História e Romance Histórico: Fronteiras

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HistÛria e romance histÛrico: fronteiras M·rio Maestri*

No inÌcio dos tempos, histÛria e literatura nasceram como ser ˙nico e indistinto. Lentamente, como parte do longo processo de tomada de consciÍncia do homem de sua existÍncia social, as duas disciplinas diferenciaram-se, singularizaram-se e especializaram-se. Em torno das fogueiras, mitos eram contados, explicando e figurando a origem do homem, da sociedade e da natureza. Na alta Antig¸idade, a epopÈia cantada pelo rapsodo fundia, semimagicamente, o real e o imagin·rio, o humano e o divino, a sociedade e o indivÌduo. Nascida em ìum tempo anteriorî ‡ ìconsciÍncia individualî, ela registrava sobretudo o ìdestino da coletividadeî.1 EspÈcies de gÍmeos idÍnticos, literatura e histÛria lutaram para se separar e andar independentemente. Refletindo sobre essa diferenciaÁ„o, AristÛteles propunha que a ìpoesiaî fosse ìmais filosÛfica e mais elevada do que a histÛriaî, pois contaria ìde preferÍncia o geralî e, a ˙ltima, ìo particularî.2 O processo de autonomizaÁ„o entre a histÛria e a literatura aprofundou-se na Idade MÈdia. Ent„o, a narrativa dram·tica e o romance ñ de cavalaria, pastoril, picaresco, etc. ñ referiam-se aos acontecimentos humanos, animando personagens, sem compromissos com o relato do passado e conscientes do car·ter figurativo da arte. Na Època, a histÛria tambÈm definiu objetivos e mÈtodos, compreendendo-se sobretudo como crÙnica do passado, j·

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Doutor em histÛria pela UniversitÈ Catholique de Louvain, BÈlgica, e professor do Programa de PÛs-GraduaÁ„o em HistÛria da UPF. E-mail: [email protected]

que congelada como explicaÁ„o essencial dos fenÙmenos pelas visıes providencialistas crist„s. Na Baixa Idade MÈdia, Santo Agostinho (354430) criou monumental interpretaÁ„o providencialista que abraÁava ìos princÌpios, o mÈtodo e os resultados da ciÍncia e da filosofiaî da Època.3 No sÈculo XVII, o bispo J. B. Bossuet (1627-1704) concedeu que deus forjara o ìencadeamento do universoî e deixara que a histÛria decorresse segundo ìsuas causasî naturais.4 As vitÛrias do iluminismo sobre o misticismo e o irracionalismo refletiam a capacidade crescente da burguesia de organizar a sociedade em forma progressista e do espÌrito humano de descrever teoricamente os nexos causais objetivos do mundo material e social. No sÈculo XVII, confiante, RenÈ Descartes escrevia: ì[...] todas as coisas [...] sucedem-se da mesma maneira e, desde que se evite tomar como verdadeira alguma [coisa] que n„o o seja [...] n„o podem existir t„o longÌnquas [coisas] que n„o se alcancem, nem t„o ocultas que n„o se descubramî.5 Na cent˙ria seguinte, Voltaire propunha que o homem deixasse ìrespeitosamente o que È divino ‡queles que s„o seus deposit·riosî e se ocupasse das coisas terrenas.6 De acontecimento ininteligÌvel e explic·vel apenas pela vontade divina, a histÛria evoluiu a fenÙmeno humano compreensÌvel e demonstr·vel. PorÈm, os mais l˙cidos iluministas acreditavam em uma natureza humana inalter·vel e viam a evoluÁ„o da civilizaÁ„o como avanÁo da opini„o, ou seja, das verdades e enganos de uma naÁ„o.7 Para a ilustraÁ„o, o homem era bom e propendia ‡ raz„o, por

Descartes

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natureza. A racionalizaÁ„o dos costumes e das instituiÁıes levaria, inevitavelmente, ‡ felicidade geral. Tratava-se de concepÁ„o revolucion·ria da histÛria. Question·veis e reform·veis, as instituiÁıes deviam adaptar-se ao bem comum. Do pessimismo e quietismo crist„os, para quem o mundo È vale de l·grimas, a vida comeÁa apÛs a morte, evoluÌa-se para um otimismo e ativismo filosÛficos e sociais que explodiriam em 1789.

Nesses anos, literatura e histÛria dispunham-se a explicar essencialmente o passado. Luk·cs lembrava que a luta pela construÁ„o de uma explicaÁ„o historiogr·fica cientÌfica de 1789 favoreceu a ausÍncia de um grande romance histÛrico sobre aquele acontecimento, ao passo que a revoluÁ„o burguesa na Inglaterra foi amplamente retratada pela ficÁ„o.11 Na segunda metade do sÈculo XIX, a ordem capitalista consolidada assumiu essÍncia antirevolucion·ria. No mundo das idÈias, esse tournant conservador expressou-se As vitÛrias do iluminismo sobre o nas concepÁıes empiricistas e positivistas do mundo, que misticismo e o irracionalismo reafirmavam o aparente e refletiam a capacidade crescente negavam o essencial. da burguesia de organizar a Ao mesmo tempo, o

O sistema hegeliano materializou filosoficamente os avanÁos da RevoluÁ„o Francesa. Por primeira vez, sob forma categorial-sistem·tica, descrevia-se a essÍncia dialÈtica da histÛria e a necessidade da revoluÁ„o. PorÈm, para Hegel, como para os iluministas, a raz„o governava a histÛria, ainda que, para ele, a raz„o fosse as leis gerais e imanentes ‡ histÛria (EspÌrito Universal).8 Nos limites idealistas da filosofia hegeliana, estendia-se o grau de cognoscibilidade da histÛria.

positivismo defendeu a sociedade em forma progressista autonomizaÁ„o plena da e do espÌrito humano de histÛria e da literatura e a diluiÁ„o de uma na outra. descrever teoricamente os nexos Auguste Comte propunha causais objetivos do mundo que o estado teolÛgico e o metafÌsico das ciÍncias timaterial e social. nham em comum a predomin‚ncia da imaginaÁ„o sobre a observaÁ„o. Para elevarem-se ao est·gio positivo das ciÍncias exatas, as ciÍncias humanas deveriam abandonar a promiscuidade com o aleatÛrio, com o subjetivo, com o imagin·rio.12

Em 1799, Saint-Simon analisou a RevoluÁ„o Francesa como luta entre nobres, burgueses e plebeus, como fizera, anteriormente, Gracchus Babeuf (17601797). Na mesma trilha, Augustin Thierry (17951856), Auguste Mignet (1796-1884), Jules Michelet (1798-1874), entre outros, apresentaram 1789 e a histÛria como o resultado do choque de classes antagÙnicas.9 O ImpÈrio e a RestauraÁ„o prenderam, baniram e executaram pensadores e militantes sociais, mas sob forma de historiografia, a RevoluÁ„o Francesa prosseguiu desvelando sua essÍncia. No sÈculo XVIII, a narrativa ficcional em prosa conheceu poderoso impulso, tambÈm registrando o surgimento da burguesia na arena social. Assim como o racionalismo emancipou a histÛria do providencialismo, as tramas e os personagens do romance moderno expressaram a emancipaÁ„o e autonomia do indivÌduo da organizaÁ„o estamental feudal. No sÈculo XIX, a literatura e a histÛria aproximaram-se para, a seguir, negarem-se. A diferenciaÁ„o entre literatura e histÛria avanÁou qualitativamente apÛs 1789. A RevoluÁ„o fortaleceu a consciÍncia de que era possÌvel aprender racionalmente o devir histÛrico ñ ìexperiÍncia vivida pelas massasî ñ, gerando a historiografia cientÌfica e o romance histÛrico.10

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Para a idÈia de que a ìrealidade se resumia ‡quilo que era perceptÌvel pelos sentidosî, a certid„o de cientificidade da histÛria era sua imers„o no dado documental.13 Em oposiÁ„o ‡ vis„o aristotÈlica, a historiografia positivista via a ficÁ„o como produto do arbÌtrio err·tico da imaginaÁ„o do escritor. Entretanto, o positivismo invadiu tambÈm a literatura. Para a narrativa naturalista, a ficÁ„o devia construirse a partir de uma rigorosa investigaÁ„o documental. A elaboraÁ„o do dado empÌrico pelos conhecimentos cientÌficos da Època permitiria que o

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romance se transformasse em ìdemonstraÁ„o pr·tica das teorias cientÌficasî.14 Para escrever Le ventre de Paris e Nana, …mile Zola percorreu os bairros populares da capital francesa, entrevistando peixeiros, comerciantes, prostitutas, gigolÙs e marafonas, numa verdadeira investigaÁ„o sociolÛgica. A narrativa naturalista via-se como investigaÁ„o cientÌfica e sonhava superar a prÛpria cientificidade da histÛria. O positivismo propunha ‡ histÛria e ‡ literatura a descriÁ„o da ìrealidade objetivaî a partir da minuciosa reproduÁ„o da aparÍncia fenomÍnica. Ao desconhecer a necessidade da express„o do n„o imediatamente perceptÌvel, negava ‡quelas disciplinas suas funÁıes primordiais de expressarem a essencialidade dos fenÙmenos, atravÈs de suas linguagens especÌficas. Werneck SodrÈ lembrava que o naturalismo esquecia que ìos sinais exteriores s„o apenas uma parte da realidade, n„o podendo a literaturaî, atravÈs da mera descriÁ„o do Werneck SodrÈ lembrava que o aparente, registrar determinaÁıes essenciais do objenaturalismo esquecia que ìos to estudado. Sob a aparÍncia sinais exteriores s„o apenas de rigorismo cientÌfico, os positivismos liter·rio e histouma parte da realidade, n„o riogr·fico atinham-se ‡s podendo a literaturaî, atravÈs aparÍncias e descuravam a essÍncia dos fatos, desconheda mera descriÁ„o do aparente, cendo as contradiÁıes sociais.15 registrar determinaÁıes Na segunda metade do sÈculo XX, a historiografia neopositivista, travestida de histÛria quantitativa, pretendeu salto de qualidade no divÛrcio com a literatura, ao romper com o subjetivismo da narrativa em prosa. Por alguns anos, sob a ·rida ditadura das tabelas, quadros e sÈries, ela sonhou com a exatid„o matem·tica.

essenciais do objeto estudado.

Na contram„o, mas no mesmo sentido, a prosa ficcional contempor‚nea propÙs radical rompimento com a realidade. O narrador, profundamente autÙnomo, recriaria, quando n„o criaria, seu mundo, sem amarras com a verdade dos fatos, tendo como ˙nico compromisso, quanto muito, a verossimilhanÁa.

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J· na Antig¸idade, AristÛteles lembrava que a literatura produzia um passado possÌvel e n„o real, j· que ìo poeta, diferentemente do historiador, n„o representa factos ou situaÁıes particularesî mas apenas ìcria um mundo coerente em que os acontecimentos s„o representados na sua universalidade, segundo a lei da probabilidade ou da necessidadeî.16 Querendo superar a m· consciÍncia de ser reflexo artÌstico do real, a literatura dispÙs-se a romper com a realidade atravÈs do monÛlogo interior; das descriÁıes psicolÛgicas; do nonsense; do fim do tempo e do espaÁo como fatores unificadores do relato; do abandono da milenar idÈia da verossimilhanÁa; da fus„o do consciente e do inconsciente; do real e do m·gico, das experiÍncias vividas e onÌricas; etc. Na defesa de autonomizaÁ„o radical da literatura, lembrou-se que ela se objetiva na construÁ„o de uma totalidade artÌstica, tendo como ˙nico paradigma o belo, e que a histÛria, ao contr·rio, impıe-se atravÈs da confrontaÁ„o do explicado (teoria) com o analisado (objeto), j· que constitui an·lise concreta de situaÁ„o concreta. Na historiografia, a beleza È atributo excedente; na ficÁ„o, a veracidade n„o È sequer qualidade marginal. Referindo-se a essa pretens„o de autonomia artÌstica, Aguiar e Silva assinala: ìA liberdade adquirida em relaÁ„o a toda a ordem preestabelecida do real pıe em evidÍncia o poder pelo qual o artista dispıe das palavras e das formas segundo o seu gÍnio prÛprio [...].î17 A tentativa de superaÁ„o das visıes da arte como imitaÁ„o, reflexo ou interpretaÁ„o da realidade atravÈs da absolutizaÁ„o do ato de criaÁ„o do artista, expressa as ilusıes liberatÛrias da sociedade capitalista, que enseja a ilus„o de controle pelo indivÌduo da sua vontade e de seu destino. Essas visıes pecam por fragilidade epistemolÛgica. Apesar do desenvolvimento e especializaÁ„o milenares, histÛria e literatura possuem caracterÌsticas comuns que denotam a referÍncia a uma essÍncia comum. Ambas registram, expressam e explicam as experiÍncias humanas, cada uma na sua linguagem e com seu programa. A unidade e a diversidade entre literatura e histÛria foram sempre objeto de discussıes. Paradoxalmente, nos ˙ltimos anos, o interesse sobre essa realidade aumentou, sobretudo devido ao crescente prestÌgio das visıes irracionalistas que desconhecem

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o status cientÌfico da histÛria, reduzindo-a a uma espÈcie de ìromance verdadeiroî. A negaÁ„o da funÁ„o da histÛria de explicar essencialmente os fenÙmenos e sua reduÁ„o a uma mera narrativa em prosa construÌda pelo arbÌtrio do narrador debruÁado sobre os dados objetivos, reduz a disciplina a uma espÈcie de ficÁ„o de tema histÛrico e vocaÁ„o naturalista. O dinamismo do ensaÌsmo de cunho histÛrico tem contribuÌdo ‡ exacerbaÁ„o dessa discuss„o. Maximizando as propostas da nova histÛria, esses trabalhos entregam-se a uma descriÁ„o positiva e atrativa dos fatos, despreocupados com a explicaÁ„o dos acontecimentos, tida como impossÌvel e desnecess·ria. As propostas de autonomia da literatura do mundo social n„o conseguem negar o fato de que ela constrÛi-se, necessariamente, com as palavras, as idÈias, os sentimentos, os temas e as preocupaÁıes de sua Època, constituindo poderoso registro do mundo que a pariu. A teoria liter·ria tem enfatizado a determinaÁ„o da narrativa pelo mundo social, alÈm mesmo da consciÍncia do autor. Samira Mesquita lembra: ì[...] a ficÁ„o, por mais ëinventadaí que seja a estÛria, ter· sempre, e necessariamente, uma vinculaÁ„o com o real empÌrico, vivido, o real da histÛria. O enredo mais delirante, surreal, metafÛrico estar· dentro da realidade, partir· dela, ainda quando pretende neg·la, distanciar-se [...].î18 A narrativa ficcional em prosa constitui fonte documental essencial, j· que expressa, poderosamente, os cen·rios; a linguagem; as personagens dominantes; as concepÁıes e visıes de mundo; as preocupaÁıes e preconceitos sociais; etc. da Època em que foi produzida. TambÈm È uma ilus„o a inexor·vel determinaÁ„o da historiografia pelos documentos. O historiador n„o È fantoche dos dados, sobre os quais aplica, como cirurgi„o h·bil, o bisturi tÈcnico-metodolÛgico. … alta a autonomia ñ consciente e inconsciente ñ do historiador na escolha e tratamento da documentaÁ„o. Sua independÍncia cresce quando transita da pesquisa ‡ produÁ„o do texto historiogr·fico. A onisciÍncia e neutralidade absolutas da historiografia s„o pretensıes positivistas desmedidas

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e desmentidas. Comumente, as insuficiÍncias documentais s„o supridas por recursos prÛprios ‡ prosa ficcional e os hiatos documentais s„o preenchidos com explicaÁıes tidas como tendenciais e verossÌmeis. Freq¸entemente, as debilidades argumentativas; as insuficiÍncias documentais; a impossibilidade ou m· vontade em abordar uma quest„o, etc. s„o contornadas com soluÁıes estilÌsticas pela historiografia. Essa construÁ„o de uma totalidade harmÙnica e convincente, atravÈs de recursos artÌsticos, que faz parte da ìnatureza da criaÁ„o artÌsticaî,19 constitui desvio do mÈtodo historiogr·fico, sobretudo se procura criar falsa aparÍncia de cientificidade. A impress„o de veracidade cresce quando os fatos histÛricos s„o apresentados sem a intervenÁ„o explÌcita do autor.20 A ausÍncia do narrador onisciente intruso adapta-se como luva ao sonho positivista de neutralidade epistemolÛgica e È recurso utilizado em geral inconscientemente pelo historiador. Os nexos entre histÛria e romance histÛrico ñ isto È, a narrativa ficcional em prosa que almeja ìa reproduÁ„o artÌstica fiel de uma era histÛrica concretaî21 ñ s„o palco privilegiado para a discuss„o dos fios de Ariadne que ligam histÛria e literatura entre si e com o real. Entre as Ìntimas e variadas interpenetraÁıes da histÛria e da literatura, destaca-se a vocaÁ„o da narrativa em prosa de tema histÛrico de descrever, sintetizar, explicar e apreender singularidades essenciais do passado.

Samira Mesquita lembra: ì[...] a ficÁ„o, por mais ëinventadaí que seja a estÛria, ter· sempre, e necessariamente, uma vinculaÁ„o com o real empÌrico, vivido, o real da histÛria. O enredo mais delirante, surreal, metafÛrico estar· dentro da realidade, partir· dela, ainda quando pretende neg·-la, distanciar-se [...].î

Tradicionalmente, o historiador viu o romance histÛrico como leitura impertinente de um passado possÌvel de ser desvelado apenas atravÈs dos instrumentos da historiografia e jamais com a fantasia arbitr·ria do ficcionista. No m·ximo, para essas interpretaÁıes, o romance histÛrico seria uma ficÁ„o do passado, incapaz de aproximar-se de suas singularidades profundas.

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A gravidade dessa intrus„o aumentaria, j· que o romance histÛrico cria um mundo ficcional global que È percebido como o real recriado. Referindo-se ao romance em geral, Balzac lembrava a necessidade e, portanto, a possibilidade, de ìos personagens de um romanceî aparecerem mais verÌdicos do que os prÛprios ìpersonagens histÛricosî.22

sofrido a concorrÍncia, vista igualmente como impertinente, da cinematografia de cunho histÛrico, essa ficÁ„o visual que fala para milhıes de espectadores criados, desde o berÁo, no amor ‡ imagem e no horror ao texto. O sucesso de p˙blico de Carlota Joaquina, reproduÁ„o e divulgaÁ„o das paisagens e preconceitos vulgares sobre a vinda da famÌlia real ao Rio de Janeiro, È bom exemplo da import‚ncia do cinema no processo de construÁ„o do imagin·rio histÛrico.

Quando atinge nÌvel artÌstico, o romance histÛrico È percebido como animaÁ„o do passado. Heine G. Luk·cs afirmava que os ìromances de Walter Scott reproduzem muitas A desconfianÁa da historiografia vezes o espÌrito da histÛria inglesa mais fielmente com o cinema e o romance histÛricos aumenta do que Hume.î23 Mais ainda, a identificaÁ„o porque essas duas narrativas ficcionais, sobretudo mimÈtica do leitor com os personagens leva-o a quando alcanÁam o nÌvel artÌstico, bastam-se a si reviver a histÛria como protagonista. mesmas, livres que s„o do respeito ‡ fidelidade dos

A unidade essencial da histÛria e suas linguagens constituem reflexos essenciais da realidade objetiva, compreendendo-se a categoria ìreflexoî na concepÁ„o lukacsiana, isto È, ìtransfiguraÁ„oî essencial do real e n„o transcriÁ„o mec‚nica de uma imagem sobre um espelho.

Assim, atravÈs de recursos artÌsticos, e eventualmente sem penetrar a essÍncia do passado, a ficÁ„o de cunho histÛrico sugeriria, errÙnea e perigosamente, a possibilidade da literatura substituir a histÛria. A m· vontade da historiografia com o romance histÛrico deve-se tambÈm a compreensÌvel despeito. A narrativa ficcional possui abrangÍncia de p˙blico e sobrevida temporal dificilmente alcanÁada pela historiografia, contribuindo, devido ‡s caracterÌsticas assinaladas, mais do que a ˙ltima para a formaÁ„o das representaÁıes de uma comunidade sobre o passado.

Os dois volumes do romance histÛrico O continente, de …rico VerÌssimo, sobre as origens do Rio Grande do Sul, venderam, de 1949 a 1972, aproximadamente 100 mil exemplares, tiragem jamais aproximada por trabalhos historiogr·ficos sobre o tema. E esse romance continua sendo lido.24 Na luta pelo monopÛlio da produÁ„o do imagin·rio social, a historiografia tem tambÈm

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fatos que as inspiram. A unidade essencial da histÛria e suas linguagens constituem reflexos essenciais da realidade objetiva, compreendendo-se a categoria ìreflexoî na concepÁ„o lukacsiana, isto È, ìtransfiguraÁ„oî essencial do real e n„o transcriÁ„o mec‚nica de uma imagem sobre um espelho. A histÛria e a literatura devem registrar n„o a aparÍncia, mas a essÍncia dos fenÙmenos. Luk·cs lembrava, referindo-se ‡ arte em geral: ì[...] as formaÁıes estÈticas s„o reflexos da realidade objetiva, e seu valor, sua significaÁ„o, sua verdade descansam na capacidade que tenham de captar corretamente a realidade, reproduzi-la e evocar nos receptores a imagem da realidade que permanece nelas mesmas.î25 … funÁ„o da histÛria penetrar a essencialidade dos fenÙmenos e definir e descrever, teoricamente, o comportamento tendencial das categorias sociais dominantes. A literatura realiza o mesmo processo atravÈs da transfiguraÁ„o essencial da realidade, servindo-se para tal de personagens que recriem, na singularidade de suas aÁıes, as tendÍncias gerais de uma classe de indivÌduos.26 Essa determinaÁ„o explica e limita poderosamente a autonomia do autor na construÁ„o dos enredos e personagens ficcionais histÛricos. Sem romper com a verossimilhanÁa, deve produzir e animar seus personagens segundo os h·bitos,

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costumes, crenÁas e sentimentos do perÌodo em que os ambienta. Isto È, de acordo com as determinaÁıes essenciais da Època em quest„o. No romance histÛrico, o autor e o narrador s„o obrigados a animar os protagonistas ficcionais ñ seres aparentemente individuais e singulares ñ de tal modo que vivam, amem e odeiem em conformidade com as tendÍncias reais do passado, a fim de que se elevem ao status de personagens singulares e universais. A produÁ„o de um romance histÛrico exige que o ficcionista realize investigaÁ„o sistem·tica sobre a Època que abordar·. O fato de que esse estudo seja mediado pela sua sensibilidade e instinto artÌsticos n„o dilui o fato de que, nesse momento da produÁ„o, realiza, consciente ou inconscientemente, o trabalho do historiador, isto È, o desvelamento essencial do passado. A informaÁ„o historiogr·fica, e n„o o arbÌtrio do autor, media a produÁ„o da ficÁ„o histÛrica. A obediÍncia ‡ verossimilhanÁa constitui respeito ao espÌrito e ‡s tendÍncias profundas da Època. A narrativa ficcional, de tem·tica histÛrica, que se nega a esse percurso necess·rio, naufraga vilmente no anacronismo ou abandona o gÍnero pretendido por um outro qualquer ñ f·bula, parÛdia, s·tira, etc. O autor seleciona, nos documentos, nas memÛrias, nos relatos, na historiografia, e nos seus conhecimentos e idÈias, conscientes e inconscientes, sobre o passado, o material sobre o qual construir· seus enredos, protagonistas e paisagens. Maria Teresa de Freitas lembra que, no romance histÛrico, o narrador serve-se de patrimÙnio cultural prÈ-existente, hipoteticamente comum a ele e aos leitores, n„o podendo, portanto, violent·-lo, ao belprazer. Em geral correta, essa formulaÁ„o peca por relativismo, ao reduzir a necessidade de respeito ao patrimÙnio historiogr·fico dominante e n„o ‡ essencialidade do fato histÛrico. Para elevar sua literatura ao status de arte, o autor deve ultrapassar o nÌvel do preconceito e senso comum e expressar a essencialidade do fenÙmeno referido. Sua narrativa deve penetrar a ìsuperfÌcieî dos fenÙmenos e expressar a ìestrutura profundaî dos fatos.27 A prÛpria licenÁa artÌstica constitui afastamento da legalidade fenomÍnica para melhor expressar a sua essÍncia.

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Referindo-se ‡ ìfidelidade histÛricaî, Luk·cs lembrava: ìNo relativo a esta autÍntica reproduÁ„o dos componentes reais da necessidade histÛrica, pouco importa, [...] que os detalhes individuais, que fatos singulares sejam ou n„o sejam historicamente justos.î28 O respeito ‡ estrutura superficial dos fenÙmenos n„o È condiÁ„o necess·ria nem suficiente de qualidade liter·ria. O romance histÛrico alcanÁa o pathos artÌstico apenas quando transfigura artisticamente os fatos, registrando suas determinaÁıes profundas. Se a ìfiguraÁ„oî artÌstica separa-se essencialmente do seu ìmodeloî, quebra-se a tens„o narrativa e rompe-se seu efeito ìevocadorî.29 A necessidade do roA necessidade do romance mance histÛrico de superar as visıes historiogr·ficas histÛrico de superar as visıes superficiais e expressar a historiogr·ficas superficiais e essencialidade fenomÍnica coloca graves questıes episexpressar a essencialidade temolÛgicas. A construÁ„o fenomÍnica coloca graves do romance histÛrico d·-se sobretudo a partir do coquestıes epistemolÛgicas. nhecimento historiogr·fico da Època, em geral, produto da documentaÁ„o e das interpretaÁıes das elites do passado, tratadas sob a hegemonia das elites do presente. Ao contr·rio, o registro das vidas, dos sentimentos e das tragÈdias das etnias, povos e classes destruÌdas, reprimidas, vencidas ou exploradas apresentam-se ao ficcionista, fugazmente, n„o raro, como incrustaÁıes quase imperceptÌveis nos depoimentos das elites. S„o profundas as dificuldades do romancista de resgatar sentimentos e visıes das classes e etnias que tiveram suas vozes silenciadas. O ficcionista que quiser recriar ficcionalmente a ang˙stia de um pai, da encosta da serra ga˙cha, no sÈculo XIX, incapaz de compreender as razıes e opor-se ‡ invas„o dos seus territÛrios por colonos alem„es, dever· apoiar sua eventual empatia com o personagem em sÛlida informaÁ„o etnogr·fica e antropolÛgica. Mesmo assim, a reconstruÁ„o sofrer· o handicap de que as falas e reflexıes desse protagonista deram-se em lÌngua e contextos estranhos ao autor e ao leitor. TambÈm a construÁ„o de personagens que animem trabalhadores escravizados, sobretudo

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africanos, exige conhecimento historiogr·fico e antropolÛgico para que eles n„o materializem os preconceitos das elites sobre o trabalhador escravizado, como È comum nas narrativas cinematogr·ficas e televisivas.30 Essas determinaÁıes envelhecem rapidamente muitos romances histÛricos. A obra ficcional incapaz de registrar a essÍncia dos fatos histÛricos perde crescentemente car·ter evocativo, ‡ medida que avanÁa o conhecimento sobre essas Èpocas, passando a constituir mero depoimento da realidade cultural da Època em que foi produzida, e n„o da Època a que se refere. Entretanto, o romance histÛrico que expressa, artisticamente, concepÁıes de mundo e, portanto, preconceitos, das elites da Època a que se refere, constitui uma express„o de visıes objetivas do perÌodo abordado, ainda que alienada. Estabelece uma ligaÁ„o, mesmo que tÍnue, com o passado, ao afirmar e expor, atravÈs das suas falas e silÍncios, o que nega e esconde.

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AngÈlica Soares, GÍnerosliter·rios (5a ed. S„o Paulo: ¡tica, 1999), p. 42. PoÈtica, 1451 b, apud VÌtor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura (2a ed. revista e ampliada. Coimbra: Almedia, 1969), p. 90. Georg Luk·cs, La distruzione della ragione, I (2a ed. Turim: Einaudi, 1980), p. 106. A traduÁ„o das citaÁıes em italiano e francÍs È nossa (MM). G. Plekh·nov, A concepÁ„o materialista da histÛria (5a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977), p. 14. RenÈ Descartes, Discurso sobre o mÈtodo (6a ed. S„o Paulo: Atena, 1954), p. 27. Apud G. Plekh·nov, A concepÁ„o materialista da histÛria, cit., p. 15. Georg Luk·cs, Le roman historique (Paris: Petite BibliothËque Payot, 1965), p. 28. G. W. F. Hegel, La phÈnomenologie de líesprit, trad. J. Hyppolite, 2 vols. (Paris: Aubier, s/d.). Cf. Jacques Godechot, Un jury pour la RÈvolution (Paris: Robert Laffont, 1974). Cf. Georg Luk·cs, Le roman historique, cit., pp. 21 e ss.

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Ibid., p. 81. Auguste Comte, Op˙sculos de filosofia social 1819-1828 (Porto Alegre: Globo/EDURS, 1972), p. 86. NÈlson Werneck SodrÈ, O naturalismo no Brasil (2a ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1992), p. 47. Maria Teresa Freitas, Literatura e histÛria (S„o Paulo: Atual, 1986), p. 2. Cf. Georg Luk·cs, EstÈtica: la peculiaridad de lo estÈtico, II (Barcelona: Grijalbo, 1965), pp. 22-23; NÈlson Werneck SodrÈ, O naturalismo no Brasil (2a ed. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1992), p. 66. VÌtor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura, cit., p. 90. Ibid., p. 143. Samira Nahid de Mesquita, O enredo (3a ed. S„o Paulo: ¡tica, 1994), p. 14. Georg Luk·cs, Le roman historique, cit., p. 99. LÌgia Chiappini Moraes Leite, O foco narrativo: ou a polÍmica em torno da ilus„o (7a ed. S„o Paulo: ¡tica, 1994), p. 13. Georg Luk·cs, Le roman historique, cit., p. 17. Apud Georg Luk·cs, Le roman historique, cit., p. 43. Ibid., p. 59. Cf. Fl·vio Loureiro Chaves (org.), O contador de histÛrias: 40 anos de vida liter·ria de …rico VerÌssimo (Porto Alegre: Globo, 1972), pp. XX-XXI. Cf. Georg Luk·cs, EstÈtica: la peculiaridad de lo estÈtico, vol. II, cit., p. 41. ìO sentido dessa concentraÁ„o È, pois, oferecer todos os momentos importantes de um modo abreviado, comprimido, que salienta fortemente a essÍncia, com a meta de alcanÁar o objetivo m·gicoî (Ibid., p. 53); ì[...] no mundo do romance histÛrico [...] o indivÌduo mundialmente histÛrico [...] È um [...] representante de uma das m˙ltiplas classes e camadas em lutaî (Georg Luk·cs, Le roman historique, cit., p. 49). Cf. Fl·vio Kothe, A narrativa trivial (BrasÌlia: EdUnB, 1994), pp. 13 e ss. Georg Luk·cs, Le roman historique, cit., p. 63. ìMas o decisivo È que nesses casos o reflexo se confronta em seguida com a prÛpria realidade, e o efeito È suspenso instantaneamente na medida em que a comparaÁ„o mostra uma discord‚ncia entre o modelo e a refiguraÁ„oî (Cf. Georg Luk·cs, EstÈtica: la peculiaridad de lo estÈtico, vol. II, cit., p. 70). Cf., por exemplo, M·rio Maestri, ìAmistad: os herÛis que Spielberg esqueceu...î, em O olho da histÛria Revista de HistÛria Contempor‚nea, V.v, no 5, Salvador, Mestrado de HistÛria da Universidade Federal da Bahia, 1998, pp. 153-163; ìCarnavalizaÁ„o do quilomboî, em Jornal do Moinho de Vento, I, 1, Porto Alegre, agosto de 1984. (Sobre o filme Quilombo, de Cac· Diegues.)

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