distantes? E que diálogos têm os seus moradores com a “cidade grande”? Destes primeiros passeios mais impressionistas pelo bairro resultou também outra surpresa: afinal, o rigor do traçado das ruas sempre a direito que evitavam curvas ou desvios; afinal, o padrão aprumado e repetido das moradias que lembram uma “aldeia dos pequeninos”, caiada num tempo social onde tudo e todos deveriam ocupar o “seu lugar”; afinal, as distâncias até ao centro de Carnide – percorridas a pé em companheirismos por entre azinhagas… tudo isso e muito mais que um primeiro instantâneo fotográfico captou…, revela-se múltiplo e variado quando observado e escutado em maior intimidade e convívio físico. Afinal, o desenho comum e unificador entre as ruas (que ainda hoje confundem os moradores mais antigos!) revela-se, no passo concreto, tão diferentemente vivido, oferecendo uma paisagem vincadamente humanizada – não existe um único portão igual! – porque a casa fixou o rosto e a experiência do humano, de cada morador, no seu território. Dizem-nos: “Este bairro lembra-me um fado”. E damos inteira razão. Porque não é só o hoje do bairro que ali está presente, não… Pressentimos vozes e gestos que ecoam tempos de antanho que acordam a pergunta fundamental: com que matéria se constrói um bairro? E, afinal, onde mora a tal diferença deste bairro? No fado de que casa, no rio de que rua? Então, após aquela primeira estranheza, confirmamos: este é um lugar habitado porque transmite a intensa experiência de quem nele viveu, e vive. Mas, além disso, reflecte as condições que esse lugar foi impondo às suas gentes. É, por isso um lugar que carece de ser conhecido. E interpretado. É precisamente esse colectivo de memórias, que tem valor de património(2). Um património, mapas de

afectos, que sentimos vividamente presente nos caminhos das ruas, nos arranjos das casas, nos enfeites das janelas, nos portões e portadas, mas também nas expressões dos rostos, nas confissões e desabafos, nos retratos de gerações, nas cenas domésticas, nas glórias das festas e letras dos seus cantares, hinos e poemas, convívios e passeios… mas também nos lutos, lidas e lutas diárias, nas partidas e nos regressos, nas saudades e nas distâncias, nas conquistas, anseios e expectativas…, em múltiplos fragmentos destas biografias, reais e sensíveis, que preenchem esta “cultura de bairro”, conforme referiu Elisete Andrade. Um bairro, que é, afinal, um território de partilha de memórias e de representações, sentidos e significados, experiências de vida ancoradas numa terra que assim, mas só assim, se transforma em lugar. Em um lugar a que, teimosamente, ouvimos chamar... nosso bairro. Nosso, mas de quem? Responder a algumas daquelas questões e lançar as sementes para outras mais, foi o que aqui procurámos amanhar a nosso tempo, modo e jeito. Um trabalho que representa um primeiro caminhar na busca do(s) sentido(s) do habitar dessa tal diferença escutando, no bairro vivo, as memórias, os testemunhos do seu passado e anseios do seu presente. Como tal, procurou-se um registo de linguagem o mais abrangente possível para envolver os moradores e alcançar um público leitor amplo. Bairro Padre Cruz – diálogo e confronto entre paisagens O Bairro Padre Cruz faz parte da freguesia de Carnide, já foi dito. E Carnide fica no limite noroeste do concelho de Lisboa, integra a Região de Lisboa e Vale do Tejo e a Área Metropolitana de Lisboa. O Bairro localiza-se na extrema norte da freguesia, na antiga Quinta da Penteeira ou Alto da Penteeira, que fazia fronteira entre os concelhos de Lisboa e Loures (e Odivelas, a partir de 1998). Actualmente, o Bairro Padre Cruz é um dos maiores bairros de realojamento municipal da Península Ibérica. No

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RUA DO RIO CORGO, 2010

LOCALIZAÇÃO DE CARNIDE, MAPA DE FREGUESIAS DE LISBOA, 1987 (CML)

amplo território da freguesia (400 hectares) o Bairro ocupa uma zona de 37,2 hectares onde residem 6 468 habitantes (Censos, 2011). Um número que corresponde a quase 30% dos residentes na freguesia de Carnide (22 415 habitantes, Censos 2011) e mais de 1% da população residente no concelho de Lisboa. A ocupação de qualquer território resulta sempre de processos vários de desenvolvimento social e ambiental. E as transformações da paisagem – construída ou “natural” – expõem a história da diferenciação dos lugares. O Bairro Padre Cruz foi um bairro criado de raiz, em 1959-60, para acolher populações transferidas de outros bairros precários da cidade, alguns deles, também provisórios. Na sua origem foi um bairro de propriedade inteiramente municipal. Esta “vocação” original mantevese ao longo de toda a sua história. Uma história com mais de 50 anos. Durante este período, o crescimento, transformação e ocupação do Bairro resultaram e serviram sempre – até ao presente recente – de território de acolhimento, de solução estratégica para os desafios mais ou menos complexos gerados pelo crescimento e gestão da cidade de Lisboa. Por isso, apesar da paisagem do Bairro Padre Cruz, ainda hoje, sugerir uma ilha periférica, a respectiva história é consequente e faz parte do contexto da narrativa da cidade e, em alguns aspectos, do país. Sobre a biografia do Bairro Padre Cruz – testemunho a várias vozes Esta pesquisa, de carácter monográfico, não teve a pretensão de reconstruir a história factual do Bairro Padre Cruz(3) pois reconhece-se que não existirá apenas uma só interpretação da respectiva história, nem o “bairro” é matéria concreta e palpável. Todavia, já se percebeu que o bairro pode ser identificado pelo desenho da paisagem e por um certa vivência e conteúdo social. Afinal, um bairro representa, fundamentalmente, uma ideia que, ao longo do tempo, vai sendo construída e fixada pela intensidade dos quotidianos partilhados e adquirindo consistência na

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qualidade das convivências – é, por isso, um território que evoca experiências de vida comuns, representa modos de vida. Como tal, o território do Bairro Padre Cruz tem sido um elemento importante na criação de fortes laços sociais entre os residentes, de património sensível e afectivo e que as memórias, os poemas, quadras e marchas que lhe são dedicados tão bem ilustram. De facto, o interesse em percorrer a biografia do Bairro tem, necessariamente, que incluir as experiências e condições de vida das várias gerações de moradores. Estes testemunhos, representam aquilo a que chamámos de “paisagens interiores”, e são um “valor em si”, um património fundamental, que também compõe o tom da história e a(s) identidade(s) do Bairro Padre Cruz. Concordamos: “Todo o território (…) que não tenha o respeito pelos seus elementos patrimoniais não poderá servir de base para um desenvolvimento local equilibrado e sustentável.” (Varine, H. (2012): 18). Como tal, foi nosso objectivo contribuir para que as populações residentes (e não residentes) ganhassem maior conhecimento sobre si mesmas, sobre a sua história. Por tudo isso, mais do que identificar a sucessão dos acontecimentos (vd. síntese cronológica no final de cada capítulo), interessou-nos identificar os “ambientes sociais”, os momentos mais intensos na transformação do Bairro Padre Cruz. Neste processo foi fundamental a recolha de memórias, a escuta de várias vozes(5) – moradores e ex-moradores, responsáveis locais, dirigentes associativos, funcionários técnicos, políticos, autarcas... E, apesar de somarem mais de 100 testemunhos, ficou-nos a ingrata sensação de que muitos mais haveria que escutar. Por outro lado, também seria desejável que esta pesquisa contribuísse para contextualizar aqueles testemunhos expondo razões sociais que a razão individual desconhece. Neste sentido, reafirmamos a necessidade e o interesse em enquadrar os testemunhos individuais no respectivo período identificado na biografia geral do Bairro. A saber: (Fase 0) Até 1958: No início era o campo Nesta fase prévia percorremos um pouco da ante-

história do território e das fronteiras onde o Bairro Padre Cruz viria a ser instalado – a Quinta da Penteeira. Procuraram-se as razões políticas que justificaram a aquisição de um terreno afastado relativamente ao centro da cidade de Lisboa, a qual crescia aceleradamente tomando formas de moderna capital do Império. A necessidade de mão-de-obra barata encontra nos migrantes rurais das décadas de 40-50 a população disponível para as obras da capital, sendo a respectiva Câmara Municipal a grande empregadora. O Bairro Padre Cruz resulta, por isso, das ambições maiores de um regime político – o Estado Novo – onde a ordem e a regulação sociais ordenavam o território – porque fazer cidade era “arrumar” a sociedade. (Fase 1) 1959 a 1974: Construtores da cidade, artesãos do bairro Subdivide-se em dois períodos: 1959 a 1967: Do bairro anónimo ao bairro das inaugurações 1968 a 1974: Os artesãos do Bairro Padre Cruz: “o bairro éramos nós” Numa primeira fase o Bairro ocupava apenas uma pequena área de antigas quintas e terrenos de cultivo adquiridos, em 1958, pela Câmara Municipal de Lisboa. O processo de construção teve início no ano imediato, em 1959. A primeira geração de moradores era composta por ex-migrantes rurais (do Norte e Centro do país mas também uns quantos alentejanos…) que já habitavam a cidade. Na sua grande maioria estavam alojados em outros (anteriores) bairros provisórios que viriam a ser afectados pela expansão da Lisboa dos anos 50-60 Daí a necessidade de transferir os respectivos agregados familiares para o novo provisório “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira”, em 1960. Esse primitivo bairro, apenas com 200 casas, é hoje inexistente e correspondeu à zona original construída em fibrocimento. Por isso, ficou conhecido como “bairro de lusalite”. Logo após, a partir de 1960-61, deu-se início à edificação da zona de moradias em alvenaria (917 fogos),

que atrás percorremos, cuja semelhança com uma aldeia portuguesa era evidente. O intencional (e regulador) afastamento geográfico, associado a outros factores, acabaria por motivar forte coesão social entre a população residente, a qual ainda persiste como uma “âncora identitária”. Importará então “retratar” quem foram estes primeiros moradores, estes artesãos-construtores do bairro, como se relacionaram e humanizaram o território, quem com eles interagiu, as relações de sociabilidade mais significativas, a importância fundamental dos clubes e dos núcleos recreativos e as relações entre o bairro e a cidade. (Fase 2) 1974 a 1990: A vivência local do(s) poder(es) e cultura(s) Subdivide-se em dois períodos: 1974 a 1980: Do silêncio à reivindicação da voz – do morador ao cidadão 1980 a 1990: A(s) cultura(s) de bairro(s) e o capital social comunitário Os meados da década de 70 trazem as grandes transformações sociais da revolução de Abril. Tal como sucedeu por todo o país, o Bairro Padre Cruz foi palco para experimentação de novas expressões de liberdade e de novos poder(es). A paisagem humana vibra e agita-se; as relações de sociabilidade politizam-se e conhecem novos contornos; surgem vários conflitos, pontos de tensão, fracturas nas relações sociais; os moradores procuram conquistar voz de cidadãos. A dimensão política e partidária inscreve- no território, anima debates e confirma contestações. O modelo original do edificado é readaptado às necessidades das famílias. Nos finais da década de 80 são colocadas as fundações para construção de uma ampla e nova parcela e a paisagem do Bairro Padre Cruz (física e vivencial) transfigura-se irreversivelmente. (Fase 3) 1990 a 2000: Bairro(s) de contraste(s) – o alvorecer do “bairro novo” e o anoitecer do “bairro antigo” Previa-se o crescimento da Lisboa dos anos 90, as transformações impostas pela Expo de 94, a construção do

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eixo Norte-Sul e os planos P.I.M.P (Plano de Intervenção a Médio Prazo) e, mais tarde, o P.E.R. (Plano Especial de Realojamentos) viabilizam a sua concretização. Estes planos permitiram o programa camarário dos anos 80-90 para “erradicação das barracas” e os consequentes realojamentos, massivos, das famílias com geografias humanas diferentes (quer entre si, quer relativamente às primeiras gerações de moradores) que trouxe novas problemáticas sociais. Nasce uma nova zona no Bairro que ficaria conhecida como “bairro novo” por contraste com o “bairro antigo” (primeiras zonas de lusalite e de alvenaria). Apresenta um desenho e recorte do horizonte totalmente diferentes – prédios de blocos coloridos alinhados em quarteirões, largas avenidas e amplos espaços públicos. As tensões entre “os filhos do bairro” e as populações recéminstaladas estruturam as conflituosas sociabilidades durante este período que envolveu, também, o realojamento de famílias ciganas alojadas no sítio vizinho do Alto do Forno. Os anos 90 correspondem a um período especialmente crítico e muito acelerado na vida do Bairro que se transforma, e “encerra”, uma “cidade dentro da cidade”. (Fase 4) 2000 a 2012: A requalificação do Bairro Padre Cruz: o futuro e a memória O decurso da década de 2000 inclui vários momentos decisivos e de grande impacto nas paisagens físicas e vivenciais do Bairro Padre Cruz. A resolução dos problemas do Bairro – a integração das novas populações e a degradação da zona de alvenaria – exigiam urgente e eficaz intervenção camarária. As condições de vida dignas para uma população envelhecida está fortemente comprometida. Mas é também outro período decisivo. Após vários impasses políticos, é o momento em que o Bairro pressiona a gestão da cidade a pensá-lo como um “lugar em si mesmo” e o mês de Janeiro de 2012 marca o início do processo de requalificação com a primeira fase de demolição das casas de alvenaria. Este plano de requalificação (sujeito a reformulações e impasses) propõe

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um modelo de “Bairro Integrado” e contempla um calendário faseado a prolongar-se para além da dezena de anos. Também por isso é o momento da mais brusca e violenta transformação nas paisagens – interiores e exteriores – constituindo singular oportunidade de estudo sobre o valor social da escala e humana nos actuais modos de conceber, planear e construir a Cidade. O direito à memória – uma questão central num ”bairro periférico” Para além da sucessão das transformações e intervenções no espaço físico identificáveis no tempo e no território, percebeu-se existir um espólio de vivências, memórias, cumplicidades, simbolismos e representações sociais… que muito têm consolidado uma identidade de território, uma certa “cultura de bairro”, conforme dizem. E, esta, revelou-se uma referência fundante para outros trabalhos, pioneiros, que o Bairro tem desenvolvido. A qualidade das relações de vizinhança, o associativismo, a participação comunitária… determinaram a qualidade da malha de relações sociais que o Bairro foi gerando e longo dos anos dando consistência à ideia de “cultura de bairro” e, por isso, de uma certa “sustentabilidade social”. Mas essa identidade original também possibilitou acumular referências e amadurecer con-vivências que, ao longo do tempo, se foi constituindo como outro valioso capital. Um capital social comunitário, uma mais-valia sobre a qual importará reflectir no contexto da requalificação em curso. Por consequência, assumimos particular atenção às memórias dos primeiros anos da vida do Bairro por várias razões: o facto do “bairro antigo” ser, no presente, alvo das intervenções de requalificação e, portanto, objecto de transformações irreversíveis; o facto de encontrarmos naquelas convivências a matriz de referência, a “âncora identitária” que permite compreender aquilo que o Bairro foi sendo, como é imaginado e representado, e como isso influiu (e influi) na relação com populações posteriormente instaladas. Porém, também desbravámos informação original

sobre a história mais recente. E, aqui, a intenção pioneira de reunir, escutar e fazer dialogar a voz e as razões entre moradores das várias gerações e diferentes fases – procurando as proximidades e as divergências – talvez seja o maior contributo: o reconhecimento de que estas vozes, plurais, todas elas fazem parte do património humano, afectivo e vivencial não só do Bairro Padre Cruz mas, também, da história de Lisboa. Porque “o Bairro é o palco desta memória colectiva que se reflecte na memória da cidade.” (Nicolau, J. (2012): 39). São vozes que irrompem dos silêncios omissos ou ainda hoje esquecidos e que são fundamentais porque revelam as limitações da narrativa única, quantas vezes confundida com “verdade histórica”. E são fundamentais, também, porque resgatam o elementar direito à (sua) memória por parte das pessoas comuns, dos moradores e não moradores, actores locais… capacitados a intervir nos destinos das comunidades onde se inserem – porque a memória, não esqueçamos, é um poder e, por conseguinte, um capital no campo social. Como tal, o direito à memória, e o reconhecimento do seu valor de narrativa, inscrevem-se como questões fulcrais da vida em democracia. Por tudo isto, reafirma-se a importância do vínculo entre patrimónios locais, acção comunitária/participada e desenvolvimento local – só uma comunidade que dispõe de um lugar para a memória, uma comunidade que pensa sobre si mesma, é capaz de usar e rentabilizar os recursos (humanos, materiais e imateriais…) a fim de promover futuros, criar novas e melhores condições para um maior número de pessoas, sejam vizinhos, sejam concidadãos. “Sei que a cidade está perder os seus bairros e isso é muito preocupante. Porque aqui eu nunca estava sozinha, sentia-me sempre acompanhada e isso é que é o maior desenvolvimento de uma cidade, acredito…” (Olinda, moradora). Curiosamente pertinente e actual este aviso num contexto em que a política urbana deste início de século XXI – a Carta Estratégica de Lisboa (2010-2014) – propõe uma vocação humanista para Lisboa: a de ser “uma cidade de

bairros”… “Para os seus habitantes, Lisboa precisa de se transformar numa cidade de bairros, realçando o caráter existente, plantando as sementes do futuro. O bairro deve ser a unidade estruturante, no espaço e no tempo, definidor do orgulho e do prazer da cidadania (…) O cidadão deve gostar de viver e/ou trabalhar no seu bairro (…) e os bairros devem ter uma escala humana, não excedendo a dimensão espacial das cidades medievais.” E chegámos ao último propósito. Desconstruamse estigmas e ideias preconcebidas sobre realidades sociais que, afinal, pouco se conhecem. O Bairro Padre Cruz não pode servir de cenário por onde desfilam personagens “marginais” e de onde apenas se retiram ou noticiam histórias sobre “delinquências urbanas”. Porque a história do Bairro Padre Cruz completa e anima a narrativa da cidade, multipliquem-se os ângulos de observação e consolidemos uma outra consciência social – mais ampla e, por isso, mais inclusiva nestes tempos agrestes que (nos) exigem a verdadeira sensibilização humana na construção e vivência dos territórios, seja à escala do bairro, da cidade, do país ou do planeta. Uma Cidade onde os lugares, os seus bairros…, sejam construídos e vivenciados à escala da dignidade humana em sério compromisso no respeito pelo ambiente envolvente. Lembremos – se a casa fixa o rosto do humano no seu território, os bairros fixam o rosto do humano na Cidade. Este, um projecto nosso.

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Fase 0 ATÉ 1958: NO INÍCIO ERA O CAMPO “É importante perceber que não se trata só de preservar e estudar o edificado. É importante perceber que o território também guarda memórias e é património (…) Nesta freguesia é ainda possível estudar o passado através do estudo da génese do bairro – as azinhagas são vestígios dessa memória… vestígios da malha antiga, das divisões em quintas…” Jorge Nicolau (ex-morador do Bairro) “Era o meu patrão, o senhor Arménio. Era ele quem semeava isto aqui tudo. Era trigo, centeio e cevada e alpista. Ele arrendava isto ao Castanheira de Moura. O mercado foi uma vacaria onde o Castanheira de Moura punha os bois de trabalho. Depois, iam por estas encostas até ao Lumiar. Era tudo dele, até ao Lumiar… Tinha uma fábrica de azeites e farinhas lá no Paço do Lumiar. Dizem que foi ele quem deu os terrenos para fazer casas para pobres. Toda a vida ouvimos dizer que ele ou a viúva deram o terreno à Câmara para fazer um bairro para os pobres.”(Manuel Cebola (morador(1))

QUINTA DA PENTEEIRA, 1967 (AF-CML)

“Sou o filho do Arménio. Nós cultivávamos ali aqueles terrenos… Era a Quinta da Penteeira. Nós éramos rendeiros da Câmara de Lisboa. Sempre pagámos a renda à Câmara. Pagava-se uma vez por ano e havia registos nuns cartõezinhos com furos… Havia um regueirão que passava ali que chegava até Benfica. Perto da casa branca havia uma grande lagoa. Eram várias courelas e havia uma courela que pertencia à cerâmica que, depois, nós também cultivávamos. Vinham pessoas do Norte, de Pombal, trabalhar aqui no Inverno porque eles tinham as culturas da Primavera. Faziam aqui hortas, eram vaqueiros… trabalhavam nas quintas que havia por aqui… Chegámos a ir vender para o mercado do Campo Grande, para o mercado abastecedor. Depois, o meu pai começou a cultivar os terrenos: trigo, aveia, cevada, milho nas baixas… e eu lá ia com o meu sachinho,

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tinha umas botas, e o meu pai ensinou-me como se abriam os regos. Eu andava ali a pastar o gado e vi o bairro a crescer. Tinha muita curiosidade…”(António José, filho do Arménio, rendeiro da Quinta da Penteeira, morador em Carnide) “Aquilo era tudo terra de lavoura, era do Castanheira de Moura. Aquilo era lavrado com bois… era cá uma remessa de bois! Naquele tempo era um terreno muito grande, era terreno de sequeiro, cultura de trigo. Conheci o Arménio. E o filho! O António José nasceu aqui ao lado da minha casa, em Carnide. E quando eu tinha a oficina de serralharia, ele andava por aí a gatinhar… E ainda aqui têm família. E o Cebola? Então não sei quem é o Cebola! Ele trabalhou para ali para a cerâmica… aqui, a de Carnide. Porque havia outra fábrica de cerâmica, ali mais para o Lumiar. Era do Santos, ali para a Azinhaga dos Lameiros. E havia lá um tanque que nós, em miúdos, fazíamos de piscina. Eu aprendi lá a nadar com os da minha criação. Quando tiravam o barro… ficavam barreiras, e a gente aprendia a nadar. E até houve dois miúdos da nossa idade que ficaram lá… E havia a Rosa Ginja que também era cá de Carnide, e do outro lado havia a azinhaga escura, as Hortenses que era de uns africanos, de Angola… e a quinta do Serrado. E o engenheiro Santana era o dono do terreno onde agora fizeram o condomínio da Quinta das Camareiras. Era de um engenheiro agrónomo… Nós chamávamos a “Quinta do Paraíso”, era o nome. A Quinta da Mal Penteada era mais chegada à Pontinha… Eu ia para os lados da Penteeira porque ia aos pássaros. Quando veio o bairro e acabaram os pássaros e eu deixei de ir para lá…” (Rogério Cipriano, vizinho do Arménio e do filho, José António, moradores em Carnide)

O

ano de 1958 assinala a aquisição da Quinta da Pentieira/Alto da Pentieira – depois, Penteeira – por parte da Câmara Municipal de Lisboa (durante a transição da presidência de Álvaro Salvação Barreto para António França Borges). A Câmara Municipal de Lisboa

adquiriu esta Quinta (cuja área total deveria ser próxima dos 40 hectares) com o propósito de construir, em duas fases, um bairro de realojamento – o “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira”. A Quinta pertencia à viúva Elisa Augusta Soares Castanheira de Moura e foi adquirida pelo preço de três milhões e quinhentos mil escudos (3.500.000$00(2)). No documento ficou salvaguardado o direito à colheita daquele mesmo ano (não especificada, mas supomos que fosse de trigo). Conforme consta da escritura, o terreno era composto por várias courelas ou prédios rústicos maioritariamente pertença da freguesia de Carnide e alguns inscritos na freguesia do Lumiar. Nessa época apenas existiam duas edificações na Quinta da Penteeira: uma antiga vacaria (actual mercado), e uma velha casa de serventia aos trabalhos agrícolas onde fora instalada a mercearia “casa branca” ainda em tempos anteriores ao bairro. Após a leitura destas linhas já se compreendeu – toda a paisagem traz memórias, todo o território tem uma história. Até mesmo os territórios mais remotos e distantes terão uma história. Essa história desenha-se e lê-se na paisagem. Na paisagem física, na paisagem exterior. Mas também existem as paisagens interiores. E as paisagens interiores resultam dos modos como nos relacionamos com os territórios, quando transformamos um território em “lugar” e, depois, em “nosso lugar”.No momento em que faz parte dos nossos afectos, e das nossas memórias – é vivenciado como uma “paisagem interior”. E mesmo que essas paisagens e memórias, esses lugares “interiores” se confundam com o passar dos anos pelas vidas (afinal, o Arménio seria um rendeiro do Castanheira de Moura ou da Câmara Municipal de Lisboa? Ou, afinal, terá sido de ambos em fases diferentes…?) são sempre referências importantes para a história de qualquer lugar. Por exemplo, a questão da doação do terreno à Câmara por um benemérito particular (o próprio

Castanheira de Moura? A sua viúva?) foi, por diversas vezes, referida e defendida pelos moradores mais antigos. Disseram: “Foi o proprietário da Quinta que a deixou à Câmara para serem feitas casas sociais.” (Júlio Vaz, morador no Bairro); “E eu cá sempre ouvi dizer – era o que se contava por aqui – que estes terrenos tinham sido do Padre Cruz e foi o santo padre que os deu à Câmara para fazer um bairro para os pobres. E, ao final de alguns anos, acho que 50, as casas ficavam para eles.” Maria da Graça Pereira (moradora no Bairro). Houve inclusivamente quem afirmasse que os terrenos haviam sido doados ao Padre Francisco da Cruz (patrono do Bairro, conforme homenagem póstuma) para que neles desenvolvesse a sua obra assistencialista em favor dos mais carenciados. Porém, estas referências – que a existência de escritura demonstra não terem qualquer fundamento – são exemplares do modo como os primeiros moradores se foram relacionando e apropriando deste território – recriando “estórias”, episódios da história e até construindo as suas lendas, mitos e heróis locais. Ora, estes “mitos” são tanto mais interessantes quanto percebemos que, no início, este terreno da Quinta da Penteeira era um território ermo e despovoado de gentes. Era uma finisterra, uma terra de limites, semeada na periferia da também periférica freguesia Carnide, tal como assinalámos. Era um amplo terreno cultivado de trigo, isso sim, mas desabitado – “Dantes, não havia ali nada. Era tudo campo…”, repetiram frequentemente muitos dos primeiros moradores. Mas por tantas vozes insistirem nesta informação (“aqui, não havia nada!”) acabámos por suspeitar que, afinal, talvez pudéssemos encontrar algo. Alguma “coisa” que escapava à vista desarmada … mas que, afinal, podia justificar a amplidão da paisagem, dava-lhes nomes (Quinta da Mal-Penteada, Penteeira, Ribeiro dos Murtais, Azinhaga das Bruxas…), distanciava as casas, despovoava os terrenos, conhecia os riachos e as alagoas, desenhava tímidos carreiros, escolhia os cultivos e plantava as oliveiras.

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QUINTA DA PENTEEIRA, 1949 (INSTITUTO GEOGRÁFICO CADASTRAL)

Esse “algo” está inscrito na paisagem e faz parte da(s) história(s) – dos territórios, das cidades, dos países. E das pessoas que os habitam. Ora, foi isso que nos levou a querer saber o que era, afinal, este imenso “descampado” antes de ali ser semeado “o nosso bairro”. Nesta primeira etapa do percurso entre tempos, paisagens e memórias distantes é isso mesmo que indagaremos: por que razões o bairro “nasceu” nesta tão distante e recôndita Quinta da Penteeira, onde nada havia? Quinta da Pentieira ou Alto da Pentieira: o termo do Termo Quinta da Penteeira Foi em 1762 que encontrei a primeira refereencia a esta quinta, onde, nesse anno, residia Manoel Simões Álvaro. Seria este o fabricante de pentes, que lhe deu o nome? Torna-se fallar-se nella em 1782. Há, porém, no aspecto venerando d’aquella residência campestre umas como rugas e cans de velhice, que parecem dizer-me que ella vae muito alem do meado do século. Foi conhecida então por outro nome, por algum daquelles que mencionei e que hoje não se sabe que quinta designavam. Em 1820 residia ali D. Luiza Goes. Em 1833, em terreno seu, por ficar bastante afastado da povoação estabelecia-se o cemitério dos coléricos, onde foram sepultadas, quasi na sua totalidade, as victimas d’essa terrível e mortífera epidemia. Em 1855 apparace já o nome do actual possuidor. Nesse anno era padrinho d’um Duarte, filho do cazeiro da quinta da Pentieira, Duarte de Souza Lobo, solteiro, morador na rua dos Anjos, 36. É este o actual proprietário desta quinta, onde reside a maior parte do anno, entregue ao tratamento do seu esplendido aviário, notabilisismo pelas espécies raras. Também em 1863 era padrinho d’uma filha dos mesmos um irmão d’aquelle senhor, Augusto de Souza Lobo, notável professor do Curso Superior de Letras. (Pereira, J.B.: 80-81)(3)

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Já foi referido que o “Alto da Pentieira” – ou “Quinta da Pentieira” – onde viria a nascer o futuro Bairro Padre Cruz situava-se na coroa norte da periferia da cidade de Lisboa, no extremo noroeste da freguesia de Carnide(4), a qual integrara o Termo de Lisboa(5). Na origem da Quinta da Penteeira poderia ter estado uma outra. Em 1724 é referida a Quinta dos Bargados (também Bragados ou Bergados) cujo caseiro seria Manoel de Oliveira e, em 1738, era o seu proprietário Manuel de Souza (Pereira, J.B “Memórias de Carnide”). Ao que consta, foi posteriormente Manuel Gomes Pinheiro (em 1752-55) que teria alterado o nome do terreno para “Quinta da Penteeira”. Após outros proprietários, chegou à viúva de Castanheira de Moura, que a vendeu à Câmara Municipal de Lisboa. O último proprietário, Castanheira de Moura, era natural do norte do país e, naquela altura, um abastado proprietário, ligado à indústria da panificação, em Lisboa(6). É dessa época o primeiro registo fotográfico que conhecemos desta Quinta: um vasto terreno de trigo e de centeio, forros de pastagens, atravessados por estreitas azinhagas ladeadas por algumas árvores de fruto, maioritariamente oliveiras. Ao fundo, o gado pastava tranquilo – cavalos, bois e vacas, cabras e ovelhas conviviam pacificamente entre quintas. Eram terrenos de cultura fértil com um subsolo rico em linhas de água que as várias alagoas e charcos evidenciavam – “O terreno do bairro é muito fértil. É um terreno com muita água. Abria-se um buraco com metro e meio e aparecia água…”, confirmaram. Lugar ermo e despovoado, mas nem por isso vazio de história. Muito antes pelo contrário. Toda esta ampla paisagem foi cenário de povoamentos remotos e, com o auxílio da bússola da memória percorreremos, a passos largos, as antigas fronteiras desta Quinta, procurando respostas para as questões que o presente nos coloca. Sabemos que pelos séculos XVIII e XIX foi cenário para quintas centenárias das quais ainda restam vestígios, casas senhoriais ou edificações mais humildes de apoio ao

cultivo. Um local outrora afamado e muito apreciado pelos bons ares e beleza paisagística, convidando aristocratas, e depois abastados burgueses em refúgio do bulício da cidade. Porém, se já desaparecidas muitas dessas quintas, na toponímia da freguesia de Carnide ainda se preservam muitas dessas memórias – Quinta de São Lourenço, de Santo António, da Luz, dos Azulejos, do Bom Nome, do Machado, da Marquesa de Fora, do Conde de Carnide, Morgado, Mal penteada… (vizinha da Quinta da Penteeira), … entre tantas outras. Aliás, todo o percurso entre as azinhagas que ligava a Quinta da Penteeira até Carnide é (ainda hoje) rico em vestígios dessa presença senhorial e, depois, aburguesada. Mas também esta paisagem, herança dos séculos XVIII e XIX, não é fruto do acaso… Vale, pois, recuar e relembrar que esta extensa zona norte da cidade de Lisboa que incluía Carnide correspondera a uma fértil região agrícola. Durante o período muçulmano (secs. XVIII-IX) foi designada por saloia (“çahroi” – habitante do campo, em árabe). Sabe-se que os mouros terão habitado estes territórios e, depois, mais terão vindo refugiados quando Lisboa foi tomada pelos exércitos cristãos de Afonso Henriques, a partir de 1147. O antigo local da Quinta da Penteeira debruçado sobre um acentuado “antiquíssimo e formosíssimo vale” integrava o território onde “se encontram em grande abundância vestígios da residência que os árabes, por muito tempo, fizeram nestes sítios.” (Pereira, J. B.: 30-31) e que a antiga toponímia de uma outra quinta vizinha – a “Quinta do Mata-Mouros” – pode confirmar. Ao longo dos muitos anos toda esta ampla área – que abrangia seis concelhos da Grande Lisboa (Lisboa, Oeiras, Cascais, Loures, Sintra e Mafra) e respectivas freguesias de limite (no caso de Lisboa, as freguesias rurais da Ameixoeira, Benfica, Carnide, Charneca Lumiar e Olivais) – fazia parte do sistema abastecedor da capital (cf. Martins, Jorge: 46) sendo considerada “Terra Saloia”, uma identificação que perduraria até ao século XX (6). Durante o século XIX e ainda inícios do século XX mantém-se que o

“saloio” (herdeiro da tal designação árabe) era, precisamente, o agricultor do arrabalde que se dirigia à cidade para comerciar os produtos das suas hortas e pomares. Para escoar este trânsito comercial, esta “rota saloia”, desenvolveram-se vias de acesso que incluíam a passagem por Carnide. Pelo raiar da manhã ou findar das tardes, as carroças dos saloios percorriam os caminhos que lhes permitiam entrar (após passar na barreira fiscalizadora e pagar o chamado “imposto de consumo” (cf. Espírito Santo: 55) ou sair da cidade, “uma vez que Carnide era uma das referências para passagem e até de paragem.”(8) Aproveitando esse natural declive a norte e fazendo fronteira com a Quinta, desenha-se a referida Estrada da Circunvalação/Estrada Militar (fronteira territorial e fiscal desde 1895(9). Era a linha onde estava o Posto dos Guardas-fiscais que dava passagem às entradas ou saídas de Lisboa, e por onde comerciavam, também, os tradicionais saloios. De sublinhar que esse Posto Fiscal é hoje o centenário e célebre quartel da Pontinha (atualmente do Regimento de Engenharia nº 1) que, demarca a fronteira noroeste da Quinta e tem um relevo muito especial entre as memórias nacionais (10). No curso da história – da cidade e do país – as tropas deste quartel tiveram várias intervenções decisivas: em 1967, nas cheias em Lisboa e auxílio das vítimas das inundações na Paiã; após o terramoto de 1969, que afectou o concelho de Lisboa; e, a mais recente e marcante – o facto de estar vivamente ligado ao processo da revolução do 25 de Abril, a que abriu portas. Foi a partir deste quartel que o Movimento das Forças Armadas (MFA) foi comandado, deixando também memórias singulares em alguns moradores do Bairro, conforme escutaremos adiante. Mas para além da presença deste quartel da Pontinha, a fronteira norte da Quinta com o concelho de Loures (e, a partir de 1998, concelho de Odivelas) ficou também conhecida por alguma “perigosidade”. Ali perto

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SALOIOS EM FRENTE AO COLÉGIO MILITAR (sd AF-CML)

ESTRADA DA CIRCUNVALAÇÃO, 1967 (AF-CML)

estava armazenado material bélico destinado à guerra que Portugal teimava em manter nos territórios ultramarinos (1961-74). A propósito, o único morador com quem conversámos e que conheceu o local antes de ser bairro, o senhor Manuel Cebola, relembra:

QUINTA DA PENTEEIRA, 1967 (AF-CML)

QUINTA DA PENTEEIRA, 1967 (AF-CML)

“Eu estava na Pontinha quando os paióis do exército foram lá colocados. Era tudo gente do Minho que veio para cá… andava calçada com uns tarecos abertos atrás e lá andavam eles a carregar todo o dia… Lembro-me de os ver a trabalhar. Foi em 1946. Uma vez, houve uma grande explosão. Um pedaço dos destroços da granada foi ter na porta da cozinha económica, da sopa para os pobres de Carnide era a sopa do Sidónio… Eram sopas bem boas…” Por vizinhas, a oeste, a Quinta da Penteeira conhecia apenas outras quintas de casario raro e disperso (Quinta da Malpenteada, Quinta da Torre do Fato), a fábrica de cerâmica Dias Coelho (cf. doc. escritura, a Cerâmica de Carnide), em funcionamento naquele tempo. Esta fábrica, juntamente com a fábrica de cerâmica do Lumiar, empregou alguns moradores do Bairro – “eu andava por lá a cozer tijolo” – nalguns casos, muito jovens. E, conforme adiante será relembrado, os desperdícios da fábrica viriam a ser reaproveitados, pelos moradores, na construção de muros e muretes das respectivas casas. “Quando víamos o fumo da chaminé da fábrica do tijolo seguir para o lado esquerdo era sinal que vinha chuva e para o direito, vinha bom tempo. Era o que os mais antigos diziam e batia certo” (José Martinho, morador) Caminhando na direcção este vemos prolongarem-se as azinhagas (a azinhaga da Penteeira, a azinhaga dos Lameiros, a azinhaga das Bruxas (“devia chamar-se assim porque os ramos das árvores, ao escurecer, metiam medo…”) que, atravessando a vizinha Quinta das Camareiras, conduziam ao lugar do Lumiar – que era outra “freguesia do Termo”. Neste percurso situava-se a Quinta da Torre do Fato (cuja história merece

LOCALIZAÇÃO QUINTA DA PENTEEIRA, EM CARNIDE (CML)

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outra atenção) – de que apenas resta a toponímia da sua azinhaga – que terá sido casa de campo da família do Marquês Sá da Bandeira, já no século XIX ( 1 1 ) . Curiosamente e apesar da proximidade geográfica a “mui nobre” freguesia do Lumiar é uma “vizinha distante”. Mereceu poucas referências nas memórias dos moradores. Excepção para a fábrica de cerâmica que “empregou alguns miúdos do bairro” e para a Quinta dos Covões, cujos pomares tentavam as célebres e memoráveis chinchadas… Um passatempo tão bem lembrado mas que valeu gozos e sustos valentes conforme adiante escutaremos – “ai, as chinchadas! Que fruta boa tinha a Quinta dos Covões! Era a melhor fruta, sem dúvida! Mas tinha o guarda! E os tiros de sal!” Finalmente, seguindo para sul saltamos o Ribeiro dos Murtais(12) e percorremos as velhinhas azinhagas (Azinhaga dos Cerejais, Azinhaga das Freiras, Estrada do Poço do Chão, Travessa da Cova da Onça, Azinhaga das Murtas…) que conduziam ao sítio velho de Carnide, do qual a Quinta da Penteeira distava perto de 2km e em cuja freguesia sempre se inscreveu administrativamente. Mas a relação com o núcleo histórico da freguesia merece mais atenção por várias razões. O lugar de Carnide é o ponto original da paróquia e o coração da freguesia. Nunca é demais relembrar que o lugar de Carnide era outro “sítio muito antigo” de povoamentos remotos e originário de uma paróquia rural. Pelo caminhar dos séculos, Carnide foi sendo lugar de encontro entre culturas, credos, religiões… romanos, mouros, cristãos… (13) Marco simbólico e histórico da freguesia, em 1463 teve início a devoção a Nossa Senhora da Luz (com o respectivo santuário e singular igreja) que “cristianizou” antigas celebrações. A romaria das colheitas de Setembro perdura até hoje e é acompanhada pela afamada Feira da Luz (com mais de 500 anos!). Associada a esta função de lugar do sagrado, o povoado de Carnide foi, durante largos séculos, território de ricas quintas, inicialmente, pertença das ordens religiosas que justificaram a construção de

vários conventos. Porém já pelo século XIX, a partir do núcleo da freguesia (hoje conhecido como “Centro Histórico” ou “Carnide Velho”) evidenciaram-se contrastes entre a persistente ruralidade e as exigências de um povoamento, mais urbano. E o núcleo de Carnide permaneceu, longamente, como único território urbanizado na freguesia até surgir o Bairro Padre Cruz, o que fomentou fortes vínculos entre estes dois bairros.(14) No início dos anos 60 – quando o Bairro Padre Cruz foi “montado” – a freguesia de Carnide já era uma das maiores freguesias da cidade em extensão (aproximadamente 400 hectares) mas com uma lenta evolução no crescimento populacional. A instalação do Bairro Padre Cruz alterou significativamente esta situação. Em apenas uma década, quase duplicou o número de residentes na freguesia (em 1961 eram 4 263; em 1971 registam-se 8 325; ibidem). Durante este período os dois centros – o Carnide Velho e o Bairro Padre Cruz – partilhariam várias referências… o bilhete operário do elétrico 13, os trajectos diários pelas azinhagas, as aulas da professora na antiga escola primária (onde hoje está instalada a Junta de Freguesia), os rebuçados da mercearia do Teixeira(15)… e tantos mais, adiante lembrados. Mas também as referências simbólicas e culturais, vividas e interiorizadas, aquando dos casamentos e os baptizados celebrados na Igreja de N. Senhora da Luz, as fotografias no Jardim da Luz, as idas aos doces e barros na Feira da Luz,… que perduram na memória do presente e adiante melhor escutaremos. Se demorámos a percorrer as fronteiras da Quinta da Penteeira foi para justificar, precisamente, a raiz histórica e situar o ambiente do lugar onde irá ser montado o Bairro Padre Cruz. E, com isso, perceber como o valor histórico e conteúdo social desta paisagem foram alterados com a mudança dos contextos político-sociais. Mudados os tempos, mudados os costumes. E também as orientações, as preocupações políticas e por conseguinte

as “vocações” dos lugares. Foi o que aconteceu com a Quinta da Penteeira quando chegamos ao tempo das preocupações urbanistas da década de 40, do século XX, durante o regime do Estado Novo, que vigorou a partir de 1933 sob a figura de António Oliveira Salazar(16). Durante o Estado Novo impôs-se um outro modo de pensar e de fazer cidade em que a função e distância ao coração de Lisboa são, em grande parte, aferidores do valor do território. E, portanto, as tais características de ruralidade (ares aprazíveis, terrenos férteis e disponíveis para o cultivo, escasso povoamento, separados da malha urbana, antiguidade e historicidade …) passam a ter outros valores (fundiário, comercial, social, simbólico…). Neste novo contexto sócio-político os terrenos da Quinta são considerados periféricos (geográfica e socialmente de menor valor) em relação a um centro que, em contraste, é muito valorizado. E esse centro será a baixa histórica e toda a renovada zona de Lisboa (eixo da avenida da Liberdade, e avenidas novas…) onde se concentram os serviços, o principal comércio, os centro de decisão, a raiz histórica e simbólica da cidade e a partir da qual se desenvolvem os horizontes de modernização da cidade… Este era um modo de pensar e fazer cidade que seguia as modernas referências europeias e que o Plano de Desenvolvimento da Cidade (1938-48) confirmaria. Fácil será perceber, então, que a finisterra da Quinta Penteeira – o tal território localizado no termo do Termo – está incluída, precisamente, nessa distante coroa periférica (e desvalorizada) do concelho de Lisboa

AZINHAGAS EM REDOR DE CARNIDE, 1963 (AF-CML)

PARAGEM DO ELÉCTRICO 13, CARNIDE, 1967 (AF-CML)

“Quando aqui cheguei… ai, menina!, foi uma grande desilusão…! Eu vivia em Lisboa, ali perto das cortes, tinha os meus lugares das compras, eu ia ao Chiado… e quando vim ver o bairro e passei do campo de futebol do Benfica para lá, ai… Até ali tudo bem, porque eu já conhecia. Mas, depois não havia carros, só o eléctrico e vínhamos aquele pedaço todo a pé. Ai, senti que estava a chegar ao fim do mundo! Foi uma tristeza e confusão vir para aqui. Nem imagina…” (Teresa Pedra, moradora)

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SANTUÁRIO N. SENHORA DA LUZ, 1960 (AF-CML)

LARGO DAS PIMENTEIRAS, ANTIGA ESCOLA PRIMÁRIA, CARNIDE, 1963 (AF-CML

FEIRA DA LUZ, VENDA DE LOIÇAS DE BAIRRO, 1963 (AF-CML

Finalmente chegámos ao que mais interessa: apesar de estar localizada administrativamente dentro da cidade, a Quinta da Penteeira era um lugar exterior e distante aos usos e funcionalidades da cidade de Lisboa, compreendeu-se. Por isso, retomando a questão inicial – tantas vezes relembrada pelos moradores! – “aquilo era só campo, no início não havia lá nada…” convém entender que esse terreno, outrora povoado por antiquíssimas e valiosas referências históricas, passou a ser um território geográfica e socialmente desvalorizado à luz dos novos critérios urbanistas do Estado Novo. Além disso, não esqueçamos, os documentos antigos referiram os terrenos da Quinta da Penteeira para outros usos que também os penalizava: cemitério improvisado para os vitimados da peste de Lisboa de 1833; estava circunscrito e limitado pela Estrada Militar da Circunvalação e pela presença dos quartéis do Regimento de Engenharia 1, na Pontinha; localizava-se perto dos paióis do exército – quer do antigo posto fiscal do Vale do Forno, quer da Ameixoeira – onde estava guardado material bélico. Conforme fomos percebendo, a história deste bairro não é independente da história da freguesia, nem tão pouco da história da cidade. Aliás, está-lhes umbilicalmente ligada. Mas também não é independente dos percursos de vida dos seus (futuros) moradores. Veremos que o critério de selecção – “o onde?” – não pode ser desligado da intenção do plano – “porquê?” – nem dos destinatários – “para quem?” – estava decidido atribuir este terreno. A história – e a paisagem – da antiga Quinta da Penteeira vai prolongar-se e transformar-se, mas sempre num diálogo tenso e intenso com a cidade – seja pelos recortes e limites geográficos, pelo desenho de aldeia que ali veremos crescer, seja pelo perfil social das populações que ali irão residir. Por isso, defendemos que tais transformações jamais podem ser entendidas à margem do contexto da história recente, do desenvolvimento e expansão da cidade de Lisboa onde o problema da

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habitação existia e persistia como “o grande problema da cidade.” (cf. Actas CML de 1959 e 1960). É justamente aí que nos situaremos para abrir o ponto seguinte. Lisboa, uma capital à escala do Império “Lisboa é uma cidade em obra, desenvolvendo-se e alindando-se dia-a-dia sem interrupção. Novas ruas, novos jardins, novos prédios multiplicam-se por toda a parte. Lisboa renova-se (…) Lisboa é cada vez mais Lisboa, apta a cumprir a sua vocação universal.” (in, Lisboa de Hoje e de Amanhã, documentário de António Lopes Ribeiro, CML, 1948) Mas a história da cidade também não é independente da história do país. E a história recente do país contou-nos que, a partir da década de 1930, as zonas rurais e interiores evidenciavam o subdesenvolvimento que foi conduzindo ao desemprego e ruína de muitos trabalhadores rurais. Os ventos da “modernidade” impeliam à apressada transição de um país essencialmente rural para um país industrial sem que houvesse tempo para reajustar a mão-de-obra e o aparelho produtivo. (vd. bibliografia Rosas, Fernando; Amaral, Luciano). Por conseguinte, as condições económico-sociais vividas em Portugal durante os anos 40 (com agravamento nas duas décadas seguintes) empurraram os trabalhadores rurais empobrecidos para os maiores centros urbanos – Lisboa e Porto. Ou para as rotas da emigração (primeiro, américas e depois, europas). Grande parte da primeira geração de moradores do Bairro Padre Cruz confirmaria isto mesmo – “A emigração era para a cidade. Ganhava-se melhor”. “Era quase tudo gente da província, que tinha vindo para a cidade à procura de uma vida melhor”. “Este bairro tinha gente de muitas regiões do país – Beira Alta, Trás-osMontes, Minho… e com as misérias das suas terras, com os empregos que conseguiram aqui, embora com vencimentos ignóbeis, conseguiam ter alguma maior

qualidade do que nas suas terras.” (Manuel João, morador). Em alternativa às dificuldades do mundo rural, estes migrantes do campo chegavam, foram chegando à cidade atraídos por outras oportunidades de emprego, as quais eram possibilitadas pelas grandiosas obras da cidade de Lisboa. “Constrói-se com frenesim. Não há desemprego na construção civil.” (in, Lisboa de Hoje e de Amanhã, documentário de António Lopes Ribeiro, CML, 1948) Recordemos que no âmbito das políticas económicas dos anos 30, o Estado Novo assentou o progresso do país – a “modernização” – num enorme investimento em obras públicas. Nesse processo, a cidade de Lisboa foi conquistando um centralismo privilegiado. Aqui concentravam-se atenções e esforços na modernização da respectiva imagem não só desejada como capital europeia mas, também, como “Capital do Império”, de vocação universal, que se pretendia manter e consolidar a todo o custo (cf. Actas da CML, 1959 e bibliografia). Para além disso, o facto de Duarte Pacheco acumular os cargos de ministro das Obras Públicas (193236; 1938-1943) e de presidente da Câmara Municipal de Lisboa (1938-1943), foi outro aspecto impulsionador desse centralismo de Lisboa. E os objectivos para o alcançar tomaram peso de leis (Dec-lei 28 197, 1 de Julho de 1938 que possibilitava a determinação municipal do “uso do solo” e a possibilidade da sua expropriação) A reformulação do Plano Director de Lisboa de 1945-48 (que inclui o contributo de urbanistas franceses e as recomendações da Carta de Atenas(17) estabelecia, não só, uma nova concepção de cidade (organizada, aberta e arejada…; construção em altura, amplos espaços verdes e arruamentos bem definidos…), como também estabelecia uma diferenciação funcional para a cidade (zonas de comércio, habitação, indústria…) e com isso implicava novos zonamentos (e valorações) sociais com uma evidente dependência do centro da cidade, conforme dito. Foi também a partir daquele núcleo (“o coração de

Lisboa”) que foi definida uma estrutura viária, se diferenciaram os espaços, definiram hierarquias de prestígio e de rentabilidade (centro/periferias; zonas qualificadas/desqualificadas; avenidas ricas/bairros pobres) determinadas por um “capitalismo fundiário em que Lisboa, muito mais do que capital do Império, passaria depois a impor um “império da capital”. (Ferreira, Matias: 325-26). Ano após ano, esta “monumentalizada” Lisboa por onde passavam “rios de ouro” (cf. Actas da Câmara de Lisboa, 1960) – crescia apoiada por recomendações, visões e estudos de urbanistas estrangeiros e os contributos (por vezes, críticos) de uma nova geração de arquitectos portugueses. A Lisboa do meio século XX era uma cidade que engrandecia e conquistava outros volumes e (des)proporções. As construções da década de 40 – de onde se destacam as gares marítima e fluvial, o aeroporto e as suas avenidas, a autoestrada para o Estoril e o viaduto, o estádio nacional, a fonte luminosa da Alameda, as avenidas António Augusto de Aguiar e Sidónio Pais… – evidenciam o desejo de transformar Lisboa numa grandiosa e cosmopolita cidade que a Exposição Histórica do Mundo Português já ostentara em 1940 (vd. França, J.A. (2005): 93-108). E esta ostentação era motivo de grande “orgulho nacional” atendendo a que “lá fora”, a Europa, estava a viver as enormes aflições da II Grande Guerra (1939-45). Os edifícios da Cidade Universitária também o demonstram e, em particular, o Hospital de Santa Maria (iniciado em 1940 e só concluído em 1953 e que obrigou à transferência dos bairros provisórios ali instalados) projectavam, no desenho urbano, a força de um poder do qual “o futuro se orgulharia” e os “europeus respeitariam”, acreditava-se (cf. Actas da Câmara Municipal de Lisboa, 1959). Em resultado deste grandioso investimento compreende-se que o volume (e o tal “frenesim”) das obras na capital atraía – e porque também dela necessitava! – a mão-de-obra espoliada dos trabalhos rurais e agrícolas. Uma mão-de-obra, vulnerável e iletrada, com grandes dificuldades em reconverter as capacitações e experiências

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PLANO DIRECTOR MUNICIPAL, 1938-48 (CML)

CONSTRUÇÃO DO HOSPITAL DE SANTA MARIA, 1940-45 (AF-CML)

AZINHAGA DAS MURTAS, CARNIDE, 1940 (AF-CML)

AZINHAGA DAS MURTAS, CARNIDE, 1940 (AF-CML)

do mundo rural em salários adequados à sua sobrevivência, em contexto urbano. Todavia, encontrado o trabalho que garantia as modestas sobrevivências, impunha-se o problema do alojamento a custos compatíveis com a manutenção do baixo nível dos salários. (cf. Actas da CML, 1960). Por isso, só foi possível encontrar essa “oferta” nos terrenos de baixo valor social. Em grande parte, nos terrenos localizados nas tais zonas periféricas. Por isso a coroa de Lisboa surge como “solução” para acolher estes migrantes. Será ali, em terras distantes onde “nada havia”; ali, nos tais arrabaldes desvalorizados que viriam a crescer e proliferar as iniciativas espontâneas por parte das populações carentes e aflitas, multiplicando os “bairros de lata”. Na cintura externa de Lisboa àquela época – Olivais, Marvila, Benfica, S. Domingos de Benfica, Carnide e Lumiar – cresceram os núcleos abarracados “em condições piores que as das “ilhas” ou “pátios oitocentistas, aliás não desaparecidos nas cidades sucessivas.” (vd. França, J.-A. (1995): 98-99). Quando chegamos aos anos 40-50, do século XX, milhares de famílias concentraram-se em zonas-limite, socialmente desvalorizadas, “vivendo em barracas miseráveis, e na pior promiscuidade (…)”(cf. Actas da CML (1959): 18). E às quais se somavam as populações fabris, já albergadas nos empobrecidos bairros operários (ou em abarracamentos próximos) espalhados pelo miolo da cidade. Estes núcleos, desprovidos das condições mínimas de habitabilidade, persistiam ainda durante a década de 60 como o problema da cidade que urgia resolver – porque perigavam a saúde pública, “envergonhavam” a cidade do regime e embaciavam o esplendor da tal modernidade. (Cf. Actas da CML, 1959: 18). Um estudo da CML de 1960 refere a situação de 43 470 pessoas a residir em 10 918 barracas (cf. Actas da CML, 1960). Embora reconhecendo que Carnide não tenha sido das zonas da Grande Lisboa onde esses núcleos mais se fixaram (quando comparada as vizinhas Pontinha, Buraca e Amadora, por exemplo) não deixou de ser significativa a presença de uma população muito

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empobrecida “(…) em que se englobavam antigos trabalhadores rurais das quintas, população imigrada de zonas rurais do país ou vinda do centro da cidade onde viviam em barracas (…) População de fracos recursos económicos com dificuldades estruturais de acesso ao mercado habitacional, o que a condena a viver em condições bastante precárias.” (CML (2010): 17). Foi este contexto político e social que, em 1959, justificou as decisões camarárias que estiveram na origem do Bairro das Casas Desmontáveis na Quinta da Penteeira, futuro Bairro Padre Cruz. Reafirma-se a ideia de que a origem e história do Bairro fazem parte integrante da história da cidade – e do país! – revelando, ao longo do tempo, expressões de poderes sociais (económicos, políticos, ideológicos…) desigualmente inscritos nos territórios… pois “assim o exigia o crescimento natural da cidade” (Lisboa de Hoje e de Amanhã, documentário de António Lopes Ribeiro, CML, 1948; destaque nosso). “Numa apreciação resumida da política habitacional, até meados dos ano 60, podemos dizer que ela visou essencialmente objectivos políticos e ideológicos (normalização social e familiar, afirmação da capacidade realizadora do Regime e do seu providencialismo social) e só muito timidamente (…) se esboçaram acções no sentido de melhorar as condições de reprodução da força de trabalho.” (Ferreira, A.F., 1988: 56). No ponto seguinte é isto mesmo que iremos comprovar pela voz de quem decidia. … e a escala das “aldeias de folhas de lusalite” “Sabe-se como a falta de habitação condigna degrada o homem, afectando-lhe a saúde física e moral, e faz progressivamente perder o sentido de dignidade que importa preservar-lhe, em ordem aos seus altos destinos.(…) tem a Câmara, como primeira entidade responsável pelo alojamento da população da Cidade, feito tudo quanto podia e lhe cumpria fazer para enfrentar o problema?” (Actas CML de 1960).

Compreendeu-se que o problema da habitação era agravado dia-a-dia e impunha prioridades para os dias de ontem (Cf. Actas CML de 1959 e 1960). Porém, repetimos o tom retórico da questão: “tem a Câmara (…) feito tudo quanto podia e lhe cumpria fazer para enfrentar o problema?” No seguimento do que se passava na Europa, designadamente no Reino Unido, as preocupações com as condições de habitabilidade das populações mais vulneráveis tiveram origem nas preocupações com a saúde pública(18). Desde 1917-18 já haviam surgido os primeiros projectos promovidos pelo Estado português para bairros de “casas económicas” (Arco do Cego, Ajuda e Boa-Hora) que logo depois ficariam suspensos(19). Só em 1928 é que o Governo da Ditadura Militar (futuro regime do Estado Novo) readaptou aquele primeiro projecto. No entanto, também não conseguiu resolver o problema das classes de menores recursos nem dos grupos mais vulnerabilizados (operários, migrantes rurais,…) atendendo ao reduzido número de fogos disponíveis e respectivos custos finais. Esta foi outra resposta pública que, não só tardou, como nunca questionou os motivos económicos e sociais que produziam e continuadamente reproduziam as penosas fragilidades sociais destas largas franjas de população. O posterior programa das casas económicas de 1933 tentou consolidar uma outra linha de intervenção do Estado na promoção da “habitação social”. Fazia uma síntese das propostas anteriores e avançava critérios de maior rigor – a quantificação e a classificação dos segmentos sociais da população-alvo foi uma delas. Reconheceu uma população socialmente vulnerabilizada – “um conjunto anónimo” – na qual o regime fixou a identidade, a fatalidade e o estigma: “as classes pobres”. A partir daí identificaram-se as casas para as “famílias pobres”; as casas de renda económica; e as casas de rendas limitadas, fruto de novos compromissos entre a iniciativa privada e os poderes públicos. Curiosamente, encontram-se aqui vários pontos de tensão que contextualizam o papel estratégico destes

bairros municipais, designadamente, do futuro Bairro Padre Cruz. Do ponto vista da ordem social, a instalação precária destes migrantes rurais chocava com o movimento das novas ideias, com o ambicionado aprumo das pedras da magnífica “cidade do Império”. Mas, por outro lado, do ponto de vista socioeconómico, esse mesmo movimento foi percebido e aproveitado como produto rentável (pelo baixo custo/salário da respectiva mão-de-obra – os tais salários ignóbeis (na adjectivação de Manuel João) para construir as grandiosas obras públicas da capital – “O estilo monumental de Lisboa que hoje já não envergonha ninguém” (cf. Actas CML de 1960). Foi, pois, para “resolver” esta pressão entre a gravosa falta de habitações na cidade, as péssimas condições em que as “famílias de fracos recursos” viviam, e manter os baixos custos/baixos salários da mão-de-obra, que surgiram, durante a década de 40 a prolongar-se pelos finais de 50, os “bairros provisórios” de iniciativa municipal. Com ligeiras variantes, os bairros da Quinta Calçada, Furnas e Boavista, instalaram-se nas extremas da cidade, nas tais finisterras. Eram como aldeias estrategicamente “provisórias”, higienicamente situadas nas periferias da capital, construídas com materiais frágeis, pobres e desapropriados (folhas de fibrocimento prensadas – o lusalite) mas ainda assim de dispendiosa manutenção, compostas por habitações unifamiliares de piso térreo, pequenas-minúsculas habitações (sem portas no interior), “compensadas” por quintais e logradouros. A coerência das ruas, rígidas apertadas e traçadas a direito, destinavam-se aos peões e as convivências ocorriam em lugares pré-estabelecidos e de fácil vigilância: capela, centro social, escola e lavadouro, creche e jardimde-infância. Bairros que eram espaços de disciplina urbana – de modos de estar e de ser – que convinham ao regime: “cada um no seu lugar”.

BAIRRO DA QUINTA DA CALÇADA, 1940 (AF-CML)

“(…) Estes bairros são verdadeiras escolas para aprender a morar, incitam nos seus habitantes o gosto pela casa própria com o seu quintal privativo, logradouro e serviços

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BAIRRO DA QUINTA DA CALÇADA, 1940 (AF-CML)

sociais organizados. As crianças ali nascidas não vão conhecer os horrores dos bairros de lata. Têm a sua creche, o seu centro social, a sua igreja, a sua escola (…)” (in, Lisboa de Hoje e de Amanhã, documentário de António Lopes Ribeiro, CML, 1948). Procurava-se, isso sim, gerir as condições – onde e como – essa pobreza podia e devia viver. Com a “vantagem” de que, nestes “bairros sociais” se higienizava a sociedade, organizava a cidade e civilizavam os “fatal e naturalmente” pobres. O mais urgente “era «minorar» quanto possível os efeitos do por demais evidente «urbanismo» de Lisboa – parecia não restar tempo para… ir às raízes de tal fenómeno, questioná-lo, equacioná-lo.” (Rodrigues, Fernando (1986): 222). Por isso, o problema da habitação mantinha-se e avolumava-se. O Gabinete Técnico de Habitação da CML(20), criado em 1959 (Dec-Lei 42 454 de 18 de Agosto) surge, precisamente, para dar resposta (tardia) ao problema da habitação. Estabelece um “vasto plano de acção social” com orientações já muito diferentes – os Olivais e, depois Chelas, são disso testemunho (vd. Nunes, Silva (2007). O Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira – uma polémica origem Longe de ser pacífica, a decisão de instalar o “Bairro de Carnide em terrenos municipais da Quinta da Penteeira” faz convergir, na sala das reuniões camarárias, quatro aspectos polémicos que merecem atenção: - a localização geográfica do bairro; - a escolha do material para a construção das casas; - o carácter definitivo ou provisório do bairro a construir; - a população alvo do realojamento. De acordo com a classificação do regime, as casas destinadas aos agregados transferidos da Quinta da Penteeira não deixam margem para dúvidas cf. revela a fronte do documento: “Bairro para as classes pobres”. As informações contidas no Relatório de Gerência Municipal

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da CML relativo ao ano de 1959 (pp. 40-41) é outro documento da máxima importância pelos esclarecimentos que permite às questões que colocámos(21): “Principais obras executadas.(…) Casas para as classes economicamente débeis:(…) b) Construções de carácter provisório: “Tendo-se tornado necessário transferir as famílias que habitam no Bairro de Casas Desmontáveis da Quinta da Calçada, atingido pelas obras da Cidade Universitária, principiou em 1959 a construção do Bairro de Carnide, em terrenos municipais da Quinta da Penteeira, o qual deverá servir igualmente para o realojamento de outras famílias de fracos recursos, que residam em várias zonas da Cidade abrangidas pelo desenvolvimento dos novos planos de urbanização. Foi adjudicado em primeiro lugar uma empreitada de construção de casas desmontáveis, com aproveitamento de materiais já existentes, constituídas por uma estrutura resistente de madeira, com revestimento de fibrocimento do lado exterior, e de madeira prensada do lado exterior [parece-nos engano de transcrição, pois esta madeira seria do lado interior cf. testemunham os moradores e verificámos nos documentos]. Nestas casas foram introduzidas algumas melhorias em relação às primitivas casas desmontáveis, de modo a melhorar as suas condições de habitabilidade. Seguidamente estudou-se um tipo de construção de alvenaria, de um único piso, com dimensões reduzidas procurando-se melhores condições de conforto e habitabilidade, com futura diminuição das despesas de conservação, sempre elevadas nas casas desmontáveis. Trata-se de uma construção de tijolo, de características ligeiras dada a conveniência de se adoptarem soluções transitórias, visto a urbanização estudada para a zona em causa não poder ser definitiva. (…) Prevê-se finalmente, em futuras fases, a construção de casas, também de tijolo, mas com dois pisos, e portanto com um aspecto arquitectónico um pouco mais evoluído e agradável e ao mesmo tempo mais

económicas. As dimensões dos seus compartimentos (…) são um pouco reduzidas, de acordo com as menores exigências de espaço para mobiliário e utensílio dos seus futuros moradores, mas estão dentro dos limites razoáveis de habitabilidade. Em contrapartida essa redução permitirá menores custos de construção e portanto rendas mais baratas como se torna indispensável. “ [sublinhados nossos]. Porque avançam elementos fundamentais acerca da origem do bairro e que, afinal, se desconheciam, confrontaremos esta transcrição com pareceres explícitos nas Actas das Reuniões da Câmara de Lisboa para o ano de 1959 (com data de publicação em 1961). O primeiro, a fundamentada contestação por parte de dois vereadores (Manuel Vicente Moreira e Baêta Henriques, ambos formados em Medicina e com trabalhos na área de Saúde Pública) quanto a algumas medidas defendidas pela vereação da Câmara. A saber: o uso do fibrocimento (vulgo, lusalite) para a construção das paredes exteriores das casas; a oposição à multiplicação dos “bairros provisórios” quando o muito avisado e já experiente conhecimento do problema exigia um investimento em bairros com outro tipo de materiais de construção; a questão das acessibilidades e distâncias entre locais de trabalho e de emprego consequente da transferência dos realojamentos para bairros fora de Lisboa quando os seus moradores exercem profissão na capital e são, nas sua maioria, funcionários da própria Câmara Municipal. Pela sua particular pertinência é importante reter as palavras do vereador Baêta Henriques: “(…) a título algum é de aconselhar tal construção, isto porque as condições de salubridade que as mesmas proporcionam aos seus moradores, ou seja o seu microclima habitacional, não podem ser aceitáveis em qualquer época, e muito menos quando já se ultrapassou os meados do século XX (…) Construírem-se residências, inestéticas, anti-higiénicas e com carácter provisório, poderia alguém pensar erroneamente que os mentores de tal orientação

estão à margem das realidades sociais. (…) É que o passado está farto de nos ensinar que o provisório, em Portugal, quase sempre se tem tornado definitivo.” E mais referiu o vereador, lembrando as degradadas situações da Quinta da Calçada, Boavista e Furnas: “Além de todas estas poderosas razões, não será já suficientemente lastimável encontrarem os estrangeiros que demandam a Capital, pela linha Oeste, uma assolapada e denegrida aldeia de folhas de lusalite, construída a título provisório há mais de 20 anos?” E mais ficou dito: “As casas desmontáveis, tendo por paredes-mestras o fibrocimento, não oferecem garantias de isolamento, de conforto ou mesmo de durabilidade, e nem sequer se justificam como medida de poupança, porque nada poupam ao erário municipal e poderão (…), certamente, contribuir, um dia, para o desprestígio de uma época de grandiosa administração camarária. Poder-se-ia admitir a utilização desse material nas divisórias interiores das habitações, na rede de esgotos, na canalização de água ou na construção de capoeiras, e mesmo na cobertura das casas; mas no levantamento das paredes exteriores de edificação habitacionais nada há que tal justifique.” Mas justificou. E a proposta inicial acabou por ser aprovada com a rejeição por parte daqueles dois vereadores – Manuel Vicente Moreira e Baêta Henriques. Outro dos aspectos que mereceu particular atenção – e que fundamenta o que atrás ficou escrito – prende-se com a localização destas “aldeias de folhas de lusalite”. Mantém-se a posição crítica dos mesmos vereadores sobre as acessibilidades destas populações aos respectivos locais de trabalho (na larga maioria, as tais obras públicas de expansão da cidade) (Actas CML, 1959). Todavia, sobre esta matéria, a argumentação apresentada pelo vereador Saphera Costa é esclarecedora na discriminação: “os bairros económicos estão completamente desactualizados dentro da Cidade. (…) É muito provável que posteriormente o material tenha melhorado, mas a verdade é que não se deverá encher a

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Capital de bairros paupérrimos, (…) a melhor solução será o Governo determinar que só possam construir-se fora da área da Cidade. O contrário será estar a fechar os olhos à realidade.” E termina a sessão de Câmara com a aprovação da proposta da construção do novo Bairro de Casas Desmontáveis, em Carnide, no mesmo material de lusalite que havia sido tão contestado pois “apesar de todas as críticas que lhe possam ser feitas, sempre oferece a uma centenas de famílias a desalojar em condições de habitabilidade que em nada são inferiores às das barracas que ocupam.” (Actas CML, 1959:26). E assim se apazigua a consciência política: as novas habitações não serão, “em nada”, inferiores às das “barracas”. Com a vantagem, para o regime, que através desta oferta libertam e “limpam” áreas expectantes da cidade sem nunca questionar as condições sociais que fazem existir e reproduzir tais “bairros paupérrimos” que perigavam a saúde pública da “cidade civilizada”. Algumas outras notas interessantes merecem atenção. O facto de o primitivo bairro de lusalite e, depois, a zona de alvenaria, fazerem parte de um só e mesmo projecto “provisório” e não de projectos diferentes, conforme é ideia partilhada por alguns dos actuais moradores. Percebeu-se ainda que a substituição do material de construção em lusalite por construção em tijolo/alvenaria parece não ter resultado de mudança de estratégia de planeamento – de provisório para definitivo. Os argumentos que agora recolhemos, por parte daqueles decisores, confirmam que essa alteração é consequente da anterior experiência dos “mais elevados” custos de manutenção e rápida degradação do material de lusalite (Quinta da Calçada, Furnas e Boavista, por exemplo). Logo, os primeiros critérios estavam centrados na racionalidade económica (investimento/custos) e não na maior durabilidade e qualidade do material de construção (melhoria das habitações). Mas esta será, porém, uma questão que fica em aberto. Além disso, fazia-se crer que estes bairros eram provisórios porque eram lugares de “passagem”, de apoio,

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até que as famílias conseguissem melhores condições económicas. Argumento que, na mesma ordem de ideias, justificava o apertadíssimo controlo dos custos e dos investimentos. No entanto, sabemos tratar-se de uma falsa possibilidade A (i)mobilidade social tendia a fixar, definitivamente, as gerações destes moradores “provisórios”(22) e que a idade dos actuais residentes comprova. Acredita-se, contudo, que as previsões acerca do elevado número de famílias/indivíduos a realojar, em particular, neste bairro da Quinta da Penteeira, tenha justificado um planeamento mais atento por parte da edilidade camarária e a organização mais cuidadosa dos espaços e edifícios. De facto, terá havido uma relativa melhoria das condições de habitabilidade dos fogos e da diversidade na oferta dos equipamentos sociais (lavadouros, escola, igreja, posto médico, centro cívico com biblioteca e cinema …). Mas este planeamento representa, também, uma estratégia preventiva. Atendendo ao quantitativo de agregados a transferir, haveria que garantir a adesão/controlo da população ao projecto social do bairro e a respectiva fixação e acomodação ao local. A concluir outra nota. Afinal, a prioridade que justificou a construção destes bairros não foi a preocupação ou o benefício dos trabalhadores da CML. Esta questão nunca surge directamente colocada nas sessões de Câmara. O objectivo prioritário e sempre referido foi o de desimpedir as áreas da cidade abrangidas pelas novas obras de expansão da cidade, conforme transcrito atrás. Neste caso, os terrenos da Quinta da Calçada seriam necessários para a construção do Hospital de Santa Maria/Cidade Universitária, e o Bairro da Boavista para a construção da Ponte sobre o Tejo. Todavia, e porque naqueles bairros (Quinta da Calçada, Boavista...) já estava alojado um elevado número de famílias de trabalhadores da CML, foram essas mesmas famílias prioritariamente transferidas para o futuro bairro da Quinta da Penteeira. Além disso, não esqueçamos que os critérios de selecção para a atribuição da casa municipal

(que adiante melhor especificaremos: debilidade económica mas ter contrato de trabalho, moralmente confiável, pai/chefe de família…) selecionavam, logo à partida, o perfil dos “beneficiados”. Por tudo isto, reafirma-se o especial interesse em conhecer e preservar a memória do Bairro, fruto de um projecto político e de um ideário social, de um modo de pensar e representar a sociedade que se reflecte no planeamento e organização do território da cidade. Um modelo de disciplina que também construiu estigmas e categorias sociais – as “classes pobres” – porque as regras e os poderes eram unilateralmente definidos. Compreenda-se que o projecto de construção do Bairro Padre Cruz reflectia o pensamento de uma época e de uma sociedade: reguladora, normativa e solidamente hierarquizada. A distância física ao centro histórico da cidade deve ser interpretada, também, enquanto metáfora da distância social ao topo da hierarquia dos poderes… Estas periferias geográficas materializam e naturalizam periferias e margens sociais. Mas faz sentido questionar: será que “tudo” ficava, de facto, tão previsível e determinado? No próximo momento veremos como estas questões foram vividas à escala da vida real, das vivências das pessoas. Síntese cronológica Até 1958 – No início era o campo Até ao século XII Vestígios da fixação de populações de origens e cultos diversos (romanos, muçulmanos, cristãos,…) que viviam da agricultura. 1279 (Século XIII) Fixação do nome da paróquia de Carnide que está na origem da divisão administrativa em freguesia. População rara e dispersa de pequenos agricultores. 1463 Início do culto a Nossa Senhora da Luz que se sobrepõe a anteriores cultos já cristianizados tal como o Culto do

Espírito Santo. Séculos XVI-XVII Localização de várias quintas conventuais e senhoriais ao longo dos eixos de Carnide, Luz, Paço do Lumiar e Pontinha. Consolidação do edificado e início da urbanização do núcleo de Carnide. 1575/96 Construção da ampla igreja de N. Senhora da Luz sobre uma pequena ermida. À entrada, fixa-se amplo terreiro para montar a Feira da Luz (em Setembro, durante 3 dias). 1755 Grande terramoto em Lisboa que causou danos graves nos edifícios da freguesia (designadamente, no grande conjunto conventual da igreja de N. Senhora da Luz). 1762 (Século XVIII) Surge a primeira referência à Quinta da Pentieira (mais tarde, Penteeira) em Carnide. Era proprietário Manoel Simões Álvaro, fabricante de pentes (esta informação carece de validação). 1840 Os limites do município de Lisboa são redefinidos e a freguesia de Carnide passa a pertencer ao Termo de Belém. 1885 Nova Reforma administrativa do município de Lisboa (Decreto de 8 de Outubro). A área da cidade é aumentada e fica delimitada pela Estrada da Circunvalação. A freguesia de Carnide, entre outras, é definitivamente reintegrada no perímetro administrativo da cidade de Lisboa (Decreto de 18 de Julho). 1910 (5/10) Proclamação da República no edifício dos Paços do Concelho, em Lisboa. Em 1911 é apresentada a nova Constituição da República. 1914/18 Primeira Grande Guerra em que Portugal intervém. Período de grande depressão social. 1918 Transferência da sede da paróquia, na igreja de S. Lourenço, para a Igreja de Nossa Senhora da Luz. Legislação sobre Habitação Económica (Dec. 4 415) que

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esteve na origem das primeiras “Casas Económicas” (Bairro Social do Arco do Cego e Bairro do Alto da Ajuda). 1928 (26/05) Golpe militar que deu origem à II República. Foi autodesignada por “Estado Novo” para sustentar a ideia de que se entrava numa “nova era” política e social. 1929 (14/04) Inaugurado o primeiro trajecto da linha do eléctrico nº 13 (1929-1960) que ligava o centro de Carnide aos Restauradores; o segundo trajeto (1960-1973) ligava Carnide à Praça do Chile. Esta alteração resultou das obras da primeira fase da rede do Metropolitano de Lisboa. Desde 1930 O êxodo rural acentua-se e a escassez de habitação nas cidades (Lisboa e Porto) impõe-se como grave problema. Muitos migrantes rurais (isolados ou em família) instalamse nas periferias em péssimas condições. Outra parte significativa da população sobrevive no centro da cidade em habitações clandestinas, sublocadas ou degradadas. 1932/33 Nova conjuntura política associada ao Estado Novo; profunda alteração na perspectiva urbanística com forte influência europeia; destaque para a figura do ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco. Nova intervenção do Estado na promoção da habitação social – programa das Casas Económicas (Dec. 23 052 e 22 909 em 1932 e 1933). Em 1933 é substituída a Constituição de 1911. 1934 (21/12) Primeira definição de um Plano Geral de Urbanização e Expansão para a cidade de Lisboa e envolventes (PGUEL, Dec. 24 802). 1935/38 Plano de Urbanização de Lisboa a cargo de urbanistas estrangeiros (destaque para o francês E. Gröer e a ideia da Cidade-Jardim) por solicitação de Duarte Pacheco. Figura de relevo, acumula os cargos de Ministro das Obras Públicas e de Presidente da CML. Dec. Lei 28 797 (em 1938) que confere plenos poderes à CML para urbanizar a área concelhia e expropriar os

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terrenos para o crescimento da cidade de Lisboa. No desenvolvimento do PGUEL são criados os bairros de renda económica (Encarnação, Caselas, Madre de Deus,…). O Estado é o principal agente na gestão e planeamento da oferta habitacional dos municípios através de um vasto programa de “Casas Desmontáveis” (Dec. Lei nº 28 912 de 1938). Este programa resulta das “modernas” razões de salubridade e saúde pública, segundo o modelo europeu e defende o afastamento (físico, social e mental) destes bairros relativamente ao centro da cidade. Constroem-se três bairros provisórios – Quinta Calçada, Boa Vista e Furnas. Todos mantêm o modelo das casas unifamiliares, usando placas de fibrocimento, com pequenos logradouros a lembrar aldeias portuguesas afastadas do centro da cidade. Os primeiros mil fogos foram entregues minimamente mobilados (prática abandonada, logo depois); quase 1/3 da área do concelho foi expropriado, e até 1946, foram construídas 2 140 casas desmontáveis. 1940 Constituição do Clube de Futebol Os Unidos, no Bairro da Quinta da Calçada (um dos primeiros bairros provisórios de casas desmontáveis). A Exposição Histórica do Mundo Português consolida a imagem de Lisboa como “Capital do Império”. A partir de 1940 o investimento em obras públicas no país diminui perante o reforço do centralismo (real e simbólico) de Lisboa. 1945/48 Aperfeiçoamento do Plano Director de Urbanização de Lisboa (PDUL, “Plano Gröer”). Durante esta década a população de Lisboa cresce significativamente – em 10 anos residem mais 100 000 habitantes atingindo perto de 700 000 residentes. Carnide mantem-se uma freguesia de arrabalde com um crescimento demográfico lento (perto dos 3 200 habitantes). 1952 Rebentamento nos paióis do exército localizados perto da Quinta da Penteeira onde estava guardado material bélico destinado à Guerra Colonial.

1954 No âmbito das preocupações com a habitação social e actualização do Plano Director, é criado o Gabinete de Estudos de Urbanização (GEU). Este Gabinete formará novos técnicos urbanistas com uma visão modernista, próxima das recomendações da Carta de Atenas (documento do Congresso de Arquitectura realizado na cidade de Atenas, 1933). Os estudos para a ponte sobre o Tejo e para a urbanização dos Olivais são alguns dos trabalhos do GEU. 1958 (18/06) Escritura de compra da Quinta da Penteeira/Alto da Penteeira por parte da CML à viúva de Castanheira de Moura, seu último proprietário; a escritura é realizada durante a transição de mandato do tenente-coronel Álvaro Salvação Barreto (1944-59) para o general António Vitorino França Borges (1959-1970) na presidência da CML. Inicia-se o plano de construção do “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira”. A população da freguesia de Carnide vai crescendo muito lentamente; é um pouco superior a 3.350 habitantes mantendo as características de “aldeia urbana”, funcional e mentalmente muito distante da cidade.

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Fase 1 1959 A 1974: CONSTRUTORES DA CIDADE, ARTESÃOS DO BAIRRO” 1959-67: Do bairro anónimo ao bairro das inaugurações CONSTRUÇÃO CASAS DE LUSALITE, 1959 (AF-CML)

“Eu vinha aqui buscar carradas de ervas, ainda o bairro não era feito. Vinha buscar com a carroça para o asilo da Confraria de S. Vicente de Paulo lá para Carnide. Lembro-me de começar a primeira casa no bairro. Eu ia pegar a cozer tijolo na cerâmica de Carnide e vejo uma camioneta carregada de picaretas, pás e tudo deitado ali para o meio do chão… Pergunto: estão aqui a descarregar… então o que é que vai sair daqui? Avariou o carro? Responderam: Não! Vamos fazer aqui um bairro novo! Quando voltar do trabalho já está começado! Quando eu saí, às 5h, olho e vejo lá quatro alicerces que faziam um pilar com uma viga por cima… e depois fizeram o esqueleto e os barrotes para pôr as chapas de lusalite e aparafusar aquilo tudo. Era tudo em lusalite. Ao fim de três dias, estava aquela carreira toda feita. Era a rua 1! Lá fizeram aquilo primeiro e depois seguiram por ali abaixo…” Manuel Cebola (morador)

PLANTA DO BAIRRO, 1960, LUSALITE E ALVENARIA

“Eu andava ali a pastar o gado e via o bairro a crescer. Tinha curiosidade…” António José (filho do Arménio, rendeiros da Quinta da Penteeira) O bairro de lusalite – “o Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira”

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a zona mais a sul da Quinta da Penteeira foi “montado”, em 1959, o primeiro núcleo do bairro – o “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira” conforme a identificação camarária. Destinavase, preferencialmente às populações transferidas do Bairro da Quinta da Calçada. Era constituído por 200 casas pré-

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fabricadas no material de fibrocimento ondulado e extremamente vulnerável. Entre os moradores, este núcleo ficou conhecido como o “bairro de lusalite”. As casas, com tamanhos mínimos, foram colocadas frente a frente, distribuídas por cinco ruas paralelas e uma transversal. “No bairro de lusalite eram cinco ruas numeradas – primeiro, a número 1, era a da Casa Branca, a 2 era em frente aos Unidos, a 3 era onde está o salão de festas, a rua 4 perto da igreja – que era a da cabine telefónica – e depois a rua 5, que ia dar às hortas.” Todas as casas obedeciam a um mesmo padrão de construção muito rudimentar e frágil embora variassem nas tipologias e áreas de construção – 128 fogos de tipologia T2, com 24,62 m2; 72 fogos de tipologia T3, com 29,48m2. As rendas oscilavam entre os 100$00 e os 120$00, respectivamente. Na frente das casas, os pequenos quintais abertos para a rua compensavam as limitações dos fogos. O espaço dos quintais e das ruas era, por isso, intensamente percorrido, vivido e partilhado conforme escutaremos. Em termos de equipamentos de apoio esta parcela do bairro, ao início, dispunha apenas de cabine telefónica (“que só era usada para as emergências!”), marco do correio, um lavadouro, pequena mercearia (a velhinha “casa branca”) que anexava uma pequena barbearia e uma minúscula taberna e, ao que parece, uma pequena oficina de carpintaria ou de bate-chapas. Pouco tempo após a ocupação destas casas de lusalite, as hortas e os pequenos quintais começaram a despontar nas ruas conquistando terra para o alimento e espaço para respirar. No ano seguinte começou a ser preparado o terreno para a segunda fase do projecto: o “bairro (provisório?) de alvenaria”. O bairro de alvenaria – “tudo à moda da nossa aldeia” «A Câmara Municipal de Lisboa, visando o bem-estar das famílias de fracos recursos, construiu este bairro nos anos de 1959 e 1960. Nele alojou 1117 famílias, dotando-o duma igreja, dum grupo escolar e dum

edifício para creche, biblioteca, salão de festas e de trabalho, mercado, oficinas e campo desportivo. Deu-lhe o nome do saudoso Padre Cruz. Regista-se o acontecimento no 40º aniversário da Revolução Nacional.» (inscrição na lápide, já desaparecida, colocada no Bairro em 1967) “Com as casas de alvenaria parecia que as pessoas eram consideradas mais gente.” Padre Araújo No ano seguinte, em 1960, foi iniciada a segunda fase de construção, prevista no projecto de realojamento. Obedecendo a um programa de apoio à habitação municipal mais completo, os fogos apresentavam características melhoradas em termos dos materiais de construção. Este maior investimento e cuidado na organização do bairro (resultante de factores de rentabilidade económica cf. referido no Relatório de Gerência Municipal, atrás transcrito) acentua a controvérsia acerca do carácter provisório ou definitivo(?) desta fase do projecto. Neste novo bairro foram alinhadas 917 casas em ruas estreitas e cruzadas a direito que, pouco depois, receberão o nome dos rios de Portugal. Esta toponímia também substituiu a anterior numeração das ruas do “bairro de lusalite”. Uma informação actual da CML esclareceu: “Já a toponímia dos arruamentos deste Bairro, contrariando o que era norma nas décadas anteriores – dos anos 40 e 50 do século XX – para os Bairros Sociais de Lisboa substitui a denominação numérica pela designação de 38 rios portugueses, a saber, Alcôa, Águeda, Almansor, Alva, Alviela, Arade, Ave, Caia, Cávado, Ceira, Corgo, Coura, Dão, Douro, Guadiana, Laboreiro, Lena, Lima, Liz, Minho, Mira, Mondego, Ocresa, Paiva, Ponsul, Sabor, Sado, Sever, Sorraia, Tâmega, Távora, Tejo, Torgal, Tua, Vez, Vizela, Vouga e Zêzere.” (cf. doc. Toponímia do Bairro Padre Cruz, CML(1)).

Estas novas habitações correspondem a pequenas moradias unifamiliares de rés-do-chão construídas em alvenaria com estrutura de betão e cobertura de fibrocimento sob telha e justificaram a identificação de “bairro de alvenaria”. De construções igualmente simples, e muito acanhadas, foram dispostas em banda contínua, mantendo os pequenos logradouros destinados a hortas e quintais. Estavam repartidas em 259 fogos de tipologia T1, e 238 fogos de tipologia T2, em badanas; 296 tipologia T3 e 88 tipologia T4 (em duplex, com dois andares). Embora a tipologia destas casas seja mais diversa mantêm-se as áreas mínimas que variavam dos 23m2 até aos 70m2(2). As rendas das casas, superiores às prestações das casas de lusalite, dependiam da tipologia e da área dos fogos – 135$00 ou 170$00 (T1), 215$00 ou 237$00 (T2), 270$00 (T3), 295$00 (T4). Vale referir que nos T1, por exemplo, a área do quintal e do logradouro era superior à área construída, da casa, e apenas uma divisão (o único quarto, à entrada) dispunha de janela para o exterior. A cozinha e a sala compunham uma só e mesma divisão com área inferior a 9m2. No espaço exterior, as ruas favoreciam os percursos para os peões e previam um mínimo tráfego automóvel. Apenas as duas principais ruas (Tejo e Cávado) serviam de vias de atravessamento do bairro. Pelos motivos que atrás referimos – elevado número de famílias a realojar, localização distante dos usos da cidade e relativa “modernização” no programa de habitação municipal – a construção das casas foi acompanhada pela instalação de um conjunto de equipamentos para uso da população. A igreja, a escola e creche, o dispensário e o posto médico, a biblioteca, o salão de festas e de trabalho, mercado, as oficinas e campo desportivo foram equipamentos sociais muito importantes na sustentação da vida do bairro e, adiante, merecem referência destacada. Com um total de 1 117 fogos/famílias e ocupando uma área de 12 hectares que se estendia até às fronteiras

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LÁPIDE, 1967 (AF-CML)

CONSTRUÇÃO DE CASAS EM ALVERBARIA (DUPLEX), 1962 (AF-CML)

CONSTRUÇÃO DE CASAS, RUA DO RIO TEJO, 1961 (AF-CML)

com a freguesia da Pontinha (na altura, concelho de Loures) e Estrada da Circunvalação, o bairro transformavase numa “aldeia portuguesa”, sempre isolada e descontinuada em relação à cidade. Em redor, persistiam os vastos campos de hortas e de cultivo que confirmavam a paisagem de ilha branca semeada à margem da cidade. As escassas e longas azinhagas mantiveram-se como os únicos acessos de ligação do Bairro a Carnide (e daí, à “cidade”) e à Pontinha. As primeiras gerações – “davam-se à confiança com muita facilidade”

FAMÍLIA DE MORADORES, 1963 (FOTO PARTICULAR)

Através dos testemunhos recolhidos junto dos primeiros moradores – transferidos da Quinta da Calçada, Bairro da Boavista ou de habitações municipais degradadas – confirmou-se a origem rural (centro e norte do país) na ampla maioria dos casos. Era muito significativo o número de famílias que tinham “largado” as suas terras e aldeias à procura de outras oportunidades de sobrevivência na cidade de Lisboa. Mas estratégia de aproximação à cidade também era feita por fases. Primeiro, arriscavam-se os homens à procura do trabalho na capital (ou já traziam contacto de um parente) e só depois de ter firmado um ajuste de trabalho (e, eventualmente, um alojamento) acenava à família para que viesse juntar-se-lhe... E todas essas separações, viagens e reencontros marcavam as vidas destas famílias com lembranças picarescas. “Contava a minha mãe que quando chegou a Stª Apolónia trazia uma galinha debaixo do braço e olha para aquilo tudo, e pensa ‘O que se passa aqui?’ – já trazia 4 filhos – dois de um anterior casamento de que ficara viúva. Chegou de Alpedrinha e ficou tão assarapantada que nem via o meu pai e ficou sem a galinha… que nunca mais se deixou apanhar!” (Fernando Pereira, ex-morador) Através dos testemunhos soubemos que eram famílias relativamente jovens já com filhos ou em ciclo de

RUA DO RIO LENA, 1963 (AF-CML)

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natalidade o que contribuiu, nesta primeira fase, para o elevado número de crianças e jovens entre a população do bairro. “Era tudo gente com filhos – e havia mesmo algumas famílias muito numerosas – e alguns idosos e pessoas isoladas. A maioria da população era classe média baixa”, informou Isabel Geada, a primeira técnica de acção social no bairro. A casa destinada ao realojamento era atribuída de modo imediato para as famílias instaladas na Quinta da Calçada ou Bairro da Boavista ou ainda para as que provinham de situações de degradação do património municipal. “Certo dia, aparece um polícia municipal em minha casa para eu me dirigir aos serviços da polícia, no meu interesse. E eu lá fui. Fui atendido pelo chefe Oliveira. E recebi a chave. Na altura era ainda a rua 23. Depois é que ficou rua rio Paiva. Se a casa lhe agradar, fique com ela. Se não agradar, volta aqui e aguarda até nova atribuição. Mas eu já sabia por gente que cá morava que o melhor era aceitar logo a casa, fosse pequena, fosse grande… porque se eu rejeitasse é que nunca mais via casa nenhuma …” (José Augusto Gonçalves, morador) No caso das famílias que se encontravam em situação de instalação precária – caso de prédios degradados ou partes de casa – haveria que preencher um ofício/pedido dirigido à Polícia Municipal explicando e fundamentando a solicitação. Nestas situações, também o facto de “ser camarário” (i.e., ter vínculo laboral com a CML) representava, sem dúvida, uma convincente vantagem para o sucesso do pedido que era avaliado pela Comissão Administrativa dos Bairros Sociais. As primeiras impressões – “quando aqui chegámos…” Por outro lado, aquelas diferentes proveniências da cidade (Quinta da Calçada, ou parte de casa no centro de Lisboa, por exemplo…) destas famílias foram determinantes no modo como, num primeiro momento,

avaliaram as condições de alojamento no bairro. Foram as famílias que já moravam em bairros camarários (Quinta da Calçada ou Boavista), em barracas ou em partes de casa acanhadas, quem mais valorizou o realojamento no novo Bairro das Casas Desmontáveis. “Quando aqui cheguei gostei muito. Aquilo era fantástico. Parecia uma aldeiazinha muito gira. Foi no bairro de lusalite. As casinhas eram muito pequeninas… No quarto só cabia a cama; na cozinha, um fogãozinho e a pia de despejo e o balde para os banhos. Agua canalizada, só fria. E a electricidade com uma luz. Nós adaptávamo-nos ao frio e ao calor. Os meus pais gostaram muito porque de onde vinham, da Quinta da Calçada, as casas já estavam degradadas. Pagávamos 100$00 de renda. Já era bastante… Gostei muito de ali morar: cada um tinha o seu quintal, o seu fogareiro…” (Lurdes Silva, moradora) “Morávamos no Bairro da Boavista que, sendo camarário, era um bocadinho pior. Naquela altura influenciei o meu pai. Disse-lhe: “Ó pai foi feito um bairro… naquela altura até se chamava Bairro da Penteeira…” A vida também era difícil, ganhava-se pouco, havia muita pobreza… O meu pai era estivador – se trabalhasse, ganhava, se não trabalhasse não ganhava nada… Naquela altura era mesmo assim… O meu pai ganhava 70$00 por dia de trabalho. E lá o convenci – “Vamos para aquela casa, aquilo é diferente, terei um quarto, tenho mais privacidade, uma porta para fechar…” E, muito a medo, viemos para cá. Muito a medo, porque a renda eram 295$00, mais 5$00 que se pagava ao fiscal. Era muito. Viemos ver, com a minha mãe e vizinha… E as casas, mesmo limitadas, sempre eram bem melhores do que as outras. Convenci o meu pai, com muito medo, sempre. Porque lá a renda eram 100$00 e aqui era duas vezes mais. Quando cheguei ao bairro era um luxo. Era um luxo! Senti que tinha outras condições, não tinha nada a ver com aquelas outras…Quando para aqui viemos, muita gente do Bairro da Boavista também veio. Conhecíamo-nos todos uns aos outros… a Quinta da Calçada ainda era pior que o

Bairro da Boavista… E isto aqui era muito melhor.” (Domingas Ferreira, moradora) “A primeira sensação foi de liberdade. Porque vivíamos todos numa parte de casa. Não havia a privacidade que encontrámos aqui. Primeiro, estávamos apertados mas já sabíamos que quando as casas de dois pisos estivessem concluídas iríamos para uma casa maior. Estivemos apenas um ano nessa primeira casa. Sentimos que foi um salto qualitativo na vida da família.” (António Cristino, morador)

RUA DO RIO GUADIANA, 1962 (AF-CML)

Em contraste, as famílias transferidas de fogos localizados em zonas centrais e integradas nos usos da cidade reagiram muito negativamente quando conheceram o novo bairro. Foi-nos dito: “Quando cheguei ao bairro fiquei triste. Nunca tinha vivido em bairros. Fui criada num meio diferente, na Av. Manuel da Maia. Tinha outras referências. Quando entrei, até chorei. Uma casinha pequenina – e eu disse para o meu marido: ‘Ó homem, podias ter escolhido outra coisa. Isto é para malteses de pau e manta. A minha palavra foi esta. São as pessoas que vêm daqui e dacolá e que se sujeitam a tudo. E tinha uma vizinha que veio na mesma altura do que eu. Morava mesmo ao meu lado. Foi mais que tudo para mim e para os meus filhos. Devo-lhe muito.” (Nazaré, moradora)

RUA DO RIO CEIRA, 1962 (AF-CML)

“Quando aqui chegámos era tal de maneira árido que, quando viemos ver a casa que nos ia ser atribuída eu e a minha mãe regressámos a casa com febre… Mas, depois, habituámo-nos. Ainda vivo na casa que nos foi atribuída. Era de alvenaria. Nunca vivi nas casas de lusalite mas vi essas casas… Foi pena não ter ficado nenhuma para memória.” (Elisete Andrade, moradora) “A minha mãe não gostou, não queria vir para aqui – o bairro era fora de Lisboa. Eu gostei muito porque as casinhas eram todas branquinhas, pareciam pequenos

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RUA DO RIO AVE, 1962 (AF-CML)

RUA DO RIO TEJO, 1962 (AF-CML)

palácios. A minha mãe não queria porque não havia transportes. Não havia transporte nenhum. Os carros contavam-se pelos dedos. O bairro ainda não tinha ruas, só metade é que tinha sido construído. Lembro que as ruas estavam por fazer, chafarizes na rua porque ainda estavam a acabar as canalizações. Luz havia, mas para água tínhamos os chafarizes públicos. Havia pessoas que vinham de barracas e nem sabiam o que era água canalizada. Só tínhamos água fria. Não havia águas quentes. Aqui quase toda a gente trabalhava, naquela altura. Era um bairro para funcionários camarários. Veio para aqui muita gente que trabalhava na Câmara… era gente pobre, mas gente de trabalho. (…) Eu sempre vivi em Lisboa e havia casas onde nem sequer casa de banho havia. Aqui, pelo menos isso havia. Era uma melhoria. Na altura era bom, dentro das suas condições limitadas.” (Custódia Pereira, moradora)

RUA DO RIO VEZ, 1962 (AF-CML)

“Quando entrei em casa, tinha 5 anos… Lembro-me de ter ficado um pouco assustado. Estava à espera de outro tipo de casa. Era um duplex, tinha uma escada sem nada a tapar… Era uma casa muito vazia, as ruas ainda estavam em terra batida, sem estarem calcetadas. Não tínhamos água em casa. Tínhamos que ir com cântaros buscar água aos chafarizes públicos montados em algumas ruas. Os primeiros tempos do bairro foram muito complicados. Quando vim, fiquei nas últimas casas a serem acabadas. Claro que foi sempre uma melhoria. Mas o primeiro impacto não foi muito favorável. Sabíamos que vínhamos para um bairro, mas não esperávamos nada daquilo. (…) Não havia transportes nenhuns e Carnide ficava longe, tinha que se ir a pé… e eu era rapazinho.” (Emídio Silva, exmorador) Independentemente das diferentes opiniões (e situações) sobre o primeiro confronto com o bairro, estas famílias já traziam muito em comum: antigas relações de vizinhança (o caso dos moradores da Quinta da Calçada, e Bairro da Boavista…), algumas vulnerabilidades sociais, fracos recursos económicos, pouca escolaridade (apenas

RUA DO RIO PAIVA, 1962 (AF-CML)

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alguns anos da instrução primária, na generalidade da população masculina; a grande maioria da população feminina era analfabeta). Mas, mais importante para o regime: o facto de serem “moralmente confiáveis” porque com hábitos e contratos de trabalho: “gente pobre, mas trabalhadora”, já disseram. Relembremos que a Câmara Municipal de Lisboa era a principal entidade patronal desta população de ex-migrantes rurais. Conforme Isabel Geada relembra, mais de metade eram empregados da Câmara, fosse na profissão de cantoneiros, serventes, pedreiros, electricistas, motoristas, bombeiros, alguns polícias… mas hoje também encontrámos referências a estivadores, sapateiros, padeiros, professores,… Assim, não sendo este um bairro originalmente planeado nem construído para funcionários da Câmara, o facto é que por força das circunstâncias que atrás explicámos, o elevado número de “camarários” que vieram a ser seus locatários acabaria por vincar o perfil da primeira comunidade do bairro. E vincar ao ponto dos moradores insistirem repetidamente: “Aquilo era tanto para os camarários que a renda vinha logo descontada no ordenado.” (Teresa Guerra, moradora) Todos estes aspectos foram importantes para definir do perfil desta primeira geração de moradores: uma população trabalhadora, maioritariamente activa, com hábitos e contratos de trabalho e que, por isso mesmo, manteve relações funcionais com o exterior do bairro – seja o núcleo de Carnide, seja a cidade, para onde se deslocam nas suas labutas diárias. “O meu marido lá ia de bicicleta, pela madrugada. Ainda me lembro vê-lo a ir…Ia tão cedo que lhe puseram a alcunha do ‘Zé Sai-cedo’.“ (Adelaide Ferreira, moradora) Quanto à população feminina, era significativo o número de mulheres domésticas ou que não exerciam profissão atendendo ao elevado número de filhos e à necessidade deles cuidarem. Ocupavam-se de trabalhos ditos “femininos” a que frequentemente se juntavam as vizinhas, as avós e as sogras quando também residentes. Nos casos em que estavam profissionalmente inseridas eram vendedeiras, empregadas de comércio, limpezas,

algumas costureiras… Além disso, escutaremos adiante que, nestas famílias, os filhos e as filhas eram orientados para inserções “precoces” no mercado de trabalho. Se, hoje, essas inserções – que ocorriam por volta dos 13 anos – comprometem direitos e o êxito da escolaridade obrigatória – naquela época representavam a única forma de sobrevivência da família e a possibilidade de percursos de autonomia por parte dos filhos (casar, ter residência, gerar família, …), sobretudo no caso das famílias mais numerosas. Apercebemo-nos que a proximidade não era apenas física (casas vizinhas com paredes meias e quintais confinantes…), mas era também uma proximidade vivida. As populações que se foram instalando, pelas comuns fragilidades, avizinhavam-se na partilha das preocupações e das expectativas – as conversas, os interesses, as ajudas, as solicitações e as ânsias, os percursos e as azáfamas diárias… E isso foi fortalecendo relações solidárias entre as pessoas e os sentidos de pertença ao território. O interior das casas – “tudo muito minúsculo” Justificadas pelas “menores exigências de espaço” destes moradores (cf. Actas CML, transcritas) as dimensões das casas foram reduzidas ao mínimo dos mínimos e porque eram compensadas no exterior com os logradouros e quintais. No espaço interior, as áreas comuns (cozinha e WC) quase se confundem entre si e com os “quartos”. As “divisões” nas casas de lusalite eram, muitas vezes, separadas apenas com cortinas. Percebemos não só que o direito à privacidade era minimizado (aliás, um luxo!) como a casa (esse minúsculo privado) sendo muito limitada era, também, muito limitadora. “As casas eram muito fracas, as de lusalite. Eram uns caixotezitos… e feitas em amianto. Tinham condições muito fracas mas as pessoas não sabiam nada disso… e as paredes das casas eram tão fracas… dava para ouvir as

discussões. Era muito desagradável. Depois, nas outras, de alvenaria já não. Ainda eram fracas, mas sempre melhorzinhas. Parece que as pessoas já eram consideradas mais gente.” (Padre Araújo) “Nas casas de lusalite, não havia nada. Só a pia de despejo e o balde com argolas para o banho. Água, só fria. Uma só lâmpada no tecto para toda a casa, luz fraquinha para não gastar muito. O lugar das camas era sobre a pedra, na cozinha. Punha uns colchões de palha para os meus filhos. Fazíamos as divisões com cortinados. Depois fomos melhorando, construindo por nós.” (Nazaré, moradora)

PLANTAS CASAS LUSALITE

“As divisões, muito pequeninas. A sala de jantar levava uma mesa, umas cadeirinhas e pouco mais… Quando entrava alguém, tínhamos que nos levantar. Quando para aqui viemos, as casas não tinham lava-louça. Tinha uma chaminé e uma pia de despejo. Estes duplexes tinham a casa de banho lá em cima… Era com um sistema de balde. A gente tinha que tirar o balde – era uma lata – preso com dois ganchos, púnhamos lá dentro a água quente, e tínhamos um estrado de madeira com um ralo para escoar. As casas de banho são pequeníssimas….” (Domingas Ferreira, moradora) “Tinha casinhas novas mas com muito poucas condições: uma lâmpada no tecto e um balde para as pessoas tomarem banho. Não havia água quente. Não pensavam que as pessoas chegassem a velhas e, por isso, fizeram umas escadas que aquilo é mesmo para as pessoas caírem. Aquelas escadas são um grande obstáculo. Há pessoas aí, que têm um enorme sofrimento para subir as escadas. Eu sei porque conheço muita gente… e mesmo as condições das casas – agora que o tempo começa a aquecer, os quartos de cima chegam aos 30 graus. Ninguém consegue lá dormir. Estes quartos fazem lembrar o que era a prisão “a frigideira” em Cabo Verde para onde mandavam os presos do regime… Se as pessoas não tivessem gasto algum dinheiro nestas casas, eu não sei quem poderia viver aqui hoje em dia. Isto é tão verdade, tão

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PLANTAS CASAS ALVENARIA

verdade…” (Fonseca, morador e comerciante) “O meu pai mandou logo tapar a escada porque, em baixo, quem olhasse para cima via as pernas.” (Custódia Pereira, moradora) A gestão do bairro – “uma aldeia ou… um “gueto”? Também em termos da gestão o Bairro Padre Cruz terá beneficiado de alguma “abertura” relativa. Não recolhemos referências acerca da presença explícita da Legião Portuguesa, da Mocidade Portuguesa nem da Obra das Mães pela Educação Nacional(3) tal como era habitual em outros bairros municipais. Além disso, sabemos não ter havido indicação para as famílias celebrarem o casamento religioso a fim de poderem residir no bairro nem, tão pouco, ter sido feita a inspecção médica e a desinfecção de todos os bens e pertences antes da entrada para a casa atribuída, tal como sucedera com os primeiros moradores dos anteriores bairros da Quinta da Calçada, Furnas e Boavista. “Já vínhamos todos casados do Bairro da Quinta da Calçada. Havia lá uma igreja para se fazer os casamentos,” relembrou Joaquim Cruz, morador antigo. VISTA DO BAIRRO PADRE CRUZ, 1963 (AF-CML)

“A Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais já existia. É anterior ao bairro e era constituída por elementos nomeados pela Câmara de Lisboa. Eram técnicos de relevo, funcionários superiores da Câmara, Director-Geral das Finanças, Serviços Culturais da Câmara, a Legião Portuguesa e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que ainda estava estruturar-se… pessoas escolhidas e instituições coordenadas pela Câmara e com a missão de gerir a acção social dos bairros. Mas geria do lado exterior, nos gabinetes – não ia ao bairro. As reuniões semanais eram feitas na Câmara. A partir de certa altura, o Padre Francisco passou a integrar também esta Comissão. Havia reuniões semanais para recolherem informações sobre a vida do bairro no terreno real.” (Isabel Geada, assistente social no Bairro (1963-1971).

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A comunicação da atribuição de casa era feita por escrito e a entrega das chaves implicava o preenchimento prévio da ficha de identificação com o registo dos dados do futuro titular. Neste registo, para além das informações gerais (sexo, data de nascimento, naturalidade, profissão, habilitações, vencimento e composição do agregado) constavam perguntas tais como: “é casado legalmente?”; “o que consta quanto ao comportamento?”. No verso, constava a listagem das instruções (em termos de proibições e obrigações) para habitar a casa e respeitar as regras do bairro que, abaixo, reproduzimos. Regras que as primeiras gerações de moradores não recordam ou, em poucos casos, terão uma “vaga ideia”: ”Fomos conhecendo as regras morando cá. Sabíamos que não podíamos receber pessoas em casa.” (Lurdes Faria) INSTRUÇÕES É expressamente proibido: 1º Admitir na casa que lhe foi distribuída qualquer pessoa que não faça parte do agregado constante do quadro inscrito no presente ofício. Qualquer alteração que se venha a verificar (…) terá de ser comunicada, pelo inquilino ao fiscal do Bairro, no prazo de 8 dias. 2º Possuir animais domésticos (cães e gatos). 3º Construir capoeiras, caramanchões e qualquer outro anexo. 4º Ligar qualquer aparelho TSF na instalação elétrica da casa, visto só estar preparada para fornecer iluminação. 5º Mudar a lâmpada para outra de maior potência ou fazer qualquer alteração à instalação eléctrica. O inquilino é obrigado: 1º A substituir os vidros que se partam na sua residência. 2º A conservar em bom estado a casa que lhe foi distribuída. 3º A indicar ao fiscal qualquer deficiência que note na sua casa (como: infiltrações de água, contadores avariados, torneiras vedando mal…). 4º A consentir que a sua casa seja visitada, pela Comissão ou seus delegados, sempre que se julgue conveniente.

5º A pagar a renda da sua casa de 1 a 8 de cada mês. O inquilino que desrespeite os princípios indicados pode ser mandado desalojar por despacho dado pela Comissão Administrativa. A figura do fiscal No sentido de tornar a organização mais eficaz e respeitada estes bairros municipais contavam com a figura do fiscal. Alguns moradores mais antigos referiram que “primeiro havia dois fiscais; depois, passou a haver só um.”O fiscal era um género de polícia que cá morava e fazia-se respeitar.” Ao Fiscal competia: «(…) 1 – Cobrar dos inquilinos de 1 a 8 de cada mês, as rendas das suas moradias e os excessos de consumo de água. 2 – Não permitir que os inquilinos recebam em suas casas quaisquer pessoas que não façam parte do seu agregado familiar, sem a devida autorização da Comissão Administrativa. 3 – Não consentir que os moradores possuam cães, gatos ou criação no interior das suas residências. 4 – Não permitir (…) que transgridam qualquer postura municipal e muito especialmente que façam lume fora da chaminé; que efectuem as construções ou mesmo vedações sem autorização prévia da C.M.L; que estendam roupa fora do local próprio (estendal do bairro); que andem na rua com os pés descalços; que efectuem no bairro a venda ambulante de quaisquer produtos que se encontrem à venda no respectivo mercado; que tenham capoeiras sem prévia autorização, que peçam esmola. 5 – Não consentir que os inquilinos tenham nas suas moradias telefonias ou alterem a instalação eléctrica. 6 – Não permitir que os inquilinos tenham na sua moradia lâmpadas de voltagem superior a 25W. 7 – Apreender a todos os inquilinos o material eléctrico que não seja o da primitiva instalação. (…)»

As famílias que não cumprissem os regulamentos eram “castigadas”. E, eventualmente, eram transferidas para bairros considerados “mais problemáticos”. “Ali mesmo no salão de festas havia uma casinha pequenina que era a casinha do fiscal e nós tínhamos que dar todos os meses 5 escudos ao fiscal e ele é que olhava pelo bairro. Não podia haver zaragatas. Ninguém discutia com ninguém. Se não, estava sujeito a ser transferido para outro bairro.” (Teresa Guerra, moradora). “Quando havia zaragatas entre vizinhos, o fiscal dava indicação para mandar essas famílias para o bairro da Boavista, que era o “bairro do castigo”. Ao fiscal pagava-se a renda e a EDP. Primeiro eram dois; depois passou a ser só um. Eles eram uma figura de controlo.” (Manuel João, morador). “Havia castigos e multas para quem jogava à bola na rua.” (Manuel Oliveira, morador) “Havia uma vizinha, cujo filho era muito rebelde e não queria ir à escola. O fiscal vinha buscá-lo para ir à escola e ameaçava, dizendo: Olha que a tua mãe vai presa se não fores à escola… e o miúdo lá ia…” (Teresa Guerra, moradora) No conjunto da organização do bairro a figura do fiscal foi marcante e, de certo modo, aceite, atendendo a que ele era, também um outro morador. Alguns fiscais, além de emblemáticos, ficaram na memória … o Sr. Rocha, Sr. Oliveira, o chefe Moreira… “Não consigo imaginá-lo sem autoridade. Era uma pessoa não autoritária mas que vestia a autoridade e nós tínhamos muito respeito. Ele até era uma pessoa muito afável, passava por nós e cumprimentava-nos mas nós tínhamoslhe imenso respeito.” (Fernando d’Oliveira, morador) Porém, se grande parte dos moradores, apesar do

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controle, sentem e vivem o bairro nesse “espírito de aldeia” onde as relações de vizinhança se vão estreitando pouco a pouco, também houve quem fizesse notar: “O bairro funcionava como um ‘gueto’. Mas essa noção só nasce mais tarde. Enquanto miúdo eu vivia algum constrangimento… se jogasse à bola, ia para os fiscais… os nossos gestos eram vigiados e controlados… punham os miúdos de castigo. Na Boavista, tenho a certeza mas aqui não tenho a certeza absoluta. (….) Não se podia andar descalço em Lisboa. Aqui, no bairro, andava-se. Eu só me calçava para ir para a escola. E porque só tínhamos um par de sapatos. Quem fosse apanhado descalço tinha uma multa de 20$00. Isso já acontecia ali para a zona do ‘bairro jardim’ que hoje é Telheiras. A multa era muito dinheiro. (…)” (Manuel João, morador). Os primeiros apoios sociais – “criar um sentido de comunidade” No contexto da organização da vida social do bairro entende-se perfeitamente que as figuras do padre, a equipa de apoio social, os médicos e a equipa de enfermeiras, os fiscais, as educadoras e professor/a… tenham sido, cada um a seu modo, referências importantes. Por solicitação da Comissão da Acção Social, da Câmara Municipal de Lisboa em concertação com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (naquela altura, ainda em consolidação), as primeiras técnicas de acção social desenvolveram um trabalho de grande proximidade com a população. “Era um trabalho social de comunidade, era assim que se chamava” (Isabel Geada). As informações mais seguras chegam-nos na voz de quem as viveu: “Nessa altura a Misericórdia de Lisboa estava a consolidarse. (…) Em 1962 a Misericórdia destacou pessoal especializado – Educação/Formação familiar (Laura Tavares) e uma assistente social (Olga Pinheiro) mas que

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não estava lá efectiva. Foi ela quem fez a primeira abordagem. A inauguração dos serviços e equipamentos foi em 1962 e eu cheguei ao bairro em 1963. Tudo ainda estava muito embrionário. Mas durante o primeiro ano de 1963-64 o bairro teve um grande desenvolvimento. Por outro lado, apesar do constrangimento vivido, também sabemos que o bairro terá beneficiado de alguma diferença no programa de acompanhamento. Com o Bairro Padre Cruz houve uma alteração nas tarefas da Comissão da Acção Social. O Bairro Padre Cruz era um bairro muito maior do que a Quinta da Calçada, Furnas, Boa vista, Caramão da Ajuda, e com outras condições. Havia que criar um sentido comunitário às pessoas. Foi esse trabalho que me pediram como técnica da acção social… Foi um trabalho muito gratificante porque a população aderiu e reagiu sempre muito bem. O Bairro Padre Cruz, sem dúvida, subiu um patamar na escala e condições dos bairros municipais. Muito pela convergência de três factores: primeiro, o ambiente preparado pelo Padre Francisco que começou a desbravar o trabalho com a população. Ele ia ao bairro frequentemente. As pessoas estavam completamente isoladas. E ele era uma pessoa muito próxima e muito dialogante. Além disso, a maior parte das pessoas vinham de casas com muito piores condições, muito abarracadas, e chegar ali sentiam-se beneficiadas, com outro estatuto e patamar social… Terceiro, o perfil das pessoas e o trabalho com os técnicos. Havia preferência na atribuição das casas a chefes de família, com vínculo laboral, preferencialmente na Câmara… Esta selecção era feita, inicialmente, pela Polícia Municipal. Depois passou a ser um gabinete técnico que estudava a atribuição das casas.” (Isabel Geada, primeira técnica de assistência social no Bairro (19631971)).

Equipamentos sociais – “as inaugurações foram muito bonitas” “Assisti à inauguração do bairro. (…). Estava todo o povo presente e muita gente feliz.” Padre Araújo (em funções no Bairro de 1966 a 1981) Na segunda parcela do Bairro, o bairro de alvenaria, foram sendo construídos vários equipamentos de apoio: igreja, escola primária, mercado (adaptado da antiga vacaria), centro cívico (salão de festas e de trabalho), sala de leitura/biblioteca, lavadouro, creche, “dispensário” e posto médico, sede do clube desportivo “Os Unidos” e zona desportiva, tal como estava inscrito na pedra da lápide camarária. Este conjunto de equipamentos procuravam uma certa “normalização” dos hábitos da população residente, atendendo a que se previa acolher uma população já muito numerosa para aquela altura. Interessante será pois perceber como na realidade concreta, nos usos do dia-adia e no decorrer da história, os moradores se foram reapropriando desses espaços e dessas normas exteriores tornando-as vivências suas… e fazendo com que, pouco a pouco, o bairro vá sendo cada vez mais “nosso”. Este primeiro subperíodo de consolidação do bairro (1960-67) foi vincadamente marcado pela euforia das várias inaugurações dos equipamentos sociais. Em causa estava, também, a propaganda da imagem “assistencialista” do regime que providenciava as melhores condições de vida a populações satisfeitas. Mas, também por isso, controladas “nos seus devidos lugares”. Nos seus lugares periféricos, distantes dos centros de poder e decisão. Atendendo ao interesse na promoção da imagem do bairro (uma “aldeia feliz”), ainda durante a respectiva construção, ocorreram visitas frequentes por parte do presidente da Câmara Municipal (General França Borges) e outros responsáveis camarários, eclesiásticos (bispo e padres) ou individualidades do governo. Registaram-se

várias efemérides durante o ano de 1962 e repetiram-se em 1966-67, com a instalação da lápide (que referimos) e a homenagem e colocação do busto do Padre António Francisco de Cruz, com o devido aparato propagandista do Estado Novo. Atendendo a que o tempo da construção do bairro coincidiu com o ano comemorativo do centenário do nascimento do Padre Cruz (1859-1948), o bairro ganha um nome – o do seu patrono – de evidente cariz assistencialista aos pobres e desamparados, conforme convinha à imagem do regime(4).

INAUGURAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ, 1962 (AF-CML)

A capela do Bairro Padre Cruz – “o pulmão do bairro” A paróquia desenvolveu um papel muito activo nesta fase da vida do bairro. Era orientada pela Ordem Franciscana com sede na igreja de S. Lourenço, de Carnide. O primeiro pároco com funções no bairro foi António Francisco Marques (de 1952 a 1973, vd. nota 8, do presente capítulo), que vincou este período inicial criando e consolidando a comunidade religiosa. Este aspecto não pode ser desligado do contexto das relações entre a Igreja Católica e o regime do Estado Novo. Tal proximidade justificou que a capela do bairro fosse um dos primeiros equipamentos a ser construído e inaugurado, em grande cerimónia, no dia 1 de Outubro de 1962. Na sua construção estiveram envolvidos alguns moradores atendendo a que muitos eram pedreiros e serventes da CML. “Lembro-me de ver a Igreja ser construída. O meu pai ajudou na construção da igreja.” Sabemos que até à inauguração da igreja, algumas missas ainda terão sido celebradas na escola primária que fora inaugurada poucos meses antes. Foi a partir deste “pulmão” do bairro que o trabalho interior com a comunidade foi desenvolvido, em estreita colaboração com a Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais. No início, esta capela pertencia à Paróquia de Carnide e servia, até 1971, as comunidades da Pontinha e a Serra da Luz. Só mais tarde, a partir de 1982 e 1983, é que foram celebrados os primeiros casamentos e

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DESCERRAMENTO DO BUSTO DO PADRE CRUZ, 1967 (AF-CML)

INAUGURAÇÃO DA CAPELA N. SENHORA DE FÁTIMA, 1962 (AF-CML)

baptizados na capela Nª Senhora de Fátima. Assim sendo, o bairro pertenceu primeiro, a um vicariato que era pastoral e economicamente dependente da paróquia-mãe, no caso, de S. Lourenço de Carnide. Depois, passou a quaseparóquia e só após 3 ou 4 anos constituiu-se como paróquia. Adiante daremos conta das respectivas dinâmicas. INAUGURAÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA, RUA DO RIO TEJO, 1962 (AF-CML)

A Escola Primária 167 – “Bom dia, senhora professora!” A escola primária foi outro equipamento que guarda vincadas memórias junto dos meninos e meninas de bata branca. A escola primária nº 167 era o único edifício escolar e também foi construído de raiz. Depois ficou conhecida por Escola Rio Tejo, nome da rua onde se localizava Tal como era uso e costume naquele tempo, o edifício mantinha separados os pavilhões...

INAUGURAÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA, RUA DO RIO TEJO, 1962 (AF-CML)

“Do lado direito eram rapazes, do lado esquerdo eram as raparigas. Não havia misturas. Mas havia as mais crescidas que já eram muito malandronas. Subiam acima do muro para espreitarem para os rapazes. Aquilo era uma festa!” (Custódia Pereira, moradora) No interior da escola o quadro com a figura de Salazar e o crucifixo da Igreja católica lembravam a autoridade do regime sobre as paredes brancas. Pela manhã, dois padres da Ordem Franciscana visitavam a escola. Ensinavam a rezar e punham as orações em dia. À chegada da professora, os meninos e as meninas de bata branca levantavam-se prontamente e, a uma só voz, cumprimentavam: “bom dia, senhora professora!” Antes de dar início à lição e para relembrar a missão de todos e de cada um naquela escola, e na vida, cantava-se o hino nacional. E era assim que se abria o dia nos tempos iniciais do bairro. A ampla maioria das crianças frequentou a escola primária 167 numa altura em que a população em idade escolar era muito numerosa.

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“Lembro-me que, em 1963, viveu-se uma situação excepcional. Havia cerca de 1 000 crianças em idade escolar e pré-escolar. O jardim-de-infância tinha lista de espera e a escola primária teve que abrir 3 turnos: 9-12h; 12-15, 15-18h. Isto foi uma situação extraordinária que terá durado uns 3 anos. Depois, passou ao normal: turno de manhã e outro de tarde. As primeiras professoras foram a Maria de Fátima Oliveira Carrapa e Maria Helena Carvalheira.” (Isabel Geada, assistente social no Bairro (1963-1971)) “A escola tinha oito turmas – quatro de manhã e quatro turmas de tarde. Com trinta e tal meninos cada. A maneira de ensinar era muito diferente, era tudo muito diferente. Havia muitos meninos mal tratados, mal alimentados… A escola tinha espaço para cantina mas não funcionava. Nós dirigimo-nos à Câmara. Havia muita criança com muita fome. Ainda hoje há, mas menos... Juntámo-nos. A professora também. A cantina tinha já o fogão grande … Fomos a Sacavém e deram louça de Coimbra. Era louça fina para 200 pessoas, travessas, tigelas para a salada em pyrex… depois, falámos com o Padre Francisco. Claro que ele colaborou. Para ajudar não havia igual. Entre os amigos dele, arranjou a comida. Foi ao Senhor Bom Jesus, uma família muito rica… Era de uma quinta perto, pertence ao Bairro de S. João. Esse senhor dava a carne toda para a refeição dos meninos. Durante doze anos esse senhor deu a carne para a refeição das crianças. Eu trabalhei ali doze anos. Os meninos pagavam 5$00 por mês. Aquilo, nem para o ordenado da gente chegava mas sempre era uma ajuda. Tinham direito a almoço. Era sopa, o prato e fruta. Quando era peixe, tinham doce. Dois dias por semana. Alguns meninos nunca tinham provado certos comeres. Havia cento e tal meninos a comer. Havia muitas crianças aqui. E fomos ao quartel pedir panelas… Isto passou-se em 1966.” (Nazaré, auxiliar na escola, moradora) Concluída a instrução primária, grande parte dos jovens, rapazes e raparigas, ia procurar trabalho. Mais raros

eram aqueles cujos esforçados rendimentos familiares e sucesso escolar permitiam continuidade nos estudos em escolas próximas ao bairro (a escola secundária da Pontinha era a alternativa mais procurada) já que a oferta, em termos de equipamento escolar, naquela altura (e até 1993) estava circunscrito à escola primária. Centro Cívico – “o nosso salão de festas!” Uma das referências fortes do bairro foi o “Centro Cívico”. Era gerido pela Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais, da qual fazia parte a Igreja representada pela figura do Padre Francisco. Era ao padre Francisco que se tinha que solicitar a autorização para usar este equipamento. Destinado a “casa de cultura e de trabalho”, os moradores acabariam por renomeá-lo para “salão de festas”. Uma identificação que comprova as muitas e diversas iniciativas que ali aconteceram. Para além das animadas e concorridas festas da catequese, também o cinema e as sessões de teatro, contribuíram para essa vivência festiva do “nosso salão”. Todos os moradores com quem conversámos fizeram referência a este equipamento. “Ora, este afastamento do bairro em relação à cidade, obrigou a que fossem construídos os equipamentos necessários para garantir a vida do bairro. O facto de o bairro ter um “Centro cívico” é muito moderno.” (Jorge Nicolau, ex-morador). “No salão de festas aconteceu muita coisa. Muita festa. Alguns dos ranchos ensaiei eu. Participávamos todos. Havia peças de teatro ensaiadas por um senhor cá do bairro que escreveu um livro de poemas sobre o bairro – Alberto Artur Mendes (já falecido). Este senhor ensaiava muitos jovens. Fazíamos peças que apresentávamos no salão de festas.” (Lídia Pereira, moradora). “As festas da catequese também marcaram muito a vida daquele salão. Apresentavam-se espectáculos com grande

qualidade… a sala enchia. Todas as famílias da comunidade queriam assistir.” (Elisete Andrade, moradora) “No salão de festas fizeram-se peças de teatro maravilhosas. Lembro-me de uma - “Natal na Praça” – uma peça com grande sucesso sobre a vida de Jesus Cristo. Tinha personagens vestidos de ciganos, uma carroça verdadeira e que teve o som de um burro a zurrar… Ninguém lhe falou nela?!” (Isabel Geada, técnica da acção social no Bairro (1963-71))

CENTRO CÍVICO E SOCIAL, 1962 (AF-CML)

“Para mim o que mais marcava vida do bairro era aquele salão. Nunca quero acreditar que aquilo vai abaixo um dia… isso faz-me muita confusão… aquilo era uma maravilha… havia ali cinema todas as semanas. Nós tínhamos um padre – o padre Francisco que ia ao cinema com a gente. As pessoas às vezes falavam, mas ele foi importante…“ (Teresa Guerra, moradora). “Havia aqui teatro. Era um espetáculo! Havia um alçapão que dava para fazer teatros muito giros. Com muito boas condições! De onde sai aquele senhor? Ele aparecia e ninguém sabia como … Era muito giro. E tinha camarins e duches…” (Carlos “Canhoto”, morador) Mas juntamente com o grande auditório (para cinema e teatro), o Centro Cívico comportava outras valências: era ali que estava instalada a primeira “biblioteca de Carnide, mais conhecida por “sala de leitura”, o posto do fiscal do bairro (a tal “casinha do fiscal”), a pequena sede d’Os Unidos e, mais tarde, uma pequena delegação da Junta de Freguesia de Carnide.

PADRE FRANCISCO ASSISTE A ESPECTÁCULO DA CATEQUESE, 1966 (FOTO PARTICULAR)

O Cinema – “…do tempo do bilhete a sete-equinhentos. E até menos!” A existência de um cinema no bairro para projecção de filmes foi outra medida que, nesta fase inicial do bairro, não pode ser desligada da propaganda do regime do Estado Novo e da própria estratégia da ditadura que,

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ESPECTÁCULO DA CATEQUESE, 1966 (FOTO PARTICULAR)

INAUGURAÇÃO DA SALA DE CINEMA, 1962 (AF-CML)

através do SNI (Serviço Nacional de Informação), controlava todos os visionamentos dos filmes. Muito procurado pela juventude (masculina) a visualização dos filmes das “tardes de cinema” (após a devida autorização pelo SNI [Serviço Nacional de Informação] e pelo Padre Francisco) foram lembradas com saudade. Havia sessões a decorrer desde 5ª feira até domingo e, quase todas elas, esgotadas. Arranjar dinheiro para o bilhete ou inventar formas de “ultrapassar” a vigilância do encarregado do cinema seriam, por certo, estratégias que alimentavam as conversas da juventude durante toda a semana. “A Comissão que geria o salão de festas ia ver o que estava disponível no mercado, ver os vários distribuidores, e depois iam ao SNI para obter as licenças necessárias. Era assim que funcionava e foi assim que funcionou mesmo após o 25 de Abril com a tal Comissão de Moradores…” (António Cristino, morador) “A Igreja também controlava o cinema e o dinheiro das sessões era entregue ao Padre Francisco.” (Manuel João, morador) “Sou do tempo do bilhete a sete-e-quinhentos. E até menos…!” (Carlos Canhoto, morador) “O cinema! Eu adorava o cinema! As bilheteiras abriam às 8 horas e esgotava e eram sempre os mesmos que conseguiam ir… Porque depois já não havia bilhete. De 8 em 8 dias ou de 15 em 15 dias mudavam o filme. Havia os filmes indianos, o Trinitá, o Bruce Lee – mas eu desses não gostava. Era muito artificial. Mas saíamos dali todos a bater uns nos outros, era pontapé, era karaté…Para as crianças a melhor parte que tivemos aqui no Bairro Padre Cruz foi precisamente o cinema…” (Fernando Pereira, ex-morador) “O primeiro filme que vi foi o Joselito. E também houve o Cantiflas…” (Olinda, ex-moradora)

BIBLIOTECA MUNICIPAL DO BAIRRO PADRE CRUZ, 1962 (AF-CML)

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“Ninguém disse como chamávamos ao cinema?! Era o cinema piolho, pois era…” (Jorge Nicolau, ex-morador) A Biblioteca Popular Fixa de Carnide – “a nossa Sala de Leitura” No seguimento do ideário republicano de alfabetização e instrução das “classes trabalhadoras” mas também de propaganda cultural do Regime e “formação dos espíritos” à semelhança de outros “bairros provisórios”, o Bairro Padre Cruz também dispôs de uma “Biblioteca Popular Fixa”. Uma designação que a distinguia das carrinhas de bibliotecas itinerantes que circulavam por alguns bairros camarários e, ao início, também pelo Bairro Padre Cruz(5) “E havia a biblioteca itinerante que vinha ao bairro de 15 em 15 dias” (M. Graça, ex-moradora). Através dos anais da CML de 1963 acedemos ao registo do espólio da Biblioteca Popular Fixa de Carnide. Ali consta a referência a 1 191 exemplares distribuídos por diferentes categorias: jornais, livros de literatura, infantis… O movimento (anual) era de 2 750 leitores (sendo 1 273 de leitura diurna, e 1 477 de frequência noturna); onde os jornais e as revistas estão registados como os exemplares com maior procura, seguidos dos livros classificados como literatura e, depois, literatura infantil. “Eu era estudante de Geografia, no 1º ano da faculdade de Clássicas, e recebi uma carta da Câmara Municipal de Lisboa a confirmar emprego na Sala de Leitura do Bairro Padre Cruz. Vim ganhar 2.200$00. Já era moradora no bairro há 2 anos. O horário era das 9h às 11h da noite – talvez tivesse intervalo para almoço. Primeiro houve um casal, o Inocêncio e a Fernanda. Eram moradores. Depois veio o Sr. Vitorino. Eram os auxiliares – faziam a vigilância. Tínhamos alguma variedade, havia empréstimo domiciliário. Era o único local para ter acesso às informações e ler o jornal. A biblioteca estava preparada para as várias idades. Depois íamos acrescentando alguns títulos.” (Amália Lemos, ex-moradora e ex-bibliotecária)

A relação de proximidade e de cumplicidade com os funcionários da biblioteca, ao longo do tempo, foi sublinhada com entusiasmo. Foram vários os funcionários que deixaram boas memórias (o Sr. Paulo, o Sr. Armando Calado…), de atenções e cuidados, o aconselhamento e selecção de livros,... “Um dia o meu pai apanhou-me a ler uns Caprichos. Não eram meus porque eu não tinha dinheiro para comprar. Eram de outras raparigas que já não os queriam, e eu aproveitava. Mas o meu pai não queria que eu lesse aquilo. Foi então comigo à biblioteca dar autorização para eu poder ir levantar livros à biblioteca. Eu adorei. Comecei a ir buscar livros… Eu gostava muito de ler…” (Custódia Pereira, moradora) “Costumava ir à biblioteca do bairro pedir os livros emprestados para os meus filhos estudarem. Eles estudaram até quererem. Eu, que nem ler sabia, sempre tive atenção aos estudos dos meus filhos. Sempre os acompanhei.” (Nazaré, moradora).

gostava era que eu lesse para ele ouvir. Por isso, quando se fala das pessoas humildes e dos estratos sociais mais humildes é preciso saber que há pessoas humildes que reflectem, que pensam e que sabem o que querem…” (Elisete Andrade, moradora, presidente da AMBCP) Oficinas da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa SALA DA BIBLIOTECA, 1964 (AF-CML)

As Oficinas do Serviço Social da CML foram inauguradas um pouco mais tarde, em 1964. Eram destinadas unicamente à população feminina. Não foi apurada a relação com a Obra das Mães pela Educação Nacional (vd. nota 3 do presente capítulo). Ocupavam duas salas – malhas e costura – e tinham a coordenação da D. Armanda, ao início. Ali eram feitos trabalhos, na sua grande maioria, ao serviço da CML – é o caso das respectivas fardas – e da confecção das roupas, que eram oferecidas aos filhos dos funcionários da CML, em cada Natal. Este terá sido dos equipamentos que gerou mais polémica e de curta actividade pois, para além da exploração da mão-de-obra e dos “pagamentos de miséria” (cf. isabel Geada e a moradora Nazaré), a sua integração na SCML estava a constituir-se e ficou comprometida com as mudanças operadas pelo 25 de Abril, em 1974.

“O que eu aqui passei nesta biblioteca, o prazer que eu tinha pela leitura! Era aqui que eu ia ler horas e horas e horas… Eu lia o jornal de manhã… estava ali o Sr. Adelino que era o funcionário e guardava os livros que nós queríamos… isto aconteceu logo a seguir ao 25 de Abril. A biblioteca também serviu, mais tarde, para ponto de encontro, de conversas, de discussões amigáveis… Armando Calado – era uma referência fundamental – responsável na Biblioteca. Vive hoje no bairro novo – era licenciado e integrou-se perfeitamente na vida do bairro. Fez parte do Grupo de Teatro de Carnide e, se não viesse o 25 de Abril, teria problemas… ele estava identificado pela PIDE…. Fizemos grupo de jovens, éramos quatro ou cinco que nos encontrávamos e tínhamos conversas… E depois estas nossas sinergias transferiram-se para o Grupo de Teatro de Carnide.” (Jorge Nicolau, ex-morador)

“A criação de oficinas foi muito importante – coser à máquina e trabalho de malhas. A CML adquiriu as máquinas e houve pessoas preparadas para dar a formação. Cursos para as mulheres aprenderem e aceitavam-se encomendas do exterior. Eram encomendas, sobretudo da Câmara. As fardas – eram às centenas! – e as ofertas de Natal para os filhos dos funcionários da Câmara – saias e calções e camisolas. Eram remuneradas à peça. Trabalhavam para as oficinas da tropa, fardamento... Recebiam uma miséria, mas recebiam qualquer coisa.” (Isabel Geada, assistente social no Bairro (1963-71)

“O meu pai lia e gostava muito de ler. E o que ele mais

“Quando o bairro foi construído tinha umas Oficinas do

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INAUGURAÇÃO DAS OFICINAS DE ACÇÃO SOCIAL, 1965 (AF-CML)

OFICINAS DE ACÇÃO SOCIAL, 1969 (AF-CML)

POSTO MÉDICO, DISPENSÁRIO E CRECHE, 1962 (AF-CML)

Serviço Social, da Câmara, que deixaram de funcionar na década de 70. Com a evolução dos processos de trabalho não justificava que estivessem ali umas mulheres a aprender malhas. Inicialmente eram dos Serviços Sociais da Câmara, tal como a construção da creche e do pequeno gabinete médico. Foi a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que veio gerir essa unidade. E tinha um gabinete – no Centro Social onde estavam duas ou três técnicas. Mais tarde, as oficinas acabaram por ser usadas para outras modalidades – carpintaria, utilizada por um morador; e, outra por um pintor e um carpinteiro de pequenos restauros.” (António Cristino, morador) “Na inauguração das oficinas cada uma fez uma peça, para fazer uma exposição de rendas, de almofadas… Era o artesanato do bairro. Estava lindo! Nas oficinas o trabalho não correu bem porque trabalhávamos muito e queriam pagar-nos pouco. Também fiz pijamas. E rendas e toalhas. Mas o trabalho e a linha era toda minha e depois queriam dar-me só metade do preço da venda. E eu não deixei.” (Nazaré, moradora)

POSTO MÉDICO, DR. FALÉ, 1969 (AF-CML)

“A D. Rosa foi a mestra das malhas. Faziam-se as camisolas para a Câmara. No Natal a Câmara dava uma caixa com roupa aos filhos dos funcionários. Nas férias toda a rapariga nova ia trabalhar para as malhas. O que era ir para as malhas? Era coser as camisolas, as senhoras tricotavam e as miúdas cosiam. A D. Rosa foi a minha catequista. Às vezes dava-nos a catequese nas oficinas pois quando tinha um trabalho para acabar estava na máquina a tricotar e a dar-nos a catequese. E havia a Lucinda e a Dª Armanda que faziam a ligação entre a acção social e a Câmara. Houve pessoas que faziam em casa, aprendiam com a D. Rosa e depois trabalhavam em casa com a máquina que compravam e iam pagando…” (Lurdes Faria, moradora) “A minha irmã ainda trabalhou nas oficinas, no atelier de costura e ali saíam roupas para os funcionários da Câmara… Era trabalho pago, mas as roupas que saíam

POSTO MÉDICO, ENFERMEIRA ROSALINA 1969 (AF-CML)

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dali eram dadas para os funcionários da Câmara, no Natal. Então o nosso Bairro Padre Cruz, na altura do Natal, víamos as meninas com as saias ao xadrez de pregas e os meninos com camisinhas novas… E a gente saía à rua e só via… ‘filho de funcionário, filho de funcionário”… um espectáculo!” (Fernando Pereira, ex-morador) Posto médico, dispensário e creche do Centro Social Num só e mesmo edifício do Centro Social estavam instaladas várias valências: o posto médico, o dispensário e a creche. O posto médico dispunha de dois médicos – Falé e Rosa Paixão – e uma equipa de seis enfermeiras (Céu, Maria do Patrocínio, Rosalina, Guilhermina, Ermelinda e Deolinda) que tinha a responsabilidade do acompanhamento da sala dos bebés, no dispensário, e o acompanhamento das mães recentes. “Nós fazíamos acompanhamento às mães. Íamos a casa das mães para as ajudar a tratar dos seus filhos. Ensinávamos a pegar ao colo, a alimentar, cuidar a higiene… Uma vez chamaram-me de urgência porque estava um bebe a nascer… e o que havia eu de fazer? Chamei uma ambulância mas entretanto eu tive que ajudar o bebe a nascer… ralharam-me tanto, nem imagina! Fazíamos aulas para as utentes, ensinávamos tudo… os cuidados a ter, a alimentação, o deitar… Estas aulas eram fundamentais para as pessoas. Elas gostavam e precisavam. Eram aulas de puericultura. Dr. Falé Quental era de adultos. O Dr. Rosa Paixão era das crianças. Era um excelente médico. Era uma pessoa muito humana, trabalhava muito bem connosco. Íamos aos outros bairros. Tínhamos dias em que havia muito que fazer. Muita gente para ser atendida e com seringas que eram fervidas… hoje pensamos como isso era, os cuidados que tínhamos que ter. Era uma vida de bairro muito tranquila. Éramos uma família. Era um bocado periférico, tínhamos que ir a pé…” (Rosalina, exenfermeira)

Havia marcação de consultas no posto mas havia ainda a possibilidade de consulta médica domiciliária quando absolutamente necessária. Eram serviços pagos a baixo custo e muito procurados pela população. Os médicos e as enfermeiras acompanhavam e instruíam em termos de vigilância e cuidados de saúde assim como na informação e acompanhamento a vários níveis: educação alimentar, higiene, planeamento familiar… Foi uma equipa que se manteve mais ou menos estável e de quem os moradores reservam grata memória. “Os armários que se vêm nas fotografias vieram da Quinta da Calçada. Havia o posto médico. Os médicos – o Dr. Rosa Paixão e o Dr. Falé eram muito bons médicos. O Dr. Rosa Paixão ia a casa quando os miúdos estavam doentes. Ah, e a enfermeira Rosalina! Essa senhora era uma santa. Éramos muito amigas. Era posto médico e juntamente funcionava a creche. Havia também um dispensário – de leite, a farinha… As mães iam à consulta e levavam o leitinho para os seus meninos.” (Lurdes Faria, moradora) Na creche, para as idades compreendidas entre os 2 e os 6 anos, a equipa era constituída por duas educadoras (Leonor e Maria João), 3 auxiliares de educação (Lurdes, Margarida e Luzinda) e uma vigilante (Marcolina). “Lembro-me da inauguração da creche onde trabalhei, depois. Lembro-me de ver os bercinhos, com as colchinhas... Já foi abaixo esse edifício – era a creche, o posto médico e o serviço social. Ali havia uma boneca vestida de enfermeira oferecida ao posto médico pelas senhoras da assistência social.” (Lurdes Faria, moradora) O comércio local – principais referências Conforme referimos, no primeiro “bairro de lusalite” para além do lavadouro comum e da cabine de telefone existia apenas um ponto de comércio disponível. Era a velhinha mercearia “casa branca”. Uma construção

rudimentar dos tempos antigos e anteriores ao próprio bairro e que teria servido de casa de apoio às quintas de outrora. A mercearia “casa branca” – “um monte alentejano” Para além da mercearia, a “casa branca” abrigava uma pequena taberna e barbearia; outra parte hospedava a família dos proprietários e os empregados. Outra divisão ainda dispunha de quartos para albergar as gentes de trabalho que vinham ajudar nas campanhas agrícolas das searas que circundavam o bairro. Lembremos que durante os primeiros tempos do bairro de lusalite este era o único espaço para algum convívio. Esta mercearia manteve-se ao longo do tempo e, mais tarde, receberia a chegada da televisão. Seria ali que, desde 1964, os jovens e graúdos do bairro moraores da zona de lusalite reuniam a emoção para assistir aos concorridos festivais RTP da canção que também marcaram várias gerações. “A “casa branca” era uma pequena mercearia e taberna. Vendia carcaças e lá ia vender a peixeira Maria dos Anjos que punha ali umas caixas cá fora. Tinha pequena taberna. Arrendou a casa branca a um sargento de Carnide que depois a largou à Quitéria que morou lá. Atrás havia uma vacaria. Que era do Bernardino. O senhor Artur foi o primeiro da mercearia e, depois, o Fernando.” (Manuel Cebola, morador)

CRECHE DO CENTRO SOCIAL, 1969 (AF-CML)

“A “casa branca” era uma mercearia que tinha tudo. Era um balcão grande com três ou quatro empregados a atender… Só o peixe é que vendiam fora. Havia vendedoras ambulantes que paravam junto ao largo. Lembro-me disto porque adorava brincar com os peixes… Na taberna havia o ‘Ti Matias’. Não lhe falaram nele? Toda a gente tinha respeito ao meu pai, que era o Artur. O meu pai impunha respeito. Havia um livro de registo com as dívidas e as pessoas pagavam sempre… Creio que terá sido uma referência para os moradores do bairro pois o

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MERCEARIA "CASA BRANCA", 2010

MERCADO, 1963 (AF-CML)

meu pai ajudou muita gente. O meu pai chegou a morar na casa branca. Eu também vivi lá. O meu pai tinha uma Volkswagen, um carocha. Não sei como o meu pai chegou à Casa Branca. O meu pai era da Beira Alta. Veio muito cedo para Lisboa, para trabalhar (…) Aos 18 anos já era patrão. Tinha várias mercearias em Lisboa. Quando ele tomou a Casa Branca” eu ainda não era nascida. Havia um grande pátio dentro dessa casa… Tínhamos animais, um pombal enorme. Quando o meu pai deixou a casa branca havia umas vinte pessoas a viver lá… Chegou a ter dezoito empregados que viviam lá. Eu era pequenina e lembrava-me daquilo como um espaço grande. Muito grande. Havia a mercearia, a taberna, a padaria, uma capelista e um espaço reservado onde tinha a TV. Nessa sala, que era muito grande, havia um dos armazéns. Lembro-me de ir para a sala da TV e aquilo estar cheio de pessoas… A minha mãe ajudava o meu pai. Criaram um menu para os trabalhadores que eram umas sandes reforçadas. As pessoas ali eram muito carenciadas e, assim, sempre levavam mais que dava para almoço… e ganhava-se mais uns cobres. Lembro-me de ver chegar as camionetas do melão, das batatas… Lembro-me dos grandes alguidares com costeletas temperadas em vinha d’alho e do bacalhau de molho que as pessoas iam lá comprar… A casa da roupa era o telheiro com dois tanques. Havia pessoas que lavavam roupa para fora… e que moravam na lusalite. Gostava de conhecer alguém que tivesse conhecido o meu pai. Isso é que eu gostava! E certamente também se lembraria de mim… Eu era muito lourinha. Era conhecida pela Mariazinha. Depois, sei que foram para lá outras pessoas explorar aquilo…” (Maria Piedade, filha do Sr. Artur, da mercearia Casa Branca). “A “casa branca” era tipo um monte alentejano com todas aquelas portinhas. À noite íamos para lá ver TV. Era lá que começou a haver TV. Era um sítio muito sossegado. Foi lá que vi os Festivais da Canção.

INAUGURAÇÃO DO MERCADO, 1962 (AF-CML)

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Nessa altura, era do senhor Fernando. Havia lá atrás uma horta onde ele ia buscar as hortaliças para nós…” (Lurdes Silva, moradora). “Passámos dificuldades – o Fernando, da “casa branca”, era o “pai dos pobres”. Porquê? Porque vendia a fiado, ao mês. Ele tinha uma carrinha, uma Ford Transit. Lembro da gente a ajudar a tirar as coisas do carro e conseguíamos levar para casa – ele era batatas, ele era cebolas, ele era azeite, ele era óleos, ele era massas, ele era bacalhau, sei lá… entrava tudo naquela casa por 300 escudos. O meu pai, na altura, ganhava 700 escudos. O meu pai recebia, dava à minha mãe, tirava para os gastos dele e sei que a minha mãe ia lá, pagava o dinheiro que tinha e, às vezes, ficava qualquer coisa para o mês seguinte. Anotávamos no livrinho. E, quando a minha mãe pedia para ir ao Fernando buscar qualquer coisa – “mas atenção que é só isto!”, dizia ela, nós lá íamos com o livrinho e no meio lá saía um “estica” que era um rebuçado grande e que nós íamos até casa deliciados a comer aquilo… Como a minha mãe não sabia ler, não sabia que o estica ia nas contas… Mas nós não entrávamos logo porque tínhamos o cheiro do doce na boca… Largávamos as compras à distância e, depois dizíamos – Ó mãe, ‘tá aqui!’ E tornávamos a correr…” (Fernando Pereira, ex-morador) O mercado, “os ambulantes” e os aviamentos em Carnide Já referimos que o edifício do mercado foi recuperado a partir de uma antiga vacaria. Juntamente com a mercearia casa branca, aquele edifício está assinalado no mapa da Quinta da Penteeira mesmo antes da origem do bairro. Com a instalação do “bairro de alvenaria” a oferta do comércio diversificou-se um pouco mais atendendo ao número de moradores que, entretanto, aumentara significativamente – dos 200 agregados iniciais, a partir da década de 60 somavam 1 117 famílias. Porque fortemente ligado a vivências partilhadas e personagens caricatas que

não se esquecem, o comércio foi dos aspectos mais lembrados na vida do bairro. “Abastecia-me na casa branca, na praça, e em Carnide, no celeiro. E na azinhaga comprava a hortaliça. E a fruta… muita fruta, porque havia muitas quintas particulares que vendiam…Havia uma senhora que vendia couves para as galinhas – porque chegámos a ter galinhas, coelhos nos quintais da casa… era proibido… mas eu adorava tratar das galinhas.” (Lurdes Faria, moradora). “Aviávamo-nos no celeiro em Carnide. Vinham aqui vários vendedores ambulantes. Lisboa foi perdendo o que tinha de típico, os pregões de Lisboa… o fava-rica que era vendida numas tigelinhas, os morangos… hoje já não há nada disso nas ruas de Lisboa. Aqui, ao bairro, vinha o pitrolino que trazia tudo completo: azeite, petróleo, carvão e por aí andava de porta a porta. A vida era pobre mas todos íamos vivendo. Éramos pobritos mas alegritos. O mercado antes de ser mercado era uma vacaria. Ainda vi a vacaria a funcionar.” (José Augusto Ferreira, morador) “A praça era onde é hoje, mas muito diferente. Era uma praça cheia, tudo muito bom, tudo muito fresquinho… Comprávamos carvão e bolas de cinzas. Havia o talho da carne de cavalo e carne normal. Porque, na altura, a carne de cavalo era mais barata. Era o comércio que havia. Havia a drogaria, o Sr. João, comprava-se enxofre para por nos focinhos dos coelhos porque elas apanhavam bexigas. Comprávamos cal para cair as paredes. Estava tudo muito bonito.” (Anónima, moradora) “O mercado na altura era muito superior ao que está actualmente: talho, duas peixeiras, mais do que um lugar de frutas e hortaliças, a capelista – a Dª Clotilde, a drogaria, o padeiro, o Sr. Abílio… Havia muitos vendedores. Lembrome também dos gelados Royal, a fava-rica, o língua-dasogra que percorria Lisboa inteira, todo vestido de branco… Assustava os miúdos. A D. Quitéria, atoalhados, a D. Aurora…A D. Isabel foi a última peixeira da praça. Havia

os rebuçados de coco a meio tostão, o papel pardo, a quarta de café, o meio quartilho de petróleo, e havia as medidas sobre as quais que se passava a régua para alisar e fazer a medida certa… tudo anotado. O petróleo à medida, o carvoeiro, a taberna… O Sr. Jaime e D. Esmeralda, da mercearia. Só se comprava melão depois de se provar… fazia-se um triângulo e comia-se. Era tudo muito diferente.” (Jorge Humberto e Ilda Silva, moradores) “Não havia interesse nenhum que as pessoas se juntassem. Como lhe disse, a leitaria fechava muito cedo e não tinha mesa nem cadeira. As pessoas, para se juntarem, só nas colectividades. Não se vendiam jornais no bairro. A papelaria aparece mais tarde. Havia taberna, mercearia, leitaria, padaria, dois talhos, a peixaria no interior da praça, a capelista, a drogaria e a papelaria que aparece muito mais tarde. Ao pé das oficinas havia barbearia, padaria, mercearia mais tarde… um cafezinho.” (Manuel João, morador) “Alguns vendedores ambulantes – de fruta, roupas, tapetes… de algodão ‘Vinte e cinco o maço!!!’ e nós éramos terríveis porque nós repetíamos o refrão. Os amoladores de tesouras, eram muito frequentes.” (Fernando Oliveira, morador) MERCADO, 1965 (AF-CML)

“E havia o senhor que vendia os esticas, que era uma espécie de rebuçados de caramelo e o Garrafinhas que fazia refrescos e vendia à porta da escola…” (Artur Mendes, morador) “No mercado havia uma mercearia que também hoje ainda há – que é a mercearia do Sr. Jaime que já faleceu… também veio da Quinta da Calçada. Como tinha lá, foi-lhe dada aqui. E havia uma capelista – que já não existe – que era uma senhora que vendia linhas e botões que também veio da Quinta da Calçada e era a senhora Clotilde…” (Teresa Guerra, moradora) “Aqui no bairro não havia comércio. Só havia mercado.

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Então o que é que a minha mãe decidiu fazer? Havia pessoas do bairro que vieram da Quinta da Calçada e que deixaram a venda. Então a minha mãe propôs ser ela a vender… Assim, ela fazia a venda do leite, e da lixivia, de porta em porta e combinava a percentagem com que ficava. A minha mãe ia e vinha à Quinta da Calçada, a pé, com as latas do leite à cabeça. E depois vendia à porta. Ao fim do dia ia entregar as bilhas e o dinheiro. Havia o pitrolino, com uma carroça que tocava aquela buzina… que era o petróleo, o carvão, os esfregões… ele corria o bairro todo para vender… Lembro-me perfeitamente do homem do pitrolino: vinha dois dias por semana, a dias certos, e nós já estávamos a contar com ele. Havia uma senhora, a D. Florinda, que vendia café de porta em porta… e nós juntávamos os saquinhos e, ao fim de uns quantos saquinhos, ela dava-nos um brinde. Creio que uma filha ainda cá mora...” (Custódia Pereira, moradora)

AZINHAGA DA COVA DA ONÇA, CARNIDE, 1967 (AF-CML)

“A minha mulher foi vendedeira no bairro de queijos e leites, de bolos na escola. Fazia queijinhos, ia buscar o leite de manhã, coalhava o leite nas forminhas de alumínio e ia para Lisboa vendê-los… Ao final do dia, contávamos o dinheiro e separávamos o que era para as despesas. O resto ia para uma caixinha – “olha, aí está o que ganhei hoje”. Cá em casa nunca houve duas carteiras. Depois, teve que vender bolos porque o rapaz da Pontinha vendeu as ovelhas e ela andava aí no bairro a apregoar “bóliiiinhas, bóliiiinhas…” E vendia aí muitos bolos, vendia bem. Era a Maria das Dores.” (Manuel Cebola, morador) “E aqueles bolinhos que uma senhora velhota vendia num cesto, na casa branca, eram macios e com um creme amarelo. Nunca mais comi igual. E os esticas?! Hummmm” (Conceição Costa, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz”, facebook). “Quem se lembra de uma senhora a vender tremoços na esquina da rua do Norte….” (Fernando Almeida, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz”, facebook))

AZINHAGA DAS CARMELITAS, 1967 (AF-CML)

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“E o homem dos esticas!!!” (Mimi Caldas, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz, facebook) “É para os meninos que não comem a sopa… olha o estica… olha o estica!” (Mimi Caldas, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz”, facebook) Os caminhos e as acessibilidades ao bairro: “as azinhagas das memórias” “A identidade do bairro está no desenho e na azinhaga. As azinhagas estão carregadas de memórias (….) Eram locais muito marcantes". Jorge Nicolau (ex-morador) Vem a propósito salientar que o núcleo antigo de Carnide era uma referência para os moradores do bairro, não só devido à oferta de um conjunto de equipamentos, bens e serviços, à animação e actividade cultural (escolas, feiras, colectividades recreativas e de teatro de Carnide…) como também por causa dos percursos pelas azinhagas que encurtavam as distâncias até à paragem terminal do famoso elétrico 13 que, a preço do bilhete operário de oito tostões, viajava até aos Restauradores. “…Nessa altura pagava-se conforme as zonas… chegávamos a ir a pé até à paragem seguinte para poupar uns tostõezinhos para comprar uma pastilha!” (Mimi Caldas, “grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz”, facebook) Eram trajectos que consolidavam companheirismos entre o velho núcleo de Carnide e o Bairro Padre Cruz: a Rua do Norte a continuar na Azinhaga dos Cerejais e Azinhaga do Serrado; Estrada da Correia; Rua do Pregoeiro; Azinhaga das Freiras; Beco da Cova da Onça, Estrada do Poço do Chão, Azinhaga da Fonte, Azinhaga do Seminário… percorridos por várias vezes ao dia. Aqueles caminhos estreitos e de terras batidas eram também onde os jovens brincavam, namoravam,

saboreavam as guloseimas dos tostões poupados, desafiavam-se com os pedaços de tijolos… momentos únicos saudosamente recordados entre os residentes. “Era nestes caminhos que melhor percebíamos e conhecíamos quem morava no bairro”. Percebemos assim as implicações que, afinal, a distância geográfica e os percursos comuns para a vencer tiveram no fortalecimento das relações entre os moradores, fosse por boas recordações de juventude e de companheirismo, fosse até por alguma companhia pelo perigo associado – “já reparou? Os muros que ladeiam estes caminhos estão todos riscados. Quanto passava a camioneta do tijolo, era muito perigoso…”; “um dia, andava por aí um touro à solta...” “A gente para ir para qualquer lado tinha que passar sempre por estas azinhagas. Uma, ia para a direita, para Carnide; a outra ia para outros lados, para Sete-Rios e depois para o Lumiar. Toda a gente passava pelas azinhagas… para ir para Carnide apanhar o eléctrico 13 com o bilhete operário, para ir ao jardim da Luz ou à Feira da Luz, em Setembro… Eu morava aqui, na azinhaga escura…tinha muito pouca luz, àquela altura.” (Carlos “Canhoto”, morador) “Ah, o caminho das azinhagas! O que a gente se divertia para ir para a Feira da Luz ou apanhar o eléctrico…” (Custódia Pereira, moradora). “E havia a Quinta dos Cavalos… Era uma quinta grande onde havia cavalos… Do lado da frente havia a Quinta das Cerejeiras que tinha uma casa muito bonita por onde a gente passava a pé de Carnide para o bairro... Havia a fábrica do tijolo a meio, antes de chegar ao Convento das Freiras, ao lado, havia ali uma estradinha que era a Cova da Onça porque atravessávamos por ali para ser mais perto… Os caminhos, às vezes eram tão estreitos que se viessem dois carros, um teria que recuar. As paredes dos muros estão todas raspadas… e houve lá vários acidentes graves…” (Teresa Guerra, moradora)

“Eram caminhos perigosos porque passavam as camionetas para a fábrica do tijolo e não dava para dois carros se cruzarem. Era muito perigoso… Por isso ficámos muito felizes quando chegou o autocarro.” (Olinda, exmoradora) A inauguração do autocarro – “lá vai o quarenta-eum!” O quarenta e um (Refrão): O autocarro/Quarenta e um Foi o primeiro!/Não havia nenhum O quarenta e um/Mais quem o conduz Já vai pr’o Bairro/Do Padre Cruz. Vem do Rossio/Já não há lugar. Ficou lá outro!/Está aí a chegar (…) Agostinho Coelho Cristino (morador) Com pompa e circunstância, na presença de várias individualidades civis e eclesiásticas (presidente da Câmara, Bispo de Tiara…), e o apoio vivo dos moradores, em 1963, a Carris inaugurou um novo percurso – a carreira 41. Inicialmente ligava o Bairro Padre Cruz ao Rossio e, um pouco mais tarde, aos Restauradores. Apesar de ter representado um indiscutível benefício para a população, a carreira do 41 não acabou com os percursos pelas azinhagas – fosse para apanhar o tal eléctrico 13, fosse para apanhar o recente Metropolitano (a estação de Sete Rios havia sido inaugurada em 1959). Mas, em Julho de 1973, a supressão daquela linha de eléctrico obrigaria à alteração nas rotinas dos moradores, passando o autocarro 41 a ter uma maior procura se bem que a morosidade e irregularidade das carreiras dificilmente correspondesse às necessidades dos utentes(6) “Para a inauguração do autocarro lembro-me de estar na escola e a professora – a D. Maria Augusta pôr-nos todos

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INAUGURAÇÃO DA CARREIRA 41, 1963 (AF-CML)

direitinhos. Estávamos ao pé da capela e lembro de ela nos escolher. Talvez aqueles que tivessem as batas mais limpinhas para irem para a frente. Tenho essa ideia.” (Carminda Prado, moradora). “Quando começou a circular o primeiro autocarro foi uma grande festa! Uma grande festa!” (Olinda, ex-moradora).

de comunidade (vivencial e religiosa) para a qual procurou a colaboração de jovens moradores mais promissores que, intensamente, recrutava como catequistas. “A paróquia tinha uma força muito grande e sempre tivemos padres espectaculares. Eu gostei muito de ser catequista. Fizemos imensos retiros no seminário com o padre Francisco Marques.” (Olinda, ex-moradora).

VIVÊNCIAS E APOIOS SOCIAIS A paróquia, a catequese e a dimensão assistencial: “o bairro tem trabalhos pioneiros”

PADRE FRANCISCO COM CATEQUISTAS (sd, FOTO PARTICULAR)

O meu bairro era normal//Não tinha nada de especial Ao sábado havia a catequese//Que era dada pela D. Lizete E mais o senhor Matias//que não era de fantasias. Me lembro que não tinha//idade, para na catequese Andar mas fugia; mais//uma amiga, para no fim Lá ir parar//Ao domingo íamos à missa Não podia haver preguiça//E no final da palestra O padre Francisco dizia //”meus meninos não tenham Pressa! Não saiam em correria”//E o domingo passava Nesta doce alegria.” (Ana Violante, grupo “Intas&Entas do bairro Padre Cruz”, facebook) Como já referimos, a paróquia teve um peso determinante na organização da vida social do bairro, sobretudo durante as primeiras décadas e até finais dos anos 80. Apesar da relação entre a ditadura e a Igreja Católica ser assunto controverso e de diferentes e leituras(7) o papel da Igreja Católica (via Ordem Franciscana) no Bairro Padre Cruz foi marcante. O seu mentor – pároco António Francisco Marques – foi de intensa proximidade junto dos moradores(8). A intervenção desta paróquia que em muitos pontos se interligou com o trabalho das técnicas de serviço social antecipou, de certo modo, a criação de uma comunidade de bairro. A figura do Padre Francisco (o “padre Chico”) destacou-se na construção desse sentido

SR. ALFREDO E CATEQUISANDOS (sd, FOTO PARTICULAR)

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“O padre Francisco, que foi o primeiro bispo de Santarém, era um homem extraordinário. Desde o início do bairro, quando bairro ainda estava a nascer, ele andava por aí com o hábito e sandálias de franciscano, todos os dias ver como iam correndo as coisas… porque naquela altura apesar da ligação Igreja-Estado ser muito forte, não tenhamos dúvidas que ele fez cá um excelente trabalho de acompanhamento das pessoas… Na zona das oficinas, na paróquia, havia muitas festas. Era uma referência muito forte (…) todas as celebrações de primeiras comunhões, profissão de fé… eram para as catequistas, padre e moradores do bairro uma coisa extraordinária. Nós enchíamos as salas, com grandes festas, mesas muito bem arranjadas… (…) E mesmo em termos pastorais, fizeramse aqui as primeiras experiências, o bairro tem trabalhos pioneiros.” (Elisete Andrade, moradora, presidente da Associação de Moradores) “Sou do tempo em que o senhor padre Francisco andava com a cruz pelas casas na Páscoa. Em todas as Páscoas tínhamos o melhor que pudesse sobre a mesa… quem pudesse… umas amendoazinhas e quem pudesse ter algum dinheiro o senhor padre ia, benzia a casa, estava um bocadinho com a gente… Era como eu lhe digo – isto parecia uma aldeia porque havia isso tudo: havia muita entreajuda… quando alguém precisava de alguma coisa…” (Teresa Guerra, moradora) “E aqui o meu pai foi puxado para a paróquia e parece que foi um milagre. Aqui, no bairro a nossa vida melhorou muito.” (Lídia, moradora)

“Eu adorava o mês de maio! Porque aqui as raparigas – algumas! – do bairro eram muito reprimidas e no mês de maio íamos ao terço e usávamos o véu. Os rapazes estavam na porta da igreja e depois aquilo era uma brincadeira, ninguém rezava o terço… os rapazes levavam as espigas para nos atirar, tiravam-nos o véu… coisas sem maldade nenhuma. E depois, à porta da igreja havia sempre converseta… E na Páscoa tínhamos os padrinhos. Quando saíamos da missa, à porta da igreja, estavam os padrinhos para nos darem as amêndoas. E quem escolhia os padrinhos eram os afilhados. Aquilo era uma espécie de brincadeira mas era muito engraçado… Eu teria uns 12, 13 anos.” (Lurdes Faria, moradora) Foi também a paróquia que organizou as primeiras colónias de férias onde jovens seminaristas da Ordem Franciscana foram monitores. “Era tão importante que estes jovens vissem o mar! Essa experiência foi tão fundamental na vida deles. Pelo convívio, aprenderem outras regras, oportunidade para conviverem de outro modo…” lembrou Isabel Geada. “A parte religiosa aglutinava muitos jovens. Tudo muito organizado, com um crescimento muito bom. Tínhamos encontros, retiros, campos de férias, colónias... Íamos para o Estoril todos os dias – uma vivenda cor-de-rosa muito bonita, com umas instalações muito boas, e ali estávamos todos os dias… Iam duas camionetas cheias de crianças. Era muito bom. No Estoril íamos e vínhamos todos os dias. Íamos para a praia e depois para o pinhal. O padre Francisco também ia e regressava ao final do dia. Não pernoitava lá. Mas houve uma altura em que fomos para a Nazaré. Era muito bom.” (Nazaré, moradora) “Foram princípios de vida muito bons. Os meus filhos adoram o bairro. Participaram na paróquia e fizeram parte de um grupo de jovens com uma senhora que era a D. Nazaré… que fazia parte das colónias que eles adoravam ir. A paróquia puxava muito.”(Fonseca, comerciante e

morador) Nesta fase, a paróquia era o centro da vida comunitária do bairro – dinamizando mas, também, administrando e controlando. Toda a vida social (as festas, o cinema…), associativa e clubística do bairro tinha que ir prestando contas ao padre Francisco Marques, o que nem sempre era bem encarado pelos moradores… CAMPO DE FÉRIAS, 1967 (FOTO PARTICULAR)

“Não tenho uma imagem do Padre Francisco positiva. Ele prestava-se a servir o regime, comportava-se como o regedor da freguesia. Foi um opositor da construção do nosso campo de futebol. Na opinião dele o campo não deveria ter sido entregue ao Unidos. Possivelmente queria ter a tutela do campo, não sei porquê.” (Manuel João, morador) Outros apoios assistenciais – "as irmãzinhas da Assunção" No âmbito dos apoios sociais, a presença das “irmãzinhas da Assunção” faz parte das memórias mais estimadas do bairro. “As Irmãs da Assunção pertencem a uma Ordem religiosa nascida em França, por alturas da Revolução Industrial, com o Padre Pernet. Como as mulheres passaram a trabalhar nas fábricas, esta foi uma reposta que a Igreja Católica tentou encontrar para dar apoio a essas transformações. Essas mulheres passaram toda a sua vida a dar um apoio à família que ia desde o planeamento familiar – dentro da linha de visão da Igreja Católica – às alimentações, aos cuidados da casa, ao cuidar da saúde dos filhos… Grande parte delas eram médicas e enfermeiras e assistentes sociais (…) Com as irmãs era tudo muito próximo e humano. É a diferença entre a missão ou a profissão.” (Elisete Andrade, moradora) “Viemos a pedido da Câmara Municipal porque a Congregação das Irmãs da Assunção tem como carisma

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CAMPO DE FÉRIAS, 1967 (FOTO PARTICULAR)

AZULEJO OFERECIDO POR MORADORAS, CASA DAS IRMÃZINHAS (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

trabalhar com as famílias em situação de debilidade, em situações de fronteira, no sentido de ajudar à estruturação ou reestruturação da família. Viemos 4 ou 5 irmãs, não me recordo bem, por volta de 1963, creio. Trabalhamos em relação, em rede (…) nunca trabalhando isoladamente mas sempre complementares de outras acções. Trabalhámos sempre com o intuito de ajudar as famílias e, nesse objectivo, viemos para o Bairro Padre Cruz. Este era um ‘bairro piloto’, de certo modo, e pretendiam ter todas as infraestruturas necessárias para ajudar as pessoas a ter uma vida melhor. Sabíamos que naquela altura não havia serviço ao domicílio em termos de apoio e serviços de enfermagem… Neste bairro, grande parte dos moradores trabalhava para a Câmara Municipal de Lisboa, varredores, cantoneiros, alguns polícias… A maior parte vinha deslocada de outras zonas da cidade por causa da construção da ponte 25 de Abril; vinham também de perto do Hospital de Stª Maria… Vinham morar para este bairro novo, de casas baixinhas. Creio que haveria 5 000 habitantes no total, contando com alvenaria e lusalite. Eram muitas famílias. Lembro-me de muitos desequilíbrios no modo como os maridos tratavam as mulheres, desequilíbrios de formação, de educação… eram muito acentuados. Mas a mim, o que depois mais me agradou, foi a aprendizagem que estas famílias faziam da nossa actuação, afinal tão pequena, tão localizada (…). Estive neste bairro de 1963 a 1969. Foi para mim um período extremamente rico no sentido de aprender muito mais com a vida das pessoas do que propriamente com uns ‘cursinhos’. (…) E, por vezes, o que mais falta a estas pessoas é oportunidades, creio. Precisamos de aprender sempre mais. E aprendermos uns com os outros. (…) E digo-lhe: era mais fácil naquele tempo. Porquê? Porque estipulávamos as tarefas e os deveres entre nós. E como tínhamos uma vida muito desgastante, aos fins de semana íamos para o pinhal da Paiã. Passávamos lá o dia a conversar umas com as outras, a apreciar a natureza, as coisas bonitas...” Irmã Júlia (no Bairro 1963-1969) “Lembro muito bem das irmãs da Assunção – a irmã

APOIO FAMILIAR, IRMÃZINHAS DA ASSUNÇÃO (sd, FOTO PARTICULAR)

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Xaverine, a madre… era uma, mulher muito inteligente, extraordinária. Tiveram um papel importantíssimo no bairro. Articulávamos muito bem com o padre Francisco, as técnicas da acção social…” (Isabel Geada, técnica de acção social (1963-1971) “Lembro muito bem das Irmãzinhas – a Silvina, Joaquina, Rita, Júlia, Celeste saiu de freira e foi para o IPO (Instituto Português de Oncologia). Elas trabalhavam tanto, tanto … coitadinhas! E levavam uma vida tão dura. E não podiam aceitar nada de ninguém, nem podiam dizer a data do aniversário e não podiam aceitar ofertas, nem uma lembrança…Não sei se lhe falaram como era a casa das irmãzinhas… eram duas casas que estavam ligadas. Só tínhamos acesso à casa principal. E ali tinham a enfermaria e uma capelinha. E estava tudo muito limpinho, muito branquinho, impecável o chão. A casa estava um brinco. Hoje deve estar tudo transformado porque são casas de habitação. E já devem estar separadas. Eu morava nas traseiras e lembro-me de ir, numa aflição, pedir ajuda às Irmãs… e elas lá me sossegaram…” (Lurdes Faria, moradora) “Havia aqui as irmãzinhas da Assunção que, no inverno, tinham muitos doentes e trabalho, e eu vinha ajudá-las voluntariamente. Ajudava na igreja, nos paramentos do padre, nas flores… todas as semanas mudavam-se as flores. Também as ajudava nas limpezas, nas casas. Elas trabalhavam muito. E eu fui ajudá-las e, mais tarde, também me ajudaram muito, quando estive doente. E com o meu marido doente, também… Tive um grande desgosto quando as irmãzinhas foram embora do bairro.” (Isabel Maria, ex-moradora) “As irmãzinhas da Assunção foram elementos fantásticos naquele meio. Não as conheci muito de perto. Ia à capelinha delas, ao oratório fazer uma pequena celebração uma vez por mês porque tinha o sacrário. Elas ajudavam as pessoas doentes e idosos. Elas foram muito importantes enquanto a paróquia não estava organizada.

Mas quando a paróquia cresceu e se organizou elas puderam ir trabalhar para outro lugar onde eram mais precisas…” (Padre António Araújo, no Bairro de 19661981)

padre Araújo que trouxe a bandeira para eu fazer a bandeira desta paróquia. Tínhamos a bandeira do Apostolado de Carnide mas eu queria ter uma bandeira própria do Bairro…” (Cândida, moradora)

Movimentos e grupos de reflexão da paróquia

“Havia a Sagrada Família e o Apostolado da Oração – era um altarzinho que circulava entre as casas das pessoas. Porque a oração era aqui muito valorizada. Era um movimento de acção religiosa que era muito engraçado.” (Olinda, ex-moradora)

Num tempo em que a Igreja Católica partilhava com o poder político a disciplina e a doutrinação dos cidadãos (“Deus, Pátria, Família”), não é de estranhar a existência de vários grupos de vocação católica orientados para e por diferentes segmentos de pessoas comuns, de leigos . O facto de a paróquia estar bem organizada no Bairro Padre Cruz sob a responsabilidade de um padre muito dinâmico justificou a multiplicação de acções mais ou menos informais que a comunidade paroquial foi desenvolvendo. Se bem que algumas destas iniciativas não fossem exclusivas do Bairro Padre Cruz e fossem comuns ao núcleo mais antigo da freguesia de Carnide é certo que existiu um desenvolvimento de cariz muito local com base nos testemunhos dos residentes. De notar que a dinâmica do padre Francisco Marques (e, depois, outros párocos como António Araújo) esteve presente em todas elas. De entre estas iniciativas, conseguimos apurar: O Apostolado da Oração com ligações com a Companhia de Jesus (vulgo, Jesuítas), de origem francesa, ao ano de 1844. O Apostolado da Oração chegou a Portugal em 1864, onde teve uma expressão significativa. Esteve presente em todas as dioceses e na maioria das paróquias. “Formei aqui o Apostolado da Oração. Foi o Padre Araújo que disse para ficar eu no Apostolado da Oração. Havia as associadas, zeladora, vice-presidente, presidenta… agora é que já saí… Rezávamos pelos vivos e pelos mortos. Mas eram responsabilidades diferentes. Era uma missa por cada alma que morria. Fiquei com Apostolado sem saber ler nem escrever. Chegámos a ser umas cinquenta. Eu ia a todo o lado com a bandeira do Apostolado da Oração. Foi o

A Liga Eucarística, “Movimento Eclesial de Leigos” que se autonomizou do Apostolado da Oração. A finalidade específica deste Movimento é instaurar nas estruturas de vida uma forma de espiritualidade cristã mais próxima das experiências de vida de cada um. Inicialmente envolvia apenas os homens que participavam mensalmente na reunião «Cenáculo». “A Liga Eucarística do Bairro Padre Cruz surgiu de uma secção do Apostolado da Oração para quebrar o tabu de que a missa, a comunhão, a confissão, era mais para as mulheres. Tinha 60 membros. Eram só homens.” (Manuel Martins, morador) A Juventude Operária Católica (J.O.C.) que daria origem à Liga Operária Católica (L.O.C.) surgira em 1925, na Bélgica, por iniciativa do padre Joseph Cardin e de um grupo de jovens trabalhadores. O seu principal objectivo era aproximar a Igreja e o mundo operário. Em 1935, a J.O.C. entrou em Portugal. Inicialmente conheceu um grande protagonismo entre a juventude trabalhadora. Todavia, esta situação modificou-se após o 25 de Abril de 1974 pois muitos dos seus militantes entraram em outras organizações, designadamente nos sindicatos. Muito embora o núcleo antigo de Carnide já tivesse alguma tradição e organização nesta área, este movimento conheceu expressão própria no bairro, protagonizada por alguns moradores muito activos.

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PADRE JOAQUIM E MEMBROS DA LOC (sd FOTOGRAFIA PARTICULAR)

“A JOC reunia-se no salão de festas. Tinha por preocupação a formação cívica. Era um grupo de jovens ligados à Igreja. Éramos 20 e tal. A LOC funcionava de outro modo, mais sério e institucional. Congregava muitos homens. Só homens. As reuniões eram acompanhadas pelo padre Francisco.” (Olinda, ex-moradora) Clubes e colectividades – um património singular da história local

CLUBE D'O ANDORINHAS

Um dos pilares centrais na consolidação do sentimento de pertença e de “identidade de bairro” foi a vincada presença e acção das colectividades e clubes locais. Se já o núcleo da freguesia de Carnide revelara uma persistente tradição associativa (a Sociedade Dramática e o Carnide Clube são bons exemplos), também a história do Bairro Padre Cruz está intensamente comprometida com o desenvolvimento de várias iniciativas associativas por parte dos moradores. O afastamento geográfico do Bairro e as relações e sociabilidades entre vizinhos favoreceram essa apetência popular para formar associações que, curiosamente, vão encontrando e construindo os seus nichos e públicos próprios (desportivos, recreativos e culturais), e criando a respectiva identidade clubística. No interior, serão elas as dinamizadoras da vida cultural e recreativa e, com isso, mentoras de um certo bairrismo local, que exibe e reforça o sentimento de pertença ao “meu” bairro. Por isso, sem dúvida alguma que, em muitos momentos, as colectividades funcionaram como os representantes do Bairro, no exterior fortalecendo a sua (boa) imagem. “Os clubes tiveram um papel de relevo porque substituam a ausência de cafés e de comércio lá no bairro. Os “Amigos”, por exemplo, serviam muito para ir tomar café. Os Unidos era mais o desporto, a equipa sénior… O bairro parava para ir ver os jogos dos Unidos. Havia uma grande ligação ao próprio clube. O campo enchia para ir assistir aos jogos. O Amigos da Luz era mais recreativo e cultural. Eram eles

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que organizavam os arraiais no largo em frente à sede. Também usavam a sede para outras actividades culturais. Acompanhava o meu pai aos Amigos da Luz. Eram muito de bairro, mas restritivos… Era um clube que funcionava como uma extensão da casa e por isso também eram selectivos na admissão dos sócios. Ia-se lá para conviver, tomar café, jogar às cartas…” (morador) Muito embora esta variedade associativa tivesse levantado críticas em alguns dos testemunhos (“haver tantas associações tirou força aos clubes”), a verdade é que cada uma teve origem em projectos (e pessoas) diferentes e conquistou um carisma próprio. Em muitas destas associações a figura do director (ou dos fundadores) era indispensável para vincar a identidade carismática do clube ou da associação. Tendo em conta que o regime controlava e vigiava de muito perto estes movimentos associativos, a existência das colectividades, de cariz popular, foi espaço privilegiado para sociabilidades alternativas… apesar da vigilância de “agentes infiltrados” nestes meios. A história do Bairro Padre Cruz foi (e é) profundamente vincada pelas dinâmicas associativas de cariz espontâneo e popular ao longo do tempo. Algumas delas subsistem até ao presente. Andorinhas Futebol Clube O primeiro clube fundado dentro do Bairro Padre Cruz foi o ‘Andorinhas Futebol Clube’. Foi nos primeiros tempos do bairro, por volta de 1960-61. Durou uns 5 anos. Era um clube de bairro, para rapazes do bairro. Destinado apenas ao futebol, jogavam no antigo campo da cerâmica (próximo onde hoje tem o campo o Clube Atlético e Cultural-CAC). O equipamento era de riscas, pretas e brancas. Porque não tinham estatuto formalizado, o Andorinhas Futebol Clube dependia do Carnide Clube, que era um clube de atletas já federados, sediado no centro histórico de Carnide. O Andorinhas terminou pouco tempo

após o clube de futebol d’O Unidos se ter-se instalado no Bairro Padre Cruz (1961-62). Os seus “atletas” passaram a jogar pelo Unidos, um clube já federado com outra força e tradição. “Os primeiros jogadores dos seniores dos Unidos vieram do Andorinhas clube que jogava no Campo da Cerâmica onde fica hoje situado o Campo do CAC, tinha o equipamento às riscas preto e branco, alguém se lembra?” (José Martinho, morador) “Primeiro não havia campo. Íamos jogar para o ‘campo da cerâmica’ onde é mais ou menos o CAC [Clube Atlético e Cultural, adiante referido]. Um terreno baldio onde se fez um sítio para tomar banho, uma balizas e pronto… era o Andorinhas que jogava lá e mais outros. Ao domingo havia jogos durante todo o dia. Era muito giro. Era contra gente que vinha de fora do Bairro… “ (Carlos Pedro, ex-director d’Os Unidos, morador) Clube de Futebol Unidos O clube de futebol Os Unidos é anterior ao Bairro do Padre Cruz. Nasceu a 1 de Junho de 1940, em outro bairro camarário da cidade, na Quinta da Calçada. Teve por fundadores Edmundo Reis, José Lima Alves e Fernando Matos Martins (Figueiredo, P. (2006): 61). Quando aquele bairro começou a ser demolido alguns moradores foram transferidos para o Bairro Padre Cruz trazendo o clube “vestido”. Inicialmente o clube d’Os Unidos ocupou uma minúscula sede no edifício do Centro Cívico. A origem deste clube é comum a muitos outros clubes desportivos locais – rapazes que gostam de jogar futebol e que queriam desafiar outros clubes de iguais vontades. Um dos primeiros sócios, Etelviro de Jesus (hoje, a morar no Bairro das Furnas) partilhou alguns segredos e curiosidades desses primeiros tempos: “Foi o Alberto Mouraria, que nem era lá do Bairro da Quinta da Calçada que, reparando que não havia clube nenhum

naquele bairro, desafiou a rapaziada. Cada um deveria trazer um amigo e foi assim que se constituiu o primeiro grupo. Era tudo rapaziada da bola. Manuel Gonçalves de Almeida, conhecido pelo “puto” foi o primeiro guarda-redes a vestir a camisola do clube. Era meu irmão. Mas ele ficou guarda-redes porque não sabia jogar à bola. Quem não sabe jogar à bola vai para guarda-redes! Pagaram 15 ou 20 tostões para comprar uma bola. Quando já tinham um grupo juntavam-se num campo pelado e jogavam. Nunca perdemos um jogo. Eu jogava na 2ª categoria porque dantes não havia reserva. Só joguei duas vezes, por falta de jogador – no Seixal e perto de Sacavém. Nessa altura, o Unidos já tinha mais de 50 sócios. Mas os moradores do bairro eram todos adeptos. Rapazes e raparigas… Houve algumas provas de atletismo… lembrome que os corredores eram os vendedores dos jornais, os ardinas, e tanto corriam pelo Benfica, pelo Sporting, pelo Unidos… Nestes clubes mais populares corriam a troco de uma cerveja… e houve um rapaz da Quinta da Calçada que morreu na corrida… O nome Unidos nasceu de uma reunião que se fez para o efeito e para escolher a direcção. Uns queriam Unidos da Quinta da Calçada… mas havia lá um rapaz que vinha de Alcântara, o Aníbal José, que por simpatia com o Clube de Futebol do Belenenses sugeriu Clube de Futebol Unidos. E o símbolo é igualzinho ao símbolo do Belenenses. Só as cores é que são diferentes. Para mim, é dos símbolos mais bonitos que existem… Na Quinta da Calçada as casas também eram de lusalite mas com três cores diferentes, conforme o tipo de casa (tipo 1, 2, ou 3) – vermelho, azul e verde. E essas são as cores das camisolas do clube a que se juntou o branco que representa a própria lusalite… O primeiro jogo d’O Unidos foi perto das Amoreiras, no campo do Aliança. Fomos jogar com um clube que ganhava todos os jogos. Era o Cascalheira. Dali saíram jogadores para o Benfica. O problema é que o nosso equipamento ainda não estava feito. Então tivemos que ir alugar calções, camisolas, meias… tudo preto. Foi num sapateiro do Arco

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SÓCIO D'OS UNIDOS (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

INAUGURAÇÃO DA SEDE DO CLUBE DE FUTEBOL OS UNIDOS, 1962

EQUIPA DE FUTEBOL D'OS UNIDOS, 1971-72

do Cego que alugava os equipamentos. E ganhámos 5-3! O primeiro jogo… ganhámos! E foi uma romaria de Campolide até ao Bairro da Quinta da Calçada! O Unidos ganhava todos os jogos… Só havia uma equipa em Lisboa que era mais renhida – o Beneficência Futebol Clube que era à base de jogadores do Palmense. E o Palmense nessa altura era da 3ª divisão! Era com eles – mas só com eles – que o Unidos perdia. De resto não havia quem ganhasse ao Unidos! O clube foi para o Bairro Padre Cruz porque a maioria dos moradores foi para lá morar. E levaram o clube com eles. Eu ainda fui ver jogos ao Bairro Padre Cruz. Eu estava a par de tudo. Até quando disputou para a Taça de Portugal…” (Etelviro de Jesus, sócio antigo d’O Unidos, exmorador na Quinta da Calçada) “Cheguei ao clube dos Unidos muito cedo. Já conhecia os Unidos antes de viver aqui. Vivia na Boavista e tinha os avós paternos a morar na Quinta da Calçada. Passava as férias na Quinta da Calçada. A minha relação com os Unidos era já dali. Quando o clube veio para aqui já não era novidade para mim. Os Unidos aparecem aqui, no Bairro Padre Cruz, com os 100 associados. Começámos num cubículo com 10 ou 12 m2… no edifício do salão de festas, cá em baixo. Não havia luz. Era com velas que os primeiros sócios se reuniam. Depois do 25 de Abril fizemos uma ocupação simbólica por parte dos sócios. (…) Uma das situações mais difíceis foi a conquista das instalações. Havia ali muita influência da Legião Portuguesa, uma vigilância calada… e para ser dirigente associativo tinha que se dar conhecimento e aprovado por outros departamentos do Regime que confirmavam a idoneidade. Os clubes também organizavam outras festas – bailes, carnavais, distribuição de bolos por ocasião do aniversário dos Unidos (nos 30 anos, foram 30 bolos distribuídos pelas famílias mais carenciadas…)(…) Na minha opinião a criação de vários clubes não favoreceu o Bairro, os moradores. Criou-se algum divisionismo (…) O bairro não ganhou com isso. Criou-se uma divisão. Se as

GRUPO RECREATIVO OS AMIGOS DA LUZ, 1967

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pessoas se mantivessem unidas conseguiriam fazer mais alguma coisa….” (Manuel João, ex-membro da direcção, morador) O Clube de Futebol “O Unidos” está inscrito na Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e Recreio desde Junho de 1967 e na Associação de Futebol de Lisboa desde 1972. Grupo Recreativo “Os Amigos da Luz” O Grupo Recreativo Amigos da Luz foi a primeira colectividade, legalmente constituída, que nasceu dentro do Bairro Padre Cruz. Foi formalizada em 1967 mas teve a sua origem muito antes, em encontros informais, entre amigos moradores que se reuniam na leitaria, perto do mercado. Um dos impulsionadores do grupo – Germano Ferreira – nascera em Alfama. E Alfama era bairro-berço de muitas colectividades. Como tal, Germano Ferreira trouxera “aquele bichinho” – a vontade em formar uma colectividade, fazer uma associação. Fixaram a primeira “sede” na pequena leitaria “que era a única coisa que havia como cafezinho do bairro.” Foi pela voz de Domingas Ferreira, a filha, que mais escutámos: “Com umas cadeirinhas, umas mesinhas cá fora e fizeram ali o seu ponto de encontro que reunia o padeiro, o senhor do talho, a peixeira… Cada um contribuía com qualquer coisa e ali faziam o almoço. Os homens, porque as mulheres, não. Nós, os familiares, íamos ter com o meu pai, estávamos ali… ainda não havia o ‘ir à bica”. Estávamos ali, bebíamos um sumozito, um pirolito… Eu era uma rapariga nova e estávamos ali os nossos bocadinhos muito bem. O meu pai era uma pessoa muito afável. O meu pai era mais velho. Era o senhor Germano. E todos o respeitavam. Porque apesar de ser um estivador, um homem rude… dentro da sua pequenez era uma pessoa muito culta. Mesmo antes do 25 de Abril, sabia coisas da política… E quando apareceu o Totobola o que é que ele se lembrou?

Iam ver os resultados das colunas de cada um, e aplicava multas quando não acertavam. E punham essas multas – cinco tostões… num mealheiro. Essas receitas davam para depois fazerem um almoço… Aqui no bairro havia pouca coisa. E os nossos maiores divertimentos eram as excursões. Ainda sou do tempo em que se demorava três dias para chegar ao Porto. E o meu pai organizava essas excursões juntamente com os outros elementos. E assim uniam as famílias porque era a única maneira das famílias poderem ir porque cada casal tinha muitos filhos. E então começaram por aí… E o meu pai era também muito amigo do fado, tudo relacionado com aquela vida “alfamista”, bairrista… Nessa altura, quem mandava no bairro era o padre Francisco. Era ele quem mandava. E quando o meu pai começou a querer organizar o programa de fados no salão, ou o baile… metiam uma notinha dentro de envelope e iam ao Padre Francisco pedir autorização, com aquele envelopezinho que era para a igreja… e faziam-se ali muitas festas, muitos bailes, muita coisa boa para a época. Quando foram para registar o nome não puderam porque já havia outra colectividade com esse nome. Teve que ficar “Os Amigos da Luz”. Embora tenha nascido antes, só foi formalizada em 1967. Entretanto, junto à “casa branca” havia uma barbearia muito, muito, pequenina.(…) E, naquele primeiro espaço, nós reuníamos na altura do S. Martinho, púnhamos fogareiros cá fora e assava-se ali as castanhinhas e bebiase água-pé… Mas aquilo resumia-se a meia dúzia de casais que passava ali os seus bocadinhos, os seus tempos de confraternização. (…) Depois souberam de uma outra salinha, perto daquela, vazia e maior… Foram pedir ao Padre Francisco. Ele era a pessoa que mandava no bairro e não era muito fácil convencê-lo… O meu pai teve que dar provas, explicar-lhe que era só para as famílias terem um ponto de encontro, confraternizarem… Começaram a pagar uma renda simbólica. O edifício era da Câmara, mas havia um envelope para a Igreja… e então o Padre Francisco autorizou a cedência. Sempre era um bocadinho maior… mas foi crescendo, porque eram os sócios que iam

propondo outras pessoas para membros e todos queriam ser sócios. Os fundadores foram o meu pai e outro senhor – o poeta Lima. Um senhor que era muito mais velho que o meu pai e a quem, por respeito, foi dada a primazia de ser o sócio número 1. Fundadores, para além deles, era o senhor Alfredo Bombeiro, o Quaresma, o avô do Paulo Quaresma, o Rafael… que já veio mais tarde. Houve mais outros que já faleceram… Foi o poeta Lima quem fez o hino dos “Amigos da Luz”. Ele chegou a fazer versos para a Amália Rodrigues… fez os versos para os Amigos da Luz e quem cantava o hino era eu. Na altura eu cantava muito bem… Eu era a ‘estrela’ d’Os Amigos da Luz. Mas antes de tudo isto acontecer, o meu pai fez aquilo crescer muito. Era mesmo o ponto de encontro de todas as famílias do bairro. (…) Em resposta a um novo pedido, a Câmara cedeu um novo terreno. Foi então que se iniciou a construção de uma nova sede, tudo feito com o esforço e braços dos sócios! Demorou um ou dois anos a construir pois o dinheiro não era elástico… Um, comprava umas sacas de cimento e oferecia, outro comprava umas quantas tijoleiras… e foi-se fazendo assim. Com o crescimento da colectividade foram pedindo autorizações até que a sede se alargou, acrescentaram-se mesas, comprou-se a televisão. Até que chegou a uma altura em que o meu pai – o meu pai tinha ideias fabulosas! – contratou um fotógrafo. Um dia teve mais essa ideia! Combinou com todos os sócios trazerem a família para tirar a fotografia do sócio com a respectiva família... E depois o meu pai fez os quadros. E havia um recanto da sede onde estavam as fotografias – desde a família do sócio número um, dois, três…. e por aí adiante. Toda agente achou a ideia muito bonita. Sempre houve um bom relacionamento entre as colectividades. O meu pai até era sócio dos Unidos...” (Domingas Ferreira, moradora)

GRUPO RECREATIVO OS AMIGOS DA LUZ, 1968

“Ai, os Amigos da Luz eram uma família! A Domingas era uma rapariga fantástica! Cantava tão bem! Fizemos lá festas de passagem de ano… um convívio muito bom. E não entrava lá qualquer pessoa… E o Germano recebia a

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FUNDADORES DO GRUPO RECREATIVO OS AMIGOS DA LUZ, 1968

MARCHAS DE CARNIDE, NO BAIRRO (1962)

pessoa com o cocktail que era “o amigo”… e não havia máquinas de café ainda e cada um fazia o seu tofina… e havia respeito. Mesmo entre pessoas muito próximas, havia respeito. Nas festas de Natal faziam lanches muito bonitos para as crianças e davam-se brinquedos. O Grupo Recreativo ‘Os Amigos da Luz’ – que o avô do Paulo Quaresma ajudou a criar – era um belo salão de entretenimento, fados, depois ficou mais para jogo, passeios e excursões, colónias com crianças, filhos dos sócios, festas de Natal com os filhos dos sócios… Funcionou muitos anos e o meu marido não se conforma daquilo ter fechado…” (Teresa Guerra, moradora)

1968 A 1974: OS ARTESÃOS DO BAIRRO: “O BAIRRO ÉRAMOS NÓS” O meu Bairro Bairro foste tu / O dos meus sonhos. Vieste ao encontro / Em pensamentos. Passou as saudades / Casa posta Assim acabou/ Os sofrimentos. Bastantes anos sempre / Sempre à espera Desta humilde casa / Mas sem luz Foi Deus quem traçou / No coração Para aos pobres dar / O Padre Cruz. Andava / Sempre pensando Na minha vida / E no meu lar. A minha casa / Para mim É um altar… (bis) Alberto Artur Mendes Uma Vida, um Testemunho, (publicado em 1988)

Construído e festivamente inaugurado, o bairro ficou mais entregue a si próprio. Mantinha-se organizado em quatro eixos fundamentais: a orientação pastoral (o

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pároco de Carnide – Francisco Marques), a providência dos cuidados de saúde no posto médico (médicos e a equipa das enfermeiras), o acompanhamento social (técnicas da Acção Social, designadamente Isabel Geada e as Irmãzinhas da Assunção) e a vigilância e cumprimento da “boa ordem e costumes” por parte do fiscal. Mas acrescentaremos agora um quinto pilar – a dimensão desportiva e recreativa que os clubes O Unidos e Os Amigos da Luz muito fomentaram. A actividade de apoio social também se intensificara (colónias de férias, passeios organizados…) e, em 1973, é Criado o Centro Social Paroquial de Carnide que assume a gestão da actividade social do bairro. Todos os equipamentos estavam activos e funcionavam em pleno. O “salão de festas” ou Centro Cívico confirmava-se como pólo vital na dinamização da vida social e cultural do bairro – festas, cinema, convívios vários… Iniciava-se um período intenso na dinamização da identidade de bairro ainda a relembrar convivências e ambientes da ruralidade. As relações de convívio e de sociabilidade começavam a fortalecer-se. “Isto era um viver como na província”; “Isto era uma aldeia. Era uma aldeia no espaço físico e vivido”, conforme sintetizou José Martins. Este foi um período de convergência de narrativas individuais associadas à construção de uma representação/narrativa comum – a história do Bairro a construir-se com as vidas, nos quotidianos – “O bairro era isso: o bairro a fazer-se no dia-a-dia” nas palavras de Jorge Humberto. Verifica-se, então, que a concentração do casario em formato aldeia, a uniformidade e o acanhamento dos fogos (“eram casas de bonecas”; “era tudo muito minúsculo”), os quintais frente a frente, os arruamentos apertados, os caminhos e vias pedonais, o uso comum dos equipamentos, e a distância em relação à cidade… intensificaram o convívio entre moradores e a construção e partilha de referências identitárias, conforme já sugerimos. Este sentido de pertença (“somos filhos do Bairro!”) vincou identidades comuns e diluiu as fronteiras entre interior/exterior – privado e público, no território do

bairro. O espaço “rua” era intensamente habitado; era um elemento muito consistente e real porque estruturante e vitalizador das relações de vizinhança e da identidade de cada rua – “cada rua era uma família” e “cada rua era a mais bonita”… Ao mesmo tempo o bairro tornava-se “interior” e singular (o “meu bairro”) – criava uma paisagem íntima – tão só um modo viver, mas também uma representação de um “modo de ser”, partilhado: “Nós tínhamos muito orgulho no bairro. Tínhamos um coração grande… um coração grande!” (Fernando Pereira, ex-morador). Mas também é preciso reconhecer que estes foram “modos de estar e de ser” que se “encaixavam” nas margens sociais formatadas pelo próprio regime da ditadura. Era conveniente ter esta população pacificada, “pobrita, mas alegrita”. Uma população que ia (sobre)vivendo em modos de “pobreza sustentada” (alguém o disse) e conforme o poema de Alberto Artur Mendes tão bem ilustrou. O ambiente do bairro – “O bairro vivia! O bairro respirava!” “O bairro era muito humano.” Isabel Maria, ex-moradora “Éramos pobritos mas alegritos” (José Augusto Gonçalves, morador) O bairro não era apenas um cenário onde os moradores vivem o dia-a-dia, percebeu-se. É muito mais: a dinâmica e o interesse pelo bairro confundem-se com as vidas: “O bairro éramos nós”, conforme sintetizou Fernando d’Oliveira. Nesta perspectiva, o cenário da cidade grande torna-se, agora, bem menor. A importância do bairro cresce positivamente, é central, nas convivências diárias e nas referências dos moradores. “O que caracterizava o bairro era aquele ambiente do diaa-dia. Era o espírito do bairro vivido no dia-a-dia. Eram as

pessoas. Era muito bom. Muito bom.” (Jorge Humberto, morador) “A intervenção que tínhamos foi sempre a de procurar arranjar as melhores situações e condições para os moradores. Havia uma identidade de bairro muito forte.” (António Cristino, morador) “Este bairro foi um grande privilégio desta Lisboa. Na democracia também se havia de dar voto ao passado porque traz muita consciência sobre o presente e o futuro. A comunidade era muito viva. A comunidade actuava. Isto foi uma grande maravilha. Eu tive um crescimento que recordo com a maior saudade. Foi tudo muito bem montado e tudo muito bem acompanhado… Vimos crescer o bairro com grande alegria. Nos estávamos até à meianoite, até às 2h a viver a rua. A viver o bairro.” (Olinda, exmoradora) “O bairro era muito zelado. Muito estimado. Tudo cheio de flores. Estes quintais à frente no Verão… nós levávamos umas mantas de trapos e deitávamo-nos na relva. As casas eram muito quentes e nós ali refrescávamos e ali ficávamos a conversar… era tão bom! Nem fechávamos as portas… Por isso é que este bairro era assim. Era calmo, limpo, bonito, muito arranjado. Porque não se degradava nada. E como era assim cada um tinha orgulho em estimar… se um punha amores-perfeitos, outro punha malmequeres, pintavam-se as grades, ninguém mexia no quintal de ninguém… Os pais responsabilizavam-se pelos filhos.” (Custódia Pereira, moradora)

FAMÍLIA DE MORADORES, 1963 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

”O que o bairro tinha era essa sociabilidade – era irmos todos para a escola de manhã, o brincar juntos, o fazer fogueiras, o correr a rua de um lado para o outro. A rua tanto era um espaço de liberdade como um espaço de controlo. Todos nos conhecíamos e isso é uma forma de vigilância branda.” (Jorge Nicolau, ex-morador) “O bairro era muito comunitário. E ainda temos isso na

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CASA DE GERMANO FERREIRA sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

minha rua. E é isso que não quero que se perca (…) o bairro era muito bom. Usávamos um cordelinho através da caixa de correio para abrir a porta. Toda a gente fazia isso. E de noite ficava o cordel na porta porque nos esquecíamos… havia muita confiança.” (Domingas Ferreira, moradora) RUA DO BAIRRO, 1961 (AF-CML)

Foi neste contexto de tensões que a população, já “comunidade de bairro” se vai revelando artesã em outro sentido. Já não apenas como operários-construtores da cidade grande (a tal capital do Império) que os “chamara” dos campos e lhes dera o trabalho a troco de magros salários, mas fazem-se artesãos na construção de um outro habitar, um humanizar e reivindicar um território que, cada vez mais, identificam como “o nosso bairro”. Nessa “manufactura” de relações, os moradores-vizinhos partilham vocações e valorações – cultivam um certo bairrismo a que também não é alheia a projecção da ancestral ruralidade no espaço urbano… As “ruas solidárias”, os quintais de cada um e as hortas que muitos cuidam, são expressão dessa “ruralidade perdida”, aqui e agora, permitida e reencontrada. A forte identidade de rua – “os rios solidários” “As ruas corriam como rios solidários.” António Cristino (morador) “Há dias lembrei-me de um pormenor interessante. Na altura em que havia poucas televisões, nós íamos para a janela da casa da vizinha que tinha televisão para vermos de fora para dentro a TV (isto, no verão)… Outro pormenor engraçado que me lembro: éramos 8 irmãos e a vizinha do lado era a única com telefone (ainda bem que era ao nosso lado!) Nós tínhamos muitas actividades extra escola e recebíamos muitos telefonemas. A vizinha deixou de ir bater à nossa porta para chamar, passando a usar outro método: batia na parede do seu quarto e gritava "é o telefone para a Leonor…!". Entretanto, começámos a conhecer melhor o som do telefone e logo que o ouvíamos

RUA DO RIO SABOR, 42 (sd, FOTO PARTICULAR)

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corríamos para a parede, encostávamos o ouvido… e dessas vezes eramos nós que gritávamos: "oh vizinha! É para a Leonor? Eu vou já!" (Leonor Olivença, ex-moradora) “Neste desenho urbano há um planeamento claro. Definese uma hierarquia entre as ruas. A rua principal é onde passam os transportes, o autocarro. Todas as pessoas que vão apanhar o autocarro fazem percursos pedonais que também estimulam a interacção, a conversa, entre os vizinhos… Os pontos de interacção eram diferentes consoante fosse fim-de-semana ou dia de trabalho. Ao fim semana o mercado e a paróquia, a igreja, eram pontos influentes nessa interacção. E, possivelmente, da força dessa interacção nasce a identidade e a participação cívica muito forte que este bairro conhece. Era frequente ver as pessoas no quintal a conversar com o vizinho da frente. Este desenho de casa e rua leva a que, todos os dias, as pessoas se cruzem e interajam umas com as outras, as crianças brincam nas ruas, os jovens namoram nas ruas… os velhos conversam nas ruas. O que inicialmente fora elemento de segregação social – a dimensão reduzida das casas – levou a que o espaço de excelência fosse a rua e o quintal. A escala das ruas proporcionava proximidades e controle sobre quem passava e as crianças que ali brincavam. A escala da rua é muito importante para entender a vida e o ambiente deste bairro. É importante devolver à rua a memória que ela já tem.” (Jorge Nicolau, ex-morador) As rosas nos quintais e as couves nas hortas “Havia um jardineiro sozinho que dava conta disto tudo. Tínhamos isto que era uma maravilha! Todos os espaços estavam cuidados. Era o pai do Armando, do quiosque – creio que era o Sr. António. Tinha muito orgulho no bairro. Cuidava e fazia cuidar. A parte social era importante não há dúvida, mas a parte urbanística também. É fundamental porque as pessoas têm que gostar do sítio onde vivem.” (Anónimo, morador)

“O bairro era muito bonito. Nós ao domingo saíamos para ir ver os quintais, passeávamos para ver os quintais. Percebia-se que havia pessoas que tinham muito gosto em decorar os seus quintais, a fazer dele um jardim, a colocar o seu repuxinho, uma estatueta…” (Maria da Graça, exmoradora). “Aos finais dos dias quentes as mulheres juntavam-se à conversa nos quintais, a fazer malha, a fazer crochet… toda a gente tinha o seu jardim com o seu perfume que eu sei cá… este é o bairro das rosas. Ai, mas que lindo bairro, toda a gente dizia… e as crianças não eram crianças que estragassem. Os pais tinham rigor na educação dos filhos… E havia castigos se eles estragassem. E agora?” (Teresa Pedra, moradora) “Gosto muito do bairro. Quando eu vim para cá viver era muito bonito. Quando vim para cá morar era um jardinzinho quadrado à frente onde se tinha flores e quintais. Lembrome que o meu pai tinha aquilo tudo com videiras… As pessoas tinham muita vaidade. Os jardins não eram murados e o Presidente França Borges veio aqui ao bairro despejar camionetas de tijolo, areia e cimento. Despejou tudo ao pé da igreja e depois cada um acarretava para as suas casas para fazer os murinhos à frente. Mas tinha regras: eram dois pilares de maneira a que ficasse um murinho baixinho para que ficasse tudo igual Ainda há aqui, na rio Sabor uns três ou quatro todos seguidinhos a lembrar como era… como mandava a regra. O meu está mais ou menos (…) Nunca desmanchámos muito…” (Teresa Guerra, moradora) “O meu pai deixou o pessoal fazer as hortinhas ali à volta. Os moradores eram pessoas que vinham do Norte e das Beiras. O meu pai nunca recebeu rendas disso… um ou outro ajudavam pela altura das ceifas… mais nada. O meu pai nunca alugou nada. Era rendeiro, com a cláusula que sairia quando a Câmara entendesse… O meu pai vendeu as vacas em 1973. Às vezes os moradores ajudavam o meu pai. Sazonalmente. Eram funcionários públicos, saíam às

5h e vinham ganhar mais uns cobres. Havia pessoas da Pontinha que também lá tinham horta. Havia turnos para vigiar as hortas.” (António José, filho do Sr. Arménio) “Este bairro é rodeado por quintas, por hortas… A minha mãe tinha três hortas e todos nós trabalhávamos nas hortas. Os filhos que andavam na escola de manhã, à tarde trabalhavam nas hortas e os que andassem à tarde, tinham ido de manhã. A horta era para nosso sustento. Tínhamos batatas, cebolas, grão… A maior parte das famílias do bairro tirava dali o seu sustento… E ainda existem hoje muitas pessoas que o fazem. Toda a gente tinha horta e recordo-me que tínhamos dois cães … e até eles trabalhavam! Quando a minha mãe semeava o grão e depois apanhávamos por esta altura do calor… e o grão larga um pó que deita imensa comichão. Mas a minha mãe ceifava o grão e todos trazíamos um monte às costas… Todos nós, e os cães também. Púnhamos uns alforges, púnhamos uns enchumaços de cada lado e lá vinham os cães também… a nossa era a família mais numerosa da rua. Não temos registos nenhuns porque ali ninguém tinha máquinas fotográficas…” (Fernando Pereira, ex-morador) “O facto de a casa ter um quintalinho ajudava muito. E havia as hortas em redor onde os homens e as mulheres do bairro trabalhavam e cavavam. Havia de tudo. Até na altura de semear a batata eu ficava em casa e a gente os três trabalhava. A minha mãe cortava a batata, já tinha a terra cavadinha. Havia os regos e arranjava-se um pau para medir e num dia a gente semeava as batatas. Duas sacas. Era para nosso consumo ou dar. Mas as batatas eram para nosso consumo. Até arranjámos umas despensas debaixo das escadas onde as guardávamos…” (Carminda Prado, moradora) Estórias das infâncias: as chinchadas, os esconderijos entre trigos e papoulas “E lembro-me que o meu pai andava atrás dos miúdos do bairro porque iam construir cabanas para o meio do terreno

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RUA DO RIO LIMA, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

FAMÍLIA DE MORADORES NAS HORTAS DO BAIRRO (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

e andavam a calcar aquilo tudo… E quando era o tempo da espiga, era vê-los! Os miúdos vinham à chinchada. Às vezes o meu pai zangava-se… sobretudo se lhe estragavam as árvores, se lhe partiam algumas pernadas. Um dia, aborreceu-se e cortou aquilo tudo. “Pronto, acabou-se”, disse. Havia muitas pessoas a comprar leite na quinta do meu pai. Muitos miúdos do bairro cresceram com o leite das vacas do Arménio.” (António José, filho do Arménio) “Lembro-me de ir parar à casa do fiscal umas três ou quatro vezes por causa da chinchada. Tinha um canto onde punha os rapazes de castigo. As pessoas tinham ameixeiras, nespereiras, videiras e nós, rapazolas, lá íamos… As grandes maldades daquela altura aos olhos de hoje não eram nada! Era tocar nas campainhas, andar à chinchada, jogar à bola, à caça ao gato… os nossos brinquedos eram o arco e a gancheta, o pião… que já não era para todos, o pontapé na lata, os carrinhos de esferas…” (Anónimo, morador)

RUA DO RIO LIMA, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

“Passava-se por várias quintas e nós entretínhamo-nos a apanhar a fruta. Não era por maldade nem para estragar. É que a fruta assim sabia sempre melhor… A Quinta dos Covões era a melhor quinta para a fruta! Tinha fruta que era uma loucura! Todo o tipo de fruta! Tinha um vigilante que guardava aquilo a troco de tiros de sal. Mas houve um dia em que estranhamente o homem deixou-nos tirar a fruta. Mas estranhámos. Depois ficámos com uma dor de barriga que nem conseguíamos ir à escola. Foi terrível. Percebemos que o vigilante colocara um pó na fruta…” (Carlos Canhoto, morador) “Tive uma infância muito feliz no bairro. Íamos buscar o leite às quintas, em frascos do café tofina, vínhamos a beber leite pelo caminho entre trigo e muitas papoulas… Ai, e fazíamos uma coisa, uma coisa que hoje quando penso até tenho vergonha… Íamos apanhar caganitas de ovelhas para adubar os quintais! Também apanhávamos ervas para os coelhos… Íamos jogar ao ringue, à apanhada, apanhávamos flores… Digo-lhe como

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festejávamos as nossas festas de anos: levávamos o nosso gira-discos de plásticos, íamos para perto da encosta da Serra da Luz… Levávamos uns cobertores, um bolo, arroz doce… o gira discos a tocar e dançávamos… Hoje está muito feio mas naquela altura tinha um descampado e tinha uma vista muito bonita…” (Lurdes Faria, moradora) “No caminho para a antiga fábrica do tijolo, havia uma grande vacaria. Muitos de nós, miúdos do bairro, íamos lá comprar leite. Era mais fresco e barato. Eu levava um garrafão de 5 litros, com alguns amigos e amigas e quando chegava, o garrafão já Ia a meio! Bebíamos o leite, ainda quente, pelo caminho. Nesse tempo não havia doenças!” (José Martinho, morador) “Lembro-me de duas brincadeiras – ir à fábrica de cerâmica de Carnide roubar os restos dos tijolos para fazerem os muretes; íamos para os campos apanhar as fezes dos animais para adubar os quintais e as hortas, levávamos uns baldes… E apanhar as flores silvestres para enfeitar as casas… “ (Maria da Graça, ex-moradora) “Nós éramos vândalos mas tínhamos a nossa regra. Jogávamos ao ‘pontapé’ na lata… era uma espécie de escondidas. E os carrinhos de esferas que descíamos a “rampa das irmãzinhas” – que era do lado mais sossegado. Isto foi em 68-69. Eu tinha 6 ou 7 anos. Íamos às oficinas, às carpintarias pedir restos de madeira, tábuas e depois havia as rodas de esfera e era ver quem fazia o melhor carro. Levávamos aquilo muito a sério. Nós tínhamos vantagem porque éramos muito irmãos… Quando nos espalhávamos íamos direitos aos caniços. E aparecíamos todos rasgados em casa …” (Fernando Pereira, exmorador) “Gostávamos muito de vir para o meio dos campos de trigo fazer as nossas barraquinhas, cabaninhas, esconderijos… as nossas sedes. Tínhamos o cuidado de ir todos em fila, em carreirinha para não estragar muito o trigo… Até que aparecia o dono do terreno, o Arménio, e aí era pior a

emenda que o soneto – o homem punha-se a ralhar connosco e nós que até aí fugíamos cada um para seu lado, espezinhando muito mais e aquilo ficava tudo danificado…! Havia um grupinho que tinha bicicletas… e brincávamos com os nossos arcos e ganchetas depois com dois paus e um pneu de automóvel. Éramos as nossas brincadeiras da altura. Às vezes íamos até ao jardim da Luz pescar os peixes. Tínhamos em casa peixes que vinham do lago do jardim da Luz. Depois o bairro tinha uma lagoa, uma charca. Aí íamos aos peixes-cabeçudos, aos girinos. Depois ficávamos muito espantados como eles se transformavam em rãs. Esse charco fez-se depois um aterro porque era perigoso… Em frente à igreja. Hoje está vedado, mas naquela altura não estava. Era relvado e era lá que fazíamos os nossos conhecimentos e amizades. E aconteciam os torneios de futebol inter-ruas. Hoje é tudo mais estruturado, mais organizado mas menos espontâneo também…Pois era assim que os garotos se organizavam, relacionavam e conheciam. E até havia prémios!” (Fernando d’Oliveira, morador). “A s b i c i c l e t a s ? ! U m l u x o ! N ó s é r a m o s m a i s evoluídos…andávamos de carro… de carrinho de esferas” (Jorge Humberto Silva, grupo “Intas&Entas do Bairro Padre Cruz”, no facebook) “Claro que também tínhamos esses bólides, Jorge. Falta dizer que as bicicletas eram as que os pais usavam para se deslocar, quando saíam de casa às 4 da manhã, para ir trabalhar, e que nós surripiávamos aos fins de tarde” (Fernando d’Oliveira, grupo “Intas&Entas do Bairro Padre Cruz”, no facebook) “Eu cá tive um carro de esferas, feito pelo Luís Carlos, com banco estofado com alcatifa!!! (Helena Mascarenhas, grupo “Intas&Entas do Bairro Padre Cruz”, no facebook) “Havia sempre alguém ou qualquer coisa para nos entreter. Seja jogar à bola, a fazer corridas com os carrinhos de esferas, a jogar ao arco, ao pião,… sei lá. Eram tantas as brincadeiras que nunca nos aborrecíamos”. (Aníbal Santos, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz,”

facebook) A água da Fonte das Lágrimas “Às vezes íamos lá abaixo, à Fonte das Lágrimas, buscar água… Aquilo era uma aventura, porque éramos miúdos e, depois, os garrafões caíam e entornavam. Era uma risota. E tínhamos que voltar atrás e respeitar a fila de quem já lá estava, outra vez. Era muito engraçado… Toda aquela zona da encosta da Luz era riquíssima, com muita água. Quando fazíamos os nossos presépios íamos lá buscar o musgo. Havia muito musgo. Naquela altura havia muitas alcachofras para os santos populares… e havia tanta gente para as apanhar que tínhamos que ir muito cedo. A Fonte das Lágrimas era motivo de disputa com o Bairro da Urmeira – eles diziam que a fonte era deles e nós dizíamos que a fonte era nossa!“ (Lurdes Faria, moradora) O Bairro da Urmeira: “os de cima estavam sempre no cavalo” “E havia guerras, guerras com os da Urmeira, ali debaixo de Odivelas… Eles eram maus, se apanhassem um de nós cascavam-nos a valer… Mas depois com o cinema acalmaram os ânimos porque eles começaram a vir ao cinema… Mais tarde também quando fomos para a Pontinha, começámos a estudar juntos, a namorar, e as coisas a acalmarem e ainda bem.” (Fernando Pereira, exmorador) “Nas lutas com a Urmeira os de cima estavam sempre no cavalo.” (António José, filho do Arménio) “As lutas com a Urmeira… uma tropa de elite e as milícias da Urmeira. Chegavam cá ao bairro uns 60 rapazes e havia depois muita cabeça partida… Havia aqui muita rapariga bonita e eles queriam vir às nossas festas… e nós defendíamos o que era nosso… Mas isso só durou uns anos porque em 1967, quando houve as cheias, o pessoal do bairro tornou-se muito solidário com eles… Morreu ali muita gente. Fizemos grandes peditórios e foram ajudados. O Padre Francisco também foi muito importante nessa ajuda…” (anónimo, ex-morador) “O Bairro da Urmeira era o bairro mais pobre, dos pobres. A

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ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

situação das cheias foi horrível.” (Fernando Ferreira) Momentos festivos, estórias e personagens emblemáticas Os excursionistas “Os Camelos” “Onde é o Sr. Fonseca, houve uma carpintaria do Sr. Miguel… Não sei se ele ficou desempregado, sei que tinha ali um negócio onde as pessoas se juntavam, iam lá falar com ele, e houve um grupo de homens do bairro que fizeram um grupo excursionista que se chamava Os Camelos. Fomos à Serra da Estrela, Viseu – essa excursão, de Viseu, nunca me esqueci porque passámos a noite toda acordados na camioneta a contar anedotas. Também ia o Sr. Alberto dos foguetes, da SCML. Foi durante pouco tempo, terão sido poucas as pessoas que participaram mas foi muito bom… Alugávamos uma camioneta, dividiam-se as despesas, cada família levava o seu farnel e era muito divertido … Muito bons tempos!” (Lurdes Faria, moradora) Grupos de teatro e de música (os "Elite 5"…) “Havia várias formas de viver a comunidade. Lembro-me que em 69-70 fizemos um acantonamento ligado à Santa Casa, falámos com as assistentes sociais. Foi ali para Belas. Eram rapazes e raparigas, e com a concordância das assistentes sociais, convidámos para este acantonamento os ditos jovens ‘problemáticos’ do bairro. Alguns já com problemas de furtos… Algumas raparigas estavam como medo. Mas o que foi certo é que o acantonamento correu muito bem. Não houve problema nenhum. (…) Lembro-me que houve, também, um grupo musical saído deste grupo de jovens, fazia pequenas festas, no Carnaval, nos santos populares. Chegou a ter um nome mas não me recordo. Sei que há 5 ou 6 anos compilaram um CD com uma série de músicas que tocavam na altura. Fizeram um pequeno CD para eles e para os amigos. Tudo terminou em 1974-75 (…). Ocupávamos assim o nosso tempo com utilidade. Ganhávamos meia dúzia de tostões… que nos davam jeito.” (António Cristino, morador)

"COM AS CALÇAS DA MODA DAS OFICINAS", 1972 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

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Música de intervenção e ousadias políticas “Lembro-me de, ainda miúdo, estar envolvido na ida do Zeca Afonso e do Zé Mário Branco lá ao bairro. Actuou no refeitório da escola. A escola ficou chamada como o Biafra… ainda houve uma troca de mimos com a Pide. Foi no início de 70, por 71 e 72. Mas o bairro tinha os seus espiões do regime. Tudo era muito abafado e controlado…” (José Martins, morador) A somar a todos os episódios narrados, existem ainda outros registos que mereceram ser relembrados: A festa de Natal das Oficinas da CML “A CML dava um cabaz pelo Natal – uma camisola e umas calças ao rapaz e às raparigas, uma saia. Andávamos todos que parecíamos saídos de um orfanato… tudo igual. E o cabaz era bem aviado – tinha o azeite, o bacalhau, as broas… Os outros cabazes, para os mais necessitados, era a Igreja que organizava. Era tudo a partir da Igreja da Luz. Nós nem tínhamos paróquia, nessa altura. Tinha que ser tudo a partir de Carnide.” (Fernando Pereira, ex-morador) A primeira marcha de Carnide… nasceu no Bairro Padre Cruz “O único clube cultural na altura era o Teatro de Carnide – por isso o meu pai [Alberto Artur Mendes] colocou a marcha em Carnide, mas ela foi feita aqui, no bairro. Cada um arranjou a sua roupa para participar na marcha (1963 e 1965). O meu pai escrevia o texto naquelas máquinas de escrever. Estava inscrito na Sociedade Portuguesa de Autores. Ele chegava a qualquer lado, e fazia uma banda… Sou do tempo em que ainda me lembro das bandas a tocar no coreto.” (Armando Mendes, morador) Os passeios até à Feira da Luz “Lembro-me que se ia à Feira da Luz. Gostávamos muito! E lá compravam-se as andorinhas que se punham na parede da frente, junto à porta da casa. Também punha um S. José ou uma N. Srª da Luz que se comprava na Feira da Luz. Íamos muitos, grandes grupos, a pé… pelas azinhagas.”

(Custódia Pereira, moradora) A procissão das velas “O que conseguimos com acordo de todos foi precisamente a aquisição da imagem da Nª Senhora de Fátima entre outras… que resultou de uma coleta entre todos os moradores.” (Padre António Araújo) “Fez-se a procissão das velas com a imagem Nª Senhora de Fátima. Corremos o bairro todo com a imagem. Já era de noite. Foi muito lindo. Saiu daquela vez e nunca mais. Foi no tempo do padre Araújo". (Maria Isabel, ex-moradora) Algumas figuras emblemáticas No decurso das conversas muitos foram os nomes retidos na memória por diversos motivos e situações. As frases transcritas representam voz colectiva dessas memórias… “Conheci o padre Francisco. Tive esse privilégio. Era uma autoridade no bairro. Havia aqui duas pessoas que eram aglutinadoras da vida do bairro: o padre Francisco e a Drª Isabel Geada – a parte religiosa e a parte social.” “O padre Araújo foi também uma grande referência. O padre Araújo vinha do Seminário dos Franciscanos para aqui a pé pelas azinhagas. Trazia um barretinho com um pom-pom em cima, daqueles dos barretinhos dos pintores e passava por nós, dava um pontapé na bola, conversava connosco e prosseguia caminho. Quando o recordo sinto uma espécie de gratidão e carinho porque já não existem figuras assim, hoje em dia.” “Tínhamos o Dr. Falé que era o médico de toda a gente. Muito carinhoso.” “O senhor Agostinho Cristino foi sempre muito activo na vida do bairro, participou em actividades com a Junta de Freguesia mais tarde, dinamizava o coro da igreja… Foi autor de várias letras para o bairro, do hino do 41…”

“A D. Cândida, a parteira, ajudou muita gente nos nascimentos… Até a enfermeira Rosalina quis ter a última filha com a minha mãe. Creio que aqui no bairro não há quem não tenha uma ligação com ela. Há sempre uma prima, uma irmã… que teve o parto com a minha mãe. A minha mãe ajudou a nascer mais de cem crianças. Muito mais! A minha mãe é uma pessoa fantástica. A minha mãe é muito genuína. É mesmo muito pura… Acordava de noite porque sentia que a chamavam. Nunca levou um tostão a ninguém… até ia para a Serra da Luz fazer partos. A minha mãe fez o parto a ela própria.” “Sem dúvida que o Bairro teve maternidade! Naquele tempo todas as crianças (ou quase todas) nasceram nas suas casas com a ajuda da D. Cândida (…) deveria ser homenageada!” (Mimi Caldas, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz, facebook) “As irmãzinhas da Assunção eram muito queridas aqui no bairro.” “A Elisete foi uma pessoa muito importante na organização das festas da paróquia. Ela é que organizava as festas, ensaiava, preparava-nos… Sempre que havia retiros, lá estava a Elisete a encaminhar, a organizar, a orientar… a fazer a ponte entre nós e a Igreja. A Elisete estava sempre metida na boa confusão.” “A Domingas era uma rapariga fantástica! Cantava tão bem…” “O próprio fiscal era uma figura emblemática.” “A D. Quitéria, vendedora de roupas… Dois vendedores – o Massas (Álvaro) e o Manel das roupas – eram dois velhotes, alcoólicos que eram muito carismáticos, emblemáticos do bairro. Vinham a pé, fatos de ganga, de ganga operária… e por aí andavam de bairro em bairro.” “E havia o Garrafinhas que vendia refrescos e outros doces

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feitos por ele à porta da escola.” “Como recordo… uma pessoa afável e que fazia uns refrescos… não sei o que levavam mas eram bons… seria da caninha?” (Isabel Martins, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz, facebook) “Na altura em que ele vendia, ainda me lembro de ajudá-lo a encher as garrafinhas. Eu devia ter uns 6 anos.”;”Sim, era o meu avô. Era o ti Jaquim, conhecido como o Garrafinhas” (Aníbal Santos, grupo “Intas & Entas do Bairro Padre Cruz, facebook) “Conheci o nosso ciclista, o Joaquim Gomes, do Carnide Clube. Ele morava na R. Rio Ceira e a mãe trabalhava numa mercearia, em Carnide.” (9) “E depois, houve aquele episódio do Quarenta-e-um, do bebé que nasceu durante o percurso do autocarro. É o Ernesto e mora cá no bairro. Ninguém lhe contou?” “Creio que não haverá grandes figuras a destacar, mas a vivência em grupo, comunitária, do próprio bairro. Haveria algumas lideranças, de acordo com as disponibilidades de cada um… Talvez para cada clube houvesse figuras que os marcassem mais". (Fernando d’Oliveira, morador) PADRE ARAÚJO E GRUPO DE CATEQUISTAS, 1970 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

A nova dinâmica da paróquia: “as escolhas eram das pessoas” “Fui para lá em 1968 e comecei com uma agenda muito sobrecarregada. Os domingos eram muito intensos. Com três celebrações eucarísticas – 9h, 11h (missa das crianças celebrada pelo Padre Francisco) e depois havia a missa das 19h. Residia no Seminário da Luz e fazia esse trajecto a pé para ver como estavam as coisas… caminhos de basalto, muito irregulares. Gostava muito de ir a pé pelo bairro, pelos atalhos e pelas azinhagas. Sim, eu usava uma boina galega. (…) Eu tinha como método o acompanhamento, ajudar a pensar sobre coisas da vida mas nunca “empurrei” ninguém. Na minha ideia as pessoas tinham que ser elas a

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encontrar as soluções. Não se pode obrigar nem empurrar ninguém nestes assuntos… O que conseguimos com acordo de todos foi, precisamente, a aquisição da imagem da N. Senhora de Fátima entre outras… que resultou de uma colecta entre todos os moradores. Depois, por ocasião da despedida do Padre Francisco, fomos à baixa da cidade comprar um Cristo numa loja de arte sacra. Foi uma oferta de uma senhora da Amadora. Quando cheguei ao bairro havia duas coisas – a solidariedade operária, a Liga Eucarística (mais dos Jesuítas) e a LOC (Liga Operária católica) que trabalhava muito bem. Dei-lhes muito apoio, reflectíamos juntos… Para os jovens havia a catequese. Quase todos os catequistas eram jovens. Quando aqui cheguei eram centenas de crianças! Tornava-se uma missa um pouco ruidosa porque era cheia de crianças. A missa era a seguir à catequese e faltava-lhes um intervalo para correr… A catequese funcionava muito bem… com as festas e tudo… mas eram muitas crianças… O crescimento espiritual é o que justifica ser reconhecida como paróquia. (…) Todos os movimentos nasceram por iniciativa dos moradores porque só assim é que faz sentido. Eu nunca escolhi ninguém. Cada grupo fazia as suas escolhas. Procurei sempre que fossem os próprios que se propusessem e que escolhessem quem os representa. A primeira vez que eu lá fui, não havia ninguém para fazer uma leitura. E quem fez a primeira, foi o António Cristino e a Elisete. Havia domingos em que não havia ninguém. Depois a sensibilidade foi crescendo… e após o 25 de Abril já havia muitos… já toda a gente se prontificava. Foi crescendo espontaneamente. Tudo ia surgindo de acordo com as necessidades que eles sentiam.” (padre António Araújo) “A nossa igreja aos domingos era fortíssima. Aí é que deveria ter nascido a festa do bairro, a festa do Padre Cruz.” (Alfredo Amaral, morador)

Novas configurações no apoio social – o Centro Social Paroquial de Carnide Conforme já foi referido o apoio social no bairro conheceu várias expressões apoiadas primeiro pela Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais. A par destas intervenções a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa também foi evoluindo e conquistando uma forma mais definida que lhe permitiria, mais tarde, consolidar-se como a instituição de referência para prestação dos apoios sociais nas várias vertentes: crianças, jovens e idosos. “Entrei para o Bairro Padre Cruz não directamente pela Misericórdia, mas em 1973. Já fez 36 anos. Na altura, tinha sido criada uma IPSS [Instituição Social de Solidariedade Social] – o Centro Social Paroquial de Carnide – que funcionava e era ligado à Igreja. Não havia o Centro como estrutura física. Havia os estatutos definidos e o apoio era dado a partir da Igreja. Até aí, a actividade social desenvolvida no Bairro do Padre Cruz era da responsabilidade do Governo Civil. Era a Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais que dependia do Governo Civil. As actividades já existentes – creche e jardim-de-infância – funcionaram nestes termos até 1973. A manutenção e todas estas actividades eram suportadas pela Acção Social dos Bairros Municipais, até 1973. A Misericórdia tinha a responsabilidade do acolhimento social. Ligado a este acolhimento social, e ligado às técnicas que faziam este acolhimento, passou também a haver o chamado “trabalho comunitário”. Foi aí que houve um trabalho junto da população que era feito a partir do acolhimento e em colaboração com a creche e o jardim-deinfância. No posto médico, havia um centro de dia de idosos e, do outro lado, uma oficina de malhas e costura. Tudo isso era da responsabilidade da Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais. Em 1973 é criada a IPSS – o Centro Social Paroquial de Carnide, e as actividades e estabelecimentos até então existentes passaram para a responsabilidade da IPSS. Ou seja, a Acção Social dos Bairros Municipais delegou ao

Centro Social Paroquial de Carnide é integrada no Centro Social Paroquial de Carnide e é admitido novo pessoal, onde eu apareço. (…). Essa situação manteve-se até ao 25 de Abril.” (Natália Nunes, diretora da Região-Norte da SCML; técnica da acção social no Bairro de 1973 a 1989) Ao longo deste capítulo percebeu-se claramente o contexto e moldes de uma época histórica, o planeamento e a vivência concreta do bairro. O cenário de suporte que fomentou estas relações de convivência – um espaço geográfico afastado do centro, ruralizado – facilitou o desenvolvimento de estratégias comunitárias quer por parte do pároco e dos técnicos de serviço social, quer por parte dos moradores, de que os clubes são expressão. E, neste conviver, foram artesãos de uma malha de relações que “escapava” ao controlo e modelo regulador do regime. Um regime político e um sistema económico que, afinal, os incluía enquanto mão-de-obra, enquanto trabalhadores, mas excluía enquanto cidadãos de comuns direitos. No capítulo seguinte veremos como este habitar de um “lugar físico” que se foi preenchendo como “lugar de comunidade”, estará na base da reivindicação por um “lugar social”, a que o 25 de Abril abriria portas. À personagem do “morador”, do “vizinho”, do “artesão” das sociabilidades do bairro, acrescentar-se-á a reivindicação por uma nova forma de participação. As vozes dos moradores acendem-se e enfrentam-se com outros anseios e entusiasmos.

EQUIPA DE TÉCNICAS DE ACÇÃO SOCIAL E ENFERMEIRAS, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

Síntese cronológica 1959 a 1974: Construtores da cidade, artesãos do bairro 1958/59 Após a aquisição do terreno, a CML realiza vários contratos para efectivar a construção do “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira”. 1959 (18/08) Dec. Lei 42454 que estabelece um “plano de construção

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BAIRRO PADRE CRUZ, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

de novas habitações na cidade de Lisboa, com o objectivo de criar unidades urbanas integradas no plano geral da cidade” para travar a proliferação dos “bairros de lata”. Este documento esteve na origem do Gabinete Técnico da Habitação (GTH, da CML) e do plano de construção para Olivais-Chelas, com uma intervenção urbana totalmente diferente. O projecto do “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira” terá sido um dos últimos bairros municipais que obedeceu ao padrão “tipo aldeia” conhecido por “solução portuguesa”. 1959/60 A freguesia de Carnide tem uma reduzida população de apenas 4 263 habitantes. É iniciada a construção e o alojamento no “Bairro das Casas Desmontáveis da Quinta da Penteeira”. É mais um bairro provisório, montado em placas de lusalite, para instalar as primeiras 200 famílias realojadas, sobretudo, do anterior bairro provisório da Quinta da Calçada. Em 1959 é inaugurada a rede de Metropolitano (iniciada em 1955). Nesta primeira fase, até 1962, inaugura 11 estações sendo o eixo Sete-Rios/Rotunda uma alternativa ao eléctrico 13 (Carnide/Restauradores; Carnide/praça do Chile) procurada pelos moradores. 1960/62 Construção da zona de alvenaria que ficaria conhecido como “bairro de alvenaria” com 917 fogos unifamiliares, em ruas pedonais com nomes de rios portugueses; ocupa 12 hectares. Atendendo ao número total de realojamentos (1 117 fogos/famílias) construíram-se equipamentos de apoio: escola primária, posto médico, igreja, mercado, centro social e salão de festas e de trabalho, sala de leitura/biblioteca, lavadouros. A supervisão do bairro mantém-se a cargo da Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais da CML, a figura do fiscal funciona como representante local da Polícia Municipal. Durante a década de 60 é iniciada a construção de um conjunto maior de “habitação social” – o bairro de Olivais Sul (previsto o alojamento de perto de 50 000 pessoas). É coordenado pelo Gabinete Técnico da Habitação e abre uma nova fase na concepção e planeamento do

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alojamento municipal. 1962 Inaugurações dos vários equipamentos do futuro Bairro Padre Cruz. Criado o Andorinhas Futebol Clube, primeiro pequeno clube de bairro. Inauguração da sede do “Clube de Futebol O Unidos”. Este clube havia sido criado a 1 de Junho de 1940 na Quinta da Calçada. - (03/05) - Inauguração da Escola Primária (nº 167) na rua Rio Tejo; ensino masculino e feminino em áreas separadas do mesmo edifício. - (12/06) - Inauguração do mercado é integrada nas comemorações das Festas da Cidade. O mesmo edifício reúne peixaria, talho, lugar de fruta, carvoaria, leitaria e capelista. - (1/10) - Inauguração da Capela do Bairro Padre Cruz dedicada a Nossa Senhora de Fátima; António Francisco Marques, prior de S. Lourenço de Carnide e da Pontinha, mantém-se na organização da vida paroquial. - (25/10) - Inauguração da Biblioteca de Carnide por ocasião da “Comemoração da tomada de posse de Lisboa aos Mouros”. - (17/11) - Inauguração do Bairro e bênção da carreira do autocarro 41 com a presença de várias individualidades oficiais (Presidente da CML, França Borges; o vicepresidente Aníbal David, Vicente Rodrigues, o director de Finanças, Manuel dos Santos Ferreira; o Bispo de Tiara, o capelão do bairro, padre Francisco, representantes da Comissão da Acção Social e outras individualidades). 1962/66 Projecto e construção da ponte sobre o Tejo (primeiro, nomeada “Salazar”; depois de 1974, “25 de Abril”) que obrigou a novos realojamentos no Bairro das Casas Desmontáveis, da Quinta da Penteeira. 1963 A paróquia de S. Lourenço de Carnide, orientada pela Ordem Franciscana, intensifica actividade na vida do bairro. As figuras do padre, equipa de assistentes sociais, médicos e enfermeiras, fiscal, professor/a… são, cada um a seu modo, referências importantes na organização (e controle) do bairro. Por solicitação da Comissão da Acção Social da

CML, e com apoio da SCML, as primeiras técnicas de serviço social trabalham junto da população; também são requisitadas as “irmãzinhas” da Assunção“ – missionárias para auxiliar a população dos “bairros periféricos”. Visita ao Bairro Padre Cruz do ministro do Interior, Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior, acompanhado do Presidente França Borges, de Martins Gomes, de Manuel dos Santos Ferreira e de outras individualidades. 1965 (09/24) O jornal Diário de Notícias regista o nascimento de uma criança durante o percurso do autocarro 41. Essa criança, um rapaz de nome Ernesto, é filho de uma moradora do bairro e ganhou a alcunha do “Quarenta-e-um”. Inauguração oficial das Oficinas Sociais no bairro, coordenadas pela Comissão da Acção Social dos Bairros Municipais, onde eram ministrados cursos de costura, malhas, cozinha… para as residentes. 1966/67 É concluído o novo Plano Director de Lisboa (seria totalmente aprovado em 1976) que revê algumas das propostas do anterior Plano de 1948 (mais próximo do modernismo da Carta de Atenas). - (23/04) - Criado oficialmente o Grupo Recreativo Os Amigos da Luz. - (30/06) - O Bairro ganha patrono. Grande e pomposa cerimónia de colocação da estátua de pedra, do escultor Martins Correia, com o busto do Padre Francisco da Cruz em frente à capela Nª Senhora de Fátima, e da lápide onde está gravada a efeméride. - (25/11) - Cheias no Bairro da Urmeira, no sopé da Serra da Luz. “Cinco horas de chuvas torrenciais mergulharam a Grande Lisboa na maior inundação que a região alguma vez conheceu. A Urmeira foi um dos locais mais fustigados por essas mortíferas cheias.” (cf. relembra Diário de Notícias de Novembro de 2007). A relação conflituosa com os moradores da Urmeira fez parte da história do Bairro Padre Cruz mas este episódio amenizou essa relação. 1968(?) No âmbito das várias actividades da paróquia (para além catequese e dos campos de férias para jovens e seniores)

funcionam a Liga Operária Católica e o Apostolado da Oração. - (?) - Novo rebentamento de paióis localizados em área vizinha, entre os concelhos de Lisboa e Loures (Alto do Forno). Os moradores, assustados, correm para as ruas. 1969 (28/2) Tremor de terra em Lisboa. De novo, grande susto entre os moradores. Surge a Liga Eucarística do Bairro Padre Cruz (apenas masculina) – uma secção do Apostolado da Oração. Durante a década de 60 a população da freguesia duplicou (em 1961: 4 263; em 1971: 8 325 residentes). Na década de 60-70 são construídos novos bairros na freguesia de Carnide: Quinta da Luz, Horta Nova e Bairro Novo de Carnide (conhecido por “Bairro da Polícia”). Desaparece a bipolaridade (“Carnide Velho”/Bairro Padre Cruz) que animara o território da freguesia de Carnide durante uma década. 1970 (a 1977) O Gabinete Técnico de Habitação (GTH) passa a controlar a distribuição das casas camarárias. A população residente no concelho de Lisboa cresce significativamente, a população residente no centro da cidade diminui. Desenvolvimento e expansão da rede viária e meios de transporte da capital para as desqualificadas e desordenadas periferias atendendo ao enorme crescimento populacional. 1971 Criação da EPUL – Empresa Pública de Urbanização de Lisboa que também será responsável por futuros projectos no Bairro Padre Cruz. - (28/06) - É criada a paróquia da Pontinha que assim se autonomiza da paróquia de S. Lourenço de Carnide de que fazia parte desde1950. 1973 Criação do Centro Social Paroquial de Carnide – IPSS [Instituição Social de Solidariedade Social]. No início funciona associado à Igreja S. Lourenço de Carnide e o apoio é centralizado a partir desta paróquia. O padre Francisco Marques retira-se da Paróquia de S. Lourenço de

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Carnide (onde estava desde 1952; em 16/07/1975 será nomeado primeiro Bispo da diocese de Santarém,). 1974 (até Abril) Alteração parcial da paisagem física do bairro; construção dos primeiros prédios, de 5 andares, no topo norte. Estão previstos os primeiros realojamentos em altura e o direito a estes novos fogos começa a levantar polémica entre os moradores.

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Fase 2 1974-1990: A VIVÊNCIA LOCAL DO(S) PODER(ES) E DA(S) CULTURA(S) “Os tempos mudam e a gente também muda” José Valente (morador) O 25 de Abril e a “nova ordem urbana”

VISTA BAIRRO PADRE CRUZ, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

PLANTA PROJECTO PARA NOVO BAIRRO, 1977 (CML)

A revolução de Abril inaugurou um período diferente e decisivo na vida do país. De um sistema político ditatorial ensaiavam-se agora os primeiros passos em direcção a um regime democrático que sucessivos Governos Provisórios procuravam consolidar. Nesta fase a Câmara Municipal de Lisboa, tal como todas as outras, foi palco de experimentação de novos modelos de gestão mobilizadores da sociedade civil. Fazer justiça passava também por (re)fazer a cidade. Porém, muito ainda estava por definir. Entre 1974 e 1975 o governo do município foi provisoriamente gerido por uma Comissão Administrativa que durante um ano conheceu três presidentes. Viviam-se períodos de grande instabilidade social que se reflectiram, inevitavelmente, na gestão dos bairros municipais e no Bairro Padre Cruz. Relembremos que o 25 de Abril desencadeara novas reivindicações populares pelo direito à habitação consagrado pela nova Constituição da República de 1976. A cidade de Lisboa atravessou um período de intensas manifestações que, entre outro tanto, denunciavam a degradação das condições da habitação (sobretudo nas tais periferias desqualificadas) acumuladas durante o silêncio metálico do Estado Novo e que o processo de descolonização muito agravou. Assistiu-se à reocupação de espaços e de edifícios, públicos e privados, com o apoio das comissões de moradores e de trabalhadores, a maior parte, recentemente constituídas… Surgiu a operação SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local(1) que, em Lisboa, deu origem à criação das “Brigadas de Actuação Local” a par com as reivindicações das populações. A partir dos finais dos anos 70, a responsabilidade

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pela e promoção e construção da habitação social foi sendo imputada às autarquias. Criaram-se diferentes modalidades de cooperação e de pareceria mas que, na prática, apresentavam grandes lacunas. Em 1977-78 Aquilino Ribeiro Machado era eleito presidente da CML (1977-80/Partido Socialista) pondo fim à instabilidade das comissões administrativas. Neste contexto, foi criada a Direcção Municipal da Habitação que integrava o Serviço de Realojamento. Este Serviço passou a gerir a atribuição das casas municipais mas a supervisão sobre os bairros municipais revelou-se deveras insuficiente e inoperante, conforme escutaremos nos testemunhos. Alguns dos primeiros bairros provisórios ainda resistiam, mas definhavam, e os alojamentos clandestinos espalhados pelas periferias acolhiam outros surtos de desalojados em resultado dos persistentes movimentos migratórios e do pós-guerra colonial. Assistia-se ao eclodir de uma “nova ordem urbana” a par com a explosão demográfica nos territórios periféricos da cidade (vd. Cardoso, Ana (1993)). Esta segunda fase na linha biográfica do Bairro Padre Cruz foi, também ela, atravessada por subfases com focos distintos de problemas, apesar de interligados. Uma primeira, decorre de ’74 aos anos 80, evidenciou os primeiros usos da liberdade, a experimentação do poder local e de formas alternativas na gestão do bairro (constituição da primeira Comissão de Moradores), e o acompanhamento dos processos de realojamento nos primeiros prédios, no topo norte que, entretanto haviam sido construídos. Numa outra, já durante os anos 80-90, percebese a conversão e organização das iniciativas mais espontâneas em acções políticas reivindicadas por parte dos moradores, autarcas e outros técnicos. As relações sociais do bairro já consolidadas serviram para mobilizações politicamente interventivas, aproveitando um novo poder negocial – o “capital comunitário”. A figura de Maria Vilar Diógenes (presidente da junta de freguesia) destaca-se nesta mobilização. De qualquer modo, este é um período em que o

bairro se reanima livre e intensamente. Vive-se o bairro, e vive-se a rua. Vive-se o bairro na rua. São relações muito espontâneas e multiplicam-se as festas, celebrações, motivos de encontro e reencontros. “Tudo era motivo para fazer festa” e a cultura de bairro preenche-se com esses momentos intensamente partilhados em que os clubes mantêm forte dinamismo. Em paralelo, também durante esta segunda fase a paróquia reafirma uma poderosa vitalidade, desde 1981, com o Padre António Baptista. As experiências e convivências intensas por parte da população jovem – a segunda geração de moradores – terá um papel de relevo no viver (e actualizar) oo “espírito” do bairro. No contexto destas transformações, surgem novos vizinhos na freguesia. A bipolaridade (“Carnide Velho”/Bairro Padre Cruz) desaparece… Durante a década de 70 foram construídos novos bairros na freguesia de Carnide: Quinta da Luz, Horta Nova e bairro Novo de Carnide (conhecido por “bairro da polícia”), alguns da responsabilidade da EPUL. Entre uma década (19711981) a população da freguesia aumentou de 8 325 para 13 375 habitantes. A população do Bairro Padre Cruz manteve-se como a mais numerosa no conjunto da freguesia. Memórias do 25 de Abril – o dia em que o “bairro parou” Antes de prosseguir, escutem-se alguns depoimentos dos moradores acerca do dia em que o regime do Estado Novo foi politicamente derrubado. A estreita vizinhança com o quartel da Pontinha onde, entretanto, se instalara sigilosamente o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas fez com que os moradores do Bairro Padre Cruz vivessem a alvorada do movimento de um modo singular. “Quando foi o 25 de Abril, daqui é que saiu a revolução!” (Nazaré, moradora) Contudo, a proximidade física não significou maior informação. Pelo raiar daquela manhã toda a população – e, a seu modo, cada morador – foi surpreendida com a

presença dos militares estrategicamente colocados nas ruas do bairro. O tom destes testemunhos são reveladores da desinformação e do silêncio contidos em que o bairro (e o país) vivia… pois a “política não entrava lá no bairro”. “O 25 de Abril foi forte. Ninguém pôde sair ou entrar no bairro. Ninguém sabia o que se passava e depois viemos a saber que o comando operacional era aqui, na Pontinha. Logo a seguir o bairro começou a cair num relaxe, as pessoas começaram a alterar as relações… Não foi por motivos políticos.” (Emídio Silva, ex-morador) “Foi giro no 25 de Abril. Na véspera eu tinha ido com a minha mãe à Pontinha e vira três ou quatro carros com militares a fazerem exercícios na rua próxima do bairro… Pensei ‘Mas estes são doidos? Não lhes chega o quartel, vêm para aqui fazer exercícios?! Isto, na véspera, pois o 25 de Abril foi preparado no quartel da Pontinha. As pessoas, nesse dia não podiam sair daqui. A única pessoa que deixaram entrar era o Padre Araújo.” (Elisete Andrade, moradora) “O bairro parou. Estava na cama porque era dia de escola. A minha mãe avisou-nos: “deixem-se estar na cama porque hoje não há escola. Porquê mãe? Porque anda muita confusão na rua”. E passámos o dia inteiro a ouvir rádio. Não percebíamos nada mas sabíamos que alguma coisa estava a acontecer. Lembro-me que a minha mãe queria ir ao pão mas os militares tinham cortado a rua. Lembro-me, porque fui com a minha mãe. E houve um soldado ao final da rua que acompanhava as mulheres até ao pão e depois voltava. Foi uma espécie de escolta e disso eu lembro-me perfeitamente. Toda esta zona ficou sitiada.” (Fernando d’Oliveira, morador) “Nesse dia, o senhor da mercearia vendeu quase tudo…” (Carminda Prado, moradora) “Eu era novo, mas tenho a ideia de que política não se falava lá no bairro. Não entrava lá no bairro. Quando se dá

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PLENÁRIO DE ESCLARECIMENTO, SALÃO DE FESTAS, ANOS 70

o 25 de Abril só me lembro da minha mãe dizer que naquele dia não era aconselhado ir para a escola. “Mas o que se passa?” “Não se passa nada!” Porque também não se podia dizer… porque havia o medo de ser apontado. Havia o ‘bufo’ porque isso eu sei que havia. E nos pós-25 de Abril é que eu começo a aperceber-me da opressão que se vivia. Porque nós vivíamos afastados – íamos para a escola, íamos para a catequese… não havia aquele “Deus, Pátria, Autoridade” de um modo explícito. Eu, pelo menos, não o sentia. Creio que era por aquele bairro estar tão longe... tão periférico relativamente ao centro.” (Jorge Nicolau, ex-morador). 1974-1980: Do silêncio à reivindicação da voz, do morador ao cidadão

PRIMEIROS PRÉDIOS NO BAIRRO, RUA DO RIO GUADIANA, 1974-75 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

A partir de 1974 a liberdade de expressão e de movimento a que a revolução de ‘74 abriu portas, trouxe novos direitos e outra consciência política. Deu lugar a novas sociabilidades e a experiências associativas para além das recreativas e desportivas. A vida política animou-se dentro do bairro criando fracturas e tensões entre a comunidade. Também ali o período pós-25 de Abril ficou marcado pelas entusiásticas experiências da liberdade (“o poder saiu à rua”) e a rejeição relativamente a tudo o que sugerisse compromissos com o regime derrubado (designadamente com a Comissão da Ação Social, SCML, …). As funções da paróquia de S. Lourenço de Carnide e o respectivo pároco (na altura, o padre Martins) foram motivo de desconfiança por parte de alguns grupos de moradores. No mesmo ímpeto, outros movimentos articulados com a paróquia (JOC, LOC, Apostolado da Oração) foram alvo de crítica e até mesmo de alguma “perseguição”, conforme escutamos adiante. Por razões administrativas, as Irmãzinhas da Assunção viram comprometida a sua permanência no bairro, uma vez que a instituição suporte fora extinta (a tal Comissão da Acção Social), e não havia possibilidade da sua reintegração nas valências existentes na SCML.

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Nas zonas do bairro já edificadas (lusalite e alvenaria) a expressão popular soltou-se e as vozes e acções libertaram-se. A figura do fiscal desapareceu e surgiram cartazes, murais, pinturas reivindicativas nas paredes. Os traçados originais das casas foram sendo modificados. Os muretes dos jardins deram lugar a anexos encobertos e privados. Curiosamente, ao mesmo tempo que se reivindicavam poderes mais democráticos e populares, a reapropriação de alguns espaços, antes públicos, tornou-se privada. O morador do Bairro Padre Cruz assumia-se como um cidadão de direitos. Porém, a emoção e rapidez dos acontecimentos não permitia amadurecer as novas revindicações sociais e a forma de expressá-las acabaria por ser controversa: construindo muros, altos e baixos, portões e anexos de acesso privado. Reivindicações comunitárias e direitos individuais reconstruíam a nova ordem (local) urbana. Uma ordem ou desordem apertada entre conflitos e convergências mas com consequências evidentes ao nível da paisagem edificada e das tensões vividas. Formas alternativas de gestão – a primeira Comissão de Moradores Durante aquele torvelinho de confrontos também no Bairro Padre Cruz teve lugar um intenso movimento de reivindicação. As acessibilidades e marginalização (agravada pela continuada insuficiência dos transportes…), as más condições das casas de lusalite e o desacompanhamento da manutenção dos fogos e infraestruturas do conjunto do bairro impunham-se como problemas graves que urgia resolver. Para além disso, o crescimento das famílias não fora acompanhado com a atribuição de novos fogos e os rendimentos auferidos continuavam a impedir o acesso ao mercado livre. Nesta fase, o “salão de festas” alterou o tom da música e acolheu plenários entre moradores e seus representantes para discutir as estratégias a adoptar. O primeiro presidente da Junta de Freguesia de Carnide, João Gualdino (residente no núcleo antigo de Carnide)

presenciou alguns debates “O importante é que falassem. E ouvi-los” (João Gualdino). A gestão do bairro foi revindicada pelos moradores – constituiu-se informalmente a primeira Comissão de Moradores. Muitos dos não-moradores, designadamente o pessoal técnico, foram encarados com alguma suspeição. Os serviços da Misericórdia e da Comissão da Acção Social foram repudiados porque associados a uma época que se queria ultrapassada. Entretanto, na coroa norte e periférica do bairro ocorriam os terceiros realojamentos, agora em altura, dando início a uma modalidade diferente. Nos terrenos expectantes (de hortas) que ladeavam a estrada da circunvalação a norte do bairro de alvenaria, foram construídos 10 edifícios repartidos com 5 pisos cada, num total de 200 fogos, que já haviam sido planeados antes do 25 de abril. Estes prédios destinavam-se prioritariamente ao realojamento dos moradores do velho e “provisório” bairro de lusalite (175 famílias) cuja degradação obrigava a urgentes medidas camarárias ou ao desdobramento para “filhos do bairro”. Também naquela fase, conciliar a adaptação ao novo cenário de alojamento – em altura – não foi fácil nem pacífica. A inicial estrutura das galerias teve que ser posteriormente alterada atendendo à apropriação indevida dos espaços comuns. A Comissão de Moradores acompanhou esses primeiros realojamentos internos – quer das casas vagas nos bairros de lusalite e alvenaria, quer nos prédios de alvenaria alta. Após a supervisão destes realojamentos internos e algumas críticas internas aquela Comissão foi extinta sem nunca ter formalizado a sua existência. “Após o 25 de Abril houve muitas transformações aqui no bairro. Nomeadamente quem estava ligado à Igreja… quem estava ligado à LOC (Liga Operária Católica) sofreu alguma perseguição. Os chamados extremismos revolucionários… mas durou pouco tempo. Eu estava ligado à JOC [Juventude Operária Católica]. Mas estas mesmas pessoas conseguiram, um pouco mais

tarde, dar a volta e, em 1974, criar a primeira Comissão de Moradores. Em 1974 já havia uma Comissão de Moradores no bairro que assegurou, durante algum tempo, a gestão do salão de festas até 1977 e 78. Depois, perdeu-se em grande parte devido à luta partidária sem sentido que aconteceu naquela altura. Esta Comissão de Moradores participou activamente e em estreita colaboração com a Câmara, com a Direcção Municipal da Habitação no sentido de evitar que, no bairro, houvesse ocupações selvagens. (…) Os realojamentos que foram feitos nos primeiros prédios – os chamados prédios cor-de-rosa, foram feitos com acompanhamento desta Comissão. A maioria das pessoas que para lá foram morar era resultado de desdobramentos de famílias do bairro de lusalite e de alvenaria. Houve uma percentagem mínima que veio de fora para fazer face às necessidades da Câmara. Foi todo um processo em colaboração e cooperação com a Câmara, com a então Direcção Municipal dos Serviços de Habitação (criada em 1977). Desde sempre houve a ideia de tentar envolver as pessoas na resolução dos seus problemas. Esta Comissão extinguiu-se, não tinha existência legal, sequer.” (António Cristino, morador). “O pós-25 de Abril foi uma altura em que começaram a ser criadas muitas comissões. As comissões de moradores… e houve grandes convulsões em termos da população e houve movimentos contra os serviços que funcionavam no bairro… [serviços da Misericórdia e da Comissão da Acção Social dos bairros Municipais]. Nessa altura as equipas técnicas funcionavam por cima do salão de festas, perto da biblioteca. Foi também o momento em que as associações mais ou menos organizadas começaram a reivindicar a gestão dos serviços… sobretudo a Comissão de Moradores. Começaram a por em causa a gestão dos serviços, nomeadamente a gestão da cantina. Todos os outros serviços eram geridos pelo Centro Social Paroquial de Carnide, constituído em 1973. Com o 25 de Abril houve momentos muito difíceis. No salão de festas assisti a movimentos quase de apedrejamento. Ali eram feitos

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BAIRRO DE LUSALITE, RUA DO RIO ALMANSOR, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

BAIRRO DE LUSALITE, RUA DO RIO ALMANSOR, ANOS 70 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

grandes plenários. Os técnicos viveram ali momentos muito difíceis. Como cheguei ao bairro em vésperas do 25 de Abril não consigo localizar que população era esta que mais se insurgiu. Fui apanhada de surpresa. (… ) Houve líderes dos movimentos de reivindicação. Começaram a pôr em causa a gestão da cantina, a acusar o Centro Social Paroquial de Carnide de má gestão. Queriam ficar com aquilo. Era o Padre Martins que estava na Paróquia por essa altura, creio (…). Tudo era posto em causa, tudo era questionado, um clima de desconfiança muito grande. Mas isto não aconteceu só naquele bairro. A Acção Social dos bairros Municipais, nessa altura, tinha a gestão de quase todos os bairros municipais – as Furnas, a Quinta da Calçada, a Musgueira… e onde todo este processo também estava a ser posto em causa e questionado. (…) A partir de 1978 é que a Misericórdia aparece como um todo naquele bairro. Reaparecemos já como Serviços da SCML. Aí, as coisas já estavam bastante mais calmas… O slogan “o poder na rua” já estava mais apaziguado, havia outra compreensão das coisas e, a partir daí, as coisas funcionaram bem, sem problemas” (Natália Nunes, SCML, em funções técnicas no bairro de 1973 a 1991)

BAIRRO DE ALVENARIA, ANOS 70-80 (GEO)

Viveram-se momentos conturbados, socialmente confusos, porque tudo estava a acontecer ao mesmo tempo. Todavia estas tensões permitiram ir testando a “elasticidade” do trabalho no terreno por parte das instituições e da população. Um trabalho tenso com resultados mais maduros na década seguinte já pelos anos 80. “Foi em 1980 que se formalizou a Associação. Fiz parte do grupo com mais umas 10 pessoas. Nessa altura fui presidente. Constitui-se antes, não formalmente, porque tinha havido o boato de que havia casas que tinham sido negociadas quando era para realojar os moradores antigos da lusalite… Esse processo não foi pacífico. Essa foi a primeira associação de moradores, uma comissão… mas as coisas não correram bem... Quando recuperámos e

BAIRRO DE ALVENARIA, ANOS 70-80 (GEO)

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formalizámos a associação havia algum descrédito por parte dos moradores. Nós conseguimos limar essas arestas e as pessoas confiaram. Até porque é muito diferente quando as pessoas agem em grupo ou agem individualmente… Eu também morava na lusalite. E muita gente me viu crescer e muita gente confiava muito em mim… E lá fomos conseguindo reconquistar as pessoas. Estive na direcção e ligado à Associação durante 30 anos… desliguei-me muito recentemente. Esta associação tinha o objectivo de garantir que as casas que tinham sido construídas para realojar as pessoas do bairro de lusalite fosse cumprido. Fez-se o realojamento segundo critérios definidos e a antiguidade no bairro foi um deles. Tratámos do realojamento das pessoas das casas de lusalite para os prédios. Foram realojamentos pacíficos. Nessa altura, também houve algumas resistências por parte dos mais velhos em mudar de casas térreas para casas em prédios. Aí, as casas de lusalite serviram também de casas de transição de pessoas que vinham de outros realojamentos posteriores, da Quinta das Fonsecas, por ocasião da construção do eixo Norte-Sul.” (José Martins, morador) O desinvestimento municipal e a progressiva degradação do bairro “O bairro era reconhecido pelas ruas, pela beleza das casinhas… Era! E porque se perdeu?” Mário Guerra (ex-morador) “A degradação do bairro começa com a desadequação das casas às necessidades das famílias.” António Cristino (morador)

Decorridos quinze anos após a criação do bairro “provisório” do Padre Cruz a deterioração das condições de habitabilidade e o tamanho exíguo das casas chocavam violentamente com as necessidades das famílias que

aumentavam e envelheciam. Durante esta fase evidencia-se o confronto entre tempos – o provisório que se foi transformando em definitivo, e a modificação das condições de vida de uma população que se foi fixando e reapropriando do lugar, dissemos. Os espaços físicos das casas e os recursos económicos das famílias pouco aumentaram, mas aumentaram as famílias, os descendentes, e raros foram os desdobramentos autorizados(2). Devido às limitações das casas registaram-se situações de verdadeiros dramas familiares. Foi para superar tais limitações que os moradores começaram a readaptar os usos e funções dos espaços e a anexar os quintais e logradouros... “Estes duplexes levantaram muitos problemas”, em particular junto das famílias que envelheciam e adoeciam, e onde a mobilidade e a funcionalidade dos espaços comprometia a segurança e a qualidade de vida dos residentes (a níveis tão básicos como os acessos às casas de banho…) “Houve muitos heróis aqui no bairro!”, desabafou Elisete Andrade a propósito. “Tenho um pau comprido de pintura e enrolava ali uns panos, à noite, antes da gente ir para a cama andávamos a apanhar a água, assim ao rolo. Depois passado um pedaço, já estava outra vez assim… pim…pim…pim… Nós fomos obrigados a ir fazendo alterações às casas porque as casas não serviam. A minha mãe viveu entrevada durante cinco anos…” (Domingas Ferreira, moradora) Compreende-se agora que, a partir de 1974, a quase totalidade dos residentes tenha alterado a estrutura original da respectiva casa e, por consequência a organização do espaço público, sem acompanhamento por parte de quem deveria gerir e instruir esses processos – “a Câmara Municipal de Lisboa foi um péssimo senhorio.” Os investimentos feitos (tempo, dinheiro, braços e recursos vários) por parte dos residentes corresponderam a transformações (interiores e exteriores) que cada um, a seu modo e jeito, avalia como “melhoramento”. Há que sublinhar que estas readaptações revelam

investimentos muito diferentes. A par com as reapropriações menos cuidadosas e mais “abarracadas” que agridem a paisagem do bairro, é inegável o trabalho cuidadoso, meticuloso por parte de alguns outros moradores. De tudo isto resultarão grandes contrastes no interior do “bairro antigo”. A par com as circunstâncias de deterioração dos materiais, uso inapropriado e indevido dos espaços, são inegáveis os exemplos de conservação e formas criativas de beneficiação do uso das casas por parte de outros residentes. Além disso, também o espaço público acusava uso e desgaste – a estreiteza das ruas, os passeios, os próprios edifícios dos equipamentos sociais acusavam a passagem do tempo. Os automóveis circulavam pelo bairro em maior quantidade mas o aperto das ruas dificultava as mobilidades. As rosas e as flores desapareceram dos quintais para dar lugar às garagens e aos anexos. A estética e a funcionalidade da tal aldeia branca perdeu-se. Mantinha, porém, o isolamento e a periferização que viriam a ser usados como argumentos para a continuada estigmatização do bairro aos olhos da “cidade dos outros”. “A degradação do bairro começa com a desadequação das casas às necessidades das famílias. Quando vieram para o bairro eram casais com crianças pequenas. Depois, as famílias foram aumentando, constituindo novos casais. O próprio aluguer de casas era complicado. Por isso viviam duas a três famílias na mesma casa e esse problema foi-se agravando. Parte deste problema foi resolvido com os tais primeiros prédios, lotes altos. Mas ainda ficaram muitas situações por resolver. E, com a inexistência de fiscalização, as pessoas começam a ocupar os quintais das casas, o que descaracterizou o bairro. Grande parte delas deixaram de ter os quintaizinhos e a Câmara, após a construção dos lotes cor-de-rosa, desinvestiu, ou melhor, nunca investiu de facto nas casas de alvenaria. Durante estes 50 anos as casas de alvenaria apenas foram rebocadas em 1973. E apenas na parte exterior. Foram rebocadas e pintadas. Mas penso que estragaram mais do

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PORMENOR NO ARRANJO DA CASA (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

que pintaram. Para além de partirem os tijolos, o proveito foi menor que o estrago.(…) Nunca houve investimento da Câmara nestas casas porque, possivelmente já estava em mente deitá-las abaixo um dia… Quem tinha alguma possibilidade foi arranjando as casas no interior. E hoje não estarão tão más por causa disso, do dinheiro que os próprios moradores foram investindo em casas que, afinal, nem eram deles. Eram da Câmara. Os que não tinham essa possibilidade, aquelas casas que foram sendo ‘volantes’, que tiveram vários ocupantes deterioraram-se mais e deterioraram as que estão ao lado.” (António Cristino, morador) “Há uma fase em que não houve quem gerisse, quem acompanhasse… O bairro fica entregue aos moradores e cada um faz crescer a casa à sua maneira… E é depois que aparecem as notícias que referem o Bairro Padre Cruz como o “bairro de lata”… O que esquece tudo o que aqui se viveu e construiu. Também houve pessoas que não construíram, abarracaram… porque não houve cuidado de estimar, um respeito pelo que o bairro era… Era o bairro das vivendinhas porque eram as tais casinhas cada uma com o seu jardinzinho à frente e atrás que depois se perdeu… O bairro era reconhecido pelas ruas, pela beleza das casinhas… Era! E porque se perdeu? Porque, depois, não houve mais investimento, não se fizeram casas, os filhos não queriam sair do bairro e o que se faz? O que se pode fazer?… Cria-se mais um anexo, a seguir mais um quarto e cresce e cresce… e esticam, e deformam a estética original… E as famílias envelheceram, as casas degradaram-se e depois vai ficando este bairro triste. Deixou-se morrer a verdadeira história do bairro. Deixou de fazer sentido…” (Mário Guerra, ex-morador). Talvez não fosse a “verdadeira história” do bairro que morria… Era, antes sim, a imposição dos outros tempos e de outras necessidades. Lembremos: “Os tempos mudam e a gente também muda”, afirmou José valente. A segunda geração, dos filhos que permaneceram no bairro, já se vão representando como cidadãos de

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direitos e de voz, capacitados para desenvolver estratégias que contrariarem a sujeição a uma ordem ou “destino social” que os progenitores conheceram durante o regime do Estado Novo(3). A vitalidade do movimento associativo, as novas iniciativas que estão na origem de novos clubes ilustra este outro ímpeto que acabamos de referir. O movimento associativo e os novos clubes – “muita carolice e orgulho bom” “Era um bairro muito clubista” Vitor Aveiro, vogal do Desporto/JFC “O bairro tinha muito orgulho nos seus clubes” Fernando Pereira, ex-morador Tal como ocorrera com a origem dos dois clubes já identificados – O Unidos e os Amigos da Luz – e que marcaram a génese do movimento de cariz associativo no bairro, a formação de uma estrutura clubística, regular e sólida tem sempre o seu início em encontros informais, irregulares e descomprometidos. Todos os clubes têm início em reuniões entre amigos que aqui ou ali se juntam em torno de um gosto ou pretexto comum – o gosto por jogar à bola é o exemplo mais frequente. Nesta fase confirma-se o gosto pelo “bichinho” do associativismo. Os clubes já criados (“Amigos da Luz e “Os Unidos”) reanimam as dinâmicas e promovem várias iniciativas com novos fôlegos. E outros protagonistas entravam em campo confirmando os clubes como agentes fundamentais na mediação e representação da imagem do “nosso bairro” no exterior. Clube Atlético e Cultural – “todos iguais, sendo diferentes” Em 1974 foi fundado o Clube Atlético Cultural. Foi na paróquia da vizinha freguesia da Pontinha que este clube recebeu o seu primeiro estímulo pois era ali que partilhava um espaço comum com a Juventude Operária

Católica (JOC), também da Pontinha. Já em 1971, um grupo de estudantes universitários queria levar adiante um projecto desportivo e cultural a que denominaram “Cultura, Assistência e Convívio” inspirados no lema de Fernando Pessoa – “o Homem sonha e a Obra nasce”. E a obra nasceu. O desporto já havia sido compreendido como instrumento eficaz na integração e coesão sociais conseguindo validar o sucesso de jovens deslocados do ambiente escolar. Durante muitos anos as relações do CAC com os demais clubes desportivos do bairro foram tensas na medida em que, naquela perspectiva, “não está transparente” a atribuição do campo desportivo a “um clube de fora” – do bairro e da freguesia. De qualquer modo o CAC desde sempre investiu no recrutamento de jovens atletas entre os moradores do bairro de modo a esbater esse estigma de “clube de fora”. “O CAC cruza-se com a história do Bairro Padre Cruz numa série de vectores – o mais importante é no campo desportivo, nomeadamente no futebol. Porque é dos maiores clubes de Lisboa e o maior de Odivelas e, como tal, as crianças e as pessoas percebem que fazemos um trabalho em termos de formação – enquanto atleta e enquanto cidadão. Nós não damos importância apenas ao aspecto físico mas também à relação com a escola. Tem que haver a componente desportiva, social, familiar e de divertimento… O bairro tem um problema – as gerações mais velhas têm um ódio de estimação em relação ao clube – mandam-nos ir para a Pontinha quando somos de Carnide. Isso não faz sentido nenhum porque as nossas instalações e grande número de associados são de Carnide apesar de a nossa sede ser na Pontinha. Com as gerações mais novas não é assim. O diálogo é muito mais fácil. Toda a gente sabe que só trabalhando em conjunto é que as coisas avançam.. E se há questões pessoais elas não devem ser misturadas com as questões do clube. Mas creio que isto mudou muito… tenho mudado muitas mentalidades… sou muito frontal e temos que ser honestos, transparentes. Não faz sentido que num bairro um seja mais vizinho do que outro.

Essa mentalidade tem vindo a alterar-se. Somos 3 clubes do bairro, independentemente da nossa sede na Pontinha. Porque 90% da nossa atividade é em Carnide.” (Vitor Cacito, presidente do CAC desde 2009) Grupo Recreativo Escorpiões Futebol Clube – os “toupeiras” A história deste clube é exemplar em muitos aspectos(4). Foi narrada por Emídio Silva, seu fundador. A vivacidade e interesse do seu testemunho levam-nos a considerá-lo património do clube, e do bairro. Por esse motivo, mantivemos grande parte da sua sequência. Escute-se: “A actual sede dos Escorpiões tem muito da sua história ali montada. Porque não foi ali que o clube nasceu… a ideia do clube nasceu entre um grupo de adolescentes, quatro ou cinco amigos admiradores e praticantes de futebol, que se reuniam à conversa nas escadinhas da rua Rio Mira. E perguntámos: porque é que não fazemos um clube de futebol na nossa rua? Éramos onze e tivemos a ideia de formar uma equipa de futebol. Fizemos essa equipa e comprámos treze equipamentos. Eu e Manuel Joaquim já trabalhávamos e adiantámos o dinheiro. Começámos a jogar com o Casa Pia. Começou a haver pressão dos nossos pais para formar um clube pois ficavam impressionados quando nos iam ver jogar. Diziam que nos ajudavam, que se estabelecia uma cota simbólica… e, então, decidimos fundar um clube – Escorpiões Futebol Clube. Fundámos o clube nesse dia, 2 de Agosto de 1976. Foi o dia em que fomos comprar os equipamentos. O nome resulta de termos começado por ganhar os jogos todos e houve um senhor que disse que nós éramos como os escorpiões – deitávamos o “veneno”, no bom sentido. Porque íamos ganhando todos os jogos. Sempre que jogávamos, ganhávamos. A primeira sede foi a minha casa. Reuníamos à noite para planear jogos, ver estratégias e as coisas foram

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ALGUNS FUNDADORES D'OS ESCORPIÕES, ANOS 80 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

NA GARAGEM DO SR. ALFREDO AMARAL, 2010

JUVENTUDE ESCORPIONINA

acontecendo… Sempre com o apoio dos pais – a minha sogra era uma activista do futebol, gostava muito de nós e ficou a madrinha do clube. Num mês, mês e meio tínhamos 90 pessoas a quererem ser sócios. Pedimos apoio logístico a um outro sócio amigo – o Álvaro da Pontinha – que ofereceu uma cave e ali pusemos as taças. Era nossa primeira sede. Era bom para ele porque levávamos movimento e dinheiro, e era bom para nós que reuníamos ali. Ali estivemos dois anos. Depois, na Rua do Rio Mondego houve um vizinho – o Alfredo Amaral – que nos alugou uma garagem já aqui no bairro. Essa, foi a nossa primeira sede verdadeira. Comprámos uma máquina de café de saco, toda cromadinha, toda bonita. Tínhamos lá o emblema do clube (…) Passámos uns anos bons na garagem do Alfredo. Foi, de facto, a primeira sede aberta ao público. Só o sócio podia frequentar as instalações. Não aceitávamos qualquer pessoa, éramos um clube de bairro. Tínhamos as inscrições sempre fechadas para evitar problemas. Nunca houve zaragatas dentro das sedes (…). A sede estava aberta mas nós não estávamos legalizados e tínhamos que o fazer, arranjar 21 assinaturas de adultos com responsabilidades. (…) E aí tivemos que alargar o círculo de sócios. Fomos à Federação Portuguesa de Colectividade de Cultura e Recreio. A direcção era mesma dos rapazes das escadinhas. Ainda hoje temos a escritura dos Escorpiões (…) Depois deu-se lugar a outras actividades de desporto que não só o futebol. Entraram outras direcções. Houve o Zé Luís, por alcunha o Zé Lagarto, que foi uma pessoa muito importante para o clube. E o que foi engraçado é que, primeiro, ele era contra os Escorpiões porque morava perto da sede e nós fazíamos barulho… Mas o que é certo que ele fez-se sócio e, depois, fez parte da direcção e foi um grande incentivador e dinamizador do clube. Foi uma pessoa que fundou a juventude escorpionina onde tivemos de 150 a 200 crianças com várias actividades desportivas. Ele esteve 10 anos na direcção e eu estive sempre com ele em cargos distintos… E foi através dele que conseguimos a nova sede.

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Conseguimos ter teatro nos Escorpiões graças ao Zé Martins. Estivemos três vezes no S. Luís com a peça Fogueira de Natal. Uma peça do Bento Martins, ensaiada pelo Zé Martins. Tivemos que alugar um autocarro de dois andares para levar as crianças para o teatro… Mais tarde veio o futebol de salão, futebol de cinco. Não podíamos ser federados porque já havia o clube dos Unidos, aqui no bairro. A juventude escorpionina foi rareando porque as gerações seguintes, os netos, já não são tão afoitos às colectividades. E a tendência das colectividades é para irem desaparecendo a pouco e pouco. A realidade é esta – não havia quase alternativas, as diversões nós não podíamos frequentar financeiramente. Hoje qualquer pessoa pode ir. Eu já vir morrer várias colectividades... o Andorinhas, os Amigos da Luz, já vi os Unidos no auge, na 3ª divisão.” A história da sede que falei no início tem uma história muito interessante. Aquilo era um depósito da Câmara Municipal de Lisboa, muito pequenino, uma cave num prédio. Um local de arrumos dos carrinhos dos almeidas. Aquilo era muito baixinho, não conseguíamos andar lá dentro em pé…. Não dava para meter uma máquina para escavar. Mas o Zé Luís, dinâmico como sempre, arranjou solução – vamos comprar dois carrinhos de mão, picaretas, pás e enxadas e vamos começar a desbastar isto. O Zé Luís impulsionou imenso e começámos mesmo a escavar… Hoje pensamos a loucura e o perigo que foi! Fomos considerados as toupeiras pela CML. É uma história de muita persistência. De muito trabalho e esforço conjunto. (…) Nesse ano ficámos sem dinheiro nenhum porque aplicámos tudo nas ferramentas… Conseguimos condições especiais para conseguir fazer isto, com muita ginástica financeira. (…) A sede abriu há 23 anos atrás. A sede era toda verde e preto que é a cor dos escorpiões. Trabalhámos aqui muito. (…) Fizemos coisas muito boas e bonitas.” (Emídio Silva, sócio fundador e ex-director, exmorador)

Clube de Futebol Os Unidos – “os anos de boa memória” Na conjuntura das movimentações sociais que descrevemos, merece referência especial o ano de orgulho d’Os Unidos. Um clube que fundou raízes firmes no bairro, uma referência forte para várias gerações de sócios e de jogadores e cujo empenho chegou a patamares de fama nunca sonhados… “Em 1977-1978 estivemos na 3ª Divisão do Campeonato Nacional. Foi a fase de ouro do clube. Viajámos até à Madeira, tínhamos muitos adeptos a apoiar-nos… foi muito bom. Às vezes, quando íamos jogar fora, era mais gente nossa a apoiar do que a gente que jogava em casa. Conseguíamos mobilizar muita gente, iam camionetas, excursões… Foi quando estivemos na 3ª Divisão Nacional e se disputou a Taça de Portugal contra o Vitória de Guimarães que ganhou por 2-1. Mas primeiro o resultado esteve por nossa conta. Foi em 1977/78. Quem treinava era o Carlos Bandeirinha. Ainda aí está. Era muita carolice e orgulho bom. Nessa altura nem todos tinha possibilidade de dirigir um clube, era preciso pulso e trabalho e, também por isso, tínhamos muito orgulho nos resultados que vieram depois. E o que desejo para o clube é que consiga superar as enormes dificuldades e levarem o bom nome da camisola”. (Carlos Pedro, morador e ex-presidente do Clube de Futebol Os Unidos) Grupo “Amigos da Malha” – “não queremos que a tradição se perca” Tal como sucedeu com outras iniciativas assinaladas, o grupo d’Os Amigos da Malha surgiu da camaradagem em volta de um jogo tradicional português e, ao que parece, de origem das Beiras – o jogo da malha. Uma prática desportiva que remonta a ambientes (e tempos) da província e relembra um costume de convívio ancestral. A preocupação em manter vivo o gosto por esta prática, a transmissão da “arte” às novas gerações, a

“naturalidade” com que o jogo entra nos quotidianos, o recurso a materiais de uso e manuseio fácil… têm sido aspectos que o Grupo tem procurado defender como um uso e costume ancestral que faz parte do património tradicional e que importa preservar. “Não queremos que isto se perca. As crianças jogam à malha naturalmente. E isto estimula capacidades, concentração e o gosto pela competição tranquila… Todos os clubes têm para cima de 100 sócios, excepto os Amigos da Malha que têm à volta de 60. Eles limitam as entradas.” (Freitas, responsável pela área do Desporto da JFC) Aos fins-de-semana e próximo da sede dos Unidos, em terreno de terra batida, regularmente juntavase um grupo de amigos. Esses convívios de carácter informal foram acontecendo durante a década de 70. Nos anos 80 “oficializaram” a sua identificação – “Os Amigos da Malha” – e, por ocasião da constituição da Associação de Moradores, em 1986, este grupo passou a integrar uma secção daquela associação. Chegaram a incluir 50 adeptos mas mantém-se como um Grupo informal, sem enquadramento legal. Novo comércio: os mesmos espaços, outras funções Vencidos os momentos mais intensos do período pós-revolução, dentro do bairro também se registam aqui e ali tímidas iniciativas de negócio, novos pontos de comércio. Mas importa ter presente que o comércio do bairro, por esta altura, já tinha a concorrência forte dos estabelecimentos da vizinha freguesia da Pontinha que também crescera significativamente. De facto, a proximidade, variedade e as mobilidades facilitadas (quer pelo autocarro, quer pelo automóvel) fizeram do abastecimento na Pontinha o hábito mais frequente. Ainda assim, houve quem investisse em pequenos negócios no bairro. Reunimos alguns exemplos.

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A mercearia do senhor Fonseca Após o pós-25 de Abril verificou-se a desocupação das casas destinadas às Oficinas de malhas e de costura bem como ao atelier de carpintaria, já foi referido. Surgem propostas para outros usos e funções, algumas, por iniciativa dos moradores. O caso da mercearia do senhor Fonseca é um exemplo. “Nestes barracões havia casas de reparações de electrodomésticos mas tinham muita dificuldade em manter o negócio. Eu propus ficar com esses barracões. Apresentei os pedidos. Assim, passaria a haver uma mercearia para servir a população, pois a única era a mercearia ‘casa branca’. Pouco mais naquela altura. O mercado só tinha a fruta e os legumes. E uma taberna para beberem uns copos e jogar à malha. Por isso, uma mercearia aqui iria dar muito jeito para as pessoas. No início correu muito bem, mas foi sempre um negócio para as pessoas que moravam aqui à volta. Um negócio de proximidade. Tinha um ambiente de família. As pessoas podem comprovar que eu tenho sido “o Fonseca” que realmente está sempre pronto para ajudar, para facilitar… “leve lá que paga depois”. Ainda hoje, para mim, a amizade conta mais do que o resto do negócio. Eu gosto de passar na rua e dar-me bem com toda a gente. Antes de 1979 foi a loja de roupa (…) Alguém me acenou com a possibilidade de ocupar estes barracões e eu pensei em fazer aqui uma camisaria… Não tinha nada a ver com mercearia porque eu nem percebia desse negócio. Hoje, ainda tenho essa parte aí com venda de roupas porque foi um hobby que ficou. Fabricávamos camisas e batas por medida e fiz uma loja de roupa porque as pessoas iam pedindo. Era uma pequena fabriqueta de costura. Foi em 1979. Era uma pequena oficina de confecção. Vendia para as pessoas do bairro mas cheguei a ter encomendas de fora, para lojas. Forneciam os tecidos e eu fabricava, a minha mulher cortava e eu costurava…Não empregava pessoas do bairro. Só empreguei pessoas após montar a mercearia. Só mais tarde, quando se deu o 25 de Abril é que mudei para mercearia. Isto foi uma sobrecarga muito

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grande, isto vai morrer tudo. É uma pena o negócio das mercearias acabar…“ (Joaquim Fonseca, comerciante e morador) O velho mercado O comércio do mercado – recuperado a partir da antiga vacaria – conheceu um período difícil durante a década de 70-80 e não recuperou a importância junto dos residentes pois este, foi um equipamento que os moradores não valorizam, actualmente. Para isso c o n t r i b u í r a m v á r i o s f a c t o r e s . Po r u m l a d o , o desinvestimento camarário na manutenção e cuidado com o edifício que se foi degradando e ficando pouco apelativo; o preço das rendas das lojas e a rentabilidade de negócios que dependem de populações de fracos recursos; a maior mobilidade dos moradores (muitos filhos, da segunda geração, conseguiram adquirir automóvel e abastecem-se em outros locais) e a proximidade com a freguesia da Pontinha.”. De qualquer modo, a título de “ilustração” incluímos o breve depoimento do café do Quim que a somar aos outros (novos) pequenos comerciantes da década de 70-80 (tabacaria/papelaria, cafés, cabeleireiro, talho, churrasqueira…) são reveladores dos custos da sobrevivência dos negócios no bairro. O café do Quim Bem localizado, na rua principal, este café é ponto de encontro entre moradores de todas as gerações. Merece o breve comentário que, mais recentemente, a simpatia e experiência dos funcionários (Miguel e Paulo) dão vida própria ao balcão (e, hoje, para “sentir” um pouco da vida do bairro, basta o instante de uma bica...) “Conheço o bairro há uns 30 anos (…) Depois, apareceu a possibilidade de ficar com o negócio. Já cheguei a ter mesas aqui. Era para os velhotes. Sentavam-se aí, jogavam cartas, damas, dominó… Hoje não tenho interesse em ter as mesas porque a casa não é muito grande e as mesas atraíam um certo tipo de clientes que não nos interessa… e

quando os velhotes queriam, acabavam por não ter na mesma… Quando há um petisco ou assim, voltamos a por uma mesa. Mas este mercado não está tratado ao mesmo nível do que outros mercados – o de Benfica, Sete Rios, o Rato. Este mercado não tem fiscal, nem segurança nem policiamento. Para todos os efeitos este mercado não existe – alugaram a loja a cada um, que paguem a renda, a água e luz e que se desenrasquem… De um do geral, as preocupações que aqui estão traduzem as preocupações de todos os comerciantes do mercado. As questões de limpeza das ruas, também. Hoje há um grande descuido e ninguém sabe quem é responsável pelo quê…” (Joaquim Marques, comerciante). Outros projectos pioneiros – o primeiro apoio domiciliário da SCML Desde 1978, e após o período mais revolucionário e conturbado, a SCML reentrou no bairro com outra estrutura organizativa. Entre os apoios que disponibilizava para a população idosa, houve notícia de um projecto pioneiro – o Apoio Domiciliário. Esta valência de apoio fundamental só seria inscrita, formalmente, na estrutura orgânica da SCML perto dos finais de 90. A inspiração pode ter vindo do trabalho conjunto com as irmãzinhas da Assunção e moradoras no bairro (Albertina Lopes e Isabel Maria). “Quando entrei para a SCML entrei com um projecto pioneiro com a D. Isabel Maria (minha sogra) que foi convidada através das Irmãs de Caridade de N. Srª da Assunção, que tinham um trabalho muito meritório aqui dentro do bairro. Começámos só as duas, em 1978. Era um tipo de “apoio domiciliário” mas muito diferente do que é hoje porque naquela altura era praticamente o trabalho de mulher-a-dias. A falta de apoio era tanta, tanta, que tínhamos mesmo quer começar primeiro pelo mais básico para sentirmos que tínhamos feito algum trabalho de ajuda (…) Foi muito inovador, na altura. Havia pessoas em paupérrimas condições, a viverem com galinhas, com patos (…) O trabalho foi sendo cada vez mais exigente e

estruturado. Este apoio era feito aos idosos do bairro, prioritariamente aos que não tivessem rede familiar de apoio.” (Albertina Lopes, ex-moradora e técnica do Polivalente da SCML) 1980-1990 – A(s) cultura(s) de bairro, o capital social comunitário Tal como já referimos e sublinhámos, a localização geográfica e organização vicinal do espaço – facilitadora de encontros e de reencontros – o semelhante perfil dos moradores e a oferta de equipamentos suporte aos usos do quotidiano… foram criando e consolidando redes de convivência, sociabilidade e associativismos vários que fortaleciam o sentido de pertença ao território e uma “cultura de bairro”, apesar do torvelinho social que revolve todo este período. A representação que o bairro constrói sobre si mesmo devolve essa imagem positiva da comunidade com os seus núcleos próprios e focos de interesse vários… Pensava-se e vivia-se como comunidade “e isso abria-nos a relação aos outros. Não vivíamos guetizados. Abríamo-nos e relacionávamo-nos com os outros.” (Fernando d’Oliveira, morador) As festas, os santos populares – “cada rua era um palco”

GRUPO DE EXCURSIONISTAS (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

JOVENS DA RUA DO RIO COURA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

Marcha do Bairro Padre Cruz Esta é a marcha //Assim, a cantamos. O Bairro do Padre Cruz// Onde sonhamos. Ruas, são rios de Portugal. Os moradores!// Com alegria vamos cantar Porque o Bairro //Tem os seus valores E sem rival! Agostinho Coelho Cristino (morador) Durante as décadas de 70 e 80, apesar da progressiva degradação, o bairro (de alvenaria e de lusalite) recuperou a vitalidade. Quer através das iniciativas dos

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NOITE DE FADOS NO SALÃO DE FESTAS (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

MARCHAS NAS RUAS DO BAIRRO (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

FESTA DE PASSAGEM A PARÓQUIA, 1984 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

moradores, quer no dinamismo comunitário a partir das colectividades existentes (Unidos, Amigos da Luz, Escorpiões…). As festividades adequadas ao ciclo do ano – os bailes de máscaras, as famosas marchas pelos santos populares,… – são lembranças vivas entre todos os moradores. Nesta fase, a solidariedade entre os residentes da mesma rua e a sã rivalidade com as demais… retomam e proporcionavam um (novo) ambiente de comunidade viva e saudável – “o Bairro Padre Cruz era o príncipe dos bairros de Lisboa!”, sintetizou Mário Guerra. “Às festas do bairro, às festas da rua, ninguém falhava… toda a gente ali estava. Nunca deixávamos escapar as datas. O Carnaval também era vivido por ruas. Tinha que acontecer sempre qualquer coisa. Mascarávamo-nos em casa sem ninguém saber e, depois, aparecíamos na rua todos de repente, já mascarados, para vermos o espanto dos vizinhos… Estávamos sempre a pensar nas surpresas que podíamos fazer aos vizinhos, … cada rua era um palco. Nasci e cresci na rua mais bonita do Bairro Padre Cruz porque a nossa rua era isso mesmo – uma família. Se uma vizinha tinha um problema, as outras 19 vinham perguntar o que tinha acontecido. E tudo acontecia naquela rua! Aquela rua era uma animação… É a rua do rio Sabor. Nessa rua acontecia tudo. Desde arraiais populares, a festas, almoçaradas que se organizavam entre vizinhas, entre as 20 casas daquelas rua, o montar de um tribunal quando havia desavença entre duas vizinhas e que na hora tinha que se resolver… É um bairro de raiz provinciana e a província é muito isto – a entreajuda, a proximidade, o estar sempre próximo para dar e receber. E vivemos as coisas mais bonitas… Nós fomos criados ali uns 8 a 10 miúdos da mesma faixa etária, ainda passámos pela fase de pedir um tostãozinho pelo Stº António…E, depois, quando havia casamento, varríamos a rua de alto a baixo para estar tudo muito arranjadinho, tudo muito limpinho para aquilo acontecer…” (Mário Guerra, ex-morador) Em paralelo, os clubes do bairro, também eles, promoviam fortes relações e convivências. Os clubes,

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rapidamente, sediaram a organização destes entusiasmos e os festejos eram aproveitados para “dar força ao clube” e, ao mesmo tempo, testar e rivalizar a popularidade entre cada um deles. As festas passam a ter a assinatura dos clubes… (os arraiais dos Amigos da Luz, dos Unidos, dos Escorpiões…). Porque cada um queria inovar e surpreender tudo e todos. “Eu era ainda uma jovem e percebi que este era um bairro de gente trabalhadora, alegre, que investia muito nas suas atividades, nos clubes. Cada uma investia no seu clube porque também havia uma certa conotação política com os clubes e as pessoas canalizavam muito as suas energias para o seu clube… defendiam muito os seus clubes com muita genica e iniciativa.. Havia um gerir das relações cheios de festas e de iniciativas. Era um bairro que mexia muito com a minha maneira de ser… Fiz várias letras para as marchas do bairro.” (Albertina Lopes, técnica da SCML, ex-moradora). O reanimar da paróquia – “uma paróquia de relação” Durante o torvelinho da década de 70 os ânimos excederam-se, percebeu-se. Porém, quando entramos na década de 80 o fulgor da paróquia reanima-se e reaparece num “território social”, agora, muito disputado. As iniciativas paroquiais já não são únicas nem surgem isoladas como acontecera em tempos do início do bairro. Nos anos 80 enfrentam a concorrência das colectividades que se multiplicavam entre desafios e convivências. De qualquer modo, nesta fase, a paróquia conseguiu imporse, de novo. O facto de ter sido reconhecida como paróquia de Nossa Senhora de Fátima, reforçou muito o papel da igreja no bairro. Esta autonomia consolidou a área específica de intervenção nas funções rituais que lhe são inerentes: celebração de baptizados, primeira comunhão, casamentos, para além da acção regular da catequese. Também as homílias do Padre António Baptista são muito lembradas, e enchiam as assembleias dominicais.

“A grande força da paróquia foi de 1981 até 1987-88. (…) Recordo que, na altura, se criou uma dinâmica muito forte que ultrapassava a própria paróquia. Houve situações em que na Missa de Domingo das 10.30, que era a missa da catequese, nós tivemos que pôr pregos e cordas para reservar os nossos lugares. Aconteceu com o actual Padre Baptista. Criou-se ali um movimento tal que tínhamos que arranjar estratégias para antecipadamente garantir os nossos lugares. Muita gente ficava fora da igreja. A igreja ficava repleta. Isto aconteceu durante dois ou três anos. Foi uma altura em que também se faziam muitas festas no próprio bairro, faziam-se excursões, passeios, o encerramento do ano era sempre feito no pinhal da Paiã, perto da Pontinha. Houve um momento em que a paróquia funcionou como um grande ponto de atracção e de convergência. E isso ia muito para além da questão religiosa…Tudo tem os seus períodos. O Padre Baptista tinha chegado de África e tinha uma forma de comunicar que era invulgar. Durante a missa circulava entre as pessoas e falava com elas. Ele fazia a homilia entre as pessoas, escutava os miúdos, ajudava… havia ali uma forma de comunicar que, depois, foi perdendo o dinamismo…” (Fernando d’Oliveira, morador) E é o próprio Padre António Baptista quem melhor recorda: “O registo do primeiro baptismo ocorreu em 28 de fevereiro de 1982 numa altura em que a situação de quaseparóquia já permitia celebrar na capela N. Srª de Fátima. Nesse ano, registam-se mais 31 baptizados. E em outros anos chegaram a celebrar-se 50 e 60 batizados. Os baptismos são individuais, as famílias são humildes, não há grandes festas. Nas comunhões, sim. Chegámos a fazer em dois turnos, dois domingos, por causa da assistência dos pais, avós e padrinhos. Era uma grande festa de paróquia. A média era de 60 e 70. Pastoralmente nem seria muito correcto, mas tinha que ser… Em 1984 há o registo do primeiro casamento na paróquia. Nestes anos foram dois, depois a média foi de oito, dez casamentos por ano. Hoje, o casamento é um por ano.”

A gestão do bairro: uma gestão comparticipada “Há uma base humana e de trabalho conjunto que é capaz de trabalhar para prevenir as situações…” Natália Nunes (SCML, em funções técnicas no bairro de 1973 a 1991) Percebemos que a democratização do pós-25 de Abril tornou o governo e o Estado permeáveis às pressões dos movimentos sociais da sociedade civil. Mas, também por isso, nem sempre houve linhas políticas claramente definidas o que se reflectiu, necessariamente, nas políticas de apoio à habitação. Desde os finais dos anos 70 que a responsabilidade pela habitação social foi sendo imputada às autarquias, em várias modalidades de cooperação e de parecerias, ficou dito. Porém, o modo como a sociedade civil e iniciativas privadas se articularam, em termos concreto, dependeu das negociações e das forças vivas do poder local. Nesta fase, e de um modo geral, assistiu-se ao alargamento progressivo da oferta de habitação social, através de entidades de natureza diversa – cooperativas, empresas privadas e IPSS… que usufruíam de financiamentos por parte do INH ou, no caso dos realojamentos, com comparticipação a fundo perdido do IGAPHE (Silva, Nunes (1994). A partir de 1980, com a governação de Kruz Abecassis (Aliança Democrática, até 1989), assistiu-se a uma outra viragem no enquadramento da intervenção municipal em termos de habitação social, consequente da gradual transferência para os municípios daquela responsabilidade. Escusado será referir que a procura de casa por parte de largas franjas da população mais carenciada continuava a crescer e que, dada a estrutural ausência de alternativas, continuava a instalar-se nas descontroladas periferias, pressionando a urgente intervenção dos municípios. Por outro lado, durante a década de 80, viveu-se não tanto a experimentação do poder local mas a politização (e consequente partidarização) da sociedade

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BAPTISMO NA IGREJA DO BAIRRO, PADRE ANTÓNIO BAPTISTA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

PROFISSÃO DE FÉ, PADRE ANTÓNIO BAPTISTA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

CASAMENTO, PADRE ANTÓNIO BAPTISTA (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

GRUPO DE JOVENS, ARRÁBIDA, 1988 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

GRUPO DE JOVENS, DIA VERDE, 1989 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

civil que cede a novas fracturas. E isso também se verificará na relação e negociação do Bairro com os poderes centrais, da cidade. A gestão do Bairro Padre Cruz confirmava, agora, a sua dependência directa da CML (através da Direcção Municipal da Habitação, que já referimos) sem que retirasse vantagens dessa proximidade. Um Plano de Urbanização do Bairro Padre Cruz foi aprovado em 1981, e a proposta de obra foi apresentada em 1986. A equipa da obra, constituída ainda sob a presidência de Krus Abecassis, foi dirigida pelos arquitectos Maria Rosa Leitão, Sousa Afonso e o engenheiro Carlos Pereira. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, acentuava-se a degradação das antigas zonas de lusalite e alvenaria sem que houvesse qualquer intervenção mesmo quando solicitada. Esta situação manteve-se até 1987 (!) conforme testemunha Elisabete Santos: “Recordo-me que a casa tinha muito poucas condições. Tinha sido deixada em muito mau estado pelos anteriores moradores. Aquilo que sinto hoje em dia é menos grave e menos doloroso do que sentia na altura (…). Não tínhamos condições para tomar banho, não tínhamos condições para cozinhar. Tínhamos uma cama sobre tijolos. Não era propriamente o espaço mais aprazível para se viver… Lembro-me que tínhamos que aquecer a água no fogão e depois verta-la no alguidar… Tomava banho no quarto.” Por curiosidade vale referir que nesse ano de 1987 foram efectuados os primeiros recenseamentos dos alojamentos precários. Com a colaboração do LNEC foi criado um grupo de trabalho para caracterização sociocultural das “populações mal alojadas” e prosseguir no planeamento dos realojamentos de modo a evitar a “desestruturação dos seus modos de vida” (Boletim GTH, 50/51, 1986). Também nesse mesmo ano a Câmara Municipal de Lisboa interveio com um novo programa de apoio à construção de habitação com “fins sociais”. Tais medidas reconheciam a estrutural e persistente prioridade do problema da habitação na agenda política camarária e

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incluem-se no Plano de Intervenção a Médio Prazo (PIMP, Decreto-Lei nº 226/87, de 6 de Junho). Foi neste contexto que surgiu o projecto relativo à construção faseada de um bairro novo de realojamento, com um total de 1 290 fogos, a construir em duas fases na parcela expectante dos campos de trigo. No ano seguinte, em 1988, foram iniciadas as obras de preparação das infraestruturas viárias e do primeiro conjunto de edifícios de habitação. Este projecto e obras prosseguiram durante o mandato socialista, sob responsabilidade de Jorge Sampaio. Enquanto isso, acentuava-se o desinvestimento no edificado do “bairro antigo” e o agravamento das condições de habitabilidade. Já sabemos que as casas não se adequavam às necessidades das famílias, e as transformações feitas pelas famílias prosseguiam por razões da mais elementar sobrevivência, em muitos casos. Por outro lado, o esforço concertado entre algumas instituições, autarquia e moradores foi fortalecendo uma outra “vida de bairro” mais consciente civicamente e amadurecida politicamente. Entre tempos socialmente agitados, a figura de Maria Vilar Diógenes teve um papel decisivo neste processo, enquanto presidente da Junta de Freguesia de Carnide. Durante o seu mandato foi encetado um trabalho de proximidade junto dos moradores, de auscultação dos respectivos problemas no terreno e o incentivo a uma gestão participada pelo conjunto da comunidade. “Estava a arrumar uns papéis nas gavetas da Junta de Freguesia… e dei conta de um ofício de aprovação, na Assembleia Municipal de Lisboa, para a construção de quinhentos e tal fogos para substituir o bairro de lusalite, naquela zona da “casa branca” e para realojar moradores ao abrigo do PER [Plano Especial de Realojamento]. Abrangia moradores do bairro de lusalite, alvenaria, a população abrangida pela construção do eixo Norte/Sul. E, apercebi-me que era para continuar esquecido… na gaveta. Como tínhamos várias reuniões com várias instituições e com a Câmara (foi na transição do presidente

Abecassis para o Jorge Sampaio), divulgámos o “achado” junto da comunicação social e começámos a mexer-nos… Entretanto, a propósito de um encontro de bairros degradados que ia acontecer conseguimos reunir algumas juntas de freguesia, divulgámos as nossas preocupações, e apresentámos algumas conclusões - porque já havia estudos feitos. E foi a propósito deste assunto que formalizámos a existência da Associação de Moradores do bairro do Padre Cruz. Fizemos um grande plenário de moradores no salão de festas e havia muitos moradores do bairro de lusalite nos órgãos da Associação, e havia parceiros como a Associação dos Inquilinos Lisbonenses, o Eng.º Fonseca Ferreira, União dos Sindicatos de Lisboa e o MDM (Movimento Democrático das Mulheres)….Foi um ano de muita luta, a mostrar as péssimas condições em que viviam estas pessoas… Eram elas que falavam (… ) e a Câmara sentiu-se pressionada perante a evidência destas realidades. Conseguimos que a população e os parceiros fossem ouvidos nos processos de realojamento. A Comunicação Social teve um papel muito importante…(…) Não teríamos conseguido o que conseguimos – garantir que os realojamentos fossem, primeiro, para os moradores do bairro de lusalite – se não tivesse havido muita luta e empenho da nossa parte. Foi nessa altura que se constitui o Grupo Comunitário com vários parceiros, com a Misericórdia, a Junta de Freguesia, a Câmara, associações e moradores como parceiros…” “A Maria Vilar fez um grande trabalho junto com os moradores. É uma grande referência em toda a freguesia”, é a opinião generalizada que lhe confere, sem dúvida, o relevo de figura emblemática deste período, sem negar a influência da questão político-partidária.”(5) E estava aberto um novo capítulo nas modalidades gestão do bairro. O Grupo Comunitário: reunir para prevenir A comunidade foi firmando a sua identidade social acompanhando dois processos fundamentais. Por um lado, a continuidade de um percurso comum de

experiências de vida e de trajectórias sociais (conforme esboçámos em capítulo anterior) que animavam a identidade e a “cultura de bairro”. Por outro, um acumular de experiências que, face aos novos desafios, capacitava a conversão desse “sentido identitário” numa valia nova, em “capital social comunitário”. “Houve aqui uma tradição associativa e comunitária que foi uma mais-valia efectiva. O envolvimento dos parceiros e o tipo de relações que se criaram foram fundamentais.” (Ana Viana, SCML, em funções técnicas no bairro de 1991 a 1997) Um capital social que, para além de absorver aquela “âncora identitária”, foi sendo capaz de conquistar poder negocial perante a definição ou indefinição das políticas traçadas para o bairro, por parte do governo da CML. Vale referir que este “capital social comunitário” é um conceito rico e com interesse nas áreas da sociologia, antropologia e economia social… Sumariamente caracteriza-se pelo facto de ser um recurso das comunidades e não dos indivíduos isoladamente; ser o resultado de processos de socialização que unem representações e expectativas; assentar numa cultura de cooperação e exprimir-se em relações/redes de sociabilidade que alimentam ambientes de confiança e são propiciadoras do envolvimento cívico e político; ser um instrumento de capacitação/poder negocial – quer dos moradores, quer das instituições a trabalhar no terreno – perante os desafios “externos” que se vão impondo em cada momento. Logo, este novo “capital social comunitário” quer representar-se como um “valor activo” do Bairro Padre Cruz que promove, e é promovido, pela consciência e participação cívicas entre todos (moradores, técnicos das instituições, autarcas…) na definição dos horizontes desejáveis, e não desejáveis, para o bairro. Mas este capital novo também não era alheio ao investimento político-partidário. A constituição do Grupo Comunitário resultou desse movimento participado e concertado entre

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responsáveis autárquicos (Maria Vilar Diógenes assumira a presidência da Junta de Freguesia de Carnide), alguns técnicos das instituições, designadamente da SCML (Natália Nunes e, mais tarde, Roque Amaro, da PROACT) e moradores que tiveram papel activo nas decisões para o bairro. Veremos que, a partir de agora, este capital comunitário assumirá maior expressão no jogo social e político entre o Bairro Padre Cruz e a gestão da cidade. E onde o papel interventivo da autarquia se destaca em defesa das forças partidárias que representa. Um capital comunitário que, a partir desta década, servirá como instrumento na reivindicação a um lugar de direito – e já não à margem – no âmbito da discussão em matéria de política urbana ou em assuntos da gestão interna. “O Grupo Comunitário do Bairro Padre Cruz ao contrário do Grupo Comunitário da Horta Nova, sempre foi mais institucional. Sempre foi mais de parceria do que de participação. Parceria, no sentido que envolve os grupos institucionais; e participação envolvendo mais os moradores de forma espontânea, aqueles que não têm voz organizada… Era raro aparecer lá moradores que não fossem porta-voz de uma associação, colectividade… (…) No início, a coordenação era eu quem a fazia como elemento neutro, como elemento que vem de fora. Depois, passou a haver um anfitrião rotativo… a escola, a polícia, o centro de saúde… que dirigia a reunião. E sempre nesta lógica do circular e do inclusivo e sem qualquer simbolismo. Naquela altura [anos 80] não havia uma cadeira, uma mesa que o distinguisse dos outros.” (Roque Amaro, Proact/ISCTE, em projectos de desenvolvimento local na freguesia durante os anos 80 e 90). “O Grupo Comunitário surge nos anos 80 porque já se previa que o bairro ia sofrer grandes alterações. Era preciso começar a trabalhar com a população e os serviços existentes no bairro. Assim, a Misericórdia tentou fazer algum trabalho com as associações envolvidas e outras a

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envolver… Foram criadas duas associações a Associação de Pais e a Associação Juvenil – a ‘Renascer’ e foram criadas para que pudessem depois, elas mesmas, criar as condições para receber a população… A Associação de Pais resultou de um trabalho de muitas e muitas reuniões. Quando o bairro é ‘invadido’ por nova população, os serviços já estavam todos muito concertados e sabiam muito bem o que queriam para ali e, por outro lado, já havia mais repostas – a Associação de Pais. Um efeito disso mesmo foi o aparecimento da cantina na nova escola…" (Natália Nunes, SCML, em funções técnicas no bairro de 1973 a 1991). “Mais tarde, já na estrada dos anos 80, levantaram-se algumas questões relativas ao realojamento. Depois surgiu o projecto ‘Integrar’, de Carnide. Era um projecto que pretendia preparar e levantar algumas questões e prevenir para o que vinha a seguir. Porque previa-se um realojamento maciço com pessoas oriundas dos mais diversos locais da cidade e diferentes raças e etnias (…). O Bairro do Padre Cruz sempre apareceu como um bairro pacato, que até se distinguia de alguns dos outros por ter uma população maioritariamente trabalhadora da Câmara. Pessoas pacíficas, trabalhadoras, integradas… Com o realojamento alterou-se mas, mesmo assim, nunca atinge aquilo que se passa em outros bairros. Há uma base humana e de trabalho conjunto que é capaz de prever e de trabalhar para prevenir as situações…" (Ana Viana, SCML, em funções técnicas no bairro de 1991 a 1997) Poderemos arriscar que a figura de morador do Bairro Padre Cruz adquire, a partir desta fase, um outro contorno e significado. A consciência política e a participação cidadã assumem relevo e as reduzidas taxas de absentismo em todos os actos eleitorais podem servir de exemplo (Figueiredo, P. (2005). Foi a partir da década de 80 que a voz comunitária subiu o tom e conquistou o espaço político à esquerda, a que não é alheio o investimento do trabalho autárquico e as diferentes coligações do partido político eleito na freguesia.

Pelos finais dos anos 80, nos anteriores campos de cultivo que circundavam o bairro começaram a ser “plantadas” as fundações para uma parcela de construções que viria a ocupar uma extensa área de 28 hectares. E que ficará conhecido como “bairro novo” na gíria local. Porém, a defesa da identidade local (da tal “cultura de bairro”) será pretexto para novos confrontos entre “nós” (“os filhos do bairro”) e os “outros” (os novos residentes, estranhos às origens do bairro). A animada cultura bairrista acabará por assumir compromissos territorialmente vincados com o bairro antigo, o que dará lugar confrontos que atravessarão o ambiente social do bairro durante o período seguinte, a tomar início na década de 90, já sob orientação e concretização de um outro programa político-partidário destinado à cidade. Síntese Cronológica 1974 a 1990: A vivência local do(s) poder(es) e da(s) cultura(s) 1974 Revolução de “25 de Abril”. Início de um novo ciclo na história do país. O bairro vive muito perto mas “com grande estranheza” os momentos da revolução pois o respectivo posto de comando estava instalado no vizinho Quartel de Regimento de Engenharia 1. Este quartel marca um dos limites físicos entre o Bairro/Pontinha e os concelhos de Lisboa/Loures (a partir de 1998 será Lisboa/Odivelas). 1974/75 Após o golpe militar, a Câmara Municipal de Lisboa é gerida por uma Comissão Administrativa (três presidentes num só ano) e são suspensos os anteriores planos para a cidade. Período de experimentação do novo poder local democraticamente eleito; intensas manifestações populares em Lisboa, e no país. Agravamento das construções clandestinas e acolhimento dos “retornados” das ex-colónias; aumento da população residente nas periferias desqualificadas. Em Carnide é deposto o anterior presidente da Junta de Freguesia e constitui-se uma Comissão Administrativa da

qual João Gualdino (residente em Carnide) foi o primeiro presidente (1974-76). Vivem-se momentos de conturbação social e tensão política. Os primeiros realojamentos em prédios (200 fogos, em 10 edifícios de 5 pisos) introduzem tensões nas relações entre moradores. Constituição informal da primeira Comissão de Moradores, extinta após os primeiros realojamentos. Os moradores fazem adaptações na estrutura original das casas de alvenaria e de lusalite devido à necessidade de ajustamento às famílias residentes. - (06/05) - Criação do Clube Atlético e Cultural (CAC) com sede na freguesia da Pontinha mas com o campo de jogos em território da freguesia de Carnide. 1976 Lino Góis Ferreira é eleito presidente da Comissão Administrativa da CML. Em Carnide, Serafim Elias (PS) é o primeiro presidente da autarquia democraticamente eleito (1976-79). Extinção das Oficinas da Acção Social da CML. Transferência dos gabinetes técnicos dos Serviços da Acção Social da CML para o núcleo de Carnide em consequência dos momentos de tensão no bairro. - (02/08) - Inauguração da sede dos “Escorpiões Futebol Clube” na cave de um edifício da rua Rio Guadiana. 1977/78 Aquilino Ribeiro Machado é eleito presidente da CML (1977-80/Partido Socialista). 1977/80 Época de ouro do Clube de Futebol Unidos. Conquista posição na tabela da 3ª Divisão do Campeonato Nacional de Futebol; o treinador da equipa, Carlos Bandeirinha, é morador no bairro. Criada a Direcção de Serviços de Habitação que integra o Serviço de Realojamento que geria a atribuição de casas municipais. 1978 O Centro Social Paroquial de Carnide transfere para a SCML a gestão dos equipamentos e das atividades sociais (creche, jardim de infância e apoio a idosos). A SCML reaparece no bairro mais consolidada institucionalmente.

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Década de 1980 Estabilização das tensões sociais no país, adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). Krus Abecassis é eleito presidente da CML (CDS/PSD; 1980-89); período neoliberal, incremento da oferta da habitação social em condições que não contrariam os padrões de vida marginalizados. Em meados da década surge a preocupação com os bairros históricos e, em 1985, são criados os primeiros Gabinetes Técnicos Locais (GTL’s de Alfama, Mouraria, Castelo…). O GTH avança com um primeiro plano de urbanização para a área “descampada” e expectante do Bairro Padre Cruz. Em contraste, na freguesia de Carnide, afirma-se um posicionamento político de esquerda. Maria Vilar Diógenes é eleita presidente da autarquia em representação da coligação da APU (Aliança Povo Unido) e será reconduzida no cargo durante 11 anos (1982 a 1993). No final da década de 80 é constituído o Grupo Comunitário do Bairro Padre Cruz para conciliar interesses entre município, instituições e moradores, relativamente aos problemas do realojamento do velho bairro de lusalite em fase de demolição por iniciativa camarária. 1983 (01/09) Decreto de elevação da comunidade religiosa a Vicariato. O Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, faz coincidir esta data com a memória dos 35 anos do falecimento do Padre Francisco da Cruz, patrono do bairro. 1984 Celebração do primeiro casamento na (ainda) capela de Nª Senhora de Fátima. 1985 (12/06) Assinatura do Tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE). As relações no bairro estabilizam; em outros moldes, reanimam-se convivências do bairro. A paróquia revitalizase com o padre António Baptista, sobretudo na congregação da juventude (catequese e outras iniciativas). Os quatro principais clubes ou associações do bairro (Os Unidos, Amigos da Luz, Escorpiões e CAC) funcionam em pleno. Os equipamentos de apoio da SCML (creche, jardim

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de infância e centro de dia) reafirmam-se institucionalmente. 1985-1986 Alterações ao primeiro projecto de urbanização do Bairro Padre Cruz por técnicos do GTH 1987 Criação do INH (Instituto Nacional da Habitação) e IGAPHE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado) que, na linha de liberalização das iniciativas da Aliança Democrática (AD), serão organismos responsáveis pelo parque habitacional do Estado. Criação do Plano de Intervenção a Médio Prazo (PIMP) que estará na origem da erradicação das barracas no município de Lisboa (Dec-Lei nº 226/87, de 6 de Junho). 1987 (19/02) Decreto Patriarcal designando a elevação a QuaseParóquia do Bairro Padre Cruz. 1988 Início da profunda transformação da paisagem envolvente. Nos campos de cultivo instalam-se as fundações para o futuro “bairro novo”. A paisagem bucólica da “aldeia branca” desaparece. Realojamento dos últimos moradores das casas desmontáveis de lusalite e demolição parcial dessa zona do bairro. A Junta de Freguesia de Carnide é parceira atenta. Extensão da rede do Metropolitano e abertura da estação do Colégio Militar. 1989 Eleição de Jorge Sampaio como presidente da CML (até 1995) – início de período de governação socialista (mantém-se até 2002). A questão da habitação social, as degradadas condições dos bairros clandestinos e dos “bairros de lata” surgem como prioridades. Contabilizamse 20 000 barracas que albergam cerca de 10% da população de Lisboa. As periferias geográficas são periferias sociais onde aumenta o número dos “mal alojados”. Constituição formal da Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz (com primeira sede no centro cívico/ salão de festas). Joaquim Gomes, federado no Carnide Clube (e nascido no

Bairro Padre Cruz) conquista a camisola amarela na Volta a Portugal em Bicicleta. Em 1991 repetirá a proeza e essas duas camisolas serão oferecidas ao Grupo Recreativo “Os Escorpiões”.

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Fase 3 1990- 2000: BAIRRO DE CONTRASTES – O ALVORECER DO BAIRRO NOVO E O ANOITECER DO BAIRRO ANTIGO

CONSTRUÇÃO DO "BAIRRO NOVO", 1990-91 (CML, DCH)

“Este bairro, tal como foi pensado e construído – sobretudo na década de 90 – poder-se-ia ter transformado num verdadeiro barril de pólvora.” Paulo Quaresma (ex-morador, presidente da JFC) “O problema do realojamento é, antes de mais, um problema social e não um problema de edifícios (…) porque as pessoas não são coisas que se ponham nas gavetas.” Isabel Guerra(1) Novas políticas, velhas heranças: os “mal alojados” das periferias sociais

PLANTA DE LOCALIZAÇÃO DO "BAIRRO NOVO"

Sendo o Bairro Padre Cruz um bairro municipal ficou evidente, ao longo deste percurso, que as diferentes orientações políticas na gestão municipal foram determinantes na evolução do bairro. Além disso, as diferentes linguagens e prioridades político-partidárias criaram situações complexas, impasses e adiaram resoluções nas intervenções urbanas. A situação dos realojamentos no “bairro novo” e, depois, no vizinho bairro do Vale do Forno vincaram profundamente as paisagens físicas e vivenciais durante este período. Um período marcado pela governação socialista e por várias iniciativas para recuperar e reabilitar o parque habitacional da capital, melhorar a qualidade de vida, integrar na cidade os bairros de realojamento municipal, fixar camadas mais jovens da população em Lisboa, cujo centro se despovoara, em contraste com o crescimento descontrolado das periferias (Cardoso, Ana (2003). Um conjunto de medidas iniciadas, primeiro, sob a presidência de Jorge Sampaio (1989-95) e, depois, seguidas por João Soares (1995-2002), mas que motivaram avisadas preocupações, sobretudo no que diz respeito às soluções

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encontradas em matéria de realojamento(2). “O PER anuncia-se como essa política para as Áreas Metropolitanas. Daí que seja pertinente a questão: valerá a pena o pesado esforço financeiro e institucional da construção de bairros sociais, rapidamente transformados em «guetos», onde as populações melhoram de «abrigo», mas vêem agravados os problemas económicos, familiares e relações de vizinhança?” (Ferreira, A Fonseca (1994): 8) Dada a estrutural ausência de uma verdadeira política de habitação (Ferreira, Fonseca: 1988) antigas e novas populações continuavam a fixar-se nas (ainda) desqualificadas periferias (Benfica, Marvila, Olivais e Lumiar foram das freguesias que, em Lisboa, mais cresceram…)(3). Volvidas três décadas, a gravidade do problema da habitação reaparece, com nova veste e vigor, no discurso político: “Todos temos consciência de que a habitação é um dos problemas mais graves com que o País ainda se debate (…) A degradação do parque habitacional e a manutenção de núcleos de habitação precária são geradoras de situações de exclusão e marginalização social que impedem o pleno exercício de cidadania e marcam negativamente a vida individual, familiar e colectiva (…)” (João Soares, presidente da CML, 1996)(4) Um discurso novo para identificar um velho problema que resiste a todas as novas linguagens e conceitos. As “classes pobres” de outrora reaparecem como os “mal alojados” deste presente. Por consequência, sobrevêm diversas iniciativas focadas no problema habitacional do município (5) . Surge o programa de “erradicação total das barracas”, a concretizar até ao ano de 2001. Um programa que teve grande ênfase na campanha de Jorge Sampaio para a CML. Neste contexto, os serviços de gestão e planeamento da CML também foram alvo de reorganizações (cf. Boletins GTH, designadamente a

criação do DGSPH Departamento de Gestão Social do Parque Habitacional (6) ) com impacto evidente no relacionamento com os bairros municipais. O Gabinete Local da Gebalis surgirá a partir destas remodelações. Em 1995 prosseguia o plano dos realojamentos urbanos, sob a nova presidência de João Soares e vereação da Habitação sob responsabilidade de Vasco Franco. Deste plano fazia parte o anterior Programa de Intervenção a Médio Prazo (PIMP, 1987, iniciado com Kruz Abecassis) e que justificou a demolição faseada do velho e pioneiro “bairro de lusalite”. Porém, após a constatação do elevado número de núcleos de barracas recenseados no concelho de Lisboa e das limitações do PIMP, desenvolveu-se um outro e vasto plano: o Programa Especial de Realojamento (PER, fixado em Decreto-Lei nº 163/93, 7 de Maio de 1993). Sustentada pelo PER confirmou-se a linha da actuação camarária. Contudo, no que diz respeito aos realojamentos municipais, a tal resolução urgente e premente do “problema da habitação” acabaria por se restringir a jogos de equilíbrio entre quantitativos recenseados (quantas barracas, quantos fogos disponíveis, quantos a construir?), subestimando aspectos fundamentais para o sucesso das intervenções: a avaliação das reais condições – humanas e sociais – que ao longo dos anos foram gerando aqueles desequilíbrios e perpetuando a fragilização de amplas camadas da população; o continuado padrão, monoclassista e estigmatizante, das populações socialmente mais vulneráveis e empobrecidas; os territórios que lhes eram destinados e os modos de inserção; o plano e a estética de muitos bairros para realojamento; o impacto dos realojamentos nos bairros de acolhimento, sempre geograficamente distantes e periféricos; a desinformação e desacompanhamento institucional vivido pelas populações: quer as que são alvo de realojamento, quer as populações residentes nos territórios municipalizados… entre outras situações que adiante melhor escutaremos.

O alvorecer do “bairro novo” – velhos problemas, novos impactos Em contraste com a firmeza do programa político para a gestão da cidade, o Bairro Padre Cruz atravessou um dos momentos mais instáveis, tensos e intensos da sua memória. No seguimento das directrizes de 1987 foi a partir de 1990 que se iniciou uma nova e determinante fase de evolução urbanística e social do bairro. A paisagem física do bairro novo – o bairro dos blocos coloridos “Para mim, o que era importante, era criar um espaço público aprazível, agradável, amparável.(…) Maria Rosa Leitão (arquitecta, GTH/CML) “A gente tem que ir para a modernice, não é?” Armando Cipriano (morador) Em 1988 já haviam sido colocadas as fundações do “bairro novo” programado para várias fases. No âmbito do PIMP procedeu-se à construção de 81 edifícios (1 200 fogos) entre 1989 e 1996; numa outra fase, iniciada em 1997 e concluída em 1999, são construídos mais 22 edifícios (272 fogos) sob a responsabilidade tutelar da EPUL. Durante este processo de 10 anos (1989-1999) instalaram-se 1 472 fogos com diferentes tipologias (de T1 a T4) com áreas e acabamentos bem mais “convidativos”, é amplamente reconhecido. Todavia, o novo modelo paisagístico construído diferenciava-se muito do “bairro antigo”, tanto ao nível do edificado como na organização dos espaços abertos e públicos. Neste plano, os fogos apresentavam-se distribuídos por edifícios de 3, 5 a 6 pisos agrupados em amplos quarteirões, em banda e em L, que as cores distinguiam. O uso do edificado destinava-se principalmente à

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JORNAL DE NOTICIAS, 28 DE MARÇO DE 1993

CONSTRUÇÃO DO "BAIRRO NOVO", 1990 (CML, DCH)

PLANTA DO "BAIRRO NOVO", 1990 (CML, DCH)

habitação com alguns serviços de apoio e comércio local, complementares. O desenho deste conjunto revelava uma acentuada preocupação com os espaços exteriores e zonas comuns. O espaço público ocupa uma grande área e desenvolve-se em ruas com maior largueza, amplas praças para onde convergem os caminhos pedonais e viários, pracetas de lazer e de encontro ou ainda espaços destinados a ajardinamentos. As acessibilidades transfiguraram-se dando lugar a ruas e avenidas que facilitaram a mobilidade viária, sem dúvida. Contudo afastam os convívios entre os residentes e falta a real integração na malha da cidade. Estas avenidas de intensa circulação automóvel introduzem novos eixos de tensão e preocupação junto dos moradores e responsáveis locais atendendo à perigosidade e ao número de acidentes que ocorrem. Curiosamente, a diferença entre os dois bairros também é vincada ao nível dos nomes das ruas: a toponímia escolhida já não evoca memórias aldeãs nem tão pouco procura fluir solidariamente. Agora, as ruas recebem nomes de eminentes professores(7). Mas o que mais importa reter é que foi nesta parcela do bairro que ocorreram todos os principais investimentos públicos: as escolas (de 1º ciclo, Piteira Santos, pré-fabricada e a futura escola EB2/3), o centro polivalente para acção social (infância, ATL e idosos; cujo auditório viria a ser distinguido com o nome da escritora Natália Correia), pontos de comércio e equipamentos de parque infantil, localizados em espaços públicos e zonas verdes … Mais tarde, e após uma intensa negociação, o espólio e uso da biblioteca também conseguiu ser transferido da envelhecida e desadequada sala no Centro Cívico para ocupar um novo espaço no centro polivalente (adquirindo o nome de Biblioteca Natália Correia, em 1998). Conforme referimos, o Plano de Urbanização do Bairro Padre Cruz, que havia sido aprovado ainda sob a presidência de Kruz Abecassis, fora concebido pelos

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arquitectos Maria Rosa Leitão, Sousa Afonso e o engenheiro Carlos Pereira. O testemunho da arquitecta Maria Rosa Leitão traz informação relevante na perspectiva técnica de quem pensa, projecta, intervém e qualifica o território: “Marcar a diferença com o edificado e valorizar o espaço público” “Tomei como base esta linha de água, um canavial, um alinhamento de oliveiras e esta rua [rio Cávado] que seriam marcas que eu gostava de prolongar e de manter. A linguagem arquitectónica resulta propositadamente diferente entre as duas zonas do bairro (…) porque entendo que a nossa cidade faz-se por um somatório de contrastes, de variedade e de diversidade (…) É isso que permite que passemos de um bairro para outro, num continuum edificado, sem que isso nos perturbe. A questão fundamental com que aqui nos confrontámos foi a implantação de um número determinado de edifícios, não muito altos. O limite eram os seis pisos (…) tendo em atenção o dimensionamento das praças. Porque a partir disso perdia a escala. Mas vejo que o olhar estende-se, as ruas estão equilibradas (…) O que era importante era criar um espaço público aprazível, agradável, amparável. Isso de amparar as pessoas quando se sai de casa é muito importante… com as paredes, as fachadas dos edifícios, os diferentes usos… era importante que houvesse também comércio, usos diversos para os espaços que justificassem o caminhar pelas ruas (…). Aqui, a cor veio introduzir alguma diversidade nesta unidade. A marcação dos cantos, dos finais, das praças eram pintados com cores diferentes – o amarelo, o laranja, o marfim e o branco foram usados com fins e marcações distintas. (…) Fomos responsáveis pelo espaço público e o desenho dos seus ornamentos e arranjos. E essa foi a parte que me foi mais agradável. A parte da habitação foi muito sofrida porque era muito grande e eu tinha receio que não resultasse… Ao princípio surgiu um edifício desgarrado do todo… era assustador. Mas, à medida que foi crescendo

começou a perceber-se a relação das coisas e das cores… As pessoas começaram a achar que aquilo tinha alguma graça, que podia resultar. E isso foi muito bom. E, de facto, a quantidade de imprevistos que surgem sempre nestas obras deveriam ficar registados nas fachadas dos edifícios porque só quem os viveu é que sabe o que foi acontecendo.” (…) Um bairro destinado apenas a realojamento municipal, porque… “Não fazia parte do projecto naquela altura, isto começou por ser PIMP e depois virou PER e, quando foi feito, já toda a gente sabia que construir assim massivamente “habitação para realojamento” levava a guetos de todo o tamanho. Por isso é que também era tão importante que o espaço público tivesse características que, de algum modo, pudessem colmatar essa questão. Para já, afastado como estava, o bairro teria que ter ao nível dos equipamentos básicos a oferta apropriada e, depois, que atraíssem e servissem populações vindas fora do bairro, pessoas diferentes para que usassem também estes equipamentos. Havia uma série de intenções pensadas para aqui que não se concretizaram (…) A selecção da toponímia das ruas foi-nos completamente alheia (…). Creio que foi da responsabilidade do Dr. João Soares, vereador da cultura, à data. O presidente da Câmara era o Dr. Jorge Sampaio. E isso é só um exemplo sem grande importância, mas que mostra como as coisas acontecem. Só soube, por exemplo, que a rua de Barcelona ia ser inaugurada porque vi os preparativos e porque leio, depois.” As estórias que os edifícios escondem “Costumo visitar o bairro, dou uma volta de carro para ver a sua evolução. Porque estabelece-se uma cumplicidade com o local onde se trabalhou. (…) Há uma particularidade que fica sempre: quando olho para o edificado lembro-me dos problemas que aconteceram, não vejo só por fora. Sei o que o edifício guarda as dificuldades que tivemos. Não consigo ter um olhar neutro, fica aquela cumplicidade…

Nos dias de sol este bairro tem um ar bem-disposto. Sintoo assim, alegre. Com as árvores, as plantas… o jogo de sombras. Outros dias sinto este bairro cinzento, tristonho… mas sinto-o diferentemente, como se estivesse vivo. Não é igual todos os dias. (…) Este bairro é diferente, sim. No mais isento olhar sinto que é diferente, sim. Toda a planificação do espaço, designadamente do espaço público a que foi dada particular atenção tomando por referência critérios próprios, não foi pensada para contrariar dinâmicas sociais “marginalizantes”. Foi para construir um espaço digno mas segundo critérios meus. Um pouco à minha imagem….” Independentemente do valioso testemunho existem considerações colocar: transcorridos 30 anos, com uma revolução social pelo meio, o que mudou realmente nas políticas de realojamento? Quais os impactos sociais destes grandes conjuntos habitacionais? Em que medida estas acções e políticas de realojamento foram (e são) mais eficazes na promoção da qualidade de vida das populações? Afinal, mudar de casa teve efeitos reais no “mudar de vida”? Que aproximação houve em relação à vida e problemas concretos das pessoas? Os novos espaços de realojamento permitem, também, fixar o rosto (humano) de cada um? E como foi este processo vivido e avaliado pelos moradores e outras pessoas envolvidas?

"BAIRRO NOVO" NA ACTUALIDADE

A paisagem vivencial do bairro novo – tensões e conflitos “O bairro exterior e o bairro interior são agora duas realidades” António Cristino (morador) “Não criem guetos!” Luísa Monteiro (ex-chefe da esquadra do bairro) As primeiras famílias realojadas no bairro novo foram, precisamente, as famílias que ainda permaneciam

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nas casas de lusalite muito para além do seu prazo de validade. Só em 1994 é que foram demolidas as últimas casas do primitivo bairro de lusalite (previsto durar 15 anos e persistiu 35 anos). “Os primeiros realojamentos para os prédios foram para os moradores que estavam na lusalite. E as casas que vagaram de lusalite acolheram outros novos realojamentos… Mas aquilo já não era um bairro. Eram umas ruas de lama verdadeiramente indescritíveis. Lembro-me de entrar numa casa em que tinha uma vala de terra a dividir o chão e a água corria no meio… e as camas dos miúdos eram tarimbas de madeira onde as crianças dormiam. Não queria acreditar que isso ainda existia em 1995… parecia a Idade Média. Claro que havia casas mais arranjadas. Mas esteve assim pouco tempo porque depois foi demolido…” (Ana Viana, SCML, em funções técnicas no bairro 1991 a 1997)

identidade é: Carnide, Bairro Padre Cruz!” (Armando Cipriano, morador) “Gostei quando mudei de casa, há 19 anos. Gostei muito. As casas de lusalite estavam muito degradadas, as pessoas faziam gaiolas em todo o local. A casa é muito melhor mas aqui é uma convivência diferente. O bairro está diferente.” (Lurdes Silva, moradora) “Não gosto deste ambiente do bairro agora. Isto parece que mudou tudo. Parece que ficaram vaidosos, que se acham importantes porque moram nos prédios. Julgam que são ricos. Ninguém se ajuda uns aos outros… Antigamente íamos comer caracóis para os quintais uns dos outros. O meu marido também fazia churrascos… Quando alguém estava doente, iam logo ajudar. Havia muita camaradagem e agora não há nada disso. Está muito modificado, o bairro.” (Maria do Carmo Rocha, moradora)

Os moradores do bairro de lusalite foram transferidos para edifícios previamente identificados a fim de manter as vizinhanças. Todavia, no novo edificado os modos de relacionamento alteraram-se. Mais do que “vizinhos” passaram a ser “coabitantes” do mesmo prédio, de um mesmo território que muitos estranhavam. Estas novas “paisagens interiores” acusavam a alteração nas anteriores redes de vizinhança, um menor investimento nas convivências quotidianas e na ocupação dos espaços comuns. Estes aspectos são “compensados” com o investimento no conforto da nova casa que assumiu prioridade no projecto familiar.

“Às vezes, afasto as cortinas e vejo que aqui é gente de trabalho, gente sossegada (…) Ao pé de mim, escusam de dizer mal, que eu não deixo. Gosto muito de aqui morar. Quando foi feito o cemitério, pensei: Olha ainda bem! Quando morrer também cá fico!” (Nazaré, moradora)

“Claro que não se podem comparar as casas actuais com a lusalite, onde eu morava, mas as casas do bairro novo obrigam a gastar lá dinheiro, a investir, a comprar tintas, a pintar… sou eu que lá moro e gosto de ter as coisas em condições. Em alguns prédios, por dentro, as paredes estão muito descuidadas. Mas não quero sair daqui. Nasci e cresci aqui e quero continuar a viver aqui, não conheço mais nada. Em todo lado onde vá, o meu bilhete de

Relembremos também que foi a partir de 1991 que, em várias fases, foi chegando a população transferida dos núcleos de barracas da cidade – Bairro da Liberdade; Quinta das Fonsecas; Quinta da Macaca; Azinhaga dos Barros; Quinta dos Milagres; Alto dos Moinhos, devido à construção do Eixo Norte-Sul... Num momento posterior, e por etapas, foram instaladas as populações oriundas da Quinta José Pinto, da Quinta José de Alvalade, de

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“As pessoas viviam ao lado umas das outras. Agora vivem por cima. E essa diferença é muito marcante. Isso, simbolicamente, é muito importante… No viver por cima, não há relações de vizinhança. Saio do elevador, e acabou.” (António Cristino, morador)

Campolide e da Ajuda. Após 1993 ocorrem novos realojamentos para receber mais agregados familiares provenientes do Casal do Sola, Alto dos Moinhos, Quinta do Pisani... As características destes agregados são idênticas às outras populações realojadas na cidade durante aquele período, mas muito diferentes do perfil da primeira geração dos anos 60. Agora, acusam débeis inserções profissionais ou desemprego; famílias desestruturadas, jovens e crianças com percursos de risco; diversidade étnica e cultural (angolanos, cabo-verdianos, guineenses e etnia cigana…), apesar da predominância da nacionalidade portuguesa; ligações a redes exteriores ao bairro, onde negócios ilícitos e “marginais”, em alguns casos, servem de atractivo… Ora, esta inserção num mesmo território de populações com trajectórias diferentes, mas que partilhavam o peso de fortes vulnerabilidades sociais, teve por efeito avivar confrontos num lugar que muitos estranham, cada qual à sua maneira. Por outro lado, as recentes comunidades transferidas de outros bairros sujeitaram-se a “mobilidades forçadas”, a contragosto e algo compulsivas o que dificultava novas sociabilidades e as procuras de interconhecimento …. Muitas delas (as populações de Campolide, por exemplo) foram instaladas no bairro com a promessa de que, posteriormente poderiam regressar para os bairros de origem onde já tinham consolidado raízes e identidade. “Porque no bairro novo há o problema das diferenças de raças e há muitos que não se querem integrar. Não se querem ‘encaixar’. Há muitos problemas com a integração dos negros. Creio que eles gostariam de estar todos juntos…” (Armando Cipriano, morador)

representadas como cenários de “perigos” e já não como espaço de aprendizagem e sociabilidade. Devido aos horários de trabalho sobrecarregados das famílias, as crianças brincam até fora de horas (ficam “presas na rua”!), longe das vigilâncias adequadas. As ruas perdem o sentido e a coerência da intimidade e são percorridas diariamente por populações que não se reconhecem no espaço nem se relacionam entre si. Mas que, contudo, carregam antigas e novas fragilidades sociais. “Senti que houve, de facto, diferença no perfil das populações. E a maior evidência é entre a população mais antiga e a do bairro novo. Claro que também havia problemas com crianças do bairro antigo, mais ligados ao problema do Portugal rural de antigamente: situações de pais alcoólicos, violência doméstica… Os problemas que vieram com as vagas novas foram, de facto, problemas urbanos e suburbanos, daqueles pesados… toxicodependência, tráfico, pequena criminalidade… E nós dizíamos: “alguém está a criar um barril de pólvora aqui e nós estamos sentados em cima dele”. Ao juntar aqui populações fragilizadas de toda a cidade, juntavam pessoas com perfis diferentes mas com grandes vulnerabilidades… E ao fazerem estas vagas sucessivas de realojamentos não estavam a dar tempo para cimentar cada uma dessas vagas… Quando ainda estava a acalmar da ebulição, lá vinha outra vaga… e nós sentíamos que se continuasse a esse ritmo, a qualquer momento poderia rebentar… Felizmente nunca aconteceu. Houve uma grande, enorme, responsabilidade por parte dos moradores e parceiros locais. Muito pouca ajuda exterior houve.” (António Martins, professor e director da escola do 1º ciclo; esteve em funções de 1992 a 2011) O “bairro antigo” vs “bairro novo” – nós e os outros

De todo este complexo mosaico de geografias humanas e forçadas convivências resulta a insegurança por viver num bairro a transformar-se no dia-a-dia. “Não me identifico nada com o bairro como está agora”. A rua, as tais ruas amplas, as praças para convívios são, afinal,

"Isto, de facto, só não se tornou um barril de pólvora devido ao trabalho do Grupo Comunitário e aos moradores do bairro antigo“ (Paulo Quaresma, ex-morador, presidente da JFC)

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“E eu ficava triste porque via virem para aqui pessoas que nada tinham a ver com o bairro e era-lhes dado casas…” Fernando Pereira (ex-morador) Perante estas enormes transformações – físicas e vivenciais – o “bairro antigo” também reage e defende-se como uma pequena ilha de resistência e de sobrevivência do “verdadeiro espírito” do bairro, fechada a tudo o que não seja “seu”, i.e., que seja diferente do “nosso bairro”. Ao nível das vivências, das paisagens interiores, acentuou-se a demarcação entre modos de habitar os territórios: “bairro antigo” versus “bairro novo”. As duas margens não interagiam nem se relacionavam – os residentes da parte antiga evitavam as “zonas novas” – “nunca lá entrei, não gosto nada”, dizem; e os residentes da zona nova desconhecem a história e edificado mais antigo – “nunca lá fui… e parece que está tudo a cair”. Constroem-se limites mentais e físicos – o(s) bairro(s) demarcaram-se por uma fronteira que o atravessamento de uma rua concretiza – a rua rio Cávado. “O bairro tem evidenciado muitos conflitos entre “nós e os outros”. Por cada vaga de realojamentos, sobressaiam essas fracturas. Reforçamos sempre a nossa identidade quando surgem os outros. A última vaga é sempre “os outros”. E foi assim sucessivamente. E a história do bairro reflecte muito isso. Começa na parte antiga, na lusalite, e depois na alvenaria. Depois, os moradores do bairro antigo e bairro novo. Porque os do bairro antigo eram, na sua maioria, funcionários camarários e, de facto sentiam que a sua situação era diferente dos recém-chegados…E até entre a lusalite e a alvenaria essas diferenças se colocaram. Isso, eu senti.” (António Martins, professor e director da escola do 1º ciclo; esteve em funções de 1992 a 2011). “Este bairro, tal como foi pensado e construído – sobretudo na década de 90 – podia ter transformado toda esta zona da cidade num verdadeiro barril de pólvora. Tem todas as

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características para o ser. Foi estrategicamente construído na ponta da cidade sem qualquer ligação fácil ao resto da cidade, há 50 anos atrás. Nos anos 90 a população do bairro antigo viu crescer toda esta zona. Durante dez anos foram, quase mensalmente, despejadas no bairro novas populações, sem qualquer acompanhamento. Vinham de outras zonas desestruturadas da cidade, não tinham condições. Algumas vinham de barracas, nunca tinham vivido em prédios. Houve alguma resistência em vir morar para aqui porque era outra zona ainda desintegrada da cidade, distante do local de trabalho, sem ligações ao território. Não se sentiam nada acolhidos a viver aqui. Estavam reunidas as condições para que corresse muito mal. Do ponto de vista da população residente e consolidada também ela viu perder serviços e somar um conjunto de factores em desfavor da respectiva qualidade: as consultas no médico, a escola que servia ficou apertada e passou a ter uma escola pré-fabricada, o campo foi substituído por novos prédios, a envergadura das obras, os transtornos da presença das máquinas; as pessoas criaram expectactivas de que esses prédios pudessem ser para “filhos do bairro”, para desdobramentos ou para as casas de alvenaria que já estavam também a acusar a degradação do tempo e dos usos, mas viram as casas serem atribuídas a pessoas exteriores ao bairro. Não foram em nada beneficiados com a vinda massiva das novas populações. A situação não se tornou socialmente insustentável porque houve aqui dois trabalhos fundamentais: o trabalho comunitário já desenvolvido e o hábito de discussão conjunta dos problemas; segundo – o perfil da população mais antiga, a sua sedimentação e laços de entreajuda criados (…). Correram-se riscos muito grandes.” (Paulo Quaresma, presidente da JFC)

Vale do Forno – os “príncipes do nada” em terra de ninguém “E depois vem o Vale do Forno, que foi o maior atentado racista dos anos 90, em Portugal” Paulo Quaresma (à época, vogal da Junta de Freguesia) “As pessoas têm que fazer uma pergunta a elas próprias: se eu tivesse vivido esta realidade, esta condição, o que é que eu seria, onde é que estaria?” Luísa Monteiro (à época, subchefe da esquadra da PSP no bairro Conforme temos verificado a história do Bairro Padre Cruz cruza-se com a história da cidade em muitos pontos. E a maior parte desses cruzamentos resultaram em focos “problemáticos” devido às decisões na gestão urbana da própria cidade. Ora, um dos períodos mais intensos e tensos na vida do bairro correspondeu à fase em que nas suas proximidades – no Vale do Forno – foram realojadas 108 famílias (428 indivíduos) de etnia cigana(8). Aconteceu no verão quente de 1995 e várias são as razões para que grande parte dos moradores do bairro retenha uma má lembrança dessa experiência. “Lisboa queria mostrar que era capaz de fazer a Expo 98. Que era uma capital europeia” e o bairro do Vale do Forno foi “instalado” no âmbito do PER (Programa Especial de Realojamento) em consequência da necessidade de libertação de terrenos camarários para a EXPO 98 “acabando por se proceder ao maior atentado racista dos últimos tempos. Do conjunto da população desalojada dos terrenos afectos à Expo 98, só os indivíduos de raça cigana foram deslocados para os antigos paióis do Vale do Forno. Para as outras populações – não ciganas – foram encontradas soluções alternativas de realojamento em outros locais da cidade.“ (Paulo Quaresma, ex-morador, presidente JFC) .

Esta “comunidade” viveu durante 100 meses (de 1995 a 2003) em condições degradadas e degradantes cf. testemunho adiante de Roque Amaro. A nível do apoio social o bairro do Vale do Forno contou com o Projecto Comunitário “Príncipes do Nada” (expressão utilizada pelo escritor Miguel Torga, relativamente à comunidade cigana)e desenvolvida pela Proact (9) no âmbito do Programa Nacional de Luta contra a Pobreza (articulado com a SCML a trabalhar no bairro sob a coordenação técnica de Natália Nunes). E este foi outro importante testemunho: “Mesmo em relação ao Vale do Forno houve muitas reuniões com a população e com a própria escola para aceitarem … Senti muito a questão das lideranças e dos parceiros. Sinto isso em todo o lado. (…) E eu pensei – como dar a volta a isto? Então, lembrei-me de convidar uma pessoa de fora – o Professor o Roque Amaro. (…)” (Natália Nunes, SCML, em funções técnicas no bairro de 1973 a 1991). E foi Roque Amaro quem relembrou: “Vou contar a história. Eram 70 famílias que foram alojadas nas antigas casas militares, lá em cima, nos paióis. (…) A história desta comunidade é uma história de expulsões sucessivas. Foi um processo muito moroso. Começa em 95 mas ninguém os queria receber (…) A certa altura, com a pressão de ter que fazer as obras, a próprio Parque Expo soube destes antigos paióis [que negoceia com o Exército] e que ficam por trás do cemitério, no Vale do Forno. Por lá fizeram umas pequenas intervenções, um saneamento básico… Algumas casas não eram muito más, mas outras eram péssimas. Eram anexos que nem sequer tinham casa de banho. Este realojamento da comunidade cigana tem vários elementos estigmatizantes. Até simbólica e geograficamente aquilo é negativo, eles estavam num enclave de Lisboa, quase a cair para Odivelas, por detrás de um cemitério e em cima de um terreno explosivo e ao

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NOTICIA NO JORNAL PÚBLICO, MARÇO DE 2002

lado de um aterro sanitário que, naquela altura, nem era aterro – era uma lixeira a céu aberto. Horrível. Atraía ratos e répteis. Aquilo era um gueto em condições muito más. (…) Num balanço global ficámos aquém do que nós pensávamos que era possível realizar. Mas conseguimos, mesmo assim, algumas coisas interessantes. Conseguimos conter a panela de pressão que aquilo era. Mais do que resultados positivos, conseguimos evitar resultados negativos. Esse foi o principal resultado. (…) Tivemos a ajuda de uma pessoa muito interessante – a subcomissária Luísa Monteiro, que nos ajudou imenso, nem tanto na proteção mas a encontrar soluções inovadoras e criativas na relação com a polícia. Outro grupo com quem se teve, também, um resultado interessante foi com as raparigas (…) e fizemos o que era impensável fazer – criámos uma turma de alfabetização de adultos (…) e à volta deste projecto desenvolvemos outras actividades – dança. Fomos buscar uma professora espanhola de flamenco e sevilhanas que fez um trabalho espectacular (…) Outro aspecto importante referir: o projecto ajudou-os a discutir coisas que nunca tinham discutido – o que é o cigano hoje, a questão das vivências e mitos que têm. Houve mesmo quem reconhecesse: “tenho orgulho em ser cigano, mas estar com outras pessoas também nos ajuda…” A presença dos ciganos no Bairro Padre Cruz nunca foi bem vista nem recebida (…) Ainda por cima porque foi pouco depois dos realojamentos no bairro novo. E o bairro antigo de alvenaria tinha acabado de sentir o primeiro choque com esses realojamentos e… depois vêm os ciganos (…) Nós tivemos uma luta constante contra aquele tipo de realojamentos que, a continuar assim, seria sempre um gueto.” Além do projecto “Príncipes do Nada”, coordenado pela Proact, o bairro contava com a Pastoral dos Ciganos(10) que para ali transferiu o Cento Majari onde funcionava o local de culto, um serviço de atendimento à população adulta, um curso de pré-primária para cerca de 40 crianças (3 a 5 anos) e ATL’s para 90 crianças. Mas porque foi

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sobretudo ao nível das inserções escolares que o problema da comunidade cigana se cruzou com as vivências do Bairro Padre Cruz, importa dar voz a quem também esteve envolvido apresentando a sua perspectiva do trabalho no terreno diário – o professor António Martins. “No início não era eu o director, mas a minha colega apanhou um susto valente. Não por serem ciganos mas porque eram 125 alunos de novo na escola, das 400 pessoas alojadas no Vale do Forno. Foi muito complicado porque o ano lectivo estava a começar com horários e turmas já organizadas (…) e depois fez-se o disparate máximo que foi constituir turmas só com alunos ciganos. (…) Havia um sentimento generalizado de uma certa indignação, não para com as crianças, mas como todo o processo tinha sido conduzido (…). O alojamento foi feito num gueto e aquilo era verdadeiramente indescritível. Quando assumi a Direcção tentámos reparar algumas situações do ano anterior. A escola, nessa altura, tinha 400 alunos e quase um quarto era de etnia cigana. Durante muitos anos esta foi a escola com maior população cigana de todo o país. (…) De qualquer modo, no final, as coisas estavam a ficar muito melhores do que no início.” (António Martins, professor e director da escola do 1º ciclo; esteve em funções de 1992 a 2011) De referir que a Junta de Freguesia de Carnide desenvolveu iniciativas para integrar a comunidade cigana nas actividades da freguesia (festas, feiras, encontros…). Inclusivamente, a Associação Renascer (adiante referida) procurou envolver os representantes da comunidade cigana nas reuniões do Grupo Comunitário, o que efectivamente veio a suceder. Porém, esta situação terá um “inesperado” desfecho, a narrar mais adiante, a seu tempo. As relações entre bairros – as novas dinâmicas associativas Na continuidade do trabalho desenvolvido, a

autarquia, a SCML, a paróquia e o Grupo Comunitário confirmaram-se como elementos congregadores das dinâmicas do bairro, sem esquecer o importante papel dos clubes desportivos e recreativos, agentes mediadores – e estratégicos – na relação do bairro com o exterior. Em paralelo, deste movimento entre pessoas e ideias, concretizam-se iniciativas que vincaram a vida do bairro. Uma delas foi precisamente o Agrupamento de Escuteiros que motivou jovens e impulsionou trabalhos que resistiram até recentemente. Escutemos um pouco da sua história na voz de quem hasteou o “Alerta” no Bairro Padre Cruz – António Cristino. Estar Alerta – o Agrupamento de Escuteiros 933 “Até 1990 mantenho-me sempre como catequista ligado à paróquia. Antes porém, em 1986-87, houve um grupo de jovens que me lança o desafio – eu teria 35-36 anos, já casado e com família constituída – de criar um Agrupamento de Escuteiros no bairro. Esse grupo, que começou por ser enorme, ficou hoje reduzido a vinte três ou vinte e quatro membros. Tivemos que ter, primeiro, uma formação adequada. Não bastava a vontade. O escutismo é uma escola de formação. Não existe para fazer acampamentos ou acantonamentos … O escutismo pretende ser, juntamente com os pais e com a escola, uma entidade formadora do carácter do jovem – torná-lo mais autónomo, mais solidário, mais responsável, mais consciente… Portanto, é neste sentido que o escutismo funciona… O escutismo procura contribuir para a formação integral dos jovens. E só assim é que faz sentido para mim. Passámos quase três anos a ter formação em Carnide juntamente com os primeiros jovens desse ano. E, em 1990, é criado formalmente o Agrupamento 933. Teve como primeira sede os lavadouros que serviam as casas de lusalite. Foi uma sede que construímos por dentro. Adequámos às actividades, criámos espaços para jovens. Ali estivemos até todo o bairro de lusalite ir abaixo. Quando foi abaixo conseguimos, a muito custo, uma sede na parte de alvenaria, onde hoje ainda está na R. Rio

Coura, nº 41. Uma casa que estava desocupada e que a Câmara nos cedeu. Este grupo começou com cerca de 20 jovens entre os 1014 anos. No segundo ano já éramos pelo menos 45 e, depois, até 2000, chegámos a ter entre 90 a 110 membros. A partir daí foi decrescendo. Eram jovens daqui e da Serra da Luz porque esta paróquia serve a Serra da Luz. As actuais famílias que têm jovens entre os 6 e os 17 anos são famílias que não estão motivadas… Existe alguma despesa, algum custo – mesmo que não seja muito – e hoje estas famílias estão habituadas a que tudo lhes seja dado… o que tem diminuído muito o número de membros. (…) E os próprios jovens têm uma cultura voltada para dentro, muito pouco voltada para fora… No último ano tinha 30 jovens e este ano decidimos parar para redefinir. Só estamos com adultos. Os escuteiros associaram-se a outras associações do bairro. Fizemos várias actividades conjuntas, nomeadamente com as associações de moradores, com os clubes … Uma, por exemplo era a Festa do Bairro. Surgiu em 1990. Deixámos de fazer por questões de segurança. Todos promovíamos essas festas, durante o mês de Julho, durante um ou dois fins-de-semana. Era uma festa em que as pessoas partilhavam bons momentos. (…) Mas os escuteiros sempre foram uma presença aqui no bairro.” (António Cristino, morador)

PROMESSAS, AGRUPAMENTO 933, 1996 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

PROMESSAS, AGRUPAMENTO 933, 1996 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

Renascer – o associativismo é preciso E tudo isto nos levou a pensar: como vai ser isto? E parámos para pensar: temos que criar uma alternativa – e o ‘Renascer’ nasce dessa força.” Mário Guerra, ex-morador (co-fundador da Associação Juvenil Renascer) “(…) e nós deslocávamo-nos numa carrinha velha toda desmanchadinha… a que chamávamos a ‘Clementina’” Maria do Pilar (moradora,

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AGRUPAMENTO 933, 1996 (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

ex-colaboradora da Associação Juvenil Renascer) Sobre as motivações e caminhos percorridos por esta associação importa escutar quem esteve envolvido na sua origem, constituição e trabalhos: “Uma peça fundamental, entre outras, naquele bairro e para aquele tipo de jovens foi a constituição da Associação Renascer. A Associação veio absorver jovens que tinham acabado de chegar ao bairro, não sabiam muito bem o que queriam, o que os esperava… Era grafitis, era não ter ocupação… Muito do que se vê e vive nas actuais colónias da Junta de Freguesia de Verão deve-se a essa anterior experiência. O Renascer nasce como qualquer grupo de jovens: com uma preocupação em fazer actividades para o grupo. No início queria ter mais intervenção, fazer acontecer coisas que não existiam no bairro. Não nasce ainda com uma preocupação ou consciência social tão nítidas. Havia o grande problema dos horários das escolas e das famílias. As crianças terminavam a escola e não tinham para onde ir. Algumas nem almoço tinham, outras ficavam fora do portão quando a escola fechava. E a escola também não tinha cantina. Essas eram questões que se colocavam e nos faziam pensar como poderíamos resolvelas. (…) Os primeiros acantonamentos partem do Renascer. Depois mais tarde, é a própria Junta que começa a estender isso por toda a freguesia. O Renascer começa a participar em actividades que inicialmente nem estavam previstas (…). Houve um ano em que se fez um grande concurso de grafitis para o muro dos Unidos. Isso foi um concurso com divulgação e impacto em que vieram os “maiores” e melhores “grafiteiros”… e conseguimos. Foi um ano em que, pela primeira vez, se conseguiu fazer o arraial comunitário dentro do campo dos Unidos. Já não era os Amigos da Luz que o faziam. E todos os clubes e associações participaram (…). Depois, criou-se o boletim do Renascer, ainda que de um modo muito artesanal, tem muitas referências ao que se foi passando no bairro.(11)

MÁRIO GUERRA, UM DOS FUNDADORES DA ASSOCIAÇÃO JUVENIL RENASCER (sd, FOTOGRAFIA PARTICULAR)

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A minha participação no Grupo Comunitário começa com o Renascer. O Grupo Comunitário ajudou muito ao crescimento do Renascer. Fez com que ultrapassasse o papel de uma “simples associação” de jovens com um papel comum, mas abrir a atenção para o que eram as necessidades reais e concretas do bairro.” (Paulo Quaresma, ex-morador, co-fundador da Associação Juvenil Renascer, presidente da JFC) “Quando trabalhávamos na paróquia tivemos um trabalho muito activo antes de fundarmos o Renascer com um grupo de jovens, com a catequese… As associações tentavam responder e salvaguardar, de modo organizado, esse tipo de energia que o bairro promovia – o Renascer – com o Paulo Quaresma, a Carla, a Cristina Dias, a Paula Guerra… Renascer vem disso mesmo, de captar a energia do bairro. (…) Os propósitos foram uma maneira – e conseguimos! – de cativar jovens e desenvolver com eles projectos que foram muito engraçados. A Associação também foi um apoio para as mudanças que o bairro foi sofrendo. Houve essa preocupação em fazer a ligação entre aquilo que chamávamos o “bairro velho” e o “bairro novo”. Procurávamos criar troca de experiências, conviver, contar a história do bairro…”(Mário Guerra, ex-morador, cofundador da Associação Juvenil Renascer). “A Associação Renascer assegurava os ATL’s da Escola Piteira Santos, do 1º ciclo. (…) Na altura o director da escola de 1º Ciclo era o professor António Martins. Guardo as melhores recordações e sei que fizemos um trabalho importante no bairro com as crianças e famílias. Elas confiavam muito em nós. Havia um trabalho de proximidade, de grande confiança. Este trabalho para mim foi “um abrir de olhos”, foi uma experiência única. (…)” (Catarina Pereira, ex-colaboradora da Associação Juvenil Renascer; actualmente, técnica da Junta de Freguesia de Carnide). “Como trabalhei na cantina do Renascer e no ATL, toda a gente me conhece e me tem respeito. O Renascer foi uma

boa Associação (…) E o comerzinho era mesmo do bom. Era pronto na altura. Agora há os ATL e ninguém sabe dar o valor. Nós fomos ocupar o Polivalente para ter um ATL para os meninos, e nós deslocávamo-nos numa carrinha velha toda desmanchadinha… que nós até chamávamos a “Clementina” e íamos buscar panelões de água para as limpezas e casas de banho. Não havia camionetas para transportar os meninos para a praia e nós íamos para Caxias que era a primeira praia… Ia eu, mais a minha filha mais duas ou três mulheres que lá havia como empregadas… E lá íamos nós. Depois nós, e a Paula Rodrigues, íamos divertir os meninos para a rua para a as pessoas verem que não tínhamos espaço para os meninos e depois a Câmara lá deu um espaço na escola Piteira Santos (…) Lá conseguimos um espaço e na cantina dividiu-se umas salinhas. Cortou-se o refeitório para fazer salas para entreter os meninos no ATL. Trabalhámos muito. Estivemos lá cinco anos.” (Maria do Pilar, moradora no bairro) “A sede no bairro antigo funcionava para atendimento aos pais em horas que a escola já estava fechada (…) Era uma excelente equipa. A maior parte trabalhava sem receber nada. Era mesmo amor à camisola… Foi muito bom tudo, brincava-se e trabalhava-se… Chegávamos a ir às 6h da manhã e saíamos às 6h da tarde,… a fornecer almoços para a Quinta da Calçada [que ainda subsistia parcialmente!] e escola da Pontinha. O Renascer ajudou a população do bairro, ajudou a escola a ter uma cantina… As marchas infantis do bairro também foi o Renascer que incentivou.” (Paula Rodrigues, moradora) A finalizar, alguns outros elementos “curiosos”. Em 1996 a Associação Juvenil Renascer foi reconhecida como Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS); a Fundação Oriente decidiu contribuir por iniciativa própria após tomar conhecimento pela comunicação social do trabalho da Associação com a Cantina Social; uma informação no Boletim de 1996, refere que “este ano o

Bairro Padre Cruz vai ter uma marcha infantil, já conhecida pela “Marchinha”. A ideia partiu do Grupo Comunitário do Bairro Padre Cruz. Os ensaios decorrem no salão de festas dos Amigos da Luz e são orientados por duas monitoras do A.T.L. da Santa Casa da Misericórdia. Muitos moradores colaboram para que a Marchinha seja um sucesso: “Somos uma marcha sempre a cantar / crianças do bairro a todos lembrar como se fazia sempre a caminhar /pelas hortas fora sempre sem parar (…)". (letra de Albertina Lopes, ex-moradora) Os novos equipamentos de apoio Foi durante este período intenso que, para fazer face às novas e contínuas pressões, o bairro mobiliza as suas forças vivas. Não só surgem novas iniciativas (a Ludoteca…), como o papel do Grupo Comunitário reforçava o diálogo entre os representantes das várias instituições (Associação de Moradores, SCML, CML, Junta de Freguesia, Paróquia, Grupos Desportivos, Escola… moradores). Além disso, são construídos novos equipamentos: a escola provisória Piteira Santos (em homenagem ao destacado político, antifascista, professor e historiador de mérito; 1918-1922) em resultado do desdobramento da escola 164, de 1º ciclo, da R. Rio Tejo devido acréscimo de população escolar; o Centro Polivalente, que reúne um centro de dia e creche (da responsabilidade da SCML) e a transferência da biblioteca; esquadra; farmácia; espaços verdes e de recreio,… Surgem novos pontos de comércio (pequenas mercearias, novos cafés, talho, cabeleireiro,..) o Bairro Padre Cruz transforma-se numa “pequena cidade” dentro da Cidade mas concentrando, também por isso, um conjunto de antigas e novas tensões.

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SEDE DA ASSOCIAÇÃO JUVENIL RENASCER, 2010 RUA DO RIO TÁVORA (FOTOGRAFIA PARTICULAR)

A esquadra 36 da PSP – a segurança na proximidade “O momento mais feliz como polícia foi no Bairro Padre Cruz porque me fizeram crescer como ser humano.” (Luísa Monteiro, subchefe da PSP na esquadra de 1997 a 2001) B.º PADRE CRUZ, 2010

POLIVALENTE, "BAIRRO NOVO", 2010

"BAIRRO NOVO", 2010

“A esquadra não veio para aqui porque era uma zona insegura.” Foi criada num momento em que promoveu num policiamento dissuasor e de proximidade. Era importante que o bairro tivesse todos estes serviços. Estamos perante um bairro com 8 500 pessoas (…) O bairro vivia muito dependente do exterior, no caso a Pontinha, para um conjunto de serviços – havia que equilibrar o bairro e dotá-lo desses serviços…" (Paulo Quaresma, ex-morador, presidente da JFC) “Conheci o Bairro Padre Cruz com os realojamentos e conheci o Bairro Padre Cruz com o lusalite… O que temos que fazer quando ali chegamos? Primeiro, arrumar a esquadra. Fui para a esquadra do bairro como subchefe (…). Não me foi passada nenhuma informação sobre o bairro. Julgava que ia encontrar um bairro muito mais perigoso, com muito mais crime, e nunca senti insegurança nenhuma…O momento mais feliz na minha vida profissional como polícia foi no Bairro Padre Cruz porque me fizeram crescer como ser humano. Fizeram de mim uma pessoa melhor. (…) E eu não sabia que isto tinha tanta miséria. E eu pensei que poderia fazer melhor por esta comunidade… São menos as questões de crime mas muito mais as questões sociais que merecem atenção no Bairro Padre Cruz. A questão das crianças na rua, até muito tarde, sem apoios, sem estruturas familiares, sempre me fez muita impressão… A nossa função era dar uma resposta mais imediata às situações, mas a sua resolução ultrapassava a nossa esfera de acção. Mas eu sentia uma necessidade grande para ajudar – eu queria fazer parte do processo. Queria dar mais uma valia, ajudar a resolver.“ (Luísa Monteiro, subchefe na esquadra de 1997 a 2001)

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A Ludoteca – “aprender a brincar” Na sequência de um diagnóstico orientado pela SCML sobre as principais carências das famílias com jovens em idade escolar foi identificada a falta de apoios/espaços de acolhimento para os jovens após o período lectivo. Para preencher esta carência foi implementada a actividade da Ludoteca, “crescer a brincar” (de 1993 a 2008). O objectivo era esse mesmo: disponibilizar um espaço (perto das escolas, na R. Prof. Almeida Lima) onde o jovem podia entrar livremente e ficar a brincar. “No caso de muitos destes jovens, por causa das enormes carências de apoios, tratava-se mesmo de “aprender a brincar”. Não havia qualquer pagamento, nem vínculo de obrigação. Os jovens inscreviam-se e apareciam quando queriam. E podiam lá ficar dentro do horário das 16 às 21h. Mas a certa altura houve tanta afluência que tivemos que criar grupos de jovens e definir os dias. A Ludoteca destacava-se da oferta que havia nas escolas porque proporcionava um espaço de brincadeira livre, descontraído, era uma oferta não formatada. Houve também uma pareceria com a CML ao nível do apoio logístico, cedência de espaços e de alguns recursos, designadamente humanos: a Vanda Botelho e a Mónica Mascarenhas estiveram lá antes de mim e sei que fizeram um trabalho valioso para implementar a ludoteca”. (Rui Gato, técnico do Ministério da Educação; coordenador pedagógico da Ludoteca “crescer a brincar” de 2003 a 2008) A nova biblioteca – “uma conquista difícil” “Estava a ser construído o Polivalente que seria cedido totalmente à Misericórdia enquanto nós continuávamos num espaço degradado e decadente sem condições nenhumas, a antiga sala de leitura. Procurámos conquistar ali o espaço para a biblioteca. Contactámos a Associação de Moradores que também participou nessa luta e fez muita pressão. Conseguiu-se espaço para a biblioteca no Polivalente que foi todo adaptado e hoje partilhamos o

espaço com a Misericórdia. As condições de trabalho eram muito limitadas e limitativas. Mas tínhamos uma relação muito próxima com a Misericórdia. Vivemos muitas histórias na biblioteca Natália Correia – umas, muito boas que recordo com muita saudade, outras menos boas, mas que hoje, um pouco à distância já me fazem rir. Conseguimos ir chegando às pessoas porque eu era bibliotecária a tempo inteiro. O espólio foi muito alargado, maior e melhor catálogo, desenvolveram-se actividades de promoção da leitura. Procurávamos quebrar a rotina. Houve iniciativas de trazer a biblioteca à rua e fizemos sessões de leitura no espaço exterior (…). Mas a biblioteca colocava-nos problemas diários. Houve projectos que desenvolvemos com jovens e famílias…(…) A relação com as escolas era muito boa. Com as escolas primárias. Com a EB2,3 era mais difícil trabalhar devido à logística e os tempos de deslocação. Outro projecto foi a aula na biblioteca. (…) Foi muito interessante e conseguimos criar dinâmicas muito boas com pesquisa em livros, recursos a outras fontes de informação… Foi sempre uma biblioteca que colocou problemas de segurança. A Câmara contribuiu muito para que tivéssemos esse tipo de problemas. A forma como alojou as pessoas, designadamente no Vale do Forno. Foram criadas situações complicadas. A aceitação dos ciganos por parte dos moradores não era fácil…” (Elfrida Reis, técnica responsável pela biblioteca do bairro de 1996 a 2009)

mais de 90% desistia da escola. Nós queríamos fazer regredir isso e a única maneira era criar um território de segurança. Apesar de todos os problemas que o bairro possa ter era ali que os jovens criavam as suas referências e o facto de irem para Telheiras era um problema muito desmotivante…O que existe em termos de dinâmica local que promove as referências ao bairro que acabam por ser “aprisionantes”. Num momento em que os transportes são tão mais acessíveis o faz com que estes jovens se sintam tão inseguros na cidade? É a cultura do próprio bairro. O bairro criou uma identidade, nas últimas décadas, que se constrói sobretudo por oposição e rejeição: à Polícia, à Câmara, ao Estado… Anteriormente as instituições eram aliadas. E isso era visível nos anteriores moradores, até pelas suas profissões. Hoje, isso não acontece. A maior parte, apesar de viverem em bairros de lata, foram forçados a morar nos prédios em locais que eles não queriam nem escolheram... No fundo, pertencem todos à mesma cultura, uma cultura de rua – e isso era visível nas crianças que permanecem até às 2h da manhã sem que ninguém os vá buscar – a revolta é a mesma, e isso acaba por fundamentar uma ilha de cultura em que se reconhecem e aí, nesse território, são todos iguais. Reconhecem-se. Ora, o sair do bairro faz senti-los estranhos e diferentes. Inseguros…” (António Martins, professor e director e ex-director da escola EB1 do bairro) A gestão local do bairro

A nova escola e a “ilha de cultura” bairrista Devido à polémica que, na altura, envolveu a decisão da localização da escola dentro ou fora do bairro, importa reter esta avaliação: “Relativamente ao projecto de construção da EB 2,3 houve duas posições por parte dos técnicos. Os que defendiam que a escola deveria ser construída aqui no bairro, e eu era um desses. Outros defendiam que não, pois isso iria perpetuar a guetização. Ora, teoricamente isto faz sentido, mas na prática não resulta. Verificámos que havia um absentismo elevado entre o final do 1º ciclo e o 9º ano,

O Grupo Comunitário e o trabalho de parceria Durante este período o Grupo Comunitário e a Junta de Freguesia reforçaram o trabalho de pareceria entre instituições e o envolvimento dos moradores alertando para o agravamento das condições de vida da população do “bairro antigo”. As questões relativas ao futuro do bairro de alvenaria – recuperação ou demolição – começam a colocar-se de um modo mais concreto. “A Junta de Freguesia e o Grupo Comunitário tiveram um papel muito importante para o bairro atingir outra fase.

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BIBLIOTECA MUNICIPAL NATÁLIA CORREIA, 1995

ESCOLA PITEIRA SANTOS, 1996

Nomeadamente, em termos de comércio e serviços. Antes, não havia nada… e sempre fomos constituindo um grupo de pressão e criar algum movimento. Não se pode esperar retirar centenas pessoas de bairros de lata, enfiá-los em prédios onde atingem os milhares e estar à espera de que tudo corra normalmente. Nem as poucas mercearias que havia não estavam preparadas para provir as necessidades da população com estas dimensões. Até cafés, havia muito poucos. Farmácia, nem pensar…apareceu agora De resto, não havia nada. Só prédios e ruas. Nesse grupo de trabalho, que era um grupo comunitário, reuníamos com a Associação Renascer, a SCML, a PROACT, Pastoral dos Ciganos, a esquadra, a associação de moradores, a associação de pais, o departamento da acção social, a Gebalis… mas, com estes, a relação era muito complicada, difícil. Eles assumiam uma posição de sobranceria e de arrogância. Comportavam-se como os “senhorios do bairro”… buscava muito pouco o diálogo. Raramente participavam (…) Houve um conjunto de sinergias que estas instituições criaram e, a partir delas, aconteceram outros projectos…” (António Martins, professor e ex-director da escola EB1) A nova entidade gestora do bairro: a Gebalis No âmbito das preocupações de gestão municipal após os realojamentos foram experimentadas novas parcerias institucionais e nasceu a Gebalis (1995), empresa pública gestora dos bairros (municipais) de Lisboa. Esta empresa procurava melhores níveis de eficácia na gestão dos novos bairros construídos (no âmbito do programa da de erradicação das barracas) e apostava numa relação flexível e de proximidade conforme divulgado no documento da sua instituição: “(…) Trata-se de uma empresa municipal, com um funcionamento muito descentralizado e ágil, que permite elevados níveis de eficácia na gestão dos novos bairros construídos no âmbito dos programas de erradicação de barracas”. No dia 1 de Outubro de 1996 foi instalado o Gabinete Local da Gebalis no Bairro Padre Cruz. Contudo, a Gebalis foi herdeira de uma situação em que a Câmara

GABINETE LOCAL DA GEBALIS, CRIADO EM 1996

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manifestamente não cumpriu com as suas obrigações tal como é opinião corrente entre moradores e nãomoradores. Nos pós-25 de Abril não houve qualquer investimento por parte da Câmara conforme numerosos testemunhos já evidenciaram. Foram as técnicas do gabinete local (Cláudia Rocha e Helena Gomes) quem referiu: “Percebemos que as populações transferidas para o bairro, não tendo comum a origem da história, vieram determinar profundas alterações no núcleo original. Geraram-se inicialmente processos de rejeição que iam ou não sendo resolvidos se as populações recém-chegadas se fossem aculturando. A nossa gestão data de 1996. Ao longo destes anos houve bastante investimento. Mesmo em termos de melhorias, investiu-se muito nas canalizações permitindo que as pessoas tivessem água quente. (…) [nota: reportam-se a melhorias realizadas em 1996] Em todos os realojamentos existe uma mescla de situações mais e menos problemáticas. Não podemos dizer que haja uma fase de realojamento mais difícil porque também existem situações complicadas com agregados na parte de alvenaria. As várias etnias estão espalhadas pelo bairro. Essas indicações vêm da Câmara. Nós só gerimos. Não existem prédios com etnias concentradas. Existem angolanos, cabo-verdianos e guineenses para além de indivíduos de etnia cigana. São raros os casos de famílias de etnia cigana, do Vale do Forno, que aqui ficaram.” Adiante retomaremos outras situações relativas aos desempenhos da Gebalis, no complexo processo da gestão do bairro. As transformações do bairro e a vida paroquial – um reencontro comprometido “Em 1990 começou a fazer-se o realojamento e os prédios altos foram uma barreira para que os paroquianos viessem à Igreja e frequentassem as práticas religiosas. Em 1990 a

vida paroquial entrou em crise. As novas populações traziam pouco hábitos espirituais, excepto os caboverdianos, nas gerações acima dos quarenta anos, que são muito afáveis.” (padre António Baptista, em funções no bairro desde 1981) “Apercebo-me do apagamento da força e expressão identitária da paróquia e do bairro… Decorre isto do facto de grande parte dos actuais moradores não terem ali as suas raízes, o que torna mais difícil a integração. A geração anterior era de grande parte de “filhos do bairro” e, grande parte assumia em si mesmo o papel da paróquia. Actualmente estarão cá 3 ou 4 pessoas dessa geração e aquela geração que estava cheia de força e cheia de entusiasmo já cá não está. A maior parte dos jovens depois de casarem saem daqui, e por isso, vamos tendo uma paróquia envelhecida a perder força e um grupo de crianças que não se identifica com a paróquia… Reconheço que fomos perdendo força porque vamos ganhando vícios ou porque vai-nos faltando quem nos substitua e quem nos rejuvenesça. Hoje em dia vivemos muito mais desligados da vida paroquial. Há muito mais ofertas paralelas e a própria religião começa a perder peso – não valor – dentro das próprias comunidades e isso acontece em todas as comunidades. Não é só no Bairro Padre Cruz a perda da influência da religião.” (Fernando d’Oliveira, morador) A fechar este capítulo, uma última nota. É inegável a importância da melhoria das condições de vida por parte das famílias que beneficiaram dos realojamentos ao abrigo dos programas PIM e, depois PER, ficou explícito. Porém, algumas questões permanecem (sempre) em aberto: as dinâmicas que, continuadamente geram tais exclusões sociais e, depois, a necessidade de as “controlar” sem haver uma estratégia realmente concertada, com maturidade e reflexão em termos de políticas de habitação, mais abrangentes e fundamentadas que identifiquem e contrariem a reprodução de fragilidades socioeconómicas; o facto de se ter optado por programas de

realojamento em escalas massivas em tempos desadequados, sem tempo para providenciar apoios e acompanhamentos institucionais, dando origem a grandes concentrações urbanísticas e guetos sociais em moldes que a Europa já há muito tempo questionava; o centralismo de todas as decisões que excluem as negociações com parceiros – as autarquias, os técnicos e os moradores…; a rigidez nos critérios para os realojamentos – os moradores das “barracas” – que não demonstraram flexibilidade em abranger o bairro de alvenaria, já em condições muitíssimo degradadas, gerando vincadas tensões sociais… Todavia, e no caso singular do Bairro Padre Cruz, evidenciou-se a capacidade imaginativa e interventiva por parte dos poderes localmente instituídos, da competência de técnicos, autarcas e população empenhando-se na resolução dos problemas que a gestão da cidade, insistentemente, lhes colocava… Como tal, também ficou bem claro que o Bairro Padre Cruz não é um problema na cidade. É um “problema” das formas de gestão da cidade ao longo de mais de 50 anos e, como tal, a sua história acrescenta ampla informação crítica acerca dos processos de crescimento e desenvolvimento da cidade. Confirma-se: “Os bairros são lugares para se procurar, identificar, inquirir, questionar.” (Cordeiro; Costa (1999): 61). E passamos à fase seguinte. Síntese cronológica 1990 a 2000: Bairro(s) de contrastes: o alvorecer do bairro novo e o anoitecer do bairro antigo 1990 Início do novo Plano Regional de Ordenamento do Território da área Metropolitana de Lisboa (PROTML) e do novo Plano Estratégico de Lisboa (1992). Década de grande produção urbanística por parte da CML. As “políticas de habitação” (em grande parte, políticas de realojamentos massivos) adquirem grande impacto apoiadas que foram, durante a década anterior, pelo IGAPHE, INH, FEDER através de acordos com a CML. Em paralelo, a unidade “bairro” conquista importância na reabilitação dos territórios da

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cidade antiga. Criação do Gabinete Técnico Carnide-Luz (Direcção Municipal de Reabilitação Urbana), na sequência do Grupo de Trabalho de Carnide-Luz, formado em 1989. No Bairro Padre Cruz, a década de 90 corresponde a um período de grandes transformações: correcção da arquitectura dos primeiros prédios construídos em alvenaria no topo do bairro; demolição do primitivo bairro de lusalite e realojamentos de populações deslocadas de núcleos de barracas espalhados pela cidade. “Bairro antigo” e “bairro novo” fixam-se no vocabulário local e retratam distintas realidades socio-espaciais. É criado o Agrupamento 933 do Grupo Nacional de Escutas. 1992 (07/06) Elevação da Quase-paróquia a Paróquia consagrada ao patrocínio de Nossa Senhora de Fátima e que dará a denominação à respectiva igreja. 1993 Devido ao aumento da população residente, decide-se o desdobramento da Escola 167 em duas unidades do 1º ciclo: o edifício original na Rua Rio Tejo e um prefabricado na rua Piteira Santos. Nesta unidade (“Escola Piteira Santos”) funciona o 1º ciclo, jardim-de-infância e posteriormente o ATL (Atelier de Tempos Livres) e o refeitório. Esta solução por dois edifícios desagrada à direcção da escola e à população. No seguimento, é constituída a Associação de Pais e Amigos da Escola Primária nº 167 do Bairro Padre Cruz. - (7/05) - Por iniciativa municipal, e atendendo às limitações do anterior PIMP, é criado o Programa Especial de Realojamento (PER) com o objectivo de prosseguir na erradicação das barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. - (26/06) - Criada a Associação Juvenil Renascer com o propósito de unir os “bairros do bairro” e superar carências diversas. É instalada a Ludoteca – iniciativa da CML/Bibliotecas de Lisboa. 1994 Lisboa é Cidade Europeia da Cultura (a partir de 1999, ficaria Capital Europeia da Cultura).

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1995 Eleito João Soares como presidente da CML; Vasco Franco é vereador do pelouro da Habitação. Adão Barata é eleito presidente da Junta de Freguesia de Carnide (PCP/PS). São destruídas as últimas casas de lusalite. O bairro novo continua a desenvolver-se e dispõe de novos serviços e comércio: farmácia, mercearias, talho, cabeleireiro, vários cafés… O bairro antigo mais envelhece e degrada-se. Durante o mês de Agosto concretiza-se o problemático realojamento de 108 famílias ciganas na periferia norte do bairro – o Vale do Forno – em resultado das obras de requalificação da zona oriental de Lisboa para instalar a futura EXPO 98. 1996 Celebração dos 400 anos do santuário Nossa Senhora da Luz, em Carnide. Construído o edifício polivalente onde são instalados o auditório e a biblioteca municipal (que acolhe e acrescenta o espólio da antiga “sala de leitura”), a creche e o centro de dia da SCML. Criação do gabinete local da Gebalis (empresa gestora dos bairros municipais de Lisboa criada em 1995, a partir da CML). 1997 Prossegue a presidência de João Soares na CML. A Junta de Freguesia de Carnide elege José Araújo (PCP/PS) como presidente da autarquia (até 2001; Paulo Quaresma desempenha funções como vogal da Educação, Cultura e Desporto). Em Setembro, é inaugurado o Centro Comercial Colombo na fronteira sul da freguesia. - (18/10) - Abertura das estações de Carnide e Pontinha da rede de Metropolitano de Lisboa. - (18/11) - Inauguração do Centro Comunitário Polivalente da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa; aumento significativo da prestação de apoio e cuidados aos idosos (atendendo ao envelhecimento da população original) e à infância (em resposta ao aumento do número de crianças). Este Centro Polivalente desenvolve serviços de creche, ATL, animação socioeducativa; apoio a idosos nas vertentes de Centro de Dia, Apoio domiciliário, convívio…

Falecimento de D. António Francisco Marques (n. 1927), antigo Prior de Carnide e do Bairro Padre Cruz e primeiro Bispo de Santarém (posterior atribuição do seu nome a duas ruas – uma, na Quinta do Bom Nome, em Carnide, e outra na freguesia da Pontinha). 1998 Em Maio é inaugurada a Grande Exposição Internacional – a Expo 98. - (08/03) - A CML atribuiu o nome de Natália Correia (1923-1993), referência de vulto na literatura portuguesa, à antiga Biblioteca Municipal de Carnide. - (19/11) - Criação do Município de Odivelas (Lei n.º 84/98 de 14 de Dezembro) que passa a preencher parte da linha fronteira com o bairro, antes pertença do município de Loures. 1999 Desde Outubro, e no âmbito do Programa Nacional de Luta contra a Pobreza, desenvolvimento formal do projecto comunitário “Príncipes do Nada” para apoiar a comunidade cigana realojada no Vale do Forno, da responsabilidade da PROACT. Instalação do Gabinete local da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ). Abertura das oficinas do Metro na Pontinha que ocupam território das antigas quintas e azinhagas. A recente Avenida Cidade de Praga vinca a separação física do bairro do restante território da freguesia de Carnide. E da cidade. No final da década o Bairro Padre Cruz é uma cidade dentro da Cidade abrangendo 38 hectares; o “bairro antigo” dispõe de 12 hectares com 916 moradias unifamiliares num total de 1 117 fogos. O “bairro novo” (da EPUL) é construído em 25 hectares, com 1 289 novos fogos de várias tipologias inseridos em quarteirões padronizados, de blocos. O bairro inclui um total de 2 589 fogos para uma população estimada em mais de 8 500 habitantes e confirma-se como o maior bairro municipal da Península Ibérica.

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Fase 4 2000 a 2012: A REQUALIFICAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ – O FUTURO E A MEMÓRIA

INÍCIO DA REQUALIFICAÇÃO, JANEIRO 2012 (FOTOGRAFIA DE BOM NORTE)

“Equacionar o futuro implica ter sempre em atenção o presente e conhecer o passado.” Maria Vilar Diógenes (ex-presidente da JFC, presidente da Assembleia Municipal da Freguesia) O Bairro Padre Cruz nas políticas da Cidade – o contexto da intervenção

A

FASEAMENTO DA REQUALIFICAÇÃO, 2012 (CML)

primeira década deste novo século (2000-2012) inclui momentos de profundo impacto e transformação nas paisagens físicas e vivenciais do Bairro Padre Cruz. Ao nível do edificado as confrontações conheceram novas vizinhanças (Parque Colombo, o condomínio da Quinta das Camareiras, Pólo Tecnológico de Lisboa, gerido pela LISPOLIS,…) que valorizaram o território mas não contrariaram a persistente periferização física e social do bairro. Aumentou a rede de transportes e está prevista, no médio-longo prazo, uma nova estação na rede de metropolitano que integrará o bairro(1). A estrutura viária envolvente também foi alterada. Contudo, os novos acessos rodoviários – a avenida de Cidade de Praga – mantiveram a separação física do bairro relativamente ao território da freguesia e da cidade. Todavia o que mais importa agora destacar é que a problemática da requalificação impôs-se como a matéria de fundo durante todo este recente período. Confirmou-se a preocupação e o investimento por parte da autarquia, instituições, associações locais e moradores em revitalizar o bairro de modo a equilibrar um presente de acentuada degradação com um futuro de grandes transformações. O acolhimento a novas associações (Bola pr’á Frente, Azimute Radical e Lua Cheia, por exemplo; e, mais recentemente, o espaço JuntArte com novas associações), as inaugurações da nova escola EB1 e do Centro Cultural de Carnide e o maior diálogo entre os dois núcleos do bairro

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comprovam esse esforço conjunto que a autarquia e associação de moradores também procuram estimular. A SCML permanece como instituição central na prestação de apoio social à população enquanto a paróquia ainda vê limitada a sua intervenção. A requalificação do “bairro antigo”, que implica a demolição faseada da zona antiga de alvenaria, deixou de ser um projecto adiado e tomou conta da agenda das inquietações dos moradores, autarcas, técnicos e (alguns) políticos… Hoje, é uma realidade a acontecer e que ultrapassa, em muito, a questão da requalificação física do espaço. No contexto das paisagens vivenciadas este foi – é! – outro período instável, agitado por antigos e novos confrontos, de expectativas e muitos impasses, ilusões e desilusões. Mas é, também, um tempo decisivo. É o momento em que o bairro – e o muito trabalho nele desenvolvido – obriga a gestão da cidade a equacioná-lo como um “lugar em si mesmo” no cenário urbano, e não apenas como chão de recurso (um “não-lugar”, periférico) para acolher populações compulsivamente transferidas de diferentes locais “problemáticos” da cidade. De facto, na fase actual, existe empenho para que o bairro conquiste uma nova imagem no cenário urbano. O capital social comunitário acumulado e amadurecido ao longo do tempo têm sido contributos determinantes. Porque o Bairro Padre Cruz tem “história” reconhecida, começou a ser percepcionado como um “lugar de direito(s)” com contornos e singularidades específicos. Como tal, em termos da gestão da cidade o Bairro Padre Cruz oferece hoje, sem dúvida alguma, matéria singular para capacitar modelos alternativos no planeamento e intervenção urbana onde o envolvimento positivo e activo da população será o desafio e a aposta. “As pessoas devem sempre fazer parte da solução do problema”, bem lembrava a comissária Luísa Monteiro. E da saúde da democracia. Contudo, não esqueçamos que no interior do bairro ainda persistem conflitos antigos a braços com novos problemas que exigem atenta e eficaz resolução. A população residente no Bairro Padre Cruz diversificou-se do

ponto vista étnico, nas origens geográficas e percursos de vida, hábitos e culturas, percebeu-se. Confirmaram-se os contrastes geracionais: o bairro antigo mantém uma população idosa cada vez mais carenciada de apoio a vários níveis; no bairro novo a população é bem mais jovem, com grande número de crianças e jovens em idade escolar. Por outro lado, a grave situação dos alojamentos no Vale do Forno e a degradação do bairro de alvenaria saturavam as preocupações locais – dos moradores e dos responsáveis. Estavam já emparedadas várias dezenas de casas com vista à posterior demolição e as condições de habitabilidade desta zona do bairro (designadamente, higiene e segurança) perigavam gravemente a população residente. No início deste período a gestão local da Gebalis manifestava-se insuficiente para resolver eficazmente as queixas que, continuada e persistentemente, ia recebendo. E as reuniões do Grupo Comunitário transformam-se num palco de reclamações constantes. Paralelamente convém relembrar que, em 2002, a CML conhecera novo executivo com outra expressão política. Pedro Santana Lopes foi eleito para o governo de Lisboa (PSD; 2002 a 2004, com alternâncias até 2007 entre Carmona Rodrigues e, por último, Marina Ferreira). Também em 2002 Paulo Quaresma (ex-morador, com experiência do bairro) fora eleito presidente da Junta de Freguesia e, entre outro tanto, os problemas bairro são olhados como um sério desafio a vencer. A definição dos recursos e tempos necessários para a requalificação do bairro de alvenaria conquistam primazia. Mas também a defesa do movimento associativo (nas suas diferentes formas e modalidades – cultural, desportiva, recreativa…), a continuada mobilização para formas de cidadania participada e a defesa de um projecto cultural para Carnide são prioridades na agenda e acção da autarquia. O fim do Vale do Forno – “uma história muito triste” No início da década, a JFC mobilizara esforços para pressionar o novo executivo de Santana Lopes acerca do problema das famílias ciganas instaladas, desde há 7

anos, no Vale do Forno. Após uma visita conjunta ao quartel por parte dos representantes municipais e autárquicos, a “solução” foi acelerada mas em moldes que não eram os previstos. Nem desejados. “Quando veio o Santana Lopes com a sua linha eleitoralista ele apoiou muito o realojamento daquelas famílias. Mas isso até foi apressado porque não houve tempo para dar conta de todo o trabalho que tínhamos desenvolvido. (…) Algumas famílias queriam permanecer no Bairro Padre Cruz e isso não foi minimamente respeitado pela equipa do Santana Lopes que quis arrumar o assunto rapidamente (…). Não tanto quanto as famílias desejariam e que nós tínhamos recomendado. A maior parte foi para a Ameixoeira e Alta do Lumiar…” (Roque Amaro, PROACT) De facto, não deixa de ser de lamentar que os procedimentos tenham contrariado as recomendações e o trabalho comunitário desenvolvido por vários técnicos e instituições(2), designadamente por parte da própria equipa técnica da DGSPH/DEPGR. E assim aconteceu. “O fim do Vale do Forno foi muito triste. A CML excluiu por completo quem estava no Grupo Comunitário; excluiu por completo a Junta de Freguesia usando o argumento de que “nós falávamos a mesma linguagem que eles” … e percebemos que as coisas não iam correr bem (…) Às 7.00h da manhã a polícia cercou e isolou a zona, entrou com as carrinhas dentro dos taipais, entrou nas casas das pessoas, retirou os haveres à força, colocou tudo em carrinhas que levou para o bairro da Ameixoeira, para as casas que já estavam destinadas. No mesmo dia em que retiravam as pessoas, deitavam as casas abaixo. Foi muito violento. Passados 3 dias ainda havia pessoas sentadas sobre os escombros porque se recusavam a ir para as novas casas. Muitas das novas casas foram vandalizadas porque as pessoas rejeitavam essa solução da qual não participaram: “nós queremos viver com os senhores”. Agora, a Ameixoeira está a sofrer as consequências deste

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DEMOLIÇÃO DO BAIRRO DO VALE DO FORNO, 2002

outro processo forçado de realojamento.” (Paulo Quaresma, ex-morador, na altura, vogal da Juventude e Desporto na JFC) E, assim, dando lugar a esta outra Lisboa das exposições para os mundos, encerra-se mais um outro capítulo humanamente doloroso e que esqueceu o investimento, compromissos e o vasto trabalho social desenvolvido com esta comunidade. Sobre a intervenção no bairro antigo – tempos e projectos “Aqui, aplica-se aquela máxima: se não lutarmos, não ganhamos”. Maria Vilar Diógenes (ex-presidente da JFC, presidente da AMF) “Nesta última década é que foi flagrante. Na indecisão, na indefinição, na incerteza.” Paulo Quaresma (ex-morador, presidente da JFC) Primeiro impasse – requalificar ou reabilitar?

CASAS EMPAREDADAS NO BAIRRO DE ALVENARIA, 2010

Durante os primeiros anos desta década terminaram os realojamentos mas prosseguiram os problemas de integração das populações instaladas no bairro novo, a convivência entre a comunidade antiga e os novos realojados. “A partir de 2001 terminaram os processos de realojamento em massa. Foi com a construção da rua de Barcelona, ainda com João Soares e Vasco Franco. E é aqui que os problemas se agudizam. Isso está registado – a história do bairro cruza com a história da cidade. E é a partir daí que a cidade entra num desgoverno total, sem perspectiva de futuro, sem horizontes claros… e tudo isto se degrada acentuadamente. E tudo isto decorre porque não havia uma linha clara. Nunca se definiram critérios claros do que se queria para o bairro.” (Paulo Quaresma,

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ex-morador, presidente JFC) No “bairro antigo” acentuava-se a degradação das condições de segurança a habitabilidade quer do espaço público, quer privado, das casas. As segundas e terceiras gerações continuavam a sair do bairro, as casas foram sendo emparedadas pela Gebalis e as ruas esvaziam-se de vida. Um estudo de atualização da Gebalis sobre o bairro antigo dá conta de 916 fogos, 844 estão habitados, 72 fechados (dos quais, 32 emparedados). Ficam apenas os moradores mais velhos e o bairro de alvenaria vai envelhecendo física e humanamente. “A grande questão esteve no desinvestimento para preservar o que existia – sobretudo a zona antiga do bairro. E aí é que se situa o grande problema… as pessoas começaram a desinvestir também pela indecisão do futuro do bairro. E então quando começam a ser emparedadas as casas, as pessoas começam a ter consciência de que dia menos dia o bairro vai abaixo e que não valia a pena…” (Paulo Quaresma ex-morador, presidente JFC) Em 2002, na altura de renegociar o tratamento dos espaços verdes…, “a Câmara diz ‘não!, aquilo é mesmo para ir abaixo’ e é partir desta altura que a CML começa a emparedar casas ainda sem saber muito bem o que vai fazer (…). E o bairro evidencia o estado de miséria e degradação. E não há rei nem roque que lhe valha… Nunca se deveria ter deixado degradar até este ponto. Até ao final de 2001 os jardins da parte antiga eram assegurados pela Junta num protocolo com a Câmara. Neste momento ninguém assegura aquelas zonas. Aquelas são consideradas zonas expectantes como outras na cidade, só servem para crescer mato. O que sobra? Até 2004-05 ninguém sabia muito bem. Dizia-se “é para acabar, é para acabar” mas nada de concreto.” (Paulo Quaresma, exmorador, presidente JFC) “Desde que aqui estou a principal evolução que vejo – os espaços verdes. E se o bairro é só um não percebo porque

só uma parte do bairro é que está arranjado. Ao pé do mercado, é uma vergonha. Sei que é um trabalho custoso porque também fui jardineira na CML mas havia que cuidar daqueles espaços. Este é um bairro camarário que tem os espaços verdes mais bem arranjados mas é bom que os olhos vejam todos os espaços verdes (…) Por trás há verdadeiras lixeiras. A parte do bairro velho ficou muito esquecida.” (Isaura Marques, moradora) “A diferença que eu noto mais é que parece que estamos totalmente ao abandono. Ninguém nos arranja uma rua, um passeio. Eu ontem tive o trabalho de contar que na rua abaixo da minha estão quatro candeeiros seguidinhos fundidos. São quatro! Houve sempre um problema de falta de assistência… mas desde que se falou na requalificação, então, estamos totalmente ao abandono… De ano para ano é adiado. Era para estar completo em 2013! (Teresa Guerra, moradora) Em 2005, por resolução de Conselhos de Ministros, o Bairro Padre Cruz foi incluído no Programa Nacional “Iniciativa Bairros Críticos” no âmbito das políticas da cidade. Por outro lado, a questão da reabilitação ‘versus’ requalificação do bairro estava em acesa polémica camarária. Confrontavam-se duas propostas: a reabilitação (recuperar e manter o edificado de alvenaria com as adaptações necessárias) defendida pelo vereador Sá Fernandes (BE) ou a requalificação (demolir integralmente o antigo edificado e construir de raiz), defendida por Gabriela Seara (PS). Esta última proposta (132/2006) vence por maioria em sessão de Câmara de 29/03 de 2006. Os moradores foram acompanhando com grande angústia os ecos destas indecisões. O primeiro projecto de requalificação e o segundo impasse

Após longos impasses, em 2006, o executivo de Carmona Rodrigues apresentou o primeiro projecto “ambicioso mas indispensável” para a requalificação do “bairro antigo” sob a responsabilidade da vereadora Gabriela Seara. Finalmente, em sessão de Câmara de Outubro foi aprovado o plano de financiamento para a requalificação do bairro prevendo-se o arranque para 2008 e a conclusão para 2013. O primeiro estudo e projecto estiveram a cargo da EPUL. Previa-se a demolição integral dos 917 fogos de alvenaria e a construção de raiz de 1619 fogos (18 lotes) ocupando a área de 12 hectares, dos quais 904 destinavam-se ao realojamento dos agregados residentes no bairro. Estipulava-se também “a construção de habitação a comercializar ao abrigo do Programa EPUL Jovem, no sentido de viabilizar financeira-mente a operação” (EPUL, Loteamento do Bairro Padre Cruz, Outubro de 2007). Este projecto já contemplava o realojamento dos agregados dentro do bairro durante as obras e o respectivo faseamento assim como também incluía a recomendação para que “a operação fosse desenvolvida em estreita pareceria com as forças vivas do bairro”. Pretendia-se “requalificar o tecido urbano, eliminar a imagem negativa associada aos bairros de realojamentos e oferecer uma oportunidade aos jovens de aquisição de habitação de qualidade no binómio preço/qualidade.” (EPUL, ibidem). A fechar este capítulo de impasses, a 14 de Novembro de 2007, no Auditório Natália Correia, o vereador Sá Fernandes reforçava as razões da sua contraproposta, de reabilitação do edificado de alvenaria perante um grupo de moradores e responsáveis locais que a rejeitou. Também nesta fase é de relevar a importância do papel do Grupo Comunitário, Associação de Moradores e da autarquia na auscultação da voz dos moradores. Porém, em resultado da mudança de executivo e das faltas de garantia de financiamento, os projectos ficam pendentes.

MAQUETA PROJECTO DE REQUALIFICAÇÃO DA EPUL, 2007

“A requalificação é um projeto ambicioso, absolutamente indispensável.” Gabriela Seara (ex-veradora da Habitação, CML)

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PROJECTO DE REQUALIFICAÇÃO DA EPUL, 2007

A requalificação e o papel do Grupo Comunitário Ainda durante uma reunião ocorrida em 2005 o Grupo Comunitário deliberara convidar todos os grupos municipais, vereadores da Câmara de Lisboa e a comissão permanente de habitação da Assembleia Municipal a visitarem o bairro antigo, e abreviar o tempo para a intervenção. Viveram-se novos momentos de tensão e de grande preocupação. Os moradores desanimavam, aumentavam o número de casas emparedadas e apenas uma pequena minoria de residentes continuava a fazer as obras de manutenção – a indefinição entre recuperação ou demolição pesava nos quotidianos que, dia para dia, viam com grande tristeza e desesperança. “Como vemos pelas situações referidas hoje nas reuniões do Grupo Comunitário, o grande problema das pessoas, dos moradores é… as casas, as condições de habitabilidade. Tenho aqui situações de jovens que reflectem muito esse problema. Há jovens que estão desistentes da escola também, em parte, por causa do ambiente degradado das casas em que vivem. São alunos que vivem na zona velha do bairro.” (Cristina Santos, directora da escola até 2010-11) VASOS DA CIDADANIA, UTENTES DO CENTRO DE DIA SCML, BAIRRO PADRE CRUZ, 2010

A intervenção da Gebalis manifestava-se claramente insuficiente e as críticas multiplicavam-se. As preocupações relativas à requalificação do bairro de alvenaria passaram a preencher os encontros do Grupo Comunitário. Esse, o “problema” o principal (e muitas vezes, único) assunto a debater. Será, pois, nesse sentido que Roque Amaro – um dos fundadores do Grupo Comunitário – apresenta uma perspectiva crítica: “Neste momento há uma mudança radical. Hoje o grupo é preenchido pelos seus residentes que vão pôr os seus problemas e não necessariamente integrados nas associações que os representam. Vêm colocar o seu problema pessoal – o Grupo Comunitário assume carácter mais populista que aparenta participação mas não é

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necessariamente mais participado. (…) Uma coisa é a adesão a um convite; outra coisa é a iniciativa de estar presente, por razões próprias. E isto acontece só parcialmente. E, depois, faltam duas coisas importantes: passar de uma lógica pontual – aparecer quando se tem problemas para pôr – para uma lógica de continuidade. E, portanto, a pessoa adere ao processo e não ao problema. E isto é fundamental. E, depois, o terceiro aspecto é passar de uma lógica reivindicativa para uma lógica construtiva. Estas são as três condições da passagem para um trabalho verdadeiramente comunitário (…). Duas instituições que dirigem o Grupo Comunitário - a Junta de Freguesia e a Associação de Moradores. É um Grupo Comunitário muito centrado nestas organizações quando, antes, não era. Era muito mais partilhado, repartido em termos de responsabilidades e tarefas.“ (Roque Amaro, PROACT) O Bairro Padre Cruz, hoje – antigas e novas comunidades Actualmente o Bairro Padre Cruz ocupa uma área de 37 hectares onde estão implantados 1 041 edifícios, 2 315 alojamentos (113 lotes), dos quais a grande maioria é gerida pela Gebalis (2 119 fogos). Dos restantes, 196 fogos já são pertença de particulares tendo sido vendidos às famílias residentes(3). De acordo com os Censos de 2011, residiam no bairro 6 468 habitantes (o site oficial da Gebalis refere uma população de 7 871 habitantes em 2013), agrupados em 2048 famílias. Mantém-se ainda como o maior bairro da freguesia de Carnide (29% da população). Já sabemos que a população deste bairro reúne um número significativo de pessoas dependentes do Rendimento de Inserção Social (14%, 296 processos de RSI e 901 beneficiários abrangidos segundo dados da SCML). Em termos das características globais da população existe um ligeiro predomínio da população feminina (53,3%) e, em termos etários, o grupo com maior expressão encontra-se em idade activa (dos 25 aos 64 anos, 3 165 pessoas); depois os idosos (65 ou mais anos)

que correspondem a 1 242 residentes. Segundo a Direcção de Acção Social Local Norte da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, 105 famílias do bairro com crianças e jovens estão em acompanhamento por situações de risco. Além disso, registam-se casos associados ao alcoolismo, toxicodependência…. Em termos das competências escolares, o perfil da população confirma percursos escolares interrompidos bem como precoces abandonos escolares atendendo às elevadas percentagens de indivíduos com o 1º ciclo do ensino básico (40%), que não sabem ler nem escrever (23%) em contraste com o mínimo (1%) que possui curso superior. Ora, estes baixos níveis de escolaridade confirmam a dificuldade em aceder a empregos qualificados e com melhores níveis remuneratórios por parte desta população. Contudo, será importante e fundamental reconhecer que esta mesma população existem competências laborais e experiências profissionais sem o devido reconhecimento formal. Competências e capacitações que representam valores e valias para a comunidade, são saberes-fazeres, técnicas e práticas funcionais relacionadas com a agricultura, com diferentes formas de apoio social relacionadas, muitas delas, com as tais entreajudas de vizinhança extremamente valiosas (“a vizinha está fora e pede-me que lhe areje a casa”; “sempre que vou lá abaixo ao mercado pergunto à vizinha se ela precisa de alguma coisa, porque ela não pode, coitadinha…”; “vou olhando pela mãe, agora que a filha está fora”; “tenho as chaves de todas as casas desta rua. As pessoas confiam muito em mim”…) Exemplos de solidariedades informais que percebemos social e economicamente desvalorizadas. Os bairros do bairro – diálogos a construir “Eu, para ali nunca vou…” moradora “O bairro antigo tem uma identidade que não se encontra

no bairro novo. São coisas completamente diferentes. O ideal é que não exista esta distinção de identidades. E se calhar nunca houve nada que aproximasse, de facto, as pessoas que chegaram das pessoas que já cá estavam. Ou vice-versa. Era bom que houvesse estruturas, que houvesse dinâmicas, que houvesse formas de intervenção que as aproximasse e correlacionasse. O que é facto é que ainda temos gente nova para um lado e gente do bairro antigo para outro. E isso para mim não faz sentido. É claramente visível que ainda há uma identidade no bairro antigo que não existe no bairro novo mas o ideal é que relacionem identidades.” (Fernando d’Oliveira, morador)

GRAFITI NO "BAIRRO NOVO", 2010

Vimos que no “bairro de alvenaria” grande parte da população reside no local desde a sua fundação, mantêmse sólidas relações de vizinhança e de entreajuda, um elevado sentido de pertença para com o bairro ao ponto de nele localizarmos a original “âncora identitária”, que fixou e foi estruturando o tipo de relações e representações que prevalecem, ainda hoje. Porém, na actualidade este “bairro antigo” acentua envelhecimento – da população e das habitações – abandono e acentuada degradação. Nesta parcela residem 770 famílias com elevada percentagem de idosos. E de idosos vulnerabilizados. É precisamente para esta população que as condições de habitabilidade (interior e exterior às habitações) se revelam, dia-a-dia, mais desadequadas. Muitos idosos vivem isolados em ruas descalcetadas, expostos a dificuldades, barreiras e perigos vários. Por sua vez, no “bairro novo” o desenvolvimento das relações de vizinhança é condicionado – “Eu só sei que ela, agora, mora para perto da escola… mas nunca lá fui nem conto ir”; alheias e sem curiosidade sobre a comunidade que reside no Bairro Padre Cruz – “eu para a parte velha, nunca vou… mas também dizem que aquilo está tudo a cair”… A construção em altura levou ao isolamento de alguns idosos e pessoas com mobilidade reduzida, que vêem o acesso ao exterior muito limitado, em particular nos casos de edifícios com elevadores avariados – “Isto não há meio de andar direito! Eu bem queria ter

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FLOREIRA NO "BAIRRO NOVO", 2010

B.º PADRE CRUZ, 2010

ficado num andar baixo… Já viu esta minha vida?!” No que diz respeito às áreas de uso comum (as ruas, as praças, …) existe manutenção e cuidado na limpeza. Os espaços verdes, esses sim, estão muito cuidados. Contudo estes espaços públicos também parecem “desamparados” de vivências, associados a inseguranças, sobre os quais os moradores desenharam e mantêm fronteiras mentais. “Eu, para ali nunca vou, nem quero ir…” respondem, também, os “antigos”. Por outro lado, tal como sucede no bairro antigo, as formas de apropriação do espaço no bairro novo – de torná-lo “seu” ou de “rejeitá-lo” – manifestam-se de modos diversos: na manutenção e limpeza das fachadas e espaços comuns de entrada nos edifícios, no cuidar das floreiras e dos espaços verdes ou nos gestos de vandalismo (graffitis desapropriados, vidros partidos, campainhas estragadas, portas forçadas…) que, afinal, evidenciam as diferenças na relação construída e as diferentes expressões de inserção/rejeição do território do bairro(4). Por outro lado é de referir que neste conjunto urbano sobressai, recentemente, a animação do Centro Cultural de Carnide (seja como auditório de cultura, desde 2011, biblioteca, ou centro de dia e, creche da SCML). E mesmo anteriormente, em ocasiões festivas, como é o caso dos santos populares e apresentação das marchas populares, faz-se uso do amplo espaço exterior. E onde as comunidades dos “dois bairros” convivem animadamente. A requalificação do bairro de alvenaria – segundo projecto e terceiro impasse “Conseguimos a vitória que as pessoas fiquem no bairro. Mas não podemos deixar de questionar e colocar as coisas em cima da mesa” Maria Vilar (ex-presidente da JFC, presidente da AMFC) Em 2007 António Costa (PS) foi eleito Presidente da CML e os pelouros da Habitação e Requalificação Urbana ficaram a cargo da vereadora Helena Roseta. A proposta aprovada para a requalificação ficara suspensa

BUSTO DO PADRE CRUZ, 2010 (FOTOGRAFIA DE HUGO GUERRA)

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por motivos de financiamento e da impossibilidade de garantir os realojamentos no bairro durante o processo de demolição/requalificação. Em 2010, Paulo Quaresma, desabafava: “Enquanto não houver alguém que esclareça qual o caminho… neste momento não há caminho, outra vez. Sentimo-nos todos enganados. Afinal não há dinheiro para a recuperação do bairro. Há dinheiro para fazer duas residências assistidas. E ponto final. Esta situação é aflitiva. (…). É imoral o que se está a fazer.” (Paulo Quaresma, ex-morador, presidente da JFC) “O que se passava, para além das questões de financiamento é que a agenda estava parada porque era preciso achar, primeiro, uma solução para o realojamento. A CML já não dispunha de realojamentos como o PER e, por isso estávamos num impasse.” (Helena Roseta, vereadora). Finalmente, em 2008-09 foi apresentado um estudo alternativo sob a responsabilidade da vereadora Helena Roseta e os maiores bloqueios – em termos de garantias de financiamento – conseguiram ser ultrapassados. No âmbito da candidatura apresentada pela Câmara Municipal de Lisboa ao programa "Política de Cidades – Parcerias para a Regeneração Urbana – Bairros Críticos” com parcial financiamento pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN), confirmou-se o novo plano de realojamento proposto e a demolição integral – faseada – das habitações do bairro de alvenaria(5). No seu total o calendário da obra poderá prolongar-se além dos 10 anos e inclui 8 fases e subfases, envolvendo a mesma área territorial, de 12 hectares. O actual projecto de requalificação – criar um “Bairro Integrado” Neste novo projecto as preocupações com a sustentabilidade e a referência aos eco-bairros (6)

apresentam-se sob o conceito de “Bairro Integrado”. Em paralelo, alguma informação e acompanhamento por parte das populações residentes indiciam uma outra atitude de parte a parte. Para isso terá o capital social comunitário contribuído decisivamente – e o reconhecimento do bairro enquanto espaço de raízes e de pertenças, de memórias socialmente significativas, tem apelado a uma outra atenção na intervenção urbanística, conforme veremos. Verifica-se diferença na concepção, planeamento e linguagem com que se apresenta e defende este novo projecto (disponível em site da CML): “Apesar de já ter sido elaborada uma primeira solução urbanística, aprovada em Março de 2007 (…) Decorrente das necessidades e dos desafios lançados no sentido de reduzir os impactes ambientais provocados pelo desenvolvimento das áreas urbanas, e tendo em conta a oportunidade associada à dimensão desta intervenção, surgiu o conceito de criação de um Bairro Integrado, com forte preocupações sociais e ambientais, fruto das mais prementes exigências locais, procurando promover um urbanismo sustentável e manter o equilíbrio entre o meio ambiente e as comunidades humanas.” Em termos globais a proposta apresenta-se, sem dúvida, abrangente, multifacetada e desafiante e incorpora novos conceitos: “Propõe-se uma Estratégia Integrada de Qualificação do Bairro Padre Cruz a qual inclui a reconversão urbanística e ambiental do Bairro de Alvenaria, através da demolição total do edificado aí existente, o realojamento dos residentes em construções dignas, a criação de uma adequada rede de equipamentos, a infraestruturação total da área de intervenção, com criação de um espaço público qualificado, dotado de espaços verdes e de utilização colectiva, que proporcionem áreas de vivência comunitária e de animação social, num quadro de sustentabilidade ambiental.”

Em síntese, “a operação de loteamento do Bairro Padre Cruz prevê 960 novos fogos [inseridos em 22 lotes, variando entre 4 a 6 pisos] dos quais, como se referiu, 770 são para realojamento dos actuais habitantes, destinandose os restantes 190 fogos a construção de habitação, em venda livre com custos controlados, para descendentes dos actuais moradores (…).” Sem possuir elementos que permitam aferir da real possibilidade de concretização deste “Bairro Integrado” não deixa de ser significativa a referência a preocupações ambientais e sociais anteriormente arredadas dos momentos de concepção e de planeamento urbano. Em termos do conceito de “Bairro Integrado”, fica referido: “Assim, é proposto um novo conceito baseado na sustentabilidade aliada à requalificação do tecido urbano, também associado à implementação de uma diversidade social que elimine a imagem negativa associada aos Bairros de Realojamento.(…) Tendo em conta, a situação particular desta operação, o seu carácter profundamente associado à regeneração urbana e a considerável dimensão que esta área de intervenção assume no tecido da cidade de Lisboa, este bairro manifesta-se numa excepcional oportunidade para o desenvolvimento de um projecto impar, integrado no tema “Sustentabilidade Territorial”. E, neste contexto de “Sustentabilidade Territorial” alistaram-se preocupações que transcrevemos: “O presente projecto de loteamento introduz princípios de intervenção fortemente humanizados, de forma a promover um bairro claramente integrado, incentivando a prática da sociabilidade, no reforço da identidade comunitária, propondo um novo conceito caracterizado pelos seguintes aspectos: - A criação de um Bairro Social e Ambientalmente Sustentável, que constitua uma referência de integração

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urbana e social, na cidade, e na comunidade;(…) - Adequação da intervenção às expectativas e necessidades dos moradores, promovendo o a c o m p a n h a m e n to d o p r o c e s s o n u m a b a s e d e proximidade, diálogo (participação) e incorporação de propostas; (…) - Promover a diversidade tipológica do edificado, de forma a potenciar uma maior diversidade social por um lado, e por outro a anular monotonia visual que poderá comprometer a relação identitária do residente com a sua habitação.” A finalizar esclarece-se que “o edificado que se propõe na nova zona urbana, pretende entender este bairro como um só, consolidando o seu conjunto global, com a adopção dos projectos às características locais e com a criação de espaços públicos estruturantes e agregadores das diversas dinâmicas urbanas.” A proposta de “Bairro Integrado” assente em dinâmicas de “Sustentabilidade Territorial” resulta na maqueta da imagem ao lado.

PROPOSTA DE REQUALIFICAÇÃO DO BAIRRO PADRE CRUZ ZONA DE ALVENARIA, VISTA NASCENTE

Não sendo este o momento nem o espaço oportunos para aferir da integração dos princípios e preocupações que temos vindo a assinalar existem, porém, alguns pontos a relevar. Ficou referido que a concepção e o planeamento do actual projecto foram anteriores a este trabalho de recolha de memórias e das vivências locais. Fica pois por saber quanto do reconhecimento do valor da memória e do património local – reconhecidos como princípios orientadores a ter em conta no processo de requalificação – está realmente inscrito nesta maqueta de projecto que surpreende a vários níveis. A primeira surpresa resulta do desenho que, afinal, se aproxima do “bairro novo” ou “bairro dos blocos coloridos”. Um bairro que constatámos ser menos facilitador das sociabilidades locais, das redes de vizinhança e que resultou – tal como este, agora, resultará – de uma demarcação relativamente à memória visual do bairro antigo. Muito embora alguns nomes das ruas dos rios

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venham a ser mantidos (foi-nos dito) fica por aferir, no concreto, o reconhecimento das memórias e anteriores convivências. Por outro lado, conforme transcrevemos, este projecto pressupõe fortes “princípios humanizados”. Será, pois, com particular interesse e atenção que deverão ser acompanhadas as reocupações destes novos fogos através de compromissos que devem envolver o trabalho com a comunidade. E que, por isso, será particularmente exigente no apoio social, de forma a permitir as tão fundamentais regenerações do tecido social do bairro e contrariar guetizações. Também será válido reforçar que um “bairro integrado” só parece fazer sentido quando integra de facto – positiva e criativamente – os vários recursos disponíveis. Qual a amplitude e possibilidade de os moradores/agregados familiares serem, realmente, parceiros de voz e de acção neste processo de realojamentos? Além de tudo isto expõe-se aqui matéria riquíssima para aferir do diálogo a estabelecer entre o novo edificado e as vivências comuns procurando apurar em que medida a(s) comunidade(s) (e, dentro dela, os moradores) conseguirá reapropriar-se positivamente deste diferente cenário urbano (?) Quando poderão reavê-lo e revivê-lo como “o nosso bairro”? O GABIP e o pioneirismo do Bairro Padre Cruz “O GABIP é a chave de todo este processo.” Helena Roseta (vereadora, CML) "Até agora o realojamento foi um processo de mudar as pessoas de tijolos maus para tijolos bons. Mas de facto nunca houve um trabalho de acompanhamento que fazia falta, fazia muita falta…" Isabel Santana (Acção Social, CML) Em Março de 2009 fora criado o GAPUR – um grupo de trabalho de acompanhamento, no terreno, aos

complicados processos de realojamento por iniciativa da vereadora Ana Sara Brito (despacho de 81/P/2009). Porém, na prática, constatou-se que esse grupo não reunia condições para operar devidamente na medida em que não incluía os principais intervenientes locais, as tais “forças vivas”: associação de moradores e representantes da autarquia. ”A criação do Gapur não foi muito bem recebida por parte dos parceiros locais. Era tudo centralizado nos serviços e não havia articulações estreita nem parcerias nem partilha de informações e conhecimento com os parceiros envolvidos… Ocorreram impasses e conflitos em vários momentos porque não houve convergência de interesses nem mobilização por parte das instituições locais (a JF e as associações locais o facto de os moradores oferecerem resistência aos serviços.“ (Isabel Santana, Acção Social, CML) Posteriormente foi criado o GABIP (7) – uma nova estrutura de trabalho mais abrangente que “será a chave de todo este processo” nas palavras de Helena Roseta. “Aliás, o GABIP (gabinete de apoio ao processo de requalificação do Bairro Padre Cruz/ bairro de intervenção prioritária) é expressão de um novo paradigma. O GABIP tem seis elementos, comissão executiva, e tem sido um processo muito mais positivo. Objectivos políticos e objectivos técnicos não andam a par e passo. Há tramitações e procedimentos técnicos que são mais morosos mas são fundamentais para validar os processos de modo justo e transparente. Pela primeira vez temos um processo de realojamento acompanhado por todos os parceiros. Isso permite ganhar confiança e credibilidade junto dos moradores, ganhar credibilidade dos técnicos, facilita os processos… metodologias muito participativas, audiências individuais com cada uma das famílias… É um processo muito moroso, mas também muito mais próximo e justo. Claro que existem entraves que nos ultrapassam. Com o Bairro Padre Cruz aconteceu o primeiro GABIP. O

Bairro Padre Cruz é pioneiro.” (Isabel Santana, Acção Social, CML) Neste contexto, após atentos e demorados estudos e conversações conseguiu-se avançar com uma solução integrada muito cuidadosa e “artesanalmente” complexa que garante três pontos fundamentais): 1. durante as várias fases do processo de requalificação os moradores serão realojados – provisória ou definitivamente, conforme pretenderem – dentro do bairro; 2. todos os moradores a realojar visitam a casa que lhes foi atribuída para confirmar a adequação da casa que lhes foi destinada; 3. todos os moradores que assim o desejarem ficarão a residir no bairro após concluídas as obra. “Deste processo destaco como método de trabalho o realojamento faseado por pequenos grupos de famílias. Primeiro 44 e, depois, 60 famílias. Antes de começar o processo são explicados os critérios para os realojamentos e criou-se uma estrutura – o GABIP (…) cuja comissão executiva inclui a participação da Junta de Freguesia e da Associação de Moradores… e que tem sido a chave de todo este processo. Reunimo-nos de 15 em 15 dias, são estudados os casos das famílias, caso a caso, as características de cada situação, as propostas de realojamento que podem ser feitas. Entretanto fomos descobrindo fogos devolutos aqui no bairro que, com pequenas obras de reabilitação servem para acolher estes realojamentos. Tudo isto tem sido um trabalho de grande minúcia, artesanal, de grande respeito pelas características de cada família, olhando caso a caso… Há sempre situações mais difíceis, mas penso que é um trabalho exemplar. Exemplar, do realojamento que temos hoje em Lisboa, e que são muito diferentes dos que tivemos no passado… Este processo é pioneiro no sentido do respeito e da participação das pessoas. Não é que isso não devesse existir no passado… mas entende-se aqui que o ritmo do processo tem que respeitar o ritmo das mudanças das famílias…” (Helena Roseta, vereadora da Habitação, CML)

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CERIMÓNIA DE ENTREGA DAS PRIMEIRAS 7 CHAVES, FEVEREIRO 2011

“Existem dois paradigmas: antes e depois da vereadora Helena Roseta. Até agora o realojamento foi um processo de mudar as pessoas de tijolos maus para tijolos bons. Mas de facto nunca houve um trabalho de acompanhamento que fazia falta, fazia muita falta… Agora é muito mais dialogante, mais articulada e próxima… e o GABIP é expressão desse novo paradigma. É um novo modelo de trabalho que tem o seu tempo. O tempo das instituições não é o tempo das pessoas. (…) É, de facto, um novo modelo e esperamos que as pessoas percebem o produto final e todo o trabalho que está ali, até ao momento da entrega de chaves… que se realiza nos Paços do Conselho – é outra novidade deste forma de trabalhar: uma cerimónia com outro significado, um momento com uma dignidade própria… Mostrar um direito que também é responsabilizante.” (Isabel Santana, Acção Social, CML) O contributo do capital social comunitário “Juntos vamos começar a construir um novo bairro.” Paulo Quaresma (ex-morador, presidente JFC)

MORADORES COLABORAM NA REABILITAÇÃO DAS CASAS

“Sim, o capital comunitário é muito importante. O bairro já tinha uma estrutura comunitária montada. O próprio presidente da Junta de Freguesia foi morador e tem uma experiência participativa. A presidente da Associação de Moradores também é uma peça fundamental porque conhece as pessoas pelos nomes. E isso faz a diferença porque as pessoas não são números. Cada família é uma família. Além disso, montámos um sistema em que se reconhece que existem critérios gerais de realojamento, mas cada bairro pode ter critérios especiais. E esses critérios são definidos em função das populações concretas, idades, mobilidades…” (Helena Roseta, vereadora, CML) “Este modelo de realojamento será aplicado nos outros bairros ou em zonas que careçam de intervenção. Não tenho dúvida que todo o trabalho já desenvolvido pela Junta, pelas associações, motivou e inspirou a seguir um

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modelo de realojamento mais participado. A vereadora e o director sabem tanto acerca da situação de cada família como o próprio técnico. Há muito mais informação a circular e isso é facilitador dos procedimentos e decisões a tomar.(…) Compreendemos que não podemos desapossar as pessoas de qualquer modo de situações e realidades nas quais vivem há mais de 40 anos… Só assim, com acompanhamento, é que faz sentido o processo de realojamento.” (Isabel Santana, Acção Social, CML) Nesta fase, para além da necessidade de um acompanhamento humanamente atento e criterioso, é permanente a preocupação em manter a população informada. A Câmara Municipal de Lisboa fez circular o folheto “revitalizar bairro padre Cruz” e a Junta de Freguesia, no respectivo Boletim de edição mensal, noticiam os principais momentos deste processo de requalificação. É de reconhecimento unânime o desabafo de Elisete Andrade, actual presidente da Associação de Moradores: “Quando alguma coisa de mal acontece no bairro sai logo a notícia… agora sobre este processo de requalificação que é complexo, moroso, um trabalho sério e atento … a forma como se tem procedido e não haver uma única crítica… Ora, isto tem alguma coisa que se lhe diga.” Sobre o processo de requalificação – o parecer dos moradores “E o progresso só é progresso se respeitarmos a dignidade das pessoas. Se não, não é progresso…” Elisete Andrade (moradora, presidente da AMBCP) Compreende-se que, por parte dos moradores, não exista uma só e única posição perante o processo de requalificação(8). Conforme foi referido, cada caso é um caso, e o modo como a população tem encarado a requalificação resulta, em grande parte, da resolução que é

encontrada para o seu agregado, em particular. Nas reuniões do GC que se mantêm como focos de actualização da informação relativa ao processo, as vozes dividem-se e os ânimos, por vezes, sobem de tom. Situações que evidenciam a tensão, os receios e as dúvidas que, ainda assim, persistem entre a população. De qualquer modo, e sem surpresa, parecem ser os residentes mais idosos e dependentes aqueles que manifestam maiores preocupações e os menos envelhecidos (e, logo, mais independentes e informados) os que mais facilmente aceitam os compromissos longos com a requalificação. “Vejo com bons olhos as residências e vejo com bons olhos as primeiras alterações começarem por aí… Porque serão as pessoas que mais vão sofrer com isto. Porque, para além do ficar muito bonito, há pessoas que vão morrer com o morrer do bairro porque isto é o bairro delas. É aqui que se divide um bocadinho… foi ali que tudo aconteceu. A vida deles está aqui. Neste cantinho. Nesta ilhazinha… Há 50 anos, é uma vida inteira. Vão sofrer com a queda da casa deles. Por isso, é preciso ter muito cuidado com estas mudanças pois a casa pode estar muito estragada e a meter água, com poucas condições… mas foi ali que se construiu uma vida e essa vida cai ao chão. Portanto, é preciso um acompanhamento, um cuidado muito especial…” (Mário Guerra, ex-morador) “Foi muito difícil às pessoas de mais idade aceitarem. Mas quando se começou a pensar nisso, foi bem estruturado, bem pensado e bem explicado às pessoas que as pessoas aceitaram… Só que com esta demora toda, este faz e não faz, as pessoas estão a criar uma revolta. E estão a sentirse mesmo abandonadas porque, entretanto, foi um emparedar de casas à doida. Existem ruas onde só vivem duas ou três pessoas… As pessoas sentem-se inseguras, revoltadas e vivem no meio da lixeira… Este desacompanhamento ocorre quando nasce o bairro novo e já lá vão mais de 15 anos… Eu acho que estas casas pequeninas conseguiam-se recuperar e isso, para idosos, dava muito jeito porque não são grandes de tamanho e

eles acabavam por ficar no habitat deles à mesma com jardim, com quintalinho…” (Teresa Guerra, moradora) “E creio que esta requalificação pode ser muito benéfica, até para a tal aproximação entre bairros, entre mentalidades e costumes das pessoas. É evidente que haverá aquela nostalgia do bairro antigo que desaparece…. Mas as pessoas estão cá, e a as pessoas é que irão ter que fazer o bairro. E pode ser que nessa altura se perceba que todas as pessoas têm que fazer o bairro - as pessoas que estão cá há menos tempo e os que estão cá há muito tempo. Uma estrutura de vida nova pode ser que revitalize um bocado o bairro. Não tenho medo das transformações do futuro. É uma oportunidade para o bairro nascer outra vez.” (Fernando d’Oliveira, morador) “Apesar de estarem cansados do estado de degradação do bairro velho, as pessoas sentem-se fortemente ligadas a ele. E têm algum receio da mudança, o novo tipo de construção, um modo de estar diferente, mais um tipo de prateleira…. As pessoas estão habituadas a estar na sua casinha, a paredes meias com alguém, com muito espaço exterior… e por isso estão relutantes em relação à mudança mas também expectantes.” (Albertina Lopes, exmoradora, funcionária do Centro de Dia da SCML) RUAS DO BAIRRO ANTIGO, NA ACTUALIDADE

“Vejo com bons olhos a requalificação. Mas ainda não sabemos a que preço, com que custos… qual o custo de construção não sabemos quanto é que as pessoas irão pagar, e não se falou numa política clara do que vai acontecer… Agora já se ouve dizer que o bairro vai estar em obras durante 15 ou 20 anos… e isto é inaceitável para mim. Um bairro como este, que é fechado sobre si mesmo não pode estar à espera com obras durante quinze ou vinte anos. Isso é inadmissível! Os Grupos Comunitários têm que ser grupos de pressão… Preocupam-me as obras, com este trânsito, o caos que vai ficar… Por vezes, parece-me que as pessoas que estão a tomar decisões não sabem o que estão a decidir…” (José Martins, morador)

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B.º PADRE CRUZ, 2010

POMBAL NO "BAIRRO ANTIGO", 2010 (FOTOGRAFIA DE HUGO GUERRA)

“Actualmente é inevitável a requalificação. Porque aquilo que o Bairro precisa é muita coisa. Muita coisa! Urgente preparação das pessoas para as novas situações… É uma obra prevista para 10 anos – e isso tem muitas consequências. Importante é a contribuição desse Grupo de Acompanhamento com reuniões regulares de 15 em 15 dias. Nós (Associação de Moradores) fazemos parte desse Grupo e é urgente começar a preparar e a formar cidadãos para as contingências todas… Os mais novos terão mais capacidade de alterações e de mudança mas têm que estar preparados para ajudar os mais velhos nesse processo todo (…) Há coisas que a gente intui e deseja, outras que não sabe como vão acontecer. Mas há características e valores que era importante preservar (…). Mas mesmo assim, eu acho que o que vai surgir será muito diferente do que está agora. Mesmo muito diferente. E a memória do “antes” é algo a preservar… Também há muita gente que tem pombais, levam os pombos a concurso, mas isto não pode ficar dentro dos bairros nem das habitações, mas têm que ser criados espaços próprios. (…) Isto tem que ser muito bem estudado porque por um lado há relações de vizinhança que as pessoas querem manter ou não. O Grupo de Apoio tem que pensar muito bem todas estas situações para que se consiga dar a melhor resposta…” (Elisete Andrade, moradora e presidente da AMBCP) O futuro do Bairro Padre Cruz e os (novos) compromissos da Gebalis O calendário faseado, a dimensão, complexidade e consequências do processo de requalificação envolvem muito directamente a população residente mas também as instituições locais. Atendendo ao enorme desafio que tem pela frente e às novas exigências para que é convocada, a Gebalis, enquanto empresa gestora do bairro em representação da CML, terá que multiplicar, aperfeiçoar, capacitar e sensibilizar o trabalho de acompanhamento no terreno. Importa firmar “pontos fortes” e corrigir eficazmente os “pontos fracos”.

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“O nosso ponto forte decorre do facto de trabalharmos no local, directamente com as pessoas. Conhecemos o bairro, as famílias, fazemos visitas constantes de acompanhamento… A proximidade é muito importante em termos de relações e de visibilidade que se cria sobre as situações e os problemas. Nós, aqui, conseguimos conversar e fazer propostas. Porque também é disso que se trata. (…) Cada vez mais as pessoas têm compreendido que a via do diálogo é a melhor solução. Temos muitos parceiros aqui no bairro. É dos bairros que conta com mais parceiros, felizmente… a Associação de Moradores, a Junta de Freguesia, a Lua Cheia, a Santa Casa, o Futebol de Rua, E contamos sempre com todos.” (Helena Gomes, técnica) “Existe também o problema de acabar por se dar mais visibilidade, por parte das pessoas, ao que não corre tão bem ou aquilo que não vai ao encontro das suas expectativas. Existe todo um trabalho que é feito, muito boas soluções que são encontradas, mas que nenhum morador vai ao Grupo Comunitário elogiar. O ponto fraco pode ser, precisamente, o facto de não se publicitar devidamente o trabalho conseguido, as soluções encontradas.” (Cláudia Rocha, técnica) Relativamente ao tempo e faseamento previstos para a requalificação, Helena Gomes refere que “Esta situação, para além dos estados de perturbação, vulnerabilidade e insegurança que provocam (quando é que a minha casa vai abaixo? para onde vou?) acaba por desobrigar os moradores de investir na sua casa, na sua rua, no seu bairro... Esse é um processo evolutivo que tem tido várias fases… Agora as coisas têm avançado. A nossa preocupação passa pela integração do bairro na cidade de Lisboa, a integração das pessoas, este gostar de estar no bairro, de aqui morar, a capacitação dos próprios moradores para colaborarem com este trabalho de modo a contribuírem para uma maior integração para todos. Isto tem muito que ver com tudo o que fazemos, e de criar e estimular um sentido de pertença ao bairro, de autonomia,

criar capacitação, criar estruturas… de dignificação. Nós somos gestores de um património da Câmara. É fundamental apostar na boa comunicação entre as populações realojadas e a entidade responsável pela gestão do bairro, a Gebalis. Há que insistir na consolidação criativa de todo o tipo de estratégias e de acções em conjunto com a comunidade para que se promova um mais positivo sentido de pertença, e de responsabilidade pelo bairro. Relembremos: “A partir do momento em que uma comunidade tem orgulho no seu bairro, o bairro está salvo.” (Helena Roseta, vereadora, CML) Outros equipamentos centrais na vida do bairro Porque este é um processo de requalificação integrada, todos os equipamentos estão, de uma forma ou de outras, envolvidos na requalificação do bairro que passa, necessariamente pelas relações do bairro com a cidade. A questão central que se coloca, hoje, no funcionamento dos vários equipamentos do Bairro Padre Cruz prende-se, precisamente, com a articulação interior/exterior quer seja dentro do bairro, quer seja entre o bairro e a cidade. Tome-se o exemplo: a escola quer dar-se a conhecer e ser reconhecida no contexto da comunidade, do bairro; a biblioteca procura trabalhar no sentido de abrir os horizontes da comunidade a outras realidades e contextos sociais, contrariar o fechamento na tal “ilha” de cultura(s). O papel da escola: “valorizar a escola na comunidade” O papel da escola no bairro mereceria, por si só, uma outra pesquisa. Compreende-se que desde os primeiros tempos – da escola primária dos pátios divididos para o jogo da bola e do elástico – muitas mudanças ocorreram. E, todas elas se reflectiram na dinâmica escolar. No momento presente o que mais importa destacar é o investimento numa escola de segundo e terceiro ciclos instalada dentro do bairro com objectivo de contrariar dois problemas profundos desta comunidade: as

taxas de insucesso e de abandono escolar precoce. Foi através das palavras de quem acompanhou este processo na sua origem, que escutámos: “Começámos esse primeiro ano, de 2001, com imensas dificuldades. Todo o bairro era em terra batida, não havia jardins em parte alguma e projectámos os nossos jardins e a nossa humanização da escola. Percebemos que a população escolar era de muitos fracos recursos económicos e culturais. Tivemos conhecimento que as casas que habitavam eram sem gestão, desarrumadas… e então planeámos um projecto educativo que apelasse a uma gestão humanizada dos espaços. Aproveitar os espaços físicos – os corredores, as entradas – e colocar todas as artes feitas pelos alunos. Ter sempre exposições permanentes. E chamar os pais à escola, convidá-los a visitar o novo espaço. No início, o que ouvia dos pais é que esta era uma escola branca que iria ser pintada de negro. Foram estas primeiras palavras que ouvi destas famílias, numa reunião. A escola abriu em Setembro de 2002 e afirmei que esta escola manteria a sua cor. Nos primeiros 3 meses, verifiquei que nós com tanto trabalho na organização, na arrumação do espaço, das salas, organização internamente… não conseguíamos conviver internamente sem abrir a escola ao meio porque cada aluno que vinha para cá trazia um problema. Vinham escorraçados de outros locais, de outros meios. De Telheiras voltavam com repetências. Em Janeiro pedimos ajuda ao Instituto do Apoio à Criança.(…) Todos os anos chegam professores novos e todos os anos temos professores que têm que sentir e conhecer - “viver o bairro” - e isso também não é fácil. A instalação da escola no bairro também se deveu a muita pressão política. (…) Hoje, nós só temos alunos do bairro porque a escola não tem capacidade para mais.(…) Parar aqui, nesta escola, é condenar ao fracasso. A escola tem que ter projectos, tem que estar humanizada, com espaço a g r a d á v e i s , s o f á s , p l a n t a s … Tu d o i s t o é u m a aprendizagem. E a escola ainda está branquinha! Temos

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VISTA DA "ESCOLA BRANCA", 2010

desenvolvido um trabalho para valorizar o papel da escola na comunidade. É muito importante que a escola seja reconhecida pela comunidade e fortalecer positivamente esses laços. A escola tem um papel fundamental na vida do bairro, e trazer os pais à escola é das coisas mais difíceis.” A partir do ano lectivo de 2010-11 o agrupamento de escolas do bairro passou a ser presidido pelo professor António Almendra(9). Tivemos conhecimento que o projecto escolar prossegue com vista a consolidar as parcerias institucionais, a contrariar as taxas elevadas de insucesso e de abandono escolar. Contudo, mantém-se o problema do afastamento e desinteresse das famílias relativamente à escola como um grande desafio a vencer. Em resposta a anteriores pressões dos moradores e solicitação da Junta de Freguesia, foi construída e inaugurada em Setembro de 2010 a nova escola EB 1, Aida Vieira. A escola recebeu o nome de uma professora primária do bairro prematuramente falecida em 2008. Contudo, após um curto tempo de utilização esta escola foi sujeita a remodelações e reparações atendendo às diferenças entre o edifício projectado e o edifício construído, para além de problemas no uso e colocação de alguns materiais. Referimos esta nota porque, uma vez mais, o plenário do GC e a voz dos moradores, designadamente da Associação de Pais, tiveram que se manifestar para a resolução dos problemas. Biblioteca Municipal Natália Correia – estimular literacias, criar oportunidades A Biblioteca Natália Correia está integrada na rede das Bibliotecas municipais de Lisboa e, sem dúvida alguma, que tem conseguido impor-se como um suporte fundamental para os residentes, os quais representam a maior parte dos utilizadores. Ficou distante o tempo em que a Biblioteca representava “estranheza” e ameaça. Hoje é muito procurada pelos jovens, sobretudo. De referir a presença e o bom acompanhamento por parte de um pessoal técnico que, em alguns casos, sendo morador do bairro, disso consegue tirar vantagens e, no seu conjunto,

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desenvolve um serviço informado e muito cúmplice. Foi através das palavras da responsável, Natália Amorim, que recolhemos um valioso e lúcido testemunho, sobre os principais problemas e valias do bairro. “A biblioteca foi inaugurada em 1996 e é herdeira da biblioteca de Carnide. Que era a biblioteca situada nas instalações do salão de festas. Mais tarde, arranjaram estas instalações e passaram para este edifício. Esta biblioteca funciona muito aqui no bairro para o bairro. É muito diferente de outras experiências que tenho conhecido. É muito raro termos utentes que não sejam residentes. Este ano foi um ano de observação das dinâmicas, do que se espera aqui de uma biblioteca. E o que a biblioteca pode oferecer. Este bairro não é uma zona aberta. É um bairro muito fechado sobre si mesmo. (...) Têm um território cultural muito vincado que vive muito dessa tradição bairrista geograficamente limitada e que os fecha ou inibe à procura de novidade… A novidade é uma ameaça. O Bairro Padre Cruz tem características de conservador. A mudança não é bem vista. O que não deixa de ser curioso porque é um bairro exposto à mudança e fruto dessa mudança porque foi um bairro que acolheu pessoas vindas de outros sítios e poderia ser um campo fecundo para adaptação a novas situações… mas acho que não. É um bairro com história porque há aqui gente que mora há muito tempo. Mas é curiosa a junção destas duas situações – a da existência de uma tradição com moradores que têm história no bairro com experiência no bairro de 40 ou 50 mais anos – e, depois, a experiência de outras pessoas que vieram de outras partes da cidade, muito mais recentemente. Há, de facto, um bairro novo e um bairro antigo. Os nossos utentes leitores são pessoas residentes no bairro há mais tempo. Temos utilizadores do bairro novo mas que usam outros recursos que não os livros. A biblioteca tem 1348 leitores. A esmagadora maioria são residentes no bairro. Esta biblioteca tem alguma estratégia, não serviu “apenas” para estender a rede. (…) As pessoas, aqui, marcam um

território muito mais restrito e muito pouca mobilidade em termos de procuras culturais em outros locais da cidade. E a abertura da biblioteca tem que ver, precisamente, com isso – a promoção da oferta em locais que podem estar mais fragilizados, a oferta de serviços de proximidade com organismos que tenham que ver com a educação, com a cultura, com o livro…(…) É fundamental investir na desconstrução da imagem negativa da cultura letrada que ameaça, que os fragiliza… e por isso há muitas estratégias que os atiram para a vida prática e eles acabam por nem saber ler… Todos projectos têm que considerar as pessoas. A história tem que ter algum encanto na vida de uma criança… É isso é que põe uma criança a ler.” (Natália Amorim, bibliotecária, no bairro de 2010-12) Centro Social Polivalente do Bairro Padre Cruz – um suporte continuado da SCML A presença da SCML no Bairro Padre Cruz tem longa história conforme vimos em fases anteriores e também mereceria capítulo próprio. Não sendo possível, faremos uma breve referência ao conjunto das valências oferecidas à população e um pouco do contexto de intervenção no terreno pela voz de Sofia Júdice, directora responsável pelo Polivalente: “O Bairro Padre Cruz é um bairro agradável quando se entra do ponto de vista urbanístico e de arquitectura… as ruas são espaçosas, estão limpas e os edifícios estão conservados. Pelo menos, por fora, o que se vê. É um impacto positivo. Tem espaços verdes bem tratados e bem conservados. De alguma forma fui conhecendo melhor a zona mais antiga porque é aí que vive a maior parte da população idosa e é aquela que mais acompanhamos. Percebe-se que existe uma relação de proximidade com o espaço e com a rua. Uma relação próxima com os vizinhos. Tem uma dinâmica muito própria de solidariedade, de entreajuda… mas também vejo que acontecem um pouco na zona nova… Essas relações facilitam muito a nossa actuação no bairro, a sinalização das pessoas mais complicadas. Todas as instituições são fundamentais no

bairro, mas nós temos uma responsabilidade de natureza social. Quando cheguei ao bairro, fui bem acolhida. Sinto que a SCML é uma instituição que é valorizada pela população que sente que pode confiar e contar com o apoio nos momentos de maior vulnerabilidade… os idosos sabem isso. O grande problema transversal é a precaridade socioeconómica… e num momento de crise estas populações sofrem um maior impacto. Este polivalente tem várias valências – creche, fechou o jardim-de-infância, animação socioeducativa de jovens pré-adolescentes uma faixa etária (10-13 anos); espaço de inclusão digital, sala de inclusão das TIC’s – onde têm sido desenvolvidos projectos internos. Dispõe de um centro de dia para 80 idosos; serviço de apoio domiciliário para 60 idosos e o apoio domiciliário integrado que é uma intervenção conjunta entre acção social e saúde. (…) É um centro grande. Todas as valências estão praticamente preenchidas. Era importante que as populações dos dois bairros interagissem mais pois o desenvolvimento do bairro só tem a ganhar com isso… e capacitar as pessoas para que elas também sejam parte integrante da solução. A participação é algo muito importante, e eu gostaria de apoiar esta comunidade no sentido de a envolver na dinâmica do bairro. A função de uma instituição como a SCML é também muito agregador, de catalisador dessa participação.” (Sofia Júdice, Directora do Polivalente da SCML, 2011-12) “As relações que estabelecem aqui têm que ver muito com as relações de vizinhança – o bom e o mau. Já houve alguns conflitos mas resolveram-se… mas como aqui a sala é grande, as pessoas posicionam-se de modo a defenderem-se, a fazerem as suas triagens com quem se querem dar… Há idosos muito solitários, muito sozinhos. As famílias não têm capacidade para dar apoio afectivo e efectivo a estes idosos. A Misericórdia, apesar de algumas críticas que possa haver, tem sido uma instituição fundamental no apoio a este bairro.” (Albertina Lopes, exmoradora e funcionária da SCML)

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ENTRADA DO POLIVALENTE, SCML, 2010

PROGRAMA DOS 50 ANOS DA IGREJA DO BAIRRO, 2012

A paróquia: reconquistar relação com a comunidade “O meu esforço nestes últimos anos tem sido o de tentar que a paróquia seja interventiva e que seja uma paróquia de relação – que não funcione de forma isolada nem fechada relativamente às outras instituições que existem aqui no bairro. Nós não somos ‘coisas’ à parte, somos uma parte integrante da própria vida do bairro, com especificidade própria como cada um, mas existimos em relação. E isso tem sido, de facto, nos últimos anos um desafio muito grande: tentar restituir à comunidade o papel da paróquia. Não é só no Bairro Padre Cruz a perda da influência da religião. Também terá a ver com a forma como somos educados – com outros atractivos, mais de momentos, fruições de momento. São soluções para o imediato enquanto a religião é algo de continuidade e estas ofertas satisfazem mais rapidamente, viradas para o momento imediato.” (Fernando d’Oliveira, morador) O associativismo no bairro – novos parceiros A diversificação dos equipamentos, estabelecimentos comerciais e coletividades existentes no Bairro Padre Cruz são muito importantes para a dinâmica da comunidade funcionando como elementos agregadores e espaços de encontro – o café da Amália, por exemplo, já é outra referência positiva no “bairro novo”. Durante esta década surgiram novos pontos de comércio, serviços e actividades diversas. Às actividades desportivas e recreativas já existentes, acrescentaram-se outras com uma nova atitude associativa: desde as mais radicais (Azimute, em 2001) o futebol de rua (pela Associação Nacional de Futebol de Rua, em 2007) e diversificadas como o teatro de contadores de histórias (Lua Cheia, em 2009), ao Taeckwonduo, atelier de música e ginástica de manutenção (dinamizadas pela Associação de Moradores), entre outras … como SOS Racismo, WACT e as mais recentemente sediadas no espaço JuntArte (para além da Azimute Radical, Ginga Brasil, Umbigo Teatro e Vicenteatro…) ( 1 0 ) . Apesar da recolha dos vários depoimentos, ricos e diversos, daremos como exemplo as

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actividades da Associação Nacional de Futebol de Rua e Lua Cheia – Teatro para Todos, atendendo a que sintetizam um conjunto de problemáticas comuns às várias associações e acrescentam informação sobre os novos “vizinhos”, frequentemente ignorada pela comunidade mais antiga do bairro. É material para reflexão. Associação Nacional de Futebol de Rua – a bola sempre pr’a frente! “A Associação Nacional de Futebol de Rua foi fundada em 2007 e tem que ver com a percepção de que uma modalidade desportiva – por exemplo, o futebol – pode ter um papel fundamental na inclusão social.(…) Propusemos à Junta uma parceria que foi logo aceite. O bairro reunia características propícias ao que queríamos implementar: grandes zonas de espaços públicos, muitos jovens, tradição de jogarem à bola com bolas de trapos, hábitos de apropriação da rua como espaço lúdico, zonas vedadas ao trânsito, este bairro tem mais jardins do que é habitual; tem também grandes largos e planos entre os prédios, ideais para praticar o futebol de rua… A Gebalis também é parceira neste projecto. Havia essa prática de um modo espontâneo, informal… por outro lado havia uma leitura um pouco estigmatizante da cidade relativamente a este bairro e pensámos que era uma área com potencial para a nossa intervenção. Seria uma ferramenta de trabalho a privilegiar… Começámos por organizar campeonatos ao longo de quatro anos e percebemos que também era possível levar jovens destes bairros a torneios. Percebemos que, durante estes anos, os jovens que formámos integraram-se, mudaram os seus comportamentos, a sua motivação, a melhoria de autoestima; perceberam que havia mundos alternativos onde eles também tinham o seu lugar… Mudámos percursos: pessoas com problemas de toxicodependência, alcoolismo passaram a investir na sua recuperação (…) Existem quatro clubes mas existe ainda uma quantidade de moradores disponível para outras modalidades, menos formais (…) Então é esse futebol de rua que nós queremos agarrar, esse futebol que nasce de modo informal, entre

amigos, vizinhos… No início não tínhamos nada, começámos a jogar na pedra; depois, formos marcando um campo, organizando torneios… a ideia seria ter um campo nosso (…) Percebemos que há uma ruptura entre esta e a zona mais antiga do bairro (…) Verificámos que as famílias são muito distantes dos filhos, que acumulam dois e três empregos para subsistir, que passam muito pouco tempo com os filhos… e que os que cá estão são os desempregados, reformados, rendimento mínimo com uma série de desinvestimentos acumulados… Fizemos uma formação com uma série de parceiros durante um mês – veio também a associação de pais da Horta Nova – e a ideia era depois organizar o primeiro torneio de futebol de rua. Durante dois meses todos colaboraram (na organização, na arbitragem, nas comidas, churrascaria…) e, nesse dia, foi verdadeiramente comunitário…. O que falhou foi a presença dos pais dos jovens que, uma vez mais, também não estavam. (…) Mas a partir daí ficámos mais conhecidos e ganhámos a confiança dos moradores. Publicitámos a nossa actividade e começámos a ser chamados. E a nossa postura é também para que as parcerias melhorem aqui dentro. E neste momento o que está a acontecer é passar essa energia, consolidar as parcerias. Este é um dos bairros mais isolados da cidade. Apesar dos outros terem condições piores em termos de condições de habitabilidade e imagem pública… este bairro está muito isolado… Mesmo os miúdos mais pequenos têm muita dificuldade em sair do bairro. Muitos perguntam onde é Lisboa: ‘Lisboa é onde? Toda a vida passaram aqui e não saíram de cá… como tem aqui todos os recursos acabam por não sair daqui. Criam imagens da cidade, de Lisboa, como algo inseguro, perigoso, assustador… estes miúdos sentem que a cidade é um mundo construído pelos e para os brancos.” (Vanda Ramlho, direcção ANFR) LUA CHEIA – teatro para todos & mais alguns A LUA CHEIA – teatro para todos, é uma associação de profissionais de teatro, com forte currículo

na produção de espectáculos de teatro de marionetas. E nas duas personagens que são o rosto da companhia – Maria João Trindade e Ana Enes. Desde 2009 que a Lua Cheia anima o ESPAÇO LUA CHEIA onde têm desenvolvido várias actividades, com especial relevo para as “Noites de Lua Cheia” onde o “luar da palavra” ilumina as estórias e os ambientes acompanhados pelo bom convívio entre chá e bolinhos, no final. “No momento em que se abre as portas à comunidade e percebem que fazemos atividades com e para os miúdos – e que os miúdos vêm e gostam – então já ganhaste respeito, já conquistaste o teu espaço no bairro… Tem sido um trabalho muito porta a porta. Já tivemos muito público mas temos que os ir chamar, lembrar. Mas tem havido uma sensibilização crescente. O número de presentes é muito variável – se o tempo melhora vêm muito menos. Esta comunidade é muito fechada. Aos poucos vamos conseguindo… mas temos que ir devagarinho. A adaptação foi de parte a parte. O bairro tem muitas actividades, mas a maior parte das pessoas nem sabem o que existe. Era importante haver um trabalho mais concertado, mais actividades na rua que envolvessem a população. Porque estes jovens têm muita carência de situações de interacção em padrões normais. É nessas situações que lhes é dada a formação e a experiência que precisam para a vida. Não nos parece que faça falta mais comércio, pois é preciso estimular para que saiam daqui, do bairro… é um problema guetizar.” (Maria João Trindade)

INICIATIVA DA ASSOCIAÇÃO "FUTEBOL DE RUA"

Vale referir também que, não sendo nova, também a própria Associação de Moradores (constituída em Janeiro de 1989) tem consolidado a presença e a intervenção no bairro de acordo com a pressão dos tempos, conforme referimos. Actualmente, para além presidir às sessões regulares do Grupo Comunitário e desenvolver as actividades inerentes à sua missão associativa, é parceira e consultora no trabalho de requalificação (integra as Comissões Executiva e Alargada referente aquele processo). Mas, para além disso e nesse

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INICIATIVA DA LUA CHEIA - TEATRO PARA TODOS

preciso contexto, tem acrescido e multiplicado esforços na mobilização de recursos para revitalizar o bairro – para além das actividades mais ou menos regulares (Taekwondo, ginástica, música, informática…) promoveu, mais recentemente, iniciativas (Feira do Tem Tudo, visitas e passeios…) com impactos positivos junto da comunidade dos “dois bairros”. B.º PADRE CRUZ, 2010

… E os antigos clubes desportivos – Unidos, Escorpiões e CAC “O desporto é um dos grandes veículos da juventude do bairro para comunicar, associar e juntar. É um manancial para apostar.” (prof. Freitas, JFC) Quanto às associações recreativas/desportivas mais antigas no bairro (Unidos, Escorpiões, CAC) verificase, actualmente, que a respectiva “sobrevivência” não foi, nem é, isenta de conflitos e de constantes dificuldades. Os Unidos e Escorpiões procuram manter acesa a chama do clube apesar da sucessão de direcções e da quebra na massa associativa que, entre outros factores, têm pesado na sobrevivência dos respectivos clubes… Actualizar os programas e as ofertas desportivas e reafirmar a respectiva posição na comunidade são preocupações do dia-a-dia. O bairro dispõe hoje de um conjunto de equipamentos desportivos que evidencia o continuado estímulo à prática e cultura desportiva, a saber: complexo Desportivo Carlos Lourenço do CAC (Rua Prof. Arsénio Nunes); Polidesportivo Bº. Padre Cruz; Pavilhão Desportivo Bº Padre Cruz; estádio Dr. Agostinho Lourenço, onde actua o Clube de Futebol Os Unidos, para além dos campos/pavilhões de jogos das escolas. “É nos finais de tarde que se conseguem juntar. Hoje a vida também está a criar condições terríveis para que as pessoas labutem de manhã à noite e está muito difícil para as pessoas terem tempo para estar, para comunicar … E já

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houve mais espírito comunitário, mais associativo. As pessoas foram emparedadas em grandes prédios e perderam o contacto com a terra. É um contacto vital… Haverá muita gente no bairro que fala do Chico Veneno e terá coisas para contar… Ele era muito reivindicativo. Tinha um espírito um bocado bilioso, mas era para ‘catar’ tudo para os Unidos, porque ele era um lutador nato… Às vezes ultrapassava as medidas, lá bebia o seu copito. Era um lutador. Os Unidos devem-lhe muito.(…) Os clubes hoje só sobrevivem porque há generosidade. Há pessoas muito generosas, há dirigentes que dedicam o seu tempo à luta pelo clube e às vezes até exageradamente porque depois criam problemas com as famílias. É porque a desmotivação também é grande, porque há muita falta de apoios… e as pessoas vão se desmobilizando lentamente. Esse é o grande problema. Porque há pessoas muito dedicadas. E tem que ser uma grande luta. (…) Os clubes são escolas de formação que criam hábitos que vão durar para o futuro… Esses clubes têm essa componente humana muito forte. De vez em quando lá fazem uma almoçarada para todos. E mesmo ao nível do desporto alguns clubes têm registos a nível de Lisboa muito bons. Temos campeões a nível de primeiro grau nos Unidos, nos Escorpiões… Existem dinâmicas geracionais de pais para filhos. E isso é um grande testemunho, um belo testemunho. E é isso também que não deixa morrer os clubes. Pegam nos clubes e hoje 80% é malta jovem. Pode haver um ou outro carola dos mais antigos mas hoje é sobretudo malta jovem…” (prof. Freitas, JFC) A resistente união dos Unidos “Isto é muito difícil. Em primeiro arranjar sócios em número suficiente para fazer as assembleias. Depois as pessoas criticam mas também não ajudam nem participam. É muito difícil. E para quem viveu e viu esses momentos de ouro do clube, é muito difícil ver o clube assim. As pessoas quebram. (…) Hoje em dia é muito difícil, não há apoios, horários…mesmo ao nível humanitário, não há o mesmo apoio… porque dantes havia orgulho, não era qualquer pessoa que ir para director do clube. Era uma honra. Hoje,

qualquer pessoa pode ser directora do clube. E há pessoas que se vêm servir do clube e não servir o clube.“ (Carlos Pedro, morador e presidente do clube até 2012) Escorpiões – “ter uma história bonita para contar” “Sinto-me com o peso de uma história bonita. Queremos homenagear as pessoas que fundaram isto. São 16 pessoas… e o Emídio é um dos sócios fundadores. Este ano estamos a tentar trazer ao clube as pessoas que o fundaram, fizeram bem ao clube, incentivaram… Gostávamos que voltassem a ter uma relação com o clube… o bairrismo está a acabar. Essa é a grande dificuldade a falta de bairrismo e de companheirismo. Para ter dinheiro, temos que trabalhar… E queremos trabalhar para por o clube de pé e trazer dinheiro para o clube. Mobilizar os associados, puxar as pessoas que foram importantes para o clube que voltem e ajudem o clube a ir para a afrente… com trabalho, dedicação e amor ao clube. Porque também queremos ter um futuro bonito para contar…” (Nuno Diogo) O CAC – um clube em afirmação “O bairro tem um problema – as gerações mais velhas têm um ódio de estimação em relação a este clube. Toda a gente sabe que só trabalhando em conjunto é que as coisas avançam. (…) Este clube é uma grande família onde as pessoas se sentem bem. Onde as pessoas se sentem valorizadas e todos trabalham com objectivos comuns. Temos apoiado diferentes causas, diferentes instituições… e estas coisas marcam a diferença. (…) É como o projecto que temos de Goalball (11) onde o treinador da modalidade que tem 10% de visão apresentou-me o projecto e eu acreditei no projeto e dei-lhe todo o apoio. E nunca pensei que seríamos campeões nacionais. Isto é que é empreendedorismo: as pessoas acreditarem e ajudaremse umas às outras… (…) O clube tem vindo a crescer em linha recta. Hoje estamos no limite das nossas capacidades. Temos crescido controladamente. Agora já não conseguimos crescer mais. Teríamos que ter outras

estruturas de apoio (…) As condições de trabalho são essenciais porque isso pode determinar a prestação da equipa e fazer toda a diferença.” (Vitor Cacito, presidente do CAC) As hortas do bairro: “porque a Natureza dá tudo…” “Um dia que não venha à horta, não é dia para mim.” Júlio Vaz (morador) E, no presente, retomamos questões que atravessam o nervo do tempo e nos ligam ao passado. As hortas persistem em vincar a imagem e a vida do bairro. É um largo campo agrícola que serve de porta de entrada a quem vem dos centros de Lisboa. Relembra-nos ancestrais equilíbrios do homem com a Natureza – e do homem com a sua natureza. A necessidade da salvaguarda destes territórios verdes e a melhor interacção/articulação com o tecido urbano da freguesia começam a prender as atenções públicas. A maior parte dos terrenos vizinhos às hortas são municipais. Porém, os talhões agrícolas localizados na entrada do bairro pertencem a particulares. Os moradores nada pagam porque, a qualquer momento, o dono das terras poderá querê-las. É esse o acordo. “Isto está projectado para uma outra estrada, fazer uma rotunda… Quando tiver que largar isto vou para a minha aldeia. O que me prende aqui é precisamente este terrenozinho aqui. Trato esta terra como seja minha, com o mesmo cuidado (…). Eram mais os homens que cultivavam as hortas. Os talhões são definidos de comum acordo… O senhor engenheiro Ribeiro Telles também já cá veio. Cruzei-me várias vezes aqui com ele… Sou dos mais antigos aqui da horta, eu também vim da Quinta da Calçada. Gostei do bairro porque tinha muito arvoredo… Aqui, planta-se de tudo…é o nabo, é a batata, é a couve, o lombardo, cenouras, nabiças, grelos de nabo, feijão de várias qualidades, courgetes, alface… e ali temos a salsa, a hortelã, aqui pimentos, pepinos, as abóboras… tenho abóboras para todo o ano… tenho tudo! Porque a natureza

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SEDE DOS ESCORPIÕES, 2010

CAC, TORNEIO DE GOALBALL

HORTAS DO BAIRRO PADRE CRUZ, 2010

JULIO VAZ NAS HORTAS, 2010

dá tudo… é preciso é saber tratá-la. Tudo o que semeamos tem outra qualidade. Eu aqui como, e sei o que como … como na minha aldeia. Daí a razão de eu fazer isto. Temos aqui poços feitos por nós … poços com 10 metros! Já têm vindo aqui as criancinhas da escola ver. Porque as crianças não sabem como nasce uma batata, uma couve, um tomate… vêem no prato mas não sabem como aparece no prato… a partir de Maio vêm até aqui ver como nascem…” (Júlio Vaz, morador) Para além da riqueza etnográfica (técnicas de cultivo, instrumentos de trabalho, antiguidade dos saberes…), dimensões conviviais e pedagógicas, de apoio à subsistência, oportunidade de negócios inovadores, aprendizagem de cidadania ambiental… a existência das hortas, só por si, apelaria a uma mudança social e ambiental assente em princípios ecológicos que bem podem servir de eixos de sensibilização e aprendizagem para uma melhor e mais sã convivência no bairro, em cidade, em sociedade. E esta não é uma utopia, é uma possibilidade inscrita no terreno real e visível. Por isso, acredita-se que no coração do bairro reside, dormitando, também esta outra mais-valia: “uma relação com a terra em que a Cidade não é fértil nem promove.” (Contumélias: 6) E, também aqui, a força e a vivacidade da história do bairro. As suas remotas origens rurais podem e devem servir de contributo para alicerçar uma nova identidade ecológica. Um outro “bairrismo verde” bem poderia ser a proposta. E o desafio que a semente da memória lança em terra de futuros mobilizando novos parceiros num trabalho conjunto de revitalização e regeneração da vida e valorização da representação social do Bairro Padre Cruz. Porque, afinal, o Bairro também tem direito ao (seu) futuro… “A Europa junta-se para criar uma Horta pedagógica em Carnide! 25 jovens provenientes de vários países europeus (BósniaHerzegovina, Itália, Estónia, Ucrânia e Portugal) encontram-se neste momento em Lisboa para reflectir

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sobre o tema “estilos de vida saudáveis”. Trata-se do projeto “Aim High, Choose Healthy” promovido pela Associação SPIN e financiado pelo Programa Juventude em Acção da Comissão Europeia. (…) equipados com sachos, regadores, ancinhos e sementes, o grupo internacional de jovens irá fazer nascer uma Horta pedagógica para crianças dentro da nova creche da Associação Crescer a Cores no Bairro Padre Cruz.(…) Irão plantar e pintar desenhos criativos e coloridos no espaço que será usado por mais de 30 crianças diariamente a partir de Setembro.(…) A nova creche faz parte de um projeto de recuperação da antiga escola primária na Rua do Rio Tejo. Para a criação da Horta contamos com um grande trabalho de parceria: a participação da Associação Wakeseed na facilitação do workshop de criação da Horta, com o apoio da Junta de Freguesia de Carnide no transporte e alimentação dos 25 jovens nesse dia, cedência de plantas por parte da CML, doação de tintas por parte da Entrajuda e apoio logístico da Associação Mãos do Mundo. Será um grandioso momento de encontro e partilha intercultural e de participação na vida comunitária!” (Agosto de 2013) A fechar, a recomendação: “Parece que estamos parados, mas não. Carnide está a crescer e quem vive cá há tantos anos como eu, vê… O núcleo que aqui temos de escolas, de empresas, mesmo aqui a dois passos… Agora até temos ofertas do Pólo Tecnológico que já vieram ter com a associação de moradores para fazer parceria para arranjar cursos para a rapaziada, para a metalo-mecânico… É um bairro com futuro, e é uma freguesia muito boa… É, porque se olharmos à volta, temos tudo, supermercados, farmácia,… acho que o bairro está muito bem rodeado. Mesmo para gente nova está muito bom… Por isso, gostava que fizessem as casas rapidamente. Já que as prometeram, que as fizessem rapidamente e que fizessem o que prometeram: umas quantas casas para os ‘filhos do bairro’ que tiveram que sair sem vontade e que querem regressar! E que não deitem abaixo o salão de festas…! Tenho um

desgosto enorme se aquilo for abaixo!” (Teresa Guerra, moradora) Não esqueçamos: resgatar a memória, compreender e validar a(s) identidade(s) locais, foi um passo; recuperar e estimular a participação das comunidades no respectivo desenvolvimento, será o passo seguinte. Aquele que nos faz ambicionar por um lugar, um bairro, uma cidade… mais equilibrados e justos. Onde construir seja, também, criar possibilidades. E habitar signifique partilhar e con-viver entre pessoas e ambientes que dialogam com passado e com o futuro das paisagens que queremos nossas. Síntese cronológica DESDE 2000 a 2012: A requalificação do bairro – o futuro e a memória Década de 2000 Na freguesia de Carnide: aumento da população, diferenciação das dinâmicas entre os bairros, crescimento socioeconómico; localização de novos investimentos à escala da cidade e oferta de mais equipamentos na freguesia (Hospital da Luz, ISLA…); construção de novas vinhaças junto ao bairro (Quinta das Camareiras, Pólo Tecnológico...). No interior do Bairro tem início outra década de profundas transformações - após propostas e contrapropostas, o projecto de requalificação (na zona mais antiga) toma forma de projecto para ser concretizado. 2002 Câmara Municipal de Lisboa com a presidência de Pedro Santana Lopes – 2002 a 2004 (presidência socialdemocrata com alternâncias, até 2007, com Carmona Rodrigues). Em Carnide, Paulo Quaresma é eleito presidente da Junta de Freguesia (CDU). Inaugurada a Escola EB 2-3 que amplia a oferta escolar e ficará conhecida por “escola branca” na gíria do bairro. Formalização da Associação Azimute Radical (actividades iniciadas em 1999) com sede na JFC mas actividades no bairro.

- (12/07) - A JFC mobiliza esforços para solucionar situação das famílias ciganas do bairro do Vale do Forno pressionando a CML (presidência de Pedro Santana Lopes). A intervenção camarária no bairro de alvenaria é imperativa e urgente pois perigam a população residente. 2003 Terminam os processos de realojamento no bairro novo iniciados na década de 90. O NUPIC – Núcleo de Psicologia e Intervenção Comunitária – inicia actividade na freguesia a partir do projecto “Príncipes do Nada” da responsabilidade -da PROACT. - (31/01) - Criação da Associação de Pais e Encarregados de Educação, Escola EB 2/3 do Bairro Padre Cruz. - (17/12) - Com grande aparato policial e medidas coercivas são retiradas as famílias ciganas do bairro do Vale do Forno, após 100 meses de contestação. O bairro do Vale do Forno é arrasado, 2004 O Presidente da Câmara de Lisboa – Carmona Rodrigues (ind., PSD) – comparece na reunião do Grupo Comunitário de 21 de Março para discutir a urgente intervenção no bairro de alvenaria. Em Carnide, Paulo Quaresma (CDU), é reeleito no cargo de presidente da autarquia. Por resolução de Conselhos de Ministros, o Bairro Padre Cruz é incluído no Programa Nacional “Iniciativa bairros Críticos” no âmbito das políticas da cidade. A questão da reabilitação ‘versus’ requalificação do bairro está em discussão. Estudo de actualização da Gebalis sobre o bairro antigo dá conta de 916 fogos, 844 estão habitados, 72 fechados (dos quais, 32 emparedados). Reforço do associativismo local e incremento da prática desportiva na freguesia: construídos e inaugurados o Polidesportivo e o Pavilhão Desportivo Bairro Padre Cruz; disponibilizado terreno para Os Amigos do Jogo da Malha. 2006 Mantém-se a discussão sobre o futuro do bairro antigo. Confrontam-se duas propostas: a reabilitação ou a requalificação. Esta última proposta (132/2006), defendida pela vereadora Gabriela Seara, vence por

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maioria em sessão de Câmara de 29/03. Com arranque previsto para 2008 prevê-se a demolição integral dos 917 fogos de alvenaria e a construção, de raiz, de 1580 fogos assim como a venda parcial de lotes (EPUL jovem) numa área de 12 hectares. Em Abril, o Boletim da JF dá ênfase aos 47 anos de história do bairro.. 2007 Nova orientação na gestão da cidade com a alteração política do executivo camarário. António Costa (PS) é eleito presidente da CML; no pelouro da Habitação, a vereadora Helena Roseta (coligação Por Lisboa); no pelouro do Urbanismo, Manuel Salgado. Por motivos de financiamento fica suspensa a anterior proposta da EPUL para a requalificação do bairro. Em Carnide, Paulo Quaresma (CDU) confirma-se na presidência da autarquia. 2008 Visitas ao bairro por parte do executivo camarário presidido por António Costa. Em pleno verão (dia 5 de Agosto) é agendada reunião alargada do Grupo Comunitário para iniciar a discussão sobre novo projecto de requalificação. 2009 No âmbito da candidatura ao QREN através do Programa “Parcerias para a Regeneração Urbana – bairros Críticos” é apresentado projecto alternativo que desbloquea impasse financeiro. Tem a assinatura de de arquitectos da CML e prevê um calendário alargado (com intervenções faseadas para 10 anos), dividido por 8 etapas. O projecto é apresentado e discutido no contexto do Grupo Comunitário (GC). Em Março é criado um grupo de trabalho – o GAPUR – para coordenar no terreno as operações de realojamento provisórios. Prosseguem as atividades associativas, sobretudo as de carácter desportivo. Nova sede da Associação de Moradores. Multiplicam-se serviços e ofertas culturais e associativas (Azimute, Associação Futebol de Rua, Teatro da Lua Cheia, …) que intervêm no bairro. No final do ano, Paulo Quaresma é reconduzido no seu terceiro mandato como presidente da JFC (até 2013). 2010 Novo impasse relativamente ao processo de

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requalificação. A questão dos calendários e planos da obra são temas quentes discutidos em GC. As condições de segurança e habitabilidade deterioram-se dia a dia. Aprovada nova estrutura de trabalho conjunto – o GABIP (Grupo de Apoio ao Bairro de Intervenção Prioritária Padre Cruz) – que substitui o GAPUR. Em algumas sessões estão presentes a vereadora Helena Roseta e arquitecta Lídia Pereira para esclarecer decisões e fases do projecto de requalificação. Em Março confirma-se o interesse comunitário pelo registo do património histórico e vivencial do bairro de que este trabalho é testemunho. Implementação do “Projecto Barcelona” que envolve os moradores da Rua de Barcelona, a Gebalis, JFC, CML e instituições locais. A Associação Azimute Radical aposta na intervenção cultural com o espectáculo “Ora Toma Que é do bairro” (encenação de Mário Guerra, em Junho). Em Setembro é inaugurada a nova escola EB1, Aida Vieira com a presença do Presidente da República, Cavaco Silva, presidente da CML, António Costa, e outras individualidades. Em Outubro, apresentação o livro infantojuvenil “No meu bairro aconteceu…” (inserido no presente projecto de investigação) por ocasião da inauguração da nova escola Aida Vieira. - (30/11) - Assinatura de Protocolo de descentralização de competências entre a CML e JFC com vista à transferência da gestão do Auditório Natália Correia para a Junta de Freguesia. 2011 Os resultados provisórios dos Censos registam 22 415 residentes revelando um crescimento populacional na freguesia superior aos 18,5%. O Bairro Padre Cruz (6 468 habitantes) mantém-se como o maior e mais populoso bairro da freguesia. Em Março são entregues as primeiras 7 chaves para as famílias a realojar no âmbito do projecto de requalificação. Por iniciativa de um ex-morador é criada a comunidade virtual “Intas&Entas” do Bairro Padre Cruz que, em 3 meses, reúne 500 membros. A curiosidade e o interesse pelas memórias do bairro multiplicam-se. Criação do

blogue “Bairro Padre Cruz” por iniciativa de outro morador. Em 2010 a CML propusera a implementação do “Bip-Zip” (bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) e, em 2011, são aprovadas as quatro candidaturas apresentadas pela autarquia. A escola EB1, Aida Vieira, inaugurada em Setembro, revela problemas no edificado. A situação é divulgada na televisão e jornais. As condições do comércio nas lojas do mercado são outro motivo de preocupação por parte dos comerciantes e moradores. - (24/03) - Inauguração do Centro Cultural de Carnide (CCC, antigo auditório municipal Natália Correia) como novo espaço de cultura da freguesia a desenvolver programação regular na sequência do protocolo de descentralização de competências. A Associação de Moradores lança um abaixo-assinado (recolha de 1000 assinaturas em uma semana) solicitando à CARRIS a reposição da carreira 768 aos fins-de-semana e feriados e do percurso da carreira 729. Em Junho, encontra-se quase finalizado o realojamento das primeiras 44 famílias da primeira fase. O bairro serve de cenário para dois trabalhos cinematográficos – “Sangue do meu sangue”, de João Canijo (que viria a ter grande reconhecimento nacional e internacional), e uma novela portuguesa. É aprovada a candidatura ao Apelos 21- bairros, uma iniciativa da CML dirigida à participação em ideias para a sustentabilidade por parte dos bairros da coroa norte de Lisboa. - (28/12) - Deflagra incêndio na Igreja N. Senhora de Fátima devido a curto-circuito no presépio. A intervenção pronta de alguns moradores evita o pior. A JF assegura a recuperação da pintura interior da igreja. Uma ex-moradora recupera habilidosamente a imagem de S. José que havia sido muito danificada. 2012 Visitas oficiais por parte do executivo camarário para acompanhamento dos trabalhos. A JF e a AMBPC reforçam iniciativas para dinamizar a vida do bairro (ofertas de cursos/ programas culturais no CCC, por exemplo), criam momentos de convívio (feiras de Natal, hortícolas e de trocas) bem como novos serviços de apoio à população.

No mês de Janeiro são iniciados os trabalhos de demolição das casas e a terraplanagem dos terrenos relativos à fase A0, junto ao quiosque e Serra da Luz; estão em curso os realojamentos dos 60 agregados familiares identificados na fase A1. São evidentes as preocupações por parte dos moradores com os tempos entre as fases de demolição e os processos de realojamento. Realização do filme documental “Bairro Padre Cruz: um bairro que seja nosso” integrado no presente projecto de investigação comunitária “Construir cidade à escala humana – história e memórias do Bairro Padre Cruz” (Fátima Freitas e Telmo Botelho) - (17/09) - Inauguração do Posto de Correios em resposta a uma longa espera por parte dos moradores. A Junta de Freguesia assegura o funcionamento do Posto instalado no CCC. - (5/10) - Celebração dos 50 anos da igreja paroquial de N. Senhora de Fátima com programação durante uma semana – exposição fotográfica “50 anos de história de uma igreja e de uma comunidade”, procissão com a imagem de Nº Senhora de Fátima pelas ruas do bairro, dois concertos (Orfeão dos Serviços Sociais da CML e Orquestra Ligeira da Carris), celebração da eucaristia por D. José Policarpo da Cruz e a homenagem a Cândida Sanches, a reconhecida parteira e moradora muito estimada pela comunidade. - (31/10) - Em cerimónia oficial no CCC, com a presença do presidente António Costa, e de alguns vereadores, é entregue à JFC a recuperação e futura utilização da antiga escola primária Rio Tejo (em avançado estado de degradação). - (10/11) - Novas associações promovem iniciativas no bairro; dinamização de actividades culturais por parte da Caravana da Cidadania junto ao CCC com animação da associação cultural Ginga Brasil Capoeira. - (24/11) - Disponibilização do Transporte Solidário, um serviço de apoio à população maior de 55 anos residente na freguesia. Esta iniciativa ocorreu no âmbito do Projecto Bip-Zip, teve a ajuda da ARPIC e da Unidade de Saúde Familiar “Carnide Quer”.

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NOTAS Construir cidade à escala humana 1 Jorge Nicolau, ex-morador do bairro, arquitecto e professor, desenvolve interessante trabalho de investigação sobre o Bairro Padre Cruz o que possibilitou a partilha de perspectivas enriquecedoras. 2 Após a adopção da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, em 1972, alguns Estados-membros da União Europeia manifestaram interesse na criação de um instrumento de protecção do património imaterial. Considera-se património cultural imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões – bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados – que as comunidades, os grupos de indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural, da sua herança e identidade sociais. 3 Em termos da documentação para a reconstituição da história factual, para além de alguma bibliografia disponível, visitámos e procurámos nos vários arquivos da Câmara Municipal de Lisboa – arquivos fotográficos, núcleo intermédio e histórico (onde encontrámos técnicos cujo profissionalismo merece destaque), Gabinete de Estudos Olisiponenses (a louvar o empenho e cumplicidade sempre disponibilizados), bem como no Departamento de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa (onde pudemos contar com a ajuda da arquitecta Lídia Pereira, actual responsável pelo projecto de Requalificação do Bairro) no apuramento do material cartográfico disponível. 4 A este propósito recomenda-se a leitura da recente obra “A cidade entre Bairros” (vd. bibliografia) que permite aprofundar um pouco a complexidade do próprio conceito/representação de “bairro”. 5 Para a reconstituição das memórias, estórias de índole mais pessoal e subjectiva, recorreu-se à técnica da entrevista. Reuniu-se um conjunto de informantes à medida dos nossos passos e intenções. Numa primeira fase não houve a preocupação em estabelecer o número limite de entrevistas/conversas porque queríamos recolher a maior diversidade de testemunhos e permitir que o bairro se fosse revelando em diferentes ângulos e descobrindo por si mesmo. Com o intuito de captar a maior riqueza e especificidade de cada testemunho (quantos deles a merecer um capítulo inteiro!) a abordagem das questões foi moldada em função do perfil dos entrevistados e adaptada às circunstâncias do momento. O número de registos gravados excedeu as 90 entrevistas e fazem parte de um espólio a disponibilizar para outros trabalhos. Reportam-se a informantes cuja “referência geracional” e antiguidade no Bairro correspondem a uma ou a diferentes fases do Bairro (com acentuada dominância das primeiras fases de 1959-60 a 74 e de 1975 a 1990). Na listagem dos entrevistados incluem-se maioritariamente moradores, exmoradores, mas também vereadores, responsáveis autárquicos, técnicos

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de diferente áreas de intervenção, professores, agentes de segurança, comerciantes, padres, dirigentes associativos e desportivos, … que de algum modo tiveram ou têm uma ligação directa e/ou influente nos destinos do Bairro. (cf. nota de agradecimentos). Em todos os contactos a disponibilidade para colaborar e o entusiasmo pelo pioneirismo do projecto foram incentivo e razão para a nossa demanda. Nas várias “visitas” e participação em eventos do Bairro (encontros, festas, reuniões do Grupo Comunitários… ocorridos de março de 2010 até à presente data de edição) houve sempre preocupação em recolher informação e dar a conhecer o trabalho de pesquisa de modo a que cumprisse um dos objectivos fundamentais: ser uma pesquisa comunitária que envolvesse a própria comunidade. (Fase 0) Até 1958: no início era o campo 1 Manuel Cebola, recentemente falecido, foi um dos mais antigos moradores do Bairro cujo testemunho foi particularmente significativo pela vivacidade e importância das memórias partilhadas, pois conheceu o bairro antes de ser bairro. Encontre-se neste livro um gesto de singular reconhecimento. 2 O valor de 3.500.000$00 (três milhões e quinhentos mil escudos) corresponde aproximadamente a 17.500 euros. No entanto fica por explicar por que este terreno não foi expropriado pela CML uma vez que em 1958 estava em vigor o Dec. Lei 28 197, de 1 de Julho de 1938, que previa a expropriação de terrenos para fins de interesse público tal como já havia sido praticado em outras situações e viria a ser repetido para a construção do bairro dos Olivais. 3 Ao que consta a primeira monografia da Freguesia de Carnide foi escrita em 1895 pelo pároco de Carnide, José Baptista Pereira (em Carnide entre 1894 e 1898), com base nos respectivos registos paroquiais. Intitulada precisamente “Memórias de Carnide” foi posteriormente republicada em 1999 com o título adulterado para “Memórias da Pontinha”. Esta adulteração decorreu da redefinição dos limites concelhios entre Lisboa e Odivelas pois a Pontinha fez parte da freguesia de Carnide até finais do século XIX. 4 “… há que esclarecer as origens do conceito de freguesia (…) a mais antiga circunscrição territorial eclesiástica, rural ou urbana, designava-se collatio (colação), com sede numa igreja matriz. Posteriormente passou a chamar-se parochia (paróquia). Simultaneamente surgiu a expressão freguesia para designar o distrito territorial e a igreja matriz que representava o local de culto e o conjunto dos fregueses (do latim filius ecclesiae, que se tornou sucessivamente em filgrês, felgrês, freguês) (Vd. Martins, Jorge, p. 13). 5 O Termo de Lisboa correspondeu à coroa norte e ocidental de Lisboa. Foi variando os seus limites e fronteiras ao longo de cinco séculos de história. As primeiras referências ao Termo de Lisboa datam de 1385 e reportam-

se a cartas de doações à cidade por parte de D. João I. A lei de 20/08/1654 é o primeiro documento oficial que enumera as 31 freguesias do Termo de Lisboa onde se inscreve Carnide. Após algumas variações na catalogação administrativa o Termo de Lisboa foi extinto em 11/09/1852 e a área do concelho de Lisboa foi ampliada em 1886 – ano que também assinala a criação do concelho de Loures. Sabemos que Carnide integrou o concelho de Belém em 1840-1885, passou pelo dos Olivais em 1885 e fixou-se definitivamente no concelho de Lisboa, em 1886, quando a freguesia já contava com 1.700 habitantes. (vd. mais detalhadamente Martins, Jorge, pp. 16-19). 6 De acordo com informações soltas de Manuel Cebola (que trabalhou na Quinta da Penteeira) e António José, filho do Sr. Arménio, rendeiro de Castanheira de Moura. 7 In, Livro de Lisboa, especialmente introdução (vd. bibliografia). 8 De entre “os povoados suburbanos localizados a um par de léguas da fronteira da «Circunvalação», que se caracterizavam por proporcionar a «primeira paragem» a quem saía da Cidade (ou a última a quem entrava) e que possuem uma entidade evidente (…): Belém-Ajuda, Benfica, LuzCarnide, Lumiar, Ameixoeira, Olivais. (Matos; Braga (1998): 141) 9 Localizada na continuidade da linha defensiva das Invasões Francesas de 1807-1811. 10 Este Regimento, após várias alterações e renomeações, é herdeiro do Batalhão de Artífices Engenheiros criado por decreto em 24 de Outubro de 1812. Finalmente, em 1947, passou a designar-se por Regimento de Engenharia nº 1. No curso da história as suas tropas tiveram intervenções decisivas com especial relevo para a participação/comando das tropas no processo revolucionário do 25 de Abril. Desde 24 de Abril de 2001 que ali se instalou o Núcleo Museológico do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas (vd. Martins, Jorge, pp. 103-104). 11 Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, posterior, Visconde de Sá da Bandeira (nomeação em 1832, por D. Maria II) e Marquês de Sá da Bandeira (nomeação em 1864, pelo Rei D. Luís I), foi destacado político e primeiro-ministro de Portugal. Durante as Guerras Liberais foi militar nas quais perdeu o braço direito no Alto da Bandeira durante o Cerco do Porto. 12 Outra identificação a merecer melhor investigação histórica e que parece decorrer da existência do tal antigo cemitério para vítimas da cólera do século XIX. 13 Vd. mais detalhadamente sobre Carnide o interessante livro (de reduzido formato) de Maria Calado e Vítor Matias Ferreira, “Lisboa – freguesia de Carnide”, da colecção Guias de Contexto publicada pela Câmara Municipal de Lisboa ou, um seu resumo, no site da própria Junta de Freguesia de Carnide.

14 Nos inícios dos anos 70 surgiram novos bairros residenciais na freguesia de Carnide (Bairro Novo de Carnide, Bairro da Quinta da Luz e Horta Nova) mais diversificados na composição social da população e que justificaram o maior investimento nos acessos à freguesia. 15 José Teixeira (o “Teixeira”) era o comerciante mais velho e com o negócio (mercearia) mais antigo de Carnide; viria a falecer em fevereiro de 2013, somando 91 anos. Um pouco da sua longa história está documentada no livro “Balcões com História” e no vídeo produzido pela JFC em Setembro de 2012. 16 O Estado Novo corresponde ao regime político sob a ditadura de António Oliveira Salazar, ministro da pasta das Finanças. Embora com alterações na forma e conteúdo vigorou desde 1933 até 1974. 17 A Carta de Atenas é um documento de compromisso, datado de 1933, redigido e assinado por grandes arquitectos e urbanistas internacionais do início do século XX, com destaque para Le Corbusier. A Carta é apresentada como conclusão do Congresso Internacional de Arquitectos Técnicos de Monumentos Históricos, em Atenas, na Grécia, em 1931. A Carta serviu de inspiração à arquitectura contemporânea e assentava em quatro funções básicas na cidade: habitação, trabalho, diversão e circulação defendendo também a possibilidade de usufruto dessas funcionalidades por parte de todos os cidadãos, o que representava algum “progressismo” inovador. 18 Inspirada no modelo do Partido Trabalhista inglês a proposta de 1918 do governo português apresentava laivos de progressismo: “Em 1919, no governo presidido por Domingos Pereira e com o socialista Dias da Silva no Ministério do Trabalho, é lançado um programa muito mais ambicioso de bairros sociais. Este visa garantir «os direitos e as necessidades de quem trabalha e produz». (…) Os bairros operários teriam creche, maternidade, escola infantil e profissional, ginásio e biblioteca, sendo administrados por comissões com participação de moradores eleitos.” (Pinheiro, Magda: 311). 19 A crise política da I República, a participação de Portugal na I Grande Guerra e o período de depressão económico-social que o mundo ocidental atravessou contribuíram para travar a implementação destas medidas. A tardia concretização (apenas em 1928-30) onerou e comprometeu os propósitos originais. 20 O Gabinete Técnico da Habitação, da Câmara Municipal de Lisboa (GTH) foi criado em 1959 para resolver a crise habitacional de uma parte significativa da população da capital e da zona suburbana. (…) (http://infohabitar.blogspot.pt/2010/06/habitacao-em-lisboa-memoriado-gth-50.html 21 Infelizmente, por razões de tempo e de meios, não conseguimos apurar a

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equipa da CML que, à data, teria sido responsável pelo planeamento, desenho e acompanhamento da obra do Bairro. De qualquer modo, a ausência desta informação ficou compensada com algumas informações constantes das explicações e debates que se acompanham em outros documentos referenciados (Relatório de Gerência Municipal de 1959 e 1960 e Actas da CML 1958,1959, 1960). 22 Outra nota importante reporta-se à implícita justificação (ideológica) acerca da “escolha” do material, cf. mesmo documento das Actas da CML de 1960. (Fase 1) 1959 a 1974: Construtores da cidade, artesãos do bairro 1 Os topónimos foram fixados pelo edital municipal de 8 de Agosto de 1961, na sequência de um parecer da Comissão Consultiva Municipal de Toponímia - presidida pelo vereador João Aguiar de Sousa Coito e com os vogais Dr. Alberto Gomes, Dr. Durval Pires de Lima e Dr. Henrique Martins Gomes – de 19 de Maio de 1961, no qual se encontra a seguinte explicação: «Por último a Comissão voltou a apreciar o pedido da Repartição de Obras Municipais, a que se refere o oficio número 5793, datado de 29 de Novembro de 1960 da mesma repartição, no sentido de se atribuir as nomenclaturas aos arruamentos do Bairro de Carnide, tendo a Comissão emitido parecer de que os arruamentos sejam denominados com nomes de rios portugueses, sendo atribuídos aos arruamentos principais os nomes dos maiores rios e, tanto quanto possível, os seus afluentes aos arruamentos circunvizinhos, conforme se indica na respectiva planta número 10095.» 2 “Os tipos II e III das casas de fibrocimento ocupam as áreas de 24,62 m2 e 29,48m2 respectivamente e os seus custos unitários estimaram-se em 31.062$22 e 37.191$52 para cada tipo. Os tipos I e II de alvenaria com um piso ocupam as áreas de 28,63 m2 e 35,12m2 respectivamente e os seus custos unitários estimaram-se em 35.505$64 e 43.554$24 para cada tipo. Quanto aos tipos I e II de alvenaria com dois pisos em que se introduziram benefícios de habitabilidade indispensáveis às necessidades vitais presentes, as áreas ocupadas são, respectivamente, de 22,675m2 46,725m2, 58,10m2 e 70,70 m2 respectivamente e os seus custos unitários estimaram-se em 18.572$92, 38.145$90 e 47.432$36 e 57.718$90 para cada tipo.” in Relatório de Gerência Municipal, Actas de Sessões de Câmara, CML, 1960 3 A Legião Portuguesa (LP) era uma organização nacional que funcionou durante o período do Estado Novo em Portugal. Criada em 1936, a LP foi extinta no próprio dia do 25 de abril de 1974. A Organização Nacional Mocidade Portuguesa foi criada em 1936.. Pretendia abranger toda a juventude – escolar ou não – e procurava o desenvolvimento “integral” das crianças e dos jovens incluindo capacidades físicas, formação do carácter e a devoção à Pátria, o respeito pela ordem, disciplina, o culto dos deveres morais, cívicos e militares. Foi também extinta com a revolução do 25 de Abril. A Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN) foi uma organização

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feminina do Estado Novo português. A OMEN foi criada em 1936, e tinha por objectivos estimular a ação educativa da família. Pretendia contribuir para a plena realização da educação nacionalista da juventude portuguesa e, dentro deste espírito, a organização e orientação da Mocidade Portuguesa Feminina foram confiadas à OMEN. Esta organização foi extinta por decreto, já em 1975. (informações em vários sites). 4 O Padre Francisco Rodrigues da Cruz (conhecido por “Padre Cruz”) nasceu em Alcochete, em 1859. Por altura das perseguições religiosas da I República esteve preso durante alguns dias e foi interrogado pelo próprio Ministro da Justiça de então, Afonso Costa, após o qual foi libertado. Extremamente respeitado por todos chegou a ser, durante alguns anos, o único sacerdote que usava a sotaina em público, ao arrepio do que estava estabelecido na lei. Desenvolveu um intenso apostolado junto dos presos, dos mais carenciados... O seu funeral, em 1948, foi uma verdadeira manifestação de pesar por parte do povo. O Processo Informativo de Beatificação começou em 1951 ainda durante o Estado Novo. A vida de missionário junto dos mais humildes e desprotegidos serviu ao caracter assistencialista do Estado Novo que, dentro dessa mesma linha, atribuiu o seu nome e homenageou em estátua no bairro municipal que começara a construir no centésimo aniversário do nascimento do “Santo Padre” (1859-1959). (informações em vários sites). 5 O Serviço de Bibliotecas Móveis tivera início em 1937, ano em que se organizaram as primeiras bibliotecas, designadas na época por itinerantes. As Bibliotecas Itinerantes tal como as conhecemos hoje tiveram a sua origem em 1961 e percorriam dois itinerários na cidade. Atendendo ao sucesso da iniciativa, em 1962 e 1965, foram criadas mais duas Bibliotecas e o número previsto de estacionamento foi alargado para 48. Em 1998, devido ao envelhecimento das viaturas, já só funcionava uma biblioteca itinerante. 6 “O período inicial desta carreira foi algo estranho. A própria indicação dada pela Carris era de que seguia o percurso da carreira 26A entre os Restauradores e a Estrada da Pontinha, continuando depois pela Estrada Militar e Azinhaga da Pentieira até ao bairro. (…) Como todas as carreiras, a oferta no 41 foi sendo reduzida entre 1969 e 1973, fruto da contração global que afectou toda a rede durante esse período. (…) Em 15 de Julho de 1973, porém, deu-se uma alteração profunda que marcaria o período áureo do 41: a supressão dos elétricos de Carnide (…), IN http://historiaccfl.blogspot.pt/2009/10/41-o-autocarro-do-bairro.html 7 A relação entre o Estado Novo e a Igreja Católica obriga a situar várias tendências e orientações de intervenção sociopolítica no contexto da Igreja. Se, por um lado, a figura do Cardeal Cerejeira surge vinculado com a ideologia do Regime, por outro lado, também é reconhecida a existência de grupos progressistas de reflexão e acção católica que incomodavam e contestavam o regime do Estado Novo. Vd. a este propósito, entre tanto mais (Braga da Cruz; Fernando Rosas…) algumas publicações

mencionadas no movimento “Não Apaguem a Memória”, designadamente ALVES, Pe. José da Felicidade, Católicos e Política de Humberto Delgado a Marcello Caetano, 2.ª Edição, Lisboa, Edição de Autor, s/d; e o site http://www.forumavarzim.org.pt. 8 Sucessão de padres na paróquia com responsabilidade no Bairro Padre Cruz: Padre António Francisco Marques (pároco de S. Lourenço de Carnide de 1952 a 1972, depois, nomeado Bispo de Santarém, em 1975); durante um ano aproximadamente: Padre Alfredo Teixeira; Padre Joaquim Francisco Dinis; Padre Joaquim Marques da Costa (altura da aquisição da imagem de N. Srª de Fátima); Padre Artur Carreira das Neves; Padre Casal Martins (pároco); Padre António Sousa Rocha Araújo; Padre Manuel Carreira das Neves; Padre João António Alpalhão (substituto); Padre António Baptista de Abreu (desde 1981 até ao presente) (informações gentilmente prestadas pelo Padre António Araújo). 9 Joaquim Augusto Gomes Oliveira nasceu em 21/11/1965 em Lisboa. Em 22 anos como ciclista (17 como profissional) percorreu 600.000 kms tendo chegado à vitória 56 vezes. Participou em 18 Voltas a Portugal, ganhou as edições de 1989 e 1993 (tendo ainda obtido um 2º lugar, cinco 3º, um 4º e dois 5º lugares). Participou em provas no estrangeiro onde obteve resultados premiados. Iniciou a carreira no Carnide Clube e representou clubes/patrocinadores de nomeada - o Sporting, Louletano/Vale do Lobo, Torreense/Sicasal, Sicasal/Acral, Lousa/Calbrita, Recer/Boavista, LA Alumínios, LA/Pecol, Carvalhelhos/Boavista… Em 2004 foi recordado e homenageado e recentemente esteve em programas televisivos como comentador da 75 Volta a Portugal em bicicleta, de 2013. (Fase 2) 1974-1990: A vivência local do(s) poder(es) e da(s) cultura(s) 1 As operações SAAL [Serviço Ambulatório de Apoio Local] foram durante um curto período, após o 25 de Abril de 74, uma intensa experiência de intervenção participativas no domínio da habitação social. Ainda hoje é uma referência pela forma como envolveu arquitectos, engenheiros, juristas, geógrafos, sociólogos e, sobretudo, os próprios moradores de bairros degradados, para lutar por uma habitação condigna e o direito a viver e habitar a cidade. O SAAL conheceu, no espaço e no tempo, formas de acção e desenvolvimento diferenciado e, por isso, não foi o mesmo no Norte, no Centro e no Sul do País. 2 Infelizmente, não foi possível recuperar os quantitativos dos desdobramentos efectuados durante estes primeiros anos do pós-74. A confirmação resultou de informação junto de Helena Gomes, técnica do Gabinete Local da Gebalis. 3 Seria muito interessante desenvolver pesquisa acerca das representações do Bairro por parte das diferentes gerações (avós, filhos, netos). Além disso, o facto de os baixos rendimentos servirem de critério preferencial

para a atribuição de casa municipal, contribuiu para “viciar” as expectativas de mobilidade e, de certo modo, fixar a identidade estigmatizada do Bairro. 4 Em termos da prática desportiva dos Escorpiões, o futebol de 11 foi a primeira modalidade a ser praticada durante os primeiros 6 anos. Seguiuse a ginástica e o teatro que abandonaram por falta de condições. Em alternativa implementaram a prática de futebol de salão no Pavilhão da Escola EB2/3 do Bairro Padre Cruz. Os jogos foram disputados por toda a cidade de Lisboa, Odivelas e concelhos vizinhos. Conquistou vários troféus ficando o registo de que “Os Escorpiões” foram vice-campeões nacionais da 3ª Divisão da zona sul na época de 1987/88 (com a final na cidade de Tomar), na época seguinte de 88/89 passaram à 2ª Divisão e, finalmente na época posterior de 89/90 alcançaram a 1ª Divisão. A estes galardões juntam ainda o título de campeões de série da 2ª divisão júnior em 1999/2000 e campeões de série da 3ª divisão sénior na época de 2000/2001. Na modalidade da pesca também somou triunfos – campeões regionais em iniciados nas épocas de 89/90 e em juvenis 91/92. O número de adeptos tem vindo a diminuir e as deslocações para campeonatos são suportadas pelos directores e praticantes. Na prática de atletismo reuniram um número considerável de praticantes (passarinhos, benjamins, infantis, iniciados, juvenis. Seniores 1 e 2, veteranos) tendo participado nos Jogos de Lisboa e em outras provas em Lisboa, Loures e outros concelhos metropolitanos Detêm os troféus de Joaquim Gomes (vd. referência na cronologia) - duas camisolas amarelas oferecidas pelo vencedor da Volta a Portugal em bicicleta em 1989 e 1991. A somar à prática desportiva, as festas de Natal, excursão anual à Serra da Estrela, celebração do aniversário foram episódios marcaram a vida e a memória no Bairro. Sabe-se que hoje atravessam fase muito difícil e vivem da exploração do bar, das quotizações, dos lucros das festas recebendo anual e esporadicamente alguns subsídios. 5 A Aliança Povo Unido (APU) foi uma coligação formada pelo Partido Comunista Português (PCP), Movimento Democrático Português – Comissão Democrática Eleitoral (MDP/CDE) e, após 1998, também pelo Partido Ecologista, "Os Verdes" (PEV). (Fase 3) 1990-2000: Bairro de contrastes – o alvorecer do bairro novo e o anoitecer do bairro antigo 1 Isabel Guerra, in “As pessoas não são coisas que se ponham nas gavetas”, Sociedade e Território, ano 2, Janeiro 1988, p. 11. Recentemente, em Junho de 2013 “a investigadora Isabel Guerra, do DINÂMIA’CET – Centro de Estudos Sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (ISCTE-IUL), defende que, embora o Programa Especial de Realojamento (PER) tenha dado casa a quase 35 mil famílias, criou “guetos urbanísticos e sociais”. 2 A revista Sociedade e Território é uma publicação elucidativa sobre esta matéria, expondo fundamentada crítica de especialistas sobre os problemas do urbanismo em geral, e sobre a questão habitacional e da

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habitação social, em particular. 3 Durante o período 1960-1991 os dados comparativos dos Censos para o concelho de Lisboa confirmam que a par do despovoamento, envelhecimento demográfico e terciarização do tecido urbano das freguesias do centro, as freguesias localizadas na periferia da cidade (Stª Maria dos Olivais, Ameixoeira, Marvila, Lumiar, Benfica, S. Domingos de Benfica, Carnide…) cresceram em termos demográficos. Principais razões: a continuada atracção pela grande cidade junto das populações rurais empobrecidas; a transferência compulsiva das populações para bairros periféricos devido a obras para a reestruturação urbana e viária da cidade e os movimentos imigratórios consequentes da descolonização. 4 Soares, João in, Cadernos CML/Departamento de Construção de Habitação, 54, 1996, p. 3. 5 Tal como a “Semana da Habitação”, o “Encontro Nacional da Habitação”, estudos e levantamentos de iniciativa camarária: “Observatório da Habitação”, os programas RECRIA, REHABITA e RECRIPH…, entre outros. 6 O DGSPH – Departamento de Gestão Social do Parque Habitacional, por exemplo, é uma microestrutura camarária (1993) integrada na Direcção Municipal de Habitação, Educação e Intervenção Social (DMHEIS) mas da qual dependem vários departamentos, divisões e serviços. O peso do organigrama da gestão camarária é, muitas das vezes, um reconhecido entrave à agilização e concretização das directivas camarárias. 7 A partir da década de 90 do século XX, com o surgimento de novos arruamentos na urbanização nova do Bairro Padre Cruz, conjugado com a falta de arruamentos em Telheiras onde era tradicional inserir topónimos de catedráticos, construiu-se aí um novo núcleo de topónimos de professores universitários, a saber: Rua Prof. Lindley Cintra, Rua Prof. Arsénio Nunes, Rua Prof. Pais da Silva, Rua Prof. Almeida Lima, Prof. Tiago de Oliveira e Fernando Piteira Santos, Prof. Miller Guerra (Edital de 07/09/1993), Prof. Sedas Nunes (Edital de 27/09/1993), Professor Fidelino de Figueiredo (Edital de 20/01/1998), Prof. Francisco da Gama Caeiro (Edital de 20/09/1999), Jorge Vieira, Prof. Francisco Pereira de Moura, Prof.ª Maria Leonor Buescu (Edital de 15/06/2000) e também a Rua de Barcelona (05/07/2000). 8 A origem da comunidade cigana remontava aos finais dos anos 60. As famílias (cerca de 13 agregados) residiam em barracas na Falagueira, Concelho da Amadora. (…) Após 25 de Abril de 1974, a Junta de Freguesia por pressão da população, cedeu um terreno e materiais para que esta comunidade construísse um novo bairro próximo do Colégio Militar (freguesia de Carnide). Em 1989, as famílias foram realojadas na Rua Conselheiro Ferreira do Amaral em casas de habitação social térrea em alvenaria pela Câmara Municipal de Lisboa. Em 1997 são desalojadas pela “Parque EXPO 98 S.A” por necessidade de reafectação do terreno e realojadas no Bairro do Vale do Forno – Freguesia de Carnide pela mesma

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entidade.” in Câmara Municipal de Lisboa, DGSPH/DEPGR, Equipa Técnica – Reflexões sobre o Realojamento das Famílias Residentes no Vale do Forno, 2003. 9 A PROACT, criada em 1977, é uma Unidade de Investigação e Apoio Técnico ao Desenvolvimento Local, à Valorização do Ambiente e à Luta Contra a Exclusão Social. Trata-se de uma associação privada sem fins lucrativos sediada no ISCTE – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; é constituída por grupo de licenciados em Economia, Gestão de Empresas e Sociologia bem como técnicos de outras áreas com experiência no terreno que visam apoiar o desenvolvimento local privilegiando a integração das comunidades socialmente mais vulneráveis. 10 O Secretariado Diocesano de Lisboa da Obra Nacional para a Promoção e Pastoral dos Ciganos – criada em 1977 pelo Patriarcado de Lisboa – foi posteriormente transformada em IPSS. É vulgarmente conhecida pela Pastoral dos Ciganos e acompanhou desde o início o realojamento das 400 pessoas de etnia cigana no bairro do Vale do Forno, situado no antigo quartel de paióis, adaptado a casas de habitação. 11 Dos 97 agregados realojados, 49% ficaram no Bairro Municipal da Ameixoeira onde havia mais fogos municipais por atribuir; 16% foram realojados no Bairro Alfredo Bensaúde e 12% na Alta Lisboa Norte. Os restantes fogos municipais atribuídos situam-se em vários bairros dispersos de Lisboa – Alta Lisboa Sul, Casal dos Machados, Flamenga, Horta Nova, Furnas, Olivais Sul, Padre Cruz, Armador, Sargento Abílio – por se tratar de bairros onde havia mais escassez de fogos por atribuir. (in, Camara Municipal de Lisboa, DGSPH/DEPGR, Equipa Técnica – Reflexões sobre o Realojamento das Famílias Residentes no Vale do Forno, 2003). 12 Este pequeno jornal associativo “Renascer escrevendo…” com edição do primeiro exemplar em Julho-Agosto de 1994 manteve-se activo até 1997 (2+26 números, no total). Porém, após 2 números surge em 1996 com um novo título “InfoRenascer” revelador do amadurecimento do projecto.. (Fase 4) 2000 a 2012: A requalificação do Bairro: o futuro e a memória 1 Em termos de transportes públicos de passageiros o Bairro dispõe das carreiras nº 205, 726, 729, 747 e 768 da responsabilidade da Carris. Além disso, a uma distância de 700 m dispõe do interface da Pontinha que oferece diversas paragens de autocarro da rede pública (Rodoviária, Carris e LT/Vimeca), estação de metropolitano na Pontinha (Linha Azul) e praça de táxis. Recentemente a população passou a dispor de uma via ciclável, integrada na rede ciclável de Lisboa, mas cujo estado de conservação inibe a respectiva utilização servindo sobretudo de caminho pedonal de ligação Pontinha/Carnide. 2 Dos 97 agregados realojados, 49% ficaram no Bairro Municipal da

Ameixoeira onde havia mais fogos municipais por atribuir; 16% foram realojados no Bairro Alfredo Bensaúde e 12% na Alta Lisboa Norte. Os restantes fogos municipais atribuídos situam-se em vários bairros dispersos de Lisboa – Alta Lisboa Sul, Casal dos Machados, Flamenga, Horta Nova, Furnas, Olivais Sul, Padre Cruz, Armador, Sargento Abílio – por se tratar de bairros onde havia mais escassez de fogos por atribuir. (in, Camara Municipal de Lisboa, DGSPH/DEPGR, Equipa Técnica – Reflexões sobre o Realojamento das Famílias Residentes no Vale do Forno, 2003). 3 Informações retiradas do site da Gebalis – empresa municipal, e Agenda 21, Plano de Acção Bairro Padre Cruz, 2012. 4 Alguns trabalhos de mestrado em arquitectura recentemente realizados sobre o Bairro Padre Cruz referem a escassez de espaços geradores de encontro e contacto entre pessoas, sobretudo no bairro novo. (vd. referências na bibliografia) ( 5 O projecto de requalificação do Bairro Padre Cruz/QREN deu entrada com o número CML-201146-DZZF e foi enviado para a Divisão de Gestão Social.“A Câmara Municipal de Lisboa promoveu, a 31 de Maio de 2009, a candidatura de Requalificação do Bairro Padre Cruz ao Programa Integrado de Requalificação e Inserção de Bairros Críticos do QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional). Esta proposta foi aprovada em Agosto de 2009, tendo o respectivo protocolo de financiamento sido assinado entre a Câmara Municipal de Lisboa e o POR Lisboa (Programa Operacional Regional de Lisboa), em 18 de Janeiro de 2010. Este programa engloba a implementação de 11 operações, num montante global de investimento de cerca de 19 milhões de euros. A requalificação visa a reconversão do espaço público, infraestruturas e ambiente urbano (operação 1), a construção de 2 lotes para realojamento (operação 2) a implementação de um edifício com 4 equipamentos de proximidade: creche, residências assistidas, centro de dia e serviços de apoio domiciliário (operação 5 e 6) e a construção de um campo desportivo informal (operação 9). As restantes operações promovem iniciativas de dinamização social, cultural, empreendedora e económica da população de todo o bairro.(…)” 6 O novo conceito de eco-bairro aponta para uma nova política das cidades e que Portugal tem procurado acompanhar, mais recentemente, desde 2007 (Programa de Cidades Polis XXI, QREN 2007-13). Nascidos da necessidade de aliar um urbanismo sustentável a um estilo de vida ecológico, a operacionalização do conceito de eco-bairro depende da acção consistente e integrada em vários domínios, desde a energia à água, passando pelos transportes e mobilidade, o aproveitamento dos resíduos, as técnicas e escolha dos materiais de construção sem esquecer a sensibilização, mobilização e envolvimento das comunidades locais. Procura-se alcançar novos equilíbrios entre o humano, físico e o espaço construído onde a capacidade de gerar, gerir e integrar recursos em várias vertentes procura melhorar o equilíbrio ambiental das presentes e futuras populações.

7 Despacho nº1/GVHR/2011, publicado em Boletim Municipal nº 855 de 3/02/2011. 8 Num interessante e recente artigo, Isabel Raposo propõe uma análise sobre o modo como o poder central tem lidado com as intervenções urbanísticas em territórios desfavorecidos sugerindo a recente mudança de paradigma: em contraste com o “paradigma higienista, racionalista e funcionalista que suporta as operações de renovação urbana assente em geral na demolição do edificado existente e na sua substituição por construção nova, e o paradigma emergente, interaccionista, em que se enquadra o “construir no construído”. (vd. Raposo, 2012, “A Cidade entre Bairros”, p. 112). 9 No ano escolar de 2010-11 e após a realização da conversa com a Drª Cristina Santos, o Dr. António Almendra passou a presidir no cargo de director do agrupamento de escolas do Bairro Padre Cruz. Para colmatar este desfasamento de registos optou-se por inserir o novo e posterior testemunho do Dr. António Almendra no documentário “Um bairro que seja nosso”, entretanto realizado, e manter o registo da Drª Cristina Santos no presente documento atendendo a que esteve no cargo de directora durante 10 anos e acompanhou o processo desde o seu início. 10 Uma outra associação com trabalho no terreno do Bairro - SOS RACISMO “existe desde 1990 e propõe uma sociedade mais justa, igualitária e intercultural, onde todos, nacionais e estrangeiros com qualquer tom de pele, possam usufruir dos mesmos direitos de cidadania. Também a Wact, instituição apolítica, laica, e sem fins lucrativos, forma Changemakers no bairro Padre Cruz desde 2009. “Um Changemaker WACT muda-se a si próprio e aprende a mudar os outros. É proWACTivo: melhor e mais cidadão (…) Consideramos que a nossa experiência na área de desenho, implementação e avaliação de projectos é um dos nossos principais trunfos. Consideramos que a nossa principal dificuldade tem sido a cativação do público adulto. Esperamos continuar a apoiar projetos deste tipo focados no Bairro Padre Cruz ou noutros contextos semelhantes.” (Afonso Fontoura, WACT, informação cedida por e-mail). 11 Nota informativa na página da NET: a equipa de Goalball do CAC é já detentora de um título de campeã nacional e vencedora da Taça de Portugal (época 2009/2010). Na próxima época desportiva, o clube prepara-se para abraçar novas modalidades, continuando a fomentar a prática desportiva em jovens com deficiência.

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Outras fontes

Testemunhos orais Albertina Lopes, Alfredo Amaral, Agostinho Cristino e Ermelinda, Ana Enes, Ana Viana, António Almendra, António Araújo, António Baptista, Amália Lemos, Amélia, António Cristino, António José, António Martins, Armando Artur Mendes, Armando Cipriano, Cândida Sanches, Carminda Prado, Carlos Canhoto, Carlos Faria, Carlos Inácio, Carlos Pedro, Catarina Pereira, Cláudia Rocha, Cremilda, Cristina Santos (ex-directora do agrupamento escolar), Cristina Santos (moradora), Cristina Virgílio, Custódia Pereira, Domingas Ferreira, Elfrida Reis, Elisabete Santos, Elisete Andrade, Emídio Pereira, Ernesto Costa, Estela Gonçalves, Etelviro de Jesus, Fernando Ferreira, Fernando d’Oliveira, Fernando Pereira, Joaquim Fonseca, (prof.) Freitas, Helena Gomes, Helena Roseta, Ilda Silva, Isabel Dias, Isabel Geada, Isabel Maria, Isabel Santana, Isaura Marques, Joaquim Libório, Joaquim Marques, Jorge Nicolau, Jorge Subtil, Jorge Humberto, José Augusto Gonçalves, José Ferreira dos Santos, José Lamelas, José Martins, José Rodrigues (Zé Lagarto), José Valente, Júlia Silva, Júlio Vaz, Joaquim Cruz, Lídia Pereira, Leonor Olivença, Lucinda Lamelas, Luísa Monteiro, Lurdes Faria, Lurdes Rodrigues, Manuel Campos, Manuel Cebola, Manuel João, Manuel Martins, Manuel Oliveira, Maria do Carmo Costa, Maria da Graça Cristino, Maria da Graça Pereira, Maria João Trindade, Maria de Lurdes Quaresma, Maria Pilar, Maria Piedade, Maria Rosa Leitão, Maria Rosalina, Maria Santos, Maria Vilar Diógenes, Marieta Ferreira, Mário Guerra, Maximiana Lopes, Natália Amorim, Natália Nunes, Natália Santos, Nazaré, Nuno Bento, Nuno Diogo, Olinda, Paula Rodrigues, Paulo Quaresma, Prazeres Sousa, Renata Lajas, Roque Amaro, Rosalina Nunes, Rui Gato, Sofia Júdice, Teresa Correia, Teresa Guerra, Teresa Martins, Teresa Pedra, Vanda Ramalho, Vasco Estevão, Vítor Aveiro, Vítor Cacito.

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Ficha técnica Documento integrado no Projeto de Investigação “Construir a cidade à escala humana – história e memórias do Bairro Padre Cruz” desenvolvido entre Março 2010 e Dezembro 2012. Uma iniciativa da Junta de Freguesia de Carnide e Grupo Comunitário do Bairro Padre Cruz, apoio da Câmara Municipal de Lisboa, Associação de Moradores do Bairro Padre Cruz.

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