História, Esporte e Cinema: o boxe e a Guerra Fria no filme “Rocky IV” (1985)

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Ramon Patrick Rivas

História, Esporte e Cinema: o boxe e a Guerra Fria no filme “Rocky IV” (1985)

Rio de Janeiro 2015

HISTÓRIA, ESPORTE E CINEMA: o boxe e a Guerra Fria no filme “Rocky IV” (1985)

Ramon Patrick Rivas

Instituto de História / CFCH Bacharelado em História

Prof. Dr. Victor Andrade de Melo

Rio de Janeiro 2015

RESUMO

RIVAS, Ramon Patrick. História, Esporte e Cinema: o boxe e a Guerra Fria no filme “Rocky IV” (1985). Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo. Rio de Janeiro: UFRJ / IH, 2015. Monografia (Bacharelado em História).

Um filme de ficção pode emular um fenômeno histórico por meio de referências que remetem ao fato? Este filme é considerado uma fonte primária pela historiografia? Nesta pesquisa buscou-se discutir o filme “Rocky IV”, uma obra cinematográfica ficcional de 1985, como uma representação dos conflitos entre os blocos socialista e capitalista observáveis no âmbito da Guerra Fria, notadamente a partir da emulação de uma prática esportiva (no caso o pugilismo) em uma obra cinematográfica. Para a comunidade acadêmica não é novidade que o cinema e a prática esportiva são fenômenos intimamente interligados, ambos transmitem o ideário de modernidade e tanto o esporte como o cinema necessitam ser valorizados enquanto objetos de reflexão e discussão historiográfica, por isso e a partir da ideia de contra-análise da sociedade instituída por Marc Ferro e pela noção de campo esportivo de Pierre Bourdieu estes dois fenômenos sociais são trabalhados neste trabalho. Escrito e dirigido por Sylvester Stallone, “Rocky IV” faz uso de símbolos o tempo inteiro, desde a destruição mútua das luvas de boxe, uma americana e a outra soviética, até as cores usadas no decorrer da obra. O mundo estava dividido entre os brancos e os vermelhos e se estes entrassem em choque direto aconteceria o mesmo que aconteceu com as luvas, destruiriam a si mesmos e o resto do mundo. Assim falado no próprio filme a luta de boxe e aquela especificamente era mais do que uma simples exibição esportiva, a supremacia no esporte representaria ser mais capaz, ser mais forte enquanto potência. Não é para menos então que o filme “Rocky IV” foi recorde de bilheteria e ainda é uma das maiores bilheterias de todos os tempos em filmes relacionados ao âmbito esportivo. Palavras-chave: História; Esporte; Cinema; Boxe; Guerra Fria.

ABSTRACT

RIVAS, Ramon Patrick. História, Esporte e Cinema: o boxe e a Guerra Fria no filme “Rocky IV” (1985). Orientador: Prof. Dr. Victor Andrade de Melo. Rio de Janeiro: UFRJ / IH, 2015. Monografia (Bacharelado em História).

A fictional film can emulate a historical phenomenon by means of references that refer to the fact? This film is considered a primary source for the historiography? This research sought to discuss the movie "Rocky IV", a fictional film work of 1985, as a representation of the conflict between the Socialist and capitalist blocs which are observed in the context of the cold war, notably from the emulation of a sports (boxing) in a cinematographic. To the academic community is nothing new to the movies and sports are closely interconnected phenomena, both transmit the ideals of modernity, and both the sport as the movies need to be valued as objects of reflection and historiographical discussion, and from the idea of a counter-analysis of the society instituted by Marc Ferro and the notion of sports field of Pierre Bourdieu these two social phenomena are worked in this job. Written and directed by Sylvester Stallone, "Rocky IV" makes use of the symbols, since the mutual destruction of the boxing gloves, an American and the other, until the colors used in the course of the work. The world was divided between the whites and the reds and take direct shock would happen the same thing that happened with the gloves, they destroy themselves and the rest of the world. So spoken in own movie the boxing match and that specifically was more than a simple sports display, the supremacy in the sport would be more able, be stronger while power. No wonder then that the movie "Rocky IV" was box-office records and is still one of the highest-grossing of all time in films related to the sporting arena. Keywords: History; Sport; Movies; Boxing; Cold War.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

COI

Comitê Olímpico Internacional

EUA

Estados Unidos da América

FIFA

Federação Internacional de Futebol

ONU

Organização das Nações Unidas

OTAN

Organização do Tratado do Atlântico Norte

URSS

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

Introdução Não se deve ignorar, nem subestimar o impacto e o grau de penetração do cinema e do esporte no cotidiano da sociedade. Afinal é muito difícil encontrar algum local no planeta onde estes dois fenômenos da modernidade não estejam presentes1 ou suas marcas já tenham sido deixadas, mesmo que inconscientemente, na sociedade. Para a comunidade acadêmica não é novidade que o cinema e a prática esportiva são fenômenos intimamente interligados, ambos transmitem o ideário de modernidade e compactuam da intenção de sempre possuir as características de produtividade, eficiência e velocidade. Entende-se, conforme Melo2, que esporte e cinema, na verdade estão entre as linguagens mais acessas no decorrer do século XX. O relacionamento destes vem desde o surgimento de ambos, sabendo-se que imagens de praticas corporais foram apresentadas nos primeiros mecanismos de exibição, já em fins do século XIX3. Tanto o esporte como o cinema necessitam ser valorizados enquanto objetos de reflexão e discussão historiográfica. O cinema merece ser mais e melhor estudado como fonte primária, devendo ser analisado sob uma ótica própria e não sofrendo com análises que tentam estudar o mesmo como um documento escrito comum. Ambas as práticas possuem um grau de penetrabilidade impressionante no decorrer do século XX, moldando muitas vezes o caráter do “homem moderno” e estipulando as formas de comportamento dentro de uma determinada sociedade. O esporte está profundamente enraizado no cotidiano das sociedades, e diversas vezes é utilizado como simulacro de inúmeros problemas, insatisfações, frustrações e sentimentos dos populares. Não é para menos que o cinema, ao longo do tempo, explorou e expos tanto este fenômeno sociocultural que é a prática esportiva, o uso do esporte pela cinematografia é realmente válido para aumentar ainda mais o grau de penetrabilidade da prática junto à sociedade e aumentar também o público alvo da ideia e da mensagem a serem transmitidas. Um bom meio de exemplificar a dimensão que o esporte possui no mundo contemporâneo é pensar que existem mais países ligados à Federação Internacional de

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MELO, V.A, SANTOS, J.M.M.C., FORTES, R., DRUMOND, M. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. 2 MELO, Victor Andrade. Cinema e Esportes: Diálogos. Revista Z Cultural, ano III, n.01, 2008. Disponível em: . Acessado em 25 de junho de 2014. 3 Como pode ser visto no livro: MELO, V.A, SANTOS, J.M.M.C., FORTES, R., DRUMOND, M. Meios de comunicação. In: Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. p.136.

Futebol (FIFA) e ao Comitê Olímpico Internacional (COI) do que à Organização das Nações Unidas (ONU).4 Mas infelizmente a história nas telas do cinema tem pouco reconhecimento entre os acadêmicos, o filme não possui essa legitimidade como fonte primária como já foi dito anteriormente. Uma proposta diferente desta será apresentada neste trabalho, entendendo o cinema como um agente histórico e sendo o mesmo formador de opiniões5. Será realizado um estudo referente à obra fílmica “Rocky IV” (1985), cujo diretor e roteirista é Sylvester Stallone. A obra pertence a uma sequência de filmes que contam a trajetória do boxeador norte-americano Rocky Balboa, interpretado em toda a série pelo próprio Sylvester Stallone. O esporte tratado aqui será o boxe6, curiosamente escolhido por ser um dos esportes mais representados pelas artes em geral7 e nos filmes de boxe, especialmente, as tensões e contrastes são claramente acentuados. Sendo assim, em um estudo onde a fonte primária é uma obra cinematográfica de ficção, é necessário afastar alguns pré-conceitos existentes quanto ao gênero visto que a “[...] mais fantasiosa obra cinematográfica de ficção carrega por trás de si ideologias, imaginários, relações de poder, padrões de cultura”8. A obra a ser trabalhada estreou nos cinemas norteamericanos em 1985 e para analisa-la deve ser assistida considerando o contexto de mundo bipolar da guerra fria e algumas concepções do âmbito esportivo. Ao se tentar definir um objetivo para este trabalho, chegou-se a conclusão de que seria o de discutir o filme Rocky IV como uma representação dos conflitos entre os blocos socialista e capitalista, observáveis no âmbito da Guerra Fria, notadamente a partir da emulação de uma prática esportiva (no caso o pugilismo) em uma obra cinematográfica. E realizar uma breve analise da relação destas duas artes da modernidade, o cinema e o esporte. O pugilismo, como dito anteriormente, é um dos esportes mais representados nas mais diversas expressões de arte na modernidade9 e perfeito para expressar os mais diversos assuntos possíveis no cinema. No caso de “Rocky IV” e no contexto em que a obra fílmica é

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MELO, Victor Andrade. Esporte, Propaganda e Publicidade no Rio de Janeiro da Transição dos séculos XIX e XX. Revista Brasileira de Ciência do Esporte, Campinas, v. 29, n.3. 2008; p. 26. 5 BARROS, José D’Assunção. Cinema e história – considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas. Comunicação & Sociedade, ano 32, n.55, 2011. 6 No decorrer do trabalho também será chamado de pugilismo. 7 MELO, Victor Andrade de; VAZ, Alexandre Fernandez. Cinema, Corpo e Boxe: Reflexões sobre suas relações e a questão da construção da masculinidade. In: Esporte e Cinema: novos olhares. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. 8 BARROS, José D’Assunção, op. cit, p.180. 9 MELO, Victor Andrade de; VAZ, Alexandre Fernandez. Cinema, Corpo e Boxe: Reflexões sobre suas relações e a questão da construção da masculinidade. In: Esporte e Cinema: novos olhares. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

lançada pode ser feito um paralelo com a relação externa agressiva do então presidente norteamericano Ronald Reagan, com o lançamento do filme de Sylvester Stallone. No decorrer do trabalho será exposto melhor as ideias sobre a relação da produção da película com os acontecimentos do mundo e as possíveis ligações entre as mesmas. O filme trata especificamente da luta entre o campeão de boxe profissional Rocky Balboa com o campeão de boxe amador e medalhista olímpico Ivan Drago e aborda a competição entre estes dois estilos do pugilismo, o amadorismo socialista contra o profissionalismo capitalista, além de expressar outros fatores presentes no contexto de mundo bipolar. A influência do “mundo externo” (o mundo real) no filme é evidente sendo até mesmo aspecto da luta ideológica expostos em falas de personagens como poderá ser visto no trabalho. Mesmo sendo uma obra ficcional, esta reflete a alteridade entre ideologias presente nas próprias sociedades dos blocos conflitantes. Para um historiador que pretende realizar um estudo sobre determinado tema referente ao cinema, deve existir sempre uma questão central10 consistindo então a pesquisa em questionar que imagem de sociedade está sendo refletida e se ela é uma expressão da realidade ou uma simples representação, e se houver representação qual seria o grau de manipulação da realidade efetuada. Isto demonstra a dificuldade e a complexidade do objeto a ser trabalhado, o cinema pode ser então considerado um documento histórico sem a menor ressalva visto que o mesmo pode ser usado como ferramenta para formação de opinião pública, influências no cotidiano, na mudança de hábitos da população ou mesmo impor discursos políticos, pontos de vista ou ideologias pelos próprios governos nas produções fílmicas11. Por isso na medida em que a obra cinematográfica articula-se com o contexto histórico e social do recorte temporal a qual se refere, passa a tornar-se um documento viável a uma pesquisa histórica. Seria muito produtivo se historiadores e acadêmicos que trabalham com o esporte deixassem o ceticismo quanto aos filmes de ficção de lado, já que os mesmos ao serem feitos expressam as questões sociais e culturais do contexto de mundo em que foram produzidos. Assim a mais fantasiosa produção fílmica, a mais ficcional delas, trás consigo uma série de ideologias, imagens e relações de poder daquele contexto, sendo possível realizar uma pesquisa histórica sobre qualquer obra cinematográfica. Basta ter um olhar mais minucioso para tal feito. 10

KORNIS, M.A. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.5, n. 10, 1992. 11 BARROS, José D’Assunção. Cinema e história – considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas. Comunicação & Sociedade, ano 32, n.55, 2011.

A obra escolhida para este estudo tem consigo uma carga de conteúdos enorme para aqueles que conseguem perceber as mensagens passadas pelo filme, mesmo as subliminares, é realmente fascinante analisar o objeto proposto e tentar concluir que a partir de uma obra cinematográfica pode-se refletir sobre determinada ideologia/doutrina ou forma de pensar vigente em parte do senso comum de uma sociedade e constatar também que o filme (e principalmente um filme referente a uma prática corporal) excede de fato o seu conteúdo, e mesmo no caso de “Rocky IV”, que mostra uma abordagem unilateral de um conflito ideológico. Assim o filme em questão pode ser olhado como um simulacro do embate ideológico entre as duas potências (Estados Unidos e União Soviética) através do esporte e sob a ótica norte-americana. Mas essa relação intima da História com o cinema passa a ser foco de estudo somente a partir das décadas de 1960-1970, na conjuntura da terceira geração dos annales, na reformulação da historiografia francesa e tendo como um dos pioneiros no tratamento do cinema como fonte histórica e desenvolvendo métodos e abordagens específicas para este tipo de fonte, Marc Ferro, e são esses métodos e abordagens que são usados neste estudo. Ferro pontua uma variedade de elementos que demonstram a importância do uso do cinema como documento ou fonte primária para uma pesquisa histórica e direcionando o caminho da análise do objeto ao campo da história psicossocial e com isso privilegiando campos de investigação relativamente novos como a história das mentalidades e o da história do imaginário12. Estabelece que a obra atua na imaginação e influencia no cotidiano e na “visão de mundo” dos cidadãos, concluindo então que o cinema mostra uma determinada visão de sociedade, visão de mundo, ideologia e etc. sendo então formador de opinião e não importando o gênero da obra, ficcional ou não, o filme expressa sempre uma possibilidade de realidade histórica. Assim a contribuição da fonte fílmica em uma pesquisa é a possibilidade de o historiador buscar o que existe de não-visível, uma vez que o filme excede seu próprio conteúdo13. Entendendo que o filme esclarece aspectos da realidade social que transcendem o objetivo do realizador da obra, ou seja, a obra passa a ser uma imagem, um reflexo de determinada característica ou ideologia presente na mente dos idealizadores e produtores da obra. No caso da fonte primária utilizada neste trabalho, o filme “Rocky IV” que trata de um esporte que é símbolo cultural norte-americano. Pode ser percebido diversas

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Ibidem. KORNIS, M.A. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.5, n. 10, 1992. 13

mensagens relativas ao momento histórico do momento do lançamento da obra, além de que se entende que a presença do pugilismo na cinematografia norte-americana tem relação com o próprio espaço ocupado pelo esporte no país14. Há pouco tempo o filme era definitivamente ignorado como documento, nem ao menos classificado como fonte por historiadores. De fato o que se pode entender da relação do historiador com sua fonte é instável e sofre transformações visto que “[...] o historiador escolheu tal conjunto de fontes, adotou tal método; mudou como um combatente muda de arma e de tática quando as que usava até aquele momento perderam sua eficácia.15” Neste trabalhado o debate será dividido em dois capítulos que apesar de serem diferentes são ao mesmo tempo interligados. No primeiro capítulo irá ser discutida a relação primária entre estas duas artes da modernidade aqui apresentadas, o esporte e o cinema, e os usos cinematográficos do esporte e como a união dos mesmos foi benéfica para ambos. No segundo capítulo será feito uma análise mais criteriosa do filme-objeto em questão, debatendo a obra “Rocky IV” de Sylvester Stallone com o contexto histórico em que foi produzida, entendendo a guerra fria como pano de fundo e percebendo de forma mais substancial o relacionamento do cinema com o esporte estudado no capítulo primeiro. Conclui-se então que a maior contribuição, do ponto de vista metodológico, para esta investigação histórica é permitir ao pesquisador notar o não-visível16 e entender que as possibilidades de fontes relativas ao cinema não terminam na obra final que é o filme propriamente dito. E em relação ao esporte, por esse ser a forma como o conflito ideológico, político e cultural das duas potências é simulado.

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MELO, Victor Andrade de; VAZ, Alexandre Fernandez. Cinema, Corpo e Boxe: Reflexões sobre suas relações e a questão da construção da masculinidade. In: Esporte e Cinema: novos olhares. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. 15 FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2a edição, 2010. 16 Idem.

1 – História, Cinema e Esporte: possibilidades, relações e debates De início é importante estabelecer que os filmes podem apresentar mensagens de cunho político-ideológico sendo que estas podem ser involuntárias e a utilização do cinema como fonte primária na historiografia é ainda relativamente recente e encontra certos problemas na questão metodológica. Apesar de na atualidade o cinema ser uma ferramenta cultural quase inquestionável em seu primeiro período após a sua invenção era desprezado em relação ao aspecto cultural, para os intelectuais contemporâneos de seu surgimento este era uma “atração de feira”. Mas é inegável que ao longo do século XX e entrando já no século XXI o cinema vêm estabelecendo uma linguagem própria e não se pode ignorar o impacto provocado pela criação e difusão do cinema para a massa da sociedade do século XX17. Contudo somente a partir da década de 1960 que o filme passou a ser visto como possível documento histórico e para este tipo de trabalho essa afirmação é vital pois o historiador francês Marc Ferro em seu trabalho estabelece que para uma reflexão qualitativa das relações entre cinema e História, estabelecer que todo filme é um documento deve ser o ponto de partida. Para Ferro essa demora de mais de 60 anos em finalmente enxergar o cinema como fonte se deve à própria história da historiografia18, ora até então os documentos de cunho oficial que possuíam prestígio na comunidade acadêmica. Desde meados do século XIX, quando a disciplina História estava se constituindo enquanto ciência era a fala do Estado e as ramificações dele que eram relevantes para a corrente filosófica adotada naquele momento (positivismo). Mesmo com a mudança de perspectiva historiográfica proporcionada pela historiografia francesa (a “escola dos annales”) os objetos enquanto fontes não se variaram, somente a partir da perspectiva historiográfica denominada de “Nova História” que houve uma ampliação e inserção de novos métodos e objetos ao fazer historiográfico e só então a iconografia aparece como fonte ascendente. Esta renovação destituiu a fonte escrita de seu domínio incontestável como fonte primária, as obras cinematográficas agora seriam observadas como um novo objeto, uma nova possibilidade de fonte histórica. Mas não se pode achar que o processo foi tão simples a tal ponto, por muito tempo os historiadores se mantiveram receosos quanto ao uso do filme como fonte. 17

KORNIS, M.A. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V.5, n.10. 1992. 18 PEREIRA, Wagner Pinheiro. O Poder das Imagens – Cinema e Política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt (1933-1945). São Paulo: Alameda, 2012.

Essa desconfiança se deve principalmente pelo fracasso em se tentar trabalhar o filme ou qualquer outra fonte não-escrita com os mesmos métodos das fontes escritas tradicionais, por isso o processo renovador da “Historia Nova” instituiu também o trato dos documentos de acordo com suas reflexões específicas. Sendo assim pode ser notado e pontuado que a verdadeira inovação foi de fato no modo de se relacionar o escrito e a imagem. Essa era a ideia de Ferro, que foi o primeiro a teorizar a relação da História com o cinema, a sua obra prioriza um olhar político e ideológico sobre os filmes19, ao analisar sua obra entendemos que o cinema só pode ser compreendido através de uma linguagem específica e saber isto é vital para não acarretar problemáticas metodológicas, ou seja, não analisar o filme como fonte escrita. Assim analisar uma obra fílmica não é tarefa fácil de forma alguma, principalmente pelo fato de se necessitar um método próprio de análise. Na atualidade os historiadores estão mais suscetíveis ao uso do filme como documento e por isso há diversas maneiras de fazer uso deste tipo de fonte. Outros historiadores também teorizaram sobre o uso dos filmes mas para a execução deste trabalho foi escolhido a obra de Marc Ferro como o ponto de partida metodológico para se analisar a relação do cinema com a História e o estudo dos usos cinematográficos de uma prática corporal em determinado contexto político. Entre os outros historiadores que teorizam sobre o uso dos filmes como fontes primárias para trabalhos historiográficos podemos citar R.A. Rosenstone e sua obra20. Diferentemente de Ferro, o historiador Rosenstone conclui que os cineastas são historiadores e que suas produções são discursos históricos na integra, tal como o é o discurso de um historiador. Ferro, por outro lado, expõe que obras cinematográficas devem ser observadas como documentos históricos e que precisam ser analisados com o rigor de uma pesquisa histórica já que por si só o documento não nos mostra nada, apenas quando o é problematizado no decorrer do fazer historiográfico que este pode então chegar a um discurso histórico de fato. A imagem em si não ilustra e nem reproduz a realidade tal como ela é, ela reconstrói a realidade com uma linguagem própria a partir de um dado contexto histórico. Por isso se deve desestruturar o filme para então analisar as condições em que foram produzidos tais documentos, assim não existe o documento uno e perfeito e o filme só pode ser considerado um documento válido para a pesquisa histórica quando articula o mesmo ao

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CHEVITARESE, André Leonardo. Jesus no Cinema. Um balanço histórico e cinematográfico entre 1905 e 1927. Rio de Janeiro: Kline Editora, 2013. 20 ROSENSTONE, R.A. A História nos filmes. Os filmes na História. São Paulo: Paz e Terra. 2010.

contexto histórico e social que o produziu um conjunto de elementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica21, deste modo o cinema pode ser estudado como fonte. E para Marc Ferro o filme se constitui em um documento para análise das sociedades, mostra aspectos da realidade que vão além do objetivo do realizador da obra e por trás das imagens podemos analisar uma determinada sociedade, pois a obra está carregada de elementos intrínsecos ao contexto histórico e social que a produziu. Este argumento é útil para quebrar o mito da não interferência do homem no cinema, pois há ainda a ilusão de que a câmera é apenas uma máquina e dela não poderiam vir tais elementos influenciadores22. Ora a câmera é controlada por alguém que por seguinte está sob ordens de mais alguém que é chefiado por mais alguém até chegarmos aos diretores e produtores da obra e todos tem seus olhares condicionados pela época que vivem (pelo contexto histórico). Vale lembrar uma frase que já se tornou um ditado entre os historiadores: “Um homem se parece mais com seu tempo do que com seus pais.”. Esta dificuldade de se controlar a produção de uma obra cinematográfica faz de um filme uma representação privilegiada da história. Como o contexto histórico em que se destina este trabalho é o período denominado de Guerra Fria, uma obra fílmica traz a tona elementos que viabilizam uma análise de seu contexto. Sendo claro então que para se analisar as relações entre cinema e História deve-se pensar a partir das dicotomias História/Contra-História, conteúdos aparentes (latentes, visíveis) e conteúdos não visíveis. Assim poderá ser feito como Marc Ferro comenta em suas obras, uma contra-análise da sociedade. Um filme seja ele de qualquer gênero produz suas próprias tensões e em todos os casos são agentes da história, pois está sempre sujeito às dimensões sociais e culturais, independente da vontade de seus produtores. Não importando o gênero, documentários, filmes ficcionais ou de reconstituição histórica têm o mesmo valor para o historiador devido ao fato que tanto o “real” como o “imaginário” são de alguma forma história e excedem as pretensões de seus realizadores. De forma que mesmo uma obra ficcional expressa à possibilidade de uma realidade e entende-se que a mais fantástica das obras cinematográficas de ficção traz consigo

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KORNIS, M.A. História e Cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V.5, n.10. p.239. 1992. 22 PEREIRA, Wagner Pinheiro. O Poder das Imagens – Cinema e Política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt (1933-1945).São Paulo: Alameda, 2012. P.28.

inúmeras ideologias, imaginários, relações de poder e padrões de cultura23. Expondo então as dimensões sociais e culturais o cinema é História mesmo quando seu conteúdo não trata a realidade como realmente a vemos24, mesmo quando estabelece apenas uma possibilidade da realidade no caso dos filmes ficcionais. Não importa se é um documentário, uma obra de ficção científica ou realidade alternativa, o filme poderá ser analisado sempre como sendo um produto histórico que permita certa leitura da História. E aquele que analisa a fonte fílmica deve estar ainda mais atento que um historiador que utiliza fontes escritas, não somente pelo aspecto metodológico que é de suma importância e já foi citado neste texto anteriormente, mas também na identificação tanto do intencional como do não intencional e que ambos são objetos de sua pesquisa. Sendo a análise do visível e do não visível, da histórica e da contra-história um esboço da parceria destinada entre História e cinema e da infinidade de possibilidades que a relação destes pode ocasionar.

1.1 - História, Cinema e Esporte: possibilidades Como vimos o cinema em seu surgimento enquanto obra cultural sofreu um forte preconceito pelos intelectuais de sua época, justamente por ser classificado como uma “diversão para acéfalos”. Do mesmo modo outra prática que também seria considerada símbolo da modernidade ou do ideário do homem moderno também foi e ainda é (por certos segmentos sociais) considerado um prazer das classes mais baixas. As práticas corporais institucionalizadas, o esporte como conhecemos, teve seu nascimento quase na mesma época em que o cinema dava seus primeiros passos. Entende-se aqui que o “Esporte” surge apenas em meados do século XIX25, pois apenas então se teria um conjunto de fatores que propiciariam o que Bourdieu denomina “campo esportivo”. Este conceito é preparado para esclarecer que somente a partir de meados do período oitocentista as práticas corporais se tornam institucionalizadas, regulamentadas até certo ponto e a partir daí toda determinada prática possui um público certo, um público alvo e tendo portanto uma demanda e um espaço de lógica própria sendo colocado em relação direta com os aspectos econômicos e sociais da sociedade relacionada.

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BARROS, José D’Assunção. Cinema e história – considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas. Comunicação & Sociedade, ano 32, N.55, p.180. 24 Documentários são exemplos dos gêneros cinematográficos entendidos como os que expõe a “realidade”, porém que fique claro que mesmo um documentário expõe apenas a visão do câmara, do diretor, dos produtores e de quem encomendou a obra e portanto é reflexo de uma determinada visão de mundo e visualiza uma também determinada visão de mundo. 25 A partir da interpretação do texto de Pierre Bourdieu “Como é possível ser esportivo?”

Entra-se então em contraponto com estudos e discursos que nomeiam práticas corporais da antiguidade ou de outros contextos históricos como esportes, onde tais práticas não possuíam o conjunto de fatores que favorecem a formação do “campo esportivo” e além de tudo possuíam funções na sociedade diferentes das quais as práticas corporais institucionalizadas do século XIX teriam. A constituição do esporte enquanto campo de lazer nos oitocentos se deve a ideia de homem moderno e de modernidade onde uma carga de ideologia higienizante surge e traz para a sociedade de fins do XIX e início do XX26 algo que seria então comum, a preocupação com o bem-estar físico e o uso de certas práticas esportivas para alcançar esta meta. É claro que nem todas as práticas corporais eram necessariamente observadas de forma positiva pelas elites e classes dominantes, havia esportes de ricos e brancos e esportes de pobres e negros. Por exemplo, o remo, a corrida de cavalos, o cricket e as caminhadas eram atividades bem vistas pelas elites, mas neste momento de transição para o século XX, o futebol que hoje é o esporte mais popular do mundo não possuía grande popularidade entre as pessoas das classes dominantes. Até que entra no gosto dessa parcela da população e a mesma passa a querer elitizar este esporte mas isso é assunto para outro momento. Em meio a várias teorias higienizantes e eugênicas, o esporte foi uma prática bem aceita pela sociedade do período, contudo até os dias atuais certos intelectuais possuem a ideia retrógrada e preconceituosa de quem gosta ou pratica esporte faz parte de um grupo alienado politicamente e ignorante na questão educacional. Cinema e o esporte devem ser estudados e compreendidos a partir do contexto histórico, social e cultural de fins do século XIX e início do XX, onde se destacam as vivências em público do lazer, onde ocorre uma crescente preocupação com o público e com o próprio corpo. As duas artes são poderosos simulacros da ideia do que era concebido como modernidade. Como o cinema, o esporte é um fenômeno típico da modernidade e ambos se relacionam há muito tempo, imagens de práticas corporais foram representadas nos primeiros equipamentos de exibição de imagens e boa parte das inovações técnicas pelas quais o cinema percorreu foi devido à necessidade de melhor capturar e exibir os movimentos e os espetáculos das práticas esportivas. Fica-se entendido então que tanto o cinema como o esporte são magnificas artes da modernidade e ambas possibilitam uma infinidade de possibilidades quanto ao uso de 26

MELO, V.A, SANTOS, J.M.M.C., FORTES, R., DRUMOND, M. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.

obras cinematográficas e o tanto que estas podem contribuir como fontes históricas para aumentar, identificar e ampliar olhares e estudos sobre as mais variadas práticas corporais. Neste trabalho, por exemplo, por analisar uma obra cujo esporte abordado e encenado é o pugilismo pode possibilitar uma forma diferente de observar esta prática corporal tão utilizada pela cinematografia. Mas da mesma forma que as artes cênicas e a literatura ou qualquer outra expressão artística, o cinema quando produz alguma forma de interação com o esporte ou gera a representação de uma determinada prática, deve ser compreendido nos seus próprios meios como já afirmado anteriormente quando a questão tratava-se da relação exclusiva e geral de História e cinema. Por abordar um esporte que possa suscitar uma discussão historiográfica do mesmo não se anula a forma de análise de acordo com a fonte primária utilizada. Para reiterar a importância destas duas práticas basta recordarmos e refletirmos por um breve momento o espaço que tanto o filme como a prática esportiva ocupam no cotidiano da população em todo o globo, neste mundo globalizado em que vivemos é quase impossível se achar algum local que não haja certo esporte que esteja presente no dia-a-dia das pessoas. Mesmo aquelas pessoas que dizem não gostar de esportes por seja lá qual for o motivo são obrigadas a visualizar em todos os meios de comunicação as notícias, manchetes, imagens e todo e qualquer tipo de informações relativas aos esportes, até a publicidade visto que muitos atletas estrelam hoje comerciais de todos os tipos27. Quando se trata do grau de penetrabilidade das práticas esportivas no cotidiano dos indivíduos é sempre bom lembrar há mais países filiados à FIFA e ao COI que à ONU e por isso não é de tal modo surpreendente que tantos filmes tenham sido produzidos tendo o esporte

como

tema

e

ambos

também

expressam

representações,

princípios

e

sentidos/significados28 fundamentais para a sociedade de todo o século XX. Cinema e esporte constituem-se em verdadeiros simuladores da realidade e embora suas representações não estejam de acordo com o real de fato, por estar expondo uma ficção, não se pode negar a força que as imagens possuem em um mundo onde se parecer com algo se tornou tão importante. No filme Rocky IV, que aqui é analisado, o boxe (prática corporal utilizada no filme) não foi escolhido a esmo, este esporte é um dos vários símbolos culturais norte-americanos ao lado do beisebol, do basquete, do futebol americano, do hóquei, do wrestling29 e por isso há uma identificação direta com o público ao se ter esta prática

27

MELO, V.A, SANTOS, J.M.M.C., FORTES, R., DRUMOND, M. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. 28 MELO, Victor Andrade de. Cinema e esporte: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano/Faperj, 2006. 29 Arte marcial semelhante à luta olímpica variando-se apenas em algumas regras, muito comum nos EUA.

corporal no filme. Alias a relação do boxe com o cinema é de longa data, porém mais para frente retornemos a este assunto. São várias as maneiras que o Homem utiliza para se relacionar com o passado, geralmente os historiadores procuram utilizar as fontes escritas (jornais, revistas, documentos oficiais e etc) pelo fato dessas atribuírem simbolicamente uma determinada “credibilidade” fictícia ao texto ou a produção acadêmica. Por mais relevantes que sejam os documentos escritos e possuem evidentemente uma importância enorme para o fazer historiográfico, os historiadores do esporte só teriam a ganhar se começassem a atribuir importância a representações do passado que incluam aspectos culturais visuais30. Quando se fala em cultura visual, trata-se de trabalhos que investiguem filmes no geral e os utilizem para obter uma contra-história da sociedade analisada a partir da emulação de práticas corporais em obras fílmicas. Não excluindo por tabela outras manifestações culturais diferentes da sétima arte, como a fotografia, as artes plásticas e a própria cultura material. Mesmo os filmes não possuindo ainda ou não sendo atribuída a eles ainda a “credibilidade” enquanto fonte primária que as fontes escritas desfrutam, essa concepção está mudando aos poucos. Hoje a quantidade de trabalhos acadêmicos que fazem uso de obras cinematográficas como fonte é enorme, mas apesar de ser crescente a produção que faz uso de filmes como fonte primária, nem todos os filmes possuem a mesma legitimidade como dito anteriormente. É comum que haja um desprezo aos filmes que priorizem o entretenimento em relação ao real mesmo que o método de análise seja a qual o pesquisador estuda a sociedade produtora a partir da obra31, onde não se importaria a tipologia do filme (seja de ficção, documentário, entretenimento ou pseudo-intelectual), ora já se ficou entendido que sendo de ficção, entretenimento ou qualquer gênero fílmico que seja a metodologia de análise não se altera e estes não devem ser avaliados sob a ótica das fontes escritas, os filmes violam as normas da história escrita32 e o uso destes para uma pesquisa historiográfica cujo aporte teórico esteja na História do Esporte é de grande valor. Tanto a História escrita como a História filmada (o cinema) têm maneiras próprias e legítimas de produzir um determinado estudo do passado, mas: [...] o cinema, com seu amplo leque de opções criativas, tem a habilidade de engajar a audiência em um nível profundo de emoção e imaginação, facilitando o estabelecimento de uma conexão 30

PHILLIPS, Murray G.; O’NEILL, Mark E.; OSMOND, Gary. Expandindo horizontes na História do Esporte: filmes, fotografias e monumentos. Recorde: Revista de História do Esporte, volume 3, número 2, dezembro de 2010. 31 Metodologia concebida como “contra-análise” da sociedade e explicitada por Marc Ferro. 32 Ibidem.

singular com o passado. As diferenças em relação à história escrita são notáveis.33 A História do esporte, no entanto, tem feito uso do cinema e de outras formas de cultura visual como representações menores do passado. Representações em que não se observa uma análise critica séria e isso exclui uma variedade de possibilidades das relações entre o filme, o esporte e a História.

33

Idem.

2 – Cinema e Esporte na Guerra Fria: análise do filme Rocky IV Depois de notar a dimensão proporcionada pelo estudo historiográfico do cinema e do esporte e as possibilidades que a relação destas três áreas proporcionam seguiremos então neste estudo ao objeto de fato (o filme Rocky IV de Sylvester Stallone, 1985) e como o mesmo pode possibilitar o estudo de um determinado contexto histórico e a partir de uma prática corporal emulada em obra cinematográfica podemos traçar uma analogia deste como um simulacro dos eventos do contexto histórico em questão. Em principio vamos tratar deste contexto histórico específico, o período denominado de guerra fria. Com o fim da Segunda Grande Guerra o mundo foi dividido em dois grandes blocos políticos e militares, blocos estes antagônicos e que caracterizaram a divisão bipolar do poder mundial. Os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) saíram da Segunda Guerra Mundial como as duas maiores potencias do globo, os EUA pode-se dizer que no pós-guerra se tornou a maior potência econômica e a URSS seria a maior potência militar34 se não fosse a tecnologia militar norte-americana. Finda a Segunda Guerra (e antes mesmo de a mesma acabar) os lideres dos Aliados organizaram uma série de acordos e conferências35 que definiram o rumo do equilíbrio de poder mundial no pós-guerra, o mundo seria dividido em dois polos de influência. De um extremo ficou o bloco socialista comandado pela URSS e no outro extremo se posicionou o lado capitalista onde os Estados Unidos exerciam a liderança 36. Os dois blocos exibiram na segunda metade do século XX uma disputa ideologia, estratégica e armamentista que ditou o ritmo da política e da economia em todo o mundo. Em relação ao pós-guerra podemos argumentar que os EUA tiveram uma significativa vantagem na questão de prejuízos com a guerra, a URSS teve um maior custo de vidas e bens perdidos durante o conflito visto que mais de 20 milhões de mortos e a destruição de boa parte de seus complexos industriais. Os norte-americanos, no entanto, tiveram a vantagem geográfica ao seu lado e seu território continental manteve a tradição de não ter sido atacado por força externa até então, sem sofrer perdas de dimensões sequer semelhantes as da União Soviética ou a própria Europa como um todo.

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O contingente militar terrestre do exército vermelho era o maior visto até então pela humanidade e o grande mérito por derrotar a Alemanha nazista foi da URSS que avançou pelo front oriental da guerra na Europa. 35 Podemos citar aqui a fim de conhecimento a Conferência de Teerã (1943), Conferência de Yalta (1945) e Conferência de Potsdam (1945). 36 SIGOLI, M.A.; DE ROSE JR., D. A história do uso político do esporte. R.bras. Ci e Mov. 2004.

Outro fator decisivo para os Estados Unidos “largarem na frente” na Guerra Fria se constitui no monopólio nuclear norte-americano. Ao arrasar as cidades de Hiroshima e Nagasaki com duas bombas atômicas em um contexto de eminente derrota japonesa uma mensagem parecia estar sendo transmitida para o mundo e principalmente à URSS, possivelmente uma espécie de intimidação. Além do conflito inerente à ideologia política antagônica há uma longa lista de interesses conflitantes entre EUA e URSS e a Guerra Fria foi basicamente o fenômeno em que estes interesses conflitantes determinaram grande parte das relações mundiais do pós-1945 até 1889/1991 onde temos a queda do Muro de Berlim em 1989 (símbolo da bipolaridade mundial) e a dissociação e fragmentação da URSS em 1991. A queda do Muro de Berlim pode ser compreendida como o fim simbólico da guerra fria e em 1991 o fim definitivo. A terminologia “Guerra Fria” é excelente para entender este momento político internacional, pois não havia de fato guerra militar direta entre as superpotências, o que justifica a expressão. Mas deve ficar clara que apesar de as duas potências hegemônicas não terem se enfrentado diretamente este período da História mundial não foi nada frio e é difícil pensar em algum momento destes 45 anos em que não houve algum conflito bélico que não contou com participação direta ou indireta tanto de norte-americanos como soviéticos em alguma parte do globo. Com o fim da Segunda Grande Guerra os vencedores não entram em pleno acordo quanto aos “espólios”, e o território alemão que era uma das áreas mais disputadas pelos Aliados é dividido em quatro zonas onde uma estaria sobre administração estadunidense, outra francesa, outra inglesa e outra soviética. Os países do leste europeu e que foram libertados dos alemães pelo exército vermelho continuaram a ter o exército vermelho em seu território e o Politburo definiu os rumos políticos destes, aliando-os a sua zona de influência. Desta forma uma “cortina de ferro desceu sobre a Europa” segundo palavras de Churchill, o primeiro-ministro inglês. Apenas em 1961 quando já se tivera a formação e separação da Alemanha em duas, a Alemanha Ocidental (sob influência norte-americana) e a Alemanha Oriental (sob influência soviética), é que se ocorre à construção do famigerado Muro de Berlim para evitar que alemães do lado oriental passem para o outro lado em busca de melhores condições de vida. Assim é preciso pensar que o período denominado de Guerra Fria não é homogêneo em toda a sua duração. Os 45 anos que vão desde o lançamento das bombas atômicas pelos Estados Unidos até o fim da União Soviética pode ser dividido em pelo menos

dois períodos, mas o contexto internacional de constante conflito entre as superpotências foi reunido sob um padrão único37. Vamos começar a falar um pouco da chamada “Guerra Fria clássica” que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até entorno de 1961. Vale ressaltar que gerações inteiras nasceram, cresceram e até morreram acreditando estar (e realmente estavam) sob constante ameaça nuclear e uma preeminente guerra que poderia estourar a qualquer momento e que levaria a humanidade a sua provável extinção. Para alguns estudiosos durante décadas este foi o grande impedimento de ambas as potências se enfrentarem diretamente, o conhecimento de que uma guerra nuclear teria como consequência uma destruição mútua inevitável38. Logo após o fim da Segunda Grande Guerra a Europa estava arrasada por completo e nos EUA uma quase cruzada contra o comunismo internacional foi posta em prática pela conhecida Doutrina Truman e um dos primeiros atos seria impedir o avanço soviético nos países da Europa Ocidental39. Para isso foi estabelecido o também conhecido Plano Marshal que era um plano de ajuda econômica com a finalidade de auxiliar na reconstrução do pós-guerra e assegurar a influência norte-americana nos países do lado ocidental da “cortina de ferro”. A URSS estava sobre o Stalinismo neste mesmo momento e a vigilância constante do Estado, os campos de concentração e a repressão e total expurgação da oposição política eram marcas deste período. Em ambos os blocos são criados organizações e alianças políticomilitares para assim estabelecer alianças caso qualquer país de um bloco seja atacado, no lado capitalista há a criação da OTAN e logo em seguida a URSS e os países do leste europeu estabelecem o Pacto de Varsóvia. Em 1949 e contrariando todas as expectativas dos norte-americanos, a União Soviética obtém a temida tecnologia nuclear. Nesse mesmo ano há uma enorme ampliação do mundo comunista, na China o partido de Mao Tse-tung vence a guerra civil e o fato de a China ter se tornado comunista surpreende os próprios soviéticos. Como não se tem a premissa de expor aqui uma minuciosa explicação da Guerra Fria, apenas alguns fatos pontuais estão sendo apontados para uma elucidação maior do contexto. Seguindo assim temos uma guerra onde os EUA intervém diretamente e a China aparece como auxiliadora do lado comunista, trata-se da Guerra da Coréia (1950-1953) nesta 37

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O breve século XX - 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras. 1995, p.223. 38 Em inglês a expressão se apresenta sob a sigla MAD (Mutually Assured Destruction). 39 Nos países Europa Oriental os soviéticos com o exército vermelho haviam se fixado após a libertação destes países das mãos dos nazistas.

guerra assim como em outras nenhuma das superpotências admite que suas respectivas tropas tenham entrado em conflito direto. No ano do fim deste conflito outro divisor de águas no período da bipolarização mundial é a morte do ditador Stalin e as seguidas denúncias ao Stalinismo feitas no Comitê Central do Partido Comunista nos anos seguintes. Até este momento e até o fim da década de 1960 a URSS sempre esteve atrás dos Estados Unidos no quesito de arsenal nuclear, mas a corrida pela “conquista do espaço” acirrava um pouco os ânimos já que disputar áreas de influência somente em terra não bastava mais. Ainda no ano de 1959 uma revolução em Cuba substitui o ditador de direita Fulgêncio Baptista que comandava o país caribenho e era aliado dos norte-americanos por Fidel Castro que instaura uma ditadura de esquerda com ajuda econômica da União Soviética. Obviamente isto despertou uma enorme preocupação para a Casa Branca, Cuba estava há alguns poucos quilômetros de sua costa e também não poderiam tolerar que em seu próprio “quintal” houvesse um governo de cunho comunista. Logo os EUA auxiliaram e organizaram dando treinamento e armas aos refugiados cubanos que fugiram de Fidel Castro a retornarem e retomarem Cuba, a invasão à baia dos porcos ocorrida em 1961 não deu certo e não surtiu efeito positivo na aprovação do povo ao governo do então presidente Kennedy. O posicionamento de Cuba durante toda a Guerra Fria e mesmo após seu término mereceria um estudo a parte, por isso mesmo não argumentarei aqui sobre a crise dos mísseis de 1962 mas friso que este momento em todos os mais de quarenta anos da bipolaridade entre americanos e soviéticos foi o que representou um maior perigo de guerra nuclear de fato e direta entre as superpotências. Neste momento do trabalho vale recordar que a Guerra Fria não foi apenas uma rivalidade geopolítica ou uma corrida pelo poderio nuclear, estava em debate algo tão relevante quanto à sobrevivência da espécie humana e como organizar melhor a sociedade humana40 e a guerra se pensaria possível enquanto solução ou resultado através da irresponsabilidade de uma minoria dirigente. Para o sistema capitalista a chamada corrida armamentista seria benéfica, visto que o meio capitalista é incentivado pela procura do lucro e de novas formas de investimento e exploração, de certo que para o socialismo é indesejável esta carga de competição pois

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GADDIS, John Lewis. História da Guerra Fria. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.80.

acaba desviando os recursos da sociedade41 e em boa parte do período de Guerra Fria a URSS dispunha quase todos os seus recursos para a indústria bélica. Sendo isto exposto, pode ser pensado então quais eram as elites dirigentes em ambos os blocos antagônicos e quais os interesses das mesmas, seriam elas favorecidas com este clima de constante tensão? Ou realmente um bloco não poderia coexistir com o outro? São questões essas a serem pensadas, pois na própria historiografia há dois modos de observar a bipolaridade do período. Além da Guerra da Coréia, já comentada, neste período histórico uma série de conflitos ocorreram em todo o mundo que deixaram bem claro que de “fria” a guerra nada tinha e é difícil ou praticamente impossível localizar um ano em que não estivesse havendo algum conflito em uma parte do globo. A Guerra do Vietnã possui destaque assim como a da Coréia quando se estuda a Guerra Fria, porém o conflito no Vietnã possui a peculiaridade de ter sido o primeiro conflito bélico real a ser televisionado e devido à brutalidade da mesma uma onda de protestos ocorreu paralelamente a este. Bom, como este trabalho é destinado ao debate historiográfico do Esporte e do boxe mais precisamente vale mencionar um episódio no mínimo interessante na década de 1960 nos Estados Unidos. O boxeador negro norte-americano Cassius Clay que após se converter ao Islã passou a se chamar Muhammad Ali era um pugilista comprometido com a causa dos movimentos pelos direitos civis dos negros americanos, amigo do ideólogo e também muçulmano Malcon X. Muhammad Ali havia se tornado campeão mundial de boxe dos pesos pesados de maneira convincente e espantosa, com um estilo único e peculiar de boxear (muitos até o presente tentam imitá-lo). Resumindo a anedota, quando começa o alistamento obrigatório devido a Guerra do Vietnã o pugilista é convocado, mas se recusa a entrar para as forças armadas. Ao ser questionado em uma entrevista sobre o motivo da recusa Ali responde com a famosa frase imortalizada por ele: “Nenhum vietcong me chamou de criolo” e argumentando que não tinha nada contra aquele país e ressaltando sua posição quanto as políticas raciais de seu país, os Estados Unidos que ainda mantinham uma política de segregação sobre a população negra norte-americana.

41

THOMPSON, Edward. Notas sobre o exterminismo, o estágio final da civilização. In: Exterminismo e Guerra Fria. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p.18.

Figura 01 - Boxeador Muhammad Ali.

Ele poderia ter sido preso por vários motivos, mas sua punição foi mais severa, foi obrigado a pagar uma multa que na época se tratava de uma alta quantia e perdeu o seu título de campeão, sendo proibido de lutar boxe. Somente anos mais tarde poderia voltar a lutar plenamente. Com isso a partir de meados dos anos 1960 entra-se na chamada 2a fase da guerra fria, conhecida como détente ou afrouxamento da tensão entre EUA e URSS, afrouxamento este entre as superpotências apenas não entre os blocos antagônicos, alguns fatos dentro desse período merecem certo destaque, porém apenas serão pontuados aqui por não ser o objetivo deste trabalho. A crise do petróleo em 1973, o escândalo de Watergate envolvendo o presidente norte-americano Richard Nixon, a humilhante retirada das tropas americanas do Vietnã fazem parte de um complexo contexto que traz para a presidência norte-americana Ronald Reagan em 1981. Reagan é o presidente dos Estados Unidos quando o filme Rocky IV, objeto deste estudo, é lançado nos cinemas em 1985. Curiosamente ou não Reagan foi o primeiro ator profissional a se tornar presidente dos Estados Unidos e acreditava muito no poder que o cinema poderia proporcionar como instrumento da política do Estado seja ela direta ou indireta. A política de Ronald Reagan, eleito em 1980, deve ser entendida como uma tentativa de varrer a mancha da humilhação sentida durante a détente e demonstrar uma

inquestionável supremacia e invulnerabilidade vinda dos EUA42. Para isso observa-se então uma verdadeira cruzada contra o “império do mal” onde os investimentos norte-americanos na indústria bélica ampliam-se de forma assustadora. Antes de entrar especificamente no período de Reagan como chefe da nação norte-americana e os desdobramentos que isto acarretará é bom recordar que este estudo não tem a guerra fria como objeto de pesquisa propriamente, esta é o recorte histórico onde o objeto está inserido e por isso se faz necessário à apresentação do contexto do mesmo.

2.1 - O cinema na Guerra Fria. A guerra fria apesar de não haver destruído civilizações ou dizimado populações foi uma disputa entre ideologias por riqueza e poder que durou mais de 40 anos, determinando grande parte das questões mundiais do pós Segunda Grande Guerra até 1989. O cinema, uma arte típica da modernidade e símbolo de civilidade percorreu ao longo do século XX um árduo caminho para ser reconhecido em todas as suas potencialidades pelas sociedades contemporâneas e seus respectivos governos também. Tão logo a relação do cinema com a política se estreitou, sendo então usado por diferentes governos e regimes como instrumento de propaganda e ferramenta política. Seja na Alemanha Nazista de Hitler, na Itália Fascista de Mussolini ou nos Estados Unidos de Roosevelt a cinematografia teria um papel destacado nas políticas governamentais e com razões claras, pois o impacto impulsionado pelo cinema nas mentes e no auxilio da construção ideológica era e é formidável. É possível afirmar que o cinema foi peça fundamental para moldar o século XX e após a Segunda Guerra Mundial as duas superpotências que se ergueram também fizeram uso desta importante ferramenta de propaganda. Como aqui estudamos um filme norte-americano como o objeto central é por isso válido enfatizar o uso do cinema nesta superpotência em especial. Mas reiterando que tanto EUA como a URSS buscavam através de filmes projetar um imaginário nas suas respectivas populações e porque não dizer em suas “zonas de influência”. A indústria cultural possuiu um papel de relevância quanto a isso, pois por meio dela foi possível condicionar43 e modelar as

42

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O breve século XX - 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras. 1995, p.244. 43 KIESEL, Felipe de Almeida. Rivalidade esportiva EUAxURSS no contexto da Guerra Fria: análise fílmica da obra “Desafio no gelo”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011, p.2.

ideologias pessoais e o próprio cotidiano da sociedade visto que ele trata não apenas da imaginação, mas do imaginário em si. Neste período de tempo denominado de Guerra Fria a cinematografia norteamericana produziu diversos filmes em cuja temática principal ou secundária foi justamente o embate (seja em qualquer instância) dos “frios e insensíveis” soviéticos com (na maioria das vezes) os salvadores e bondosos norte-americanos. Há uma lista imensa destes filmes e podemos citar aqui os filmes do famoso espião inglês James Bond, o 007 dos filmes de ação. A trilogia “Rambo” do ator Sylvester Stallone nos anos 1980 que se passa em um dos mais famosos e emblemáticos conflitos deste período, a Guerra do Vietnã. Uma particularidade destes filmes estadunidenses assim como visto também em “Rocky IV” é a caracterização dos soviéticos enquanto personagens. Sempre frios e sem expressões faciais tratando assim de mostrar uma visão de alteridade, a visão do soviético sob a ótica norte-americana. Este tipo de estereótipo foi reproduzido em várias películas claramente com a tentativa de fixar que os comunistas são “maus”, são “inumanos” e insensíveis. Um meio de informar e doutrinar o povo de que eles são diferentes nós, daí a alteridade vigente na apresentação do soviético.

Figura 02 - Cena do filme "Moscou contra 007" (1967)

Sabendo-se que não houve um confronto direto entre EUA e URSS se pode então perceber que durante este contexto histórico houve uma constante batalha de símbolos e o cinema foi fundamental para as máquinas políticas-propagandísticas, em resumo, para o aparelho estatal dos blocos antagônicos.

Além dos filmes relacionados à espionagem e a “guerra secreta” entre os serviços secretos de ambos os blocos percebe-se também que o gênero cinematográfico conhecido como ficção científica entrou em pauta. Nestes filmes que despontaram com grande sucesso nos Estados Unidos e até os dias de hoje despõe de grande público percebe-se uma sequência quase lógica, a humanidade ou o grupo “bonzinho” é ameaçado por seres misteriosos, inamistosos e hostis44 que sempre buscam a destruição e são distintos do primeiro grupo. Como exemplo a série de cinema e televisão “Star Wars” de George Lucas que teve sua primeira adaptação para as grandes telas em 1977 é perfeita para se entender esta relação, pois nela se encontra algumas características interessantes para se pensar em paralelo à Guerra Fria. Não é muito conhecido mas a expressão “Guerra das estrelas” nasceu antes mesmo do filme e obra homônima de George Lucas. A disputa entre soviéticos e capitalistas para “dominar os céus” no contexto Guerra Fria pode ser visto já em finais dos anos 1950. Mas somente com um ex-membro da indústria cinematográfica norte-americana vira-se presidente para romper com a política de boa vizinhança com o bloco socialista e reavivar a proposta de Guerra nas estrelas, o autor desta proposta foi o ex-ator de cinema Ronald Reagan45. Outras referências em Star Wars passíveis de comparação com a imagética da Guerra Fria podem ser: as menções a armas de destruição planetária, o combate ao “império do mal” como difundido na época no imaginário popular onde a URSS seriam este império e aos próprios conflitos entre República x Império e Liberdade x Autoritarismo observáveis no curso da obra. A Guerra Fria afetou e influenciou de forma brutal a indústria cinematográfica norte-americana e proporcionou uma extrema criatividade por parte dos cineastas. Era e é comum que os filmes interpretem e exponham certos temas através de metáforas, sempre se falando por ela e constituindo assim filmes de ficção. Recordando que para Marc Ferro46 o fato do gênero cinematográfico ser de ficção não torna a obra menos importante ou sem utilidade para se estudar a sociedade produtora, o público alvo e etc. Muito pelo contrário, quando o filme é uma ficção se torna até melhor a análise realizada e se aumenta a possibilidade de estabelecer uma contra-análise da sociedade. 44

CASTRO, Nilo André Piana de. O cinema: da construção à queda do muro de Berlim. Ciências & Letras, Porto Alegre, n.46, jul./dez. 2009. 45 Ibidem. 46 FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2a edição, 2010.

Assim sendo temos vários exemplos de filmes e recursos midiáticos ficcionais onde um paralelo com aspetos característicos da Guerra Fria são observáveis, cito três exemplos mais comuns e populares: Godzilla (Gojira) é um filme japonês fruto da paranoia da hecatombe nuclear que nas películas “B” reproduziam mutações, aranhas e pessoas gigantes ou encolhidas pela radioatividade. No Japão a cristalização do medo nuclear se traduziu no monstro Godzilla, uma ficção científica sobre um lagarto de centenas de metros de altura nascido a partir de testes nucleares. Outro exemplo são os super-heróis estadunidenses dos anos 1950/1960/1970, como representações vemos “O Quarteto Fantástico” e o “Incrível Hulk”. No caso o Quarteto Fantástico se enquadraria no contexto da corrida espacial pois foi em uma viagem ao espaço que os heróis do gibi conseguem seus superpoderes, também neste gibi o vilão é um homem frio e cruel do Leste Europeu em clara referência à União Soviética, o “Doutor Destino”. Já no caso do Incrível Hulk além das inspirações no clássico “O médico e o monstro”, o perigo nuclear mais uma vez é traduzido em uma criatura monstruosa fruto da exposição à radioatividade. Não só o cinema, portanto, foi importante na construção e modelação do ideário social estipulado pelas autoridades norte-americanas, toda uma indústria cultural foi mobilizada para tal. Mas aqui foi se dado uma ênfase maior nas filmografias visto a influência das mesmas na produção e roteirização de obras cinematográficas durante este contexto histórico.

2.2 - Análise do filme Rocky IV A partir de então já fica claro que o esporte foi utilizado no período da Guerra Fria como instrumento de propaganda ideológica e política pelas nações do mundo todo, não somente as superpotências. As grandes disputas internacionais, principalmente os Jogos Olímpicos foram palcos dessas constantes disputas. Para as duas superpotências as arenas, piscinas, campos e ringues se tornaram simulacros das reais batalhas que o receio do extermínio nuclear impedia de acontecer. E com isso foi incorporada as competições desportivas uma verdadeira disputa por prestígio político e pela soberania dos respectivos regimes. Como desde a formação e institucionalização das práticas corporais modernas o esporte era visto como um símbolo de modernidade, saúde e vitalidade. Nada mais justo que a

soberania no campo esportivo representasse a soberania de um povo, de uma nação, de um regime, de um projeto de nação. A URSS iniciou sua participação nos jogos olímpicos de Helsinque em 1952 e desta competição em diante a disputa paralela aos Jogos Olímpicos tem início o confronto ideológico entre os dois blocos antagonistas dentro dos recintos esportivos. Essa disputa ideológico-esportiva se prolongou pelas edições subsequentes dos jogos e não se limitando apenas ao confronto direto entre os norte-americanos e os soviéticos, se estendendo aos demais países também47. Todos os embates culminaram nos boicotes dos Jogos Olímpicos de 1980 em Moscou e Los Angeles em 1984. Em 1979 a União Soviética invade o Afeganistão sob a desculpa de uma intervenção militar mas com os reais interesses voltados para o posicionamento estratégico do país que lhe conferiria acesso ao Oceano Índico. Os Estados Unidos exigem através das Nações Unidas a retirada dos soviéticos de solo afegão sob a ameaça de promover um boicote aos jogos de Moscou. As exigências não foram atendidas e o boicote de sucedeu. Em retaliação ao boicote a União Soviética também boicota os jogos de Los Angeles quatro anos mais tarde. Este exemplo nos permite observar demonstrar e deixa transparecer a íntima relação entre o esporte e a política internacional e como um poderia influenciar o outro neste contexto de Guerra Fria. O boicote das Olimpíadas de 1984 nos traz finalmente ao ano de 1985, ano de lançamento do quarto filme da série “Rocky”. Antes de seguir a exposição do filme vale lembrar que ao analisar este filme unimos dois grandes fenômenos culturais do século XX que tinham grande uso pelos blocos antagônicos em seus meios de propaganda política, o esporte e o cinema. E como já visto nesse trabalho não é novidade a relação do esporte com o cinema. Apesar de o filme “Rocky IV” estar fazendo trinta anos de seu lançamento esse ano a aceitação dele pelo público persiste fortíssima. A maior parte desse sucesso com o público se deve a algumas características que destacam esta obra das outras que compõe a série, o fato de desde o primeiro filme da saga Rocky até o ultimo48 este ser o único que tem a política como um dos temas centrais e diferentemente de alguns filmes estadunidenses o quarto filme da saga Rocky trata não da política nacional ou de conflitos internos, mas sim da política internacional.

47

SIGOLI, M.A.; DE ROSE JR., D. A história do uso político do esporte. R.bras. Ci e Mov. 2004; 12(2): p.117. 48 O primeiro sendo lançado em 1976 e o último em 2006.

Isso faz de Rocky IV um objeto diferenciado de estudo sem contar que ao assistir o filme é visível todo o contexto social em que a obra é produzida. Desde as roupas usadas e os cortes de cabelo dos personagens, o vislumbre com a crescente tecnologia (incluindo a tecnologia aplicada no aprimoramento da prática esportiva) até a introdução de videoclipes nas músicas são características claras da década de 1980 e com estas pequenas pistas que aos olhos destreinados passam despercebidas podemos entender e estudar os costumes e práticas da sociedade norte-americana deste período. Sem contar que a transposição de elementos da cultura norte-americana desta década para uma película é uma estratégia de propaganda dos EUA e divulgação de seu estilo de vida. A força de penetrabilidade de Rocky IV pode ser demonstrada por seus números também, apesar de não possuir a mesma qualidade que o primeiro filme da saga, Rocky IV possui uma das mais altas bilheterias em filmes relacionados a esporte e do cinema em geral, a obra angariou mais de 300 milhões de dólares49.

Figura 03 - Cartaz do filme "Rocky IV"

49

MELO, Victor Andrade de; VAZ, Alexandre Fernandez. Cinema, Corpo e Boxe: Reflexões sobre suas relações e a questão da construção da masculinidade. In: Esporte e Cinema: novos olhares. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

Nesse episódio da saga Rocky, o boxeador da Filadélfia, enfrenta o russo Ivan Drago. Como já dito o momento de estreia do filme coincidiu com um momento delicado da política externa norte-americana (Guerra Fria) quando Ronald Reagan se encontrava como presidente dos Estados Unidos. Este implantou uma política externa agressiva, aumentou significativamente a produção na indústria armamentista e retornou (após os anos da détente) com o combate intensivo ao comunismo internacional. É nesse contexto que o filme se insere e as analogias na obra são interessantíssimas. O personagem Apollo Creed interpretado por Carl Weathers e presente nos dois primeiros filmes da saga possui uma identidade que é estabelecida no filme entre a personalidade do personagem Apollo e os EUA. Durante toda saga o mesmo sempre tinha semelhanças com a própria nação esboçando ideais como o “sonho americano”, a terra da oportunidade, indo para o ringue vestido como George Washington ou sempre lutando com a bandeira norte-americana estampada no calção. Neste filme não foi diferente, já que foi para a luta vestido como “Tio Sam”.

Figura 04 - Carl Weathers como Apollo Creed em "Rocky IV".

Na película Apollo se reveste de uma “responsabilidade” que os Estados Unidos constantemente intitulam para si, seja na Doutrina Monroe em relação à América latina ou na Segunda Guerra Mundial perante todo o planeta. E Ivan Drago também tem sua personalidade assemelhada com a própria União Soviética, ou melhor, com a visão estereotipada que o cinema hollywoodiano fazia constantemente sobre os Russos.

Com alguns elementos não é absurdo afirmar que a estrutura narrativa desse filme é bem simplificada como a maioria dos filmes relacionados ao boxe. Há o vilão (o boxeador grande e mau), o mocinho (herói e símbolo de virtude e moral) e a vítima (amado por todos e que dispõe de grande popularidade). Porém apesar de simplificada e bem comum aos filmes sobre boxeadores, “Rocky IV” traz algumas inovações que na década de 1980 iriam se popularizar nas demais películas, o uso de videoclipes no decorrer do filme e a menção a problemas políticos chama bastante atenção. É hora de destrinchar estes três personagens que dão forma à estrutura narrativa do filme. E para começar, “o vilão”. O personagem Ivan Drago interpretado pelo ator Dolph Lundgreen, é um atleta da então potência mundial União Soviética. É também um oficial do temido exército vermelho (vide o uniforme militar que Drago veste sob a alcunha de “capitão”). Drago não é um atleta profissional, tendo sido campeão olímpico de boxe amador50.

Figura 05 - Cena do filme "Rocky IV"

O próprio elemento da oposição profissionalismo x amadorismo pode se tornar um rico debate no próprio contexto da Guerra Fria. Na União Soviética como nos demais países socialistas o esporte era sempre de cunho “amador” e os atletas não recebiam as

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No boxe os lutadores profissionais, ou seja, os que lutam e treinam com o auxilio de patrocinadores e incentivos privados não podem disputar as olimpíadas e nem as competições de boxe amador. Um boxeador amador deve ter o auxilio apenas de seu Estado de origem para treinar e lutar e assim competir nas olimpíadas defendendo sua nação.

fortunas de patrocinadores e de empresários para treinar e lutar como os profissionais do mundo capitalista. Os atletas deveriam ser remunerados pelo Estado com um simbólico “patrocínio” do Estado para que este o representasse nas competições internacionais. Os atletas profissionais não eram permitidos pois para o ideário do bloco socialista o profissionalismo deturpava a pureza esportiva e o que este significava com o dinheiro e a busca pelo lucro contínuo. Já nos países capitalistas havia tanto os atletas profissionais como também os amadores sendo que os profissionais que recebiam as maiores atenções na mídia eram os astros do esporte e mais bem pagos enquanto os amadores eram em sua maioria jovens em início de carreira. Até hoje no boxe norte-americano o atleta jovem começa como amador competindo em competições internacionais como os Jogos Pan-americanos e os Jogos Olímpicos e depois se torna um lutador profissional. E em outros esportes também acontece isso. Somente atletas amadores podem participar destas competições internacionais. Essa era uma possível explicação para o grande sucesso de países como a URSS e Cuba em competições internacionais. Para alguns críticos da época enquanto países como os EUA enviavam seus jovens e inexperientes atletas os países comunistas enviavam o que tinham de melhor, os melhores. Há uma anedota deste período (anos 1970-1980 da Guerra Fria) que me parece apropriada. Teófilo Stevenson era um boxeador cubano que por ser de um país socialista era obviamente amador. Foi tricampeão olímpico de boxe na categoria dos pesos pesados em Munique – 1972, Montreal – 1976 e Moscou – 1980. É considerado o maior boxeador amador de todos os tempos e um dos maiores que já houve, porém havia um grande furor na mídia internacional nos anos 1970 pois outro grande boxeador se destacava também e seu nome era Muhammad Ali (já mencionado). Ali era um boxeador profissional dos EUA e se dizia imbatível e realmente o era naquele momento. A grande pergunta no mundo do boxe era “Quem seria capaz de vencer Ali?” e o nome certo era sempre o de Teófilo Stevenson, porém era proibido por seu país de se tornar um lutador profissional e sair de Cuba. Conta-se que um valor de 5 milhões de dólares foi oferecido ao cubano para que este se tornasse profissional e enfrentasse Muhammad Ali. Nos cenários atuais este valor não surpreende muito no mundo do esporte em geral mas para a época era uma quantia exorbitante.

Todas as propostas foram negadas publicamente por Teófilo o que garantiu ainda mais a proteção de seu governo ao “atleta genuíno” que não lutava por dinheiro. Diversas e diversas vezes a luta entre Stevenson e Ali foi anunciada, mas nunca ocorreu tendo sido até hoje uma das maiores lutas que nunca aconteceram. Teófilo Stevenson é símbolo de orgulho para o esporte cubano por diversas razões. Em 1984 por exemplo em meio ao boicote aos Jogos Olímpicos de Los Angeles (EUA) pelos países socialistas em resposta ao boicote dos Jogos de 1980 em Moscou pelos bloco capitalista, o cubano teria a oportunidade de se tornar tetracampeão olímpico e se tornar uma lenda ainda maior no esporte mas como Cuba aderiu ao boicote este não foi aos jogos mesmo recebendo propostas de competir por outra nacionalidade. O embate que nunca ocorreu entre Stevenson e Ali, ambos campeões do amadorismo e profissionalismo respectivamente pode ter sido fonte de inspiração para o embate que este sim ocorreu nos cinemas entre Rocky Balboa, o campeão do profissionalismo e Ivan Drago, o campeão do amadorismo.

Figura 06 - Boxeador Teófilo Stevenson.

Retornando à construção do personagem de Ivan Drago podemos ver que durante toda película é constante as tentativas de torna-lo ou de fazê-lo parecer uma máquina. Com as características de militar, calado, frio e objetivo o estereótipo de desumano aliado à associação homem/máquina traz a tona a clássica caracterização dos soviéticos pelo cinema hollywoodiano como os homens frios e insensíveis, um povo sem alegria e rústico, verdadeiros “bárbaros”. Outra peculiaridade em relação ao russo no filme é a sua forma de treinamento. Alta tecnologia, máquinas e computação gráfica são inovações para o desenvolvimento do

atleta que em meados de 1980 surgiram como grandes inovações e para um homem robotizado como é apresentado Drago nada mais lógico que se fazer uso de tudo isto. Um ponto de destaque é a desvalorização moral que os soviéticos sofrem constantemente no cinema hollywoodiano e que não poderia faltar em “Rocky IV”. Ao afirmarem no filme que Ivan Drago é treinado naturalmente e que seu tamanho não poderia ser explicado pelo uso de esteroides, eis que aparece em uma cena de seu treino a aplicação de uma injeção de esteroides em Drago. Contrastando com o treino feito por Rocky que não faz uso de tanta tecnologia e de nada ilícito, afinal ele é o mocinho! Falando agora sobre a vítima, já se falou um pouco sobre Apollo Creed anteriormente mas é interessante frisar que é um personagem altamente identificado com a cultura e os valores norte-americanos e por tabela não simpatiza nem um pouco com os soviéticos. É alegre e toda a construção desse personagem entra em oposição ao personagem do russo. É o símbolo e defensor do “American Way of life” em todos os filmes da série e sua derrota e morte no filme simbolizariam o fracasso norte-americano e a vitória soviética. Isso se não houvesse o mocinho, que luta pela honra e justiça sem pensar em dinheiro ou qualquer outra futilidade. Assim como os Estados Unidos só entram em guerra com alguma justificativa de ameaça, Rocky luta com ferocidade pois o russo começou com tudo isto. E além de não lutar por dinheiro contrariando as bases do sistema capitalista ou pelo cinturão Rocky aceita lutar no dia de Natal a na longínqua União Soviética. Outro personagem que merece destaque é o de Paulie, amigo e cunhado de Rocky e o único além de Rocky a estar presente em todos os seis filmes da série, todos eles ao lado do boxeador. Paulie faz menções a elementos políticos externos ao filme e presentes no contexto de Guerra Fria. Nesse filme o personagem é o próprio ideal liberal ao criticar o estilo de vida soviético: “Não mantemos nossa gente detrás de um muro com metralhadoras”. A maior crítica dos liberais a falta de liberdade representada pelo muro de Berlim. No fim, o embate dos dois boxeadores é mais que uma luta de boxe como mencionado no próprio filme por Apollo Creed. É um duelo de ideologias e estilos e a prova de que a luta transcende o esporte neste filme são as várias pistas dadas ao longo do filme. Desde a clássica imagem das luvas com as respectivas bandeiras norte-americanas e soviéticas se enfrentando no inicio do filme. Como vemos:

Figura 07 - Cena do filme "Rocky IV"

Até os outros elementos menos perceptíveis como as cores dos calções dos lutadores. Balboa tem a bandeira dos EUA estampada em seu calção, ele é os Estados Unidos e Drago também tem a bandeira da URSS em seu calção, ele é a União Soviética. Como no decorrer da Guerra Fria, com a impossibilidade de embate direto entre as superpotências é no esporte que o duelo pela supremacia acontece. Quem é a sociedade mas bem desenvolvida e evoluída possuindo assim os melhores atletas? No filme, Rocky Balboa (os EUA) vencem a luta sob os aplausos dos próprios soviéticos que reconhecem a derrota e até um sósia de Mikhail Gorbachev estava presente com membros do politiburo aplaudindo a vitória norte-americana. O personagem de Stallone convida os soviéticos a mudarem sua postura em sua fala final e ergue a bandeira estadunidense como a vencedora da luta, luta de boxe ou luta ideológica? Não importa, a mensagem que o filme traz é que somente um se sairá vencedor, seja no esporte ou no campo político.

Considerações finais Com o fim da insanidade nazista e com a quase destruição total das antigas grandes potências da Europa, duas superpotências se ergueram no pós-guerra e assumiram a hegemonia do globo. Apesar das diferenças e do ódio mútuo amplamente incentivado por ambos os governos, essas duas superpotências eram poderosas demais para se enfrentarem em um conflito bélico direto. Estratégias para medir forças e vencer o inimigo foram organizadas e o esporte seria uma dessas estratégias e aliado a uma das maiores máquinas de propaganda do século XX, o cinema, as batalhas épicas dos campos de guerra passaram a ser encenadas em ginásios, ringues e campos esportivos. Neste pequeno trabalho tentou-se estabelecer uma conexão entre o período da guerra fria, o esporte e nesse caso o velho esporte bretão (boxe) e a cinematografia hollywoodiana. Escrito e dirigido por Sylvester Stallone, “Rocky IV” faz uso de símbolos o tempo inteiro. Desde a destruição mútua das luvas de boxe, uma americana e a outra soviética, até as cores usadas no decorrer da obra. O mundo estava dividido entre dois blocos e para o filme, dois países apenas, a luva branca norte-americana e a luva vermelha soviética. O mundo estava dividido entre os brancos e os vermelhos e se estes entrarem em choque direto aconteceria o mesmo que aconteceu com as luvas, destruiriam a si mesmos e o resto do mundo. Assim falado no próprio filme a luta de boxe e aquela especificamente era mais do que uma simples exibição esportiva. De forma semelhante que na corrida armamentista a supremacia esportiva representaria ser mais capaz, ser mais forte enquanto potência. O pugilismo seria e foi o esporte perfeito para tal demonstração de força e capacidade. A complexidade e as emoções transmitidas pelo boxe encantaram e continuam encantando espectadores e fãs do esporte e do cinema. Dificilmente é possível pensar em outra prática corporal que tenha se adaptado tão bem as grandes telas do cinema, transmitindo realismo esportivo tão esperado em obras deste gênero. Sendo o ideal do esporte a manutenção da paz e fraternidade o mesmo pode ser concebido como a dramatização da guerra. Em alguns esportes como o futebol, o rugby, o vôlei e o basquete a própria nomenclatura das expressões esportivas aludem ao “capitão”, ao “ataque”, a “artilharia”, a “defesa” entre outras. Porém ao invés de buscar a destruição total do adversário no esporte há a busca pela vitória na competição somente.

No contexto da Guerra Fria o boxe foi palco de outras disputas também como a entre o amadorismo e o profissionalismo. Este embate esteve presente no cenário esportivo entre a década de 1940 até 1980 e os ringues se tornaram palcos únicos para a expressão das diferenças ideológicas. Não é para menos então que o filme “Rocky IV” de 1985 foi recorde de bilheteria e ainda é uma das maiores bilheterias de todos os tempos em filmes relacionados ao âmbito esportivo. E não importa a afirmação de alguns acadêmicos de que o filme é “apenas” um filme hollywoodiano e seu objetivo é somente o “show business” e não uma discussão séria e historiográfica da Guerra Fria e essa é apenas um pano de fundo na obra. Ora, mas a função de todos os filmes por mais “intelectualizados” que sejam não é a arrecadação e o “show business”? É ilusão pensar que nas circunstâncias do capitalismo em que vivemos alguém investiria em um filme sem esperar dele o mínimo retorno financeiro, todo filme produzido busca o lucro por menor que seja. E hollywoodiano ou não a obra ficcional de Stallone traz elementos marcantes de sua época e estudar a mesma pode proporcionar um melhor entendimento do pensamento do Homem na década de 1980 e na Guerra Fria, esta que teve inúmeras representações no cinema da época. E nos Estados Unidos ajudou através de símbolos a relacionar aspectos da política interna e externa e fazendo parte da grande indústria cultural auxiliou na constituição de um imaginário coletivo.

ANEXO 01

Ficha técnica do filme:

Figura 08 - Cartaz do filme “Rocky IV”

Título original: Rocky IV Gênero: Drama Tempo de duração: 91 minutos Ano de lançamento (EUA): 1985 Estúdio: MGM Distribuição: MGM Direção: Sylvester Stallone Roteiro: Sylvester Stallone

Referências bibliográficas: 

Fontes fílmicas:

Rocky IV (EUA, 1985). Direção: Sylvester Stallone. Roteiro: Sylvester Stallone. 

Obras:

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