História Militar da Amazônia: guerra e sociedade (Séculos XVII-XIX)

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CARDOSO, Alírio; BASTOS, Carlos Augusto; NOGUEIRA, Shirley Maria Silva (orgs.). História Militar da Amazônia: Guerra e Sociedade (Séculos XVII-XIX). Curitiba; Editora CRV, 2015.

APRESENTAÇÃO Nova História Militar e a Amazônia

Parece ser uma ironia da História que o grande público desconheça personagens como Antônio da Costa Marapirão, Lopo de Sousa, Cabelo de Velha, Arco Verde ou Maria Moacara. Todos eles são índios com forte atuação nas guerras da Amazônia portuguesa, entre os séculos XVII e XVIII. De fato, de Vieira a Pombal, passando pelo capitão português Martim Soares Moreno, ou pelo general francês Daniel de La Touche, todos consideravam que os índios eram os primeiros e principais militares da região. Entretanto, só há poucos anos a historiografia vem avaliando seriamente a participação nativa em guerras que, antes, eram consideradas prioritariamente europeias. Nos últimos anos, não se pode mais ignorar, com a mesma naturalidade de antes, a participação nativa, afro-descendente, escrava, mestiça, de portugueses pobres, de pequenos lavradores, de mulheres, de crianças, de oficiais de baixa patente e de soldados anônimos nos rumos das guerras ocorridas na América portuguesa. Este é, também, o perfil da História Militar da Amazônia que agora apresentamos ao leitor. De fato, a história que oferecemos ao público segue uma tendência mais geral de mudanças, nos últimos anos, na forma como os historiadores concebem a História Militar. Com efeito, a disciplina passou por modificações consideráveis ao longo da segunda metade do século XX e inícios deste século. Para o período anterior ao século XIX, os trabalhos clássicos de autores como Michael Roberts, Geoffrey Parker, Anthony I. Thompson, Carlo Cipolla, André Corvisier, John Keegan e Michael Howard, ajudaram a repensar a relação entre militares e a sociedade em geral, franqueando possibilidades para uma interpretação da guerra a partir dos seus múltiplos aspectos: culturais, econômicos, políticos, mentais, materiais, religiosos, administrativos ou sociológicos. 1 Geoffrey Parker, por exemplo, ampliou mais ainda o estudo do cotidiano das tropas, seus conflitos internos, sua rotina, sua alimentação e sua relação com as comunidades.2 Por outro lado, o termo utilizado por Michael Roberts para descrever algumas destas mudanças, Revolução Militar, ainda que tenha sido alvo de intenso debate nos últimos anos, tem suscitado o interessse de novos pesquisadores em torno de aspectos pouco ortodoxos da vida militar.3 Assim, trabalhos inovadores como o de David Parrott estão mais atentos aos princípios não-estatais e não institucionais da militarização das nações, ao contestar a conhecida tese do monopólio da 1

ROBERTS, Michael. The military revolution, 1560-1660. Belfast: University of Belfast, 1956. PARKER, Geoffrey. The Military Revolution. Military innovation and the rise of the West, 1500-1800. CIPOLLA, Carlo. Guns and Sails in the Early Phase of European Expansion, 1400-1700. Londres: Collins, 1965. CORVISIER, André. Armées et Societés en Europe de 1494 à 1789. Paris, 1976. HOWARD, Michael. War in European History. Oxford: Oxford University Press, 1976. KEEGAN, John. Keegan. The Face of Battle. London: Jonathan Cape, 1976. 2 PARKER, Geoffrey. El ejército de Flandes y el Camino Español, 1567-1659. La logística de la victoria y derrota de España en las guerras de los Países Bajos. Madrid: Alianza Editorial, 2010. 3 DOWNING, Brian M.. The Military Revolution and Political Change. Origins of Democracy and Autocracy in Early Modern Europe. Princeton: Princeton University Press, 1992.

violência pelos sistemas políticos centralizados.4 Ao mesmo tempo, os historiadores passam a construir quadros mais gerais. Ao tentar escapar das histórias nacionais, e de certo nacionalismo, optaram por formulações transfronteiriças, comparativas, pluridimensionais e pelas histórias conectadas.5 Nesse sentido, o próprio acervo documental ganhou uma ampliação considerável. Assim, a nova História Militar não se satisfaz ao coligir somente documentos de natureza oficial, mas busca cada vez mais auxílio nas cartas privadas, crônicas, diários de viagem, material literário, autos-crimes, imagens, história material, etc... Ao mesmo tempo, os documentos oficiais não perdem importância, ganhando novos olhares e um senso de perspectiva comparada. Parte deste acervo, o leitor encontrará também entre as páginas da nossa História Militar da Amazônia. Esta obra é fruto de um esforço coletivo, cujo objetivo foi a integração de professorespesquisadores de diversas universidades e centros de investigação do Brasil. Além disso, a coletânea reúne trabalhos de pesquisadores que fazem parte do Grupo de Pesquisa Sociedade, Trabalho e Política em Áreas de Fronteira- GEF (no qual existe a linha pesquisa “Militares, Sociedade e Fronteiras”), bem como de autores ligados a outros grupos de pesquisa. O recorte espacial comum a todas as pesquisas são os territórios que faziam parte do antigo Estado do Maranhão e Grão-Pará (ou Grão-Pará e Maranhão, dependendo do período).6 Entretanto, a dimensão comparativa, relativamente a outras partes da América lusa, e mesmo da América espanhola, constitui uma característica importante dos estudos apresentados aqui. No meio acadêmico brasileiro, e principalmente a partir da primeira década desse século, é visível o crescente interesse na investigação histórica do fenômeno da guerra e das organizações militares. Não se trata mais de trabalhos de viés apologético e nacionalista, voltados para as grandes mobilizações bélicas e os comandantes de destaque, algo que marcou boa parte da produção brasileira, principalmente, na primeira metade do século XX. Muitos desses trabalhos, é bom ressaltar, foram escritos por militares e não por historiadores profissionais. Tampouco se propõe, por outro lado, uma discussão revisionista, objetivando destruir “mitos” do meio militar nacional. Trata-se de uma produção diversificada, com estudos amparados em pesquisas documentais de fôlego e dialogando com uma produção historiográfica renovada. Temas antes negligenciados ou desconhecidos passaram a merecer atenção dos historiadores, enquanto que outros assuntos consagrados foram revisitados a partir de novas abordagens. A vitalidade dos estudos sobre História Militar no país pode ser acompanhada pelo número cada vez maior de dissertações, teses, artigos e livros que foram produzidos na década passada e na atual. Não se pretende aqui fazer um balanço da recente produção sobre Nova História Militar do Brasil colonial e imperial. Entretanto, duas obras relativamente recentes merecem destaque. De um lado, a Nova História Militar Brasileira, lançada em 2004, e 4

PARROTT, David. The Business of War. Military Enterprise and Military Revolution in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 5 McNEILL, J.R. & McNEILL, William H. Las Redes Humanas. Una história global del Mundo. Barcelona: Crítica, 2004. McNEILL, William H. The Pursuit of Power: Technology, Armed Force and Society since A.D.1000. Oxford: Blackwell, 1982. 6 Território separado do Estado do Brasil, em 1621, e que corresponderia, mais ou menos, à atual Amazônia Legal.

organizada por Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hendrik Kraay. 7 Do outro lado do Atlântico, a Nova História Militar de Portugal, coleção organizada por Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira, cujo segundo volume foi coordenado por Manuel Hespanha. 8 Ambas, ao seu modo, ajudaram a consolidar no meio acadêmico uma nova forma de compreender o universo militar a partir dos seus múltiplos aspectos. A partir dos textos dessas coletâneas, é possível apreender algumas das preocupações dos estudos contemporâneos, como as variações temporais, sociais, culturais e políticas da guerra, da disciplina e da indisciplina no meio castrense, a relação entre instituições militares e sociedade, as formas de mobilização bélica e treinamento dos homens recrutados, o impacto econômico e fiscal da manutenção das forças armadas, o papel do Exército nos processos de formação dos Estados Nacionais e nas crises políticas. Nesse conjunto diversificado de abordagens sobre a experiência militar na América portuguesa e no Império do Brasil, a História Militar da Amazônia requer uma atenção maior. A conquista e a defesa dessa enorme área de fronteira exigiram a presença de homens e instituições ligadas à guerra, com a ocorrência de conflitos armados pela posse do espaço, a instalação de fortificações nas zonas limítrofes, a manutenção de forças bélicas contra agressões externas e para a manutenção da ordem interna. Esta coletânea objetiva contribuir significativamente no debate sobre essas questões. O termo “Amazônia”, como denominação de uma região ou de uma entidade geográfica, não era empregado pelos homens que viviam nesse espaço, ou que a ele se referiam, durante o período colonial e mesmo para grande parte do século XIX. Em que pese seu anacronismo para o recorte cronológico compreendido por esta coletânea, trata-se de um termo consagrado na historiografia para referir-se a um espaço que ganhou, ao longo dos tempos, diferentes denominações administrativas: Estado do Maranhão, Estado do Maranhão e Grão-Pará, Estado do Grão-Pará e Maranhão, Estado do Grão-Pará e Rio Negro, Estado do Maranhão e Piauí, Província do Grão-Pará, Províncias do Pará e do Amazonas. Deve-se também destacar que a Província do Maranhão pode ser incluída nessa área “amazônica”, tendo em vista as características naturais que marcam parte desse território, comuns ao restante do vale amazônico. Essa abrangência espacial da “Amazônia” dos séculos XVII-XIX é notada nos artigos reunidos neste livro, compreendendo desde a ilha de São Luís até os pontos limítrofes com as possessões espanholas. Os treze artigos que compõem essa coletânea enfocam eventos e elementos centrais da mobilização armada, da prática da guerra e das relações entre instituições militares e sociedade. Ainda assim não constitui, evidentemente, uma reunião exaustiva de trabalhos sobre essa área de estudos históricos para a Amazônia durante esse longo período, tendo em vista que há objetos que merecem ser investigados com mais profundidade (como a presença da Marinha nos rios amazônicos ou a dinâmica do recrutamento nas províncias do extremo norte durante a Guerra do Paraguai, para ficar em dois exemplos). Certamente, porém, o crescente interesse no meio acadêmico sobre a História Militar impulsionará novas

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CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova História Militar Brasileira. RJ: FGV, 2004. 8 BARATA, Manuel Themudo & TEIXEIRA, Nuno Severiano. Nova História Militar de Portugal. Lisboa: Circulo de Leitores, vol. 2, 2000.

investigações que tomam a região amazônica como seu recorte espacial, alimentando estudos sobre temas ainda pouco conhecidos ou inexplorados. Nesta obra, o artigo inicial, de Alexandre Guida Navarro, aborda as práticas bélicas das populações ameríndias da “Amazônia” no período pré-conquista europeia, assim como as guerras levadas a cabo pelos índios Tupinambá na ilha de São Luís durante a chegada dos colonizadores portugueses. Alírio Cardoso, no artigo seguinte, volta-se para as guerras envolvendo portugueses, espanhóis e holandeses em torno do domínio daquela vasta fronteira equinocial na primeira metade do século XVII. Em um estudo que abarca os séculos XVII e XVIII, Almir Diniz de Carvalho Júnior trata das lideranças militares indígenas, cristianizadas e aliadas dos portugueses, figuras essenciais para a efetiva conquista do vale amazônico para a Coroa lusa. Rafael Chambouleyron, por fim, analisa a presença de degredados e soldados (termos que, por vezes, se confundiam nos documentos coevos) no Estado do Maranhão. Com relação à primeira metade do século XVIII, o texto de Rafael Ale Rocha analisa as estratégias empregadas pelas famílias principais de Belém para assumir os postos de oficiais nas tropas de ordenança, assim como as disputas políticas alimentadas em torno da composição dessa oficialidade. Ainda sobre o mesmo período, Wania Alexandrino Viana volta-se, em seu trabalho, para os problemas e desafios da militarização da Amazônia portuguesa, e de modo mais específico para as práticas de recrutamento na composição das tropas locais. Nas primeiras décadas do século XIX, durante o contexto das guerras napoleônicas e da transferência da Corte lusa para a América, a conquista de Caiena representou uma importante ação militar internacional, mobilizando homens e recursos no Grão-Pará. Esse tema é estudado por Shirley Maria Silva Nogueira em seu artigo, que enfatiza a conquista da colônia francesa e a permanência no local das tropas luso-americanas (compostas basicamente por pretos, pardos e indígenas) como uma experiência de politização radical dos oficiais e soldados que tomaram parte dessa ação. Já tratando do contexto da independência, Adilson J. I. Brito estuda a inserção dos soldados na Província do Grão-Pará nesse momento político primordial, buscando entender suas leituras e expectativas na década de 1820. O período no Grão-Pará de conflitos políticos e sociais que a historiografia denomina de Cabanagem, nos anos de 1830, é abordado em texto de Magda Ricci, Sueny Oliveira e Letícia Pereira Barriga. As autoras tratam da dinâmica dos conflitos armados envolvendo rebeldes e forças alinhadas à Corte imperial, e de modo particular na área limítrofe com a Província do Maranhão e no Baixo Amazonas. Dando seguimento, Carlos Augusto Bastos analisa a chamada Guarda Policial de 1ª Linha da Província do Grão-Pará, abordando sua instituição, suas funções e sua extinção na década de 1850. O artigo de Francivaldo Alves Nunes, por sua vez, trata da instalação das colônias militares na província paraense, consideradas pela política imperial como núcleos de desenvolvimento agrícola, povoamento e defesa do território. As colônias militares também são enfocadas no estudo de Regina Helena Martins de Faria sobre a Colônia Militar São Pedro de Alcântara do Gurupi, no Maranhão de meados do Oitocentos, enfatizando como esses núcleos coloniais vislumbravam o fomento de um campesinato. Encerrando a coletânea, Tarantini Pereira Freire analisa o recrutamento de jovens para a Companhia de Aprendizes

Marinheiros na Província do Maranhão. Por fim, os organizadores agradecem a todos que direta ou indiretamente colaboraram com esse projeto. Boa leitura! Belém/Macapá/São Luís, setembro de 2014. Alírio Cardoso Carlos Augusto Bastos Shirley Maria Silva Nogueira

SUMÁRIO PREFÁCIO ............................................................................................................... 13 Vitor Izecksohn

1. A GUERRA NA AMAZÔNIA PRÉ-COLONIAL: e a apresentação de duas fontes etno-históricas sobre os tupinambá do maranhão no período do contato ........... 17 Alexandre Guida Navarro

2. CANOA E ARCABUZ: a guerra hispano-holandesa na Amazônia (1621-1644) . 33 Alírio Cardoso

3. GUERREIROS INDÍGENAS E LÍDERES MILITARES NA AMAZÔNIA PORTUGUESA, SÉCULOS XVII E XVIII ............................................................. 57 Almir Diniz de Carvalho Junior

4. RECRUTAMENTO E DEGREDO NA AMAZÔNIA SETECENTISTA .................. 73 Rafael Chambouleyron

5. O PROVIMENTO DOS OFICIAIS DA TROPA DE ORDENANÇA: poder, instituições e elites locais no Estado do Maranhão e Grão-Pará (primeira metade do século XVIII) ................................................................................................... 85 Rafael Ale Rocha

6. O ÔNUS DA DEFESA: uma abordagem sobre as tropas e o recrutamento militar no Estado do Maranhão e Pará (primeira metade do século XVIII) ................... 103 Wania Alexandrino Viana

7. O COTIDIANO DAS TROPAS LUSO-BRASILEIRAS NA GUIANA FRANCESA .... 115 Shirley Maria Silva Nogueira

8. A “IGNORANTE INTELIGÊNCIA”: horizontes de expectativas dos soldadoscidadãos sobre a formação do Império Brasileiro no Grão-Pará ....................... 129 Adilson J. I. Brito

9. ENTRE TROPAS, ARMAS E GUERRA: as ações militares na Cabanagem (18351840) .................................................................................................................. 155 Magda Ricci, Sueny Oliveira, Letícia Pereira Barriga

10. AS ARMAS DA ORDEM: a Guarda Policial de 1 a linha da Província do Grão-Pará (meados do século XIX) ..................................................................................... 181 Carlos Augusto Bastos

11. ASPECTOS DA COLONIZAÇÃO MILITAR NO NORTE DO IMPÉRIO: povoamento, defesa do território e conflitos ...................................................... 195 Francivaldo Alves Nunes

12. AS COLÔNIAS MILITARES DE MEADOS DO OITOCENTOS E A FORMAÇÃO DE UM CAMPESINATO: o caso da Colônia do Gurupi (Maranhão) ................. 211 Regina Helena Martins de Faria

13. A FÁBRICA DE SOLDADOS: Militarização, controle e correção infantil no Maranhão provincial ........................................................................................... 233 Tarantini Pereira Freire

SOBRE AO AUTORES .......................................................................................... 249

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