História e revolução no marxismo de Michael Löwy

July 3, 2017 | Autor: Valerio Arcary | Categoria: Marxism, Marxist theory, Marxismo, Michael Löwy
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História e revolução no marxismo de Michael Löwy

Valerio Arcary[1]


Toda ciência implica uma escolha(...) As visões do mundo das classes
sociais condicionam,
pois, não somente a ultima etapa da pesquisa científica social, a
interpretação dos fatos,
a formulação das teorias, mas a escolha mesma do objeto de estudo.


Michael Löwy[2]


1 Introdução
A variada obra teórica de Michael Löwy confessa, até pela escolha de
seus temas de investigação, um compromisso com uma práxis emancipatória e
uma pesquisa inventiva. Inspirado na herança político-programática
construída por Leon Trotsky (aquela que, intelectualmente, melhor resistiu
aos desenlaces sombrios do século XX) se alimentou de um marxismo
enriquecido, entre outros, por Rosa Luxemburgo e Gramsci, Georgy Luckács e
Ernst Bloch, Walter Benjamin e Herbert Marcuse e leituras críticas de
inúmeros autores não marxistas, para interpretar os desafios colocados para
a luta pelo socialismo.
A revolução política e social foi o fenômeno histórico novo mais
significativo do século XX, e não surpreende, portanto, que os marxistas
que não sucumbiram às pressões sociais hostis, porque mantiveram vínculos
com o movimento dos trabalhadores, tenham-lhe dedicado a sua atenção. Em
nenhuma outra época da história as sociedades recorreram, com tamanha
freqüência, aos métodos revolucionários para resolverem suas crises. A
aceleração histórica das transformações, uma das previsões visionárias de
Marx, foi vertiginosa. Encontrou pela frente, contudo, em uma proporção
impensável, há cem anos atrás, uma força de resistência social e reação
política que a humanidade, até então, desconhecia. A expressão mais
dramática da contra-revolução política e militar do capitalismo no século
XX foi o nazi-fascismo, nos trágicos anos trinta, mas esteve longe de ser a
única. A publicação, ainda em 1970, de A Teoria da revolução no jovem Marx,
revelava o interesse de Löwy na pesquisa de um marxismo crítico e
independente: sensível às novas experiências de luta dos trabalhadores, mas
engajado no resgate da obra dos clássicos; obstinado na defesa dos combates
dos explorados e oprimidos, mas adversário do dogmatismo estéril.
A longevidade do capitalismo, na aurora do século XXI, não diminui a
importância dos processos revolucionários que desafiaram as relações
sociais dominantes em quatro vagas sucessivas: entre 1917 e 1923, na Europa
do Leste e Central, em especial, na Alemanha depois da vitória da revolução
russa; na seqüência da crise de 1929, na Europa do Mediterrâneo, em
especial, na Espanha e na França entre 1936-37; depois da, talvez, mais
espetacular vitória da revolução mundial no século passado, a desintegração
do exército nazista em Stalingrado, nas montanhas da Grécia, Itália e
França, onde partigianni e maquis comunistas, com armas nas mãos,
incendiaram a vontade de lutar de seus povos contra os fascistas, abrindo o
caminho para a descolonização na Ásia e na África; e nos anos que se
seguiram ao maio francês de 1968. Por mais de uma vez, o destino do
capitalismo esteve, seriamente, ameaçado. Revoluções anti-capitalistas
triunfaram na Rússia dos Czares ao final da Primeira Guerra Mundial; nos
Balcãs, ao final da segunda Guerra; a ocupação do Exército da URSS levou à
expropriação burguesa no Leste europeu; a maior revolução camponesa da
história venceu na China, e seu impulso favoreceu vitórias anti-coloniais
na Coréia e no Vietnam. Por último, mas não menos importante, na pequena e
corajosa Cuba, a ditadura de Batista foi derrotada e com ela a burguesia
compradora gusana. Mas, essas vitórias nacionais, portanto, parciais, não
impediram que o imperialismo mantivesse a supremacia mundial, e fosse
vitorioso – porque, o que não avança, recua - logrando desviar, conter,
congelar e derrotar os sucessivos assaltos da revolução mundial à fortaleza
do capital.
No entanto, não nos impressionemos, as sociedades contemporâneas
sempre se atrasaram, em maior ou menor medida, em relação à maturidade das
condições objetivas que exigiam a sua transformação. A solução das crises
sociais e políticas exige mudanças, e essas podem vir pela via de
revoluções ou reformas. As mudanças podem ocorrer como rupturas sociais
provocadas pelas mobilizações de massas, e pela via política negociada de
pactos, ou podem ser adiadas, mas não indefinidamente. A percepção
subjetiva da gravidade da crise esteve sempre defasada em relação à
gravidade da situação que se deteriora, enquanto na luta de classes a hora
do confronto é postergada e se ganha tempo, porque se procura uma posição
mais favorável. A relação de forças sociais entre as classes dominantes e
as classes exploradas flutua de acordo com a maior ou menor disposição de
luta, da experiência histórica acumulada e da qualidade da organização
popular. Aquilo que se demonstrou intolerável em uma sociedade, foi
aceitável em outras. Revoluções não são, portanto, processos prematuros. As
revoluções tardias, aliás, foram as mais radicais. As mudanças por reformas
preventivas estabeleceram como padrão que as concessões negociadas pelas
classes proprietárias, só se concretizaram como uma tentativa de impedir o
perigo de revoluções. Aquelas nações onde as classes dominadas foram
incapazes de impor as mudanças, e onde as classes dominantes foram mais
obstinadas – e obtusamente – inimigas das transformações, mergulharam em
decadência.
Estas premissas do marxismo foram criticadas por Bernstein, no final
do século XIX, e depois por muitos outros, como uma ideologia exaltada do
progresso, herdeira de uma concepção finalista que tinha a sua raiz na
influência hegeliana. A Teoria da revolução no jovem Marx, de Michael Löwy,
é um daqueles livros que respondeu à altura ao desafio da crítica. Resgatou
a teoria da história elaborada por Marx e Engels a partir do seu núcleo
central: a primazia da luta de classes como força de impulso das
transformações das sociedades. As revoluções políticas e sociais não
deveriam ser consideradas, em suas palavras, como "o passado de uma ilusão,
mas o futuro de uma esperança", ou seja, como um movimento prático de
experiência histórica do proletariado e de seus aliados sociais.
A fórmula marxista de que uma época de revolução social só se abriria
quando as relações sociais se convertessem em obstáculos ao desenvolvimento
das forças produtivas, não autoriza a conclusão inversa de que as
transições históricas seriam conseqüência direta de impasses econômicos. A
estagnação das forças produtivas e o crescimento das destrutivas foram
identificados como condição necessária, mas não suficiente para
transformações que exigem rupturas políticas que dependem de muitos outros
fatores: em primeiríssimo lugar, o despertar de uma disposição
revolucionária de luta daqueles sujeitos sociais em posição de classe para
agir. O marxismo de Löwy bebeu nessa promessa de uma subjetividade auto-
libertadora dos trabalhadores, o que ele mesmo reivindicou como um
"messianismo" ativo, ou seja, uma aposta de que, mais cedo do que tarde, se
unirão as resistências diretas a um discurso estratégico, e esteve distante
do economicismo. Comungava com Sartre a defesa de que o marxismo seria o
horizonte intelectual de nossa época: "as tentativas de o superar conduzem
apenas à regressão a níveis inferiores do pensamento, não além, mas aquém
de Marx".[3]
Na elaboração marxista, passagens de modo de produção seriam
impossíveis sem crises estruturais nas relações sociais. Na época do
capitalismo financeirizado, pensar o socialismo como o desafio de uma
civilização em agonia seria impossível sem que as crises nacionais se
desdobrem em crises continentais ou até mundiais. Crises, porém, podem
potencializar transformações progressivas ou catastróficas. Uma época de
revolução social deveria ser compreendida, portanto, como um extenso
intervalo histórico de lutas com inevitáveis reviravoltas. Michael Löwy foi
um dos marxistas que insistiu que o socialismo seria uma aposta, não uma
certeza; uma alternativa, não uma fatalidade; um projeto, não um destino.
Relendo o Manifesto Comunista, Löwy conclui: "Marx, afirma que, a cada
época, a luta de classes pode terminar seja por uma reestruturação
revolucionária da sociedade, seja pela ruína em conjunto das classes em
conflito". [4]
O prognóstico é anti-fatalista, mas não é descrente, porque o futuro é
uma invenção das lutas do presente, e o marxismo de Löwy não alimenta a
prostração, mas o máximo ativismo. A terrível lentidão das mudanças
históricas repousa nessa dialética de desenvolvimento desigual entre os
fatores objetivos e subjetivos quando se abre uma época de revolução
social. As sociedades se vêem mergulhadas em crises porque mudanças são
necessárias, mas estas não acontecem quando são necessárias. Regimes
políticos monstruosos, como o nazi-fascismo, sobreviveram muitos anos, até
décadas em alguns países, mas a sua existência não demonstra que eram
necessários. Sistemas arcaicos sobreviveram muito tempo depois de terem
entrado em crise. Relações sociais retrógradas se perpetuaram, mesmo quando
sua permanência era, historicamente, obsoleta. O modo de produção que
dominou o mundo agrário na Europa depois da desagregação das relações
escravistas se alimentava do apetite insaciável de uma nobreza parasitária
por terra e servos e belicismo crônico, o que não impediu que o feudalismo
resistisse durante séculos, mesmo depois que as relações capitalistas mais
dinâmicas pulsavam dentro das sociedades medievais. O escravismo brasileiro
atravessou o século XIX, incólume até 1888, mais de meio século depois da
independência de Portugal. Ou seja, a dialética do progresso, nos diz Löwy,
animado por Walter Benjamin, é um processo muito mais perturbador do que
uma linha ascendente e linear, porque tem duas dimensões, já que as forças
destrutivas podem estar se desenvolvendo em proporção e ritmos superiores
às produtivas: "Para Benjamin, a revolução não é 'inevitável' (...) ele a
concebe como uma interrupção de um progresso catastrófico, cujo indicador
era o aperfeiçoamento crescente das técnicas militares".[5]
A história, para Löwy, não foi uma longa elevação da humanidade, com
eventuais acidentes de percurso, que à maneira hegeliana, confirmam uma
trajetória ascendente, nem, tampouco, um confronto entre sistemas - uma
competição "ideal" entre modos de produção mais ou menos eficientes. Os
modos de produção não lutam entre si. O século XX não foi somente o cenário
de uma luta ideológica entre capitalismo e socialismo, mas a história de
uma luta concreta entre classes e entre Estados. O resultado destas lutas
continua sendo um processo histórico inacabado. Se hoje predomina a
dominação do capital no mercado mundial, há menos de meio século atrás a
indefinição sobre o futuro do capitalismo foi muito grande. Assim como
foram ligeiras, nos anos sessenta e setenta, as ilusões gradualistas,
portanto, excessivamente otimistas, em uma possível transição reformista,
são hoje perigosas as conclusões pessimistas que se apressam em retirar
conclusões céticas sobre o futuro do socialismo depois da restauração
capitalista do início dos anos noventa.


2 O desenvolvimento desigual e combinado como lei mais geral da
história
Não foram poucos aqueles que concluíram que os processos de
restauração capitalista asseguravam, senão a superioridade do capitalismo,
pelo menos a sua hegemonia por um longo intervalo histórico. O marxismo que
Löwy tem defendido em sua obra tem sido, na contra-corrente,
confessadamente, anti-economicista. A originalidade da aproximação de Löwy
ao tema da dialética da história evoca uma leitura heterodoxa: "antes de
tudo pela descoberta (...) da importância da crítica romântica da
civilização burguesa, a um só tempo como dimensão (...) do pensamento do
próprio Marx e como poderosa fonte de uma renovação da imaginação
socialista. Por romantismo não entendo somente uma corrente literária do
século XIX, mas um vasto movimento cultural de protesto contra a sociedade
industrial capitalista (...) Trata-se de um movimento que começa em meados
do XVIII – Rousseau é uma das figuras emblemáticas dessa origem – e que até
hoje continua ativo, em revolta contra o desencantamento do mundo, a
quantificação de todos os valores, a mecanização da vida e a destruição da
comunidade".[6]
Não existiu uma via evolutiva ascendente linear de modos de produção
que foram se sucedendo em seqüência fixa uns aos outros, mas um processo
mais complexo. O materialismo histórico compreende a história como uma
seqüência de modos de produção, o que não permite concluir nem uma
diretividade imanente ou finalidade implícita, nem sequer um único padrão
nas passagens de uns a outros. Tampouco autoriza a conclusão de uma
seqüência rígida. O processo de desenvolvimento na história teve
descontinuidades. Não encontramos, tampouco, uma coerência interna na
história. Houve percalços. Inúmeras sociedades encontraram obstáculos e não
puderam superá-los.
O desenvolvimento desigual e combinado manifestou-se como a lei mais
geral da história. Relações sociais que corresponderiam a diferentes modos
de produção conviveram em combinações inusitadas. A experiência econômico-
social das Missões jesuíticas na América do Sul com a população indígena de
língua guarani, por exemplo, não foi, historicamente, inferior ao
escravismo colonial dos portugueses, mas foi destruída. Seria impossível
encontrar critérios consensuais para julgar o Quilombo de Palmares como uma
experiência inferior ao regime das plantações de monocultura do açúcar no
Nordeste brasileiro, mas Palmares foi aniquilado.
As sociedades se transformaram porque mudanças se demonstraram
imprescindíveis, mas não o fizeram quando era necessário. Um atraso
inevitável separou as crises sociais e políticas das condições em que se
encontraram soluções para as crises. O marxismo teve de argumentar tanto
sobre a relativa autonomia dos processos econômicos frente aos processos
políticos e sociais, quanto sobre a relativa autonomia da esfera política
em relação às dinâmicas econômicas.
A internacionalização do capital nos últimos 30 anos, por exemplo,
teve uma dinâmica própria de impulso, a busca imperativa de máxima
valorização, sobrepondo-se sobre quaisquer limites sociais, regulações
ambientais e fronteiras nacionais. Por outro lado, a crise do regime
democrático-liberal nos últimos 15 anos – destituição de dez presidentes
eleitos na Argentina, Brasil, Paraguai, Equador, Bolívia e Venezuela antes
de completarem seus mandatos – não atingiu somente as sociedades latino-
americanas que estão, em graus maiores ou menores, economicamente,
estagnadas há um quarto de século, mas se manifesta também em países
centrais, como os Estados Unidos, onde a primeira eleição de Bush permanece
sendo questionada, ou a França, que tremeu quando um fascista chegou ao
segundo turno das eleições presidenciais. O marxismo de Löwy se amparou na
tradição internacionalista para concluir: "Enquanto à célebre frase
lapidária e sarcástica de Marx: 'os proletários não têm pátria', haveria
que interpretá-la antes de tudo no sentido de que os proletários de todas
as nações têm o mesmo interesse (...) na medida em que a nação não é para o
proletariado mais do o marco político imediato da luta pelo poder."[7]
(tradução nossa)
A internacionalização do capital foi uniforme à escala mundial, e
suas seqüelas se sentiram para além de todas as fronteiras: deslocamento de
indústrias, elevação do desemprego, queda do salário médio, recolonização
de continentes. A sincronização mundial das crises econômicas tem sido,
também, cada vez maior. Mas, a globalização econômica não diminuiu as
especificidades das situações continentais diferentes: o domínio dos EUA e
dos seus sócios europeus e japoneses no sistema internacional de Estados
exigiu a invasão do Afeganistão e do Iraque; a crise social na América
Latina foi incomparavelmente mais séria que na Europa. Confirmou-se, mais
uma vez, uma margem de autonomia significativa entre os processos
econômicos mundiais e os processos políticos nacionais.
A estagnação econômica e a decadência social da América Latina
permaneceram crônicas nos últimos 25 anos, não importando muito se
governavam ditaduras ou governos eleitos e, menos ainda, se eram governos
de centro-direita ou de centro-esquerda. A mundialização financeira
estendeu-se a todo o planeta tornando mais necessário do que nunca um
renascer do internacionalismo socialista. Löwy é contundente: "O socialismo
marxista é fundamentalmente oposto ao nacionalismo. Primeiro, porque ele se
recusa a considerar a nação como um todo indiferenciado: todas as nações
são divididas em classes sociais distintas (...). Mas, sobretudo. Ele
rejeita a ideologia nacionalista e sua escala de valores porque sua
fidelidade suprema não se dirige a uma nação, qualquer que seja ela, mas
para um sujeito histórico internacional (o proletariado) e para um objetivo
histórico internacional: a transformação socialista do mundo. Ele é
internacionalista por razões éticas e materiais ao mesmo tempo".[8]
O marxismo de Löwy realizou, também, um resgate da dimensão utópica
do socialismo como desafio: "O que as leituras positivistas de Marx não
compreendem é que a emancipação histórica, diferentemente da previsão
física, exprime-se num projeto estratégico". [9] A revolução é,
paradoxalmente, um processo que resulta de uma acumulação de forças que foi
prevista e construída conscientemente, mas é também uma surpresa histórica,
algo de intempestivo. O determinismo economicista não é marxista, nem é
histórico, e seu endereço político tem sido o gradualismo e o nacionalismo.
Não é marxista porque a duração do capitalismo remete mais às peripécias e
reviravoltas da revolução mundial, do que a um suposto vigor econômico
irrefreável do capitalismo. Não é histórico porque retira a avaliação do
capitalismo do contexto de crise crônica na qual está mergulhada a
sociedade contemporânea, há quase cem anos, com suas guerras mundiais entre
imperialismos rivais, suas guerras regionais de recolonização, suas
crescentes desigualdades sociais, o perigo de catástrofe ambiental e a
ameaça de holocausto nuclear. As conseqüências políticas do reducionismo
teórico fatalista foram, invariavelmente, o recuo para diferentes
variedades de possibilismo socialdemocrata nos países imperialistas, e para
novas versões de nacional-desenvolvimentismo de capitalismo controlado nos
países periféricos.


3 As revoluções na história
As sociedades não se transformam na medida em que a mudança é
necessária. As mudanças econômico-sociais em condições políticas
reacionárias, por mais necessárias que sejam, parecem impossíveis. A
revolução parece, politicamente, uma extravagância de sonhadores, ou
visionários. Esta antecipação histórica é, no entanto, o projeto
intelectual do marxismo. Um intervalo maior ou menor de tempo foi
indispensável para que as classes em luta compreendessem a gravidade dos
impasses em que estavam mergulhadas. Estes impasses têm fundamentos
econômicos, mas não há crise econômica sem saída para o capitalismo, porque
a burguesia pode descarregar sobre as outras classes o custo da crise. Só
quando as crises econômicas se manifestam na forma de crises sociais, ou
seja, transbordam em crises políticas que afetam não só o governo, mas o
regime de dominação, é que as classes populares despertam do estado de
resignação social e apatia política. A arquitetura das instituições perde
então a sua aura de legitimidade e tudo o que parecia impossível, passa a
ser admissível.
Mas, é o ponto de vista da classe dominada que ao defender,
egoisticamente, os seus interesses, representa a solução historicamente
progressiva que permite uma percepção mais próxima da realidade. Löwy foi
um dos marxistas a enfrentar de frente um dos temas metodológicos mais
difíceis da pesquisa em ciências sociais: "O método das ciências sociais se
distingue do científico-naturalista não somente no nível dos modelos
teóricos, técnicas de pesquisa e processos de análise, mas também e
principalmente no nível da relação com as classes sociais. As visões do
mundo, as "ideologias" (no sentido amplo de sistemas coerentes de idéias e
de valores) das classes sociais modelam de maneira decisiva (direta ou
indireta, consciente ou inconsciente) as ciências sociais, colocando assim
o problema de sua objetividade em termos totalmente distintos das ciências
da natureza". [10]
Um atraso maior ou menor separa o momento em que o agravamento da
crise histórica se manifesta, do momento em que as forças sociais em luta
estão dispostas a medir forças. A crise econômica amadurece mais rápido do
que a percepção que a sociedade tem da crise social. Este processo decorre
da resistência das classes das sociedades contemporâneas em aceitar a
gravidade da crise. Os tempos da política estão sempre atrasados em relação
aos tempos da história. Toda ordem político-social se apoiou no extremo
conservadorismo das sociedades humanas.
Os tempos de espera foram sempre tempos de uma calmaria aparente, que
antecede a precipitação das tempestades. Mudanças são lentas, e as
revoluções são sempre processos que se atrasam, porque tanto as classes
proprietárias, quanto as classes populares evitaram, enquanto foi possível,
a hora do confronto. As primeiras porque sempre tiveram muito a perder. As
segundas porque desconheciam, invariavelmente, a sua própria força. Todas
as sociedades modernas adiaram a colisão com os desafios do seu tempo.
Transferiram para o futuro, enquanto isso foi possível, as tarefas do
presente. Iludiram-se a si mesmas durante muito tempo, mas não
indefinidamente, sobre quais são os seus interesses e como defendê-los. As
ilusões das classes proprietárias foram, contudo, menores que as ilusões
das classes dominadas. A força das ideologias foi, portanto, um dos fatores
da lentidão das transformações históricas. Löwy dedicou um livro ao tema da
consciência de classe e tomou como referência a elaboração clássica de
Luckács: "A concepção dialética parte da situação dada, do interesse
imediato (...) para transformá-lo em passos para o objetivo final. Nesta
perspectiva, a consciência de classe aparece como uma possibilidade
objetiva, a expressão racional dos interesses históricos do proletariado,
que não é um além, mas surge da evolução histórica e da praxis real de
classe." [11]
Uma crise histórica não pode se resolver sem combates que encerram
perigos tão imponentes quanto possibilidades. As classes em luta
contemporizam, enquanto podem, para ganhar tempo. Até que o momento do
enfrentamento não é mais adiável, e o tempo passa ser escasso, porque
chegou a hora das batalhas decisivas, e vencerão os mais fortes, que foram
sempre os melhor preparados. Em situações revolucionárias, o improviso foi
sempre fatal. Nunca bastou que as condições objetivas estivessem maduras
para que uma sociedade pudesse realizar as transformações que eram
necessárias para resolver a crise. As mudanças exigem, irredutivelmente,
que os interesses de alguns poucos, mas muito poderosos, sejam
contrariados. Foi preciso que as condições objetivas estivessem mais do que
maduras, foi necessário que elas já tivessem apodrecido, ou seja, que a
catástrofe desmoronasse como um pesadelo sobre a cabeça das massas
populares, para que elas acordassem da indiferença política e despertassem
para a luta franca e aberta. Esse marasmo das massas trabalhadoras e das
outras classes oprimidas repousa, em primeiro lugar, no medo, ou seja, no
temor das represálias sociais. O medo das retaliações foi sempre a maior
força de inércia na história. Quis a ironia da história que o proletariado
latino-americano substituísse, na segunda metade do século XX, o lugar que
coube ao proletariado europeu na primeira metade. O continente latino-
americano escreveu sua primeira página de glória na história da revolução
socialista com o triunfo da revolução cubana em 1959. Löwy compreendeu esta
profunda mudança e concluiu em sua Introdução ao O marxismo na América
Latina: "Um novo período revolucionário para o marxismo teve início após
1960 – um período que recuperou algumas das idéias vigorosas do 'comunismo
original' da década de 1920".[12]
A onda revolucionária que começou com as mobilizações de massas nas
ruas de Salvador e do Rio de Janeiro contra o nazi-fascismo e transformaram
o PCB em um partido com influência de massas em 1945, se estendeu à Bolívia
em 1952, atingiu a Guatemala durante o Governo Arbenz, e culminou com a
queda de Batista em Havana. O medo de que a revolução se alastrasse de
Cuba para todo o continente explicou, para o fundamental, a política
burguesa nos vinte anos que vão de 1960 a 1980: a contra-revolução usou os
métodos de guerra civil e cobriu o cone sul do continente de ditaduras.
Mas, enquanto a quarta vaga da revolução mundial no pós-68 se alastrava na
Europa de Paris para a Itália e Lisboa, e seus ecos instigavam a juventude
mexicana a ocupar a Praça do Zócalo na terceira maior cidade do mundo, ao
mesmo tempo em que 100.000 saiam às ruas do Rio de Janeiro para gritar
'abaixo a ditadura', a situação na América Latina evoluía,
desfavoravelmente, para a causa da revolução.
A vaga latino-americana já tinha sido derrotada, anos antes, no golpe
do 31 de Março no Rio de Janeiro e a esquerda inspirada no exemplo
guevarista foi dizimada. A geração mais velha da esquerda latino-americana
tinha medido forças com a contra-revolução e tinha sido esmagada. Um fio de
continuidade histórica tinha sido interrompido. No início dos anos oitenta,
as ditaduras latino-americanas foram caindo, umas após as outras, pela
força de mobilizações de massas, como na Argentina depois da derrota nas
Malvinas, e as Diretas no Brasil, mas as classes dominantes lograram
estabilizar os regimes democrático-liberais com a promessa da alternância
eleitoral.
Na hora em que a América Latina vive, nos alvores do século XXI, a
terceira vaga revolucionária de sua história parecem oportunas as
observações de Löwy: "O marxismo na América Latina foi ameaçado por duas
tentações opostas; o excepcionalismo indo-americano e o eurocentrismo. O
excepcionalismo indo-americano tende a absolutizar a especificidade da
América Latina e da sua cultura, história ou estrutura social. Levado às
suas últimas conseqüências, esse particularismo americano acaba por colocar
em questão o próprio marxismo como teoria exclusivamente européia(...)Foi o
eurocentrismo, mais do que qualquer outra tendência que devastou o marxismo
latino-americano. Com esse termo queremos nos referir a uma teoria que se
limita a transplantar mecanicamente para a América Latina os modelos do
desenvolvimento socioeconômico que explicam a evolução histórica da Europa
ao longo do século XIX."[13]
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[1] Professor do Centro Federal de Educação de São Paulo, doutor em
História pela USP, iniciou os estudos superiores cursando sociologia na
Universidade de Paris-X em Nanterre, quando aderiu à Quarta Internacional e
integrou-se a um núcleo da Liga Comunista Revolucionária que era coordenado
por Michael Löwy. Umas poucas linhas pessoais: vindo de Lisboa em 1974
onde fiz o ensino secundário, tinha trazido o contato de Michael Löwy, à
época já estabelecido como professor universitário em Paris. Uma carta de
Francisco Louçã, amigo do movimento dos liceus - hoje prestigiado
economista, e deputado pelo Bloco de Esquerda em Portugal - apresentava as
minhas "credenciais" políticas que, aos dezessete anos, como é óbvio, eram
ridículas. Michael me recebeu com imensa consideração. Foi, de longe, a
influência intelectual mais significativa de minha estadia parisiense: era
brasileiro, erudito, marxista, e antes de tudo, militante, portanto, uma
referência e tanto. Ele era sofisticado sem presunção, e empolgado sem
impressionismo. Conheci o seu livro Método dialético e Teoria Política, um
trabalho de epistemologia que me foi útil em uma das disciplinas
introdutórias do curso e, em uma semana, tinha-o decorado de trás para
frente. Reuníamo-nos semanalmente, e eu esperava, fascinado, contando os
dias, aquela reunião como um bálsamo. Era mais educativa que a semana
inteira de aulas. Não havia um só francês. Éramos todos brasileiros e
portugueses que ainda não tinham voltado, logo, falávamos português. A
distância geracional que me separava de todos era enorme. Naqueles dias, a
diferença de alguns anos não era secundária. Exilados e refugiados, eram
todos muito mais maduros e experientes do que eu. A integração social foi
mínima, embora, às vezes, terminássemos a reunião bebendo algo em um café
próximo da Praça da Bastille. Nada além da cortesia entre camaradas. No
entanto, me lembro que não poupava o paciente Michel, pedindo ao final das
reuniões indicações de leitura, e exibindo os meus limitados progressos.
Através dele, descobri Lucien Goldman, que tinha sido orientador de
Michael, e o Luckás, de História e consciência de classe. Nossa atividade
militante se concentrava na elaboração, em mimeógrafo, e divulgação de um
jornal mensal chamado Combate, dirigido à comunidade de trabalhadores
portugueses. Devo acrescentar que minha colaboração era mais do que
modesta: estava resumida à venda. Essa atividade estava longe de ser
eletrizante: como eram difíceis aquelas vendas! Quem conseguiu vender
literatura socialista para a emigração portuguesa no banlieu de Paris,
vende qualquer coisa. Sem falsa modéstia, o caminho da militância me
ensinou, ao longo dos anos, tudo o que há para saber sobre vendas. Michel
me ensinou aquilo que não cabe em palavras de agradecimento. Durante a
revolução portuguesa me uni à tendência internacional animada por Nahuel
Moreno em polêmica contra a maioria européia e, mais tarde, nos anos
oitenta, apreciações opostas da dinâmica da direção do PT – a minha muito
severa - nos levaram para destinos políticos diferentes.
[2] LÖWY, Michael, Método dialético e Teoria política. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1975. p. 17.
[3] LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx, Petrópolis, Vozes,
2002, p.18.
[4] LÖWY, Michael, Marxismo, modernidade, utopia. São Paulo, Xamã, 2000,
p.81.
[5] LÖWY, Michael, Ibidem. São Paulo, Xamã, 2000, p.83.

[6] LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis, Vozes,
2002, p.19.
[7] LÖWY, Michael, HAUPT, George, WEILL, Claudie, Los marxistas y la
cuestión nacional. Barcelona, Fontamara, 1982, p.87.
[8] LÖWY, Michael, Nacionalismos e Internacionalismos. São Paulo, Xamã,
2000, p.80.
[9] LÖWY, Michael, A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis, Vozes,
2002, p.22.
[10] LÖWY, Michael, Método dialético e Teoria política. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1975. p. 17
[11] LÖWY, Michael, Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários,
São Paulo, LECH, Livraria editora Ciências Humanas, 1979, p.195.
[12] LÖWY, Michael, O marxismo na América latina, uma antologia de 1909 aos
dias atuais. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p.45.
[13] LÖWY, Michael, O marxismo na América latina, uma antologia de 1909 aos
dias atuais. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p.10.
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