História, mulher e poder

June 3, 2017 | Autor: Gilvan Ventura | Categoria: Power relations, History of Gender
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Vitória, 2006

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EDUFES Editora da Universidade Federal do Espírito Santo Reitor: Rubens Sérgio Rasseli Vice-Reitor: Reinaldo Centoducatte Secretária de Cultura: Rosana Paste Coordenadora da Edufes: Elia Marli Lucas Diretor da FCAA: Sebastião Pimentel Franco

CONSELHO EDITORIAL Almerinda da Silva Lopes Celson Rodrigues Janete M. Carvalho José Armínio Ferreira Maria José V. Matos, Marlene Monteiro André Selma Blom Margotto Sérgio da Fonseca Amaral

FICHA CATALOGRÁFICA

COPYRIGHT

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SUMÁRIO

Apresentação .....................................................................................................XX Introdução História, mulher e poder: da invisibilidade ao gênero Maria Izilda S. de Matos ................................................................................... XX

PARTE I - A FABRICAÇÃO DO GÊNERO FEMININO Tornar-se mélissa em Atenas: educação e socialização femininas Fábio de Souza Lessa e Maria Angélica R. de Souza .......................................... XX A masculinização das devotas no século IV d.C.: Eustácio de Sebaste e as tradições heréticas do ascetismo Gilvan Ventura da Silva .................................................................................... XX Os paradigmas da submissão: mulheres, educação e ideologia religiosa – uma perspectiva histórica Jane Soares de Almeida ......................................................................................XX Caminhos e contradições no processo de escolarização das mulheres Sebastião Pimentel Franco .................................................................................XX

PARTE II - TRANSGRESSORAS DA ORDEM PÚBLICA O gênero feminino nos autos criminais na Província do Espírito Santo (18531865) Arion Mergár ....................................................................................................XX Amor e adultério nos textos do século XII: o julgamento de Isolda no Tristan, de Béroul José Rivair Macedo ............................................................................................XX Laura Brandão: entre a norma e a transgressão nas lutas sociais e políticas nas primeiras décadas do século XX Maria Elena Bernardes .....................................................................................XX

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Escravas infratoras: crime e gênero no Espírito Santo do Oitocentos Adriana Pereira Campos ...................................................................................XX A violência feminina e o cotidiano da escravidão: o silêncio das fontes Regina Célia Lima Caleiro ................................................................................XX

PARTE III - MULHER, VIOLÊNCIA E DISCRIMINAÇÃO Penitentes e solicitantes: gênero, etnia e poder no Brasil colonial Lana Lage da Gama Lima ................................................................................XX Relações de gêneros, violência e modernidade nas crônicas cariocas Magali Gouveia Engel .......................................................................................XX Violência sutil contra a mulher no ambiente doméstico: uma nova abordagem de um velho fenômeno Maria Beatriz Nader .........................................................................................XX Vozes femininas (ainda) silenciadas: ranços e avanços sobre a violência doméstica no Brasil (1985-2005) Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti .................................................................... XX

PARTE IV – MANIFESTAÇÕES DO PODER FEMININO Senhoras do açúcar: riqueza e vida material em Itu (1780-1830) Eny de Mesquita Samara ...................................................................................XX Mulheres sós em Minas Gerais: viuvez e sobrevivência nos séculos XVIII e XIX Ida Lewkowicz e Horacio Gutiérrez ................................................................... XX Indícios e fragmentos das lutas das mulheres na construção da história das cidades paulistas: os “causos” e os silêncios Lídia M. Vianna Possas .....................................................................................XX

Sobre os autores ................................................................................................ 315

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APRESENTAÇÃO

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ste livro nasce ao mesmo tempo de um propósito e de uma constatação. O propósito é o de tornar disponível um conjunto de textos acadêmicos que permita ao leitor brasileiro conhecer um pouco mais acerca da trajetória da mulher ao longo da História, desde a Antigüidade até o mundo contemporâneo, razão pela qual a obra constitui um painel sobre o que atualmente se vem pesquisando na área, especialmente nos cursos de pós-graduação em História. De fato, se a pesquisa em torno das relações de gênero ainda é tímida no Brasil, a exemplo do que ocorre em diversos outros domínios da investigação histórica, nem por isso os historiadores brasileiros têm se mostrado insensíveis à temática que, é bom lembrar, goza de uma ampla receptividade junto aos meios de comunicação e ao público universitário. No entanto, devemos reconhecer que, em algumas circunstâncias, o interesse despertado pelo assunto ainda se encontra por demais comprometido com uma perspectiva cujas origens remontam ao movimento de liberação feminina das décadas de 1960 e 1970, perspectiva essa que necessita ser devidamente compreendida e confrontada no que ela própria comporta de histórico a fim de extrairmos daí novos temas de investigação. A constatação, por sua vez, é a de que a reflexão acerca das relações de gênero e, mais especificamente, acerca das inúmeras variantes da condição feminina ao longo do tempo é uma tarefa que, ao fim e ao cabo, nos remete à compreensão sobre como, num espaço e tempo determinados, se configuram as relações de poder por intermédio das relações de gênero. Desse modo, ao tratarmos da condição feminina devemos estar atentos para o fato de que muito daquilo que se diz a respeito da mulher configura uma representação que a torna um sujeito passivo e dócil, quando não inoperante. Essa representação nada mais é do que uma estratégia discursiva de normalização que fixa, para a mulher, um status menor em comparação ao homem, a quem é atribuído o papel milenar de pai, esposo e provedor de maneira a enfatizar a superioridade masculina diante daqueles que, de algum modo, são tidos como dependentes e, por isso mesmo, incapazes e/ou inferiores. Nesse sentido, é preciso reconhecer que as categorias

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de gênero não existem como entidades atemporais e que as diferenças entre os sexos comportam muito de naturalização do arbitrário, razão pela qual as mulheres (assim como os homens) devem ser compreendidas não como categorias essenciais, mas como artefatos culturais, a exemplo do que certa vez propôs Bourdieu. Disso resulta que os gêneros em si mesmos não existem, mas são o resultado de uma fabricação que estabelece as propriedades de um em oposição ao outro, ou seja, segundo uma cartografia relacional que se instaura e se reproduz nos mais distintos ambientes sociais, começando pela própria família e incluindo a escola, a igreja, a fábrica e tantos outros. Muito dessa configuração das relações entre os gêneros se fundamenta evidentemente em valores, atitudes e predisposições inculcados por intermédio de todo um movimento formal e informal de socialização, adquirindo assim uma dimensão simbólica cuja importância a História Cultural tem, nos últimos anos, nos ensinado a perceber e interpretar. No entanto, em algumas circunstâncias, não podemos nos eximir de mencionar, as relações entre os gêneros adquirem contornos mais rudes, mais ásperos, com o abandono da mulher à violência física, que comporta muito de simbolismo ao permitir inscrever, sobre o corpo feminino, os signos da própria desigualdade, por vezes com resultados dramáticos e indeléveis. É preciso, no entanto, que nos abstenhamos de reproduzir, de maneira acrítica e, de certo modo, conformista, um determinado discurso de poder que faz das mulheres o reverso, a antítese do homem, com todos os atributos de fragilidade, inferioridade e malícia que uma tradição mitológica apropriada e recriada pelo cristianismo nunca cessou de enfatizar. Pelo contrário, devemos recuperar, no horizonte da História, a positividade do gênero feminino, com tudo o que ele comporta de ação e de insatisfação perante um conjunto de normas pré-estabelecidas, o que nos conduz evidentemente a prestar uma atenção particular às situações nas quais a mulher transgride a ordem pública, perpetrando ações muitas vezes surpreendentes. Na condição de homicidas, adúlteras, pecadoras, as mulheres assumem o ônus de desafiar a ordem instituída, revelando-nos com clareza o quanto, na prática, o comportamento feminino se encontra distante da idealização, o quanto a regra reclama a exceção. Por outro lado, é preciso considerar também como as mulheres, desempenhando no cotidiano tarefas as mais distintas e corriqueiras, contribuem para a dinâmica da sociedade e, sem seu conjunto, para o movimento da história, com toda a pluralidade que lhe é peculiar. Sendo assim, com esse livro esperamos contribuir para a reflexão historiográfica que busca compreender as relações de gênero sob a ótica das relações de poder.

Gilvan Ventura da Silva Maria Beatriz Nader Sebastião Pimentel Franco

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HISTÓRIA , MULHER E PODER : DA INVISIBILIDADE AO GÊNERO

Maria Izilda S. de Matos

Na última metade do século XX, o planeta foi palco de experiências

transformadoras. O ritmo acelerado e o impacto das mudanças foram novidades até então desconhecidas. Nesse quadro de intensas alterações que se sucederam sem parar, o planeta se tornou urbano, as questões-tensões do cotidiano envolveram a todos, novos fenômenos impactaram produzindo estranhamentos e crises, constituindo novas relações-tensões sociais, étnicas e geracionais que se impõem como desafios a serem investigados. Nesses últimos cinqüenta anos, uma das mudanças mais marcantes na sociedade mundializada, talvez a maior delas, ocorreu nas relações entre homens e mulheres, cabendo destacar, nesse processo, o impacto do crescimento da presença-visibilidade das mulheres em múltiplos e diversificados setores: no trabalho, nas escolas e universidades, na política, nas artes e ciências. O olhar sobre o feminino frutificou no contexto da quebra dos paradigmas que possibilitou a descoberta de «novas histórias» e favoreceu a inclusão das mulheres nas pesquisas. Lembrando apenas um exemplo, contemporaneamente se afirma que a pobreza no mundo é feminina – com certeza ela não passou por um processo de feminilização, mas, até recentemente, esse aspecto não era investigado. Hoje o gênero se impõe como uma questão fundamental na produção das Ciências Humanas e na Historiografia. O desafio de incorporar a questão de gênero vem sendo enfrentado de forma admirável. O campo se expandiu e questões emergentes nessas pesquisas têm contribuído de modo significativo para a renovação temática e metodológica das disciplinas, possibilitando a descoberta de temáticas, testemunhos, documentos, fontes, temporalidades, estratégias metodológicas e categorias analíticas, com destaque para a categoria gênero. H ISTÓRIA ,

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Assim, procurou-se rever imagens e enraizamentos impostos pelos paradigmas disciplinares, bem como dar visibilidade às mulheres, questionando a dimensão de exclusão a que estavam submetidas, entre outros fatores, por um discurso universal masculino. Revelaram-se novos femininos e masculinos, desvendaram-se os poderes das mulheres e denunciaram os abusos masculinos, enfim, outras histórias foram contadas e outras falas recuperadas, abrindo possibilidades para o resgate de múltiplas e ricas experiências. No novo século, apesar das resistências de diversos setores e áreas, os debates e ações incorporaram a questão de gênero. Ela se tornou indispensável na academia e também no Estado. Agências nacionais e internacionais, sindicatos, partidos e terceiro setor assumiram amplamente essa perspectiva em suas políticas públicas, ações interativas e programas de desenvolvimento social. Tendo em vista essas inquietações, estes escritos, num primeiro momento, rastrearão os estudos que incorporam a mulher nas investigações contemporânea, recuperando o contexto de sua emergência e sua trajetória na produção brasileira nas últimas décadas. Em seguida, será focalizada a categoria gênero, numa reflexão sobre suas contribuições para a ampliação das fronteiras epistemológicas, para a instauração de novas referências paradigmáticas, bem como serão apontados seus impasses, dificuldades e algumas de suas perspectivas.

TRAJETÓRIAS E DIÁLOGOS Desde os finais da Segunda Grande Guerra, o crescimento marcante da presença-visibilidade das mulheres vem inquietando os pesquisadores. A partir dos anos 60, de forma mais contínua, um número crescente de investigadores passou a se questionar sobre esses «novos» sujeitos históricos – as mulheres – buscando rastrear suas ações, seus testemunhos no presente e enfrentaram o desafio de desvendar a invisibilidade feminina e os poderes das mulheres no passado. A presença das mulheres na Historiografia vem crescendo, em função de um conjunto de fatores que tem dado visibilidade às mulheres, mediante sua conquista de novos espaços. Um primeiro fator seria a maior presença feminina no mercado de trabalho,1 inclusive nas universidades,2 conjugada à expansão da luta das mulheres pela igualdade de direitos e pela liberdade, numa conquista do espaço público, que derivou da afirmação dos movimentos feministas. Por outro lado, a expansão dos estudos que incorporam a mulher e a abordagem de gênero localiza-se no quadro de transformações por que vem passando a Historiografia nos últimos tempos. É possível afirmar que, por razões internas e externas, esses estudos emergiram da crise dos paradigmas tradicionais, que requeriam uma completa revisão dos seus instrumentos de pesquisa. Essa «crise de identidade» levou à procura de outras experiências, revigorando o conhecimento e 10

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ampliando diferentes áreas e abordagens. Entre outros aspectos, possibilitou o questionamento das universalidades, permitindo a descoberta do outro, da alteridade, dos excluídos, entre eles, as mulheres. Apesar dos longínquos antecedentes das lutas femininas,3 suas reivindicações voltaram ao cenário na década de 60, em particular as ações em torno de 1968, quando da «segunda onda» do movimento feminista. Em 1975, a ONU instaurou o Ano Internacional da Mulher. Vinte anos depois, em 1995, mulheres de todo o mundo estiveram discutindo sua situação numa grande Conferência em Beijing. No Brasil, desde os anos 70, mesmo sob o contexto desfavorável dos Governos militares, os temas referentes à mulher reapareceram, colocando questões, como violência, sexualidade, contracepção, aborto, juntamente com as reivindicações concernentes ao trabalho (a dupla jornada de trabalho) e à cidadania das mulheres. A essas lutas somaram-se outros canais de participação da mulher, sobretudo na forma dos movimentos por melhores condições de vida, ocupando espaço social e político a partir da segunda metade da década de 70. Nos âmbitos dos bairros, creches, escolas e principalmente nas igrejas, a presença feminina foi marcante, reivindicando condições de saúde, educação, saneamento básico, habitação (carências de uma população excluída do processo de urbanização), além da luta pela anistia. Como os espaços tradicionais de expressão política se encontravam fechados, elas se organizavam em formas alternativas de atuação muitas vezes em torno de uma luta pelo imediato, que as constituíam como sujeitos coletivos e políticos (SADER, 1989; SOUZA-LOBO, 1991). Assim, na década de 70, as mulheres «entraram em cena» e se tornaram visíveis na sociedade e na academia, na qual os estudos sobre a mulher se encontravam marginalizados na maior parte da produção e na documentação oficial. Isso instigou os interessados na reconstrução das experiências, vidas e expectativas das mulheres nas sociedades passadas, descobrindo-as como objeto de estudo e sujeitos da história (MATOS, 2002). As novas abordagens historiográficas, emergentes nesse momento, possibilitavam uma abertura para os estudos sobre a mulher, ao ampliarem áreas de investigação, ao renovarem a metodologia e os marcos conceituais tradicionais, apontando o caráter dinâmico das relações sociais e modificando os paradigmas estabelecidos. Contudo, a influência mais marcante para essa abertura parece ser a descoberta do político no âmbito do cotidiano, o que levou a um questionamento sobre as transformações da sociedade; o funcionamento da família; o papel da disciplina e das mulheres; o significado dos fatos, lutas e gestos cotidianos. Assim, a expansão dos estudos sobre a mulher vinculou-se a uma redefinição do político, em frente ao deslocamento do campo do poder das instituições públicas e do Estado para a esfera do privado e do cotidiano (MATOS, 2002). A essa politização do dia-a-dia incorpora-se também a visão do relativismo pós-moderno, que praticamente destrói a tradicional distinção entre o central e o H ISTÓRIA ,

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periférico na história. Assim, foram diversificadas as temáticas e ampliados os focos sobre o objeto de análise. Essas novas perspectivas e influências emergentes nesse momento possibilitaram a reorientação de enfoques, com o desmoronamento da continuidade, o questionamento de abordagens globalizantes do real, permitindo também o questionamento da universalidade dos discursos, deixando explícito que as análises do presente e do passado eram parciais e datadas. Traziam como preocupação abrir trilhas renovadoras, desimpedidas de cadeias sistêmicas e de explicações causais; criar possibilidades de articulação e inter-relação; recuperar diferentes verdades e sensações; promover a descentralização dos sujeitos e permitir a descoberta das novas experiências, procurando articular experiências e aspirações de agentes aos quais se negou lugar e voz dentro das análises convencionais. Nessa perspectiva, o tema da mulher passou a atrair os pesquisadores, desejosos de ampliar os limites de sua disciplina, permitindo uma abertura de novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar as experiências de homens e mulheres freqüentemente ignoradas ou mencionadas apenas de passagem. A pluralidade de possibilidades de olhares sobre o objeto – mostrando que este pode ser desvendado a partir de múltiplas questões – permite perceber toda uma vinculação entre a produção acadêmica e a emergência dos movimentos feministas e de mulheres. Esse esclarecimento se faz mais necessário quanto se dá conta de que as análises não recuperam o real no passado, mas constroem um discurso sobre ele, trazendo tanto o olhar quanto a própria subjetividade do pesquisador que recorta, narra e constrói seu objeto.

MULHERES E PODERES NA HISTORIOGRAFIA Na produção historiográfica dos últimos anos, os estudos sobre a mulher, sua participação na sociedade, na organização familiar, nos movimentos sociais, na política e no trabalho foram ampliados. O tema adquiriu notoriedade e abriu novos espaços, em particular, após a incorporação da categoria gênero. A produção sobre as mulheres vem crescendo e tomando vigor pluralista, abrangendo distintas formas de abordagem e conteúdos variados. Não se pretende aqui um levantamento exaustivo e completo dessa ampla produção. Deve ser entendido mais como um esforço no sentido da reflexão, pontuando algumas questões que parecem ser fundamentais para o debate e para a instauração de novas referências paradigmáticas. Nos anos 70, privilegiou-se, entre outras questões, a do trabalho feminino, em particular, o trabalho fabril. É indiscutível a maior visibilidade do trabalho, por seu papel fundamental para a sobrevivência e pelo fato de ocupar grande parte da vida cotidiana e o seu papel nas plataformas feministas. Todavia, esse privilégio dado ao mundo do trabalho possivelmente se deve aos vínculos dessas pesquisas 12

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aos estudos sobre o movimento operário e a uma herança da tradição marxista, mais especificamente da teoria do patriarcado cuja preocupação era identificar os signos da opressão masculina e capitalista sobre as mulheres. A produção historiográfica brasileira sobre as mulheres nos anos 80 apresentou variadas abordagens, que analisam aspectos diferenciados da questão. No âmbito da temática do trabalho, além de resgatar o cotidiano fabril, as lutas e greves femininas, sua ação-exclusão nos espaços dos sindicatos, procurou-se recuperar as múltiplas estratégias e resistências criadas e recriadas pelas mulheres no cotidiano, bem como sua capacidade de explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas sociais e políticos para encontrar brechas, pelas quais pudessem se expressar ou, ao menos, sobreviver, movimentos e ações nos quais atuaram e se destacaram. Procurou-se reconstruir a estrutura ocupacional feminina num meio urbano por meio do exercício de papéis improvisados, destacando e descobrindo sua presença constante na inserção do espaço público, em que as atividades femininas adquirem importância. A maior parte desses trabalhos privilegiou a mulher no espaço urbano, em sua faina para colaborar na manutenção da casa, quando não provendo sozinha o próprio sustento e o da família. Nesse sentido, estudos, como os de E. P. Thompson, foram inspiradores para trazer luzes sobre o que poderíamos chamar de «cultura de resistência», em que a luta pela sobrevivência e a improvisação tomaram feições de atitudes políticas, formas de conscientização e manifestações espontâneas de resistência. A partir desses anos 80, destacaram-se os estudos sobre o papel feminino na família, as relações vinculadas ao casamento, à maternidade e à sexualidade, focalizando a intersecção entre o privado e o público, entre o individual e o social, o demográfico, o político e o erótico. Assim, para além do tema do trabalho, foram abordados diversos aspectos das ações femininas e de ações sobre as mulheres, destacando a educação feminina, a disciplinarização, os padrões de comportamento, os códigos de sexualidade e a prostituição. Nessa produção, recente mais significativa, poderes e lutas femininas foram recuperados, mitos examinados e estereótipos repensados. Num leque de várias correntes de interpretações, procurou-se recuperar a atuação das mulheres como sujeitos ativos, de modo que as imagens de pacificidade, ociosidade e confinação ao espaço do lar vêm sendo questionadas, descortinando-se esferas de influência e recuperando os testemunhos e poderes femininos.4 Contudo, torna-se cada vez mais necessário, sem esquecer a opressão histórica sobre as mulheres, superar a dicotomia ainda fortemente presente entre a «vitimização» da mulher – uma análise que apresenta um processo linear e progressista de suas lutas e vitórias – e a visão de uma «onipotência» e «rebeldia» feminina, que algumas vezes estabelece uma «heroicização» das mulheres. H ISTÓRIA ,

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O crescimento da produção historiográfica aponta que não se trata apenas de incorporar elas no interior de uma grande narrativa pronta, quer mostrando que as mulheres atuaram e atuam tanto quantos os homens no presente e na história, quer destacando as diferenças de uma «cultura feminina», perdendo-se, assim, a multiplicidade do ser feminino, podendo cair numa mera perspectiva essencialista. Existem muitos «femininos» e «masculinos», e esforços vêm sendo feitos no sentido de se reconhecer diferenças dentro da diferença, apontando que mulher e homem não constituem simples aglomerados; elementos como cultura, classe, raça-etnia, geração, religião e ocupação devem ser ponderados e intercruzados numa tentativa de desvendamento mais frutífera, por meio de pesquisas específicas que evitem tendências a generalizações e premissas preestabelecidas. Acrescidas da preocupação em desfazer noções abstratas de «mulher» e «homem», como identidades únicas, a-históricas e essencialistas, para pensar a mulher e o homem como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações. Após a fase inicial da necessidade de tornar visíveis as mulheres, vinculada a uma certa obsessão pela denúncia, que teria caracterizado uma primeira geração de pesquisadoras, abriram-se possibilidades de se recobrar a experiência coletiva de homens e mulheres no passado em toda a sua complexidade, bem como se procura um aprimoramento metodológico que permita recuperar os mecanismos das tramas de relações entre os sexos e as contribuições de cada qual ao processo histórico e ações presentes.

GÊNERO E PODER NA ANÁLISE HISTÓRICA Foi em função das críticas acima apontadas e das próprias tensões/transformações nas reivindicações dos movimentos feministas5 que surgiu o gênero como categoria de análise. Nesse sentido, importantes contribuições foram dadas pela arqueologia dos discursos de Foucault,6 somadas às propostas de deconstrução de Derrida e psicanálise de Lacan, além das questões postas por novas abordagens. Esses pensadores tiveram ressonância entre estudiosos do tema da mulher e dentro do movimento feminista, propiciando a emergência das pesquisas em torno do gênero. A categoria gênero reivindica para si um território específico, em face da insuficiência dos corpos teóricos existentes para explicar a persistência da desigualdade entre mulheres e homens.7 Como nova categoria, o gênero vem procurando dialogar com outras categorias já existentes, mas vulgarmente ainda é usado como sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior entre os estudiosos desse tema. Considerada mais «neutra e objetiva», a categoria gênero também pode ser vista como uma faceta que busca dar legitimidade acadêmica por parte dos estudiosos do tema. Por sua característica basicamente relacional, a categoria gênero procura destacar que a construção do feminino e masculino define-se um em função do outro, 14

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uma vez que se constituíram social, cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determinados. Não se deve esquecer, ainda, que as relações de gênero são um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças hierárquicas que distinguem os sexos, e são, portanto, uma forma primária de relações significantes de poder. Tendo entre suas preocupações evitar as oposições binárias fixas e naturalizadas, os estudos de gênero procuram mostrar que as referências culturais são sexualmente produzidas, por símbolos, jogos de significação, cruzamentos de conceitos e relações de poder, conceitos normativos, relações de parentesco, econômicas e políticas. A categoria gênero encontrou um terreno favorável na produção historiográfica brasileira contemporânea, desnaturalizando as identidades sexuais e postulando a dimensão relacional. Assim, na década de 90, os estudos se ampliaram e diversificaram em termos temáticos, de abordagens, focalizando diferentes momentos (BESSA, 1998; BRUSCHINI; COSTA, 1992). Ampliaram o campo, descobriram novos temas, diversificaram criativamente as fontes de pesquisa, aprimoraram as estratégias de investigação. Alguns temas foram priorizados, como a questão da violência, direitos reprodutivos, o corpo, o imaginário feminino, as representações de gênero na literatura, pintura, música, cinema e nas mídias. Apesar de se constituir num campo interdisciplinar dos estudos de gênero, algumas áreas foram mais receptivas com destaque para a Antropologia, História e Psicologia. Foi crescente o número de dissertações e teses que, além de incorporarem as mulheres em um ou mais capítulos, privilegiaram as mulheres e a perspectiva de gênero como central. A apresentação de pesquisas nos congressos internacionais, nacionais e regionais cresceu. Foram constituídos GT centrados na temática na ANPUH, bem como em outros fóruns. Formou-se a REDEFEM, um fórum específico e interdisciplinar. Ampliaram-se, também, os cursos e disciplinas oferecidas, todavia a dificuldade maior em captar a dimensão desse processo são as publicações que, apesar de crescentes, ainda são poucas e se encontram setorizadas.8 Assim, pode-se dizer que esses estudos impactaram o ensino e a pesquisa historiográfica.

C ONTRIBUIÇÕES: MÉTODO, CATEGORIAS, FONTES E TEMPORALIDADES A expansão e o enriquecimento dos temas de investigação propostos pelos estudos de gênero foram acompanhados por renovações dos marcos temáticos e metodológicos, enfoques e modos de análise inovadores que, além de questionar os paradigmas tradicionais, vêm colocando novas questões, descobrindo novas fontes, enfim, contribuindo para redefinir e ampliar noções tradicionais do conhecimento, a capacidade de formular questões inovadoras e apontando novas referências. O sujeito universal cede lugar a uma pluralidade de protagonistas, deixando de lado a preocupação com a centralidade. Conjuntamente, também se pode perceber H ISTÓRIA ,

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como ganho uma gradual «dessencialização» de homens e mulheres em nossa e em outras sociedades, tornando-os plurais. A generalização da abordagem de gênero nos saberes disciplinares contribuiu significativamente para generalizar a idéia de desnaturalização biológica das categorias homem e mulher e de outras noções. O método único e racional do conhecimento foi questionado em suas concepções totalizadoras e impositivas, sendo substituído pela multiplicidade de abordagens. Nesse sentido, a contribuição mais significativa foi a da perspectiva relacional, que se generalizou como referência metodológica, somada à incorporação do deconstrutivismo, da crítica dos poderes, da hermenêutica e da descrição densa, que produziram uma desnaturalização metodológica. Essa produção tem revelado os limites da utilização de certas categorias descontextualizadas, sinalizando a necessidade de estudos específicos que evitem tendências a generalizações e premissas preestabelecidas, buscando revelar o processo artificial na construção de certos conceitos supostamente «naturais», bem como observar a heterogeneidade das experiências, incorporando toda a complexidade do processo histórico e presente, o que implica aceitar as mudanças e descontinuidades. Quanto às categorias de análise, nota-se uma preocupação explícita de se libertar de conceitos abstratos e universais e, ao mesmo tempo, resgatar as experiências de outros protagonistas, levando o pesquisador a restringir o objeto analisado e deconstruí-lo no passado, trabalhando sempre de forma relacional os dois gêneros, permitindo, assim, a redescoberta de situações inéditas, não no sentido de apontar o excepcional, mas de descobrir o que até então era inatingível, por estar submerso. Procurar historicizar os conceitos e categorias com que se tem trabalhado (entre elas a própria categoria gênero), construindo-os durante o processo de pesquisa, e incorporar as mudanças, aceitando conscientemente a transitoriedade dos conceitos e do próprio conhecimento, são preocupações que norteiam o trabalho do pesquisador, bem como aceitar a própria efemeridade das perspectivas, a instabilidade das categorias analíticas, constantemente deconstruídas e reconstruídas, e a historicidade inerente ao processo de conhecimento (HARDING, 1993). Nesse sentido, a reconstrução das categorias público e o privado, na perspectiva feminina pode ajudar a clarificar a questão. Os limites entre o público e o privado foram mais explicitados com a definição das esferas sexuais e a delimitação de espaços para os sexos. A representação do lar, da família, em termos naturais, e da esfera pública, ao contrário, como instância histórica, foi uma herança vitoriana da qual emerge o dualismo público/privado, reafirmando o privado como espaço da mulher, ao destacar a maternidade como necessidade e o espaço privado como lócus da realização das potencialidades femininas. No mesmo sentido, questionase a noção de cultura e natureza, na qual cultura está para o masculino assim como o feminino está para a natureza (MATOS, 1995, 1996). 16

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Os estudos de gênero vão de encontro a certas tendências que questionam a concepção de evolução linear e progressista e a do tempo vinculado a leis de mudanças e prognósticos do futuro. Procurando acabar com a segmentação entre passado e presente, os estudos de gênero contribuíram para a ampliação do objeto de conhecimento, levando a descoberta de temporalidades heterogêneas, ritmos desconexos, tempos fragmentados e descontinuidades, descortinando o tempo imutável e repetitivo ligado aos hábitos, mas também o tempo criador, dinâmico e das inovações, focalizando o relativo, a multiplicidade de durações que convivem entre si urdidas.9 As nuanças, as tendências, os movimentos passaram a ocupar a atenção dos pesquisadores em lugar da certeza de fatos cronológicos e periodizações específicas, permitindo ver que a própria história das mulheres não é uma linearidade progressiva, tem ir-e-vir, e que suas lutas e resistências também não podem ser vistas apartadas das tramas de poder. É indiscutível a contribuição da produção de gênero na ampliação das visões do conhecimento, mas ainda há muito mais por ser feito, já que grande parte dos objetos a serem conhecidos ainda está encoberta por evidências inexploradas. Nesse sentido, os estudos de gênero reconhecem a pesquisa empírica como elemento indispensável para detectar o movimento de constituição de sujeitos, analisando as transformações por que passaram e como construíram suas práticas cotidianas. Obviamente, não é tanto a falta de documentação sobre as mulheres e homens, mas a noção de que tais informações não teriam a ver com os «interesses do pesquisador» que gerou a «invisibilidade» das mulheres (SCOTT, 1989). Assim, resta ao pesquisador questionar, nova e diferentemente, fragmentos filtrados pela consciência hegemônica dos documentos oficiais, da Igreja e das mídias.10 Os estudos de gênero, usando de muita criatividade, sensibilidade e imaginação na procura de transpor o silêncio e a invisibilidade a que estavam relegadas as mulheres e os homens e suas relações, trouxe à luz uma diversidade de documentações, um mosaico de pequenas referências esparsas (PERROT, 1984), que vão desde a legislação repressiva, fontes policiais, ocorrências, processos-crime, ações de divórcios, até canções, provérbios, literatura, cronistas, memorialistas e folcloristas, sem esquecer as correspondências, memórias, manifestos, diários, materiais iconográficos, fontes eclesiásticas e médicas. Os jornais, a imprensa feminina, a documentação oficial, cartorial e censos não são descartados, bem como a história oral, que vem sendo utilizada intensamente e de maneira inovadora. Assim, a dificuldade do pesquisador está mais na fragmentação do que na ausência da documentação, o que requer uma paciente busca de indícios, sinais e sintomas, uma leitura detalhada para esmiuçar o implícito, para descortinar os femininos e os masculinos.11 Os estudos de gênero têm se mostrado como um campo multidisciplinar, com uma pluralidade de influências, na tentativa de reconstituir experiências excluídas. Apesar de algumas disciplinas, como a Ciência Política e a Economia, se H ISTÓRIA ,

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manterem refratárias e só mais recentemente incorporarem a categoria, a tendência mais definida é a do estabelecimento da interlocução, que em muito favoreceu a ampliação de áreas de investigação. A abertura dos estudos históricos para as abordagens de gênero vem colocando várias questões em relação à construção de um conhecimento no campo movediço dos estudos de gênero, buscando recuperar as relações entre os sexos, desvendando suas características e estabelecendo relações e articulações entre amplas dimensões. Por outro lado, a variedade de novas abordagens também renova os olhares sobre o passado e o presente, incorpora a diversidade e a multiplicidade de interpretações, abrindo o campo para a análise de expressões culturais, modos de vida, relações pessoais, redes familiares, étnicas e de amizade entre mulheres e entre mulheres e homens, seus vínculos afetivos, ritos e sistemas simbólicos, construção de laços de solidariedade, modos e formas de comunicação e de perpetuação e transmissão das tradições, formas de resistência e lutas até então marginalizadas nas pesquisas, propiciando um conhecimento mais amplo sobre as experiências de mulheres e homens. O enfoque cultural faz emergir outras manifestações passadas e presentes da experiência coletiva e individual de mulheres e homens, em particular de um grande contingente não enquadrado em organizações, e também propicia aos pesquisadores a possibilidade de análise do mundo privado e de esferas de informalidade. Nesse sentido, é importante observar as diferenças sexuais como construções culturais, lingüísticas e históricas, que incluem relações de poder não localizadas exclusivamente num ponto fixo – o masculino –, mas presente na trama política. É necessário investigar os discursos e as práticas que garantem o consentimento feminino às representações dominantes e naturalizadas da diferença, o que não excluiria a incorporação da dominação às variações, manipulações, táticas, recusas e rejeições por parte das mulheres, complexificando as relações de dominação (CHARTIER, 1995).

IMPASSES E PERSPECTIVAS Outrora rejeitada – e até marginalizada –, o tema da mulher passou a ser encarado como uma possibilidade de recuperação de outras experiências. Com a incorporação do gênero como categoria de análise, tem-se procurado demonstrar que o comportamento, sensibilidades e valores que são aceitos em uma sociedade, num certo local e momento, podem ser rejeitados em outras formas de organização social e/ou em outros períodos. Os estudos de gênero contribuíram para ampliar noções, como resistência e experiência, possibilitando o questionamento dos universalismos, do irredutível e do natural, destacando as diferenças, reconhecendo-as como histórica, social e culturalmente constituídas, o que se tornou um pressuposto do pesquisador que procura incorporar essa categoria, permitindo 18

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perceber a existência de processos diferentes e simultâneos, bem como abrir um leque de possibilidades de focos de análise. As abordagens que incorporam a análise do gênero têm revelado um universo de tensões e movimento com toda uma potencialidade de confrontos, a transversalidade de gênero deixa entrever um mundo no qual se multiplicam formas peculiares de identificação-diferenciação vivenciadas de múltiplas formas. Tais abordagens pretendem perceber suas mudanças e permanências, descontinuidade e fragmentação, as amplas articulações, as infinitas possibilidades dessa trama multidimensional se compõem e recompõem continuamente.12 A politização do privado e a privatização do público são novos desafios à interpretação crítica do pesquisador e permitem a ampliação de questões metodológicas importantes, sem abstração do engajamento político ao sujeito do conhecimento. A politização do cotidiano pressupõe uma comunicação entre o pesquisador e os testemunhos, que provém de um questionamento na inserção do pesquisador no mundo contemporâneo. Envolve a interação do sujeito com o objeto, sem uma neutralidade prefixada, criando uma verdadeira sintonia entre o pesquisador e seu objeto de estudo, no processo de conhecimento envolvido em um diálogo crítico entre hipóteses, observações, categorias e arcabouço documental sem um método previamente pronto e fechado (GADAMER, 1984). Ao lado do engajamento do pesquisador com o presente e a transitoriedade do conhecimento, há a diversidade de interpretações possíveis, a multiplicidade de perspectivas analíticas, que são constantemente refeitas junto aos parâmetros e categorias. Trabalhos recentes sobre as mulheres e os estudos de gênero superaram temáticas tradicionais, mas ainda enfrentam dificuldades em articular estratégias metodológicas vinculadas à teoria feminista e manter um estreito contato com correntes renovadoras de interpretação. O crescimento da produção sobre o gênero, ao contrário de esgotar as possibilidades, abriu controvérsias, instaurando um debate fértil. Contudo, alguns problemas de definição, fontes, método e explicação persistem e, entre eles, a diversidade que envolve a própria categoria gênero (BURKE, 1992). Convivem diversas posições, perspectivas, controvérsias e tensões nos estudos, todavia essas diferentes abordagens coincidem com a diversidade de correntes presentes na Historiografia contemporânea. Mas cabe ainda refletir mais cautelosamente sobre os efeitos dos estudos de gênero sobre os campos disciplinares e os efeitos dos saberes disciplinares sobre o campo dos estudos de gênero. Um balanço da produção e a crítica interna permitem visualizar o surgimento de desafios. Inquestionavelmente, grande parte da produção privilegiou o enfoque das experiências femininas em detrimento de seu universo de relações com o mundo masculino. Ainda são raros os estudos sobre as masculinidades, deixando a impressão de que os homens existem em algum lugar além, constituindo-se num parâmetro extra-histórico e universalizante.13 H ISTÓRIA ,

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Proliferaram os estudos concretos, mas já se sente a necessidade de sínteses que abarquem as continuidades e descontinuidades, as desigualdades persistentes e as experiências diferentes, bem como a homossexualidade, deixando de revelar a pluralidade dos femininos e dos masculinos. Igualmente difícil de analisar é a relação entre o particular e o geral, de modo que constitui grande desafio para o pesquisador mostrar como os gêneros fazem parte da história e do presente, abordá-los mais de modo analítico que apenas descritivo, relacioná-los com os acontecimentos mais conjunturais, estabelecendo relações e articulações mais amplas, inserindo-os na dinâmica das transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, o que propicia a reinvenção da totalidade dentro do limite do objeto pesquisado. Por outro lado, deve-se lembrar a manutenção da discrepância entre a alta qualidade da recente investigação sobre as mulheres e a persistência de seu status marginal, que se soma à debilidade dos movimentos feministas contemporâneos, descolados dos estudos acadêmicos. Vem sendo dirigida uma atenção especial à luta das mulheres, porém, resta muito a fazer, em especial, sobre a história do feminismo, procurando recuperar toda a sua historicidade e a diversidade de suas reivindicações. Há que se aprofundar a análise não apenas das experiências masculina e feminina no passado e no presente, mas também da conexão entre história passada e prática atual, procurando manter viva a crença na utopia de que as construções de gênero não são inertes nem eternas, mas mutáveis e reconstruíveis. Ao pesquisador resta a tarefa continua de: deconstruir as diferenças quanto desnaturalizá-las; procurar desvendar o estabelecimento das hegemonias, discutindo com rigor as questões de subordinação/dominação; adotar uma perspectiva de gênero – relacional, posicional e situacional –, lembrando que gênero não se refere unicamente a homens e mulheres e que as associações homem-masculino e mulherfeminino não são óbvias, devendo-se considerar as percepções sobre masculino e feminino como dependentes e constitutivas às relações culturais; procurando não essencializar sentimentos, posturas e modos de ser e viver de ambos os sexos. Espera-se que os estudos de gênero desestabilizem ainda mais as certezas dos pesquisadores e ampliem as possibilidades de críticas sobre a noção de natureza humana. Que o universal masculino (homem branco, heterossexual, ocidental, classe média) deixe de ser generalizável e identificável como natural, possibilitando o questionamento de clivagens e permitindo a descoberta de outras subjetividades até então pouco visíveis e insondadas. Assim, percebe-se que as discussões deslocam-se da identidade feminina e masculina para as subjetividades múltiplas e não unificadas, devendo a própria noção de identidade ser historicizada e problematizada junto à imagem de interioridade e essência que a constituía. Dessa forma, os estudos sobre a subjetividade apresentam-se como uma nova fronteira para as investigações, na medida em que tematizar a subjetividade, 20

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justamente, problematiza a noção de sujeito universal, unitário, isolável, emergindo a centralidade nos processos de diferenciação e nas possibilidades de construção singular da existência nas configurações assumidas pelas apreensões que os sujeitos fazem de si e do mundo. O atual desafio para os estudos de gênero é ser os patrocinadores da «revanche da subjetividade», identificada com a irracionalidade ou a passionalidade. Os estudos de gênero, porém, não representam opção para o pesquisador preocupado com um método que pressuponha equilíbrio, estabilidade e funcionalidade. Tal temática é extremamente abrangente e impõe dificuldades para definições precisas, exige criatividade, sensibilidade e imaginação. São muitos os obstáculos para os historiadores que se atrevem a enveredar pelos estudos de gênero – campo minado de incertezas, repleto de controvérsias e de ambigüidades, caminho inóspito para quem procura marcos teóricos fixos e definidos.

N OTA S

1. O crescimento da entrada das mulheres no mercado de trabalho em expansão foi possível, em grande parte, pela generalização do uso dos contraceptivos (desde os anos 60), que viabilizou o controle mais efetivo da maternidade e um redimensionamento do tempo feminino, apesar da manutenção da dupla jornada. 2. Nesse processo, não se pode negar que a emergência desse novo objeto se deve, em grande parte, à crescente presença feminina nas universidades e à sua organização em núcleos de pesquisa e estudo sobre o tema. Women’s studies e depois os Gender Studies foram antecedentes e modelos de interdisciplinaridade. Hoje, no Brasil, são mais de 150 núcleos de estudos do tema, em grande parte organizados na Rede de Estudos Femininos (REDIFEM). 3. No Brasil, desde os finais do século XIX, sinhás e mulheres de elite publicaram jornais femininos nos quais suas reivindicações se concentraram, sobretudo, em dois pontos: a educação feminina e o direito de voto das mulheres. Desde os anos 20, mulheres, como Bertha Lutz, Mª Lacerda de Moura e Eugenia Cobra, lutaram pela emancipação feminina, paralelamente às lutas de mulheres operárias, sobremodo anarquistas. Têm-se aí claramente definidas as duas vertentes do feminismo: a liberal e a libertária. 4. Foram inspiradores para os pesquisadores brasileiros os trabalhos de Natalie Z. Davis, Michele Perrot, Arlette Farge, Danièle Kergoat, Mary Nash, Donna Haraway, Joan Scott, Louise A. Tilly, Eleni Varikas, Judith Butler, Teresa de Lauretis, Sandra Harding, Marilyn Strathern, entre outros. 5. Não se pode esquecer que, a partir dos anos 80, o feminismo passou por toda uma autocrítica: antigas plataformas, como a busca pela igualdade de condições e direitos em relação aos homens e a procura de construção de uma identidade feminina única, foram em parte questionadas, pontuadas pela diversidade dentro das lutas femininas. As mulheres penetravam nos movimentos sociais, expressando suas reivindicações no interior dos partidos, sindicatos e inúmeras outras associações. H ISTÓRIA ,

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A diversidade se implantou dentro do próprio movimento feminista, que deixava de ser uma luta una e localizada. As reivindicações pelo direito à diferença superam a busca pela igualdade e a pela identidade e o gênero e o relacional se expandem. 6. Foucault influencia significativamente, em particular, ao questionar a naturalização do sujeito e desmistificar as construções das práticas discursivas dominantes. 7. Segundo alguns autores, os estudos de gênero constituíram um novo paradigma, marcado por uma epistemologia feminista. Instaura-se a polêmica, com destaque para Linda Alcoff, Elizabeth Portes, Sandra Harding, entre outras. 8. Cabe destacar revistas que estão centradas na temática, como: Cadernos Pagu (Unicamp), Estudos feminista, Caderno Espaço Feminino (UFUberlândia). Várias outras revistas têm elegido o tema em um dos seus números e recebem um número crescente de artigos sobre gênero. 9. Esses estudos vêm possibilitando, além da descoberta de temporalidades anteriormente abstraídas, a focalização de outros espaços, contribuindo para redefinir e ampliar noções tradicionais e permitindo o questionamento da polarização entre tempo e espaço, dando preferência à categoria território como um elemento constitutivo da trama histórica e presente na memória coletiva. 10. Certos corpos documentais, cujo discurso vincula-se à procura de disciplinarização, precisam ser utilizados com cautela nos estudos de gênero. Tem-se que atentar para a não fragmentação da resistência subordinação, não transformando os sujeitos da resistência em objetos da subordinação. Por outro lado, deve-se ter atenção para não atribuir uma força consciente invejável às lutas e resistências femininas, dando-lhes quase uma onipotência, reconstruindo heróis e invertendo mitos. 11. Partindo do pressuposto de que não se pode fazer pesquisa sem registro e recordando os desafios na procura de dar visibilidade às mulheres e aos homens, torna-se indispensável à organização de coleções corpos documentais, arquivos e bibliotecas temáticas, bem como a produção de inventários e outros elementos que possam mais facilmente viabilizar a pesquisa. 12. Uma urdidura de intermediações do sistema de poder revela toda uma organização de solidariedade, resistência silenciosa e contestadora, cumulativa de improvisação (VEYNE, 1982). 13. Um conjunto de estudos vem contribuindo para denunciar os poderes e seus abusos pelos homens, podendo em parte ser unificado por um certo senso de ultraje moral pela histórica subordinação e exploração das mulheres pelos homens. Como contraponto, diferentes autores destacam, nas suas análises, os aspectos problemáticos do ser homem, emergindo a chamada «questão-crise» do masculino, denunciando os fardos e conflitos da masculinidade e suas exclusões, almejando uma flexibilidade de papéis, sem grandes alterações nas dinâmicas de poder. Questionando o caráter essencialista e parcial desses estudos, outras pesquisas têm apresentado claras evidências nos processos de construções de normas e hegemonias que suportam a superioridade do homem branco ocidental. Questiona a naturalidade da heterossexualidade, a inevitabilidade do progresso científico e do desenvolvimento econômico, vendo a masculinidade dentro das suas especificidades na construção social, cultural e histórica. Assim, torna-se cada vez mais necessário superar a dicotomia, ainda presente, entre a «vitimização» e a visão de «onipotência» masculina vinculada à denúncia do seu poder e de seus abusos. Destacase a necessidade de estudos críticos dos estereótipos masculinos associados à força, poder, agressividade,

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decisão, capacidade de domínio e iniciativa para se desenvolver um enfoque analítico sobre a construção da masculinidade à manutenção das hegemonias e todas as tramas de poder que permeiam as relações de gênero (OLIVEIRA, 1998; MATOS, 2001).

REFERÊNCIAS

BESSA, Karla Adriana. Trajetórias do gênero. Cadernos Pagu. Campinas, n. 11, 1998. BRUSCHINI, Cristina; COSTA, Albertina (Org.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Fundação Carlos Chagas/Rosa dos Tempos, 1992. BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica. Cadernos Pagu, Campinas, n. 4, 1995. GADAMER, Hans-Georg. Truth and method. Nova York: Crossroad, 1984. HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Estudos feministas, Rio de Janeiro, CIEC/ECO/UFRJ, v.1, n.1, 1993. MATOS, Maria Izilda Santos de. Do público para o privado: redefinindo espaços. Cadernos Pagu, São Paulo, Unicamp, p. 97-115, 1995. ———. Na trama urbana: do público, do privado e do íntimo. Projeto História, São Paulo, Educ., n.13, p.129-49, 1996. ———. Por uma história das mulheres. 2. ed. São Paulo: EDUSC, 2001. ———. História, cotidiano e cultura. São Paulo: EDUSC, 2002. ———. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Cia Editora Nacional, 2001. OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a masculinidade. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, v. 6, p. 91-113, 1998. PERROT, Michelle. Les femmes, le pouvoir, l’histoire. In: PERROT, M. (Dir.). Une histoire de femmes est-elle possible?. Paris: Rivage, 1984. SCOTT, Joan. The problem of invisibility. In: KLEINBERG, Jay (Comp.). Retrieving women’s history. Paris: Unesco/Berg., 1989. p. 5-29. SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. São Paulo: Paz e Terra, 1989. SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1991. VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Brasília: UNB, 1982.

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PARTE I

A FABRICAÇÃO DO GÊNERO FEMININO

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TORNAR - SE MÉLISSA EM ATENAS : EDUCAÇÃO E SOCIALIZAÇÃO FEMININAS

Fábio de Souza Lessa Maria Angélica R. de Souza Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas [...] CHICO BUARQUE; AUGUSTO BOAL

Neste artigo, objetivamos discutir a educação – paideía

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– recebida pela jovem ateniense, visando à sua inserção na condição de esposa ideal e legítima – mélissa2 – e as formas de socialização que essas mesmas esposas construíram no interior da pólis para validar as suas atuações e angariar espaço nas tramas da vida pública, tradicionalmente masculina. Relegadas ao interior do grupo doméstico – oîkos, e à vida privada, as esposas atenienses criavam oportunidades para interagir com as relações de poder e de gênero na pólis, sendo capazes de demonstrar no seu cotidiano o poder e a força de Atenas. Constituindo, segundo Aristóteles, a metade da população livre na pólis (ARISTÓTELES, 1260b), as mulheres compõem um grupo social plural e heterogêneo, que será analisado por nós nas suas relações de poder no interior da sociedade políade. Estudar a participação feminina nas tramas de poder ateniense será viabilizado pelo instrumental teórico oferecido pela História de Gênero. A presença das mulheres, seja como sujeito, seja como objeto de estudo, no panorama historiográfico contemporâneo, nos sinaliza para a convicção de que é imprescindível tomá-las em consideração para se entender as sociedades do passado (VAL VALDIVIESO, 2004). Entender a diferença entre o masculino e o feminino, como resultado da organização social da relação entre os sexos, é proposta essencial da História de Gênero. Defenderemos que a feminilidade e a masculinidade são categorias reelaboradas H ISTÓRIA ,

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constantemente em cada espaço e em cada tempo histórico, imersas e atuando sobre um contexto social e cultural específico (AGUADO, 2004). Isso significa dizer que a categoria gênero está ligada à idéia da diferença e da sua articulação em contextos históricos específicos. Gênero, nesse aspecto, adquire a conotação de uma organização social da diferença sexual, baseada nos saberes, nas instituições e práticas produzidas pelas culturas sobre as relações entre homens e mulheres, sendo entendido como relações sociais construídas histórica e culturalmente (AGUADO, 2004; VAL VALDIVIESO, 2004). Os estudos de gênero evitam lançar as mulheres em um campo sem interlocução. Isso porque enfatizam o aspecto relacional entre os grupos de mulheres e de homens (SOIHET, 1997), desenvolvendo-se a noção de que o masculino e o feminino são construções, em suas diferenças, privilegiando a dinâmica relacional. Nessa perspectiva, defendemos que as esposas dos cidadãos abastados atenienses não viviam isoladas em ilhas, mas interagiam continuamente com os homens, na figura de esposos, pais, irmãos ou filhos, com os quais conviviam no cotidiano. Ao acrescermos aos estudos de gênero as pesquisas da Arqueologia e da Semiótica, reunimos instrumentos de análise para interpretarmos a vida das mulheres de Atenas. Tratando-se de uma pesquisa no campo da história do gênero, devemos ressaltar que «[...] o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos [...], portanto é uma maneira de significar relações de poder» (CALAME, 1996, p. 18; SCOTT, 1994, p. 20; VARIKAS, 1994, p. 67). Valendo das análises de Joan Scott, Elena H. Sandoica conclui que gênero é uma maneira de «[...] conceitualizar a política» (SANDOICA, 2004, 43), logo, evidencia a dinâmica das relações de poder. Concluímos que os estudos de gênero aplicados à Antiguidade Clássica contribuem para que possamos descortinar a vivência de homens e mulheres no período estudado trazendo novas reflexões para a Historiografia. Tais tendências compreendem, em nosso estudo, o uso de táticas3 pelas atenienses. Em Atenas, como nas demais póleis, à exceção de Esparta, a educação dos jovens permanecia um assunto de caráter privado. As jovens atenienses chegavam à casa de seus maridos apenas sabendo fiar a lã e a tecer. Segundo Claude Mossé, somente as jovens das famílias abastadas adquiriam conhecimentos de música ou de poesia, pois participavam dos corais que acompanhavam os festivais religiosos (MOSSÉ, 2004). Robert Flacelière afirma que a educação feminina aparecia associada essencialmente às atividades domésticas, mas, desse processo, poderia ainda constar um pouco de leitura, de cálculo e de música (FLACELIÈRE, s/d, p.66). Em pesquisa anterior, pudemos observar que a prática da leitura fazia parte do universo da esposa bem-nascida, constituindo-se numa atividade de socialização dos grupos de esposas (LESSA, 2004). Na hydría representada a seguir (Figura 1) temos uma cena de leitura na qual estão presentes quatro personagens femininas. 28

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Figura 1: Localização: London, British Museum – E 190; Temática: Leitura Feminina – cena de gineceu; Proveniência: Não Fornecida; Forma: Hydría; Estilo: Figuras Vermelhas; Pintor: Niobid Painter; Data: 450. Fonte: Beazley. ARV 611, 36; FANTHAM, 1994: 107, fig. 3. 21; KEULS, 1993: 105, fig. 90, LESSA, 2004: 89, fig.16.

Todas as personagens estão em perfil, demonstrando que a comunicação se limita ao interior da cena.4 No caso da representação em perfil, a veiculação da mensagem se restringe aos personagens em cena, funcionando como um exemplo a ser seguido pelos receptores (CALAME, 1986). Os jogos de olhares das personagens indicam a compenetração na atividade da leitura e defendemos, assim como o fez Elaine Fantham, que a leitura é em voz alta (FANTHAM, 1994). Pressupomos que as outras três personagens que compõem a cena estejam presentes principalmente para ouvir a leitura feita pela personagem que se encontra sentada, isso porque sabemos que a leitura silenciosa não permitiria a coesão e a interação das personagens. A cena é certamente de interior, estando as personagens no gineceu. Tal afirmação é atestada pelos signos freqüentemente de interior, a saber: a mobília e o objeto pendurado na parede que, neste caso, não possuímos a identificação. Assim sendo, o gineceu representaria um espaço de transmissão de cultura oral. De acordo com B. Legras, a Mitologia se constituía em uma das temáticas presentes no gineceu, pois era necessária, inclusive, para a participação das esposas na vida religiosa (LEGRAS, 1998). A imagem representada nessa hydría nos possibilita também comprovar a hipótese de que os leitores atenienses não são solitários, pois, em geral, aparecem, como as personagens femininas da imagem que estamos analisando, em contextos representativos de entretenimento e de conversação. Nesse sentido, podemos concluir que a leitura era vista como uma prática de vida em sociedade (CAVALLO; CHARTIER,1998) e propiciadora de uma integração da comunidade (LESSA, 2004). H ISTÓRIA ,

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Podemos, neste momento, nos indagar acerca do status social das personagens representadas na imagem. Partimos do princípio de que as personagens em cena são esposas bem-nascidas. O primeiro argumento para tal hipótese se constitui pelo fato de que somente os maridos pertencentes aos segmentos abastados poderiam manter suas esposas no gineceu, espaço tipicamente de reclusão feminina. Já o segundo argumento é representado pelas vestimentas, adereços e objetos presentes na imagem. Todas as personagens vestem chitón plissados (LESSA, 2001), três possuem tiaras prendendo os cabelos e há uma caixa de jóia que uma das personagens segura em uma das mãos.5 As jóias nos remetem não somente ao status social das personagens, mas também à esfera da sedução feminina (LESSA, 2001). A cena demonstra que era comum pequenos grupos de mulheres6 se reunirem, quer para as atividades domésticas – como a tecelagem – quer para o descanso (FANTHAM, 1994). Fica claro para nós que o pintor enfatiza a atividade intelectual feminina da leitura e a convivência das esposas em grupo, ou seja, a integração feminina, que poderia acontecer nos intervalos da realização de suas tarefas cotidianas ou, simplesmente, em ocasiões destinadas para tal finalidade. A educação feminina era iniciada na infância pela mãe e amas, visando à formação de uma esposa ideal, e necessitava ser continuada pelo esposo, após o casamento. Às mães cabia a instrução de suas filhas nas tarefas domésticas (POMEROY,1999), enquanto ao chefe de família cabia oferecer à esposa uma educação cuidadosa (BLUNDELL, 1998). A esposa do personagem Iscômaco, por exemplo, foi educada pela mãe na tecelagem, na fiação e na distribuição das tarefas às escravas, tendo sido o próprio marido quem ampliou o seu aprendizado e a tornou capaz para os cuidados que lhes competem (XENOFONTE, Econômico, VII). O fato de caber aos maridos a responsabilidade de complementar a educação de suas esposas não inviabilizava, assim defendemos, que elas elaborassem um tipo de saber próprio, aperfeiçoado pelo exercício diário das atividades e pela divisão das tarefas em um convívio em grupo, permitindo uma das formas de socialização das esposas. Vale enfatizar que, após o casamento, a jovem esposa assumia a responsabilidade pela prosperidade do oîkos de seu esposo e pelo bem-estar do grupo doméstico (FANTHAM, 1994). A escolha pelo grupo social das esposas legítimas se deu pelo fato de o casamento transformar sexual e socialmente a vida das mulheres, pois elas abandonam o estatuto de parthenos – filha virgem – por aquele de gynè – mulher adulta, acompanhada. As jovens passam de filhas à condição de esposas legítimas. Há uma alternância na configuração da identidade social feminina: a jovem deixa de ser a filha de seu pai para ser a esposa de seu marido (BRULÉ, 1999). Mas qual seria para um cidadão ateniense a esposa ideal? De imediato, sabemos que das esposas legítimas os cidadãos buscavam a procriação legítima e a preservação do grupo doméstico (DEMÓSTENES. Contra NeeraI, LIX). Outros aspectos a serem observados numa esposa era a sua capacidade de supervisionar os 30

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escravos, cuidar das provisões alimentares, administrar os trabalhos domésticos, gerenciar a preservação e a armazenagem agrícola, controlar o estoque de produtos e também se empenhar pessoalmente na fiação e tecelagem, visando a prover as roupas necessárias para a família. A reclusão no interior do oîkos é outro aspecto salientado, como virtude de uma esposa legítima, por quase todos os autores antigos (VRISSIMTZIS, 1995; LESSA, 2001). Porém, essa situação só se aplicava aos grupos mais abastados da sociedade, pois a reclusão acarretava gastos que muitos pobres, por exemplo, não podiam chegar a satisfazer. Vamos nos deter em duas das atividades exclusivamente femininas entre os gregos: a fiação e a tecelagem. Essas duas atividades de domínio dos grupos de mulheres, independentemente do status social, nos permitirá analisar a coesão dos grupos de esposas, o grau de sociabilidade entre elas, pois tais atividades pressupõem o trabalho em grupo, e a visualizar também as relações de poder desenvolvidas pelas mélissai. A prática da fiação e da tecelagem, além de suprir algumas das necessidades básicas de um grupo familiar, permitia ainda o estabelecimento de um tipo sophía decodificado apenas pelos grupos de mulheres e se constituía em um dos veículos de comunicação utilizados pelas esposas, permitindo a integração e coesão da pólis. Concebemos que a esposa ateniense tecia na sua intimidade e marginalidade uma trama silenciosa que se propagava nas ações cotidianas. As mulheres pela comunicação não-verbal, ou seja, da tecelagem, dos bordados e outros, contribuíram na construção e modificação da cultura, pois o domínio de tais atividades somou para a transformação do cru em cozido e gerou representações na koinonía. Esse entrelace no cotidiano era articulado pelas mulheres. Vislumbraremos, na próxima imagem, que, no dia-a-dia, as esposas dos cidadãos atenienses congregavam em torno de si funções que eram fundamentais para a manutenção da ordem social.

Figura 2: Localização: Metropolitan Museum of Art – inv. 06.1117. Temática: Trabalhos domésticos (fiação). Proveniência: Atenas. Forma: Pýxis. Estilo: Figuras Vermelhas. Pintor: Não indicado. Data: 460. Fonte: RICHTER: 1936, p. 124-125, Pl. 96; LESSA, 2001, p. 66.

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Nesta pýxis, temos como temática uma importante tarefa doméstica: a fiação. Proveniente de Atenas e datada de aproximadamente 460, a pýxis era usada para cosméticos, pó ou jóias. Servia como caixa para artigos de toalete e, às vezes, era colocada em tumbas. Na imagem, seis mulheres vestem chitón e himátion de cores claras e plissados. Seus cabelos estão amarrados atrás e cobertos por um sákkos. Somente uma personagem está com o cabelo amarrado atrás com fita transpassada. Todas as personagens estão descalças. A cena é de interior, pois apresenta signos de privacidade: coluna e mobília (3 cadeiras e um apoio para perna). Três personagens estão sentadas e três em pé, porém elas se encontram num mesmo plano. As personagens e os objetos em cena evoluem num mesmo quadro espaço-temporal, denotando sincronia entre as esposas na realização das atividades. A representação está em perfil, ou seja, o receptor da mensagem não está convidado com a ação. A imagética nos propicia observar que atividades em conjunto permitiam o estabelecimento do diálogo. No que se refere às imagens como forma de comunicação específica, Ignace Jay Gelb, citado por Martine Joly em seu trabalho, que tem por objetivo auxiliar os consumidores de imagens a compreender como a imagem comunica e transmite mensagens, afirma: «Por toda parte no mundo o homem deixou vestígios de suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos, nas pedras, dos tempos mais remotos do paleolítico à época moderna» (JOLY, 1999, p. 17). As mulheres atenienses registraram, em de sua produção artesanal das roupas, várias decorações em forma, principalmente, de linhas geométricas. Além das roupas lisas, os atenienses também usavam roupas decoradas com motivos geométricos que foram registradas pelos pintores e escritores. Na comédia Lisístrata, Aristófanes associa a tecelagem como atividade essencialmente das mulheres. Elas teriam, na comédia, a importante tarefa de organizar a sociedade ateniense, constituindo, dessa forma, um tecido social, com a mesma perfeição que tecem e fiam (ARISTÓFANES, Lisístrata, vv.). Entendemos que a comédia objetivava atingir o riso, mas o comediógrafo escreveu utilizando dados que perpassavam o cotidiano. Assim, percebemos que, na construção do tecido social dos atenienses, as mulheres detêm o domínio do tempo linear, pois elas são o centro da família, são elas que trazem os homens ao mundo, que durante um determinado tempo cuidam da educação dos filhos e que também têm responsabilidades nos funerais. O controle do tempo é uma forma de poder, mas compreendemos que tal poder é informal, visto que é atribuído aos cidadãos. Entendemos que as esposas dos cidadãos atenienses abastados uniam os pontos do tecido familiar e os da Koinonía. Segundo Richard Buxton, entre os numerosos domínios exercidos pelas mulheres gregas, a responsabilidade da continuidade da comunidade sempre foi atribuída a elas. Responsabilidades que as esposas assumiam em relação ao passado, ao presente e ao futuro (BUXTON, 1996). Do passado, por meio dos deveres 32

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com os mortos: «Carrega nas mãos oferendas fúnebres que se costuma apresentar aos que estão debaixo da terra» (SOFOCLES, Electra, vv.), com o presente por meio da administração do oîkos e, como mães, as mulheres asseguram o futuro, onde a entrada na vida é exclusiva das mulheres: «Tu me traíste e já subiste em leito novo (e já tinha teus filhos!). Se ainda estivesses sem descendência, então seria perdoável que desejasses outro leito» (EURIPIDES, Medeia, vv.). Se nos detivermos apenas no modelo melissa, chegaremos a poucas conclusões, pois teremos reduzidas informações sobre a vida das mulheres que estavam inseridas na sociedade ateniense. O que almejamos é superar essa penúria de fatos sobre as mulheres, buscando por intermédio da comparação dos detalhes, dos ruídos, possibilidades de ação, maneiras de fazer. Na tecelagem, as mulheres têm o controle da trama e da urdidura. As mulheres detinham o controle de todo o processo que envolvia essa atividade. Até se obter o fio para tecedura, um longo caminho era percorrido. A descrição desse processo está contida em um vaso de figuras negras do sexto século. Apesar de não ser do Período Clássico, esse vaso é valioso porque nele estão representadas várias etapas do processo abordado.

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Figura 3: Localização: New York – The Metropolitan Museum of Art – inv. 31.11.10. Temática: Tecelagem e fiação. Proveniência: Vari, Átiva. Forma: Lékythos. Estilo: Figuras Negras. Pintor: Amásis. Data: 540. Fonte: JONES: 1997, p. 171; LISSARRAGUE: 1993, p. 252; BEAZLEY Archive Pottery Search Number BEAZLEY: 310485.

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As personagens na imagem estão em pé e evoluem em um mesmo plano, denotando sincronia ao realizar as atividades.7 Os jogos de olhares estão representados em perfil, dessa forma o receptor da mensagem não está sendo convidado a participar das ações. Os jogos de olhares evidenciam atenção das esposas ao realizar as tarefas presentes na imagem. Verificamos a presença de mobília: banco onde estão sendo colocados os tecidos dobrados, também a presença de vários instrumentos de trabalho: cestos, roca, fuso, tear vertical e balança. Observando esses signos, concebemos que a cena é de interior. As mulheres estão divididas em grupos realizando atividades com a lã. Duas manejam um tear vertical onde o tecido se enrola na parte superior (3a e 3b), duas dobram alguns tecidos (3a e 3b), umas fiam os grossos novelos tirados de um cesto ou uma roçada mais fina com um fuso (3d), outras pesam a lã (3c) e apenas uma personagem está destacada, parecendo estar no comando da ação (3c). Paola Colafranceschi Cecchetti reuniu em pranchas desenhos de pinturas de figuras negras abordando o problema da decoração dos tecidos e trajes gregos do século VI. Dentre os pintores estudados, Amásis foi um dos enfocados. De acordo com Cecchetti, nessa imagem (Figura 3) a parte inferior de algumas vestimentas das personagens está composta com motivos de cruz com pontos e circunferências e a bainha inferior é uma faixa lívida fechada por linhas retas (CECCHETTI, 1971-1972). François Lissarrague faz uma relação muito interessante entre esse vaso e outro, cuja cena representa um cortejo nupcial, tendo na curva superior um coro feminino procurando mostrar a importância da tecelagem.8 A tecelagem em grande escala requer um abrigo fixo, uma vez que o tear tende a ser grande e pesado e, portanto, difícil de transportar. A situação ideal para o seu desenvolvimento era uma comunidade pequena, estabelecida, cercada de bons pastos para as ovelhas. O velo era tosquiado por métodos muito semelhantes aos atuais. O monte de fibras resultante era, então, fiado, e o fio era tecido em um tear (LAVER, 2003). Segundo James Laver, as roupas drapejadas elaboradas com esses tecidos exigiam um avanço considerável na arte de tecer, de modo a tornar possível a produção de retângulos de tecido em dimensões adequadas para tal finalidade (LAVER, 2003). Quanto aos tipos de fios que usavam para tecer, Aristófanes destaca que a lã e o linho eram usados para tal fim «Quero ir para casa. Pois lá estão as minhas lãs de Mileto e pelas traças estão sendo roídas. Que traças? [...] Infeliz eu sou, infeliz de meu linho, que sem pelar abandonei em casa. Esta outra, por causa do linho não pelado, sai. Volta aqui» (ARISTÓFANES, Lisístrata, vv.). O tecido podia ser decorado com motivos obtidos durante a tecelagem e contornado com galões de cor escura. As roupas de reserva eram guardadas em arcas, após serem perfumadas, geralmente por meio de vapores de óleo aromático. 34

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Ao nos direcionarmos para os bordados na documentação textual, na tragédia As Troianas, há uma referência de bordado importante na fala de Hécuba sobre a roupa de seu filho Paris «A imagem de meu filho em sua roupa exótica, bordada de ouro fulgurante, transtornou-te a alma [...]» (EURÍPIDES, As Troianas, vv.). Ela não descreve o bordado, mas a roupa diferente está representando a alteridade do estrangeiro, o outro. Sendo um príncipe, sua roupa possuía uma padronagem de acordo com seu status social, não é um bordado qualquer, mas um bordado com ouro que desperta a atenção de Helena, segundo Hécuba. A qualidade do bordado demonstra a que camada social o personagem pertencia. Concebemos que as esposas podiam lançar mão de tal atividade como um veículo de comunicação entre si. De acordo com Buxton, tecer é um meio de comunicar. A tecelagem de Penélope comunica dor, morte e também é um símbolo de trapaça (BUXTON, 1996). No skyphós que segue o ceramista representou uma cena de tecelagem cujo tecido que está sendo trabalhado possui decoração. Vamos nos deter na análise da imagem 4a, 4b e 4c.

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Figura 4: Localização: Chiusi, Museo Archeologico Nazionale, 1831. Temática: Lado A: Penélope e Telemaco. Lado B: Odisseus. Proveniência: Etrúria. Forma: Skyphós. Estilo: Figuras Vermelhas. Pintor: Penélope P. por Hauser. Data: 430 a.C.. Fonte: BEAZLEY Archive Pottery Search Number 216789.

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Na face 4a, temos duas personagens representadas. Penélope, de acordo com Beazley, sentada em um banco, ela usa chitón e himátion sem decoração (4b). Seu gesto, assim concebemos, parece de espera: mão direita no queixo e mão esquerda em cima do banco. Seu olhar de três quartos está voltado para o chão. Na sua frente, Telêmacos segura uma lança com a mão esquerda e tem sua mão direita repousada sobre a cintura, parecendo esperar uma reação de Penélope. Seu olhar em perfil está voltado para Penélope. Atrás das personagens, há um tear com um tecido ricamente bordado com motivos florais, monstros e animais (4c). O testemunho da documentação literária induz ainda a pensar que os trajes ricamente decorados com motivos florais, de monstros e animais, que se mostram nos monumentos figurados, a começar pelo período orientalizante, não são fantasia do artista, mas reflexo mais ou menos estilizado dos tecidos reais e inspiração de um tipo de traje no tempo, em geral de caráter mais excepcional e procurado, por meio do qual se distinguem divindades ou personagens particulares (CECCHETTI, 1971-1972). Defendemos que essa cena de tecelagem vem valorizar essa diferenciação nas vestimentas. O tecido estaria voltado para a vestimenta em homenagem aos deuses e não a agentes contemporâneos ao artista. Segundo Laver, «Os adornos, geralmente confinados às extremidades, eram bordados e não tecidos no pano, e consistiam em desenhos formais como a ‘cercadura grega», flores e figuras de animais (LAVER, 2003, p. 30). Discordamos de Laver, quando ele afirma que os detalhes nas vestimentas eram bordados e não tecidos nos panos, pois a documentação imagética nos conduz a uma reflexão sobre a decoração sendo efetuada no ato da tecedura, e compartilhamos com o pesquisador quando diz que grande parte dos adornos era feita nas extremidades dos trajes. Concebemos que os pintores e escritores lançaram mão de um repertório cotidiano, entre outros, para compor suas produções. Por meio da interpretação efetuada nos corpora selecionados para a pesquisa, refletimos sobre a educação e socialização das atenienses embasados no instrumental teórico de Gênero. Vislumbramos que as esposas dos cidadãos atenienses possuíam uma trama comunicacional bem urdida, possibilitada, principalmente, pela atuação grupal na execução de tarefas cotidianas, como a tecelagem.

N OTA S 1. O conceito grego paideía, que pode ser traduzido como educação ou cultura e se encontra vinculado à raiz pais, criança. Segundo Claude Mossé, esse conceito recobre uma noção muito mais complexa, que passou por um grande desenvolvimento a partir da segunda metade do século V. Esse desenvolvimento está vinculado, na análise da autora, à presença dos sofistas (MOSSÉ, 2004).

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2. A partir da análise da documentação textual, organizamos um modelo contendo as características mais freqüentes de uma esposa bem-nascida de acordo com os signos recorrentes. Com base nesse modelo, podemos dizer que as mulheres administram o oîkos (as ocupações domésticas são de sua responsabilidade), se casam quando muito jovens, se dedicam à fiação e à tecelagem, possuem como função primordial a concepção de filhos (preferencialmente do sexo masculino), atuam no espaço interno (enquanto o homem, no externo), participam das Thesmophórias (festa em homenagem a Deméter) e das Panathéneias (cerimônia religiosa em homenagem à deusa Athená), permanecem em silêncio, são débeis e frágeis, apresentam a cor da pele clara (um indício de vida longe do ambiente exterior ao oîkos), são inferiores em frente aos homens e apresentam uma atividade sexual contida (LESSA, 2001). 3. Michel de Certeau conceitua tática como sendo uma ação intencional que se faz presente no lugar do outro, no espaço por ele controlado. Ela aproveita ocasiões e delas depende para prever saídas (CERTEAU, 1994). Por não ter por lugar senão o do outro, ela deve jogar com o terreno que lhe é imposto, ou melhor, ela se constitui em um «[...] movimento dentro do campo de visão do inimigo [...] e no espaço por ele controlado» (CERTEAU, 1994, p. 100, grifo do autor). 4. O método de leitura semiótica de imagens proposto por Claude Calame pressupõe que: a) verifiquemos a posição espacial dos personagens, dos objetos e dos ornamentos em cena; b) façamos um levantamento dos adereços, mobiliário, vestuários e os gestos estabelecendo repertório dos signos; c) observemos os jogos de olhares dos personagens. 3.1 olhares de perfil: o receptor da mensagem do vaso não está sendo convidado a participar da ação. Nesse caso, o personagem deve servir como exemplo para o comportamento do receptor; 3.2 olhares de três quartos: o personagem que olha tanto para o interior da cena quanto para o receptor está possibilitando a este último participar da cena; 3.3 olhares em frontal: personagem convida o receptor a participar da ação representada (CALAME, 1986). 5. Não possuímos informações acerca dos outros dois objetos que estão sendo segurados por duas das personagens representadas em cena. 6. A personagem sentada em um klismós mantém seus olhos atentos à leitura de um rolo de pergaminho, que se encontra aberto e seguro pelas suas mãos. Em torno dela, temos três outras personagens. 7. Lissarrague destaca: «Na curva superior do bojo deste mesmo vaso figura uma cena de dança em coro [...]. A tecelagem e a dança são complementares; freqüentemente o imaginário grego assinalou analogias entre o movimento lançadeira e o das dançarinas» (LISSARRAGUE, 1993, p. 252). 8. «[...] este vaso foi encontrado junto com um lékythos idêntico [...]. De um vaso para outro, a justaposição dos temas iconográficos – tecelagem, casamento, dança – revela em que consistem, aos olhos dos atenienses, os movimentos essenciais da atividade feminina, e confere ao tecido um valor simbólico que ultrapassa o caráter anedótico destas imagens» (LISSARRAGUE, 1993, p. 252).

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A MASCULINIZAÇÃO DAS DEVOTAS NO SÉCULO IV D . C .: EUSTÁCIO DE SEBASTE E AS TRADIÇÕES HERÉTICAS DO ASCETISMO

Gilvan Ventura da Silva CONDENAÇÃO EM G ANGRA

Por volta de 355, um sínodo de treze bispos se reuniu em Gangra, a sé titular da

província da Paflagônia, sob a presidência de Eusébio, bispo da cidade, para deliberar acerca da conduta imprópria dos seguidores de Eustácio de Sebaste, tendo sido, na ocasião, subscrita uma carta sinodal endereçada aos sacerdotes da Armênia e fixados vinte cânones por meio dos quais os pais reunidos em Gangra inventariavam os erros disciplinares cometidos pelos «eustacianos» e rotulavam como anátemas aqueles que não se submetessem às disposições conciliares então emanadas. O concílio, ao contrário do que supunham Sócrates (II, XLIII) e Sozomeno (III, 14, 35), não depôs Eustácio, o que teria representado um abuso de competência, uma vez que em Gangra se reuniram, muito provavelmente, apenas bispos paflagônios, os quais não possuíam em absoluto autoridade para interferir em um bispado pertencente a outra província, como sugere corretamente Barnes (1994). Na verdade, ao que tudo indica, a preocupação dos bispos presentes em Gangra era alertar os seus colegas armênios a respeito do comportamento heterodoxo dos discípulos de Eustácio e, nesse sentido, talvez seja legítimo supor uma conexão entre a eleição de Eustácio para a sé de Sebaste e a realização do concílio.1 Ao ocupar a sé metropolitana da Armênia Inferior, Eustácio se encontrava em condições efetivas de exercer uma certa liderança sobre o clero da província e com isso difundir livremente os seus ensinamentos, o que não poderia ser ignorado pelos bispos paflagônios. Por outro lado, em função da nova dignidade recebida por Eustácio, os bispos da vizinha Paflagônia teriam se mostrado receosos em atacar abertamente um colega cuja reputação como asceta era notória. Cautelosos em se pronunciarem contra a pessoa de Eustácio, os paflagônios optaram por censurá-lo de modo indireto,

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recorrendo aos seus seguidores. Uma evidência suplementar de que a ascensão de Eustácio se encontra na origem do concílio nos é fornecida por Sozomeno (III, 14, 36), ao registrar que, após a excomunhão de seus seguidores, o bispo de Sebaste se despiu do hábito que portava e se apresentou trajado como os demais, numa inequívoca reverência à autoridade conciliar. A condenação, quer de Eustácio, quer de seus discípulos, pronunciada pelo concílio de Gangra, representa apenas mais um episódio polêmico da controvertida biografia de uma personagem cuja memória foi preservada pelos nicenos como a de um homem divino, um theios aner. De fato, Sozomeno (III, 14), ao narrar, quase um século depois, as façanhas de Eustácio, o inclui ao lado de santos tão célebres quanto Antônio, Macário, Pacômio e outros, o que não deixa de ser surpreendente, se considerarmos a ferrenha oposição de Eustácio ao homoousios niceno. Filho de Eulálio, um bispo cuja sé não podemos identificar com segurança, Eustácio nasceu por volta do ano 300, tendo na sua juventude freqüentado as lições de Ário, em Alexandria, o que muito iria influenciar sua futura orientação doutrinária.2 De retorno à Capadócia, sua província de origem, Eustácio foi ordenado sacerdote por Hermógenes, bispo de Cesaréia (BAS. EP. cclxiii), fundando em seguida uma comunidade monástica. A partir desse momento, Eustácio passou a se distinguir como um notável asceta, tornando-se o responsável, segundo Sozomeno (III, 14, 31), pela introdução do monacato na Ásia Menor, informação corroborada pelo fato de só dispormos de dados seguros a respeito da difusão do modo de vida ascético na região por meio do concílio de Gangra (MARAVAL, apud PIETRI, 1995), evento diretamente relacionado com a pregação de Eustácio. O movimento monástico liderado por Eustácio, ao contrário do monacato egípcio, caracterizava-se por um extremo rigor e pela tendência ao sectarismo, sendo os ascetas incentivados a viver em estado de pobreza, a observar a mais estrita castidade e a romper com todos os vínculos sociais anteriores à sua conversão, o que implicava a separação dos cônjuges, o abandono dos filhos pelos pais e vice-versa e a revolta dos escravos contra os seus senhores. Além disso, digna de nota é a ousadia demonstrada pelas mulheres que seguiam o bispo, o que contrariava toda a ordem eclesiástica da época, como veremos a seguir. O rigorismo de Eustácio não tardou a desagradar a alguns setores do episcopado oriental. O primeiro a reagir contra a pregação de Eustácio foi seu próprio pai, Eulálio, que o teria repreendido com a exclusão das orações litúrgicas por se vestir de modo impróprio ao ofício sacerdotal (SOC. II, XLIII). Por volta de 340, no concílio de Neocesaréia, do qual quase nada sabemos, Eustácio foi excomungado e deposto das suas funções sacerdotais por Eusébio de Constantinopla, o que decerto teve um impacto mínimo sobre sua carreira missionária, uma vez que o diácono Maratônio, ao receber, por volta de 342, a incumbência de organizar a vida monástica em Constantinopla, o fez de acordo com o modelo ascético preconizado por Eustácio de Sebaste (MARAVAL, apud H ISTÓRIA ,

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PIETRI, 1995). Além disso, cerca de quinze anos após a excomunhão pronunciada em Neocesaréia, os bispos paflagônios se reuniram em Gangra para tratar exclusivamente das conseqüências da atividade missionária de Eustácio, o que é mais um indício do prestígio por ele alcançado entre os ascetas da Ásia Menor.3 Em seguida, Eustácio é acusado de perjúrio perante o concílio de Antioquia, cuja data infelizmente não podemos definir com precisão (SOZ. IV, 24, 9).4 Em 358 ou 359, diante do concílio de Melitene, Eustácio foi deposto da sua sé e substituído por Melécio, decisão confirmada um pouco depois, em 360, pelo concílio de Constantinopla. A privação de Eustácio da dignidade episcopal, no entanto, não seria muito longa, pois, em 366, um concílio de bispos oriundos da Síria e da Ásia Menor e reunidos em Tiana o reintegrou ao bispado de Sebaste (BAS. EP. cclxiii,3). A última referência que possuímos sobre Eustácio remonta a 377, conforme o testemunho de seu ex-discípulo, Basílio de Cesaréia (EP. cciv, 4). Além do apego a modalidades intransigentes de ascetismo, Eustácio aparece em nossas fontes envolvido com a crise ariana que praticamente dividiu o Oriente e o Ocidente no decorrer do século IV. A posição do bispo de Sebaste nesse aspecto, no entanto, foi bem mais moderada. Rejeitando o homoousios de Nicéia, Eustácio tampouco era simpatizante do arianismo stricto sensu, o que determinou sua inclinação pelo credo homeousiano, segundo o qual Cristo, embora não sendo idêntico ao Pai, era semelhante (homoios) no que diz respeito à substância (ousia, cf. DANIÉLOU; MARROU, 1984). A oposição de Eustácio ao símbolo de Nicéia se tornou ainda mais evidente após 360, quando se aliou a Macedônio, igualmente deposto pelo concílio de Constantinopla, na cruzada contra o Espírito Santo, cuja divindade era contestada pelos pneumatômacos. Eustácio, inclusive, parece ter exercido na ocasião um papel de destaque, uma vez que Basílio de Cesaréia (EP. cclxiii, 3), escrevendo aos sacerdotes do Ocidente, nomeia o bispo de Sebaste como um dos expoentes da heresia pneumatômaca. Contudo, em que pese o papel desempenhado por Eustácio no desenrolar da controvérsia ariana, é notável o fato de que as restrições conciliares que sofreu no decorrer de sua vida se relacionam muito mais com o seu ascetismo exacerbado do que com as suas convicções teológicas. O concílio de Gangra, reunido apenas para tratar dos ensinamentos de Eustácio, simplesmente ignora qualquer referência às suas opções doutrinárias. Quanto ao concílio de Melitene, a informação mais consistente relacionada com ele é justamente a deposição de Eustácio, não havendo menção a qualquer debate em torno da divindade de Cristo (BERARDINO, 2002). Já no dossiê de acusações apresentado contra Eustácio diante do concílio de Constantinopla, não se constata nenhuma denúncia relacionada com o credo professado pelo bispo, prevalecendo a evocação das recriminações que sofreu ao longo de sua vida por conta das peculiaridades do seu estilo de devoção, iniciando-se com a punição imposta por seu pai (SOZ. IV, 24, 9). Disso se conclui que o principal transtorno trazido por Eustácio 42

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ao episcopado oriental era de ordem disciplinar e não teológica. O comportamento de Eustácio era perigoso, não por polemizar sobre a divindade de Cristo, mas por ameaçar a própria ordem social da Igreja mediante o exercício de um incômodo ascetismo cujas raízes remontam aos gnósticos, marcionistas, montanistas e encratitas, seitas em franca expansão nos territórios orientais do Império Romano, especialmente na Síria e na Ásia Menor. Sendo assim, a fim de compreendermos com maior clareza a ameaça representada por Eustácio e seus discípulos para a Igreja do século IV, é necessário que nos reportemos às tradições religiosas que presidiram a formação do ascetismo cristão, como se segue.

A S MATRIZES DO ASCETISMO CRISTÃO O termo ascetismo, derivado do grego askesis, significava originalmente exercício físico e, em especial, treinamento de um atleta ou soldado. No período helenístico, entretanto, com a emergência de escolas filosóficas que preconizavam a retirada do mundo e a vida contemplativa (a exemplo do estoicismo, do epicurismo e do cinismo) e com a criação do Império Universal de Alexandre, o que colocou os gregos em contato com as tradições ascéticas do Irã, China e Índia, o termo askesis adquire aos poucos uma nova conotação, passando a identificar um modus vivendi no qual os indivíduos, por meio de exercícios espirituais e penalidades corporais, pretendiam alcançar a virtude e a perfeição. O ascetismo, na realidade, representava uma tentativa de submeter e até mesmo eliminar a natureza animal do homem em prol de uma supervalorização da sua dimensão espiritual, não sendo por acaso que uma das características mais importantes do ascetismo é o seu comprometimento com uma visão dualista do homem e da própria sociedade que conduz tanto ao desprezo pelo corpo quanto à suspensão dos vínculos habituais de sociabilidade. Nesse aspecto, mesmo o epicurismo, um sistema filosófico calcado em um reconhecimento explícito do prazer como fundamento da ética, como o princípio e o fim do agir humano, não foi de todo refratário à espiral de ascetismo que então começava a se esboçar, como se constata na rejeição por parte dos epicuristas dos prazeres considerados não naturais e não necessários, dentre os quais se encontra o prazer do amor (REALE, 1994). De fato, se pudéssemos resumir em uma palavra o ideal de vida ascético, teríamos seguramente que optar pelo termo privação. Na sua busca pela elevação espiritual, pela união com o sagrado e pela superação das imperfeições humanas, os ascetas se submetem a toda sorte de privações, renunciando à palavra, ao alimento, ao convívio familiar, ao conforto material, ao sono e, em especial, às relações sexuais, razão pela qual, na maioria dos movimentos ascéticos, a virgindade e a continência são consideradas virtudes exemplares. Os estóicos, ao insistirem no abandono do prazer sexual e ao considerarem o casamento uma concessão para aqueles que não conseguiam permanecer continentes, H ISTÓRIA ,

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já haviam, de um certo modo, preparado o terreno para o surgimento de modalidades mais radicais de ascetismo (BLÁZQUEZ, 1995). Pouco antes da Era Cristã, temos conhecimento de algumas comunidades de ascetas que parecem ter surgido de modo independente no Mediterrâneo oriental, dentre as quais se incluem os terapeutas do Lago Mareótis e os essênios da Palestina (DODDS, 1975).5 No caso dos essênios e dos terapeutas, o desenvolvimento de comunidades ascéticas no coração do mundo judaico é o sinal de que uma extraordinária transformação espiritual estava se produzindo no Império Romano, uma vez que o judaísmo, em suas origens, havia sempre relegado o ascetismo a uma posição secundária e episódica dentro da práxis religiosa, limitandoo a determinados grupos, como vemos ocorrer entre os naziritas, os quais faziam votos temporários ou perpétuos de não ingerir vinho, não cortar os cabelos e nem manter contato com os mortos (UNTERMAN, 1992). Cristo, ele mesmo, não aparece nos Evangelhos como o iniciador de qualquer movimento ascético fundamentado na rejeição do mundo, no exercício da virgindade e da continência ou em qualquer outra modalidade de privação corporal, mas sim como defensor dos princípios tradicionais do judaísmo contidos no Gênesis, segundo os quais homem e mulher formavam uma só carne, sendo, portanto, inseparáveis (RANKE-HEINEMANN, 1999). Mesmo a declaração contida em Mateus (19, 12) de que «[...] há eunucos que se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus», surge no texto evangélico apenas como uma constatação de que há pessoas que preferem a continência ao casamento e não como um padrão ideal de comportamento. Por tudo isso, o desenvolvimento do ascetismo cristão deve, menos ao judaísmo, a célula-mãe do cristianismo, do que aos seus opositores pagãos, notadamente os gnósticos e os filósofos e médicos greco-romanos. Resultado de uma confluência de tradições religiosas provenientes do Irã, da Síria, da Palestina e do Egito que, um pouco antes do século I d.C., se conjugam com elementos religiosos helênicos, principalmente os de filiação platônica, o gnosticismo emerge como um movimento espiritual sincrético de ampla envergadura, influenciando tanto o judaísmo quanto o cristianismo nascente (PIÑERO, 2002). Não obstante a extrema diversidade de experiências sociorreligiosas que comportava, o gnosticismo se caracterizava, em termos teológicos, por uma concepção do universo como o produto de um erro primordial cometido por uma entidade perversa ou tola, conforme o caso, que, ao gerar de modo inconseqüente a Criação, havia tornado o corpo humano uma prisão para a centelha divina, degradada ao seu unir à matéria. Disso resulta que, para os gnósticos, a procriação humana é tão-somente uma atualização do erro primordial que originou o mundo, pois perpetua o cárcere ao qual o princípio divino se encontra submetido, cabendo aos homens lutar no sentido de obter a salvação mediante o rompimento do círculo vicioso que mantém o princípio divino aprisionado ao corpo. Em decorrência disso, predomina entre os gnósticos o mais rígido ascetismo, com base na condenação do matrimônio e da reprodução. Gerado nas zonas de 44

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confluência entre o judaísmo e a cultura helenística, o gnosticismo não tardou a adquirir matizes cristãos, sendo Jesus adotado pelos gnósticos como o Salvador enviado à terra com a missão de exortar os homens a perseverarem no seu combate à matéria (PIÑERO, 1995). Muito embora o cristianismo tenha, desde o seu início, procurado afirmar a sua própria identidade num ambiente marcado por uma notável efervescência religiosa, o que o levou a rejeitar os preceitos gnósticos, saturados de um dualismo que não se coadunava com a onipotência da divindade judaica, subsiste à constatação de que o gnosticismo exerceu uma inegável influência sobre a religião cristã, como comprova toda a literatura neotestamentária de extração apócrifa cuja moral se alicerçava na virgindade ou na ruptura dos laços conjugais como princípios restauradores do gênero humano. Nesse sentido, talvez a valorização do ascetismo, como estratégia de redenção diante do corpo e da matéria, tenha sido a mais importante herança transmitida aos cristãos pelos gnósticos, herança esta que se traduziu em toda uma retórica de exaltação do celibato e da virgindade e de negação do matrimônio que remonta, pelo menos, a Paulo.6 O ascetismo cristão, desse modo, se fundamenta num acentuado pessimismo sexual que se enraíza, em boa parte, nas tradições gnósticas do primeiro século da Era Cristã. No entanto, é importante mencionar que tal pessimismo não era, em absoluto, uma exclusividade dos círculos místicos do Oriente. Muito pelo contrário, a recusa do prazer e o elogio da virgindade e da continência propostas pelos gnósticos e cristãos encontravam eco, da mesma forma, entre os médicos e filósofos greco-romanos, os quais se tornaram os artífices de uma nova moral sexual muito antes de o cristianismo vir a exercer um papel determinante, nesse domínio, sobre a mentalidade da sociedade romana tardia. Como sugere Foucault (2001), nos meios pagãos do início da Era Cristã, já se encontrava em formação um modelo de conduta fundamentado em, pelo menos, quatro princípios cardinais: prática da temperança, suspeita de que o prazer sexual fosse algo prejudicial, estrita fidelidade monogâmica e ideal de rigorosa castidade, princípios esses conectados com a busca da virtude e o acesso à verdade. Dentre todas as correntes filosóficas do Mundo Antigo que se orientaram por esse modelo, o estoicismo ocupa, sem dúvida, uma posição de destaque ao investir no autocontrole do sábio, ao propor a supressão das paixões (a apatia) e ao sugerir que a sexualidade deve ser exercida tão-somente no âmbito do matrimônio e mesmo assim voltada apenas para a procriação (VEYNE, 1993), o que favorecia a valorização da abstinência sexual entre os próprios pagãos. As opiniões difundidas pelos filósofos encontravam correspondência direta nos tratados médicos da era imperial. De acordo com uma vertente do discurso médico da qual Sorano é um dos mais ilustres porta-vozes, as relações sexuais eram responsáveis pela debilidade do organismo, razão pela qual os homens continentes se mostravam mais robustos e saudáveis que os demais. Já a mulher continente, por sua vez, estava isenta das fadigas da gravidez e do envelhecimento precoce, H ISTÓRIA ,

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conseqüências diretas da atividade sexual. Para Sorano, as mulheres que evitavam o coito e se mantinham virgens eram menos sujeitas às enfermidades, ao passo que a histeria feminina não derivava, em absoluto, da ausência de relações sexuais, como propunham outros autores da época, mas sim dos males decorrentes do coito (abortos sucessivos e partos prematuros) (cf. ROUSSELLE, 1984). Assim como Sorano, seu contemporâneo, Galeno prescrevia a continência como terapêutica, o que inclusive o levava a adotar uma atitude condescendente com os cristãos, devido ao apego à abstinência sexual que demonstravam (RANKEHEINEMANN, 1999). Muito embora não sejamos obrigados a considerar a moral sexual cristã, como faz Paul Veyne (1993), o resultado de uma mera transposição de princípios éticos gerados no seio do paganismo, é inegável que o elogio do autocontrole e da abstinência sexual por filósofos e médicos pagãos se constituiu em um prelúdio importante para o ascetismo cristão o qual, como assinalamos, atribui à virgindade e à continência um papel preponderante na purificação dos fiéis, especialmente no que diz respeito às mulheres, não sendo por acaso que o primeiro texto cristão a tratar especificamente do assunto seja o De virginibus velandis, uma apologia da condição virginal feminina escrita por Tertuliano em início do século III, obra que sistematizava as justificativas morais correntes nos meios cristãos da época para uma prática antiga, qual seja, a da virgindade e da continência femininas. Tertuliano escreve seu tratado sobre a virgindade num momento em que o ascetismo parece dominar e, por vezes, até mesmo ameaçar a vida da Igreja. De fato, o século II se mostra pródigo em movimentos de nítida inspiração ascética que trazem, em seu bojo, uma valorização da figura feminina que praticamente determinou a redefinição do papel das mulheres no interior da Ecclesia pelo milênio seguinte. Dentre tais movimentos, os mais importantes foram o marcionismo, o montanismo e o encratismo, os quais se encontram na raiz tanto dos ensinamentos heterodoxos de Eustácio de Sebaste quanto das medidas restritivas adotadas contra ele pelo concílio de Gangra.

ASCETISMO E HERESIA Em 140, Marcião, o filho do bispo de Sinope, no Ponto, expulso da Ecclesia por seu próprio pai após ter-se envolvido em relações ilícitas com uma jovem, decide se radicar em Roma, tendo antes passado alguns anos em atividade na Ásia Menor. Proclamando-se o legítimo portador da mensagem de Paulo aos gentios, Marcião opera uma distinção entre o Deus Criador do Antigo Testamento, qualificado como uma entidade cruel e vingativa, e o Deus de Amor do Novo Testamento, o verdadeiro Deus, cujo filho havia sido enviado ao mundo para libertar os judeus da opressão da Lei, que impunha aos homens regras sociais obsoletas, aprisionando-os em relações meramente convencionais, a exemplo do matrimônio. 46

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A doutrina de Marcião, ao propor que o mundo material era obra de um Deus de segunda categoria, estranho à complacência e à benevolência do Deus supremo, o qual vivia completamente à parte deste mundo, habitando as esferas celestiais, se aproximava das concepções dualistas gnósticas então correntes (O´GRADY, 1994), ainda que no início Marcião não tenha professado, ele mesmo, o gnosticismo, razão pela qual, embora tratasse a matéria e a carne com desprezo, não as considerava más em essência, como faziam os adeptos da gnose. De qualquer modo, o importante é assinalar que, assim como os gnósticos, os marcionitas se distinguiam por um rígido ascetismo, observando jejuns rigorosos e professando a dissolução dos casamentos e o abandono dos filhos pelos pais (BROWN, 1990). A continência era tão valorizada entre os marcionitas que somente as virgens, viúvas, celibatários e eunucos eram dignos do batismo, permanecendo os demais fiéis na categoria de catecúmenos. Além disso, entre os marcionitas, as mulheres eram autorizadas a praticar exorcismos, a impor as mãos sobre os enfermos e a batizar, numa franca oposição à hierarquia eclesiástica da época, dominada pelos homens, o que suscitava a censura do episcopado (DANIÉLOU; MARROU, 1984). Não obstante as refutações empreendidas contra as teses de Marcião por Justino, Irineu, Tertuliano e outros, as comunidades marcionitas, assimiladas primeiramente aos gnósticos e, mais tarde, aos maniqueus, permaneceram ativas no Império Romano até pelo menos o século V, expandindo-se pelo Egito, Chipre, Síria, Ásia Menor, Palestina, Armênia e alhures. Enquanto Marcião organizava a sua Igreja em Roma, do outro lado do Império, na Ásia Menor, Montano, um ex-sacerdote de Cibele que havia assumido a dignidade episcopal, inicia um dos mais extraordinários movimentos de contestação das estruturas hierárquicas da Igreja antiga de que se tem notícia. Após um transe místico em Ardabau, na Mísia, Montano passou a profetizar por intermédio do Espírito Santo, proclamando que a Jerusalém celeste logo retornaria à terra por um período de mil anos (BURKITT, apud COOK, 1939). Movimento de cunho eminentemente escatológico, a Nova Profecia, como era chamado o montanismo, exortava os fiéis a se preparem para o dia do Juízo praticando um rigoroso ascetismo que incluía a continência e o martírio, recomendações que terminaram por atrair Tertuliano (DANIÉLOU; MARROU, 1984). As mulheres, entre os montanistas, desempenhavam funções ainda mais preeminentes do que no marcionismo. A tradição registra os nomes de Maximila e Prisca, profetisas da mesma categoria de Montano que, além de prescreverem jejuns e dietas alimentares especiais, anunciavam catástrofes iminentes antes do dia do Juízo (MONTERO, 1997). Um dos oráculos atribuídos a Prisca afirmava que era por intermédio da continência (purificantia) que se alcançavam revelações salvadoras, o que reforçava, entre os montanistas, a adesão ao ascetismo (GASCÓ, 1994). No final do século II d.C., o montanismo havia se difundido praticamente por toda a Ásia Menor, além de ter alcançado diversas posições a Ocidente, incluH ISTÓRIA ,

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indo o norte da África e a Península Itálica. Fustigado nos núcleos urbanos pelos defensores da ortodoxia, o montanismo se manteve forte nas zonas rurais até o final do século VII, como atesta a sua condenação no Concílio Ecumênico de Constantinopla em 680-681 (FRANGIOTTI, 1995). Além do marcionismo e do montanismo, um outro importante movimento ascético irrompe no seio da Igreja na segunda metade do século II d.C. Trata-se do encratismo, termo derivado do grego enkrateia, continência, pelo fato de seus adeptos recusarem terminantemente as relações sexuais, a procriação e o consumo de carne e vinho. O encratismo representava inicialmente muito mais uma tendência ao ascetismo radical dentro de associações religiosas de natureza diversa do que um movimento consolidado, remontando aos essênios, aos terapeutas, aos gnósticos e aos cristãos dos primeiros tempos (BERARDINO, 2002). A primeira menção a uma seita cristã de inspiração nitidamente encratita aparece em Irineu (ADV. HAER. I, 28, 1), o qual acusa Saturnino e Marcião de negarem a divina instituição do matrimônio, antecipando-se assim a Taciano, o «patriarca dos encratitas». Taciano, ex-discípulo de Justino, apartou-se da Igreja após o martírio de seu mestre, ocorrido no final da década de 160, tornando-se, então, o principal expoente do encratismo, como se depreende da sua obra A perfeição segundo o Salvador, a mais antiga apologia encratita da qual temos notícia. Em seus escritos, Taciano se dedica a sistematizar os ensinamentos encratitas, propondo que o casamento e as relações sexuais, sendo o resultado da queda de Adão e Eva, representavam uma degradação da condição humana, obrigada, desde então, a compartilhar com os animais a realidade do coito e da procriação, o que afastava os homens de Deus. Nesse caso, apenas rejeitando o casamento e o sexo, o homem teria condições de recuperar o elo primordial que o unia à divindade, evadindo-se, assim, de uma sociedade corrupta, gerada a partir da queda (BROWN, 1990). Após Taciano, a liderança do movimento encratita foi entregue a um certo Severo, cujo prestígio foi tão intenso a ponto de os adeptos do encratismo terem passado à posteridade com o rótulo de severianos (EUS. HIST. ECCL. IV, 29, 4). Contando com textos doutrinários próprios, tais como o «Evangelho segundo os egípcios», o «Evangelho de Filipe» e os Atos atribuídos a Pedro e Tomás, o encratismo, organizado em comunidades diminutas formadas por homens e mulheres unidos por votos de castidade perpétua, difundiu-se por todo o Oriente, radicando-se principalmente nas zonas montanhosas da Síria e da Ásia Menor, lado a lado com os marcionitas e os montanistas (BROWN, 1990). No Egito, temos conhecimento da atuação de Hieracas de Leontópolis, um asceta de tendência encratita que, em fins do século III, começa a difundir a idéia de que apenas os celibatários eram dignos da salvação. Partidário das teses origenistas de preexistência das almas e de ressurreição em um corpo espiritual, Hieracas cedo entrou em conflito com a Igreja egípcia, liderada por Pedro de Alexandria (BERARDINO, 2002). 48

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A despeito da censura eclesiástica às teses de Taciano e Severo, o encratismo recebeu um vigoroso impulso com a expansão do monacato a partir do século IV, como podemos constatar no episódio de Eustácio de Sebaste. Quanto a isso, embora valorizando o celibato e a castidade, a Igreja cuidou sempre de evitar que os excessos de rigorismo conduzissem sacerdotes e fiéis a caminhos muito distantes daquilo que se considerava ortodoxo em termos doutrinários e disciplinares. Sendo assim, embora reconhecendo no ascetismo uma via privilegiada de contato místico com Deus, os bispos exerciam uma vigilância permanente no sentido de evitar que a devoção dos seus monges, virgens e ascetas não trouxesse inovações inadmissíveis para a ordem da Igreja, resultando daí a exclusão das mulheres dos serviços sacerdotais patrocinada pelo episcopado no rasto dos movimentos heréticos do século II d.C. À parte a definição dos cânones testamentários, o reforço do papel subalterno das mulheres no seio da Igreja parece ter sido a conseqüência mais espetacular da reação da Igreja ao marcionismo, ao montanismo e ao encratismo. É certo que alguns anos após a morte de Jesus, nos deparamos com mulheres ocupando postos de liderança em várias comunidades locais na qualidade de profetisas e evangelizadoras (PAGELS, 1995), o que sem dúvida contribuiu para a formação do que será mais tarde a ordem das viúvas e das virgens. No entanto, a influência exercida pelas mulheres se dava tão-somente por intermédio do carisma, não implicando a ocupação de qualquer sacerdócio específico devido às restrições que os homens cedo impuseram à atuação feminina, como vemos na Primeira Epístola a Timóteo (2, 9-15). No entanto, os movimentos heréticos de orientação rigorista que irromperam na Igreja a partir da segunda metade do século II a.C., dentre as contestações que faziam a uma Igreja hierárquica controlada exclusivamente pelo clero, reservavam às mulheres um autêntico ministério, introduzindo um poderoso elemento subversivo em uma instituição submetida cada vez mais ao poder masculino (ALEXANDRE, 1993). Quanto a isso, tais movimentos gravitavam, uma vez mais, na órbita do gnosticismo, na medida em que, entre os gnósticos, as mulheres costumavam ocupar postos preeminentes, como os de mestra, profetisa e missionária, além de auxiliar nos ritos religiosos, incluindo o batismo, a eucaristia e o exorcismo (PIÑERO, 1995). Marcião havia escandalizado seus contemporâneos ao ordenar mulheres na qualidade de presbíteros e bispos (PAGELS, 1995), ao passo que Montano, como vimos, reservava à Maximila e Prisca uma posição equivalente à sua na condução do movimento. Já entre os encratitas, homens e mulheres conviviam lado a lado em comunidades celibatárias, o que contribuía para o esvanecimento das diferenças entre ambos na prática do ascetismo redentor. Como resultado disso, não apenas a palavra e o ensino em público foram proibidos às mulheres, mas se instituiu também um autêntico «apartheid» sexual no interior da comunidade cristã, fixando-se lugares H ISTÓRIA ,

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especiais para as devotas no recinto da igreja e proibindo-se a troca do beijo da paz entre os sexos (ALEXANDRE, 1993). Nesse caso, o cristianismo não fez mais do que atualizar toda a sua herança religiosa, uma vez que, no judaísmo, as mulheres eram segregadas dos homens, ocupando um lugar diferente na sinagoga durante o culto (PAGELS, 1995). Toda essa formidável arquitetura de controle do elemento feminino dentro da Ecclesia, que se encontra concluída por volta do ano 200 d.C., momento em que a comunidade ortodoxa já aceitava a dominação dos homens sobre as mulheres, tanto no plano religioso quanto no familiar, como uma ordem estabelecida por Deus, é desafiada em meados do século IV, por Eustácio de Sebaste, um líder rigorista cujas concepções se aproximavam perigosamente das tradições gnósticas a respeito da mulher e do matrimônio muito vívidas nos territórios da Síria, Ásia Menor e Armênia, assunto do qual passamos a tratar.

CASAMENTO , DIVÓRCIO E ÉTICA FAMILIAR Os ensinamentos de Eustácio acerca do casamento dominaram a agenda de trabalho dos bispos reunidos em Gangra em 355. Dos vinte anátemas lançados contra o movimento, nada menos que oito se referem a aspectos relacionados com a moral familiar, incluindo o cânone I, no qual se proclama que «[...] se alguém condenar o casamento, ou abominar e condenar uma mulher que é crente e devota, e dorme com o seu próprio marido, como se ela não pudesse entrar no Reino dos Céus, que seja anátema». O mesmo assunto é retomado no cânone XIV, no qual se lê: «[...] se alguma mulher renegar seu marido, e desejar abandoná-lo porque ela abomina o casamento, que seja anátema». Além de censurar a rejeição dos esposos legítimos que Eustácio exigia de suas devotas, o concílio se preocupa igualmente em defender a integridade do matrimônio em outras circunstâncias. Desse modo, no cânone IX, proíbe-se que a virgindade e a continência sejam exercidas, não por conta da santidade da renúncia em si mesma, mas por ódio ao casamento, ao passo que no cânone X, aqueles que optaram pela castidade são impedidos de tratar os fiéis casados com arrogância. No cânone XI, os ascetas são advertidos para não deixarem de comparecer às festas de casamento realizadas na comunidade por desprezo à comemoração. No cânone IV, os bispos tomam a defesa dos membros do próprio clero contra os ataques dos eustacianos, anatematizando os que se recusam a receber a comunhão das mãos dos presbíteros casados. Em seguida, a preocupação dos bispos se desloca do casamento em si para a prole. No cânone XV, os eustacianos são repreendidos por renegarem seus próprios filhos ou deixá-los sem alimento sob pretexto de ascetismo, ao passo que, no cânone XVI, os filhos são advertidos para não desprezarem os pais por se considerarem mais piedosos do que eles. No epílogo das decisões conciliares, os bispos paflagônios reiteram a sua reverência pelos laços sagrados do matrimônio, censurando, abertamente, não o ascetismo, mas o atrevimento dos que a ele recorrem com a intenção de exaltar a si próprios em 50

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detrimento dos demais cristãos e introduzir na Igreja inovações contrárias tanto às Escrituras quanto aos cânones eclesiásticos. A polêmica em torno da validade do casamento deflagrada por Eustácio e seus seguidores, na segunda metade do século IV, tem, como vimos, os seus precedentes nas tradições rigoristas gnósticas reproduzidas pelos marcionistas, montanistas e encratitas. No decorrer do seu embate contra as heresias, a Igreja procurou, na medida do possível, preservar a doutrina contida no Antigo Testamento que concebia o matrimônio (incluindo, evidentemente, as relações sexuais nele envolvidas) como uma instituição criada por Deus, o que equivalia a colocá-lo ao abrigo daqueles que o desprezavam por considerá-lo maléfico e demoníaco. Dentre os padres da Igreja que defendiam a sacralidade do matrimônio se encontravam, por exemplo, Clemente de Alexandria, Irineu de Lião e Agostinho. No entanto, em razão de sempre envolver o pecado que acompanhava as relações sexuais, o casamento se torna o principal atingido pela nova moral sexual que emerge a partir do início da Era Cristã (LE GOFF, 1992), advindo daí a ambigüidade que o cerca nos escritos dos teólogos da época, pois, se, por um lado, os padres se distanciam dos heréticos que abominam as relações conjugais, por outro, subordinam o casamento de tal forma à virgindade e ao celibato que muitas vezes terminam, de modo um tanto ou quanto paradoxal, por fortalecer as opiniões que pretendiam refutar (SOT, 1992). Nesse sentido, a exceção mais importante é representada por Joviniano, um monge que, em fins do século IV, incomodado com a glorificação exagerada do ascetismo, defendeu a equivalência entre casamento e virgindade, o que lhe valeu severas críticas da parte de João Crisóstomo (SALAMITO, apud PIETRI, 1995). Na maioria dos casos, entretanto, o casamento, admitido quer apenas a título de manutenção da espécie, como sustentavam os estóicos, quer como uma proteção contra a luxúria, como havia ensinado Paulo, era colocado em segundo plano diante da virgindade e da continência, como vemos em Jerônimo e Ambrósio, dois dos mais influentes pensadores cristãos do final da Antigüidade (MARCOS SANCHEZ, 1986), o que evidentemente só contribuía para reforçar as tendências ascéticas já manifestas. A despeito das possíveis divergências que pudessem ocorrer entre os padres da Igreja, na avaliação do lugar ocupado pelo casamento no contexto da Criação, em um aspecto eles eram unânimes: na indissolubilidade dos laços matrimoniais. Fiéis à mensagem original de Jesus acerca da condenação do divórcio, o que significou para os círculos judaicos do início da Era Cristã uma autêntica reviravolta nos costumes vigentes até então (RANKE-HEINEMANN, 1999), os bispos eram terminantemente contrários ao divórcio, encontrando nesse domínio um apoio considerável em Paulo, que em I Cor, 7, 8 declara: «[...] quanto àqueles que estão casados, ordeno não eu, mas o Senhor: a mulher não se separe do marido – se, porém, se separar, não se case de novo, ou reconcilie-se com o marido – e o marido H ISTÓRIA ,

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não repudie a sua esposa». Um pouco mais à frente, em ICor,7,39, Paulo acrescenta: «[...] a mulher está ligada ao marido por tanto tempo quanto ele vive. Se o marido morrer, estará livre para esposar quem ela quiser, no Senhor apenas». Considerando-se que o divórcio no Direito Romano, tanto quanto o casamento, era um ato privado e muitas vezes efetuado sem a chancela de qualquer documento escrito, bastava que uma das partes manifestasse o desejo de se divorciar para que ocorresse a separação (VEYNE, 1992) o que, conjugado com a incapacidade jurídica dos bispos em interferirem em causas que dissessem respeito ao casamento e ao divórcio, representava um poderoso obstáculo ao cumprimento das determinações de Jesus. No centro de toda essa retórica contrária ao divórcio, no entanto, residia não apenas a vontade dos bispos em viver integralmente a Palavra, mas também a sua preocupação com o status das mulheres dentro da comunidade cristã. Eustácio de Sebaste, ao exortar as esposas a repudiarem os seus maridos, como outrora haviam feito os gnósticos, marcionitas, montanistas e encratitas, conferia mais uma vez ao elemento feminino uma atuação positiva no que diz respeito à sua própria sexualidade. Nesse caso, não se tratava mais do isolamento perante as mulheres adotado por homens que viam na sedução feminina um risco iminente de perdição espiritual, mas na rejeição por parte das mulheres dos cônjuges que, via de regra, lhes haviam sido impostos pela própria família, com tudo o que uma tomada de atitude feminina diante da moral sexual, definida pelos homens, pudesse implicar. O ascetismo, tal como preconizado por Eustácio de Sebaste, se constituía, por um lado, em uma extraordinária via de escape para as mulheres, submetidas em muitos casos a relações conjugais com as quais não se identificavam e, por outro lado, em uma contestação radical à moral familiar vigente no final da Antigüidade. Ao tomarem a iniciativa de abandonar seus maridos, as mulheres se desincumbiam igualmente dos compromissos com a prole, contrariando assim todo um discurso de dominação que lhes reservava ao mesmo tempo o papel de esposas e mães. Tomando a iniciativa do abandono puro e simples dos cônjuges, as mulheres não apenas se afastavam da mensagem do Evangelho como também se liberavam para realizar experiências muito mais radicais, livres da tutela dos seus antigos senhores, o que, no caso do movimento liderado por Eustácio, significava assumir uma personalidade completamente nova, dentro de uma lógica de inversão das relações sexuais que só fez aumentar ainda mais as reservas do episcopado oriental à atuação do bispo de Sebaste.

MASCULINIDADE E REDENÇÃO Pelas informações contidas em nossas fontes, sabemos que Eustácio de Sebaste, além de incentivar as mulheres casadas a renegarem o matrimônio, orientava-as 52

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também no sentido de assumirem um novo papel social forjado segundo os padrões do comportamento masculino, de ingressarem num processo de andronização capaz de assimilá-las aos homens, os modelos da unidade e da perfeição divinas. No cânone XIII pronunciado em Gangra, lemos que, «[...] se alguma mulher, sob pretexto de ascetismo, mudar seus trajes e, em lugar das roupas habituais de uma mulher, vestir as de um homem, seja anátema». O mesmo assunto é retomado em outros termos no cânone XVII, declarando-se que, «[...] se alguma mulher a pretexto de ascetismo cortar seus cabelos, os quais Deus lhe deu como lembrança da sua submissão, anulando desse modo, por assim dizer, o mandato de sujeição, seja anátema». As decisões conciliares correspondem, mutatis mutandi, às informações contidas nos cronistas eclesiásticos do século V, os quais acusam Eustácio de diversos excessos em termos de vestuário e comportamento sexual. Sócrates (II, XLIII) declara que o bispo de Sebaste exigia que as mulheres cortassem os seus cabelos. Sozomeno (III, 14, 34), por sua vez, é mais explícito, afirmando que as seguidoras de Eustácio, «[...] sob pretexto de piedade, raspavam a cabeça e se vestiam de um modo que não convinha a uma mulher, à maneira dos homens». A orientação de Eustácio para que suas devotas adotassem um comportamento masculino significava uma verdadeira afronta à ordem construída pela Igreja no seu embate com as mais diversas modalidades de gnosticismo. Isso porque era corrente entre os gnósticos a concepção de que o elemento feminino representava, no contexto da Criação, a alteridade oriunda da degradação do espírito na matéria, a parte falível da divindade sujeita à transformação no tempo surgida no momento em que o princípio divino, outrora uno e indivisível, passou a ser dual. A dualidade assim expressa deveria necessariamente ser suprimida no final dos tempos, quando a integridade do princípio masculino primordial seria restituída. Desse modo, a salvação para diversas modalidades de gnosticismo exigia a andronização da fêmea, a dissolução do feminino no masculino (WITHERINGTON, 2000), como temos a oportunidade de constatar por intermédio do Evangelho Copta de Tomé (MORALDI, 1999), um dos textos gnósticos que compõem a «biblioteca» de Nag-Hammadi. Vendo Pedro expulsar Maria do meio dos apóstolos, Jesus o repreende nos seguintes termos: «Eis, eu a guiarei de modo a fazer dela um homem, a fim de que ela se torne um espírito vivo igual a vós, homens. Porque toda mulher que se tornar homem entrará no Reino dos Céus» (o grifo é nosso). Por mais que a Igreja encontrasse numa concepção eminentemente patriarcal da divindade, o seu denominador comum com os judeus e com os próprios gnósticos, tendo se esmerado para erradicar todas as imagens femininas de Deus da tradição cristã ortodoxa (PAGELS, 1995), tarefa concluída por volta do ano 200 d.C., o que coincide com o reforço dos códigos de submissão das próprias mulheres na vida cotidiana da Ecclesia, postular de algum modo a eliminação do princípio feminino mediante a sua identificação com o masculino era simplesH ISTÓRIA ,

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mente inadmissível para os meios eclesiásticos, não apenas pelo fato de que Deus era o responsável pela existência de ambos os sexos, mas também pela posição nitidamente inferior atribuída à mulher, eterna dependente do homem desde o momento da Criação. Nesse domínio, como em tantos outros, Paulo é mais uma vez autoridade. Em sua Primeira Epístola aos Coríntios, escrita por volta de 57 d.C., o apóstolo associa de modo surpreendente a submissão feminina com nada mais nada menos do que os cabelos. Defendendo que a mulher é a glória do homem, pois «[...] o homem não foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem», Paulo recomenda às mulheres que tenham longos cabelos, pois estes lhes foram dados por Deus como se fossem um véu, ao passo que recorda ser desonroso para os homens trazerem os cabelos compridos (1 Cor, 11, 2-16). A aparência masculina e a feminina se encontram, assim, claramente dissociadas, o que acompanha a vontade divina que presidiu a própria Criação. No seu embate contra os gnósticos e demais seitas heréticas, a Igreja dos primeiros tempos não fez mais do que reiterar as distinções já estabelecidas por Paulo, numa tentativa de coibir toda e qualquer pretensão feminina em se equiparar aos homens no monopólio dos bens de salvação, trabalhando incessantemente no sentido de reforçar, como diria Bourdieu (2002), os princípios antagônicos da identidade masculina e da feminina por meio de uma pedagogia corporal que naturalizava uma ética construída à luz tanto da cultura judaica, com a supressão das mulheres de qualquer participação no culto da sinagoga, quanto da própria cultura romana, que entendia a formação dos gêneros na confluência da criação e preservação das hierarquias de poder (MONTSERRAT, 2000). Na sua obsessão pela manutenção da ordem e do poderio masculinos, os bispos operaram uma clivagem entre homens e mulheres que bloqueava qualquer possibilidade de confusão entre ambos, como se conclui da instituição do diaconato feminino, bastante popular no Oriente a partir do século III. À primeira vista, poderíamos ser induzidos a supor que o surgimento de uma ordem de diaconisas contrariava, ao fim e ao cabo, todo o discurso misógino sustentado há séculos pelos autores cristãos. No entanto, não podemos perder de vista o fato de que o diaconato feminino atendia prioritariamente à lógica de segregação sexual então vigente pelo fato de que as diaconisas eram as responsáveis pelas visitas às mulheres doentes e inválidas, pelo batismo das mulheres e pelo acompanhamento daquelas que fossem atendidas por um diácono ou bispo, de modo que os espaços de sociabilidade entre os sexos fossem restringidos ao máximo (ALEXANDRE, 1993). O que os bispos reunidos em Gangra condenavam prioritariamente nas ações de Eustácio e seus discípulos era a ruptura dos princípios hierárquicos da Igreja, os quais reiteravam a submissão das mulheres pelos homens, estivessem estes ocupando o papel de pais, esposos ou sacerdotes. Ainda que o gnosticismo fosse, em todos os sentidos, um sistema religioso marcado por um patriarcalismo que reclamava a supressão da alteridade feminina (WITHERINGTON, 2000), a equiparação entre os sexos, pro54

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porcionada pelos gnósticos ao estimularem a participação feminina na celebração do culto e na vida da comunidade, tornava as mulheres potencialmente ameaçadoras para um episcopado misógino e desafiado por heresias de todos os matizes, como era o católico. Ao propor a suspensão unilateral dos laços conjugais e a andronização das mulheres, Eustácio de Sebaste reintroduzia na Igreja do seu tempo um elemento subversivo que o episcopado há séculos tentava submeter. Levando-se em consideração que toda a moral sexual da Antigüidade foi progressivamente deslocada do eixo da imagem das relações entre os homens para a relação destes com o sexo oposto (FOUCAULT, 2001), a condição da mulher como um alter perigoso e temido, que precisava ser reprimido a qualquer preço, experimentou um reforço significativo. Contra uma interpretação por demais literal e imediatista das palavras de Paulo (GAL, 3, 28), segundo as quais em Cristo não existe nem homem nem mulher, os bispos reagiram segregando as mulheres e, nesse movimento, fortaleceram a sua própria posição. As relações de gênero, na qualidade de manifestações primárias das relações de poder (MATOS, 2002), presidiram assim a construção da ortodoxia. Nesse sentido, a atribuição às mulheres de um papel ativo e criador dentro da comunidade de fiéis, como ocorria entre os gnósticos, marcionitas, montanistas e encratitas, se converteu pouco a pouco em um dos principais parâmetros de demarcação entre heresia e ortodoxia o que significou, em última análise, uma associação estreita entre a condição feminina e o comportamento herético, produzindo-se assim um estigma que se perpetuará pelo milênio seguinte. Para todo esse processo de discriminação das mulheres que se acentua no Baixo Império Romano, a contribuição de Eustácio de Sebaste e seus ascetas não pode ser esquecida, tanto que em 390 Teodósio, o guardião imperial da ortodoxia, decretava a deposição de qualquer bispo que acolhesse em sua igreja mulheres que, por apego a um ascetismo incontrolável, renunciassem à sua aparência feminina, contrariando desse modo as leis humanas e divinas (SOZ. VII,16).

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1. Ao contrário do que supõem alguns autores, não possuímos uma indicação segura de que o Concílio de Gangra tenha ocorrido antes de Eustácio assumir o bispado de Sebaste. Maraval (apud PIETRI, 1995), por exemplo, registra o ano de 356 como sendo o da eleição de Eustácio, enquanto Guy Sabbah (1996 p. 326-327, n. 1), na tradução francesa da História Eclesiástica de Sozomeno, se limita a mencionar que tal fato ocorreu antes de 357. Tais conclusões, no entanto, são meramente conjecturais. 2. A despeito de Sócrates (II, XLIII) tomar Eulálio, o pai de Eustácio, como bispo de Sebaste, e de Sozomeno (IV, 24, 9) apontá-lo como bispo de Cesaréia da Capadócia, não possuímos nenhuma evidência segura que nos permita optar por qualquer uma das versões. H ISTÓRIA ,

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3. Muito embora tenhamos conhecimento da realização de um concílio em Neocesaréia entre 314 e 319, é muito difícil sustentar que esse concílio tenha sido o responsável pela condenação de Eustácio da qual nos dá notícia Sozomeno (IV, 24, 9). Em primeiro lugar, devido à cronologia muito recuada. Se admitirmos que Eustácio nasceu em 300, e que seu pai o excluiu das orações litúrgicas antes da punição conciliar, ele teria iniciado sua atividade monástica muito jovem, o que não parece plausível. Em segundo lugar, porque a narrativa de Sozomeno associa muito estreitamente a condenação de Eustácio pelo concílio à deposição decretada por Eusébio de Constantinopla, o que nos leva a concluir que os bispos se reuniram novamente em Neocesaréia do Ponto em algum momento entre 338 e 341, período no qual Eusébio foi o titular da sé de Constantinopla. 4. Não sabemos ao certo em qual dos concílios reunidos em Antioquia Eustácio foi acusado de perjúrio, mas pode-se supor, com razoável probabilidade, que tenha sido o de 358, ocasião em que Eudóxio de Germanícia foi condenado por suas teses arianistas (cf. BARNES, 1994). 5. Em um certo sentido, talvez pudéssemos considerar os neopitagóricos como uma variação filosófica do ascetismo, especialmente se nos recordamos de Apolônio de Tiana, cujo devotamento à santidade o conduziu a adotar um comportamento nitidamente ascético, incluindo a continência. 6. A despeito de Paulo ter censurado aqueles que, em sua época, atentavam contra a dignidade do matrimônio, admitindo ser preferível casar-se a viver em concupiscência e sugerindo que o casamento, assim como o celibato, são dons divinos, não resta dúvida de que, na ótica paulina, a continência era superior à união conjugal, uma vez que o apóstolo, dada a abstinência sexual que observava, se julgava um modelo para os solteiros e viúvos (1 COR, 7, 8). Nesse sentido, Paulo, embora evitando uma associação direta com as teses gnósticas, não consegue romper com o dualismo então dominante nos meios judaico-cristãos (PIÑERO, 1995).

REFERÊNCIAS

Documentação primária impressa

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OS PARADIGMAS DA SUBMISSÃO : MULHERES , EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA RELIGIOSA

– UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA 1 Jane Soares de Almeida

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ara estabelecer interfaces dos estudos sobre mulheres com a educação e a religião, são necessários recortes culturais e ideológicos, assim como é preciso analisar as representações simbólicas que se estabelecem entre os sexos na sociedade organizada. Essas representações produzem e mantêm estereótipos acerca das mulheres no campo social que ultrapassam o limite do simbólico e se traduzem por ações concretas e atitudes discriminatórias difíceis de serem detectadas, porque são encobertas em nome ora do protecionismo, ora da culpabilização, tendo em vista as relações de poder inerentes à orientação e protagonismo sexual, nas quais as mulheres representam a parcela sobre a qual se exerce a dominação sexual. A religião se insere na cultura da sociedade ao edificar regras e valores, ditando hábitos e costumes, normatizando corpos e esculpindo mentes, numa escalação axiológica que regra comportamentos e estabelece uma tessitura inconsútil nas relações entre homens e mulheres. Estas últimas convergem para si o imaginário social que lhes atribui simbologias próprias ao que se espera de seu sexo. Ao regrar o comportamento com o apelo ao imaginário e ao sagrado, a religião ratifica os princípios morais e educacionais quanto ao sexo feminino e advoga sua perenidade ao edificar com sucesso a simbologia da sacralidade vocacionada que aureola o protagonismo feminino e se presta eficazmente na manutenção desses princípios. Sob seus dogmas, as relações de gênero se solidificam cultural e ideologicamente, dando espaço ao simbólico que paira sobre a vida social, a política e a economia. Em contrapartida, essas relações também são erodidas ao darem abertura para a violência, a discriminação e o preconceito. A educação é o veículo no qual a cultura e a religião alicerçam seus valores e transmitem a ideologia, configurando um espaço essencial de inculcação moral, religiosa e de regras de comportamentos, nas quais também se ancoram as relações H ISTÓRIA ,

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de poder. A educação e a religião e sua intrínseca relação com o feminino configuram um terreno ainda pouco estudado, mesmo se considerarmos os significativos avanços epistemológicos nesse campo nos finais do século XX. A presença feminina, apesar dos notáveis avanços das últimas décadas, ainda se situa nas fímbrias do sistema, na marginalidade das suas realizações e na pouca importância do ponto de vista da coletividade, de uma existência transcorrida nos intramuros da domesticidade. Apesar de alguns pesquisadores e pesquisadoras considerarem que o discurso da invisibilidade feminina na História já está superado, ainda persistem espaços lacunares nos quais é marginal a atuação feminina na narrativa historiográfica, precisamente porque encontrar vestígios de sua passagem é uma tarefa bastante grande e demanda um aprofundamento na busca das fontes. Ao contrário dos feitos masculinos sobre os quais existe farta documentação histórica, sobre as mulheres há registros que aos poucos vêm sendo recuperados, como documentos, fotos, cartas, diários, testemunhos de tempos guardados ao longo dos anos, na intimidade dos lares, na preservação daquilo que se viveu, até então abrigados de olhos indiscretos. No entanto, a histórica ausência feminina da instrução e das esferas de poder impede testemunhos mais vastos e, para escrever sobre mulheres em qualquer campo do conhecimento, há que se valer de sinais, de indícios, de vestígios, de fontes pouco ortodoxos num risco assumido de desconsiderar que apenas o que é objetivo dá conta da existência humana, sejam seus atores homens, sejam mulheres. Procura-se, mais do que interpretar, reinterpretar, inferir, concluir parcialmente, eliminando em parte a invisibilidade que por tanto tempo vem se cristalizando no espaço da sociabilidade.

EDUCAÇÃO , RELIGIÃO E O REGRAMENTO DA VIDA FEMININA : UM OLHAR PARA O SÉCULO XIX No mundo que se desenhou no século XIX, houve continuidade na predominância do sagrado na vida social cotidiana, mesmo levando-se em conta a herança renascentista e o apelo à racionalidade. A religião manteve o estatuto de ser o marco fundamental sobre o qual se assentavam as aspirações, os costumes, as tradições, a política, a vida social e a economia. Nessa moldura, as mulheres eram vistas como as mantenedoras da fé religiosa, as guardiãs da moral e dos bons costumes. No Brasil foi notória a influência da Igreja Católica desde a Colônia, poder que parcialmente foi sendo perdido com o advento das idéias liberais e positivistas que esculpiram a mente dos ilustrados da época antes e depois da República. Esse poder também ficou ameaçado durante algum tempo, com a inserção do Protestantismo, religião que trouxe ao País, a partir da segunda metade do século, um novo sentido ético-religioso com notável cunho político. O patriarcado urbano na Província de São Paulo, fortemente impregnado pela cultura francesa, contou com influências culturais dos padres, professores e pastores 60

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protestantes, acontecendo o mesmo com a aristocracia rural representada pelos senhores de engenho. As classes médias só puderam se manifestar no final do século XIX, pois sempre estiveram esmagadas entre o poder do latifúndio e a escravidão. O processo de urbanização traçou novos contornos no panorama cultural e econômico da Província, mas manteve a permanência do Catolicismo como um dos mais essenciais valores da sociedade brasileira. Nas primeiras décadas do século XX, a supremacia do médico sobre o confessor marcou uma nova fase na situação feminina, envolvendo relações sociais com outros homens que não o marido, situação certamente diversa do período Colonial e do Império, com as mulheres resguardadas dentro das casas, impedidas de sair à rua e freqüentar locais públicos. Com o advento das idéias republicanas e o entusiasmo pelo liberalismo europeu defendidos entusiasticamente nos meios ilustrados, as mulheres começariam a sair às ruas, a ir ao teatro, ao colégio, à loja, à igreja, significando um indício dos primeiros passos dados no sentido de se libertarem da excessiva autoridade patriarcal. Apesar da separação oficial da Igreja e do Estado, as mulheres, os filhos pequenos e os escravos se mantinham como os elementos conservadores da fé religiosa, tendo os homens se afastado da igreja em busca dos ideais liberais e positivistas, atraídos também pela maçonaria. Portanto, a hegemonia de uma nova ideologia principiou estabelecer seus contornos na sociedade brasileira com a Igreja recuperando seu poder e investindo na educação como meio de se perpetuar e um novo olhar sobre a educação feminina, atribuindo às mulheres o papel de formadoras de consciências. Nisso todos se uniriam: Igreja, Estado, Positivistas e Liberais, e escolas se abriram, como as escolas normais, os colégios e internatos como forma de instruir e educar o sexo feminino e, pela educação das mulheres, também educar os homens. Essa ideologia normatizou corpos e almas femininas e ambos os sexos se sentiram à vontade em seus novos papéis sociais e se manteve a cultura. Idéias que em certo período histórico funcionaram como impeditivas para a libertação feminina, posteriormente se transformaram, assumindo apenas novos contornos e mantendo inequivocamente a mesma ordem social vigente. Nessa ordem, o Protestantismo esculpiu uma idéia de liberdade e modernidade; o Catolicismo intentou manter a tradição e adotou posições conservadoras, mas as mulheres, em ambas as ideologias religiosas continuaram relegadas ao desempenho de papéis secundários, dando-se continuidade aos mesmos mecanismos de submissão e opressão, assumindo estes apenas novas roupagens. Religião e cultura se entrelaçaram com a ideologia na manutenção do status quo vigente e homens e mulheres continuaram desempenhando os papéis que lhes eram atribuídos apesar da nova ordem e do progresso, cabendo às mulheres missão educativa moralizadora, como indicava a Igreja Católica, como desejavam os ministros protestantes, como exigia a sociedade, todos apoiados pelo Estado e pelos demais segmentos sociais. No contexto social e religioso do século XIX, a dificuldade das pessoas do povo de terem acesso à educação também funcionava como empecilho para a leitura de H ISTÓRIA ,

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manuais religiosos, histórias das vidas dos santos, missais e da Bíblia católica. Por ser escrita em latim, a Bíblia impedia que a maioria da população tivesse acesso aos seus ensinamentos, notadamente aqueles que viviam no interior das províncias, locais aonde raramente chegavam os padres ou se construíam igrejas e escolas. As pequenas vilas, locais de residência de homens e mulheres livres e escravos surgiam pelos sertões, ajuntamentos de dez, cinco, duas mil almas, possuíam, nas últimas décadas dos Oitocentos, quando muito, pequenas igrejas, às vezes um cemitério e uma ou duas cadeiras de instrução primária pública para ambos os sexos, em municípios divididos em paróquias. Os missionários protestantes, que, nas décadas finais do século XIX, vieram ao Brasil, se apresentavam e se desejavam como expoentes de uma força renovadora que não pretendia apenas o ajustamento de seus membros às condições político-sociais dominantes, mas aspiravam por transformações econômicas a exemplo do que vinha acontecendo no seu país de origem, alicerçando, assim, o poderio do capitalismo incipiente que se delineava desde os meados do século XIX. Seus representantes assumiam uma postura de progresso e desenvolvimento, aliada a um padrão de comportamento ético onde imperava a austeridade; defendiam a vocação secularizante entre Igreja e Estado; a educação liberal e democrática, e se opunham ao totalitarismo retrógrado defendido pelos católicos. Nessa postura, qualificada por eles mesmos de ética e sagrada, introjetavam a idéia do destino manifesto de um povo escolhido por Deus, o qual possuía a incumbência divina de levar a verdadeira fé aos gentios e idólatras que viviam nos quatro cantos do mundo. Embora existam documentos2 comprovando o trabalho dos missionários americanos no Brasil, como cartas à Junta das Missões Estrangeiras, diários, relatos de viagem, papéis oficiais de criação de igrejas e escolas, pouco se sabe sobre as mulheres que acompanhavam pais e maridos ministros a lugares distantes, tanto no seu país como no estrangeiro, para divulgar a doutrina de sua fé religiosa. Nas narrativas, comumente destacam-se as realizações masculinas, principalmente porque estes deixaram escritos e foram perpetuados por meio da iconografia da época, o que nem sempre aconteceu com as suas filhas e esposas. No século XIX, as relações entre os dois sexos estavam pautadas por um estrito senso de territorialidade, com a mulher voltada exclusivamente para o mundo doméstico e o homem se encarregando das esferas produtivas. Em contrapartida, embora, como já dissemos, ainda carecendo de maiores pesquisas, no campo escolar existiu um forte protagonismo feminino, que nem sempre é contemplado nas análises investigativas tendo em vista a já nomeada exigüidade de fontes históricas. Na ação educacional missionária protestante, nas escolas católicas, no ensino privado e na educação pública, as mulheres se encarregavam das aulas nos colégios protestantes e nas pequenas escolas erigidas ao lado das igrejas, nas classes de primeiras letras da zona rural para os filhos dos colonos, nos colégios católicos e escolas particulares. Essas mulheres ocuparam espaços como professoras e catequistas de 62

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crianças, quando da criação de uma escola para cada igreja que era erigida para cultuar a fé protestante e levar aos nativos da terra a palavra divina. Desempenharam a docência nas pequenas escolas rurais mantidas pelo Poder Público e fortaleceram a fé católica ao ensinar conteúdos curriculares nos orfanatos e colégios de freiras. As professoras brasileiras eram leigas em sua maioria, detentoras de poucas luzes acadêmicas. Não há que se esquecer os raros cursos existentes para o sexo feminino em vista da relutância social de promover instrução para as meninas e as moças. Algumas poucas foram educadas freqüentando os colégios de freiras ou escolas particulares dirigidas por estrangeiras. Outras recebiam superficiais lastros educativos no interior das residências. A maioria, no entanto, era formada por mulheres analfabetas e ignorantes. As freiras católicas transplantavam para o território brasileiro a cultura conventual tradicional, fortalecendo comportamentos, hábitos e costumes que regravam a vida das mulheres desde séculos no continente europeu. Na sua estada no País, todas essas mulheres enfrentaram dificuldades com a língua nativa, problemas de adaptação, doenças e perdas familiares. Raríssimas tiveram seu nome reconhecido ou sua vida desvendada até hoje. Nos primeiros tempos do Império, devido à tradição anticlerical e regalista do período, o ensino católico para moças era inexistente, quando muito havia escolas particulares dirigidas por estrangeiros. Na transição Império-República, a educação pública se debruçou sobre a necessidade de alfabetização para o operário e o imigrante que atuavam nas esferas de produção. Havia uma intencionalidade de se proporcionar uma educação científica às elites que iriam dirigir o País que se formava iluminado pelas idéias liberais e democráticas. Essas idéias defendiam que nas escolas do Governo republicano o ensino deveria estar livre dos dogmas tradicionais da Igreja e sob gerenciamento estatal. Alguns setores acreditavam na emancipação cultural da mulher pela via da instrução, embora fossem raras as boas escolas femininas. Nas décadas seguintes, tendo se fortalecido o regime republicano, com o objetivo de instruir as jovens, a educação escolar passou a contar com a colaboração de freiras católicas, estrangeiras e brasileiras, que se incumbiam do ensino das meninas nos orfanatos e nos colégios em regime de internato e externato mantidos pela Igreja Católica. A oligarquia paulista conservadora tinha uma certa predileção por esses colégios, para onde mandavam suas filhas e onde a educação se erigia sobre os valores cristãos tradicionais, na moralidade elevada, na religiosidade extrema, na submissão feminina ao modelo patriarcal da sociedade e por isso mesmo antifeminista, visando principalmente à manutenção da ordem social. Além das educadoras católicas vindas ao País nos meados do século XIX, a partir da República, que voltou seus olhos para a educação popular, a organização escolar contou com a presença de professoras primárias públicas que se encarregaram da educação das meninas e posteriormente dos meninos de tenra idade nas pequenas escolas das zonas rurais, num processo que foi se acentuando nas décadas seguintes, H ISTÓRIA ,

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quando completaria o ciclo da feminização do magistério primário no Brasil, no século em devir. Deslocando-se por estradas de terra em meios de transporte precários ou alojando-se na casa dos fazendeiros, iam ensinar as pessoas pobres do interior e os filhos dos imigrantes europeus, sendo olhadas com desconfiança e preconceito, dado que o trabalho das mulheres fora do lar, exercendo uma profissão remunerada, era visto com reservas pelos homens e pela população em geral. A idéia de mulheres transitando no espaço público e no mundo do trabalho nunca deixou de ser combatida pela sociedade, extremamente conservadora quanto ao sexo feminino, independentemente de sua cultura e da religião professada. Quanto às professoras, o Poder Público e os administradores escolares veiculavam a imagética de que estas eram melhores mestras, pois possuíam atributos de afeto, meiguice, bondade e obediência que eram próprios das mulheres. Com o ingresso do País nos tempos pós-republicanos que anunciavam um novo mundo banhado pelo brilho da igualdade de oportunidades, o magistério primário tornou-se um dos principais espaços nos quais as moças poderiam ter acesso à instrução e receber formação profissional. A feminização se deu tanto na maior freqüência das Escolas Normais pelas moças, como pela ocupação da profissão pelo sexo feminino e se fortaleceu no século XX, apesar da oposição inicial dos segmentos masculinos mais conservadores. Em parte, isso pode ser explicado pelo crescimento da escolaridade obrigatória, pois as mulheres, que até o século XIX, somente tiveram acesso à educação religiosa conventual, pela Lei de 5 de outubro de 1827, com as idéias propagadas pelo liberalismo republicano viram ampliada sua possibilidade de receber educação escolar e exercer uma profissão remunerada, pelo menos era o que indicava a legislação. A necessidade de mestras para cuidarem das classes femininas possibilitou a abertura de um lugar na educação escolarizada para as mulheres. As relações patriarcais e econômicas, que vinham reestruturando a sociedade em finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, foram de grande importância na feminização da profissão. A abertura de um espaço profissional para as mulheres no ensino possibilitou que muitas, além das instituições públicas, católicas e protestantes, atuassem em escolas leigas, particulares, dirigidas às filhas das classes altas. Estas não possuíam caráter confessional, mas estavam imbuídas do espírito de levar o ensino a um país que pouco se preocupava com a educação feminina, bem de acordo com a herança portuguesa de considerar o excesso de instrução nocivo às mulheres. As escolas americanas protestantes chegaram num momento histórico em que as tradições liberais que tomavam corpo na Província de São Paulo pregavam a tolerância religiosa, o apoio à livre iniciativa e o ensino livre. A Lei nº. 54, de 15 de abril de 1868, havia instituído a liberdade para o ensino privado com isenção de fiscalização, o que desobrigava os proprietários dessas escolas de obterem autorização prévia da Inspetoria Geral da Instrução Pública, sendo os professores dispensados de 64

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apresentarem os atestados de moralidade e adaptação que eram exigidos. Algumas escolas radicaram-se no eixo Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, com infiltrações significativas no interior paulista, introduzindo um tipo de organização escolar e trabalho docente no qual a evangelização indireta acontecia no apelo das obras sociais. Essas instituições concorreram com as escolas mantidas pela Igreja Católica que perdia seu prestígio com a divulgação das idéias republicanas e positivistas, vindo a ser palco de uma proposta de educação renovadora num país ainda atrelado ao conservadorismo católico que reagia contra qualquer iniciativa que viesse confrontar a Igreja e seus dogmas com algo novo e científico, o que certamente abalaria os alicerces nos quais o Catolicismo esteve ancorado ao longo dos séculos, pregando uma educação herdeira direta do jesuitismo. Criadas na esteira do ideal norte-americano de para cada igreja uma escola, essas instituições adotariam o sistema de classes mistas que denominavam regime co-educativo, numa postura diferenciada das escolas brasileiras de influência católica e sua prática de criar classes separadas por sexo. Também contaram com a atração dos republicanos pelo aspecto democrático e liberal de sua organização e introduziram o método intuitivo que estava sendo largamente disseminado nos Estados Unidos, em oposição ao tradicionalismo das escolas católicas. Essas escolas foram francamente apoiadas por maçons e anticlericais e, durante algumas décadas, tiveram significativa participação na vida das elites locais. No início, a presença missionária foi bem-aceita. As escolas americanas se notabilizavam pela educação não diferenciada, democrática, não segregacionista em relação à raça e ao sexo de seus alunos, demonstrando estarem aparentemente ausentes do proselitismo religioso e se afirmando inovadoras quanto aos métodos utilizados em sala de aula. Posteriormente, isso iria motivar a oposição da Igreja Católica que intentava recuperar seu prestígio abalado pelas idéias positivistas e as introduzidas pelos setores liberais e republicanos, levando-a a criar colégios internos para a educação das filhas das oligarquias. As escolas públicas mantidas pelo Governo da província, principalmente no interior, se debatiam com a falta de professores capacitados, pouca freqüência dos alunos, dificuldades de verbas e instalações, e com as razões morais de destinar escolas separadas para ambos os sexos. As religiosas dos colégios católicos abriam suas instituições apenas para meninas, enquanto as missionárias norte-americanas e posteriormente as brasileiras convertidas à fé protestante, ao articularem à missão religiosa a docência, eram ativas defensoras de ensino igual para os sexos. Viam nesse tipo de educação a forma de superar mecanismos de dominação contra as mulheres, debate que estava sendo travado nos Estados Unidos desde início do século XIX, decorrente do espírito democrático no qual os norte-americanos acreditavam. O trabalho que essas mulheres realizaram contribuiu para que algumas escolas protestantes prosperassem durante um certo período e atraíssem alunos e alunas durante os anos iniciais do século XX, embora nem sempre H ISTÓRIA ,

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conseguissem funcionar com regularidade e tivessem fechado suas portas por motivos de intolerância religiosa e, principalmente, por falta de verbas para se manterem. Apesar dos legisladores desde o século XIX terem estabelecido a necessidade das escolas de primeiras letras para a população, no período pós-republicano, a realidade dessa situação ainda estava muito distante do cotidiano da maior parte dos brasileiros que continuavam mantidos no analfabetismo. As escolas dirigidas por ordens religiosas e mesmo por leigos que se encarregavam de instruir meninos e meninas separadamente no mister de ler, escrever e contar ainda eram poucas e lutavam com dificuldades, notadamente no interior da província. As escolas públicas também eram escassas e funcionavam precariamente, atraindo poucos alunos. As escolas protestantes surgiram como uma oportunidade educacional num território de alternativas escassas. Em São Paulo, por exemplo, os reformadores educacionais, logo após a República, iriam buscar ajuda dos educadores protestantes e inspiração na organização dos colégios norte-americanos para as inovações que introduziriam no sistema escolar público paulista, voltando-se para a utilização do método intuitivo na formação de professores, usado nas training schools, equivalentes às escolas normais, solicitando a colaboração de mestras americanas ou brasileiras conhecedoras do método e incentivando as mulheres a serem as primeiras mestras da infância. Normalmente, eram as mulheres que acompanhavam os missionários protestantes, as encarregadas de fundar e dirigir escolas, implementar os métodos pedagógicos americanos e lecionar nas missionaires schools. Isso implicava uma redefinição dos papéis sociais femininos e o acatamento da feminização da profissão que já havia se alicerçado nos Estados Unidos nos moldes propostos por Horace Mann, também fundador da primeira Normal School no País. Um dos mais significativos exemplos de escolas americanas protestantes foi o Colégio Mackenzie que, desde sua fundação, em 1870, introduziu a co-educação no seu plano escolar já a partir do curso primário. O colégio recebia recursos financeiros e educacionais da missão presbiteriana sediada em Nova York, sendo organizado segundo o modelo norteamericano. Isso contribuiu para o crescimento do colégio e, em 1875, começou a funcionar uma training school, criada para preparar os futuros contingentes de professores da escola de acordo com os métodos norte-americanos. Em 1886, essa escola passou a chamar-se Escola Normal do Mackenzie College. Nesse período, sua direção esteve confiada à educadora norte-americana Marcia Browne que, posteriormente, iria ser convidada por Caetano de Campos para ajudar na reforma do Ensino Normal e Primário em São Paulo, juntamente com a professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade, que estudara nos Estados Unidos, sendo ambas grandes conhecedoras do método intuitivo adotado nas escolas americanas. Na época, os Teacher’s Colleges de nível superior se desenvolviam rapidamente nos Estados Unidos e eram considerados a alternativa para a melhoria da formação dos professores em oposição às Normal Schools, primeiras instituições destinadas a essa finalidade e que funcionavam em um ou dois anos de curso. 66

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AS RUPTURAS E AS CONTINUIDADES DA EDUCAÇÃO FEMININA NO SÉCULO XX Nos anos trinta do século XX, houve uma grande ofensiva da propaganda protestante, mas a Igreja Católica também contra-atacou criando colégios religiosos dirigidos por padres e freiras, aonde acorriam os filhos e as filhas das oligarquias conservadoras representadas pelos grandes proprietários, numa manobra da Igreja: ao educar os dirigentes, intentava-se atingir indiretamente a população. Esses colégios prosperaram, atraindo grande número de alunos, edificando o poderio católico e sua influência nos costumes paulistas, tendo se incumbido da educação das elites que viriam a comandar os destinos políticos do Estado que se insinuava com as idéias republicanas. As escolas americanas protestantes não conseguiram exceder qualitativamente as escolas católicas num país onde a Igreja sempre exerceu sua influência. Foram também importantes na divulgação da ideologia democrática e liberal, nas inovações nos métodos pedagógicos, nas novas idéias co-educativas, da igualdade para os dois sexos, na importância do magistério exercido por mulheres, na não distinção de classes sociais e, como afirmavam, numa educação ausente de proselitismo religioso numa organização que afirmavam edificada nos princípios éticos das regras de conduta dos missionários e dos norte-americanos. Isso iria inspirar os educadores reformistas no período pós-republicano, quando o Estado validava sua separação da Igreja e insistia na laicidade do ensino. No entanto, a laicidade formalizada pelo Estado não impedia que a moral religiosa exercesse sua soberania na imagética acerca das mulheres. Mesmo com a separação da Igreja católica do Estado Republicano, a moral religiosa era ainda determinante e a aproximação com o arquétipo da Virgem indicava para as mulheres a obrigação de trilharem um caminho de virtudes. A população em geral continuou atrelada à tradição ultramontana, aos seus ritos e dogmas, acostumada sobejamente aos sacramentos e a todos os rituais da Igreja Católica na vida social, assim a como sua influência no espaço doméstico e na vida familiar. Portanto, foi natural que os republicanos, liberais, maçons, positivistas e grupos politicamente organizados como anarquistas e socialistas vissem com uma certa benevolência os ideais pregados pelos americanos quando da criação de suas escolas e as usassem como alternativa para a educação de seus filhos e filhas. Isso aconteceu, inclusive, como forma de livrá-los de perseguições movidas nas escolas católicas e mesmo nas públicas, apesar da intenção explicitada pelos republicanos de manter a laicidade no sistema oficial de ensino. Na República que se estruturava, as novas idéias recebidas da Europa e Estados Unidos possuíam boa acolhida e eram vistas com agrado por todos aqueles que desejavam que ares renovadores se instalassem no País. Juntamente com essas idéias vieram as originadas do movimento feminista europeu que, desde os anos finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX, mostraram uma incipiente H ISTÓRIA ,

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influência no meio intelectual brasileiro. De acordo com esses princípios, as mulheres teriam os mesmos direitos que os homens no tocante ao acesso à educação, o que foi bem-aceito pelos liberais e republicanos imbuídos de ideais igualitários. Em contrapartida, tais princípios foram severamente combatidos pelos católicos mais veementes e pelo clero como um todo, dado que poderiam ocasionar indesejáveis mudanças comportamentais e de costumes num país que havia herdado a tradição portuguesa de manter a mulher confinada no mundo doméstico, relegada à função reprodutiva. Ao destacarem a participação feminina no magistério de crianças e adotarem o sistema co-educativo, as instituições protestantes alteraram a visão educacional dos simpatizantes da República que não viam com bons olhos a educação católica conservadora. Enfatizando a importância da educação feminina para o desenvolvimento do País, no contexto das transformações sociais e culturais exigidas pelos novos tempos que corriam, e considerando as mulheres as mais indicadas para ministrar aulas e educar as jovens gerações, essas escolas promoveram o enfrentamento com a Igreja Católica e com as oligarquias conservadoras. No Império, a Igreja Católica havia sido severamente combatida pelos anticlericalistas e liberais que a viam como uma ameaça às idéias republicanas. Com a República consolidada, esta se acomodou ao novo regime político, reagindo contra a invasão protestante no campo religioso, político e educacional e começou a implantar um trabalho pastoral marcante, demonstrando uma extraordinária resistência à secularização, com a criação de dioceses, novas ordens religiosas, internatos para as filhas das oligarquias, colégios católicos para os meninos e desenvolvimento de obras de caridade. Isso permitiu seu retorno ao cenário cultural do País, recuperando uma posição que, na verdade, nunca havia sido seriamente ameaçada de extinção, dado que o regime propunha um certo artificialismo na desvinculação da Igreja do Estado que nunca esteve de acordo com a opinião do povo brasileiro. Os colégios internos femininos alcançavam somente um público restrito e as jovens das famílias abastadas continuaram recebendo uma educação que primava pelo desenvolvimento das prendas domésticas e alguns lustros culturais, qualidades desejáveis para poderem brilhar nos salões e conseguirem boas alianças matrimoniais. Para as moças de menor poder aquisitivo, mas que não faziam parte do grosso da população, as Escolas Normais públicas representavam a possibilidade de continuação dos estudos de forma gratuita e o magistério de crianças tornou-se a destinação feminina, enquanto as jovens aguardavam o momento de contrair núpcias, objetivo de qualquer mulher no período. Se o matrimômio não se realizasse, a profissão assumiria os contornos desejáveis da maternidade, não mais biológica, mas voltada ao amor pelos alunos. Ao longo do século XX, a educação feminina continuou fortemente impregnada da ideologia católica do século XIX e o seu legado permaneceu no imaginário republicano quanto à missão que a mulher deveria desempenhar na sociedade: contrair matrimônio e dedicar-se ao sublime ofício de ser mãe. 68

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O ESPÍRITO RELIGIOSO E OS PARADOXOS DA SUBMISSÃO Não resta dúvida de que a religião ocupa lugar determinante na vida humana e está inserida na cultura e no delineamento da identidade de um povo. Em nome da religião, guerras são travadas e civilizações são dizimadas. O Cristianismo é uma das religiões que mais produziram santos na crônica do martirológio da Humanidade. Não é por acaso que Saramago, no seu Evangelho segundo Jesus Cristo, desvenda um Homem forçado a seguir os ditames de Deus, o qual, ao saber pelo Diabo da extensa lista dos que deveriam ser mortos, torturados e mutilados em Seu Nome, suplica ao Senhor Supremo: «Pai afasta de mim este cálice». A Igreja, que nos seus primórdios se constituiu essencialmente como uma seita de judeus, foi cruelmente perseguida e se firmou sobre o sangue dos mártires desde os primeiros cristãos perseguidos pelos romanos. Para sobreviver, teve de se adaptar repetidas vezes, sofreu cismas e rupturas ao longo dos séculos e, finalmente, foi denominada Católica, ou seja, universal, sendo a palavra usada para denotar uma única corrente da qual heresias e seitas diferentes se separaram. Sua virada maior e decisiva ocorreu com a conversão do imperador Constantino no ano 312 e, a partir daí, quase todos os romanos foram mais cristãos do que pagãos. De minoria perseguida passou a maioria dominante e nasceu a Cristandade na Europa. No século XVI, com a Reforma Protestante, a Igreja Católica Romana se enfraqueceu. Apesar de, no início, os reformadores terem lutado juntos, logo se dividiram em dois grupos adversários – os luteranos e os reformados. Posteriormente, houve maiores fragmentações e o Protestantismo adotou diversas denominações e orientações litúrgicas, mantendo em comum a devoção a Jesus Cristo, porém os protestantes se vêem como uma redefinição da Igreja evoluída a partir dos ensinamentos dos apóstolos. Por sua vez, dividiram-se em várias denominações, como Igreja Anglicana/Episcopal, Luterana, Reformada/ Presbiteriana e as Igrejas Livres que assumem várias denominações, como Batistas, Metodistas, Movimento Ecumênico, entre outros. Existe uma diferença entre católicos e protestantes em relação à visão do indivíduo no seio da Igreja: enquanto a católica considera que o indivíduo vem depois da Igreja, os protestantes o colocam antes e a Igreja é vista como agregadora daqueles que acreditam na fé e a professam (SADGROVE, 1996). Os cristãos, ao longo dos séculos, impuseram sua crença ocidental aos demais povos ao redor do mundo, por meio de uma cultura teológica ou imperialismo teológico e cultural, num processo de aculturação que levou à perda da religião original de conglomerados primitivos. Em contraponto a uma história sangrenta, as Igrejas também têm dado significativa contribuição na defesa dos povos oprimidos, na erradicação da pobreza e da fome e na justiça e paz como utopias possíveis para a Humanidade, portando-se também como moralizadoras e guardiãs da ética sexual e da sacralidade do matrimônio. As religiões e as igrejas sempre foram H ISTÓRIA ,

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grandes trunfos para se dominar consciências e ditar comportamentos de acordo com o que se esperava em termos de classes sociais, papéis sexuais e desigualdades. No Brasil, a Igreja Católica, como máxima representante do Cristianismo europeu, foi a instituição que se incumbiu da normatização de condutas durante um largo período da nossa História, desde os tempos coloniais, embora não possamos deixar de considerar os limites da cristianização em todos esses segmentos. Porém, o enquadramento das mulheres em molduras rígidas de comportamentos e moralidade não é apanágio apenas do Cristianismo. O limite à sua liberdade e as justificativas para sua opressão podem ser remontados às mais antigas civilizações. No livro La mujer fragmentada, prêmio Casa de las Américas de 1995, Lucia Guerra lembra que, entre os astecas, havia uma simbolização entre esquerda e direita equivalente a uma dicotomia entre o bem e o mal, a força e a fragilidade, a potência e impotência. Relata que, nas suas práticas homeopáticas, encontraramse registros de fatos macabros: malfeitores roubavam da tumba de uma mulher morta durante o parto o seu braço esquerdo, com a finalidade de utilizá-lo como amuleto para imobilizar os donos de algum lugar que fossem assaltar e os colocar em estado de inconsciência. O braço teria o poder de conferir aos assaltantes a invisibilidade e tornar as vítimas indefesas contra seus malefícios. A simbolização do braço esquerdo de uma mulher morta remete ao lado obscuro, o sinistro, a inculcação ideológica de atribuir poderes e malefícios associados ao sexo feminino. Associe-se a essa imagem a sexualidade, dado que o parto é decorrência do intercurso sexual. Portanto, a sexualidade se imbrica com a violência e o poder, articulandose em última análise com o paradigma da culpabilidade: mulheres são carnais, irracionais, emocionais, impuras e perigosas e, conseqüentemente, culpadas de todo o mal que vitimiza os homens e os aflige. Conforme o relato da autora, o parto era um ritual diferenciado para varões e fêmeas. Quando nascia um menino, as parteiras recitavam a seguinte oração, que tinha o poder de conjurar malefícios: [...] meu filho amado, esta casa onde nascestes não é senão um ninho, uma pousada aonde chegaste, é tua saída do mundo, aqui brotas e floreces, aqui te separas de tua mãe, tua própria terra está em outra parte, é o campo onde se guerreia e teu ofício será dar de beber ao sol o sangue de teus inimigos e dar de comer à terra os corpos de teus inimigos (GUERRA, 1995, p. 15).

Para a menina, a oração se diferenciava e profetizava seu futuro destino de servidão: [...] filha minha, viestes a este mundo enviada por nosso senhor que está em todo lugar, viestes a um lugar de cansaço, de trabalho e de servidão, onde faz frio e vento. Tu haverás de estar dentro de casa como o coração dentro do corpo, não deverás sair de tua casa, não terás o costume de ir a nenhuma parte, deverás ser a cinza com que se cobre o fogo do lar, deverás ser as brasas onde se colocam as panelas, aqui deverás trabalhar, teu ofício será trazer água e moer o milho, aqui haverás de suar sobre as cinzas e o lar3 (GUERRA, 1995, p. 16).

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Havia, pois, destinações diferenciadas para homens e mulheres. Enquanto para os meninos a casa era um espaço transitório, para as meninas era o espaço perpétuo. Se, para eles, se aspirava às glórias públicas, para elas se exigia a confinação doméstica, a submissão e a obediência, em nome de sua preservação física e moral, o que justificava o exercício de poder do ponto de vista sexual. Ao se fazer a transposição dessas diferenciações para a tradição cristã, verifica-se que existe uma forte oposição entre direita e esquerda, simbolizando o bem e o mal, por exemplo, os dois ladrões ladeando Cristo no Calvário, que pode ter uma analogia às práticas dos astecas e a simbolização da imagem feminina pela prática de se retirar o braço esquerdo da parturiente morta. Acrescente-se que o mito de Eva, como aliada da serpente, e seu papel na expulsão de Adão do Paraíso é emblemático da marca das mulheres no Cristianismo; a condenação das mulheres por prática de feitiçaria, entre outros, demonstra que, ao longo dos séculos, se tem construído uma imagem de mulher que se perpetuou aos dias atuais, tal a força da permanência das mentalidades. O Cristianismo, apesar de todas as afirmações contrárias, nomeou atributos negativos às mulheres e nunca confiou no sexo feminino, atribuindo às mulheres vícios e exigindo-lhes virtudes e comportamentos não cobrados aos homens. Em contrapartida, apesar de impedidas de ascenderem às altas esferas hierárquicas da igreja secular, as mulheres encontraram, nas religiões e na própria igreja, não só o consolo para as tragédias da existência, mas um espaço de atuação social e culturalmente permitido e aprovado. A mulher piedosa se contrapõe à mulher mundana, é crente, amável, obediente, doce, assim como foi Maria. Sofre silenciosamente e o sofrimento a purifica, enobrece, assim como as dores do parto a resgatam do pecado de Eva. Entenda-se, a dor é a punição do prazer sexual, da perda da pureza em nome do amor. Mas esse amor e o sexo precisam ser santificados pelos rituais indissolúveis do matrimônio; se assim não for, a religião volta-se contra as mulheres e lhes aponta o dedo acusador da danação eterna. Portanto, a religião representa o ponto nevrálgico para onde convergem as relações de poder estabelecidas no nível simbólico e no imaginário social por aglutinar a essencialidade da existência humana que é a idéia de finitude da vida e nessa verdade está visível a necessidade sempre presente de explicar e atribuir sentido e significado às ações individuais e coletivas dos seres humanos. A crença no mundo sobrenatural, o controle da sexualidade, os arquétipos religiosos ditando normas de pureza e mansidão sempre normatizaram o comportamento social, com maior ênfase no sexo feminino. No Brasil, encarregada desde o descobrimento, por meio das missões jesuíticas, de educar e dar formação religiosa à população, a Igreja Católica exerceu considerável influência nesse campo, ditando regras sociais, morais e de comportamento religioso pela via do ensino, centralizando sua atenção nas elites e descuidando-se da população. O povo permanecia o mais das vezes às margens das instituições, afastado da escola, unindo-se pelo concubinato sem regularizar sua união, batizar H ISTÓRIA ,

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os filhos e enterrar os mortos, ausente das bênçãos dos clérigos e da sacralização dos costumes. Estes eram definidos pela instituição religiosa incumbida de perpetuar a tradição luso-cristã, na qual normas consideradas desviantes e hábitos em desacordo com a moral eram severamente punidos, pelo do conceito de pecado, com a ameaça da excomunhão e do inferno. Esse estigma tinha suas raízes na sexualidade e fez com que as religiões cristãs dessem grande importância a uma imagética de pureza feminina por meio da sacralização comportamental dos corpos e mentes. Os primeiros eram controlados pela exacerbada vigilância de pais, irmãos e maridos, encarregados de extirpar nas mulheres sob sua guarda qualquer tentativa de pecado carnal. As mentes eram passíveis de ser adestradas pela educação por uma pedagogia do temor e da culpa que fazia as mulheres reféns de sua própria aura de sedução e capacidade de despertar o desejo masculino. A figura do confessor no interior das residências, bastante freqüente no século XIX e até mesmo no século XX, demonstra bem a influência da mentalidade católica no regramento da conduta feminina. A moralidade protestante, por sua vez, também se voltava para a consciência do pecado que tinha suas origens no sexo. Em ambas as religiões, por carregar a nódoa do pecado original, a mulher deveria ser vigiada, mesmo que isso significasse tolher sua liberdade, abafar sua individualidade e privá-la do livre arbítrio. O casamento e a maternidade eram a salvação feminina; honesta era a esposa mãe de família; desonrada era a mulher transgressora que desse livre curso à sexualidade ou tivesse comportamentos em desacordo com a moral cristã. Para a missão materna, as meninas deveriam ser preparadas desde a mais tenra idade, nos colégios católicos, nas escolas protestantes ou nas instituições públicas.

AS MULHERES COMO DESTINATÁRIAS DA IDEOLOGIA CULTURAL E RELIGIOSA A cultura estabelece conexões com vários aspectos da prática social: a vida cotidiana, a religião, a economia, a política, a festa, os rituais, a educação e as relações entre os sexos, o que configura as interfaces do pluralismo na convivência entre os seres humanos. Nesse universo entrópico convivem as questões ligadas à subjetividade, ao sonho, à magia, às crenças e às representações simbólicas. Aí também se enquadram simbologias, nas quais as referentes ao sexo feminino emergem como categorizações distintas do mundo masculino, sendo vistas como portadoras de diferenças relacionais. No plano simbólico, a religiosidade, pela estreita relação que possui com o mundo sobrenatural, se reveste de caráter disciplinador e, ao mesmo tempo, consolador. A educação tem o poder de transitar entre esse espaço e o mundo social na sua função de transmissora e veiculadora da cultura de um povo, representada por um mundo plural imbricado pela tessitura das relações sociais no contexto histórico de cada época. 72

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O olhar dominante, no exercício das relações de poder, também é passível de atribuir defeitos e qualidades nas suas relações de alteridade e, dependendo da expectativa que tem da conduta considerada «certa» ou «desviante», reprime e castiga com a mesma intensidade com a qual cria um esquema de simbologias acerca dessa alteridade, que pode estar na contravenção das expectativas que o segmento dominante elaborou para o desempenho de papéis, de natureza sexual, religiosa ou educativa, quando não se alinham com suas normas e regras de conduta: «[...] não era o olhar do inquisidor que fazia nascer, no século XVI, o feiticeiro ou a feiticeira, e que reunia fantasticamente sob a mesma intenção diabólica, o conjunto, embora mesmo anódino, de conjurações, gestos mágicos, heranças inocentes da superstição do paganismo?» (VOVELLE, 1991, p. 169). Esse olhar revela – como traços essenciais da alteridade daqueles que estão em situação de dominados – fragmentos imperfeitos, «feixes de informações» que não são reveladores da profundidade e do pluralismo de sua cultura. No entanto, esses segmentos, muitas vezes reduzidos ao silêncio, possuem formas próprias de se expressar por meio de tradições, costumes religiosos ou profanos, escritos íntimos, reveladores do sentido da História, encobertos em sinais e revelados nos contornos mágicos dos mitos, conforme observa Ginzburg.4 A religião sempre foi decisiva na definição de padrões comportamentais femininos. O Catolicismo, ao impor às mulheres a imagem da Virgem e Mãe, arquétipos ineludivelmente dicotômicos; o Protestantismo com seus ideais ascéticos e puritanos derivados da doutrina calvinista; o Islamismo infringindo ao sexo feminino as mais pungentes humilhações e cerceamento de liberdade individual. Mesmo as religiões mais primitivas de origem afro ou hindu têm contribuído para imposições de origem cultural e religiosa que, ao longo dos séculos, colocaram as mulheres na crônica do martirológio da Humanidade, o que vem sendo incisivamente denunciado nos veículos de comunicação no limiar do século XXI. Nesse sentido, a ideologia religiosa pode tanto deformar a realidade como solidificar idéias que são veiculadas pela cultura. Isso gera diferentes comportamentos humanos que estão ligados ao clima, às raças, à geografia, ao desenvolvimento da economia e da política, alicerçando na sociedade um sistema de crenças e de comportamentos coletivos. Nesse sistema de crenças, a fé no mundo sobrenatural ocupa um lugar determinante nas manifestações culturais, modelando o imaginário e instaurando comportamentos ditados pela ideologia. No caso brasileiro existe uma miscigenação religiosa que incorpora a sacralidade original da simbologia européia cristã, a religião de origem africana trazida pelos escravos; a religião indígena dos naturais da terra, acrescidas ainda por crenças asiáticas. Esse sincretismo religioso se traduz em diferentes liturgias, seja nos grandes templos católicos e evangélicos, seja nos cultos domésticos ou de origem africana, estruturando-se um misticismo de várias faces, não necessariamente fiel a uma ou outra fé, mas sim permitindo a sua coexistência, dada a H ISTÓRIA ,

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histórica liberdade de crença garantida pela Constituição Brasileira, desde o século XIX, e a tolerância religiosa. As expressões religiosas diferem segundo a cultura, a educação e os diversos grupos sociais. A Igreja Católica, veiculadora da religião dominante, marcadamente tradicional e afastada da população iletrada do Brasil dos primeiros períodos, nas últimas décadas, tem feito tentativas de se aproximar da população o que parece estar se coroando de êxito. As igrejas protestantes possuem uma liturgia de caráter racional, expressando uma ética própria voltada para a vida material plenamente desfrutada como uma maneira de se aproximar de Deus. Os demais credos que perpassam a organização cultural brasileira também se voltam para uma dimensão sobrenatural que visa a preparar os seres humanos para enfrentar a sua suprema angústia existencial que é o medo da morte. As diversas seitas religiosas sempre souberam explorar esse medo e o temor do que esperar após o fim da existência, fórmula infalível para manter a dominação sobre seus fiéis. Conforme já foi assinalado, um modelo normativo de mulher, criado desde meados do século XIX, inspirado nos arquétipos do Cristianismo, espelhava a cultura vigente instituindo formas de comportamento onde se exaltavam virtudes femininas como castidade e abnegação, forjando uma representação simbólica de mulher por meio de uma ideologia imposta pela religião e pela sociedade, na qual o perigo era principalmente representado pela sexualidade. Essa ideologia vai desqualificar a mulher do ponto de vista profissional, político e intelectual, ao partir da falsa interpretação da natureza humana de que a uma mulher em si não possui valores intrínsecos, mas que deve curvar-se aos ditames do amor e da submissão em nome de uma missão a ela destinada pelo sagrado. O uso de uma linguagem mística para qualificar o papel feminino era utilizado pela ideologia cultural que buscava na religião as metáforas e analogias para definir a mulher-mãe com atributos de santa, anjo de bondade e pureza, qualidades que todas deveriam possuir para serem dignas de coabitar com os homens e com eles gerar e criar filhos. A Igreja Católica associaria a figura da mulher santa, feita à imagem de Maria, à pureza de corpo e espírito, enquanto a mulher desviante, transgressora, principalmente a prostituída, seria ligada à maldade, à perfídia, ao pecado e à decadência. Se a primeira era o espírito e a santidade, a segunda seria carnal e pecadora, levando os homens à corrupção do caráter e do corpo. No entanto, ambas deveriam ser submissas e dependentes, pois a ordenação social assim o exigia, e a ordem natural das coisas não deveria ser questionada por aquelas que eram as destinatárias de um processo de controle ideológico altamente repressor quanto à sexualidade. A idéia de sexo para a mulher honrada estava intimamente ligada à desexualização do corpo. A mulher não precisaria sentir prazer no intercurso sexual e de preferência deveria manter a castidade, mesmo no casamento. A forma de preservar essa castidade seria relacionar-se sexualmente apenas para a procriação, evitando-se os excessos sexuais 74

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que causariam dano à saúde e à vida espiritual feminina. O desejo e o prazer eram reservados ao homem, o qual, segundo o discurso médico, era biologicamente voltado para a essência carnal por conta da virilidade. A ideologia de caráter religioso vai regrar a sexualidade da mulher e do casal, perpassando toda a vida social do século XIX, estendendo-se ao século XX. Seria veiculada na sociedade, na família e na educação. Nas escolas, as moças seriam instruídas quanto à importância da castidade e da pureza; na Igreja deveriam confessar ao padre quaisquer pensamentos ditos impuros que porventura tivessem quanto ao sexo; na família se impediria toda e qualquer manifestação voltada para explorar ou exercer a sexualidade, embora houvesse transgressões que costumavam ser severamente punidas. O século XX e o recém-iniciado século XXI não resolveram os impasses entre as aspirações femininas e a religiosidade. Se, nos anos finais do século XIX, as mulheres, de acordo com as premissas do Positivismo, corrente que havia tomado corpo no País e sido assimilada pelas mentes ilustradas da época, eram vistas como seres dotados de atributos de pureza e doçura, responsáveis pela preservação da família e da moral cristã, mães generosas, espíritos de sacrifício, salvadoras da pátria, o que as colocava como responsáveis por toda a beleza e bondade que deveriam impregnar a vida social, o século seguinte não as destituiu desses atributos. Mesmo tendo introduzido um avanço em relação aos séculos anteriores, quando o mistério e as crendices herdados da Idade Média ainda influíam nessas representações, o fato é que as igrejas católicas e protestantes, ao adotarem os modelos de domesticidade e espírito de sacrifício, foram determinantes para a desclassificação social da mulher. O discurso da pureza feminina e das suas qualidades morais armava-se de ambigüidades e prestava-se admiravelmente bem para referendar o mito da inferioridade biológica. As expectativas sobre a conduta feminina, as doutrinações religiosas, as implicações na sexualidade, o controle da feminilidade e as normatizações sociais, aliadas às exigências de casamento religioso, o batismo dos filhos e a confissão dos pecados, significavam também uma exacerbada vigilância do corpo e da alma das mulheres. Os limites urbanos, com seus olhos vigilantes, impuseram costumes distintos e mantiveram hábitos severos e, guardadas zelosamente por pais, irmãos e maridos, não poderiam, senão por meio da educação, ter condições de comandar suas vidas e se inserirem no espaço público. No espaço da sociabilidade, a religião continuou norteando a existência feminina: a católica com suas normas cerceadoras policiando e vigiando corpos e esculpindo mentes de acordo com sua ideologia; a protestante com seu espírito calcado na ética, na moral e na obediência. Isso quando nos referimos apenas ao mundo ocidental. Talvez entre tantos debates que apenas se iniciam, permaneça uma grande interrogação: as várias religiões algum dia poderão resgatar suas culpas perante as mulheres e se eximir da dívida histórica de haverem colaborado e perpetuado a discriminação feminina que gera o preconceito e finalmente a violência? H ISTÓRIA ,

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N OTA S

1. Pesquisa financiada pela FAPESP, modalidade bolsa de pós-doutorado no exterior e CNPq, com bolsa de produtividade em pesquisa. 2. BRAZIL-MISSION (1833-1911). USA, Washington, Rand Corporation (microfilmes-coleção- rolls 34, 147, 148, 149). SIMONTON, Ashbel. Diário-1852/1867. São Paulo, Casa Editora Presbiteriana, 1982. 3. Ambas as traduções foram adaptadas. 4. Ginzburg, em Mitos, Emblemas, Sinais aborda as possibilidades de se recriar o passado por meio de fragmentos do cotidiano de personagens comuns, demonstrando uma visão diferenciada de se fazer a História, não mais aquela vista pela ótica dos vencedores. O autor refere-se ao paradigma que emergiu no século XIX, ainda não teorizado explicitamente, e que pode «[...] ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre racionalismo e irracionalismo», naquilo a que denominou um «saber indiciário» (1989, p. 143).

REFERÊNCIAS

BRAZIL-MISSION (1833-1911). USA, Washington. Rand Corporation. (microfilmes-coleçãorolls 34, 147, 148, 149). GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GUERRA, Lucia. La mujer fragmentada: histórias de um signo. Santiago: Editorial Cuarto Propio, 1995. SADGROVE, Michael. Ramificações da Igreja: as religiões do mundo: do primitivismo ao século XX. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1996. SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. SIMONTON, Ashbel. Diário-1852/1867. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1982. VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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CAMINHOS E CONTRADIÇÕES NO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DAS MULHERES

Sebastião Pimentel Franco INTRODUÇÃO

Com o advento da República, aumentou a oferta de escolarização em nível do

ensino primário. As condições econômicas e o início das atividades industriais e de urbanização que passavam a tomar conta do País e, em conseqüência, do Espírito Santo, aliados à visão dos republicanos sobre a instrução como forma de promover o desenvolvimento do povo e da nação, possibilitaram a um contingente da população o direito de se instruir. Não se pode de esquecer que, com o projeto de instrução, havia, por parte do Governo republicano, a intenção de efetuar o controle da população, sobretudo das populações pobres no espaço da cidade. Assim como Nagle (1980), Carvalho diz que o processo crescente de industrialização e de urbanização por que passou o País na Primeira República previa que as cidades se tornassem uma atração para as populações do campo, que [...] não compartilhavam os códigos comportamentais que regiam o quotidiano da convivência interclasses no espaço urbano. A imagem de uma cidade invadida por populações de costumes bárbaros que ameaçavam as rotinas citadinas mais sedimentadas passa a ser referência constante nos discursos de uma elite urbana letrada (CARVALHO, 2000, p. 273).

Moralizar os costumes passou a ser o objetivo maior do programa modernizador da instrução. Para tanto, procurou-se evitar o êxodo rural e levar a escola para os rincões mais longínquos do País. Nesse sentido, o projeto propunha uma reforma da educação que ajustasse os homens a novas condições de vida e valores, promovendo uma mudança de mentalidade H ISTÓRIA ,

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[...] no trato das questões educacionais, envolvendo estratégias de impacto na opinião pública. Tais estratégias se ajustavam perfeitamente aos intentos políticos dos governos estaduais, que centralizaram politicamente o apelo modernizador de intensa mobilização cívica em torno das campanhas de regeneração nacional pela educação (CARVALHO, 2000, p. 273).

Assim, depreende-se que a nova sociedade devia ser dirigida pelo Estado de compromisso, regulamentado por um extenso corpo legal escrito. Para tanto, o País deveria se constituir de cidades modernas e urbanas, [...] com serviços de encanamento e água, melhoramentos na iluminação, transporte, devidamente abastecidas em gêneros alimentícios higienicamente oferecidos ao público. Sobretudo, ser compostas por uma população disciplinada e ordeira, trabalhadora e respeitadora e cumpridora das leis, portadora de hábitos e costumes saudáveis para a realização desse projeto e, necessariamente, alfabetizada (SIQUEIRA, 2000, p. 4).

AS MULHERES E A OPORTUNIDADE DE INGRESSAREM NAS ESCOLAS A partir do século XIX e sobretudo com a ascensão dos republicanos ao poder, expande-se o processo de ampliação da oferta de escolarização. No contingente que passou a ser beneficiado com esse processo, incluíam-se as mulheres. Surgia, efetivamente, a oportunidade de elas ingressarem na escola para se instruir. Entretanto, para atender à demanda de escolarização, era necessário que houvesse cada vez mais professores. Nessa época, ganhou força uma corrente que pregava o magistério como atividade essencialmente feminina. Já no século XIX, começava a prevalecer a idéia da necessidade de se instruírem as mulheres, pois, uma vez que eram as responsáveis pela educação dos filhos, poderiam ser, também, pela formação de bons cidadãos. No início da fase republicana, os ideólogos da República defendiam a idéia de que a mulher era a responsável pela constituição das gerações futuras e, em conseqüência, pelo futuro da nação.1 A nação dependeria, portanto, da forma como as mulheres educavam seus filhos e seus alunos. Desse modo, abriram-se as portas das escolas para formá-las como profissionais do magistério, de modo que pudessem assumir a missão de educar, e se criou um significativo canal de ascensão social para as mulheres, sobretudo as de estratos sociais baixos. Essa abertura da instrução para as mulheres, no entanto, não foi um ideal de todos os republicanos. Uma parcela deles tinha idéias antagônicas sobre o papel da mulher na sociedade. A corrente que vislumbrava a mulher numa posição hierárquica inferior teve, como base de sustentação para a difusão dessa idéia, a vertente religiosa católica, entre os imigrantes e os nativos que professavam o Catolicismo, seu elemento maior de sustentação, criando uma base doutrinária para a formação do discurso 78

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simbólico que se consolidou na sociedade republicana da época. Esses grupos eram, portanto, mais conservadores e tolhiam, na medida do possível, a participação da mulher não somente na escola e no lazer, mas também no mercado de trabalho.2 Vale destacar que a maior parte da população também comungava essa idéia. A corrente positivista, por sua vez, afirmava que o exercício de qualquer atividade profissional fora do lar acarretaria sérios prejuízos para a família, pois a mulher se desobrigaria do cumprimento de seus deveres de filha, esposa e mãe. Caso isso acontecesse, estabelecer-se-ia o caos, a desordem social, pois a mulher estaria rompendo com uma vocação considerada natural, ou seja, a de guardiã da moral e dos bons costumes, de educadora dos filhos, de anjo tutelar da família, de rainha do lar, papéis que ela só poderia executar dentro de casa. Para essa corrente, a inserção da mulher em atividades externas ao lar traria, conseqüentemente, para dentro de casa, problemas externos aos quais a família deveria estar alheia. A educação das mulheres deveria caracterizar-se como «[...] conformista, alienada dos problemas do mundo à sua volta, levando-as a não serem pensantes e criativas segregadas menosprezadas» (BELLOTI, 1987, p. 160). Por isso mesmo, havia toda uma linha de orientação a partir da qual a educação feminina era estruturada: «[...] sobre uma base cultural que habilite as futuras esposas a serem, simplesmente, a companheira inteligente e ‘bem formada’ do marido» (TRINDADE, 1992, p. 27). Para isso, devia saber falar e escrever bem, ter conhecimentos básicos de História, Geografia e Ciências Naturais, saber canto e tocar algum instrumento musical, elevando-se, de acordo com o consenso, à categoria de musa familiar. Devia, além disso, possuir características tidas como recomendáveis, como altruísmo, modéstia, abnegação, dedicação, renúncia e humildade. Ser amiga, companheira, conselheira era o que se esperava dessa mulher e era para isso que ela devia ser educada.

MAGISTÉRIO, « COISA» DE MULHER Por seus dotes «naturais’’ de doçura, paciência, indulgência, compreensão e calma, a mulher passou, então, a ser vista como ideal para o exercício do magistério. O homem, por ser mais autoritário, causaria medo às crianças, portanto não seria adequado para tal função.3 Nas últimas décadas do século XIX e, sobremaneira, no início do século XX, cresceu muito o número de mulheres que ingressaram na carreira do magistério. No discurso que visualizava a mulher como educadora por natureza, permeava, nessa época, não somente o senso comum, mas também o meio intelectual, que defendia que «[...] realmente a tarefa de ensinar era uma grande missão, pois não bastava apenas ter filhos e criá-los, deveriam educá-los para a vida e para a prática» (ISMÉRIO, 1995, p. 98). H ISTÓRIA ,

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Havia unanimidade em torno da idéia de que o magistério era coisa de mulher? Não. O processo que culminou com a predominância do gênero feminino no exercício do magistério ocorreu com disputas e discordâncias «[...] Para alguns parecia uma completa insensatez entregar as mulheres [...] despreparadas, portadoras de cérebros ‘pouco desenvolvidos’ ‘pelo seu desuso’, a educação de crianças» (LOURO, 1997, p. 450). Defensores dessa idéia chegavam a afirmar que o fato de a psicologia da mulher ser próxima à da criança, diferentemente do que se podia imaginar, acarretaria, na verdade, um mal, um grande perigo. Os grupos favoráveis ao acesso da mulher ao exercício do magistério justificavam essa posição ao divulgar a idéia de que o magistério era uma atividade de amor, de entrega, de doação, portanto dele deveria participar quem tivesse vocação. Para Louro, «[...] esse discurso justificava a saída dos homens das salas de aula, dedicados agora a outras ocupações muitas vezes mais rendosas – e legitimava a entrada das mulheres nas escolas – ansiosas para ampliar seu universo – restrito ao lar e à igreja» (LOURO, 1997, p. 450). Ao analisar a questão da disputa que se estabeleceu a respeito do ingresso da mulher no magistério, Almeida recomenda que não se pense que isso ocorreu simplesmente por uma concessão masculina Afirma que é preciso ver que as mudanças, assim como as chamadas «concessões», também são resultado de atendimento a reivindicações e, portanto, conquistas femininas. «Sem a resistência de algumas e o desabafo que lançaram à sociedade, tais resultados demorariam muito mais para ser implantados» (ALMEIDA, 1998:28). O magistério passa a ser visto como um sacerdócio e não como uma profissão. Por ser visto dessa maneira, passou-se a exigir dessa atividade a doação, a entrega: o que se deseja e se constrói é uma profissional da educação dócil, dedicada, não questionadora, e isso, segundo a autora citada, serviria futuramente para lhe dificultar a discussão de questões ligadas a salário, carreira, condições de trabalho, entre outras. Como na época prevalecia a idéia da fragilidade feminina e de que o exercício de qualquer atividade significava sérios riscos, pensava-se que as mulheres deveriam tãosomente ocupar funções transitórias. Essas funções deveriam ser exercidas preferencialmente por moças solteiras, que as abandonariam assim que se casassem e tivessem filhos ou, no caso das mulheres já casadas, quando ficassem sós ou viúvas. A possibilidade de a moça trabalhar até o casamento ou até ter filhos após o casamento devia-se ao modo de ver da sociedade, que entendia ser o sustento da casa uma obrigação do homem, o que de certa forma contribuiu para que o trabalho feminino fosse visto como fonte de um salário complementar, que, portanto, poderia ser menor. Outra razão alegada pelos defensores do ingresso das mulheres no magistério foi que essa atividade era executada apenas em meio expediente, o que garantia que as obrigações femininas domésticas fossem cumpridas no outro. 80

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O EMBATE SOBRE O NOVO PAPEL SOCIAL DA MULHER Como vimos, grupos antagônicos passam a se digladiar discutindo sobre a possibilidade de maior abertura para as mulheres quanto à sua profissionalização. Os contrários à participação da mulher em qualquer atividade profissional entravam em choque com os moderados e, sobretudo, com as feministas. Deve-se destacar que não somente os grupos conservadores tinham posição radical contra maior abertura para as mulheres. Mesmo entre as feministas, amplamente favoráveis ao avanço das mulheres, à luta por mais espaço, havia aquelas com discursos dúbios quanto ao papel que deveriam desempenhar na sociedade. Bertha Lutz (apud, HAHNER, 1981, p. 116), uma das feministas mais ativas no Brasil do início do sécu1o XX, afirmava: [...] não é exacto nem procedente declarar que adquiridos direitos eleitorais a mulher abdica do lugar que a nobreza lhes concedeu [...]. O domínio da mulher, todas nós feministas concordamos, é o lar. Mas é que [...] hoje em dia o lar não está mais compreendido no espaço de quatro muros: fábricas e escritórios, onde as mulheres ganham dinheiro para alimentarem seus filhos como as dependências legislativas, onde se debatem as leis de proteção aos filhos, não senão dependências do lar.

Embora muitas das que passaram a ter acesso à instrução acabassem por seguir o ideal burguês, que era o de apenas torná-las «ilustradas», um significativo número chegou a profissionalizar-se. Independentemente de a mulher vir ou não a se profissionalizar, no caso do Espírito Santo, o que interessava, sobretudo, como desenvolvimento industrial no início do século XX e com o crescimento da economia decorrente da exportação do café, era que substanciais modificações ocorressem na instrução oferecida ao gênero feminino, pois começava a se abrir para a mulher a possibilidade de ingressar no mercado do trabalho. Apesar de ainda existirem grupos que idealizavam a mulher como a esposa, [...] que procura compreender o gênio do marido, a que se alegra com as alegrias dele, a que lhe aplaina o caminho escabroso da vida diária, a que se mostra sempre contente ou ao menos resignada, dócil e sem exigências, a que sabe cativar o marido com meigos sorrisos, sem falar, sempre fora de propósito, a que é econômica e modesta, cuidadosa e de atividade silenciosa – tal mulher é bendita por Deus. É a esposa ideal [...] (TRINDADE, 1992, p. 133).

A própria necessidade de a mulher se inserir, mesmo lentamente, no mercado de trabalho pôs por terra esse ideal, acima exposto. Isso principalmente nas camadas menos favorecidas economicamente, que tinham de ir à luta para garantir a sua própria sobrevivência e muitas vezes a de toda a família. É claro que esse ideal de mulher dócil, cordata, sempre serena, amável, sempre disposta a ouvir o marido e a se doar para toda a família teve grande influência no H ISTÓRIA ,

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seio da sociedade. Muitas mulheres, inclusive as das classes mais oprimidas, absorveram esse discurso e se ressentiam por não poder segui-lo. Outras, no entanto, não comungavam esse ideal e, na prática, comportavam-se de forma radicalmente contrária ao que delas se esperava. A instrução, voltada apenas para formar as futuras esposas e mães, oferecendo cursos de trabalhos manuais e artes domésticas, começou a ser criticada, mas não foi extinta. Nas primeiras décadas do século XX, para se justificar um discurso de cerceamento da mulher quanto ao acesso à educação e continuar estabelecendo diferenças entre a educação que deveria ser veiculada para o gênero feminino em contraposição ao masculino, abandonaram-se as explicações genéticas ou biológicas (antes o homem era tido como superior). Agora as explicações passavam a ser psicológicas. A mulher, por ser mais dócil, submissa, sensível, intuitiva e minuciosa, deveria ser educada para zelar pelo bem dos outros (filhos e alunos). Deveria exercer, portanto, funções subordinadas, enquanto os homens, por serem mais criativos, agressivos, independentes e fortes, deveriam ter uma educação voltada para o comando, para o exercício das funções públicas.

A CRIAÇÃO DE ESCOLAS NORMAIS A criação e a proliferação das escolas normais fizeram surgir um novo cenário que possibilitaria a profissionalização da mulher e sua inserção no mundo público. Por isso mesmo, sofreram grande discriminação, em especial dos que se opunham a isso.4 Independentemente das forças contrárias ao acesso da mulher à instrução, lentamente o número de meninas que passou a freqüentar a escola no período republicano foi crescendo, se comparado com o dos períodos colonial e imperial. É evidente que a número de homens sempre acabava suplantando o de mulheres, mas, proporcionalmente, o número de mulheres cresceu mais que o do gênero masculino. Quem efetivamente tinha acesso à escolarização no Brasil, no início da República? Quanto à escola primária, como será visto na Tabela 1, pode-se dizer que uma pequena parcela da população a ela tinha acesso. Acontecia ainda que as camadas menos privilegiadas economicamente, quando tinham acesso à instrução, encontravam dificuldades de permanecer na escola ou então continuar seus estudos, o que as levava a abandonarem a escola. Quanto ao ensino secundário, as mulheres das classes menos privilegiadas não tinham acesso. Isso é compreensível, pois mesmo as mulheres das camadas privilegiadas economicamente encontravam séries obstáculos nesse sentido. Independente dessas colocações, o fato é que a criação das escolas normais fez com que se vislumbrasse a possibilidade de alterar o quadro precário quanto ao 82

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acesso da população à escolarização, uma vez que essas escolas foram criadas para possibilitar a formação de mulheres para o exercício do magistério. Nessas escolas, inicialmente, houve predominância de mulheres de estratos sociais menos privilegiados. Posteriormente essa situação mudou, e as mulheres das camadas mais abastadas passaram a freqüentá-las.

A ESCOLA REPRODUTORA DA DOMINAÇÃO MASCULINA Não restam dúvidas de que, de acordo com o poder hegemônico, a escola deveria exercer um papel exclusivamente de reprodução, treinando mulheres para a submissão. Mas, paradoxalmente, essa mesma escola possibilitou ou «[...] foi um instrumento para a libertação das mulheres» (LOURO, 1986, p. 15). Para Gramsci, o processo hegemônico pressupõe uma ação educativa, por meio da qual se legitimam, se justificam ou se persuadem grupos, e isso foi o que fizeram os homens que detinham o poder em relação às mulheres. O processo educativo, no início da República, era dissimulado, objetivava o consenso, o senso comum. Por meio dele, os homens garantiam a dominação. No entanto, paradoxalmente, aqui ocorreu também o movimento de contradições que serviu de base para a construção de processos contra-hegemônicos (JESUS, 1984). A instrução oferecida às mulheres na escola tinha implicações ideológicas e atuava também no sentido de perpetuar a hegemonia de grupos dominantes. Essa ideologia tinha significativa importância na inculcação da inferioridade do gênero feminino, pois se sabe que é «[...] através da ideologia que se escamoteiam os conflitos, se dissimula a dominação» (FRANCO, 1994, p. 50). O gênero masculino, que sempre deteve o poder na sociedade, criou, dessa forma, representações e normas, de acordo com as quais os sujeitos sociais e políticos representavam a si próprios e a vida coletiva. Tentando impor um padrão cultural único, como se fosse melhor para todos e, assim, garantir a não existência do conflito, do choque, com vistas a reproduzir a dominação do gênero masculino, criou-se a segregação. Como é pelo corpo de representações e de normas que os sujeitos sociais e políticos explicam as formas «corretas» ou «verdadeiras», a sociedade passa a desenvolver um sistema de valores reforçado por homens e mulheres, justificando, assim, as desigualdades, os conflitos, a exploração, a dominação, mostrando-os como «naturais» ou «justos» (CHAUI, 1989, p. 62). Dessa forma, os detentores do «poder» foram marginalizando as mulheres, alijando-as dos processos de decisão e de comando, subordinando-as. A escola e a instrução a elas oferecidas objetivavam preservar sua pureza, não mudar suas consciências e, conseqüentemente, não mudar suas vidas. Contraditoriamente, ao ter acesso à escola e à instrução, algumas passaram a questionar a realidade social, enxergando as injustiças a que eram submetidas e passando a lutar para modificar essa situaH ISTÓRIA ,

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ção, tornando-se agentes críticos, com voz ativa. Acabaram entendendo que o mundo em que viviam não era natural e perceberam que, ao desenvolver habilidades intelectuais, contribuiriam para edificar urna sociedade melhor e mais justa. A escola tentava negar ou escamotear as contradições, mas a contradição aparecia pela capacidade e pela reflexão desenvolvida na própria escola. Ali a mulher conscientizou-se de que era capaz de [...] desconfiar das aparências, de questionar além do previsto. A contradição também aparece no processo educativo [...], quando a prática educativa que submete as meninas à aprendizagem de determinado perfil feminino tradicional cria, ela mesma, os instrumentos de libertação deste perfil (LOURO,1986, p. 228).

Embora as idéias que prevaleciam na escala fossem as do grupo dominante – o masculino – que tentava evitar que os conflitos viessem à tona, que as idéias divergentes se expandissem, não foi isso o que ocorreu, pois a escola possibilitou às mulheres entrar em habilidades de análise e «[...] desenvolver a capacidade de ‘desconfiar’ da harmonia, daí porque ‘se percebia nitidamente’ o conflito, embora houvesse um esforço para escamoteá-lo» (LOURO, 1986, p. 229).

O ESTADO E A QUESTÃO DA AMPLIAÇÃO DA OFERTA DE ESCOLARIZAÇÃO A ampliação da oferta de escolarização, portanto, foi fundamental para que se abrisse ao gênero feminino a possibilidade de ascensão social, de profissionalização e de participação efetiva no mundo público. Entretanto, de que modo o Estado encarava essa questão? O aumento da oferta de escolarização era necessário e o Estado Republicano, até 1930, adotou uma política para sua implementação. Na verdade, a educação já aparecia como ponto fundamental no programa do Partido Republicano desde a sua fundação, em 1874. A instrução primária era preconizada como obrigatória, universal e gratuita, sobretudo porque o Partido entendia que a educação era o meio de solucionar o atraso em que o País vivia. Segundo Trindade (1992, p. 164), os republicanos acreditavam que, mediante a instrução, formariam o cidadão cívica e moralmente, o cidadão que iria «[...] colaborar para que o Brasil se [transformasse] em uma nação à altura das mais progressistas do século’’, e que assim democratizariam a sociedade. Em contrapartida, o crescimento demográfico e urbano e o incremento das atividades industriais, que estavam se acelerando desde o final do século XIX, fizeram surgir estratos médios urbanos, antes marginalizados, e novos padrões de vida que exigiam a o acesso à instrução. No Espírito Santo, como ocorria no restante do País, era forte o discurso sobre a expansão e a melhoria do sistema educacional. A reivindicação por uma escola primária pública era uma constante mesmo entre as autoridades do ensino. Nos 84

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relatórios dos inspetores gerais de instrução, tal discurso aparecia com o mesmo conteúdo que Trindade encontrou em sua pesquisa no Paraná: [...] inspetores gerais solicitam com freqüência a construção de prédios destinados especialmente às práticas escolares: rejeitam as pequenas salas sem ar ou luz, apontam os inconvenientes das casas de aluguel, onde se ausentam as mínimas condições das tão preconizadas «práticas de higiene (TRINDADE, 1992, p. 9).

Diferentemente do que ocorreu nos períodos colonial e imperial, quando as desajustes entre as padrões escolares e os da educação e da cultura permaneceram velados, no período republicano, os desajustes manifestaram-se [...] através da contradição surgida no interior do próprio sistema escolar, representada pela coexistência de dois padrões escolares conflitivos: um, para atender às necessidades sócio-culturais de uma sociedade aristocrática e patrimonialista, portanto, de caráter seletivo e restrito às camadas dominantes, e outro para atender às necessidades sócio-culturais de uma sociedade empenhada em estruturar-se em moldes capitalistas, portanto, tendendo a estender-se a setores mais amplos da população (COSTA, 1980, p. 37).

Assim nasceu um sistema escolar destinado a diferentes estratos sociais: uma escola voltada para a elite, que atingia os níveis secundário e superior, e uma escola destinada ao povo, que oferecia o nível primário. Estabeleceu-se, então, um dualismo no sistema. Criaram-se escolas isoladas, escolas reunidas, grupos escolares e escolas de ensino secundário profissional. Estas últimas compreendiam as escolas complementares e as técnico-profissionais, destacando-se aí as escolas normais. Os ginásios, que não eram profissionalizantes, ministravam um ensino propedêutico e humanista para atender às elites e preparavam para o ensino superior. Esses dois sistemas estavam dispostos em paralelo e não havia possibilidade legal de intercomunicação, situação que perdurou até 1930.5 Nos discursos dos Governos da Primeira República, portanto, destacava-se a preocupação com a universalização do ensino e a melhoria das condições da instrução. Todos afirmavam ter deixado o sistema em melhores condições do que os anteriores e ter encontrado sempre o sistema de instrução local em estado deplorável. Todos diziam investir vultosas quantias na ampliação da oferta de escolarização. Entretanto, ao analisar os relatórios de inspetores, secretários de instrução ou de presidente do Estado, observa-se que as verbas não atendiam às necessidades básicas do setor, como melhores salários, equipamentos didáticos, reformas ou construção de escolas, entre outras. Pode-se, então, deduzir que a realidade da educação era bem diferente da que era registrada nos relatórios da época. A legislação prometia uma educação que, efetivamente, não tinha condições de cumprir. O discurso que prometia uma educação igualitária para todos os cidadãos, o investimento maciço na melhoria da instrução de todos, conforme o texto da lei, não passava de retórica, pois, na prática, o Governo não pretendia atender «[...] às reais necessidades da população brasileira em matéria de educação». A H ISTÓRIA ,

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formulação dos princípios constantes do discurso foi sempre, durante a fase da Primeira República, uma retórica que, na prática, «[...] encobria ideologicamente o total descompromisso com a efetivação desses discursos» (BREZEZINSKI, apud SEVERINO, 1997, p. 56).6 Severino diz ainda que isso ocorria porque as condições sócio-históricas do Brasil não possibilitavam que a maioria das pessoas pudesse usufruir dos benefícios propostos nos discursos e também porque, nos textos legais, fáceis de ser driblados, não existem dispositivos legais que obriguem ou determinem os agentes de cumpri-los. A lei existe, mas pode não ser cumprida. Como foi, então, a ação dos poderes instituídos na Primeira República? Não restam dúvidas de que medidas foram tomadas e atingiram o objetivo de garantir a ampliação da oferta de escolarização. Escolas foram construídas e reformadas, mobiliário e equipamentos foram comprados, concursos foram realizados para prover professores habilitados nas escolas. Entretanto, essas medidas não se estenderam a toda a rede escolar pública. A maioria das escolas e o ensino por elas ministrado continuaram deficientes. Não obstante ser esse o quadro real da instrução, os dirigentes locais sempre afirmavam o contrário. O presidente de Estado, Marcondes Alves de Souza, por exemplo, entendia que a situação da instrução local melhorava a olhos vistos e dizia: O número de escholas e de frequência tem augmentado, dia a dia, prova cathegórica da boa comprehensão que vão tendo os paes de família, procurando proporcionar a instrução a seus filhos. Tenho procurado, quanto possível, fornecer os mobiliários das escholas, adquirindo maior número de carteiras. Entretanto, não se acham ainda todas providas de um mobiliário decente (SOUZA, 1914, p. 120).

Como se percebe nessa citação, mesmo o discurso oficial, sempre preocupado em minimizar as mazelas do ensino público, reconhecia, nas palavras do próprio presidente da Província, a precariedade do atendimento escolar. Ainda de acordo com as falas oficiais, investiu-se na seleção do professorado, nos métodos de ensino, visando a expandir o acesso à instrução e eliminar a analfabetismo. É o que se pode inferir da fala do presidente do Estado, Bernardino Monteiro, quando se referiu ao esforço que promoveu em favor da instrução: [...] affirmo-vos que tudo envidei por manter, senão elevar, o nível da instrucção pública, quer pela selecção do professorado, quer pela observância dos methodos entre nós adptados Convicto, como estou, que a lucta ao analphabetismo deve constituir a máxima preocupação dos governos, dou-me neste particular, por satisfeito, porque não descurei do assumpto, antes o enfrentei resoluto e sem desfallecimentos (MONTEIRO, 1916, p. 52).

É verdade que houve melhorias na equipagem de algumas escolas, na construção ou reforma de estabelecimentos escolares, no provimento de professores habilitados,7 mas essa era a realidade de apenas algumas escolas da rede pública, as situadas em áreas mais urbanizadas e populosas. Aqueles das zonas rurais continuavam a oferecer uma instrução de péssima qualidade. Apresentavam um estado 86

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deplorável de abandono: a maioria nem mesmo a tinha móveis para uso do professor e dos alunos e, quando tinha, era um mobiliário improvisado.8

D A QUALIDADE DO PROFESSORADO Outro fator impeditivo de um ensino de melhor qualidade foi a inexistência de professores qualificados para essas escolas. A carência do profissional qualificado para o exercício do magistério sempre foi uma realidade no Brasil, situação que se prolongava desde as tempos coloniais. Mesmo com a criação das escolas normais no século XIX e de sua disseminação no século XX, essa situação pouco se alterou e, quando aconteceu, foi de forma lenta e gradual, nunca atingindo elevado grau. Ora, se a expansão das escolas normais estava em curso, por que as escolas rurais não tinham bons professores? Acontece que muitas moças que haviam concluído o curso normal acabavam não ingressando na carreira do magistério por razões diversas, entre as quais: a precariedade do trabalho, os baixos salários, as péssimas condições dos prédios escolares, a falta de mobiliário e de equipamentos didáticos, os métodos de ensino, o desejo de não se afastarem de seus familiares ou, ainda, no caso das que contraíam matrimônio, os empecilhos colocados pelo esposo para que não trabalhassem, a falta de adaptação ao magistério, a falta de vocação para ser professora. Eram razões ainda: a vida pacata do mundo rural, aliada ao desconforto das casas9 onde tinham que viver, a saudade de familiares e amigos, a mentalidade do povo do interior, quase sempre muito mais conservadora, o desconhecimento da língua da maioria dos habitantes das regiões interioranas (parcela dessa população descendia de imigrantes). Aliava-se a essas condições uma situação política, na qual predominavam as relações oligárquicas, de favorecimento, nas quais o clientelismo político sempre acabava preponderando. Os políticos utilizavam-se da nomeação ou da remoção de professores quase sempre para beneficiar seus apadrinhados. Não raro, professores totalmente incompetentes para o exercício das atividades garantiam sua permanência nas escolas, pois, em troca desse favor, conseguiam votos para os «padrinhos». Deve-se, ainda, destacar que, com o desenvolvimento econômico da região, motivado pela crescente exportação do café, houve uma diversificação e um crescimento dos ramos secundário e terciário da economia, fato que abriu possibilidades de oferta de empregos e novas perspectivas para as mulheres poderem optar por outras profissões além do magistério.

A LUTA PELA AMPLIAÇÃO DA OFERTA DE ESCOLARIZAÇÃO Independente das dificuldades encontradas para melhorar as condições da instrução, o Estado republicano buscou formas de garantir a expansão da escolarização. Uma delas foi passar a subvencionar escolas municipais. A Lei n.° 1.195, de 9 de H ISTÓRIA ,

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janeiro de 1919, exigia, no entanto, que essas escolas funcionassem com regras ditadas pelo Governo do Estado, ingerência que também se estendeu ao ensino particular, uma vez que as escolas particulares recebiam material escolar adquirido às expensas do Governo estadual.10 Entendiam os republicanos que a ingerência sobre as escolas particulares não feria a Constituição e era justificada, pois devia [...] o Estado como orgam de soberania do povo, exigir para os que se dedicam ao exercício de certas profissões, requisitos de ordem technica como soe acontecer com todas as profissões liberaes. Se para o exercício de outras profissões, que apenas curam de interesses relativos ao indivíduo, se exige certa somma de conhecimentos, é innegavel que para o magistério primário particular [...], cujas funcções dizem de perto com futuro da Pátria, a fiscalização do Estado se impõe, como um dever irreductivel (MONTEIRO, 1915, p. 33).

O escândalo do desvio de verbas públicas por meio do subvencionamento das escolas particulares, aliado à necessidade da ampliação da oferta de escolarização, determinou que o Estado Republicano arranjasse mecanismos para aumentar cada vez mais os gastos com a educação. Como o que se queria era expandir a oferta da escolarização e o número de diplomados, as autoridades governantes faziam vista grossa ao grande comércio em que se transformaram as escolas particulares. Boa parte delas contava em seus quadros com profissionais não diplomados e oferecia um ensino de má qualidade. Uma das formas para solucionar tal impasse foi conseguir que os Governos municipais passassem a arcar com os custos da instrução. O presidente do Estado, Jerônimo Monteiro, para solucionar tal problema, convocou uma reunião com os Governos locais, que se realizou no dia 18 de novembro de 1909. Entre outros assuntos, [...] foi seu objecto resolver sobre o auxílio com que, na medida de seus recursos, podia cada município contribuir com a difusão do ensino sobre o modo prático de tornal-o effectivo. [...] ficou deliberado que cada um dos cidadãos a ella presente iria envidar todos os esforços no sentido de conseguir da municipalidade que representava a votação de um auxílio de 15% sobre as despezas que o Estado fazia com a instrucção em cada uma delas (MONTEIRO, 1909, p. 63).

Segundo o mesmo presidente, os Governos municipais honraram os compromissos assumidos pelos delegados que participaram da reunião por ele promovida e instituíram o auxílio acima mencionado. Os governantes republicanos percebiam claramente que o problema educacional era complexo e que não era uma tarefa fácil solucionar todos os impasses para melhorar o nível de instrução no País. Pensando dessa forma, Atílio de Vivacqua, em seu relatório, afirma que, para melhoria do ensino, não bastava [...] crear escolas onde não existam ou sejam defficientes: aparelhar as que existem, ainda não convenientemente apparelhadas com material escolar indispensável. É preciso seleccionar o professorado, velar

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pela efficiência dos methodos de ensino, fiscalizar o cumprimento do dever, estimulando-o com a segurança de que o mérito será aferido pelo valor, que um dos membros realmente representar (VIVACQUA, 1930, p. 52).

Governantes e responsáveis diretos pela instrução no Espírito Santo afirmavam que o desenvolvimento prosseguia, podendo ser conformado pelo «[...] aumento do número de escolas, pelo regular aperfeiçoamento do professorado, pela mobilização do ensino e systematização dos programas lectivos» (MONTEIRO, 1916, p. 52). Muitas pesquisas na área da educação apontam que o advento da República contribuiu para aumentar a oferta de escolarização. Seria, então, a escolarização um ideal republicano? Não há a menor dúvida de que sim. É inegável que a ampliação da oferta de vagas nas escolas primárias era um dado concreto. A ampliação da oferta de escolarização não significava, no entanto, garantia de universalização da escola pública. Embora o discurso dos governantes tomasse como referência a expansão da oferta de escolarização, sabe-se que as crianças das classes oprimidas recebiam uma instrução que não passava da escola primária, uma instrução de qualidade duvidosa. O fracasso escolar, uma tônica já nessa época, era, por excelência, apanágio dos pobres. Não era possível, portanto, universalizar o ensino público diante da dualidade que o caracterizava. A dualidade do ensino passou a significar a separação [...] entre aqueles que tinham acesso aos universos da cultura, além da profissionalização, e aqueles a quem a cultura escolar instrumentalizava para o mercado, mediante o adestramento e a interiorização da disciplina. A separação entre a escola primária e a secundária, entre escolarização curta e escolarização longa, entre educação propedêutica e a educação profissionalizante, tornou nítida uma barreira social dificilmente capaz de ser transposta (SOUZA, 1999, p. 31).

A oferta e a expansão da escolarização ocorridas no Brasil da Primeira República foi uma realidade para qual podem ter contribuído: o fim da escravidão, o crescimento do número de trabalhadores assalariados, o crescimento demográfico, a urbanização, entre outros. Os efeitos inovadores desse fenômeno, amparados ideologicamente pelos valores políticos do republicanismo, provocaram a ruptura da homogeneidade do padrão de educação aristocrática e abriram espaços para a ampliação da oferta de escolarização. Aguiar (1927, p. 24), que governou o Espírito Santo no final da Primeira República, afirmou: «Não há no Estado, logarejo onde não funciona, pelos menos escola primária». Para esse governante, apenas abrir escalas já significava garantir melhoria no nível da instrução. Ignorava, portanto, as constantes leis que determinavam o fechamento de escolas por falta de provimento, pela ausência de professores, ou até mesmo pelo pequeno número ou a inexistência de alunos. A despeito da qualidade do ensino oferecido e da injustiça que o sistema de ensino proporcionava no Brasil da Primeira República, a febre pró-instrução foi uma realidade nesse período. H ISTÓRIA ,

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Embora na teoria as medidas adotadas parecessem benéficas para todos, na prática não eram. Por exemplo: o Decreto n. 2.841, de 16 de fevereiro de 1917, que regulamentava uma disposição constitucional, tornou obrigatória a freqüência escolar para crianças de sete a doze anos, «[...] residentes num raio de 3 quilômetros da sede de uma escola, instituiu rigorosa fiscalização da freqüência e prescreveu a pena de multa imposta aos paes e tutores das creanças subtraidas à escola» (MONTEIRO, 1920, p. 95). Embora esse Decreto parecesse garantir a universalização do ensino, na prática era extremamente injusto, pois não levava em consideração as particularidades do meio rural, onde o fenômeno ocorria mais freqüentemente. Muitos pais não colocavam seus filhos na escola por necessitarem de mão-de-obra nos trabalhos da lavoura, por não terem condições materiais ou, ainda, por serem as escolas rurais de péssima qualidade, o que os levava a achar um desperdício manter as crianças estudando. Essa população, dessa forma, era duplamente punida. Um dos governantes apontados na Historiografia capixaba como grande incentivador do progresso na instrução local da Primeira República foi Jerônimo Monteiro. Em seus relatórios, Jerônimo Monteiro afirmava que havia construído e remodelado escolas em todo o Estado, além de ter promovido uma grandiosa reforma educacional, assessorado pelo educador paulista Gomes Cardim. O governante afirmava ter dotado as escolas de material pedagógico e de mobiliário, ter-se preocupado com o provimento das escolas não somente na área urbana como também na rural, ter investido na formação de professores. De fato, o Governo de Jerônimo Monteiro injetou grande quantia de recursos na educação, o que talvez possa ser justificado pela estabilização econômica da época, devido ao incremento nas exportações do café. No entanto, a maior parte dos gastos com a instrução era canalizada para áreas de maior concentração populacional, ficando os pequenos povoados e vilarejos entregues ao descaso. A reforma educacional assessorada por Gomes Cardim deuse num momento em que, nacionalmente, ocorria uma forte campanha em defesa da disseminação da instrução pública. Ao mesmo tempo, um significativo número de educadores questionava fortemente a educação oferecida pelo Estado e desejava que a educação como um todo fosse reestruturada. A reestruturação da instrução foi um reflexo do processo vivido naquele momento. Outros Estados da Federação, como Mato Grosso, Sergipe, Santa Catarina e Ceará, já haviam adotado a medida de convidar educadores paulistas para criarem um modelo escolar (TANURI, 1969), no que se refere ao ensino primário e normal, ou ainda «[...] enviaram educadores àquele Estado», no caso, São Paulo, para estudar seu sistema, quanto à reorganização da instrução (CARVALHO, 2000, p. 22). A ação mais ousada ocorrida no Espírito Santo na Primeira República parece que se deveu a Jerônimo Monteiro, em 1909, implementada posteriormente, em 1924, por Florentino Ávidos. Para Jerônimo Monteiro, a reforma na instrução teria sido sua maior obra em favor da educação, visto que possibilitou substancial mudança na concepção de educação que tinham os professores da 90

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época. Abandonaram-se métodos ultrapassados, ocorrendo dessa forma maior participação e interesse dos profissionais da educação e dos alunos pela instrução. Apesar de os novos métodos adotados serem mais trabalhosos para os professores, os resultados foram muito benéficos. Sobre isso fala o próprio Jerônimo Monteiro: Incontestavelmente o trabalho do professor é muito maior com a applicação deste methodo, mas em compensação os resultados são incalculaveis, ressarcindo todos os sacrifícios dos professores, que começam immediatamente a colher o fructo dos seus esforços, satisfazendo aos alumnos, que, desde o primeiro dia de aula, conseguem ler e escrever (CARDIN, 1909, p. 3).

Em 1913, ao final do seu Governo, falou ainda sobre a reforma: «Não se pode esperar melhor resultado da nova organização do ensino, pois o augmento e freqüencia é o expoente da confiança que inspiram os processos do ensino adoptados pela reforma» (CARDIM, 1909, p. 4). Embora tivesse aumentado a oferta de escolarização, o Governo de Jerônimo Monteiro omitiu dados estatísticos reais sobre a porcentagem da população que tinha acesso à instrução, talvez porque esses dados revelassem que o «esforço’’ republicano pela universalização do ensino não passava de uma falácia. Graças ao apoio incondicional do Congresso Legislativo, Jerônimo Monteiro pôde implementar toda a política econômica voltada para contrair empréstimos no exterior, o que possibilitou a circulação de vultosos recursos monetários no Estado, que vivia, como já dissemos, uma situação econômica melhor, graças aos preços de comercialização do café. Entretanto, o fator econômico não foi condição única para maior oferta de escolarização. O entusiasmo pela educação, que se estendia por todo o País no início da fase republicana, época em que se corporificava a crença de que a multiplicação das instituições escolares determina o desenvolvimento e o progresso das nações, certamente foi um fator decisivo para a ampliação da oferta de escolarização. Prevalecia um otimismo pedagógico, que pretendia introduzir na escola pública a fé nas potencialidades humanas e a visão de se poder utilizar a instrução para o desenvolvimento do sentimento patriótico. O analfabetismo era visto como o maior mal do País, como o fator que impedia o progresso da Nação, devendo ser tarefa precípua do Estado erradicá-lo. Para isso, a única forma possível era estender a escola a todos, inclusive às classes marginalizadas.11 No discurso que se estabeleceu na época, a educação popular passou a ser vista como condição para o exercício da cidadania. Uma das justificativas para a ampliação da oferta de escolarização era a necessidade de se expandir o número de eleitores. Acreditava-se que dessa forma se formavam cidadãos para uma participação democrática e se garantia a unidade nacional. Na década de 10 do início do século XX, grande parte dos republicanos encontrava-se extremamente desgostosa com o rumo tomado pelo Estado. Alijada do poder, passou a criticar o regime. Como instrumento de combate às oligarquias, a classe média urbana mobilizou-se por meio das ligas nacionalistas, no intuito de modificar o H ISTÓRIA ,

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quadro educacional. A partir daí, projetaram expandir a alfabetização para garantir maior alistamento eleitoral, pois acreditavam que, pelo voto, poderiam «[...] republicanizar a república» (CARVALHO, 2000, p. 228). A idéia tomou vulto tão grande que, inclusive, se propôs a redução da escolarização primária de quatro para dois anos. Schelbauer, focalizando a substancial mudança ocorrida no País no processo de transição do regime monárquico para a Primeira República, argumenta que a educação objetivava treinar e disciplinar o povo para o trabalho pelo combate à ignorância. Não se discute mais a inadequação de mão-de-obra do liberto e do trabalhador nacional e, portanto, não parece mais fazer sentido reivindicar escolas para treinar mão-de-obra necessária às novas relações de produção [...] as discussões [...] passam a ter como objetivo a formação do cidadão, mais vinculada à preocupação com a participação democrática e unidade nacional do que com a produção; mais com a alfabetização dos futuros eleitores do que com o treinamento da mão-de-obra, mais em transmitir conhecimentos gerais para unir os homens do que conhecimentos que possibilitem ao indivíduo obter sucesso na luta pela vida. Enfim, expandir as virtudes sociais de amor à pátria e ao trabalho [...] (SCHELBAUER, 1998, p. 53).

Aparentemente, os governantes capixabas da Primeira República parecem ter conseguido universalizar o ensino. Tomando-se exclusivamente os dados estatísticos apresentados em suas mensagens, tem-se que forçosamente concordar com isso (TABELA 1). TABELA 1 – Dados de Escolarização no Período 1908–1929 Ano

Número de Escolas

Matrícula

Freqüência

1908 1909 1910 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920 1921 1922 1923 1924 1925 1926 1927 1928 1929

124 135 219 190 182 181 225 217 235 216 219 242 269 320 338 372 397 455 464 593 892 974

3.672 4.621 5.418 6.204 6.780 7.362 7.296 7.129 8.375 11.490 11.978 11.925 12.282 13.871 16.229 18.971 20.067 22.446 23.039 29.346 44.419 49.313

2.967 3.501 4.213 4.826 5.030 5.338 5.464 5.603 6.125 7.804 8.593 8.225 8.974 10.641 11.045 12.804 13.937 15.802 16.245 21.506 33.639 37.641

Fonte: Mensagem dos presidentes do Estado do Espírito Santo de 1905 a 1929

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Em seus discursos, no entanto, esses governantes não se referiram ao elevado número de analfabetos, à parcela significativa da população que não prosseguia os estudos e não tinha acesso à escola secundária, ao fato de que os que prosseguiam pertenciam infalivelmente às camadas privilegiadas da população, às reclamações, sobretudo da população de áreas não urbanas, da péssima instrução oferecida às crianças dessas áreas. Era de interesse dos governantes republicanos difundir a escolarização por todo o Estado, porém não era fácil atingir, com essa medida, a área rural. O ideal de urbanização acentuava-se enormemente no País, o que de certa forma contribuía para que as normalistas não quisessem se deslocar para essa área. Além disso, faltavam verbas para prover essas escolas, quando alguém se dispunha para lá se deslocar. O presidente Bernadino Monteiro, por exemplo, confessava que o acesso à instrução não satisfazia às necessidades das populações, especialmente as do interior (MONTEIRO, 1917). Acrescentava que a expansão da produtividade exigia a abertura cada vez maior de escolas. O Estado implementou ações, objetivando garantir a escolarização das crianças nas escolas primárias da área rural. Para garantir o acesso e a não evasão dessas crianças, chegou até a alterar o horário do expediente nas escolas. Diferentemente do horário escolar da zona urbana, que ia das 11 às 16 horas, na zona rural, as escolas passaram a funcionar no horário das 8 às 12 horas. Segundo o governante do Estado, para «[...] conciliar a necessidade, que tem o pae lavrador, do trabalho do filho, sem obrigação de mandal-o à escola, foi mister estabelecer um horário conveniente [...] de modo que a creança se possa consagrar ao trabalho da lavoura sem que seja subtrahida à escola» (MONTEIRO, 1917, p. 54). O horário foi, portanto, diminuído em uma hora na zona rural, se comparando com o da zona urbana. Outra medida adotada pelo Governo foi evitar a aglomeração de escolas em determinadas regiões e a abertura de outras onde existisse número suficiente de alunos. Ao tomar tal atitude, o Estado preocupava-se unicamente com a contenção de gastos, evitando esmiuçar o problema. Não interessava, portanto, descobrir os motivos pelos quais poucas crianças iam às escolas ou por que as que iam se evadiam. Era mais fácil e interessante desviar o discurso. Para fazer crescer a oferta de escolarização pública primária, o Estado adotou expediente de criar a escola noturna.12 Essa escola, embora tivesse surgido da preocupação em combater o analfabetismo, era, na verdade, uma escola especial para crianças pobres, que necessitavam aprender um ofício. «O curso noturno, freqüentando especialmente pelos que já excederam a edade escolar e pelos meninos que as prementes circunstâncias da vida obrigam a trabalhar durante o dia, desempenha, certamente, uma notável missão na cruzada contra o analphabetismo» (VIVACQUA, 1930, p.12). Deve-se referenciar que, a partir do final do século XIX e, sobretudo, a partir do século XX, tomou força a mentalidade que via a educação como elemento H ISTÓRIA ,

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significativo do processo civilizador a ser implementado. A escola, especialmente a primária, foi utilizada juntamente com as professoras, no caso as mulheres, como veículos para transmissão da mensagem desejada. Como passou a vigorar essa mentalidade, foi fácil para os republicanos alegar que viam na popularização do ensino a forma de se chegar ao desenvolvimento do País e, nesse sentido, passaram a afirmar que envidavam todos os esforços para garantir a expansão da escolarização do nível primário. O Estado procurou, então, fazer despertar um sentimento patriótico, segundo o qual o indivíduo passava a ser visto como responsável pelo progresso nacional e pela prosperidade pública. Por meio do ensino de história e da Geografia, a escola procurava transmitir aos alunos o conhecimento do solo pátrio e levá-los a reverenciar as glórias, os grandes vultos e os heróis que serviriam de exemplo às futuras gerações. Para disseminar esse ideal, os governantes republicanos propunham uma escola responsável pela formação do caráter nacional, na qual as mulheres seriam [...] utilizadas como veículos de reprodução dos objetivos da Nação: a escola, sobretudo a primária, como transmissora da mensagem patriótica a todos os cidadãos, e a mulher, como simbologia e como elemento formador das futuras gerações. A ambas cabe a missão de ensinar à criança e ao jovem um corpo de doutrinas que os torne, pelo caminho do sentimento, os quais fiéis servidores da pátria (TRINDADE, 199, p.83).

A mulher – mãe ou professora – deveria atender aos interesses da sociedade e da Nação, por meio da retransmissão dos conhecimentos e valores que se desejava fossem repassados. Desejava-se que a mulher representasse o papel de rainha do lar e anjo tutelar da família. Caberia a ela manter a ordem social, e isso só seria possível se exercesse a função de guardar o lar, a moral e os bons costumes. Nesse sentido, era reservado a ela o papel de educadora, pois, nessa condição, poderia orientar seus alunos como fossem seus filhos. A criança era vista como o futuro e a esperança da pátria. Caberia primeiramente à mãe e depois à professora torná-la um cidadão digno, um homem bom para a família e para a sociedade, um cidadão a serviço da Pátria. Pode-se vislumbrar, pela fala dos governantes do Estado do Espírito Santo, durante a Primeira República, que todos viam na falta de instrução o grande problema do País. Sobre isso Gomes diz: [...] não se poderá negar que os grandes males que nos afflingem, outra origem não têm, a não ser a deficiência da educação de maneira geral do povo brasileiro, victima de um obscurantismo que lhe amortece as capacidades. Paiz novo, possuindo terras fertilíssimas, dotado de riquesas naturaes que deslumbram, o Brasil, entretanto, vem atravessando uma vida de dificuldade, cada dia mais prementes, porque a educação não há feito de nós uma força aproveitável, de tal sorte que viessemos a ocupar, no conceito dos povos civilizados, o ponto de destaque que a justo título nos cabe (GOMES, 1927, p. 12).

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Movido pela necessidade de expandir a escolarização primária, o Estado criou mecanismos para colaborar nesse sentido. As Caixas Escolares espalhavam-se por todo o País e o Espírito Santo não fugiu à regra. Por meio delas se arrecadavam recursos que garantiam materiais diversos, como livros, uniformes, merenda, calçados para crianças mais pobres, permitindo, assim, que muitas delas tivessem condições para entrar na escola e ali permanecer. Contribuíram como fundo para essas Caixas: as multas pagas por pais e tutores que teimavam em não cumprir as exigências da lei quanto a colocarem obrigatoriamente seus filhos ou tutelados nas escolas; a dedução feita dos vencimentos de funcionários da Secretaria da Instrução, mediante licenças, faltas ou suspensão; a contribuição de sócios; as festas beneficentes promovidas pelas escolas com a ajuda da população e dos alunos; as subvenções do Estado e do município. Acabar, no entanto, com o estado de inércia e de atraso em que vivia a instrução no País não era uma tarefa fácil. Nem a luta em prol da alfabetização da população, implantada pela chamada «Liga Nacionalista’’, nem todo «esforço’’ dos governantes foram suficientes, porém, para que, ainda em 1920, se tivesse acabado com o analfabetismo. Nessa época, mais de 50% da população continuavam analfabeta e, desse total, 80,7% eram crianças em idade escolar, dados que evidenciam que o número de escolas não atendia à demanda. Além disso, era elevado o percentual de evasão do alunado. A ação das Ligas Nacionalistas, que se intitulavam a «salvação da população brasileira’’, foi ineficaz, em razão de as Ligas funcionarem basicamente em regiões mais povoadas. Conseguiam, quando muito, fazer» [...] das professoras primárias as transmissoras e praticantes de seu ideário ufanista e patriótico [...]» (LEITE, 1983, p. 10). Até as duas primeiras décadas do século XX, a instrução no Brasil, assim como no Espírito Santo, não conseguiu alterar o caráter dualista da educação. O projeto educacional existente era marcadamente elitista, deixando evidente que Nação não poderia constituir-se sem o trabalho das elites. Dessa forma, embora fosse apregoada a disseminação da escola primária para todos, isso de fato não acontecia e, o que é pior, quando acontecia, faltava qualidade à escola. Criticando essa situação, Azevedo Sodré, membro da Associação Brasileira de Educação, dizia que era preciso oferecer ao povo uma educação de qualidade, «[...] cuidando seriamente de educar [o povo], fazendo-o freqüentar uma escola moderna que instrui e moraliza, que alumia e civiliza» (CARVALHO, 2000, p. 24).

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1. O imaginário social do início da República sofreu uma grande influência comtiana, que via na mulher a figura da mãe com qualidades morais e altruísticas, bondosa, a retentora da família e da pátria. Era, no entanto, contrária à participação política das mulheres, por entender que isso iria contaminar sua pureza. Em verdade, o que os positivistas não queriam era que a mulher concorresse com os homens profissionalmente, desejavam simplesmente que as mulheres existissem para servir aos homens (maridos e filhos). 2. É verdade que os positivistas eram favoráveis a que a mulher tivesse uma instrução idêntica à dos homens, mas eram também favoráveis às desigualdades entre os sexos e contrários à co-educação. O mote dessas diferenças estava em que o objetivo da educação feminina seria diferente. Ao acreditarem na fragilidade feminina, quanto ao trabalho intelectual, por acharem que essa atividade deixava as mulheres nervosas e isso poderia debilitar seus descendentes, defendiam, então, que era melhor que as mulheres ficassem no lar. 3. As primeiras escolas normais surgiram a partir de 1835, mas sua proliferação deu-se a partir do ano de 1850, quando foram abertas escolas em quase todas as províncias. 4. Sobre esse tema, ler: D’ÁVILA NETO, Maria Inácia. O autoritarismo e a mulher: o jogo da dominação macho-fêmea no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1978. 5. COUTINHO, José Maria. Uma história da educação no Espírito Santo. Vitória: SPDC/DEC, 1993 e SOARES, Renato Viana. Paradigma São Paulo: a exportação do «modelo» republicano no início do século XX. Vitória: Lei Rubem Braga/Darwin, 1998, que também abordam esse tema. 6. SEVERINO, Antônio Joaquim Os embates da cidadania: ensaio de uma abordagem filosófica da nova Lei de Diretrizes e Bases. In: BRZEZINSKI, Iria (Org.). LBB Interpretada: diversos olhares de entrecruzamento São Paulo: Cortez, 1997. pp. 56-64. 7. Quando nos referimos aos habilitados, estamos falando de professores que concluíram o curso normal. 8. Jerônimo Monteiro, que governou o Espírito Santo de 1908 a 1912, fez alusão a esse fato, informando que encontrou escolas nas áreas rurais, nas quais a dificuldade de se garantir a instrução das crianças começava pela falta de conforto das aldeias, afirmando que, em muitas delas, o mobiliário era feito com caixas de querosene. 9. De forma geral, as normalistas ficavam em casas de famílias com alguma posse, mas era comum ficarem em casas de pessoas que cobravam pensão. As entrevistas que realizamos com professoras que trabalharam em regiões interioranas relataram que eram tratadas com distinção, que a comida em geral era boa e farta. Todas ainda falaram da amizade que acabavam fazendo com os alunos e pessoas com as quais conviviam. Contraditoriamente, nenhuma delas desejou continuar trabalhando nessas localidades, embora falassem de saudades quando se removiam para um centro urbano maior. A remoção era sempre um grande alívio. Talvez isso se explique pela crescente febre de urbanização que tomava conta do País ou, ainda, pelos infortúnios pelos quais passavam ao andar pé ou a cavalo para chegar às escolas, ao ter que percorrer trilhas ou atravessar rios, ao ter que se adaptar aos costumes diferentes dessas regiões.

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10. Dessa forma, o dinheiro que deveria ser canalizado para a escola pública passava a ser desviado para a escola particular, o que certamente muito contribuiu para que não fosse possível melhorar as péssimas condições das escolas da área rural. 11. Embora se falasse em garantir escolas às classes marginalizadas e se sabia que efetivamente existiu a possibilidade de negros escravos e libertos se matricularem nas escolas, é óbvio que essas ações foram isoladas. Havia escolas que não permitiam a matrícula de negros; havia também negros que tinham acesso a escolas e eram discriminados, o que com certeza significa dizer que, quanto à instrução, ficavam os marginalizados, entregues à própria sorte. As escolas que recebiam negros em seus bancos, no final do Império e na Primeira República, eram encabeçadas por abolicionistas, republicanos e, ainda, ferrenhos críticos da Igreja Católica e defensores da instrução para o povo. 12. Em geral, era a população mais pobre ou das áreas mais isoladas das regiões rurais que teimava em não colocar seus filhos nas escolas. O estado republicano, dessa forma, punia duplamente esse contingente populacional, pois imputava unicamente a eles a razão de as crianças estarem longe dos bancos escolares.

REFERÊNCIAS

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TRANSGRESSORAS DA ORDEM PÚBLICA

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O GÊNERO FEMININO NOS AUTOS CRIMINAIS NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO

(1853-1865)

Arion Mergár

O presente texto visa a apresentar dados ainda parciais de minha pesquisa de mestrado, versando sobre autos criminais ocorridos entre 1830 e 1871, nos quais se destaca a mulher, seja como vítima, seja como ré. Para este artigo em particular, os autos analisados referem-se ao lapso temporal compreendido entre 1853 e 1865. De princípio, faz-se necessário explicitar que o Arquivo Público Estadual do Espírito Santo possui em seu acervo um total de 1.145 autos criminais. As mulheres figuram como vítimas ou rés em cerca de cem deles. O pequeno número de mulheres envolvidas em procedimentos criminais não surpreende. Ao discutir a questão feminina na criminalidade do século XIX, Perrot (1989, p. 11) comenta:

Os arquivos criminais tão ricos para o conhecimento da vida privada, pouco dizem sobre as mulheres, justamente na medida em que o peso destas na criminalidade é pequeno e decrescente (de cerca de um terço no início do século XIX, cai para menos de 20% no final daquele século).

No entanto, mais adiante essa mesma autora esclarece que isso ocorria não em virtude da natureza doce, pacífica e maternal, como pretende Lombroso, um dos maiores criminalistas do século passado, mas em virtude de práticas que a retiram do campo da vingança e do confronto. De fato, ao contrário do que se poderia supor, a presença das mulheres nos autos não se dá apenas na condição de vítimas. Embora a sociedade desejasse uma mulher dócil, submissa, recatada, observou-se que, na prática, existiam mulheres bem diferentes desse modelo idealizado, algumas delas rebeldes a ponto de cometerem transgressões, inclusive agressões físicas. Ao recorrer às fontes criminais em que as mulheres aparecem envolvidas, buscou-se, na verdade, viabilizar uma reconstrução da figura feminina, tal como era H ISTÓRIA ,

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idealizada e representada pela sociedade e pelo Judiciário. Vainfas destaca que, como a microanálise trata de personagens anônimos, só é possível conhecer a vida deles por meio de algum fato incomum que lhes ocorrer como sujeitos da história. Da mesma forma, com esses autos criminais e o registro de fatos do cotidiano vividos por esses personagens, pretende-se examinar nas narrativas processuais os padrões morais presentes na sociedade e reafirmados pela lei, e assim, compreender o perfil feminino construído pelo Judiciário e pela sociedade. (VAINFAS, 2000). Quando se examinam procedimentos criminais, deve-se levar em consideração que o que está em jogo neles e nos julgamentos é a defesa de um sistema de normas, entendido como universal e absoluto. Nesse sentido, Saldanha (2005, p. 1) afirma que as mulheres “[...] eram julgadas pela adequação de seus comportamentos às regras de condutas morais e consideradas legítimas, como a fidelidade, dedicação ao lar, filhos e controle de sua sexualidade”. Na verdade, a realidade dos fatos, constatada na leitura das peças integrantes daqueles autos, mostra, no caso da Província do Espírito Santo, mulheres cujo comportamento estava bem distante dos estereótipos femininos da época. A análise dos autos criminais levará em conta que esse tipo de fonte tem caráter e estrutura oficiais e, portanto, apresenta uma forma específica, seguindo um modelo de organização legal. Não obstante, esses autos criminais são extremamente significativos, pois deixam evidenciar e transparecer pequenos detalhes da vida cotidiana dos envolvidos. Para sua análise, consideraram-se alguns elementos-chave como: o auto de denúncia; o auto de corpo de delito (quando existem agressões); os autos de perguntas; os depoimentos das testemunhas; e o julgamento pelo juiz. Entende-se que esses elementos ofereçam pistas para a reconstrução do cotidiano da sociedade da época e, sobretudo, para entender o papel desempenhado pela mulher, além de permitirem deduzir o ideal de mulher projetado pela sociedade da época. Tais pistas poderão contribuir para o desvelamento das relações sociais do que pensavam os diferentes grupos sociais, e ainda como viviam os envolvidos, suas idades, estado civil, naturalidade, profissão, escolarização e condição social. É possível afirmar que a escolha de gênero, como instrumento de análise em última instância objetiva, proporciona o conhecimento sobre diferenças em masculino e feminino, por meio do estudo das relações entre os sexos. Os valores dominantes da sociedade são reafirmados nessa relação e sustentam os valores diferenciados para o homem e para a mulher, mas o exame das fontes primárias revela uma mulher diferente daquela que se esperava encontrar quando do início da realização da pesquisa (SOIHET, 1984).

A

ORGANIZAÇÃO DO

JUDICIÁRIO

A Coroa Portuguesa criou a Comarca do Espírito Santo, em 1741, constituída de todo o seu território e espraiando-se sua jurisdição sobre as vilas de São Salva104

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dor dos Campos dos Goitacazes e São João da Barra, vinculando-se ao Tribunal de Justiça, sediado no Rio de Janeiro, cabendo a sua instalação pelo Ouvidor Geral – Pascoal Ferreira Veras. Em 22 de abril de 1808, instalou-se no Brasil um Tribunal Superior, denominado “Mesa de Desembargo do Paço de Consciência e Ordens”, conforme História do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo: 13. Com a proclamação da Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, as Capitanias passaram a se chamar Províncias, passando, então, a esboçar-se uma organização da Justiça. Na Província do Espírito Santo, em 23 de março de 1835, foram criadas as três primeiras Comarcas: Vitória, São Mateus e Cachoeiro de Itapemirim. Somente em 28 de julho de 1860 é que seria criada a próxima, denominada Comarca de Santa Cruz. Quando da Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, as Províncias passaram a se chamar Estados Federados, ocasião em que existiam, no Espírito Santo, oito Comarcas, dez Termos e vinte e um Distritos Judiciários (Histórico do Tribunal de Justiça). Para melhor administrar a Justiça, alguns Estados dividem seu território em Regiões Judiciárias, Comarcas, Termos, Distritos, Subdistritos ou apenas parte disso, como era o caso do Espírito Santo naquela época, formando, porém, uma circunscrição única, para efeito de prática de atos da competência do Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça foi criado em 1891, tendo recebido posteriormente outros nomes: Corte de Justiça (1892), Tribunal Superior de Justiça (1913), Corte de Apelação (1937) e mais uma vez Tribunal de Justiça (1946), perdurando até os dias atuais. Não bastasse o empenho das autoridades pela estruturação da Polícia e da Justiça na Província do Espírito Santo, a atuação policial era centrada na apuração de crimes comuns e na repressão das atitudes e comportamentos sociais indesejados (CAMPOS, 2003). O Código Criminal do Império do Brasil foi elaborado observando-se os preceitos básicos, como a necessidade de previsão legal do fato típico para que se pudesse considerar crime, atrelando-se a conduta à norma, buscando-se apenar o cometimento da infração dentro de um critério de proporcionalidade das penas, estas consideradas imprescritíveis, admitindo-se, também, a sua cumulação, bastando que o réu tivesse cometido mais que um crime. Tal diploma legal tinha por objetivo assegurar a ordem social do País, tendo vigorado por cerca de sessenta anos, e classificava os crimes em: públicos, isto é, aqueles contra a ordem política instituída, o Império e o imperador e que, conforme sua abrangência seriam chamados de revoltas, rebeliões ou insurreições; particulares, como sendo os praticados contra a propriedade ou contra o indivíduo; e os policiais, H ISTÓRIA ,

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praticados contra a civilidade e os bons costumes, incluindo-se neles a vadiagem, a capoeiragem, as sociedades secretas e a prostituição, bem como o crime de imprensa. Não só a criação das escolas jurídicas no Império, mas também o grande volume de produção legislativa, com a elaboração de vários códigos, dentre eles o Criminal (1830) e o de Processo Criminal (1832), além de diversas outras leis, formaram os pilares da construção do pensamento jurídico nacional ao longo do século XIX (WOLKMAN, 1999). Nele se encontra a figura dos juízes de paz eleitos, cujas atribuições se espraiaram até a formação da culpa e julgamento de algumas infrações de menor potencial, firmando-se termos de bem viver para alcoólicos, baderneiros, mendigos e prostitutas. O julgamento das demais infrações cabia aos juízes criminais. A nova estrutura judicial contemplava os juízes de paz, os juízes municipais e juízes de Direito e os desembargadores, além dos jurados (FLORY, 1986). A partir desse Código de Processo Criminal do Império, o Júri passou a ter extensas atribuições, mais tarde restringidas e novamente ampliadas como reflexo das lutas entre liberais e conservadores (PIERANGELI, 2001). A mulher do século XIX era reprimida socialmente no que se refere ao exercício dos direitos de cidadania, e essa mesma mulher era investigada, processada e julgada em determinado período (até 1871) por uma só pessoa, que representava, ao mesmo tempo, o delegado de polícia e o magistrado, do sexo masculino, calcado em determinados padrões de comportamento tidos como ideais para a mulher: recatada, dócil, submissa. Embora alguns trabalhos sobre a mulher transgressora apresentem um comportamento padronizado para o gênero feminino, é necessário que se investiguem os desvios de conduta, para então ser possível afirmar se as mulheres inseridas nesta pesquisa também se enquadram nesse pressuposto. Vale ressaltar que as instâncias informais são representadas pelos processos de educação do indivíduo, na formação de seus valores dentro do padrão ético-social de comportamento. Assim, com base em tais parâmetros, são formados os padrões que ditarão a norma a ser elaborada, corporificando-se as instâncias formais. Desse modo, busca-se o controle da sociedade, daí por que não é possível entender o sistema repressivo penal sem o estudo da história social da época que se investiga. Diante disso, é correto dizer que o direito de punir do Estado tem por escopo a garantia da paz social e da liberdade dos cidadãos, materializando-se na pena. É de se observar que existia uma política de controle social objetivando a manutenção da ordem nas províncias. A edição do Código Criminal do Império foi uma exteriorização dessa política (1830), fazendo com que, em 1850, a tranqüilidade pública e a ordem social fossem pontos-chave para a reorganização das instituições políticas do País. Basta dizer que os magistrados da época do Império eram pessoas escolhidas para interpretar e aplicar a legalidade estatal, solucionando conflitos de interesse das elites dominantes. Tanto foi assim que, com a proclamação da Independência (1822), não houve adesão integral dessa categoria. 106

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Mas não se pode olvidar que a intervenção estatal objetivava realizar o controle social, fazendo com que a sociedade tivesse comportamentos dentro de padrões de “normalidade” ditados pelos pensamentos da classe dominante, fazendo com que os comportamentos desviantes fossem desencorajados, aplicando-se a estes uma punição (SICA, 2002).

A NALISANDO OS AUTOS CRIMINAIS Para um exame da questão feminina na Província do Espírito Santo (1830/ 1871), destaco três procedimentos criminais, selecionados dentre aqueles que integram o conjunto pertinente ao tema pesquisado. No primeiro deles, Francisco Pereira Barcelos e Eugênia Pinto Ribeiro, em 1855, foram responsabilizados pela morte de Manoel Vera Cruz Coutinho, esposo de Eugênia. Consta dos autos que o inspetor Manoel Nunes da Boa Morte Xavier fora avisado do crime, tratando de ir ao local do homicídio e mandando arrombar a porta. Diz seu depoimento: Logo que entrei na dita casa achei o cadáver de Vera Cruz morto de um tiro no peito, que julguei ser feito à queima roupa, isto da parte direita, e como é notório que o fato se deu por caso de que o dito Barcelos tomara a mulher do dito Vera Cruz que esta se retirou para sua casa acompanhada dos filhos do réu, julguei dar-lhe parte dela como conivente e por isso fiz prender a viúva (AUTOS CRIMINAIS, 1855).

Essa mulher, ao que se depreende dos autos em comento, não se insere no padrão comportamental desejado pela sociedade da época imperial, especialmente porque sua conduta destemida em deixar o seu lar com sua prole para viver em concubinato com aquele homem que viria a assassinar seu marido, sob sua chancela, afronta qualquer das características do padrão feminino então vigente. Eugênia ensinava os filhos de Barcelos a cozer e fazer rendas, tendo o crime ocorrido em razão de desentendimento havido entre este e o marido de Eugênia, que fora buscá-la naquela casa. Percebe-se do auto de perguntas feito ao inspetor de Quarteirão antes mencionado, que este enfatiza a relação espúria travada entre os réus Barcelos e Eugênia. Quando ao ser perguntado “Por que acha que Eugênia foi cúmplice na morte do marido?” respondeu: “[...] é público e notório que Eugênia Pinto Ribeiro tinha tratos ilícitos com Francisco Pereira Barcelos”, além de revelar o desinteresse desta em adotar providências em razão da morte de seu marido, procurando isentar de culpa o assassino, ao dizer que ele se defendera com uma espingarda, diante da investida da vítima com um facão. No auto de perguntas feito ao réu Francisco, ao responder “Por que ocorreu o fato”, disse que Eugênia estava morando em sua casa, com seus filhos e os filhos desta, e que a vítima queria levar a esposa e filhos à força, confirmando, assim, a H ISTÓRIA ,

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tentativa de agressão da vítima. Tais respostas revelam, por um lado, a irresignação do marido abandonado com o procedimento moral de sua esposa e bem retratam a conduta desviante desta, contrária ao arquétipo idealizado para a mulher. Observa-se, nos depoimentos colhidos, que Rita Pinto Ribeiro, filha da vítima, enfatizou a participação da mãe no crime, segurando a vítima e facilitando ser alvejada pelo tiro, dizendo ainda que “[...] muitas vezes ouviu o réu dizer à vista de sua mãe que ele tinha uma espingarda carregada para seu pai”. Aqui se observa que, embora a mãe descuidasse de seu comportamento, havia uma reprovação tácita de sua filha quanto ao caminho por ela trilhado. Fica claro no depoimento da filha que, embora estivesse vivenciando uma situação espúria, não a aceitava como normal, preferindo recriminar a atitude da mãe, ao invés de protegê-la, o que seria normal e aceitável. Joana Maria da Penha, filha de Barcelos, além de narrar a indiferença da ré Eugênia em relação à morte do marido, revelou ainda o trato existente entre os réus, de dar cabo à vida da vítima para depois se casarem, fato também confirmado por Manoel Pinto de Jesus, filho do réu. Ora, constata-se, assim, que o filho do réu também não aceitava com tranqüilidade a união de seu pai. Essa atitude, igual àquela manifestada pela filha da ré, aponta a recriminação da convivência de seus pais, que infringia o modelo então aceito. As testemunhas, Joaquim Corrêa de Santa Úrsula e Manoel Francisco dos Reis, afirmaram a existência de tratos ilícitos entre os réus, fato negado por ambos no Júri que decidiu pela absolvição da ré e a condenação do réu a galés perpétuas, tendo este apelado, sendo, então, condenado a vinte anos de prisão com trabalhos e às custas do processo. A absolvição da ré, embora sua participação no crime tivesse sido evidenciada pelos depoimentos de sua filha e seu enteado, desfaz em parte o estigma de que a condenação seria certa numa sociedade onde o comportamento desviante da mulher seria apurado com maior rigor. Percebe-se aí, também, uma forte reprovação da prole quanto ao procedimento de seus guardiães. Depreende-se dos autos que ambos os réus eram analfabetos e livres, não sendo negado, em momento algum, que o réu abrigava a ré e seus filhos em sua residência, mas deixando de ser configurada a legitimidade da atitude do réu, agindo em sua defesa. Embora a prova testemunhal fosse suficiente para a condenação da ré, o Tribunal do Júri optou por sua absolvição. Não se conhecem ao certo as razões dessa decisão. É interessante observar, no entanto, que a condenação moral dos familiares não foi suficiente para motivar o Júri a uma sentença condenatória. Isso mostra, pelo menos, nesse caso, que nem sempre a conduta moral era suficiente para pautar os julgamentos. É possível que a fuga da ré com seus filhos e o abrigamento destes pelo réu, em razão dos maus-tratos a ela impingidos pela vítima, tenham contribuído para o resultado. Além disso, o fato de existirem filhos menores tanto do réu quanto da 108

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vítima, sob os cuidados da ré, provavelmente tenha seduzido o ânimo condenatório dos jurados, ainda que, em cada depoimento, esteja configurada uma relação ilícita, negada por ambos os acusados. Outros elementos, portanto, além da moralidade feminina, contribuíam para análise dos juízes de fato. Ao marido, parece caber um limite aceitável também de conduta que, no caso da ré, foi determinante na sua absolvição, daí porque é possível afirmar que nem sempre os homens tinham razão. O Código Criminal do Império (CCIB) trazia um rol de penas e observações especiais quanto ao seu cumprimento. Nesse particular, tem-se o homicídio sem agravantes (art. 193, CCIB), cujas penas eram galés e prisão com trabalho de seis a doze anos, conforme o grau, valendo ressaltar que a pena de galés nunca poderia ser imposta às mulheres, que teriam a sua substituição por prisão com trabalho, sendo este análogo ao seu sexo (art. 45, CCIB). A cumplicidade para o crime consumado, como nesse caso, tinha por castigo a pena prevista para a tentativa (art. 35, CCIB), isto é, diminuía-se da pena aplicada, a sua terça parte (PIERANGELI, 2001). Logo, para a ré Eugênia caberia o apenamento de prisão com trabalho por um período entre seis e doze anos diminuída da terça parte, podendo ser condenada a, no mínimo, dois anos. Mas, ainda assim, os jurados preferiram a absolvição. Outro fato em especial que merece comentário diz respeito à vítima em sua situação de homem casado. Se provado o concubinato dos réus, ambos poderiam ser acusados por adultério. A mulher também figurou como vítima, em autos instaurados no ano de 1861, nos quais Torquato Gaspar dos Ramos, livre e letrado, fora acusado de agredir fisicamente Fernanda Pinto de Oliveira. As testemunhas ouvidas, quase todas analfabetas e de ocupação lícita, desconheciam o ato de agressão, tendo o réu admitido ter tido relações íntimas com a queixosa e, estando para se casar, esta apresentou a queixa de ter sido espancada com uma vassoura. O exame de corpo de delito apresentou duas contusões no antebraço esquerdo, não fazendo menção ao tipo de objeto eventualmente utilizado pelo agressor. A sentença julgou improcedente a queixa. A existência da contusão não foi o bastante para se admitir a culpa do suposto agressor. A única testemunha ocular do fato assegurou que o réu não estava armado e que, após pedido de ajuda da vítima, esta afirmara que não era nada, dispensando o eventual socorro. Mais uma vez se constata que os réus buscavam, via de regra, infirmar a condição moral da mulher envolvida em crimes, vilipendiando a sua reputação, mormente quando sua atitude fere o padrão comportamental vigente, isto é, de ser recatada, submissa e voltada para as atividades do lar. Já no ano de 1845, Elias Correa do Espírito Santo e Severiano Correa do Espírito Santo, irmão e pai da vítima Maria (identificada apenas dessa forma nos autos), foram, respectivamente, acusados de defloramento e agressão física. H ISTÓRIA ,

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No auto de perguntas feito a Maria, esta afirmara que ambos os acusados haviam tentado manter relações sexuais com ela, somente tendo conseguido seu irmão, o que resultou em gravidez. Não aceitando a situação, o pai espancou a vítima, causando-lhe ferimentos com faca, conforme exame de corpo de delito. Das oito testemunhas ouvidas, têm-se seis homens e duas mulheres, todos maiores de idade e com ocupação lícita, sendo unânimes em afirmar, por ouvir dizer, sobre o motivo da surra, isto é, a gravidez, e algumas delas mencionaram o suposto autor da gravidez. O julgamento, realizado pelo subdelegado de Polícia, Áureo Trefino Monfardim, resultou na cominação de prisão simples para ambos os acusados. Por ocasião do julgamento pelo Tribunal do Júri, o acusado Severino, pai da vítima, reconheceu ter surrado a vítima como castigo de pai para filho, tanto que a criança nasceu sem problemas. Já o acusado Elias tratou de acusar o vizinho Joaquim Mendonça, negando peremptoriamente a acusação sobre si irrogada. Ambos os réus foram absolvidos pelo Tribunal do Júri. Tal veredicto, ao tempo em que consolida o direito de punir do pai, desvaloriza o depoimento da vítima em flagrante desconsideração de sua palavra. A conduta dos jurados dessa Província foi alvo de análise por Campos (2003, p. 178), que assevera: A Polícia e a Justiça tentavam atuar, desse modo, com o objetivo de tranqüilizar as elites, tutelando seus interesses. As fontes podem contribuir para formar uma opinião acerca do papel desempenhado pela magistratura nesse contexto de intervenção do poder público na disciplina da população escrava e seus ‘aliados’. A solução encontrada pela Justiça para a questão inscreveu-se na prática jurídica geral. Isso contraria a leitura simples da legislação da época. Um excelente exemplo é o Tribunal de Júri, instância de julgamento mais discutida no século dezenove, que, sistematicamente, foi acusada de inoperância e ineficácia no combate ao crime.

Ainda que assim não fosse, mesmo diante da gravidade dos fatos, os acusados inicialmente foram apenados somente com prisão simples, embora a pena prevista para tal delito fosse mais severa. O estupro cometido por Elias encontra-se contemplado nos arts. 221/222 do CCIB, cujas penas previstas são o degredo de dois a seis anos e a prisão por três a doze anos e, para o crime de ofensa física praticado por seu pai (art. 205, CCIB), a pena de prisão com trabalho por um a oito anos. O apenamento previsto para a época ia de prisão simples – cumprida nas prisões públicas próximas aos locais da prática delituosa – até a pena de morte pela forca, com ritual revisto de exposição pública do réu, que antes da execução era conduzido pelas ruas mais públicas, dotado de vestes ordinárias. Ora, se para os crimes praticados por Elias e Severino o apenamento era maior, qual teria sido o motivo da aplicação de pena tão branda (prisão simples), com posterior absolvição de ambos pelo Tribunal do Júri? 110

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Possivelmente, a sociedade local, de estrutura patriarcal, via na pessoa do pai o direito absoluto sobre os filhos. Para o filho incestuoso, sua palavra valeu muito mais para os jurados que o rol de testemunhas ouvidas, pois buscou fragilizar a conduta anterior da vítima, sua irmã. Não resta dúvida de que a condição da mulher na sociedade local evidentemente em nada a favorecia para figurar em condição de equilíbrio perante seu opositor, se este fosse do sexo masculino. Constata-se que, nessa época, o pai detinha direitos amplos sobre o grupo familiar e sua autoridade era inquestionável (FRANCO, 1998). Defluiu-se do pequeno universo de autos examinados que, se evidente a culpabilidade, o apenamento não era proporcional à extensão do delito praticado. Mesmo no crime de homicídio praticado pelo réu Barcelos, em que a pena prevista era de morte para o grau máximo, galés perpétuas para o médio e prisão com trabalho para o mínimo, houve reforma da sentença, diminuindo para o mínimo o grau de apenamento. Os casos estudados não se mostram suficientes para desprestigiar a lição de Puga, que afirma serem os paradigmas constituídos culturalmente, calcados no modelo do homem trabalhador e da mulher esposa, afável, submissa, fazem com que aqueles que discrepam desse modelo sejam reprovados pela sociedade e corram o risco de serem socialmente desclassificados, mas certamente se prestam à reflexão das ambigüidades e complexidades do papel esperado pelas mulheres nessa época (PUGA, 2004). A criminalidade sempre foi preocupação para os governantes, a ponto de, em diversos relatórios dos presidentes da Província, constar não só o tipo penal, mas também uma resenha do fato criminoso ocorrido, como aquele de 1873, que se refere ao homicídio de que foi vítima Francisca Maria Benedicta da Victoria, perpetrado na rua do Rosário, na capital da Província, tido como “o mais horroroso” (MALPES, 1873). Quando do relatório de Governo de 1878, é mencionado o seguinte fato: “[...] no lugar denominado - Lama Preta - do Município de Vianna tentando Manoel Pinto Rangel contra a vida de Manoel Pinto Valladares resultou ficar ferido por golpes de faca a mãe de nome Maria Francisca de Siqueira que se achava junto do referido seu filho” (MALPES, 1878). A título de ilustração, apresentam-se duas tabelas contendo o número de autos criminais versando sobre o tipo penal “agressão física”, ocorridos entre os anos de 1853 e 1865. Tais dados mostram com clareza a mulher, tanto na condição de ré quanto de vítima, em síntese, como transgressora da ordem pública.

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TABELA 1 – Crimes envolvendo mulheres (Ré ou Vítima) 1853-1865 Tipo de crime

Quantidade

Agressão física

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Agressão física e estupro

01

Tentativa de homicídio

01

Homicídio

01

Fonte: Autos criminais (1853-1865). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo

TABELA 2 – Discriminação dos autos Personagem

Réu

Sexo

Cor

Sabe ler?

M

F Negra NC S

13

2

2

2

7

0

Vítima

Sabe escrever?

Status

N

NC

S

N

NC

Livre Escravo NC

13 7

3

5

5

7

3

12

1

2

9 6

2

1

0

0

9

0

0

9

M = Masculino; F = Feminino; S = Sim; N = Não; NC = Nada Consta. Fonte: Autos criminais (1853-1865). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo

A Tabela 1 nos mostra que, no período estudado, as mulheres se envolveram em nove crimes, especificando em quais tipos de infração penal, sendo possível afirmar que o gênero feminino, na maioria absoluta dos casos, se envolvia em crimes de menor potencial ofensivo, fato que talvez possa não se confirmar na leitura de todos os procedimentos criminais pertinentes ao lapso temporal estudado, embora exista expectativa de que tal comportamento se confirme, especialmente em razão do modelo feminino idealizado para a mulher daquela época. Todavia, não se esperava encontrar a mulher envolvida em crimes de maior gravidade como homicídio, mas a realidade dos autos foi diferente daquela esperada, acredito, em razão dos padrões rigorosos de conduta delas exigidos. Já a Tabela 2 nos traz uma visão detalhada desse universo, isto é, dos quinze réus, apenas dois eram do sexo feminino, isto é, 13,33% do total estudado. O mesmo não ocorre quando se examina o número de vítimas, pois, dentre as nove, o número de mulheres é de sete, o que percentualmente equivale a 77,78%, representando um valor quase seis vezes maior, sendo possível afirmar que o papel destinado para a mulher era o de sujeito passivo do crime. Acredita-se, assim, numa análise superficial e, por óbvio, limitada aos casos estudados, que, na quase totalidade de crimes envolvendo mulheres, estas eram livres e, embora o envolvimento em contendas dessa natureza significasse uma 112

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depreciação na aferição de sua conduta, constata-se, quase sempre, que essas mulheres pertenciam a classes menos privilegiadas. Não é possível asseverar que essa dedução seja verificada quando do exame de todos os autos criminais objeto deste estudo, mesmo porque outros fatos a serem investigados encontram-se separados por décadas, o que poderá, talvez, influenciar no resultado. Isso porque a evolução social certamente repercutirá no comportamento dito aceitável. É induvidoso que as mulheres se envolviam em menor número de crimes que os homens, o que confirma a tese de Perrot, já mencionada. É possível que essa assertiva refira-se aos crimes de maior gravidade, tendo esta revelado, conforme dito, tendências à prática de crimes mais leves, tais como agressão física e ameaças. Embora o número de acusados do sexo masculino seja quase sete vezes daqueles do sexo feminino, pouco se sabe sobre a sua cor, mas cerca da metade sabia ler e um terço deles sabia escrever, sendo em quase sua totalidade livres. Ainda que muito pequena a quantidade de autos em que a mulher figure como ré, a definição de um padrão feminino de comportamento se revela uma forma de controle social, embora o aparelho policial se constitua num instrumento de elevada importância para essa dominação, eis que a família e a escola são focos de disseminação da ideologia masculina (FAUSTO, 2001). Outro aspecto analisado é que o status da mulher transgressora era quase na totalidade, livre, representando apenas 20% do total, considerado aí, os 13,33% cuja identificação não foi possível. Isso faz crer que o objetivo em padronizar comportamentos somente interessava atingir a quem não estivesse obrigado a adotá-los. É na diferença entre os sexos que foram deflagradas as desigualdades sociais, culminando na formação de paradigmas masculino e feminino, atribuindo-se à mulher do século XIX um papel hierarquicamente inferior na escala social (BOSELLI, 2003). A estigmatização das mulheres envolvidas em procedimentos de natureza penal, ainda que na condição de vítima, fez com que o manancial de pesquisas fosse reduzido, pois a mulher bem situada socialmente quase nunca figura em tais autos. Isso porque, na maioria dos casos, a repercussão social negativa resultaria em prejuízo maior para sua reputação. Daí os números trazidos à lume refletirem em parte a realidade criminológica envolvendo mulheres, especialmente em crimes como o incesto e o homicídio. Outro fato perceptível é que apenas cerca de dez por cento dos autos envolvem mulheres na condição de vítimas ou rés, embora o percentual de mulheres no contexto populacional da Província fosse bem superior a esse patamar. Segundo o jurista Viveiros de Castro, a fragilidade da mulher não estava relacionada diretamente com a sua força física pela natureza dos músculos ou pela sua resistência – mas sim pela sua mente, a sua maneira de pensar. A mulher era volúvel, instável e, portanto, facilmente influenciável, ora por sua emoção, ora por terceiros, mas nunca pela razão, característica essencialmente feminina (CASTRO, 1942). H ISTÓRIA ,

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A análise empreendida dá conta de que as mulheres que figuram nos autos criminais não são tão submissas e recatadas como a sociedade da época exigia, no tocante aos padrões de conduta, pois os casos estudados retratam comportamentos altamente reprováveis para o século XIX. No primeiro deles, a mulher, além de romper o paradigma social da família constituída pelo casamento, este indissolúvel até a morte, coabitou fora das regras aceitas e tramou e participou da morte de seu marido, merecendo ainda o beneplácito da absolvição. Isso contraria toda e qualquer regra socialmente aceita e demonstra que o julgamento não se pautou na conduta moral da mulher. No outro, a mulher queixosa de uma suposta agressão teve a denúncia julgada improcedente, certamente por ter se configurado que seu agressor já havia mantido relações íntimas com ela, dando a entender, até certo ponto, que a reclamação tinha por base um cunho pessoal de vingança pela ruptura do relacionamento, ainda que tenha sido positivo o resultado do exame de corpo de delito. Não é possível afirmar com segurança que a condição de mulher tenha sido decisiva para a improcedência da queixa, mas a conduta da mulher pode ter sopesado na decisão proferida, apesar de ter sido ouvida uma testemunha ocular dos fatos, o que, nem sempre, era fator preponderante nos julgamentos. O último dos casos analisados reproduz uma situação em uma mulher fora submetida a relações sexuais forçadas, figurando como autores do fato seu pai e seu irmão, que, após serem inicialmente condenados pelo subdelegado a uma pena leve, foram absolvidos pelo Júri, que tinha por tendência não condenar, preferindo considerar irrelevantes as agressões praticadas contra a ré. Nesse particular, a condição feminina e de integrante da prole, possivelmente, pode ter contribuído para a absolvição dos acusados e a estabilização do grupo familiar. Finalmente, o que se observa até então é que a situação da mulher no contexto do século XIX, na condição de autora ou ré nos autos criminais, nem sempre é preponderante para a formação da convicção do julgador monocrático ou colegiado. Não é plenamente perceptível, nos casos trazidos à colação, que o fato de ser mulher, por si só, já lhe confira uma condição de inferioridade na análise do julgador, situação diferente da marca infamante, especialmente quando envolvida em procedimentos criminais, ou seja, o envolvimento em situações de crimes não influenciou os julgadores nos processos até então analisados.

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REFERÊNCIAS

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AMOR E ADULTÉRIO NOS TEXTOS DO SÉCULO XII : O JULGAMENTO DE ISOLDA NO TRISTAN , DE BÉROUL

José Rivair Macedo

O ciclo literário desenvolvido em torno de Tristão e Isolda põe em relevo uma

série de imagens e/ou representações gestadas na sociedade feudal. Para o nosso propósito, não é possível abordá-lo em sua totalidade. Os textos que o integram foram escritos em diferentes momentos, locais, e pertencem a distintos gêneros literários, como os lais, contos versificados e em prosa, e romances de cavalaria, produzidos no domínio anglo-francês, germânico, escandinavo, ibérico, etc., em manuscritos às vezes fragmentários, colocados por escrito a partir do século XII. Restringindo o material ficcional ao espaço cultural anglo-francês, ainda assim vemo-nos diante de composições diferenciadas entre si. Pode-se dizer que Thomas de Inglaterra concebeu o romance de Tristão pela ótica cortês, enquanto o anglo-normando Béroul desenvolveu o mesmo tema pela perspectiva épica e heróica. Na Folie Tristan, deparamo-nos com a mescla das duas orientações, enquanto o romance em prosa do século XIII incide na visão da aventura cavaleiresca, criada sob inspiração monacal, de modo que, nas versões (ou interpretações), o estilo, o tom e a caracterização dos personagens recebem tratamento variado, expressando códigos de conduta díspares, de acordo com os princípios morais ou os modelos culturais reproduzidos pelos escritores. A trama narrativa de todos os textos gira em torno de um eixo comum: a relação amorosa entre Tristão e Isolda. Permeado por aventuras, proezas e desventuras, o núcleo básico é o amor ao mesmo tempo sublime e trágico, arrebatador e fatal, em torno do qual gravitam paixões, morte, casamento, adultério, amizade, sexo e desejo; tão mais arrebatador e fatal por se tratar de sentimento partilhado à revelia das normas permitidas pela sociedade. A paixão inaugura e alimenta uma relação proibida, afinal Isolda é casada com o rei da Cornualha, o tio de Tristão. O envolvimento afetivo entre os amantes, produzido um filtro mágico ou não, esbarra no interdito do compromisso conjugal. H ISTÓRIA ,

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O IDEÁRIO CLERICAL Aqui está o ponto de partida do presente estudo, pois, se o sentimento de Tristão e Isolda tornou-se o modelo do amor-paixão, inscrevendo-se na tradição cultural moderna, inspirando criações artísticas clássicas (em Richard Wagner, por exemplo), nada indica que desempenhasse o mesmo papel nos sistemas de valor próprios da sociedade feudal. Qual a relação entre amor e adultério, e amor e fidelidade, nas criações literárias do século XII, especialmente no Tristan de Béroul? Quais as implicações advindas da relação triangular entre os amantes e o rei Marcos, personagens fictícios criados no ambiente cultural do feudalismo, no momento em que a Igreja levava adiante o projeto de sacralização e normatização do casamento? Em seus últimos trabalhos, Georges Duby demonstrou a profunda mutação operada na instituição do casamento, a partir do século XI, que, de uma prática doméstica e privada, estabelecedora de alianças familiares e mantenedora de estratégias de poder no seio da aristocracia laica, ganhou paulatinamente dimensão pública e revestiu-se de caráter sacramental. Essa modificação conferiu à Igreja importante instrumento de controle sobre os leigos das camadas dominantes da sociedade feudal, enquanto a resistência destes ao modelo sacramental do casamento constituiu uma forma de preservação de sua autonomia no modo de se conduzir na sociedade (DUBY, 1981). Jacques de Vitry, pregador, místico e moralista dos mais respeitados do século XII, contemporâneo dos primeiros textos de Tristão e Isolda, revela-nos a posição clerical em relação ao matrimônio e ao adultério. Em seu Sermones ad Conjugatos, afirma ter o primeiro casamento ocorrido no Paraíso (Adão e Eva), para que todos os demais ocorressem no Paraíso, isto é, na Igreja. Assim sendo, era preciso seguir uma série de prescrições, obedecendo aos limites permitidos no estabelecimento da conjugalidade. Para o pregador, não eram legítimas as relações conjugais firmadas entre compadres e comadres, entre afilhados e padrinhos, pessoas cujos parceiros continuassem vivos, ou fossem heréticos, infiéis, excomungados, padres, monges ou adúlteros, especialmente nos casos em que tramaram a morte do companheiro. Em diversos exempla, condena o adultério feminino, aconselhando os maridos a exercer a disciplina por meio da “vara da correção” e afastar as virtuais pecadoras do leito conjugal (DE VITRY, 1983). Uma das possibilidades de interpretação do amor tristaniano vincula-se à dimensão alegórica de cunho estritamente cristão subjacente ao texto de Béroul. Segundo Jacques Ribard, abandonando o sentido linear e cronológico da trama romanesca, aparecerão certos elementos perfeitamente coerentes com a ótica religiosa medieval. Nesse sentido, a absorção do filtro mágico pelos amantes poderia ser tomado no plano alegórico como a expressão do “pecado original”. O amor fatal de Tristão/Adão e Isolda/Eva levaria ao rompimento da dependência reconhecida de 118

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Marcos – personificação do Deus-pai –, e a subseqüente descoberta e condenação do amor adúltero constituiria uma espécie de expulsão do Paraíso. A floresta de Morois, onde os amantes viveram durante três anos (até a duração do efeito do filtro) seria uma alusão exemplar ao Gênesis, e mais precisamente ao exílio do Reino de Deus e à perda do estado edênico (RIBARD, 1985). As proposições de Ribard não deixam de ter interesse e verossimilhança, uma vez que o tema era conhecido indistintamente por letrados e iletrados, clérigos e leigos. Não obstante, mesmo considerando as possibilidades de leitura propostas por Ribard, acreditamos que o pensamento clerical oficial exerceu pouca influência na elaboração do enredo do Tristan de Béroul. Primeiro, porque os elementos cristãos praticamente não aparecem no encaminhamento do texto. Chama a atenção, aliás, a completa ausência de informações a respeito de personagens ligados à Igreja ou ao Cristianismo. Nenhuma menção a bispos ou padres nos episódios que perfazem a trama romanesca. Em vez de mosteiros, abadias ou catedrais, apenas uma capela registra a presença concreta do sagrado cristão. Em vez de papas, bispos ou padres, o único representante do Cristianismo a desempenhar algum papel explícito (e pequeno) é o solitário eremita Ogrin, guardião do espaço que separa o mundo conhecido dos cavaleiros da Cornualha e a floresta de Morois, o refúgio dos amantes. O ciclo literário enquadra-se bem dentro do que os especialistas, na esteira de Jacques Le Goff, têm denominado “reação folclórica”, complexo de tradições míticas de proveniência popular extraído da oralidade e inscrito nas criações culturais aristocráticas dos séculos XII e XIII, em que símbolos e temas mal digeridos ou mal assimilados pela cultura clerical letrada encontraram novo canal de expressão.1 No caso em que estamos examinando, a vinculação com as tradições folclóricas pode ser identificada a partir do fato de que, mesmo com todas as inovações propiciadas pelos escritores do século XII, o tema de Tristão e Isolda provém diretamente da mitologia céltica. Determinados vestígios de costumes, que a instituição eclesiástica procurava eliminar do comportamento dos leigos, transparecem na criação literária tristaniana. Isso pode ser verificado no modo pelo qual Eillart ou Gottfried Von Strasbourg descrevem as circunstâncias que envolvem o estabelecimento das relações conjugais dos protagonistas da trama. Apesar de, na prática, os representantes da Igreja terem direcionado esforços para conferir um significado cristão ao casamento, o que vemos nos textos aqui referenciados é algo muito diferente, bem próximo da tradição secular ferreamente combatida. Nenhuma referência a eclesiásticos no casamento de Marcos com Isolda; ela é trazida da Irlanda pelo sobrinho do rei e entregue ao marido. A noite de núpcias sela a união. Como Isolda, já sob o efeito do filtro, entregara-se a Tristão, a fiel Brangien (ao mesmo tempo aia e confidente) toma o lugar da ama no leito conjugal. Em toda a descrição oferecida pelos escritores, nenhuma menção aos ritos do sacramento cristão, nenhum indício do novo H ISTÓRIA ,

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estatuto que a Igreja desejava imprimir nessa instituição. Por todas essas razões, pensar na leitura da trama tristaniana pela perspectiva clerical seria limitar demasiado a interpretação. Deixando de lado esse tipo de orientação, verificaremos, nas criações culturais de proveniência laica, maior probabilidade de aproximação do significado conferido ao tema no século XII.

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IDEÁRIO ARISTOCRÁTICO

A literatura vernácula e profana, na qual as composições do ciclo estão inseridas, revela certa permissividade em relação às ligações afetivas entre jovens e mulheres casadas da aristocracia. A elaboração do conceito de “amor cortês” ou fin’amor, como se sabe, data do século XII, e está relacionada com o complexo de representações mentais e com as sensibilidades desenvolvidas no seio da alta nobreza (ROSENFIELD, 1992). O ideal da cortesia, valor integrado no código de ética nobre, exaltava as boas maneiras, a sutileza no falar e no agir, a elegância dos gestos e o enobrecimento moral proporcionado pelo sentimento do amor por uma mulher. Não qualquer mulher, é certo. A mulher ideal do amor cortês é a dama, personagem de condição social elevada, em geral, casada. A ética cortês, visualizada especialmente no canto dos trovadores à “dame sans merci”, não passava, em sua própria natureza, pela idealização (ou sugestão) do adultério? É certo, no entanto, que o jogo amoroso proposto segundo as regras de cortesia tinha limites bem definidos, restringindo-se na maioria das vezes aos desejos, sem resvalar para os atos. Os comportamentos enaltecidos pelos trovadores, repletos de sensualidade, não punham em risco a conjugalidade dos seniores, dos casados. O amor cortês pode ser tomado como um jogo educativo, um jogo para homens, no qual as mulheres representavam o objeto do desejo, nunca da posse (DUBY, 1989). O amor puro, portanto nobre e elevado, celebrava a abstinência, conservando apenas uma coloração carnal. Na intimidade amorosa, como na sociedade, o amante perfeito não era mais que um servidor da dama. Os seus deveres consistiam em agradar-lhe, amá-la e não amar mais ninguém, exaltá-la, ser discreto. Em troca, podia desfrutar da graça de contemplá-la, ter contatos sutilmente eróticos, nos quais quase tudo era permitido, exceto o ato sexual (SOLÉ, 1992, p. 108-109).2 Em Thomas, o escritor do ciclo de Tristão e Isolda que mais se identifica com os princípios da lírica cortês, percebemos claramente a dificuldade de aproximar o tema tristaniano do fin’amor. Entre longos monólogos e diálogos, o escritor formula os paradoxos entre a ética cortês e a fidelidade vassálica rompida pelo adultério, entre os deveres com o senhor/marido e as exigências da paixão avassaladora. O sofrimento dos amantes, neste caso, chega a ser masoquista: ambos são dilacerados pela ausência do outro, e a vontade de ter e possuir o objeto do desejo proibido inaugura um dilema ético. Como alimentar a paixão, sem infringir determinadas regras? O ápice do embaraço ocorre a partir do momento em que Tristão se 120

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casa com Isolda das Brancas Mãos. Não pode amá-la, pois seu coração pertence a Isolda, a Loura, e não consegue aplacar (nem alimentar) sua paixão. Entregar-se completamente à esposa significaria trair o amor, e a não consumação (fisica/sexual) do casamento equivaleria traição aos compromissos conjugais: Se mantiver minha promessa com ela (esposa) Romperei o pacto com Isolda E se for fiel a Isolda, Serei desleal para com minha esposa. Não tenho o direito, nem quero agir mal com Isolda. A qual devo mentir? Pois uma devo trair (LE TRISTAN de Thomas, 1974, vv. 507-514).

Vemo-nos, pois, diante do impasse que fundamenta uma das teses de Denis de Rougemont: Tristão gosta de sentir amor, muito mais do que ama Isolda. E Isolda nada faz para retê-lo perto de si. Precisam um do outro para arder de paixão, mas não um do outro tal como são, e sim da ausência recíproca e das emoções que essa ausência suscita. O adultério e o que ele representa seria, neste caso, apenas um entre tantos obstáculos (voluntários ou não) a separá-los. Incorrendo na infidelidade em relação a Marcos, os amantes seriam obrigados a lutar contra os obstáculos resultantes da clandestinidade do sentimento, uma forma de fortalecer o desejo e alimentar a paixão infeliz, nutrida pelo sofrimento e pela pulsão da morte (ROUGEMONT, 1988, p. 44). O modelo cortês, entretanto, nem sempre prepondera nos textos da matéria da bretanha. Em Maria de França, uma das primeiras a transpor os dados do mito para o texto escrito, no Lai de Chievrefueil, amor e adultério não são necessariamente excludentes, nem restringidos. Neste caso, as relações afetivas diferem da estilização, codificação e ritualização da ética cortês. Aqui, o amor aparece acima das convenções e instituições. Para este caso, Jean Flori propõe a noção de “amor verdadeiro”, pois a fidelidade diz respeito aos vínculos estabelecidos exclusivamente entre os amantes e pode sobrepujar todos os demais valores, inclusive os compromissos da conjugalidade (FLORI, 1992). Alguns lais ilustram bem essa tendência. Em Guiguemar, o herói homônimo, conduzido até uma ilha, apaixona-se pela esposa de um senhor ciumento, desfruta do amor da dama, reencontrando-a tempos depois em um torneio. Em Milun, o casal de amantes mantém relação extramatrimonial por vinte anos, tendo mesmo um filho, para formalizar a união apenas por ocasião da morte do marido enganado. E em Eliduc, em face ao amor adúltero do herói, a sua esposa, num gesto de abnegação verdadeiramente comovedor, deixa o campo livre para a amante, solicitando apenas terra e bens suficientes para fundar uma abadia, para onde se retiraria com a permissão do marido (LES LAIS de Marie de France, 1935). Há um dado recorrente nas intrigas dos Lais bretões do século XII. Os homens envolvidos com damas casadas em geral são jovens solteiros, de condição H ISTÓRIA ,

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social inferior à mulher. Nos textos de Lanval e de Graelent, o primeiro de autoria de Maria de França e o segundo de autoria anônima, a rainha Guinevere propõe aos heróis relações amorosas, provocando-os a reconhecer o quanto era bela e desejável. No Lai de Guingamor, também de autoria anônima, é a tia do jovem quem o incita ao amor, durante a ausência do rei da Bretanha. Em todos os casos, os heróis recusam a proposta, permanecendo fiéis ao sentimento amoroso que nutriam por fadas ou vindo a estabelecer relações com seres feéricos.3 De certo modo, é o que encontramos na intriga dos romances que tratam da relação entre Tristão e Isolda. Vemos aqui os mesmos elementos do enredo. Tristão é solteiro, e Isolda, casada. Ele vive na corte da Cornualha, na dependência do rei, seu tio. Isolda liga-se ao plano feérico, conhecendo ungüentos e poções que mais de uma vez salvam a vida do herói (combate contra Morholt ou contra o Dragão). Nesse mesmo sentido, não é um filtro mágico o responsável pela profunda ligação amorosa que liga um ao outro? A história dos amantes da Cornualha representa, todavia, experiência original da sensibilidade amorosa no imaginário feudal, estabelecendo um confronto com a realidade e com o ideário aristocrático. Se a fidelidade pode ser pensada pela vertente social – fundada na observação leal dos compromissos e das promessas – e pela vertente psicológica – fundada na inviolabilidade dos sentimentos partilhados a dois – a relação de Tristão e Isolda conduz à desmontagem dessas duas dimensões, dissolvendo-as. O desejo arrebatador torna-se responsável pela quebra de compromissos e pela instabilidade de sentimentos no interior da célula real. Torna-se também paradoxal, pois conduz à infidelidade conjugal e ao adultério, em nome da fidelidade instituída pela paixão.

O ENREDO Como explicar os elementos complexos desse enredo, em que as noções de fidelidade e infidelidade atravessam as relações entre os principais protagonistas: Tristão e Marcos, Tristão e Isolda, Isolda e Marcos, Tristão e Isolda das Brancas Mãos? Qual o significado profundo da trama amorosa, e ao mesmo tempo do adultério que é sua decorrência imediata? Há três propostas de abordagem: a primeira, que denominaremos “mítica”, enfatiza os dados da tradição oral apropriados pelos escritores do século XII; a segunda confere aos personagens uma interpretação psicológica; e a terceira, fundada no cruzamento dos elementos da narração com o contexto feudal, remete para uma interpretação conjuntural. No primeiro caso, os estudiosos direcionam a reflexão para os elementos míticos subjacentes aos textos. Para Jean Markale, por exemplo, Isolda seria a personificação das deusas da fertilidade e da soberania da tradição céltica, como Epona, mescladas à imagem da Virgem Maria, com todos os traços sincréticos das deusas pré-cristãs (MARKALE, 1973). Esse erudito, como também Jean Marx, identifica 122

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o laço profundo que liga os amantes a um geis, ligação mágica inspirada pela mulher sobre o homem, do qual o filtro constituiria mero remanescente literário (MARX, 1955). A relação de Tristão e Isolda, nesse plano, indicaria os vestígios de um ritual de entronização. Tristão, sucessor natural do reino, para substituir o tio (lembremos das relações de parentesco matrilineares entre os celtas), deveria ligarse à figura-símbolo da soberania, a rainha, correspondente da Grande Deusa. A hierogamia simbólica, de acordo com Hilário Franco Jr., poderia remeter a uma dimensão muito mais ampla, envolvendo ao mesmo tempo a tradição céltica e a tradição cristã. No inconsciente coletivo, a imagem dos amantes representaria a hierogamia sagrada entre a Virgem (Isolda) e Cristo (Tristão), com todas as conotações da sexualidade e da fertilidade. A religiosidade profunda, independente de diferenças teológicas, determinava o quadro mental no qual o mito veio a ser reapropriado (FRANCO JÚNIOR, 1985). No segundo caso, determinados estudiosos têm insistido sobre a natureza da relação triangular que constitui o cerne da narração. Sylvette Rouillan-Castex identifica no amor cortês (especialmente trovadoresco) o conteúdo latente dos conflitos edipianos, opondo o desejo do jovem de possuir a dama (imagem da mãe) à interdição do senhor/marido (imagem do pai) (ROUILLAN-CASTEX, 1984). Para Christiane Marchello-Nizia, por outro lado, o amor cortês, que alimenta o triângulo composto pelos protagonistas do romance tristaniano, assim como o triângulo Lancelot/Guinevere/Artur, encobre manifestações homossexuais subjacentes. As amantes, nesse tipo de leitura, ocupariam o papel de mediadoras entre desejos masculinos, ocultando um tipo de amor muito mais transgressivo que o extraconjugal (MARCHELLO-NILIA, 1981). A hipótese das relações homossexuais entre Tristão e Marcos não deixa de ser sedutora. A tradição céltica, de onde o mito foi extraído, não era refratária às práticas homossexuais4 e determinados traços desse tipo de envolvimento podem ser vislumbrados nos romances arturianos. Recentemente, Claude Sahel lançou um pouco mais de luz sobre essa questão, ao discutir o caráter profundamente erótico da relação entre o rei Marcos e Tristão. Segundo ele, existiria, nas entrelinhas do triângulo clássico definido pelo amor adúltero – marido/mulher/amante – um jogo de desejos independente daquilo que o código cultural permite ler espontaneamente como uma oposição entre a instituição (marido/mulher) e a paixão amorosa (mulher/amante) (SAHEL, 1992). No caso da relação entre Marcos e Tristão, especialmente na configuração romanesca proposta por Béroul, a ligação entre ambos se reveste de grande complexidade, pois, além dos laços afetivos e jurídicos, havia ainda os laços de sangue, que não devem ser desprezados dentro do contexto feudal. Peter S. Noble demonstrou o quanto, no decurso de toda a narrativa do Tristan, a atitude do sobrinho em relação ao tio difere da de Isolda, que devia muito menos obrigações ao marido pelo fato de estar ligada a ele apenas pelo compromisso conjugal, enquanto o amante, bem antes H ISTÓRIA ,

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de ser tomado pela paixão, encontrava-se preso pela dívida de sangue. Isolda, de fato, age com maior liberdade que Tristão, em determinadas circunstâncias, reconhece menos a autoridade do rei da Cornualha, livre das malhas da dependência familiar (NOBLE, 1981). Nesse mundo guerreiro e viril, o amor frutificava na intimidade doméstica, envolvido nas relações de parentesco. Os trabalhos de Georges Duby a respeito dos jovens da aristocracia laica e do matrimônio deixam entrever o quanto o imaginário feudal guarda das experiências vividas na intimidade da parentela e da linhagem. O amor, nessa perspectiva, seria um sentimento próprio da juventude, banido das alianças matrimoniais, nas quais o afeto cedia lugar aos deveres e compromissos com a sucessão da linhagem. O casamento fundava-se na ordem e na obrigação. Era fora dessa ordem que se situava o jogo amoroso entre homens e mulheres, espécie de válvula de escape para a rigidez da conjugalidade. Os jovens, nessa sociedade patriarcal, aprendiam o ofício das armas, da guerra e da caça, na corte dos ascendentes masculinos da linhagem materna. Em cada célula nobre, o senior mantinha, durante anos, os filhos de suas irmãs não destinados ao serviço de Deus, educando-os como pai.5 O tema do adultério entre sobrinho e tia não constituiria o reflexo de projeções incestuosas do desejo dos jovens solteiros pelo objeto de posse que garantia a posição de mando aos chefes de família? O amor assinalava, neste caso, a ascensão dos solteiros (DUBY, 1981). Em linhas gerais, é o quadro que encontramos no ciclo literário de Tristão e Isolda. O herói é sobrinho de Marcos pelo lado materno. Órfão desde a tenra infância, recebe a educação na corte do tio. Goza da proteção e do apreço do rei e será o sucessor do reino caso o rei não venha a ter descendentes. O maior adversário dos amantes, em vez de Marcos, é a corte dos jovens barões. São esses jovens barões solteiros que, procurando neutralizar a influência do sobrinho sobre o tio, tentarão eliminá-lo de todas as formas, fazendo-o cair em desgraça pela revelação do adultério. Os conteúdos desenvolvidos nos textos do ciclo tristaniano dão conta de problemas extremamente complexos, nem sempre vinculados ao plano das relações amorosas. Para Kathrin Rosenfield, nos dados presentes na narrativa do Tristan de Béroul, a problemática da justiça prevalece sobre a relação amorosa e determinados elementos, incompreensíveis como “símbolos arcaicos” ou “resíduos de mitologias esquecidas”, não têm sentido em si mesmos, mas estão investidos de um sentido preciso pela própria lógica do texto. Amor, lealdade e traição, nesse tipo de leitura, constituiriam determinações – positivas ou negativas – de uma concepção bem elaborada do Governo terrestre. Tais sentimentos colocariam em cena os conflitos e o modo pelo qual poderiam ser dirimidos pela justiça humana ou divina (ROSENFIELD, 1986). Ao contrário dos Lais de Maria de França e dos Lais bretões anônimos, em que o adultério é apresentado como prática comum e positiva, nos textos tristanianos, 124

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os amantes correm grandes riscos. Se descobertos, poderão ser punidos com a mutilação ou com a morte. Nos desdobramentos das narrativas, os escritores alertam os ouvintes e/ou leitores sobre os castigos terríveis aos quais os amantes estariam sujeitos, caso o adultério fosse revelado. Béroul menciona o profundo temor provocado pelos suplícios destinados aos transgressores dos compromissos do casamento: num trecho, Isolda teme ser condenada à fogueira e, em outro, Marcos fala da castração (LE TRISTAN de Béroul, 1974, v. 171, 255). Thomas, pela boca de Brangien, faz saber à rainha o castigo que merecia: a amputação do nariz (LE TRISTAN de Thomas, v.1545), punição, aliás, já empregada pelos homens para coibir o adultério feminino desde a Antigüidade.6 O conflito de Tristão e Isolda com os barões e com o rei da Cornualha confere originalidade ao enredo, distinguindo-o daqueles encontrados nos romances cavaleirescos do ciclo arturiano. O desenrolar das aventuras divide-se em cenas heróicas, com combates singulares, e cenas caracteristicamente burlescas, típicas dos contos cômicos. Ao contrário dos demais heróis, que jamais abdicam da condição de cavaleiros, Tristão é um personagem polimorfo, disfarçando-se ou metamorfoseandose para realizar visitas clandestinas à amada. Ele associa o combate físico, próprio do herói cavaleiresco, ao combate psicológico, valendo-se da esperteza e da astúcia para ludibriar os opositores de seu amor (BUSCHINGER, 1988). Paralelamente ao Tristão guerreiro, subsiste o Tristão astucioso. Dois episódios desenvolvidos por Béroul são particularmente interessantes nesse sentido. O primeiro ocorre no momento em que Marcos, advertido pelos adversários do herói, tenta surpreender os amantes trepado no pinheiro sob o qual costumavam se encontrar. Percebendo a presença furtiva do rei, ambos aparentam desconhecer que estão sendo vigiados, simulam um diálogo irrepreensivelmente casto, colocando-se como vítimas da inveja dos que tramam contra eles, afirmando que traíam o rei. O segundo diz respeito à cilada planejada pelo anão Froncin, que espalha farinha entre os leitos dos suspeitos. Tristão, ciente da armadilha, salta para o leito de Isolda, mas as gotas de sangue de suas feridas denunciam a tentativa frustrada de comunicação. As duas situações são próprias daquela narrada nos fabliaux dos séculos XII e XIII (DRONKE, 1973). Porém, diferentemente dos fabliaux, em que o sucesso da empreitada amorosa cabe em geral aos amantes, em Béroul a transgressão acaba sendo desvendada, revelada e exposta. Surpreendidos, os amantes são entregues ao furor do marido traído: “O rei escuta, suspira, baixa a cabeça, não sabe o que dizer, perplexo” (LE TRISTAN de Béroul, vv.584-586) e, em seguida, age. Os infratores são presos, Tristão consegue escapar, Isolda é condenada a perecer no fogo. Pouco antes da execução, Marcos entrega-a a um bando de leprosos. Tristão consegue livrá-la dos algozes e ambos passam a viver na floresta de Morois, isolados da corte, entregues ao amor e ao sofrimento. O efeito do filtro cessa. Ambos decidem abandonar a floresta. O eremita Ogrin serve de intermediário na reconciliação dos esposos. O H ISTÓRIA ,

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momento imediatamente posterior à reconciliação reveste-se de especial interesse para quem deseja apreender o ponto de vista aristocrático a respeito do adultério. Nele aparecem, assim pensamos, todos os elementos da intriga romanesca desenvolvida em torno do amor tristaniano. Vale a pena examiná-lo atentamente. Marcos aceita a reconciliação com Isolda. Os inimigos de Tristão, os mesmos que denunciaram o adultério ao rei, aconselham-no a colocá-la à prova. Afinal, tivesse a rainha se conduzido mal ou não, jamais fora submetida a julgamento. Era preciso que, para o bem da Cornualha, todos a vissem afirmar, sob juramento solene, a inocência de seu relacionamento com Tristão. Em caso contrário, deveria ser exilada do reino. De fato, apesar de os amantes terem sido descobertos e condenados, não foram julgados. Tristão, por ocasião da prisão pelos guerreiros de Marcos, suplicou-lhe por justiça, predispondo-se a combater com qualquer um em duelo judiciário, o que lhe foi negado. Isolda, condenada sem prévio julgamento, escapou de execução sumária graças ao ódio do rei, que preferiu vê-la sofrer em vida entre os leprosos em vez de ser consumida brevemente pelas chamas purificadoras da fogueira, entre lamentos, lágrimas e protestos do povo e do fiel cavaleiro Dinas de Dinan. Os três barões que aconselharam e/ou pressionaram o rei desejavam uma vez mais afastar a rainha da corte, eliminando, deste modo, possíveis influências de Tristão à célula real. Godoine, Ganelon e Danaalain, porém, sob o ponto de vista das relações feudais, cumpriam o seu papel de bons vassalos. Entre as obrigações vassálicas, eles não deviam prestar consilium ao senhor? Pelo mesmo ponto de vista, os amantes deviam ser considerados totalmente criminosos: primeiro, porque o sentimento que os unia levava-os a adulterar a relação conjugal real; além disso, o relacionamento que mantinham era incestuoso, uma vez que Isolda, legalmente, era tia de Tristão; finalmente, havia uma traição pessoal ao rei, a quem Tristão devia fidelidade e obediência. Não é esse, porém, o ponto de vista de Béroul. O sentimento dos amantes jamais é apresentado como criminoso, como fol’amor ou “amor insensato”. Para o escritor, eles não incorrem em vilania, não sentem amor vilão ou paixão vil. Os conselheiros de Marcos, por outro lado, são designados como delatores, traidores, felões. São eles, e não os amantes, os vilões da intriga e o fato de um chamar-se Ganelão não seria de imediato alusão ao traidor modelo da Chanson de Roland?7

O JULGAMENTO Isolda aceita a prova. Submete-se a um escondit, isto é, a uma forma de ordálio, um julgamento divino por meio do qual a absolvição ou a condenação seria estabelecida de acordo com os desígnios de Deus. No modo de pensar vigente das pessoas da Idade Média, a intervenção divina aparecia como signo distintivo de justiça, capaz de alterar os acontecimentos e estabelecer a verdade, punindo os 126

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pecadores e beneficiando os inocentes. Os julgamentos de Deus, por meio do duelo judiciário, pela imersão das mãos em água fervente e pelo contato com o ferro em brasa, perfaziam o que se costuma designar de ordálio (ROUSSET, 1948).8 Encontramo-nos aqui em face de um traço distintivo da concepção de justiça característica da sociedade feudal. Tradicional e coletivo, o direito era, em última instância, sancionado por Deus. Nessa sociedade, todos os atos jurídicos exigiam a mediação de símbolos, gestos ou palavras. No adubamento do jovem cavaleiro, na investidura do vassalo, na homenagem ao senhor, assim como no juramento perante as relíquias, palavras e atos adquiriam traços mágicos, revestindo-se de eficácia simbólica e ritual (GOUREVITCH, 1983).9 Como argumenta PierreYves Badel, o direito dos homens necessitava da garantia da tradição, da coletividade e de Deus. Esses três poderes possibilitavam a preservação de uma ordem transcendente que, para além das aparências, regia o universo. Nesse sentido, a justiça divina jamais permitiria que algum culpado fosse poupado, nem que um inocente fosse injustamente punido. Na medida em que Deus onipotente era concebido como o criador do direito, este não poderia ser nem injusto nem mau (BADEL, 1969). O ordálio não se configurava, pois, em mero ornamento literário. Tratava-se de um costume muito antigo, existente entre os gregos, romanos e povos germânicos e, durante a Idade Média, estava disseminado entre as diferentes camadas sociais, reconhecido até mesmo pelas autoridades constituídas. Encontramo-lo registrado, na forma do duelo judiciário por combate singular, em diversos códigos de leis bárbaras da Alta Idade Média, entre os quais a lei dos lombardos ou Edito de Rotário, redigido em meados do século VII.10 Mal enquadrado nas práticas cristãs por conter resquícios pagãos evidentes, os juízos por ordálio foram atacados nas obras de determinados escritores cristãos e defendidos por outros, até serem oficialmente proibidos, em 1215, no IV Concílio de Latrão.11 Para o que nos interessa diretamente, parece que o emprego do ordálio gozou de popularidade nos casos de adultério. No início do século XII, o cronista Orderic Vital relata caso exemplar. Por volta de ll00, Ricardo, filho do duque Roberto da Normandia, morreu enquanto participava de uma caçada. Logo após, uma mulher apresentou-se à corte afirmando ter sido sua amante e reivindicando os direitos de dois filhos cuja paternidade era atribuída ao falecido, dando provas indiscutíveis da relação que mantivera com o príncipe. Apesar de concordar com parte das evidências, Roberto hesitava em reconhecer os direitos das crianças. Então, a mãe segurou um pedaço de ferro em brasa publicamente e, como não tivesse recebido nenhuma marca de queimadura, provou que dissera a verdade (ORDERIC VITAL, 1827). A rainha Isolda não se opôs em submeter-se ao escondit, mas impôs uma condição: exigiu a presença do rei Artur como testemunha. De que adiantaria, argumentou, desculpar-se diante da corte da Cornualha e do povo, e logo depois seus inimigos exigirem nova prova de inocência? Convidando Artur e seus campeões H ISTÓRIA ,

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como testemunhas oculares, quem poderia continuar a caluniá-la após a realização da prova? Se absolvida, qualquer um que viesse a colocar em dúvida sua conduta deveria sustentar a acusação em combate com Artur ou com quem este indicasse para defendê-la. A intervenção de Artur no julgamento de Isolda é, no mínimo, curiosa. Encontramo-nos aqui diante do cruzamento de personagens oriundos de uma mesma tradição céltica, envolvidos em tramas romanescas relativamente semelhantes nas criações literárias do século XII, partilhando um mundo imaginário comum. O ciclo de Tristão corria paralelamente ao ciclo arturiano. Marcos, rei da Cornualha, era vassalo de Artur e, nessa condição, apareceria em vários textos da Távola Redonda. Tristão, do mesmo modo, participaria das aventuras do Reino de Logres nos romances do século XIII. A invocação do testemunho de Artur, no entanto, pode ser entendida como uma estratégia narrativa empregada por Béroul para legitimar o amor de Tristão e Isolda. Tal como Marcos, no final das contas, Artur não era também (sem saber) vítima do adultério? Paralelamente ao triângulo Tristão/Isolda/Marcos, não subsistia, em todo o ciclo arturiano, o triângulo Lancelot/Guenièvre/Artur? Béroul era contemporâneo de Chrétien de Troyes, autor do célebre romance Le Chevalier à la Charrette. Ora, o motivo central desse texto é o rapto de Guenièvre e os percalços, desventuras e façanhas de Lancelot para salvá-la. Com esse intento, o cavaleiro submete-se à pior infâmia para um nobre cavaleiro: tendo perdido o cavalo, aceita prosseguir a busca em uma carroça (veículo de vilão). No percurso, enfrenta temíveis adversários, passa pelas lâminas afiadas da Ponte-da-Espada e conclui a aventura dando combate ao terrível raptor, Meleagant. Depois, de noite, entra nos aposentos da rainha, partilhando com ela os prazeres do amor. Tal qual Tristão, a visita noturna do herói é descoberta. O sangue dos ferimentos tingira de vermelho os lençóis brancos do leito. A transgressão dos compromissos matrimoniais da rainha é revelada. Os acusadores imaginaram ser o senescal Kai, e não Lancelot, o autor do ultraje. Meleagant exige que o rei Bandemagus, seu pai, faça justiça: “Kai traiu o rei Artur, seu senhor, que confiava tanto nele que lhe dera a guarda dessa que lhe era mais cara no mundo”. E Lancelot, a pedido de Guenièvre, bate-se com o acusador para defendê-la da suspeita de adultério. Ao jurar sobre as relíquias, afirma ter Meleagant cometido perjúrio, pois os acusados não conheceram aquela espécie de perfídia. Venceu o combate (CHRÉTIEN DE TROYES, 1991). Chrétien conhecia bem o mito de Tristão e Isolda. Chegou mesmo a dedicarlhe uma composição, hoje perdida. Nada indica, porém, que tivesse juízo favorável à natureza da relação entre os amantes.12 Em Cligés, considerado por muitos um anti-Tristão, o escritor explicitou, de modo bastante claro, a aversão pela concepção do amor tristaniano. A heroína do romance, Fenice, apaixonada por Cligés e casada com o imperador de Constantinopla (tio do herói), faz o marido ingerir um filtro mágico capaz de provocar-lhe o sono toda noite, dormir e imaginar 128

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possuí-la, preservando a virgindade para o amado. Com a ajuda de outro filtro, simula a própria morte, tudo para evitar a vergonha de um amor como o de Isolda. Seu corpo não poderia ter dois possuidores (CHRÉTIEN DE TROYES).

O JURAMENTO AMBÍGUO Béroul, por outro lado, apresenta solução bastante sofisticada para inocentar Isolda. Ela envia mensagem a Tristão e avisa-lhe que compareça no dia e no local marcados para o escondit disfarçado de leproso. Tristão muda completamente a aparência, vestindo-se como miserável, portanto capa e bordão; transfigura o rosto e passa a imitar os gestos de doente: aos passantes, lamenta-se, geme e pede esmola. A prova realizar-se-ia na fronteira da Cornualha com o reino de Logres, na Blanche Lande, do outro lado do vau chamado Mau Passo (Mal Pas). Curiosa essa caracterização. Dois reis poderosos (vítimas de adultério), no julgamento de uma rainha (acusada de adultério), num local sugestivamente chamado Mau Passo. De fato, para chegar ao local em que os homens de Artur estavam acampados, era preciso atravessar as águas estagnadas, sujas e infectas de um pântano. As águas, sabemos bem, eram dotadas de expressivo simbolismo na literatura medieval, podendo identificar uma situação de perigo, de inversão da ordem. Quase sempre, constituíam o cenário de um rito de passagem na trajetória moral e espiritual dos cavaleiros. As águas perigosas dos pântanos representavam temível obstáculo, separando os heróis do objeto de sua busca (CHANDÈS, 1976). Na cena em questão, o sentido da narração é um pouco diferente. Tristão, como leproso, será o condutor dos demais pelo vau. Como o pântano, ele também adquirira aparência repulsiva. Nos sistemas de valor da Idade Média, o próprio termo leproso tornou-se sinônimo de rejeitado. O medo e o repulsa em relação à lepra derivavam em parte das deformidades físicas, das feridas supurativas e do odor provocado pela doença. Além dos sinais exteriores de degradação física, era comum pensar que esses eram emanações visíveis da alma corroída pelo pecado e, em particular, pelo pecado sexual. Na imaginação dos homens da Idade Média, o leproso, ser lúbrico, alimentava-se de sangue.13 Ora, quando da descoberta do adultério, Isolda não foi entregue aos leprosos, em vez do fogo purificador? Não fora o sangue das feridas de Tristão o responsável pela revelação de sua presença no leito da amada? O sangue, tal qual o fogo abrasador, não era emblema da luxúria? No momento da travessia do Mau Passo, o quadro até aqui esboçado da relação triangular que opõe Tristão, Isolda e Marcos ganha nova configuração. O percurso pelo pântano será associado aos acontecimentos anteriores na corte da Cornualha. Ele transforma-se numa espécie de microcosmo, em torno do qual os principais personagens passam a gravitar. O sentido das ações, no entanto, toma o rumo inverso daqueles ocorridos na corte, e Tristão leproso tornar-se-á o articulador H ISTÓRIA ,

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e orientador de toda a cena. Ele determinará as ações, provocando reações diferenciadas de cada um dos demais participantes da travessia. Só o falso leproso conhece a área pantanosa, os locais rasos ou profundos, as regiões perigosas e movediças. A cada um dos integrantes da cena do julgamento, aconselhará de acordo com a própria vontade, facilitando a passagem ou dificultando-a.14 No momento em que os cavaleiros do cortejo iniciam o cruzamento, são aconselhados a tomar a direção errada, e os cavalos afundam até o flanco. Quando aparece Artur, pelo contrário, o leproso louva-o, lastima-se e pede-lhe esmola. O rei oferece seus sorchaus, espécie de polainas destinadas a proteger os calçados. Desse modo, o doente pode transitar pelo Mau Passo sem sujar os pés, sem se macular. Os sorchaus, nos pés de um leproso, indicariam, nas entrelinhas do texto, um sinal distintivo de pureza, de modo que, assim como protegeriam fisicamente Tristão das águas pantanosas, também o protegeriam moralmente de qualquer culpa perante o julgamento que se aproximava. O falso leproso aproxima-se de Marcos. Com voz rouca, implora por alguma esmola. O rei entrega-lhe um capuz. Pergunta-lhe de onde vem, desde quando e por que deixou o mundo (os leprosos viviam afastados dos locais habitados, em comunidades isoladas). Tristão explica-lhe o motivo de sua enfermidade: amara excessivamente certa dama e, por causa dela, contraíra suas chagas. O rei indaga como tal coisa poderia ter acontecido. A resposta de Tristão é surpreendente: o marido da amada era leproso; como fizera amor com ela, contaminara-se pelo contato. O nome da dama? Isolda! Então, Marcos ri. Nesse trecho, chegamos ao ápice da ironia e da dimensão trágica de toda a história. Protegido pela deformidade exterior, o herói revela a deformidade interior do rei da Cornualha. Ao entregar Isolda aos leprosos, Marcos não teria se igualado a eles? Os integrantes do triângulo não estariam igualmente contaminados, terrivelmente marcados pelas feridas do amor? Não podemos deixar de assinalar a similaridade do diálogo dos dois protagonistas nesse trecho com o motivo central de La Folie Tristan d’Oxford. Em ambos os casos, o disfarce do herói permite a aproximação com a corte e com a amada e o encontro com Marcos é marcado pela revelação da verdade. Essa verdade, ao ser revelada, provoca o riso ou a indiferença, porque a máscara da doença (física/lepra ou mental/loucura) dissimula a aparência exterior. A ambigüidade entre o exterior e o interior determina, na verdade, todo o ciclo tristaniano. Em geral, os protagonistas partilham suas vivências na discrição do bosque, dos jardins, dos quartos, furtivamente, longe do olhar denunciador. Nas cenas em questão, a revelação pública expõe a verdade (na perspectiva dos amantes) em toda a sua intensidade, e a reação da corte e do rei transforma-os em objeto de zombaria. Em La Folie Tristan de Berne, a atmosfera é menos cômica, mas não menos reveladora. Tristão trata os interlocutores com desprezo e, quando o rei lhe ordena que pare de importunálos, o “louco” denomina-o cocu, isto é, “cornudo” (KJAER, 1988, p. 68). 130

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No trecho em questão, e também nas Folies, Tristão não poupa os seus inimigos pessoais, responsáveis por todas as dificuldades vividas em nome do amor. Godoine, Danaalain e Ganelon, ao entrar no Mau Passo, são induzidos a percorrer uma parte movediça do pântano. Os cavalos atolam e o lodo chega até os arreios. O leproso mente pela segunda vez, e os três afundam ainda mais. Um deles é derrubado na água fétida. Molhados, sujos e fedorentos, precisam tirar a roupa quando chegam na margem, expondo-se ao riso e ao deboche de todos os presentes. Finalmente, chega a vez de Isolda. Ao contrário dos outros, ela sabe o que deve fazer para cruzar o vau, ajeita o palafrém e percorre o Mau Passo. Tristão oferece seus serviços e a rainha monta sobre ele e é carregada. Chega do outro lado do lodaçal absolutamente limpa! É interessante ressaltar, nos desdobramentos da cena, o modo pelo qual, por meio dos gestos minuciosamente descritos, a personalidade de cada integrante é desvelada. Valendo-se do disfarce, Tristão retira as máscaras dos demais. Protegido pelo aspecto físico de doente, expõe as fraquezas, as falhas de caráter, as fragilidades morais daqueles que realizavam a travessia. Isolda, no entanto, sabe do disfarce, conhece aquele que ali se oculta. O julgamento da Blanche Lande instaura uma reversibilidade da ordem e repete, sob perspectiva diversa, o julgamento de Marcos por ocasião da descoberta do adultério. Tendo o leproso Ivan condenado a rainha a um destino vergonhoso, a justiça do falso leproso a salva da vergonha, devolvendo-lhe a honra e expondo os seus algozes à mácula e ao escárnio. No jogo sutil de paralelismos e distorções, em que virtudes e defeitos determinam a travessia, a máscara de Tristão transforma-o no duplo de Marcos, conferindo-lhe o papel de mediador entre a justiça humana (imperfeita) e a justiça divina, perante a qual Isolda encontrará absolvição (ROSENFIELD, 1992, p. 110-115). Contrastando com outras passagens do texto, em que o tom reforça a dramaticidade do enredo, nesse trecho, Béroul parece ter desejado divertir o público. Afinal, numa trama de amor, traição e morte, não haveria espaço para o riso? Passado o episódio do juramento, os três delatores lamentam que os amantes tenham conseguido escapar da armadilha, lastimam que continuem a se encontrar furtivamente e afirmam: “[...] quando o rei se afasta, Tristão deixa Malpertuis e vai dizer bom dia a Isolda em seu quarto” (LE TRISTAN de Béroul, v. 4254). Vemo-nos aqui diante de outra experiência intertextual do escritor anglonormando. Malpertuis era o nome atribuído à fortaleza do célebre Renart, personagem extraído da tradição oral e inserido nos textos cômico-satíricos dos séculos XII e XIII. A expressão “deixar Malpertuis”, como demonstrou recentemente Merritt Blakeslee, equivalia a outra expressão bastante corrente na época, “saber renardiano”, sendo ambas associadas ao caráter de trapaceiro do raposo. A alusão feita por Béroul indica de imediato o seu conhecimento da branche l do Roman de Renart, composta entre ll76 e ll80 (BLAKESLEE, 1989). Resta, todavia, a questão: por que Tristão H ISTÓRIA ,

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aparece comparado com Renart? As 23 branches, ramos ou contos do Roman de Renart remetem ao imaginário zoomórfico. Os personagens que os integram, caracterizados como animais, representam, em sua totalidade, uma grande alegoria dos grupos sociais do feudalismo. Na corte do Leão, rei Noble, gravitam o lobo Isengrin, o urso Blum, o galo Chantecler, o gato Tibert, a galinha Pinte e outros (BOSSUAT, 1957). Que relação poderia existir entre Tristão, herói romanesco integrante do universo cortês, com Renart, protagonista de contos profundamente satíricos, redigidos por clérigos e/ou estudantes anônimos? Aparentemente, nenhuma. Contudo, verificando com mais atenção, há determinados pontos de aproximação suficientemente conhecidos pelo público medieval. Tristão, como o raposo, valia-se da astúcia para ludibriar os adversários. Do mesmo modo, ambos eram mestres em operar metamorfoses. No conjunto do ciclo, e de acordo com as circunstâncias, o herói cavaleiresco assume a identidade de mercador, jogral, peregrino, leproso e, especialmente, bufão. Renart, por seu lado, incorpora os traços de artesão e de monge. Na Branche lb, o raposo aparece disfarçado de jogral e, outro exemplo de intertextualidade, afirma conhecer e cantar belos Lais bretões de Merlim, Artur, de Tristão e Isolda (LE ROMAN de Renart, 1985, vv. 2389-2395). A identificação entre dois personagens pertencentes a tradições literárias distintas advém de outro traço comum: ambos se encontram envolvidos em tramas construídas em torno do adultério. Toda a intriga desenvolvida nos contos renardianos baseia-se na inimizade entre o raposo e o lobo Isengrin, seu compadre. Renart tomara-se de amor pela comadre, a loba Hersent, penetrando certa vez na sua toca para manter relações sexuais com ela. Como se não bastasse, urinou sobre os filhotes de Isengrin e maltratou-os de várias formas, esfolando-os ou arrancando-lhes os pêlos. O lobo, ofendido em sua honra, declarou guerra ao criminoso, denunciando-o à corte do rei. Temia, como Marcos, ser infamado com o apodo de cocu. O julgamento de Renart, desenvolvido nas branches I e 5a, é especialmente interessante, pois coloca em evidência uma vez mais o ponto de vista dos leigos a respeito da transgressão dos compromissos matrimoniais. Hersent depõe perante a corte e afirma jamais ter sido cúmplice do desejo do compadre (o que, na realidade, nem sempre é claro na composição dos contos renardianos). Informa ter sido violentada. Livra-se, desse modo, de qualquer suspeita no delito. A opinião do Camelo, bom jurista da Lombardia, reproduz a posição da Igreja. Renart, o acusado, deveria ser interrogado na corte dos animais. Caso recusasse desculpar-se sob juramento (escondit), estaria sujeito ao confisco dos bens, à lapidação e a arder na fogueira. Para Noble, o rei leão, na medida em que o raposo amava a loba, lavara-se de boa parte da culpa, pois agira em nome do amor e, se o amor fosse correspondido, não haveria qualquer tipo de culpa (LE ROMAN de Renart, vv. 435-474). É, como podemos ver, o mesmo juízo do escritor anglo-normando em relação ao drama tristaniano. 132

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Assim, verificamos o quanto Béroul, por meio de sutis estratégias discursivas, procurou legitimar a relação dos amantes da Cornualha. Em todas as alusões, seja ao rei Artur, seja a Renart, os personagens sob os quais pairava suspeita de adultério são inocentados ou pelo menos isentos de castigo. De modo geral, as intenções, e não os atos poderiam caracterizar a culpabilidade e a punição. Por essa perspectiva, os amantes não deveriam ser punidos, pois não tinham a intenção de trair. Agiam impingidos pela paixão. A valorização do amor justificava a transgressão dos compromissos conjugais. A conclusão do julgamento da Blanche lande, por exemplo, é extremamente significativa. Isolda realizou o escondit. Diante das relíquias sagradas, jurou que, entre suas coxas, só dois homens tinham entrado: Marcos e o leproso que a carregou nas costas pelo pântano (LE TRISTAN de Béroul, vv. 4167-4184). É o conhecido “juramento ambíguo”, imbuído de duplo sentido, pois de fato os dois homens penetraram entre suas coxas ao amá-la, mas os ouvintes imaginavam que, no caso do falso leproso, tal proximidade física se devesse apenas em virtude da cena anterior da travessia do vau, quando a rainha foi carregada nas costas do falso enfermo.15 Uma vez mais, na percepção de Béroul, a máscara de Tristão ocultou a verdade perante os homens e estabeleceu a verdade perante Deus. Os homens foram enganados pelo duplo sentido das palavras, mas os amantes poderiam igualmente enganar a Deus? Aparentemente, não. No “juramento ambíguo”, Béroul fez Deus e os leitores ou ouvintes da aventura tornarem-se cúmplices de Tristão e Isolda. Não deixa de ser uma expressão muito significativa da posição dos leigos em face do casamento, no justo momento em que a Igreja estava implementando sua doutrina acerca do casamento e interferindo diretamente nas regras de convivência tradicionais da aristocracia laica. Os clérigos tinham ciência da potencialidade simbólica do tema tristaniano. Talvez por isso, nos textos em prosa redigidos a partir do século XIII, como os de Robert de Boron e os do ciclo do Graal, os escritores tenham acentuado as cores do desvio das normas da paixão “mundana” e condenado os amantes da Cornualha. Com efeito, na versão portuguesa de A Demanda do Santo Graal, ambos aparecem queimando no fogo do inferno, prova de que a forma de amar que representavam passara a ser considerada pecado mortal.16

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1. Ver SCHMITT, Jean-Claude. Religion populaire et culture folklorique. Annales ESC, 3l, l976, p. 94l-955; Les traditions folkloriques dans la culture médiévale. Archives des Sciences sociales H ISTÓRIA ,

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des Religions, 52/l, l98l, p. 5-20 e LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia e Cultura eclesiástica e cultura folclórica na Idade Média: São Marcelo de Paris e o Dragão. In: Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Tradução de Maria Helena da C. Dias (Imprensa Universitária). Lisboa: Editorial Estampa, l979. p. 207-220 e 22l-262. 2. Para GUAL, Carlos Garcia, El redescubrimiento de la sensibilidad en el siglo XII, Madrid: Akal, 1997. p. 21, embora o amor cortês idealizasse o adultério, não o promoveu; a ênfase estava no ato de amar e não na realização do impulso erótico, mas havia casos de entrega total (asag). 3. Para o Lai de Graelent e o Lai de Guingamor, ver REGNIER-BOHLER, Danielle (Pres). Le coeur mangé: récits érotiques et courtois des XII et XIII siècles. Paris: Stock, l979. Para a interpretação dos dados dos contos, ver LECOUTEAUX, Claude. La structure des legendes melusiniennes, Annales ESC, 33-2, l978, p. 294-306 e FRANCO JUNIOR, Hilário. Entre o mundo feudal e o mundo das fadas: a aventura de Guingamor. In: A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. SP: EDUSP, l996, p. l25-l36. 4. A controvertida afirmação de Diodoro de Sicília a respeito da pederastia entre os celtas é apresentada por LAUNAY, Olivier. A civilização dos celtas. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, l978, p. 202. (Col. Grandes Civilizações Desaparecidas). 5. Questão desenvolvida recentemente por BOVO, Claudia Regina. Os caminhos da consangüinidade: as estratégias da linhagem no Tristan de Béroul. In: TELLES, Célia Marques; SOUZA, Risonete Batista de (Org.). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais. Salvador: Quarteto Editora, 2005, p. 250-257. 6. A pena da amputação do nariz remonta ao Egito antigo. Em geral, na longa lista de castigos infligidos às mulheres adúlteras nas sociedades primitivas e arcaicas, estão a morte na fogueira, por estrangulamento ou enforcamento; as chibatadas; a exposição e execração pública; a mutilação do órgão sexual; ou pagamentos altíssimos como compensação pelo delito. Na Inglaterra da alta Idade Média, o adultério era punido com a morte, até que, no século XI, as leis do rei Canuto “atenuaram” o castigo, condenando o marido da acusada ao exílio e a acusada a ter o nariz e as orelhas cortadas. Pierre SAINTYVES. Le charivari de l’adultère et les courses à corps nus. L’Ethnographie, n. 31, p. 17, 1935. 7. Ver: PICOT, Guillaume. La chanson de Roland. Paris: Ed. Larousse, [ ]. 2 v. ou a tradução para o português em A canção de Rolando. Tradução de G. D. Leoni. São Paulo: Atena Editora, l958. Sobre o personagem Ganelão, cf. PICHERIT, Jean-Louis. Le silence de Ganelon. Cahiers de civilisation médiévale, v. XVIII-3, p. 265-274, 1978. 8. Sobre a recorrência do ordálio nas tradições folclóricas cristãs, cf.: SAINTYVES, Pierre. L’anneau de Polycrate et le statere dans la bouche du poisson. In: Essais de folklore biblique: magie, mythes et miracles dans l’Ancien et le Nouveau Testament. Paris: Émile Nourry, 1923. p. 366-404. 9. Sobre o lugar, a função e a eficácia simbólica dos gestos, ver o importante estudo de: SCHMITT, Jean-Claude. La raison des gestes dans l’Occident médiéval (Bibliothèque des Histoires). Paris: Gallimard, 1990. 10. Sobre a incidência do ritual, ver GLOTZ, Gustave. Les ordalies en grece. Revue Historique, 31 année, tome 90, 1906,; VACANDARD, E. L’Eglise et les ordalies au XII siècle. Revue des Questions Historiques, v. 53, n. 53, p. 185-200, 1893.

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11. Para a supressão das provas por ordálio, ver GRIPPARI, Marie-Noelle. Le jugement de Dieu ou la mise en jeu du pouvoir. Revue Historique, n. 564, p. 281-291, 1987; BARTELEMY, Dominique. Diversité des ordalies médiévales, Revue Historique, n. 567, p. 3-25, 1988. 12. Sobre o contraste entre o modelo amorosos de Chrétien de Troyes e o ciclo tristaniano, ver Marisa Mikhail BOCCALATO, Tristão e Isolda e as trovas corteses: faces do imaginário medieval, In: MONGELLI, Lênia Márcia (Org.). Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais (4 a 6 de julho de 1995). São Paulo: USP; Campinas: UNICAMP; Araraquara: UNESP, 1995. p. 294-295. 13. Sobre o significado da lepra nos sistemas de valor da Idade Média, cf. PICHON, Geneviève. Essai sur la lèpre du haut Moyen Age. Le Moyen Age, XC-3/4, l984, p. 33l-356. Para as implicações sociais da lepra, ver: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. RJ: Jorge Zahar, l993. p. l53 et. segs. 14. Nas palavras de CARVALHO, Yone de. Oralidade e manuscritura. A perspectiva do narrador como chave de leitura do Tristan de Béroul. In: Ruy de Oliveria ANDRADE FILHO (Org). Relações de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média (Estudos em homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro). Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005. p. 61, na narrativa de Béroul “[...] as formas de mascaramento orientam a trama, caracterizam os espaços, revelam a natureza das personagens e permitem ao autor-narrador veicular mensagens dissimuladas de conteúdo moral, religioso e mesmo político [...] O ocultar uma verdade pode assumir a função de revelar muitas outras. Através do mascaramento se chama atenção do leitor-ouvinte para a superficialidade das avaliações baseadas nas aparências e para a capacidade limitada que os homens têm de julgar”. 15. Para a interpretação dessa passagem, ver: FRAPPIER, Jean. Sur deux passages du Tristan de Béroul. Romania, v. 330, n. 2, p. 256-258, 1962. 16. A Demanda do Santo Graal, Texto sob os cuidados de MEGALE, Heitor. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988. p. 176; A respeito da modificação operada na apreciação da imagem dos amantes, ver JUNQUEIRA, Renata Soares. O triste destino de Tristão na versão portuguesa d’A Demanda do Santo Graal. In: MONGELLI, Lênia Márcia (Org.), Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais (04 a 06 de julho de 1995). São Paulo: USP; Campinas: UNICAMP; Araraquara: UNESP, 1995. p. 349-357.

REFERÊNCIAS

BADEL, Pierre-Yves. La mentalité juridique. In: BADEL, Pierre Yves. Introduction à la vie littéraire du Moyen Age. Paris: Bordas, l969. BARTELEMY, Dominique. Diversité des ordalies medievales. Revue Historique, n. 567, 1988. BLAKESLEE, Merritt R. Mal d’Acre, Malpertuis, and the date of Béroul’s Tristan. Romania, v. l06, n. 2, l989. BOCCALATO, Marisa Mikhail Tristão e Isolda e as trovas corteses: faces do imaginário medieval. In: MONGELLI, Lênia Márcia (Org.). Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais (4 a 6 de julho de 1995). São Paulo: USP; Campinas: UNICAMP; Araraquara: UNESP, 1995. H ISTÓRIA ,

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LAURA BRANDÃO : ENTRE A NORMA E A TRANSGRESSÃO NAS LUTAS SOCIAIS E POLÍTICAS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO

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Maria Elena Bernardes

Nos últimos dias de fevereiro de 1947, nos bastidores do Partido Comunista

Brasileiro, uma preocupação atípica mobilizava três dos seus grandes líderes: Diógenes Arruda Câmara, Luis Carlos Prestes – o Cavaleiro da Esperança –, e Astrogildo Pereira. O dilema em pauta é a publicação ou não do livro A Imagem de Laura Brandão, escrito por seu marido, Octávio Brandão. Decide-se, então, que Astrogildo é a pessoa mais autorizada do grupo para emitir tal parecer, pois era tido, dentre os intelectuais do partido, como o que mais conhecia literatura. Não foi preciso muito tempo: em três dias, o dirigente entrega o veredicto final e o veto à publicação do livro é justificado em quatro longas páginas datilografadas.2 Os argumentos de Astrogildo para o veto não deixaram dúvidas. Para ele, Laura não ocupara lugar de destaque na literatura brasileira; ao contrário, era ignorada pelo público. Justificava ainda que se tratava de um livro mal escrito e alertava para o risco que todos – Octávio e a própria direção do PCB – corriam de serem ridicularizados pela crítica. No entanto, independente de seu controverso valor literário, Laura teve uma atuação significativa no movimento operário brasileiro e sua militância deu-se sempre ao lado do PCB, fato que Astrogildo ignora em suas considerações, reforçando a impressão de que os comunistas se pautaram geralmente por idéias que consideravam natural à condição subalterna da mulher, atribuindo-lhe o papel de coadjuvante. As palavras de Octávio Brandão confirmam essa posição: “Laura auxiliava o companheiro a carregar a cruz. Afastava as pedras do caminho. Arrancava os espinhos!”. Ou então: “[...] a inspiradora, a animadora e a cooperadora. Acompanhou-me aos sindicatos, auxiliou-me no trabalho de massas [...]” (BRANDÃO, 1978, p. 159). Laura, em sua poesia, expressou o sentimento de quem sabia muito bem o lugar que lhe era reservado nas complicadas relações de poder com seus pares no H ISTÓRIA ,

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fechado e masculino mundo público. Assim, no poema Palmeira, ela intuía seu destino: Teu destino é dos grandes infelizes! Fria meditas, e no ideal te abrasas -É a glória-dor de voar tendo raízes!

No entanto, Laura não se submeteu aos padrões de comportamento normatizados, nas quais mulheres deveriam permanecer silenciadas no obscurantismo do privado. Ela foi uma das mulheres que ousou subverter esses valores e códigos impostos pela moral vigente, no início do século XX. Sua vida sempre esteve marcada por episódios que fugiam aos padrões estabelecidos. Seus pais, Jacinta e Domingos, casaram-se fugidios, na cidade de Maceió, nas Alagoas, na última década do século XIX. O Império chegava ao fim e o advento da República anunciava profundas transformações na sociedade brasileira. As grandes cidades, em especial São Paulo e Rio de Janeiro, remodelavam-se com uma significativa urbanização e crescimento industrial. A perspectiva de modernização empolgava as elites intelectuais País afora e Domingos, alguns meses depois do casamento, com Jacinta já grávida, decide se mudar para o Rio de Janeiro, a então Capital da República. Chegando ao Rio de Janeiro, nem tudo foi como o casal idealizara. O Brasil entrava no primeiro ano da República. O Rio, capital e centro financeiro do País, vivia a efervescência do momento político que a nação brasileira atravessava. Mas, apesar dos reversos políticos, econômicos e sociais, a vida sempre segue o seu curso. Se esse avesso político-econômico-social não podia ser controlado, existia uma outra história construída pelos sonhos de vida nova, de idealismo, de noites e dias vividos pelo jovem casal. Assim, em meio a decepções e sonhos, nasce a menina Laura, em 28 de agosto de 1891. Quatro anos após sua chegada à Capital, Domingos, a essa altura, já havia entendido que a vida não seria nada fácil, porém não tencionava deixar de lado seu sonho de tornar-ser professor, uma vez que essa era a razão de ter deixado o Recife para morar no Rio de Janeiro. Partiram, então, para São Paulo, onde Domingos formou-se na Escola Normal. Começou aí uma vida itinerante e a família, agora com três filhos, percorreu grande parte do País. Domingos era professor e, segundo Octávio Brandão, tinha idéias progressistas. Fora abolicionista e militante do movimento republicano em Pernambuco. Lia Dante, Petrarca, Shakespeare e foi propagandista da obra de Camões e de Castro Alves. Jacinta, boa cozinheira, bordava com mãos de fada. É retratada pelos seus descendentes como uma mulher mansa e trabalhadeira, assim como quase todas as mulheres suas contemporâneas. Depois de anos migrando de uma cidade para outra, por ocasião da Exposição Nacional de 1908, Laura visitou o Rio de Janeiro em companhia do pai. Comovida 140

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com a cidade e com os acontecimentos que presenciara, não foi difícil convencer seus pais de que havia chegado a hora de voltar. Dessa maneira, no ano seguinte, a família voltou definitivamente para o Rio de Janeiro. Foram morar em Santa Teresa, em um sobradinho com varanda onde subia uma trepadeira com flores azuis. Do quarto e da pequena sala, avistava-se a Baía de Guanabara. Nada mais tranqüilo e inspirador, mas parece que, para Jacinta e Domingos, a vida conjugal não inspirava tanto assim. Apesar de viver num tempo em que, via de regra, as mulheres casavam e assim permaneciam até a viuvez, ao que parece, para Jacinta, o que contava mais era o tempo de suas vivências particulares. O seu casamento não se sustentava mais e ela, com três filhos – Laura, Tercina e Bel – separou-se de Domingos. Com os pais separados, Laura passou a viver junto da mãe e os dois irmãos, na casa do tio-avô, conselheiro Lourenço Cavalcanti de Albuquerque, uma residência cercada por árvores centenárias, situada na Rua Mauá, nº 47, em Santa Teresa. Com dezoito anos, Laura não parecia preocupada com o que certamente mobilizava as moças de sua idade. Os padrões de comportamento ditavam que o ideal de toda moça deveria ser o casamento. Longe disso, Laura não parecia acreditar no casamento e maternidade como destinos. Ao contrário, esse foi o período de sua maior produção poética, além de estudar música e piano. Publicou quatro livros de poemas.3 Provavelmente, influenciada pela poesia de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia – poetas que admirava e com quem mantinha relações próximas – suas primeiras composições, editadas no livro Poesias (1915), são vinculadas ao rigor Parnasiano. Daí por diante, distanciou-se do Parnasianismo, abandonou a métrica e seus versos ficaram soltos, menos objetivos, mais musicados, adquiriram cor e luz; próximos do Romantismo. Laura usufruía ao máximo da companhia dos artistas que freqüentavam a casa do conselheiro Albuquerque, como o compositor Glauco Velásquez, o poeta Hermes Fontes, o artista plástico Antônio Parreiras, o poeta e escritor Olavo Bilac, a pintora Tarsila do Amaral, a violinista Paulina D’Ambrosio, a poeta Julia Cortines, entre outros. Foi nessa época, também, que se firmou como declamadora reconhecida nos salões literários do Rio de Janeiro. O da casa de Rui Barbosa, por exemplo, era um dos mais requintados salões cariocas, o que conferia maior prestígio aos seus freqüentadores. Intérprete de Castro Alves, Laura recitava suas poesias e as dos amigos poetas. Olavo Bilac, com quem recitava seus versos, era rigoroso. Dizia: “[...] tenho vontade de meter-me embaixo da mesa quando, numa sala, alguém diz que uma moça vai recitar versos meus”. No entanto, referindo-se a ela numa reunião literária na casa de Coelho Neto, disse: “[...] ouvir Laura é ouvir a própria poesia”. (BRANDÃO, 1947, p. 60). Assim, Laura vai construindo seu espaço de poeta ao lado dos homens de letras. Recebeu, por meio de cartas, os aplausos de poetas, escritores, pintores, intelectuais e, com muitos deles, parece ter mantido relacionamento próximo. Alberto de Oliveira – H ISTÓRIA ,

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poeta parnasiano contemporâneo de Bilac – a coloca como uma de seus pares quando escreve: “Distinta colega. Li todo o seu livro e em parte releio agora [...] entre os mais estimulantes volumes de minha estante, guardarei este [...] com os meus aplausos”.4 Os literatos, acostumados com seus iguais, resistiam em reconhecer – num mundo em que só homens reinavam –, que as mulheres também pudessem mostrar o seu talento literário. Júlia Lopes de Almeida, casada com Filinto de Almeida, era uma romancista de sucesso por seu próprio mérito. Na década de oitenta do século XIX, ela se impôs na República das letras, mas, mesmo assim, não era reconhecida por muitos dos seus pares como literata. Portanto, o reconhecimento de Alberto de Oliveira, dirigindo-se a Laura como “minha distinta colega”, atribuindo-lhe o status de igualdade, parece evidenciar o respeito conquistado pela poeta. Mas, não era esse o único registro possível. Andrade Muricy, bacharel pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, além do magistério exercido na Escola Superior do Comércio e no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, era ainda colaborador nos jornais A Folha e A Tribuna, no Rio de Janeiro, nos quais escrevia crítica literária e musical. Redator e crítico musical do Jornal do Comércio, foi ainda diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Muricy publicou longa crítica a respeito da poesia de Laura, no livro Alguns Poetas Novos, a qual concluiu afirmando: “[...] a força de suas composições levam-nos à convicção de que suas possibilidades artísticas são muito vastas e muito promissoras” (MURICY, 1918, p. 21-27). Teve igualmente prestígio confirmado pela academia: o filólogo e historiador João Ribeiro, em 1912, publicou, no Almanaque Brasileiro Garnier do qual era diretor, dois poemas de Laura: o soneto “Voz da Razão”, em junho, e “Sonata Boêmia”, em novembro, os quais são precedidos de nota introdutória que diz: [...] desejamos chamar a atenção dos nossos poetas tão numerosos em todo o Brasil que ainda desconhecem o nome da poeta que com seguras esperanças promete ocupar com destaque um dos lugares mais distintos no meio intelectual [...] já tem escrito numerosas produções ainda inéditas, apenas ouvidas de íntimos que tanto admiram a arte imitável com que as recita.5

Mas, apesar do reconhecimento de seus pares masculinos, Laura parecia não se iludir. No poema “Variações da Lua” – que, segundo Andrade Muricy, era um de seus mais expressivos, que emocionava mesmo depois da “Ballade a la Lune”, de Musset, e do “Plenilúnio”, de Raimundo Corrêa –, Laura expressava seu ideal de independência como poeta e mulher e ao mesmo tempo advertia para o perigo que corriam aquelas que ousavam brilhar por seu próprio mérito: Vagando e divagando devagar, A Lua pelo Espaço amplo navega A compor, a sorrir, a idealizar... Pobre Lua, que a um sonho vão se entrega: Sonha que tem luz própria, independente - Pensa que é Estrela-Guia a Lua cega

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Nestor Victor que, segundo Raimundo de Menezes, era considerado um dos maiores críticos de literatura no Brasil, no período (MENEZES,1978, p. 708), escreveu-lhe duas longas cartas, uma em 1916 e a outra em 1918, nas quais faz minuciosas observações sobre sua produção poética. Os livros Poesia e Imaginação são vistos por ele “[...] como dois diários íntimos [...]. São duas obras essencialmente femininas de uma quase criança, tão comovedora quanto admirável. Do ponto de vista do espírito, és precursora, por enquanto, do que serão, decerto, as nossas moças amanhã quando estas puderem corresponder-lhe em luzes e coragem intelectual”. Finaliza a carta “[...] com os votos que faço que continue a compor versos, o que raramente se deve incentivar uma mulher”. Na segunda carta, a crítica aos livros Serenidade e Meia Dúzia de Fábulas é assim descrita: Serenidade não me deu a impressão que de seu título se podia esperar. Em seu conjunto, pelo contrário, é um livro doloroso, pungente, intimamente desordenado, falta de equilíbrio, mesmo, como Imaginação e Poesia não são. [...] Meias Dúzias de Fábulas antes de vir à luz ninguém imaginaria que em sua natureza até aí tão normalmente feminina e de um feminismo tão brasileiro, estivesse a coragem e a crueza de manejar a sátira com o talento, com que nele a senhora o fez. Infelizmente, dir-lhe-ei com franqueza, tal evolução se afigura muito ingrata ao meu senso estético, produzindo-se numa natureza de mulher. Eu preferiria muito mais que a senhora encontrasse em si outros recursos para manter o seu tonus vital, que não esses, tão inexoráveis, tão aberrantes do seu sexo. Sempre seu sincero admirador e amigo.6

No entanto, a controvérsia a respeito do lugar ocupado por Laura na literatura e, portanto, na vida pública, ia além dos seus pares masculinos. A prima Gilka, filha do conselheiro, não concordava com os caminhos trilhados pela poeta. Tocar piano, como toda moça bem-nascida, declamar nos salões, era um mérito, mas, escrever poemas, fábulas provocadoras e ainda publicá-los não lhe parecia adequado para uma moça que, além do mais, morava em sua casa e contava com a proteção de seu pai. Laura, por causa dessas desavenças com a prima e não conseguindo que ela compreendesse sua posição, escreveu a José Oiticica, anarquista, escritor e catedrático do Colégio Pedro II, quando este estava de viagem de férias no Recife, pedindo-lhe que escrevesse sobre o assunto para que a discussão tomasse outra proporção. Oiticica respondeu, prometendo escrever um artigo a respeito e encorajou-a: “deves ter orgulho de ser mulher e poeta”.7 Felizmente, outras mulheres faziam coro com a voz de Laura que não só a reconheciam como também sabiam, pela suas próprias vivências, o que significava os espaços conquistados por elas no mundo das letras e das artes. Júlia Lopes, em quem Laura se espelhava pelo talento e coragem, escreveu a ela: Um grande beijo pelo seu lindo soneto e toda a minha alma agradecida. No paralelo que fizera entre nós duas caberá à poeta a supremacia e isso se conhecerá quando tiveres a minha idade e gasto as energias que eu tenho espalhado muito desorientadamente, o que desejo que lhe não aconteça. Guardo os seus versos com muito carinho. Toda sua. Júlia.8 H ISTÓRIA ,

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Sua opinião em relação à moral sexual, casamento, injustiça social e o lugar da mulher nas relações de poder foi retratada de forma divertida e irônica no livro Meia Dúzia de Fábulas, editado em 1917, no qual ela, deliciosamente, desmascara o falso moralismo em relação às mulheres. Na fábula “Sociedade Protetora”, por exemplo, a história é sobre um terreiro, onde as galinhas com seus pintinhos e frangas tiritando de frio e de papo vazio amargam a sobra da miséria provocada pelo luxo exorbitante das marrecas que ostentavam nas festas aves do paraíso e plumas de avestruz. Decide-se, então, no terreiro, criar uma Sociedade Protetora do “sexo fraco”, com a ajuda dos patos – jornalistas – que divulgam tal sociedade “[...] em colunas e colunas de entrevistas e ainda promovem grandes festas para arrecadar dinheiro”. No final, a “marreca-mor” é eleita presidenta da sociedade. Segundo Octávio Brandão, a publicação dessa fábula resultou no fechamento de uma associação criada por damas cariocas, que tinha como objetivo “proteger” a mulher e seus filhos necessitados. E, ainda, algumas filhas de famílias respeitáveis foram proibidas de ler poemas de Laura (BRANDÃO, 1947, p. 55). Sua crítica à hipocrisia em relação à moral sexual foi descrita em “Temporão”, outra fábula. A filha da viúva Raposa casou-se, mas teve uma criança seis meses e meio depois do casamento. O macaco, que era médico parteiro, foi chamado para atender a Raposinha filha e, calmamente, tranqüilizou a pobre viúva, pois, tratando-se de primogênito, estava acostumado a ver casos ainda mais extraordinários: nascerem crianças com quatro meses e meio! Em “Más Línguas”, a paternidade de uma criança é colocada em dúvida. Laura satiriza dizendo que, seja filho de quem for, sendo filho natural, legítimo será. Em “Praga Feminina”, critica a vaidade dos galos que desprezam as galinhas inteligentes e independentes que vivem a cantar, salientando que o destino delas é contentar-se com o canto da galinha da angola: estou fraca, estou fraca, estou fraca... Roga uma praga e sobre os galos presunçosos cai toda uma série de desgraças: “[...] logo no outro dia, um galo velho pôs um ovo e um capão novo amanheceu cuidando de pintinhos”. Na fábula “Estímulo”, a história é sobre um concurso público. Para a realização da tal prova, todos os cuidados foram tomados para que os critérios fossem respeitados. Na lista dos inscritos estavam a Toupeira, o Peru, a Arara, o Asno, o Pavão e a Zebra. Houve toda a justiça, todo o rigor, todo o critério, toda a exatidão. Foi um concurso muito sério... No entanto, não foi preciso muito empenho dos candidatos, pois, ao todo, os inscritos eram sete e as vagas, nove. Com ironia ela conclui: “[...] afinal, por que escandalizais? Não foi um concurso de gente, foi um concurso de animais!” Laura, em suas fábulas, discordava de que os valores masculinos tivessem primazia sobre os femininos, com a ordem patriarcal que alijava as mulheres da vida pública em todas as esferas, confinando-as na dependência emocional e financeira, primeiro do pai e depois do marido. Critica ainda a postura que cultuava a imagem 144

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da moça recatada, como símbolo de honestidade; as injustiças sociais e a falta de lisura nos concursos públicos. Entretanto, sua visibilidade e seu prestígio, como poeta na sociedade letrada carioca, não eram acompanhados de uma remuneração que lhe garantisse o sustento – o que, aliás, acontecia com outros poetas e literatos renomados, que não conseguiam prover suas necessidades materiais com a literatura. O prestígio social dos homens de letras, no final do século XIX e início do século XX, nem sempre condizia com a condição econômica em que viviam (PEREIRA, 1995). Laura, com o poema “Entre Artistas”, protestava: Entre artistas não deve ser assim Como na sociedade: É preciso outras leis para esta gente Que vive do que sente [...] para esta gente aflita, Que, no meio de tanto horror, inda acredita Na coragem, na Luz [...] E esta gente que luta, sofre e pensa, às vezes Abandonando um pouco as coisas graves, Procura a fantasia e canta como as aves [...].

Por essa razão, nem só de poesia se fazia a vida de Laura. Desde cedo se dedicou ao professorado. Começou sua carreira de professora aos quatorze anos, lecionando em São Paulo, no colégio de seu pai, onde respondia pela classe do jardim da infância. No Rio de Janeiro, nos anos de 1912 e 1913, lecionou no Instituto Amante da Instrução, situado na Rua Ipiranga. Era um instituto para crianças órfãs. De 1917 a 1919, lecionou no Instituto Lafayette, onde foi também diretora do jardim da infância. Esse instituto era uma ampla escola, situado na Rua Conde de Bonfim, 743, no bairro da Tijuca. Contava com seis modernos prédios, numa chácara de cem mil metros quadrados, toda arborizada, onde eram ministrados cursos de jardim da infância, primário e complementares. Oferecia, ainda, o curso fundamental de seis anos, organizado para preparar alunos para exames perante as bancas examinadoras do Departamento Nacional de Ensino. Seu corpo docente era especializado. Quase todos eram formados em Universidades ou pela Escola Normal.9 Em 1921, lecionou no Colégio Batista Americano/Brasileiro, situado na Rua Dr. José Hygídio, número 350, também na Tijuca. Uma das práticas do magistério, naquela época, era ministrar aulas particulares. Laura ensinou filhos de famílias ilustres, como as netas de Benjamim Constant, um dos fundadores da República no Brasil. Ensinou também as netas do poeta Luís Murat. Na função de preceptora, viajou para Paris com a família do escritor João Ribeiro, onde viveu em Saint-Cloud, entre maio e agosto de 1912 (BRANDÃO, 1947). Vivenciando o duplo papel que sua condição de poeta reconhecida nos salões literários e de mulher trabalhadora lhe impunha, Laura, ao que parece, não estava H ISTÓRIA ,

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muito preocupada com os códigos ditados pela moral vigente. Viveu as contradições do padrão que normatizava as regras que a “mulher honesta” devia seguir: freqüentava salões sofisticados, vivenciava os padrões de mulheres da elite – onde a mulher ficava em casa e circulava em espaços delimitados e legitimados pela moral vigente – mas, durante o dia, saía às ruas sozinha para ir ao trabalho e garantir, junto com a mãe, que havia se separado do marido, o sustento da família. Longe das normas da “conveniência predominante”, recebia em sua casa e era recebida pelos seus amigos homens, inclusive em encontros a sós, e não apenas em ocasiões sociais. Esses encontros intimistas quase sempre eram celebrados para compartilhar experiências artísticas. Em 1912, por exemplo, o pintor Antônio Parreiras a convidou para visitá-lo em seu atelier, situado na Rua Tiradentes, 47, em Niterói, conforme ficou registrado neste bilhete: “Saudações respeitosas: Na segunda-feira e na terça-feira da próxima semana estarei em casa, a fim de mostrarlhe os meus borrões. Muito grato pelo prazer de sua visita ficaria. O respeitoso servo e admirador”.10 Laura, de maneira silenciosa, subvertia a ordem estabelecida e em versos atestava: O mais difícil na vida De poetisa para Poeta, É ser sempre atrevida Sem nunca ser indiscreta [...]

Talvez Laura tenha aprendido a fazer-se de surda às regras impostas às mulheres. Atravessou o mundo com paixão e viveu sem nenhuma cerimônia na defesa das bandeiras das quais acreditava. Segura e serena, já estava com quase trinta anos e ainda continuava solteira, o que, para época, era considerado um demérito, pois ser rotulada de solteirona era o que toda moça temia. Havia, no entanto, conquistado espaço no mundo das letras – mundo este predominantemente masculino – e independência financeira exercendo o magistério. Sua produção, como poeta, é bastante numerosa. Ao longo do tempo, publicou regularmente nos jornais e revistas da imprensa comercial e operária, além de ter tido quatro livros editados. Com a lente de poeta via o mundo e suas visões estão registradas nos livros Poesia (1915), Imaginação (1916), Meia Dúzia de Fábulas (1917) e Serenidade (1918). Embora Laura não seja, hoje, quase um século depois, uma poeta conhecida entre nós, não se pode dizer o mesmo em seu tempo – em que eram raras as mulheres literatas e com dificuldades em fazerem-se respeitar. Sua produção no período foi, sem dúvida, um sucesso. E o sucesso como poeta poderia ter sido muito maior, se sua vida não mudasse de rumo. Em 1921, casou-se com o comunista Octávio Brandão, “sem padre e sem juiz”. Para a época, sem dúvida, foi uma atitude de coragem e rebeldia. O casal não desejava uma vida pautada nos valores morais burgueses e, certamente, foi uma 146

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crítica ao contrato de casamento e à posição anticlerical defendida por ambos, nesse caso, especialmente no que diz respeito ao casamento indissolúvel nos moldes defendidos pelos padres. Aqui eles parecem concordar com Maria Lacerda de Moura, quando ela afirma: “A imoralidade não está no amor fora do casamento, está no casamento ou nas uniões livres fora do amor” (MOURA, 1926, p. 103). Do casamento com Octávio, teve quatro filhas: Sáttva (1922), Vólia (1923), Dionysa (1925) e Valná (1932). As três primeiras são brasileiras. A última nasceu em Moscou. Após o casamento, Laura foi se distanciando lentamente da elite literária da qual fazia parte. Junto com Octávio, envolveu-se com o mundo dos comunistas e trocou os salões literários pelas ruas, greves operárias, reuniões sindicais e a redação do jornal A Classe Operária, órgão oficial do Partido Comunista do Brasil (PCB). Sempre presente em comícios com “as filhas pelas mãos”, sua participação mais relatada é a do episódio da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, em 25 de maio de 1929, num comício organizado em solidariedade à greve dos gráficos em São Paulo, quando Laura, revelando uma liderança ímpar, dominou os soldados que avançavam contra os manifestantes. Como militante de esquerda, atuou ao lado do Partido Comunista Brasileiro, embora nunca tenha se filiado a ele. Sua atuação foi sempre como colaboradora e simpatizante. É possível que sua recusa em não se tornar uma militante filiada se deva ao fato da sua discordância com a estrutura partidária, que sempre privilegiou e destacou a militância masculina. Ou talvez fosse porque discordasse da postura de atrelamento e subordinação imposta à militância. Lembrava sempre a fábula “O Lobo e o Cachorro” de La Fontaine, para defender sua maneira livre de viver a militância política. A fábula conta a história de um lobo que vivia faminto na floresta, quando um cachorro robusto falava-lhe da comida farta e até das carícias que recebia de seu dono. O lobo já sonhava com a nova vida que poderia vir a ter, quando descobriu que todas aquelas regalias tinham um preço: o cachorro vivia preso em uma coleira e só podia fazer o que o seu dono ordenasse. Por outro lado, o Partido exigia de seus militantes um compromisso em tempo integral, e Laura tinha que dar conta sozinha das filhas e da rotina doméstica para que Octávio pudesse dedicar integralmente seu tempo à militância. Mas, se a Historiografia operária brasileira, ainda fortemente marcada pelas concepções da própria militância, não deu importância à atuação de Laura, da mesma maneira também ignorou outras mulheres militantes: entre a documentação por mim pesquisada no Arquivo Edgard Leuenrouth, encontrei documentos catalogados ao longo do tempo por Eloísa Felizardo Prestes, que teve o cuidado de organizar dossiers de mulheres, comunistas ou não, que tiveram atuação política ou se destacaram em suas profissões. Entre essa documentação, encontrei o dossier de Rosa de Bittencourt e, em uma anotação manuscrita de Eloísa, descobri que, segundo informação de Astrojildo, Rosa foi a primeira mulher a se filiar ao PCB. Olhando retrospectivamente, esse fato parece bastante significativo, mas, em nenhum momento, a H ISTÓRIA ,

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Historiografia sobre [e do] PCB fez menção a ela. Nem mesmo Astrojildo, que se ocupou em escrever a história do PCB e forneceu a informação à Eloísa, refere-se a ela. Fatos como esse demonstram que a invisibilidade a que Laura foi submetida no interior do partido não está isolada de um contexto vivido pelas mulheres militantes no início do século XX. A propósito, cabem aqui algumas perguntas: quem foram as mulheres dos militantes que dirigiam o Partido nesse período? Quem foram as mulheres de Astrojildo Pereira, Diógenes Arruda, Minervino de Oliveira? – todos dirigentes históricos do Partido Comunista Brasileiro. Por que nenhuma delas teve compromisso orgânico com o Partido? É também curioso observar que Rosa – que não era mulher de ninguém11 – tenha se filiado ao Partido em 1922. É provável que a ligação orgânica de Rosa com o PCB deva-se a esse fato, pois ela não tinha que concorrer com nenhum militante masculino em sua casa. Esses elementos sugerem o sentido geral das relações de gênero entre os militantes do período e, ao que parece, essa discussão passava longe das preocupações de seus dirigentes. Suas companheiras não tinham função central e a elas, provavelmente, restavam as tarefas consideradas menores, ligadas a campanhas de solidariedade organizadas pelo PCB, por exemplo, campanhas para fundos de greve. O leitor pode estar se perguntando se esta cobrança em relação à militância masculina contemporânea de Laura tem algum sentido, pois, no período, essa discussão não estava colocada com o mesmo peso das últimas décadas do século XX. Não se trata, no entanto, de anacronismo, pois esses homens nomeados acima, e tantos outros, não eram homens “comuns”. Eram dirigentes de um Partido que tinha como tese central a igualdade social e que se originara em uma tradição política para a qual a igualdade entre homens e mulheres era uma questão “teoricamente” resolvida e, muito antes da fundação do PCB (1922), a imprensa anarquista já discutia a questão com clareza. Não me parece, assim, extemporâneo que deles se esperasse uma postura de companheirismo e reconhecimento da militância feminina. Para Laura, com a militância vieram as prisões, a polícia na porta de sua casa acompanhando os passos de Octávio Brandão e a vida de privações a que foi submetida pelas circunstâncias da conjuntura política que o País vivia. Desde 1922, dedicou-se à literatura marxista. Sua militância feminina/ista se deu no Comitê de Mulheres Trabalhadoras (1928), ligado ao Bloco Operário Camponês, do qual foi uma das fundadoras. Pagou caro pela escolha que fizera. Entre tantos momentos difíceis vividos, um deles foi na tarde do dia 18 de junho de 1931, quando a família, deportada pelo Governo Getúlio Vargas, partiu para o exílio. Brandão saiu da Casa de Detenção e foi direto para o cais, onde Laura e as três filhas o esperavam. Cercados por oito agentes da polícia, foram embarcados. Eram 15h45min quando o navio Werner deixou o cais da Praça Mauá. Na despedida, alguns amigos e Domingos, o pai de Laura. 148

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Depois de vinte e três dias a bordo do navio Werner, chegaram à cidade de Bremen, na Alemanha, onde permaneceram por poucos dias. De lá, partiram para Moscou e não foram poucas as dificuldades enfrentadas desde que chegaram. Brandão não tinha nenhum documento que comprovasse sua função no PCB e, na seção soviética do Socorro Vermelho, chamada MOPR, foi tratado com visível desconfiança. A princípio, a família não fora reconhecida como exilados políticos, até que Tina Modotti, responsável pelos latino-americanos na Casa de Emigrados do Socorro Vermelho Internacional, esclareceu quem era de fato Octávio Brandão. (CANALE, 1989). As vidas de Tina e Laura tiveram muito em comum: ambas acreditavam e lutaram pelo direito a uma vida digna e descente e opunham-se à injustiça de qualquer ordem. Tina também, aos poucos, foi se distanciando da arte para dedicar-se à militância política. Aos dezessete anos deixou a Itália e foi para a América onde se tornou uma estrela do teatro italiano de San Francisco. Foi quando conheceu o fotógrafo Edward Weston de quem se tornou amante. No início, Modotti posou para Weston, mas logo se tornou sua discípula. O casal deixou a Califórnia e foi morar no México, onde Modotti floresceu artística e politicamente. Tornouse amiga de artistas revolucionários – Diogo Rivera, Frida Kahlo, David Siqueiros. No México, Tina fotografou detalhes arquitetônicos e closes de flores, mas logo sua atenção se voltou para as formas do próprio povo mexicano e não mais para as formas e os padrões puros da luz, tão caros a Weston. Também para ela não foi nada fácil se fazer respeitar junto aos seus pares masculinos: “Para Weston, Modotti era essencialmente um modelo, um corpo de mulher para ser fotografado ou para se fazer amor, era menos uma colega fotógrafa do que uma discípula sagaz. Para Modotti, Weston e os amantes que se seguiram, como Diego Rivera, eram artistas semelhantes a ela” (MANGUEL, 2001, p. 98). Mas os anseios de Tina iam além de simplesmente retratar a realidade social do povo mexicano. Foi quando decidiu fazer parte dessa luta. Em 1929, após meses tentando interromper suas atividades políticas, foi acusada pela polícia mexicana de matar um cubano revolucionário que também tornara seu amante e ainda foi vítima de um escândalo armado pela imprensa, quando fotos suas, nuas (tiradas por Weston), foram a público com o intuito de provar que “era uma mulher de moral dissoluta”. Expulsa do México e impedida de entrar nos Estados Unidos, Tina viajou para Berlim e depois para União Soviética. Em Berlim tirou suas últimas fotografias. Vivendo em Moscou, resolveu não fotografar mais “[...] e dedicar a vida às tarefas mais humildes do Partido” (MANGUEL, 2001, p. 105). Tina passou a ser uma espécie de anjo da guarda da família. Sempre que precisavam de alguma coisa, inclusive as mais simples do dia-a-dia, era ela quem acabava resolvendo. Mas, para Laura viver em Moscou não foi nada fácil e, ao que parece, não conseguiu adaptar-se, nunca, completamente. No entanto, a partir de 1935, sua vida melhorou um pouco, quando começou a trabalhar na Rádio de Moscou como redatora e locutora de programas em português, H ISTÓRIA ,

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com transmissões para o Brasil e países da América Latina, assim como Portugal, Espanha e colônias de Portugal na África. Foi ela quem fundou a redação brasileira com transmissões para o Brasil. A primeira edição foi ao ar em 5 de julho de 1935. Laura, em seus programas, além de difundir a propaganda soviética e glorificar a URSS e o socialismo, que era o objetivo do programa, aproveitava para divulgar a poesia e literatura brasileiras. Não se tem notícia de como era feita a revisão do que Laura escrevia, mas certamente havia essa preocupação por parte da direção da rádio. Como as transmissões eram feitas em português, é provável que ela pudesse burlar sem muitos problemas a censura que porventura houvesse.12 Com o trabalho de locutora, ela, então, podia refazer um percurso que há anos havia deixado de lado por causa das filhas – tarefa que assumiu integralmente sozinha, agravada pelas dificuldades financeiras enfrentadas pela família –, pois Brandão ora estava preso ora vivia na clandestinidade. Os trabalhos de comunicação em Moscou eram muito bem pagos e mais uma vez o dinheiro do seu salário era fundamental para o sustento da família, pois Brandão encontrou problemas na Internacional Comunista, onde trabalhou de 1931 a 1933. Mais uma vez é Laura o esteio do marido guerreiro. É ele mesmo quem afirma, em meio aos relatos do ostracismo a que foi submetido pela IC: “[...] tinha ao meu lado a alma intrépida e o caráter inquebrantável de Laura” ( BRANDÃO, 1976, p. 66). Os dez anos vividos em Moscou foram mais que suficientes para que ela experimentasse as dificuldades enfrentadas por um país que se organizava em torno de uma perspectiva comunista, na qual Laura via também as possibilidades de uma nova vida. Seu trabalho, durante quatro anos, como redatora e locutora na Rádio de Moscou e as condições de trabalho que o País oferecia às mulheres devolveramlhe a possibilidade de viver sem abdicar ou hierarquizar as coisas que lhe eram importantes: a família, a luta pela igualdade social, a liberdade, a poesia e o amor. Desse modo, finalmente, ela conseguia juntar as pontas de sua vida que por vezes haviam ficado tão quebradas. Mas nem tudo foi como idealizou. Ela passou a viver uma grande contradição: se, de um lado, reconhecia em Stalin um grande líder que foi capaz de enfrentar Hitler, de outro, não suportava presenciar o terror causado por ele devido à perseguição a tantos companheiros. Em 1937, quando era noite no Hotel Lux, ouviam-se passos e mais um camarada era levado e nunca mais voltaria. Laura não continha sua indignação e muitas vezes chorou. No exílio, que durou dez anos, Laura vivenciou a segregação da família, imposta pela guerra, e nunca pôde voltar ao seu país. As privações de toda espécie a que foi submetida acabaram debilitando a sua saúde e ela adoeceu. Em agosto de 1941, internada em um hospital de Moscou, obteve o diagnóstico: estava com um tumor maligno nas glândulas mamárias, agravado por amplas metástases. Para piorar ainda mais a situação, o País estava em guerra, os hospitais abarrotados de feridos e os recursos escassos. Foram seis meses de muitas tentativas, mas também de muita dor e agonia. 150

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Morreu na tarde gelada do dia 28 de janeiro de 1942, em Ufá, há 1.600km de Moscou, na ex-URSS, longe dos amigos, da família, do Brasil e da cidade que ela tanto amava. Mas nos deixou um legado: se poucas mulheres, no começo do século XX, tiveram uma atuação na vida pública, Laura se destacou como uma mulher poeta e comunista, que não aceitou a praxe da passividade feminina nas lutas sociais e políticas. Amava a liberdade, por isso tinha aversão a grades e a barulho de chaves, pois lembravam a prisão. Das prisões – das do Brandão e de suas quatro detenções – pouco restaram, a não ser um sentimento de solidão e impotência. Na memória de seus descendentes, ela é lembrada como uma mulher altiva, emancipada, humana e generosa. Não admitia intromissões em sua vida. Manteve sempre sua independência de espírito e, apesar dos anos duros em que viveu, atravessou o mundo com determinação e paixão.

N OTA S

1. Este artigo tem por base a minha dissertação de mestrado, intitulada Laura Brandão: a invisibilidade feminina na política, defendida no Departamento de História do IFCH-Unicamp, em 1995. 2. Esse documento encontra-se no Arquivo Edgard Leuenrouth-Unicamp, no FUNDO OCTÁVIO BRANDÃO, pasta 120. O Livro A Imagem de Laura Brandão – escrito por Octávio Brandão em 1947 e não publicado – está na mesma pasta. 3. Poesias (1915), Imaginação (1916), Meia Dúzia de Fábulas (1917) e Serenidade (1918). 4. Carta manuscrita e assinada por Alberto de Oliveira, em 28 de junho de 1915, Rio de Janeiro. 5. Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 1964. 6. Cartas manuscritas e assinadas por Nestor Victor, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1916 e 10 de dezembro de 1918. 7. Carta manuscrita e assinada por José Oiticica, no Recife, em 8 de fevereiro de 1916. 8. Carta manuscrita e assinada por Júlia Lopes, no Rio de Janeiro, em 1916 [sem dia e mês]. 9. Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7 de fevereiro de 1929, p.11. 10. Bilhete manuscrito e assinado por Antonio Parreiras, em 31 de maio de 1912, Arquivo Edgard Leuenrouth - UNICAMP, parte 2, não catalogado. 11. Rosa, operária têxtil, foi uma combativa militante sindical e participou dos grandes movimentos da classe operária brasileira. Foi militante das lutas do Bloco Operário Camponês (BOC) e H ISTÓRIA ,

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gabava-se em declarar-se comunista. Vendia o jornal A Classe Operária de porta em porta. Em 1930, Rosa foi delegada no Congresso Mundial da Mulher, na URSS, representando a mulher trabalhadora brasileira. Entretanto, a combativa Rosa não teve sorte no amor. Por três vezes, seus noivados foram desfeitos. Casada, enfim, enviuvou muito moça e não se casou novamente. Conforme Dossier Rosa Bittencourt – Coleção Eloísa Prestes – Arquivo Edgard Leuenrouth- Unicamp – não catologado, s/d. 12. Conforme depoimento de Dionysa Brandão, cedido ao AEL, em 18 de junho de 1992, no Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

BERNARDES, Maria Elena. A invisibilidade feminina na política. 1995. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Campinas, Campinas, 1995. BRANDÃO, Octávio. Combates e batalhas. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. v. 1. ———. A imagem de Laura. 1947. CANALE, Cristiane Barckhausen. No rastro de Tina Modotti. São Paulo: Alfa-Omega, 1989. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MENEZES, Raimundo. Dicionário literário brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1978. MOURA, Maria Lacerda. Religião do amor e da beleza. São Paulo: Typ. Condor, 1926. MURICY, Andrade. Alguns poetas novos. Rio de Janeiro, 1918. PEREIRA, Leonardo A. M. O carnaval das letras: os literatos e as histórias da folia carioca nas últimas décadas do século XIX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.

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ESCRAVAS INFRATORAS : CRIME E GÊNERO NO ESPÍRITO SANTO DO OITOCENTOS

Adriana Pereira Campos INTRODUÇÃO

Merece crédito o papel conferido às mulheres tal como o fez Gilberto Freyre

ainda muito cedo, em sua tese apresentada para obter o grau de Artium Magister, na Faculdade de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais da Universidade de Columbia. O jovem Freyre (1977 [1922], p.73) afirmava que “[...] a força das evidências revela que a dona-de-casa tipicamente brasileira, nos dias da escravidão, era antes mulher ativa e ociosa. Diligente e não indolente. O que não significava que não houvesse sinhás indolentes, enlanguescidas pelo fato de haver tanto escravo a serviço da gente rica ou nobre”. No entanto, somente a Historiografia brasileira da década de 1990 (ALGRANTI, 1993; DEL PRIORI, 1993; MARCÍLIO, 1993; SILVA, 1998) destacou-se por projetar a mulher brasileira como categoria a ser problematizada. Falci e Melo (2002, p. 2) explicam que “[...] outras categorias de análise, como classe, sexo, etnia e geração se foram aliando e favorecendo outras leituras das relações sociais e de suas significações, ao produzir múltiplas combinações”. A história das mulheres, com é sabido, não é um fenômeno particular no Brasil, pois se desenvolveu em diversas partes do planeta e Hufton (1998, p. 249) lembra que “[...] o enriquecimento do campo histórico pela introdução da distinção social dos sexos se produziu de modo desigual, segundo os contextos nacionais mais ou menos receptivos”. No Brasil, relevam os estudos que apresentam as mulheres à frente das famílias, separadas de seus maridos, assumindo importantes postos de trabalho etc. (NADER, 1998) Na verdade, há tratados pioneiros a respeito da mulher e sua importância para a sociedade brasileira desde o século XIX, tal como o de Nísia Floresta (1989 [1853]), que advogava mais educação e atividades para a mulher brasileira da elite. H ISTÓRIA ,

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Recentemente, o periódico Slavery and Abolition (2005, n. 26) uniu a temática gênero e escravidão. Na verdade, a escravidão moderna quase sempre foi enfocada do ponto de vista masculino, talvez por causa da predominância de homens traficados da África para as Américas. Todavia, houve um grande desenvolvimento dos estudos acerca das mulheres escravas em diversas partes do mundo. A escravidão feminina desempenhou diversos papéis nas sociedades americanas. Por vezes, elas assumiam trabalhos tão pesados quanto os dos homens. Outras vezes, porém, elas atuaram em postos que lhes eram exclusivos, tais como os de amas-de-leite, babás, domésticas, prostitutas etc. Essa grande variedade de posições na sociedade abriu oportunidades às escravas que estavam fechadas aos homens. Por outro lado, essa realidade restringia às mulheres algumas das conhecidas fórmulas para reagir à escravidão. Os novos estudos, entretanto, apresentam reações à escravidão que rompiam com essas limitações. Nesse sentido, observam Campbell, Miers e Miller (2005, p. 165): Algumas das formas de resistência escrava feminina, até recentemente invisíveis, estão começando a emergir na literatura. Por exemplo, Laura Ewards nota que a regra das escravas na América do Sul em espalhar rumores a respeito de suas senhoras que podiam ser manipuladas não somente para macular sua reputação pessoal na sociedade senhorial, como também indiretamente sobre determinar sua prosperidade como o valor dos escravos de modo a refletir a reputação de seu proprietário.1

Partindo de semelhante preocupação, tem-se a pretensão de contribuir para o conhecimento da vida de mulheres cativas no Brasil oitocentista, ainda invisíveis na literatura sobre criminalidade escrava, a partir de uma localidade com características provincianas muito marcantes. Os autos criminais e as autuações policiais coligidas para o presente estudo pertencem à Comarca de Vitória, da Província do Espírito Santo. No século XIX, essa província passava por importantes modificações, pois um pólo cafeeiro ganhara grande impulso no Sul por conseqüência da expansão do Vale do Paraíba (ALMADA, 1984). Essa alteração ocorreu na segunda metade do século, proporcionando maior enriquecimento comercial também na região da Comarca em estudo, por isso o estudo foi delimitado em torno da segunda metade da centúria. Neste texto, portanto, apresentar-se-á o cruzamento dos temas criminalidade escrava e gênero com o objetivo de suprir uma lacuna deixada em discussão anterior (CAMPOS, 2003) em que não se dedicou um olhar específico à situação das mulheres cativas que se tornaram rés nesses autos criminais. A base empírica utilizada para a produção deste capítulo fundamenta-se no exame de um conjunto de fontes intitulado autos criminais e, com participações do chefe de Polícia ao presidente da Província do Fundo de Polícia, guardado pelo Arquivo do Estado do Espírito Santo. Coligiram-se 350 processos relativos ao recorte temporal compreendido entre 1833 a 1871. A data inicial do recorte temporal deve-se ao primeiro documento do fundo de polícia e ao marco final que representa o término do rito processual que incluía 154

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os delegados como autoridades judiciárias, prolatando sentenças em alguns crimes menores. Em relação às participações diárias do chefe de Polícia ao presidente de Província, optou-se por uma amostragem qüinqüenal das prisões e livramentos comunicados pelas autoridades policiais, recortando a data inicial de 1857 por constituir-se no primeiro registro encontrado, até 1888, dado o desmantelamento da sociedade escravista devido à abolição. Espera-se, por meio do tratamento estatístico e qualitativo desse material empírico, colaborar para o conhecimento do cotidiano feminino capixaba, em especial, das mulheres cativas.

C RIME E ESCRAVIDÃO NO E SPÍRITO S ANTO

DO OITOCENTOS

A Comarca de Vitória possuía uma população escrava significativa, já que os cativos somavam um quarto dos habitantes das freguesias. Era uma região cuja paisagem urbana contava com grande presença de escravos, uma vez que a lavoura da zona rural consumia apenas uma terça parte2 dessa força de trabalho. A circulação desses homens e mulheres pelas vilas causava apreensão entre as autoridades capixabas. Uma primeira aproximação dos dados fornecidos pelos autos criminais exibe a reduzida presença dos escravos entre os personagens que passavam pelo crivo da Justiça que, nos 350 processos, representavam pouco mais ou menos de dez por cento das partes processuais, conforme verificamos na tabela abaixo: TABELA 1 – Réus e Vítimas em Processos da Comarca de Vitória (1833-1871) Status

Réu

Vítima

Livre

426

363

40

42

Escravo

Fonte: Fundo de Polícia

Esses dados parecem indicar que a sociedade capixaba não dependia tanto das autoridades constituídas para a manutenção da ordem, como alardeado pelos próprios presidentes da Província nos relatórios apresentados à Assembléia Legislativa. Além disso, a pouca presença desses elementos cativos na Justiça remete a uma discussão sobre a aplicabilidade dos duros dispositivos voltados a coibir rebeliões e revoltas escravas. A baixa freqüência de casos envolvendo escravos também aponta a importante problemática brasileira, própria do Oitocentos, com relação ao entrelaçamento do Poder Público e os interesses privados, isto é, dos senhores. O justiçamento dos escravos foi, durante o período colonial, uma seara privada dos senhores, com raras exceções. No Oitocentos, porém, com o Estado autônomo e o H ISTÓRIA ,

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acelerado crescimento das camadas médias urbanas, o Poder Público apresentouse como a força legítima para o controle da população cativa do País. A Polícia e a Justiça tentavam atuar, desse modo, com o objetivo de tranqüilizar as elites, tutelando seus interesses. As fontes podem contribuir para formar uma opinião acerca do papel desempenhado pela Magistratura nesse contexto de intervenção do Poder Público na disciplina da população escrava e seus ditos aliados, os senhores de escravos. A solução encontrada pela Justiça para a questão se inscreveu na prática jurídica geral. Isso contraria a simples leitura da legislação da época. Um excelente exemplo é o Tribunal de Júri, instância de julgamento mais discutida no século dezenove, que, sistematicamente, foi acusada de inoperância e ineficácia no combate ao crime. Nas fontes estudadas, encontram-se 206 réus julgados pelo Júri da Comarca de Vitória, dentre os quais 131 foram absolvidos. Na tabela seguinte apresenta-se a relação de absolvições, discriminando o status dos réus: TABELA 2 – Processos do Tribunal de Júri (1833-1871) Status do réu

Total

Absolvidos

Culpados

Outros

Livre

188

123

56

9

18

8

4

6

206

131

60

15

Escravo Total Fonte: Fundo de Polícia

As autoridades não se cansavam de denunciar essa situação. O presidente Costa Pereira, no relatório apresentado à Assembléia Provincial, em 1862, delineou a contradição entre a Polícia e o Júri: [...] a impunidade, filha da indulgência do Júri, concorre poderosamente para contrariar a ação enérgica e salutar da Polícia – a esperança de absolvição, a crença de que esse tribunal, a quem a lei atribui um poder quase discricionário, é na maioria dos casos antes o soberano que perdoa, embora com as formalidades do julgamento, do que o juiz que decide com a severidade do ministério que lhe cabe; crença gerada e robustecida pelos fatos torna-se animação para o delinqüente, que não pecaria se, por ventura na falta de nobreza de sentimentos, tivesse ao menos receio de castigo certo e irremediável (MALPES, 1862, p. 7).

É verdade que os presidentes da Província estiveram sempre influenciados pelo debate nacional acerca da instituição do Júri. As autoridades declaravam a ineficiência do Júri por todo o Império e não somente na Província do Espírito Santo, numa clara demonstração de que tal insatisfação não se ligava a fatores locais. De qualquer forma, pode-se confirmar a “benevolência” do Júri por meio da Tabela 2, na qual se encontra o elevado índice de 64% de réus absolvidos. Em 156

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relação aos escravos, constata-se um reduzido número na condição de réus, o que não alterou significativamente a tendência do Júri à absolvição. Isso vem ao encontro de observação acerca de os procedimentos da Justiça na Província serem muito parecidos, tanto para livres, quanto para cativos. Um aspecto a ser destacado é a representatividade do número de réus submetidos a Júri: pois, enquanto houve 477 réus processados, apenas 131 chegaram a essa fase, que autoriza considerá-lo como o primeiro grau da Justiça, já que existiam outros níveis em termos de recurso. Também é importante lembrar que alguns réus eram julgados diretamente pela Polícia, por intermédio de processos sumários, cabendo expediente ao Juízo Municipal e até ao juiz de Direito. Focalizando a relação entre os dois procedimentos processuais, verifica-se que dos 477 réus processados, pouco menos de 20% foram submetidos a ritos sumários, enquanto cerca de 40% foram julgados pelo Tribunal do Júri. Levando-se em conta a média anual de 174 reclusões no Espírito Santo, podem-se levantar duas hipóteses sobre a quantidade de processos coligidos nesta pesquisa. Em primeiro lugar, raramente os presos eram processados formalmente. Como se encontrou um elevado índice de prisões por embriaguez e desordens, pode-se também pensar a possibilidade de esses presos não serem processados, mas apenas detidos temporariamente. Em segundo lugar, somente crimes com vítimas chegavam a motivar processos formais, mesmo nos casos como injúria, tentativas de agressão, entre outros (Tabela 3). TABELA 3 – Crimes da Comarca de Vitória (1833-1871) Qualificação

Status do réu Escravo

Juízo Municipal Livre

Delito

Quantidade

Crime com Vítima

1

Crime sem Vítima

1

Crime com Vítima

72

Crime sem Vítima

8

Delegacia

Escravo

Tentativa de Assassinato

1

de Polícia

Livre

Crime com Vítima

9

Fonte: Fundo de Polícia

Os dados acima apóiam a hipótese a respeito de os crimes sem vítimas raramente gerarem um rito processual ordinário ou mesmo sumário. Tal fato se explica, possivelmente, pelo procedimento-padrão adotado pela Polícia, que usava expedientes punitivos, como a prisão, sem a realização do devido processo legal. Diante de tais dados, verifica-se que o papel da Polícia fica adstrito à repressão de pequenos delitos. Mas, e a Magistratura, ou melhor, o Judiciário? Sendo tão poucos os H ISTÓRIA ,

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processos que tinham os escravos como personagens, haveria algum traço distintivo na prática dos magistrados em relação aos escravos? Para responder adequadamente a essa questão, não se deve confundir a Magistratura com o Judiciário, uma vez que, durante suas primeiras décadas, o Império conferiu poderes policiais aos juízes de paz, tornando muito menos dicotômica a ação da Polícia e da Magistratura. Além disso, a reclamação das autoridades concentrava-se, basicamente, no papel do Júri quanto às absolvições freqüentes e “imotivadas”. A própria Magistratura compartilhava dessa opinião, portanto existia seu empenho na legitimação do Poder Público como elemento ordenador da sociedade local. Ademais, do ponto de vista do Judiciário, existia o Tribunal Policial, conforme palavras do próprio Pimenta Bueno (1857), o que significa certa identificação de responsabilidades entre os policiais e a Magistratura. O cargo de chefe de Polícia, por exemplo, era exercido por um juiz de Direito e os delegados podiam julgar alguns crimes por meio de rito sumário. Se, por conseguinte, os policiais e a Magistratura não possuíssem atribuições tão dicotômicas, suas respectivas atuações deveriam ser compreendidas de forma complementar. A competência sobre os processos sumários concorria para a divisão de atribuições judiciárias entre a Polícia e a Magistratura. Nesse sentido, a atuação das autoridades respeitava certa lógica de graduação das atribuições. A Polícia devia ocupar-se dos “crimes menores”, mais comuns e corriqueiros. À Magistratura cabia julgar os “crimes mais graves”, menos freqüentes e com maior complexidade, cujas penas atingiam os indivíduos (termo a ser utilizado já que não se deve empregar a designação cidadãos por causa do abarcamento de escravos pelas leis do Império). Importa, em conclusão, notar a escala de competências atribuídas às autoridades policiais e aos magistrados no combate à contravenção e à criminalidade. Possivelmente, a racionalidade judiciária tornou a Magistratura o grau mais elevado para a punição por parte do Estado, o qual devia ser acionado apenas nos casos mais graves. Sua atuação devia acontecer, então, pedagogicamente. É preciso lembrar o princípio da utilidade do inglês J. Bentham (2002, p. 20), que inspirou tantos legisladores brasileiros, segundo o qual “[...] as penas legais são males que devem recair, acompanhados de formalidades jurídicas, sobre indivíduos convencidos de terem feito algum ato prejudicial, proibido pela lei, e com o fim de se prevenirem semelhantes ações para o futuro”. Toda essa pedagogia, no entanto, precisava tornar exemplares as punições mais graves, pois, assim, o peso das penas seria maior do que o benefício a ser obtido por um crime: a pena deve fazer-se em um grau maior do que o crime se faz apetecível. Os crimes “menores” requeriam castigos maiores do que o “ganho” envolvido no delito, mas menores do que os de crimes “mais graves”. Como a Magistratura se encontrava nos mais elevados postos das escalas punitivas, seu rigor deveria ser maior e mais amplo. Em correspondência, esses crimes 158

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deviam ser, e eram, mais raros, restando às autoridades dos escalões inferiores, os policiais, o julgamento de crimes com punições menores, porém mais comuns. Efetivamente, há uma enorme carga simbólica nessa proporcionalidade punitiva e na ação das autoridades judiciais. Espalhar o temor pela sociedade era uma tarefa pedagógica ao encargo de policiais e magistrados, cujos efeitos não se obtinham somente com a aplicação elevada de punições. Nesse sentido, Flávio dos Santos Gomes (1995, p. 294-295) divisou o valor de uma punição exemplar sobre os cativos: A execução de Manuel Congo – como a de outros escravos condenados à morte no Brasil – foi um espetáculo público. Certamente, além da população da freguesia de Pati do Alferes, devem ter comparecido diversos fazendeiros da região que trouxeram alguns escravos para também a assistirem. Se a memória da visão daquela execução ficou gravada na mente dos fazendeiros locais [...]. A cena daquela execução (ou pelo menos o conhecimento dela) deve ter representado para os cativos locais [...] a interrupção abrupta, pelo menos provisoriamente, de um grande sonho de liberdade.

Em uma sociedade local na qual predominavam transgressões cotidianas e corriqueiras, parece pertinente, portanto, encontrar pouca incidência de escravos como réus ou vítimas em processos julgados por essas autoridades. Para a compreensão do papel reservado ao Judiciário nesse contexto, é necessário empreender-se uma análise dos padrões de julgamento dos crimes por parte da Magistratura e, sobretudo, tentar compreender se os processos, com personagens escravos, obedeciam a tais padrões ou, então, se possuíam outra tendência jurídica. Tal como as legislações locais, que eram muito mais precisas em relação aos cativos do que a legislação geral do País, de igual modo, encontra-se na prática jurídica local, sobretudo na ação policial e dos tribunais de primeira instância, uma melhor definição da atuação das autoridades em relação aos escravos. Essa prática, sem dúvida, desenhava-se cotidianamente por meio dos embates entre os atores sociais do amplo espectro da hierarquia social, nos mais diversos recantos do Império. Nessa arena dos processos judiciais, em que uma realidade inesperada emerge a cada folha, se oculta uma face da escravidão pouco conhecida entre nós, historiadores.

C RIME E GÊNERO : UMA APROXIMAÇÃO QUANTITATIVA Diante do quadro acima apresentado, resta agora oferecer o cruzamento entre os temas criminalidade escrava e gênero. Vale, portanto, exibir algumas totalizações a respeito da criminalidade de mulheres escravas e suas principais características. Inicialmente, para maior clareza sobre o universo empírico em análise, apresentase uma tabela de prisões e livramentos efetuados no Espírito Santo, entre 1857 e 1888, por meio de uma amostra qüinqüenal:

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TABELA 4 – Autuações Policiais - 1857-1888

Prisão

Número

Percentual

1244

62

761

38

2005

100

Livramento Total

Fonte: Fundo de Polícia

Com fulcro nessa base empírica, pode-se notar a presença das mulheres de diferentes condições sociais como alvo da disciplina social das autoridades policiais (Tabela 5):

TABELA 5 – Autuações Policiais – 1857-1888

Sexo

Autuação

Masculino

Feminino

Total

Prisão Condição Civil

Não Escravo

%

78,7%

Escravo

N° %

Total %



21,9%

Livra Condição Civil mento %

Não Escravo

21,3%

100,0%

68

287

76,3%

23,7%

100,0%

N° %

Total



71,4%

972

272

1244

417

160

577

27,7%

100,0%

126

58

184

68,5%

31,5%

100,0%



%

957

100,0%

72,3%

Escravo

204

219 N°

78,1%

753

28,6%

543

218

761

100,0%

Fonte: Fundo de Polícia

A participação das mulheres, no entanto, gravita entre 21% a 31% em relação ao total das autuações policiais, perfazendo cerca de um terço do alvo daquelas autoridades, conforme o Gráfico 1. 160

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Gráfico 1

Autuação = Prisão 800 •

600 •

400 •

Count

200 •

0•

1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789 1234567 123456789

1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567 1234567123456789 1234567123456789 123456789 1234567 1234567123456789 1234567123456789 123456789

Não escravo

Escravo

Sexo 1234 1234 1234 1234 Masculino 123456 123456 123456 123456 123456 123456 Feminino

Condição civil

Partindo de uma provocação lançada por Michelle Perrot (1984), quando indaga a respeito da invisibilidade das mulheres na história, neste texto, busca-se identificar o papel de mulheres escravas no cotidiano criminalizado pelas leis do Estado brasileiro. Nesse universo da participação feminina na população carcerária do Espírito Santo, por exemplo, notam-se importantes elementos. Em primeiro lugar, não há uma significativa diferença entre mulheres escravas e mulheres livres dentre aquelas autuadas pela polícia. Isso indica, em primeiro lugar, que as mulheres escravas parecem não ter sido mais desrespeitadas pelas autoridades do que as livres por causa de sua condição civil. Na verdade, ambas sofriam a ação disciplinadora do Estado com quase a mesma intensidade: não escravas (21,3%) e escravas (23,7%). Isso revela, em segundo lugar, a pertinência da temática proposta, demonstrando que o estudo de gênero em relação à criminalidade das escravas pode contribuir em muito para desvelar a situação das mulheres na época. Com o objetivo de definir o universo dos possíveis, tal como sugerido por Grenier (1998), alguns agregados serão exibidos como índices que mapearão a análise qualitativa. Na amostragem das prisões levantada, verifica-se que 46,1% das reclusões não apresentavam a motivação da ação policial, deixando classificadas as demais 53,9% das autuações. Em relação ao gênero, a distribuição dava-se H ISTÓRIA ,

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de maneira bastante desigual, visto que, enquanto 81,3% homens constavam na amostragem encarcerados nesta classificação, apenas 18,7% mulheres encontravam-se assim. Tal evidência torna ainda mais válida a amostragem do universo feminino e pode fornecer dados mais consistentes a respeito do conduta feminina digna de preocupação por parte da força policial da Província. Do ponto de vista comportamental, verifica-se, na amostra levantada, que os principais crimes pelos quais os homens sofriam a ação disciplinadora da polícia relacionam-se, em primeiro lugar, com prisões por embriaguez (13,4%) e desordem (12,4%). As mulheres também obtinham voz de prisão por motivos parecidos, desnudando algumas interessantes questões. Em primeiro lugar, as mulheres parecem ter causado muita desordem, uma vez que 23,7% das prisões femininas ocorriam por esse fato, convertendose no maior índice de detenção de pessoas desse sexo. Em segundo lugar, proporcionalmente, a embriaguez responde pela segunda forma de prisão mais comum entre as capixabas – 13,7%. Em terceiro lugar, a inobservância das posturas municipais marcou profundamente as mulheres cuja incidência dentre os crimes femininos alcançava 18,5%, enquanto entre os masculinos constava a modesta marca de 5,5%. De todo modo, trata-se de um comportamento comum entre os capixabas do Oitocentos a ocorrência massiva de crimes apenas contra a ordem e sem vítimas, com pouca distinção entre os gêneros. Essa indistinção converte-se numa marca da sociedade capixaba que aponta certa sociabilidade calcada em ajustamentos próprios de pequenas localidades tais como as existentes no Espírito Santo daquele período. Mesmo a Capital não se distinguia por um número expressivo de habitantes que, em 1871, na qualidade de município, alcançou a marca de 14.669 indivíduos livres e 3.031 escravos. De acordo com pesquisas realizadas em Vitória no mesmo período, o historiador Geraldo Soares (2004, p. 61) afirma: No contato com nossas fontes podemos dizer que tivemos essa mesma sensação de que os conflitos ali registrados também tinham o seu aspecto de ajustamento. Evidentemente, não queremos dizer que todo o conflito tinha um ajustamento como resultado, como se as coisas tendessem sempre a se acomodar. Queremos dizer unicamente que as pessoas, mesmo quando arrastadas pela paixão de um conflito, pareciam saber que além do conflito havia a necessidade de se remeter a uma base de convivência não necessariamente pacífica, mas aceitável.

Não havia ausência de conflitos, conforme se afirma acima, e as soluções encontradas, em sua maioria, não possuíam a marca da violência física. A grande expressividade dos crimes sem vítimas registrados na pesquisa em apreço denota que os enfrentamentos cotidianos possuíam efetividade, dispensando ações mais drásticas e violentas, como as verificadas nos grandes centros do Império. Essa constatação corrobora o que alguns historiadores italianos e franceses, partidários da micro-história, asseveram a respeito do uso da mudança de escala na história (REVEL:1998.). As pequenas vilas que compunham a Comarca da Capital da Província do Espírito Santo oferecem uma modulação particular à história do Brasil imperial, desvelando um modo alternativo de solu162

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ção dos conflitos cotidianos. Nesse mesmo sentido, a participação feminina no cotidiano capixaba caracteriza-se por uma presença pouco pronunciada. Michele Perrot (1989, p. 11) instrui que o peso das mulheres é pequeno e decrescente no Oitocentos, porque as exclui do campo da vingança e do confronto: “[...] o banditismo de estrada ou o roubo com arrombamento, o assalto à mão armada ou o atentado eram, até uma data recente, negócios de homens”. Há motivos, no entanto, para discordar da historiadora francesa, pois se, por um lado, os arquivos criminais evidenciam uma estatística mais acanhada de delitos femininos, por outro, revelam uma riqueza incomensurável de detalhes da vida privada daquelas que ousaram contra a ordem. Sobre os silêncios que calavam as mulheres nos arquivos públicos, resta interrogar suas omissões e incongruências de modo a encontrar pequenos sinais e evidências dos rastros deixados pelas mulheres no cotidiano criminalizado e registrado pelas autoridades policiais. Tal como ensina Carlo Ginzburg (1989, p. 177), “[...] se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la”. De acordo com a amostragem levantada, a participação dos escravos era muito pequena em relação às prisões (Tabela 6). TABELA 6 – Autuações Policiais Prisão

Sexo

Condição

Não

Civil

Escravo Escravo

Total

Masculino

Feminino

77,5%

75,0%

76,9%

22,5%

25,0%

23,1%

100,0%

100,0%

100,0%

Fonte: Fundo de Polícia

Mesmo constituindo um pouco menos de ¼ das autuações, a classificação das prisões de escravos pode revelar alguns relevantes aspectos do mundo do cativeiro. A prisão dos escravos por requisição dos senhores (14,6%) supera todas as demais infrações e somente perde para as prisões imotivadas (52,4%). Nesse sentido, do ponto de vista proporcional, a ausência de motivos para o encarceramento de escravos superava o de não escravos (43,8%). De todo modo, as mulheres (11,9%) quase dividiam como os homens (15,7%) as prisões à requisição do senhor. Outra configuração da criminalidade capixaba parece ter sido a significativa presença feminina nas desordens das vilas. Dentre os não escravos, levando em consideração a inclusão dos crimes sem motivação, destacam-se as mulheres (16,9%) com quase o dobro de registros de desordem dos homens (9,1%) e com um índice de embriaguez (9,9%) muito semelhante ao dos homens (10,8%). Caso se consiH ISTÓRIA ,

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dere o universo da amostra sem as autuações sem motivação, os dados são ainda mais curiosos, pois as cifras aumentam significativamente. Por cuidado e fidelidade à amostra resolveu-se manter os números incluindo as prisões sem motivação, sem abrir mão, porém, da validade dos dados restantes. Embora assevere Michelle Perrot (1989, p. 11) que os arquivos criminais “[...] pouco dizem sobre as mulheres [...]”, o levantamento sobre a detenção feminina de não escravas no Espírito Santo parece dizer muito. Essas mulheres encontravam-se nas ruas das vilas compondo o cenário dos confrontos e participando de eventos aparentemente masculinos. Os dados revelam, inclusive, que a exposição não assustava tanto assim essas mulheres, exibindo certa agressividade que lhes permitia a embriaguez e a desordem. Como explica Nicole Castan (1981, p. 21), numa comunidade onde quase todos são vizinhos ou conhecidos, a vila, convertida numa república, obriga todos a viverem juntos e, ao mesmo tempo, a encontrar um lugar, “[...] não um lugar adquirido de uma vez por todas, mas sempre passível de mudança, criticável pela malícia ou por interesse; defesa e agressão se misturam e se alternam nas rivalidades que despontam num jogo social raramente inocente”. Sob esse prisma, o escravo integra esse ambiente de jogo entre a indistinção e a distinção em que o respeito e a consideração encontram-se sempre em terreno movediço. A desordem e a embriaguez dos cativos, entretanto, parecia não preocupar as autoridades. Seus crimes mais graves, descontadas as prisões sem motivo registrado, apontam como principais delitos a infração de posturas (6,4%), fugas (3,8%), desordem (3,6%) e vadiagem (3,4%). Esses dados revelam que os escravos se encontravam presos principalmente por estarem longe do alcance da propriedade senhorial. Isso, entretanto, não pode dar azo a imaginar que a disciplina dos escravos fosse uma tarefa precípua dos policiais capixabas, dada a pouca incidência de homens e mulheres nessa condição civil em situação de encarceramento ou de registro de autuação. Proporcionalmente, as mulheres cativas parecem ter efetiva participação nos crimes mais comuns entre os escravos, conforme tabela a seguir: TABELA 7 – Principais Crimes de Escravos por Sexo Sexo Motivo da Prisão

Masculino

Feminino

Total

Sem Motivação

50,1%

58,7%

52,4%

À requisição do Senhor

15,7%

11,9%

14,6%

Infração de Posturas

6,4%

10,3%

7,4%

Fuga

2,9%

6,3%

3,8%

Desordem

4,1%

2,4%

3,2%

Vadiagem

3,8%

2,4%

3,4%

Fonte: Fundo de Polícia

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Considerando que nessas seis classificações de prisões exibidas a participação das cativas superava a masculina, não se pode considerar as mulheres da sociedade capixaba oitocentista sob o rótulo da ingenuidade e fragilidade. Trata-se, na verdade, de mulheres muito ousadas que davam muito trabalho ao senhor, obrigandoo a recorrer às autoridades para socorrê-lo na disciplina escravagista. Elas fugiam mais do que seus parceiros. Como ressalta Eduardo Paiva (1995, p. 126), as mulheres colocavam em andamento variadas estratégias para facilitar a vida em cativeiro, forçar a libertação e tentar garantir recursos materiais futuros. Esclarece mais o historiador mineiro: A exploração sexual sofrida pelas escravas, elemento tão comum no imaginário sobre a escravidão, parece ter sido, na verdade, o lado propositadamente mais conhecido de uma relação mais complexa. Um outro, talvez equivocadamente escamoteado por uma mentalidade machista e estrategicamente ocultado pelo discurso abolicionista, foi gerenciado por aquelas mulheres que de vítimas passam a provocadoras dos contatos sexuais.

Ao lado de estratégias mais voltadas à acomodação, as mulheres cativas disputavam outras formas de resistência ao cativeiro tal como a fuga e indispondo-se com seu senhor, conforme demonstram as prisões por requisição do senhor. Ao cabo de tudo, pode-se afirmar que as escravas, assim como as não escravas, participavam ativamente do cotidiano das vilas capixabas. Nos enfrentamentos diários e correntes das ruas, a presença feminina fazia-se notar, despertando o vigilante olhar das autoridades policiais. Nos pequenos recantos do Espírito Santo, as mulheres encontravam-se na situação de exibir sua agressividade e paixões mais amplamente do que em outras plagas mais importantes. Talvez a monotonia e a monorritmia da vida provinciana capixaba permitisse às suas mulheres menos freios e mais arroubos na exibição de sua força nos conflitos cotidianos. Não se trata de um dissenso com o restante do Império, mas tão-somente uma modulação da ação feminina que não cessou em todos lugares de imiscuir-se nos lugares proibidos e de aventurar-se nos interditos.

C RIME E GÊNERO : UMA APROXIMAÇÃO QUALITATIVA Das informações obtidas das participações enviadas pelo chefe de Polícia ao presidente da Província acerca das autuações efetuadas por seus subordinados encarregados do policiamento das vilas e municípios da Província, obteve-se a certeza de que, como acertadamente denuncia Michelle Perrot (1989), as mulheres capixabas de diferentes condições civis conseguiam manifestar seus ímpetos de agressividade e espírito de combate, penetrando no restrito “campo da vingança ou do confronto”. De acordo com o exposto por Algranti (1993), estudos de historiadores e antropólogos apresentam crescentes exemplos da combatividade feminina e de sua resistência à dominação masculina, embora muitas mulheres H ISTÓRIA ,

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tenham se submetido à clausura dos lares e dos conventos ao longo da história brasileira. Resta, entretanto, avançar um pouco mais para conhecer as conseqüências dos embates cotidianos, além das conseqüências que um encarceramento causa em um indivíduo, como o vexame e a vergonha. A lei reservava ainda desdobramentos processuais que poderiam resultar em penas mais graves do que uma prisão breve e rotineira. Pesquisando os autos criminais da Província do Espírito Santo, verificou-se uma brusca queda da participação feminina (Gráficos 2 e 3):

400 •

Gráfico 2

123 123 123 123 123 123 123 123 200 • 123 123 123 123 123 123 123 100 • 123 123 123 12345 12345 123 12345 123 1234 12345 123 123451234 12345 12345 123 1234 123451234 12345 0 • 123 1234 1234

Count

300 •

Livre

Sexo da vítima

1234 1234 1234 1234 Masculino

123456 123456 123456 123456 123456 Feminino

Escravo Liberto

Status vítima

500 •

Gráfico 3

Count

400 • 1234

1234 1234 1234 1234 1234 300 • 1234 1234 1234 1234 1234 1234 200 • 1234 1234 1234 1234 1234 1234 100 • 1234 1234 1234 1234 123 12345 1234 123 12345 1234 123 123 12345 1234 123451231234 1234 123 0•

Livre

Sexo do réu

12345 12345 12345 12345Masculino 123456 123456 123456 123456 123456 123456 Feminino

Escravo Liberto Status réu

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Em ambos os gráficos, destacam-se a diminuta participação feminina, um tanto mais freqüente nas prisões efetuadas pela polícia, como se pôde frisar no item anterior. Enquanto os homens constituíam-se em réus em 89,3% dentre aqueles processados na Justiça criminal, apenas 8,2% de mulheres encontravamse em igual condição. Já na posição de vítimas cresce um pouco mais a participação feminina para 14%, enquanto a masculina chega a 72%. Mesmo sem haver uma larga margem de diferença entre ambos os casos, pode-se inferir uma situação desfavorável, quando confrontada com os homens, já que eles dominavam a cena da vingança e do confronto (Tabela 8): TABELA 8 – Autos Criminais da Comarca de Vitória – 1833-1871 Sexo da Vítima Masculino Sexo do Réu

Masculino

Total

Feminino



311

53

364

Sexo do Réu

85,4%

14,6%

100,0%

da Vítima

92,6%

81,5%

90,8%



25

12

37

Sexo do Réu

67,6%

32,4%

100,0%

da Vítima

7,4%

18,5%

9,2%



336

65

401

Sexo do Réu

83,8%

16,2%

100,0%

100,0%

100,0%

100,0%

Sexo Feminino

Sexo Total

Sexo da Vítima Fonte: Fundo de Polícia

A Tabela 8 demonstra que os homens se confrontavam majoritariamente com homens (85,4%), enquanto as mulheres com mulheres (18,5%). Na burla diária das ruas, as mulheres enfrentavam-se, o que não constitui em si nenhuma desvantagem, pois nada as obrigaria, por um sentimento de unidade que somente o futuro conheceria, abrir mão das rivalidades cotidianas. Além do mais, importa mesmo reconhecer que essa diminuta parcela ousava utilizar-se de expedientes violentos quase monopolizados pelos homens e, em tese, muito distantes do universo feminino. Essa tendência distribuía-se igualmente entre mulheres cativas e não cativas, denotando um padrão das mulheres em geral no confronto com outras mulheres. H ISTÓRIA ,

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Do cotejo dos dados extraídos das participações do chefe de Polícia com os dos autos criminais, extrai-se que, de cada cem autuações policiais, 25 pertenciam ao sexo feminino, enquanto de cem réus processados na Justiça, apenas oito mulheres constavam registradas dentre os autos criminais. Essa diferenciação explica-se pela dissimilação entre os procedimentos da Polícia e da Justiça, conforme discutido anteriormente. Dividindo com a Polícia as atividades do controle jurisdicional dos delitos, à Magistratura cabia julgar crimes mais graves ou “maiores”, como conceituado pelo jurista Pimenta Bueno (1857, Título X). Dentre os crimes maiores, constavam as agressões físicas, assassinatos e outros. Já os crimes da competência dos policiais constituíam-se nos seguintes, de acordo com o Código Criminal da época: ofensas à religião, costumes e moral (Capítulo I); sociedades secretas (Capítulo II); ajuntamentos ilícitos (Capítulo III); vadios e mendigos (Capítulo IV); uso de armas defesas (Capítulo V); fabrico e uso de instrumentos de roubar (Capítulo VI); uso de nomes supostos e título indevidos (Capítulo VII); uso indevido da imprensa (Capítulo VIII). Além disso, alguns decretos e leis colocavam sob a competência da polícia determinar as penas sobre infrações sanitárias e outras de organização das vilas e cidades. As autoridades policiais, portanto, qualificavam-se pelas leis do Império para julgar os crimes cotidianos, executando a tarefa de ordenar os ajuntamentos urbanos do País. Como a participação feminina vinculada a assassinatos, tentativas de assassinato, falsidade, fraude, entre outros, não ultrapassava a casa de 1%, pode-se supor que as mulheres estavam envolvidas em crimes menores como bate-bocas, fofocas, mau uso da água pública por ocasião da lavagem de roupa etc. Embora os crimes das mulheres como rés raramente chegavassem à Justiça, foram encontrados dois autos criminais envolvendo duas escravas que merecem atenção, pois contêm toda trama que as incriminou judicialmente. Em ambos os processos, as escravas são acusadas de terem cometido um crime contra outros escravos. No primeiro auto criminal do ano de 1857, a escrava Albertina teria cometido o crime de agressão física contra a escrava Gertrudes. No segundo, em 1861, a escrava Luiza foi acusada do assassinato de Antônio, seu parceiro de eito. Notam-se dois raros exemplos, pois as rés eram escravas e mulheres. Pode-se, todavia, considerar tais autos como o excepcional normal que, de acordo com Ginzburg (1989), designa a documentação aparentemente excepcional, pois as mulheres, como se observa dos dados policiais, estavam presentes nas ruas da Vitória oitocentista provocando desordens e transgressões. A análise do caso das duas escravas, Albertina e Luiza, apresenta transgressões corriqueiras que, por algum infortúnio, prosperam na seara judiciária, legando ao futuro os detalhes do cotidiano capixaba do século dezenove. Em ambos os processos, as testemunhas chegam mesmo a protestar contra a atenção das autoridades com casos tão corriqueiros e considerados, pelas próprias testemunhas, sem nenhuma importância. A opinião, no entanto, das autoridades contrasta absolutamente 168

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com a comunidade que participou dos eventos, pois não só deram o encaminhamento mais severo da lei, como recorreram às instâncias superiores contra a decisão do Júri. Esse confronto coloca a questão do campo do Direito, tal como formulado por Bourdieu (1989, p. 226), que expõe duas visões de mundo: O desvio entre a visão vulgar daquele que se vai tornar num justiciável, quer dizer, num cliente, e a visão científica do perito, juiz, advogado, conselheiro jurídico, etc., nada tem de acidental; ele é constitutivo de uma relação de poder, que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos, de interações expressivas, numa palavra, duas visões de mundo.

Formado por cidadãos da comunidade, ao que tudo indica, o Júri compartilhava da opinião das testemunhas de que os atos delituosos das escravas não mereciam conseqüências mais graves. As autoridades policiais e judiciárias, no entanto, orientadas pelos fundamentos do próprio campo jurídico, adotavam outros parâmetros além daqueles ditados pelo convívio cotidiano. Essa duplicidade resulta de os aplicadores do Direito colocarem-se diante do presente, atendo-se à lógica depreendida dos textos jurídicos, introduzindo elementos totalmente alheios aos simples profanos. É o que se observa do relato de d. Anna, convocada a comparecer como testemunha no caso de Albertina contra Gertrudes: Respondeu que se achava ela no interior de sua casa na Rua das Flores quando a sua porta bateu Joaquim Alves Pinto perguntando que ela testemunha sabia do fato relatado na petição e foi quando soube da ocorrência relativa a escrava do mesmo Alves Pinto [...] e como julgava isso uma asneira e não teria mais conseqüência, ela testemunha nada mais indagou e nem julgava que o queixoso [...] fizera ela vir a juízo (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 650).

Desse relato, nota-se o sério incômodo causado a essa senhora moça o testemunho. Enquanto, para os aplicadores do Direito, aquele momento constituía-se em algo absolutamente ordinário, para os membros da comunidade afigurava-se numa verdadeira exceção que traduzia até certo desprestígio. D. Anna não aprovava ser incluída entre testemunhas de crimes, sobretudo, diante da pouca monta do caso em julgamento. A situação das escravas, em sua opinião, não merecia o estorvo do deslocamento de sua casa, o atraso em suas tarefas domésticas e, mesmo, a exposição pública de sua pessoa. Essa testemunha, ela própria em seu tempo, acusa a “normalidade” dos atos de Albertina nesse processo “excepcional”. Tal como conceituou Ginzburg (1989), tratarse-ia do “excepcional normal”. Desse ponto de vista, portanto, pode-se afirmar que o universo dos possíveis (GRENIER, 1998), levantado pela avaliação estatística dos dados policiais, parece confirmar a hipótese interpretativa de que as mulheres povoassem os espaços de conflitos e discórdia da sociedade capixaba. Os fragmentos do cotidiano, recortados pelos autos criminais das duas escravas, Albertina e Luiza, deixam entrever um pouco da ruidosa convivência nos H ISTÓRIA ,

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recantos das vilas capixabas. Albertina, por exemplo, descreveu-se como uma escrava com ocupação doméstica, que vivia na companhia da família do seu senhor na Rua das Flores. Diz Elmo Elton (1999, p. 25) que o nome dessa artéria se devia à formosura das três filhas do físico-mor João Antônio Pientznauer, cirurgião da Força de Linha da Província – Gertrudes, Ana e Joaquina, “[...] tidas então como as moças mais bonitas de Vitória, isso por volta de 1822. ‘Eram as Flores da ilha’, assim qualificava o povo, daí que o caminho onde moravam passou a ser conhecido como Rua das Flores [...]”. Tratar-se-ia de uma importante via em que residiam algumas das pessoas mais aquinhoadas da Capital, cujas casas deviam ser povoadas por africanos e seus descendentes, tal como Albertina e Gertrudes. A importância da dita rua pode ser mensurada pelo cuidado das autoridades em pavimentá-la com calçamento de pedras, uma vez que, durante a briga entre as duas escravas, Gertrudes caíra sobre as “pedras do calçamento”, provocando-lhe as “ofensas públicas” constantes do processo. De acordo com Gertrudes, a briga teve lugar: [...] quando, naquele mesmo dia pela manhã, saíra da casa de seu senhor para ir buscar água na fonte grande, passando de fronte à casa de Antônio José Ferreira de Araújo, a escrava deste de nome Albertina, chamou a ela respondente do sótão e respondendo ela respondente não haver negócio seguiu seu caminho na rua das Flores, e daí a pouco viu vir em seu seguimento a dita Albertina, e como ela respondente correu, a mesma Albertina correu atrás dela respondente e ao chegar de fronte da casa do Alferes Comandante de Pedestres na dita rua Flores, pegou pelo pescoço e deu ela respondente no chão, deu-lhe vários murros pelo pescoço, cabeça e rosto, e pondo-lhe os pés no peito fazendo-lhe as ofensas que nas referidas partes se vê. Perguntada que pessoas tinham presenciado esse fato, respondeu que presenciaram o dito Comandante de Pedestres, uma moça chamada Senhora Aninha e várias outras pessoas que se achavam na rua, que ela respondente não pode conhecer [...] (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 650).

Uma rua povoada por senhores de escravos e caminho da “Fonte Grande” que abastecia os arredores de água devia ser ruidosa e agitada. Pode-se imaginar a convivência de diversas pessoas de diferentes condições sociais, senhores, escravos, forros, etc. Em algumas ocasiões, apresentaria uma calmaria morna e irritante; em outras horas, porém, haveria oportunidade para barulhos e algazarras. Os moradores locais, no entanto, concorriam para impor certa ordem e respeitabilidade, agindo e censurando os excessos cometidos pelos transeuntes ou vizinhos. O comandante de pedestres confessa sua participação no evento motivado por esse quase “dever”: Estando ele testemunha na rua das Flores, em sua casa, quando viu duas pretas se esmurrando, e até que uma delas deu com a outra no chão sobre as pedras da calçada, e então ele testemunha gritou com as duas pretas afim de que se apartassem, o que elas logo fizeram, vendo ele a testemunha a preta que caira levantar-se com algum sangue na testa parecendo-lhe de arranhões, e como o caso não lhe pareceu de conseqüência deixou-lhes ir e nenhuma indagação fez. Perguntado se não sabe o nome dessas pretas e qual delas derrubou a outra? Respondeu que não sabe o nome delas, ouvindo dizer depois que uma delas pertencia a José Ferreira de Araújo e a outra a Joaquim Alves Pinto, o que é que sabe é que a que foi derrubada é mais baixa e fula que a outra (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 650).

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Surtindo o efeito esperado, os moradores voltavam para seus lares, deixando o acontecido para animar as conversas à mesa ou nos botecos do entorno. Entretanto, no caso de Albertina e Gertrudes, o caso alcançou o Tribunal do Júri, instância máxima de julgamento na Província, recebendo até recurso à Relação do Rio de Janeiro. No mesmo dia do ocorrido, o senhor de Gertrudes apresentou à Polícia uma petição solicitando exame de sanidade de sua escrava. Em casa do senhor chefe de Polícia, Tristão Alencar, levada por seu senhor, Gertrudes declarou ter entre quatorze a quinze anos, ser natural de Victoria e filha da escrava Engracia, escrava falecida de Joaquim Alves Pinto, em cuja companhia residia naquela cidade. Com o fim de realizar averiguações sobre o suposto crime, o chefe de Polícia comandou que fossem intimadas a comparecer as testemunhas citadas por Gertrudes. Assim como as demais testemunhas, d. Gabriela Rodrigues Rangel admirou-se do alcance do ocorrido: Respondeu que nada sabe do fato relatado na petição de queixa, pois ela testemunha nada viu, e só soube da briga das duas pretas, quando o queixoso foi a casa da mãe dela testemunha perguntando se esta tinha visto a briga, ao que sua mãe respondeu que nada sabia e que somente agora soubera dela [...] (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 650).

Albertina, de sua parte, apresentou sua versão da briga: D’onde é natural? Respondeu que de Carapina, termo desta cidade. Aonde reside ou mora? Respondeu que mora em companhia de seu senhor José Ferreira de Araújo. Há quantos tempos aí mora? Respondeu que desde criança. Perguntada qual a sua profissão ou meio de vida, respondeu que se ocupava de serviços domésticos na casa do seu senhor. Onde estava quando teve lugar a briga com Gertrudes escrava de Joaquim Alves Pinto? Respondeu que se achava na das Flores de fronte a casa de seu senhor. Perguntada como teve lugar entre ela ré e Gertrudes a briga que relatou ela sair a mesma Gertrudes com arranhões pelo rosto e pelo pescoço? Respondeu que soube ela ré que Gertrudes falara mal dela, e mandando-lhe alguns recados de advertência, aí que um dia encontrando a mesma Gertrudes perguntara que recados mandara a ela, ao que ela ré respondeu que não se ocupara ela e que era mãe de filho e Gertrudes uma menina [...] (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 650).

Albertina prosseguiu com o depoimento, confirmando ter esmurrado Gertrudes após ter sido arremessado contra ela um barril, que, por um golpe de sorte, não a atingira. A escrava, portanto, alegava não ter iniciado a briga e sua vantagem decorrera de ser mais velha e mais forte do que sua oponente. Tudo não passara, em sua opinião, de uma boa briga, da qual se saíra muito bem. Em 29 de setembro, entretanto, o chefe de Polícia julgou procedente o auto de exame de sanidade que mandou realizar e condenou o senhor de Albertina a pagar as custas de 27$040 do corpo de delito efetuado. Após esse despacho da autoridade policial, coube ao promotor pronunciar-se, que julgou conter nos autos indícios suficientes para processar Albertina. O juiz municipal, conclusos os H ISTÓRIA ,

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autos, pronunciou a ré Albertina pelo crime de agressão física conforme o art. 201 do Código Criminal, ficando ela sujeita à prisão e livramento na forma da lei e mandando ordem de prisão, bem como condenando o seu senhor ao pagamento das custas. Irresignado e diante da condenação, o senhor de Albertina efetuou o pagamento de fiança à Alfândega e Mesa do Consulado da Cidade de Victoria e apresentou à Justiça o pedido de sua escrava para responder em liberdade ao processo. Em 20 de dezembro de 1857, o juiz municipal deu alvará de soltura a Albertina. Por ocasião do julgamento do Tribunal do Júri, Albertina novamente relatou o delito, afirmando que soubera de intrigas de Gertrudes a seu respeito e, por isso, mandara recados dizendo que ela se ocupasse de sua vida e não era para se comparar com ela. O juiz lhe perguntou a razão de ter socado Gertrudes, se ela era somente uma criança conforme afirmara em interrogatório, Albertina respondeu que “[...] disse ser Gertrudes criança por não ter tido ainda filhos, mas que é uma mulher, como ela casada”. Mais uma vez, apresenta-se uma versão que aponta a fofoca e a maliciosidade como elementos constitutivos desse episódio, cuja conseqüência explodiu na forma da violenta briga entre as duas mulheres cativas em uma importante rua da Capital. Os moradores, no entanto, discordam da importância conferida pelas autoridades ao caso, tanto que o Júri absolveu a ré para desespero do juiz, que recorreu “ex-ofício” ao Tribunal da Relação. Luiza protagonizou um acontecimento um pouco diferente daquele relatado anteriormente. Escrava de eito, ela trabalhava num sítio em Itapoca com outros escravos. O auto criminal teve início com uma denúncia de Theodósio Eutepe Altaiaca, secretário interino da Chefia de Polícia: Ilustríssimo senhor, Achando-me ontem no distrito de Itapoca, com permissão do senhor Secretário desta repartição, ali me apareceu o Inspetor de Quarteirão Cardoso, residente na localidade denominada Bubú e por ele fui informado que na quarta-feira, sete do corrente mês, fora assassinado na Fazenda Roças Velhas, pertencente a Joaquim Rodrigues de Freitas Sarmento, o escravo de nome Antônio, sendo autora deste crime a escrava de nome Luiza, ambos pertencentes ao mesmo Sarmento, que para acobertar o crime, trouxe para esta cidade o escravo, a fim de ser sepultado havendo próximo de sua fazenda a Freguezia de Cariacica (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 655).

Acatando a denúncia, o chefe de Polícia mandou proceder a um auto de perguntas à Luiza que se apresentou: Repondeu chamar-se Luiza, ser natural de Cariacica, não saber sua idade, ser solteira, ser cativa de Joaquim Rodrigues de Freitas Sarmento, ser residente no sítio de seu senhor[...]. Respondeu que estando a trabalhar no eito com seus parceiros na roça de seu senhor, há dois meses em uma terça-feira, caiu acometido do mal de gota Antônio que era seu parceiro, depois ela respondente os demais parceiros o conduziu carregado para casa de seu senhor, donde no mesmo dia foi conduzido ainda com vida para esta cidade [...] (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 655).

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A seguir, recolheu-se o testemunho de José Ferreira Lopes Wanzeler, sobrinho do inspetor de Quarteirão que denunciou Luiza. A testemunha relatou que ouviu Domingas, irmã do defunto, contar sobre o ataque que uma senhora moça teve ao ver chegar à casa Antônio ferido e declarou ainda que ouvira dizer ter sido Luiza a autora dos ferimentos mortais. Arrolada como informante, pois o Código Processual Criminal proibia parentes testemunharem, Domingas compareceu diante do chefe de Polícia para responder às indagações. Perguntada a respeito das acusações relativas a Luiza, respondeu Domingas que lhe constava seu irmão ter falecido em conseqüência do mal de gota, doença que o acometera por diversas vezes diante dela própria. Também declarou não saber de qualquer desavença entre Luiza e Antônio que pudesse resultar em agressão. A quinta testemunha a depor foi José Pinto Cardoso, que relatou ter “ritações” com o senhor da acusada. Dissera José ao subdelegado de Cariacica que um conhecido, Joaquim Pereira Leite de Aguiar, em visita à Fazenda Roça Velha, observara ao senhor da ré que soubera ser a causa da morte do escravo Antônio as ofensas à enxada perpetradas por Luiza. Asseverou ainda que Leite de Aguiar dissera àquele senhor para retirar a escrava da fazenda com o fim subtraí-la da Justiça. Relatou ainda que a senhora da ré e Domingas, irmã do morto, presenciaram Antônio ferido. Bernardino da Victoria do Amor Divino confirmou a versão oferecida por José Pinto Cardoso de que ouvira dizer ser Luiza a responsável pela morte de Antônio, mas declarou ter ouvido de Domingas, irmã do falecido, que a morte se devia ao mal de gota. Como as demais testemunhas confirmavam apenas a versão do senhor do escravo falecido de que ele morrera do mal de gota, o subdelegado de Cariacica, Manuel Prudêncio Roiz Atalaia, julgou improcedente a denúncia, justificando não haver indícios contra a dita Luiza, enviando conclusos os autos ao juiz municipal do Termo. O juiz municipal, Benigno Tavares de Oliveira, no entanto, revogou a não pronúncia, pois diversamente julgava haver indícios suficientes para incriminar a ré. A partir dessa decisão, o senhor e curador de Luiza recorreu ao juiz de Direito da Comarca, solicitando que verificasse as contradições constantes nos autos, pois somente José Pinto Cardoso e Joaquim Pereira Leite de Aguiar sustentavam a versão do assassinato. Deferindo o pedido do senhor da escrava, Joaquim Rodrigues de Freitas Sarmento, o juiz de Direito intimou e fez comparecer para uma acareação José Pinto Cardoso e Joaquim Pereira Leite de Aguiar. Pelo último foi dito que [...] sustentava seu depoimento, explicando porém, em quanto a retirada da ré para a Regência, Fazenda do cunhado do senhor da mesma, dissera: Senhor Cardoso não pode se ter acontecido semelhante cousa, porque houvesse assim sucedido, o Senhor Rodrigues podia ter se retirado sua escrava para a Regência, fazenda do seu cunhado, entretanto que ele há tem publicamente ora em sua fazenda e outras vezes em seu sertão. Disse mais a testemunha que José Pinto Cardoso, lhe recomendara que perguntasse ao senhor de Luiza se havia esta morta a seu parceiro Antonio porque ele Cardoso desejava disto saber para vingarse das muitas que lhe havia feito aquele Rodrigues (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 655). H ISTÓRIA ,

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Quando confrontado com o testemunho de Leite de Aguiar: E pela testemunha José Pinto Cardoso foi dito que confirmava seu depoimento, e que este tão verdadeiro, que o mesmo Leite de Aguiar, o que dissera a ele testemunha, dissera também a José de Almeida Louro Subtil, acrescentando mais a testemunha, que este Subtil lhe dissera ainda depois de lhe referir, o que ouvira a Leite de Aguiar, que e o mesmo que ela testemunha já depôs, o seguinte: que Leite de Aguiar referido ter dito ao senhor da ré que lhe perguntara se o subdelegado poderia cercar-lhe a casa, digo, as senzalas da fazenda e prender a escrava Luiza, que sim que Louro Subtil lhe dissera mais que senhorinha, moradora no castelo, deste distrito, lhe dissera que Luiza escrava de Joaquim Rodrigues de Freitas Sarmento estivera em sua casa, mas que a dita senhorinha o mandara logo embora, porque havendo lhe perguntado se era exato ter ela morto a seu parceiro, respondeu Luiza, que era verdade ter ela dado em seu parceiro Antônio não para o matar, mas como tinha morrido, morto estava, e que esta mesma história contara Louro Subtil a Joaquim das Neves, que a tudo refirira ele testemunha (FUNDO DE POLÍCIA, caixa 655).

Diante dessas contradições e declarando ter motivos, pelos depoimentos e alegações do curador da ré, para acreditar que o principal elemento de acusação da escrava Luiza constituía-se num inimigo “capital” do seu senhor, o juiz de Direito reformou a decisão de seu colega e mandou dar baixa no nome da cativa do rol de culpados. Desse caso se depreende, em primeiro lugar, que o campo jurídico se caracteriza como um “[...] lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência [...] de interpretar um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (BOURDIEU, 1989, p. 212). Desde o inspetor de quarteirão, responsável pela denúncia, até o juiz de Direito que julgou improcedente a pronúncia da escrava como responsável pela morte do cativo Antônio, estabeleceu-se uma verdadeira batalha judicial, contando com a intervenção do curador da ré que, nesse caso, era o seu proprietário. No plano do Direito, houve uma concorrência estruturalmente regulada, que obedecia a um confronto claramente demarcado por regras precedentes e instâncias hierarquizadas para resolver os conflitos dos “intérpretes e das interpretações (BOURDIEU, 1989). Em segundo lugar, mais uma vez, nota-se tratar de um excepcional normal, pois o papel conferido a Luiza, no decorrer de toda trama processual, desnuda a posição da mulher cativa na sociedade de Cariacica. Diferentemente de Gertrudes, Luiza ocupava-se da lavoura ao lado de seus parceiros, o que desde logo indica a inclusão de mulheres no mundo da agricultura mais pesada. O relato a respeito dessa jovem de dezoito anos e cativa, que labutava em igualdade de condições nos “sertões” de seu senhor, apresenta uma mulher capaz de ser responsabilidade por assassinar um jovem escravo de 25 anos, utilizando-se de foice. A credulidade das autoridades aponta a possibilidade dessa alternativa, ainda que não se comprovara ao final do processo. A ausência de maiores detalhes a respeito da vida de Luiza também concorre para o crédito de as mulheres desse tempo poderem utilizar a violência e a vingança como desfecho de seus conflitos. 174

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C ONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, nos casos de Gertrudes e Luiza, nota-se um confronto entre o campo jurídico e os profanos, que interpretaram diversamente os casos em apreço pelas autoridades policiais e judiciais. O segundo processo oferece a enriquecedora oportunidade de se observar os movimentos de concorrência entre os componentes do campo desautorizando interpretações que tentam conceituá-lo homogeneamente. De acordo com que se observa, há grave conflito de interesses entre o fazendeiro local e as autoridades, cujo desfecho ocorrerá somente com o despacho do Juiz de Direito da Comarca. Embora esses homens, provavelmente, partilhassem posições sociais equivalentes, suas visões de mundo distanciavam-se em relação aos procedimentos a serem adotados na averiguação dos crimes relatados neste texto. Certamente, o habitus daqueles homens treinados para lidar com o campo jurídico ditava-lhes procedimentos que aos profanos pareciam estranhos e irracionais, constituindo-se na raiz dos conflitos constantes nos processos em análise. Os autos criminais analisados constituem-se em excepcionais normais a partir da acepção construída por Ginzburg (1989). Ambos os casos, de Gertrudes e Luiza, exemplificam histórias das mulheres cativas da sociedade oitocentista das pequenas vilas e freguesias da Província do Espírito Santo que habitavam as ruas promovendo desordens e arruaças. Carvalho (2003, p. 52) explica que nem sempre foi possível manter políticas de recolhimentos das cativas no Brasil, executando o “[...] trabalho ‘de portas afora’ como uma maneira de poupar às mulheres mais abastadas do vexame de ter de freqüentar as ruas por absoluta necessidade”. Inclusive sábias palavras de Nísia Floresta (1989 [1853], p. 120), combatendo o “[...] o costume mourisco de se fecharem as mulheres em casa [...] muito concorre para que as meninas na adquiram um certo grau de energia e de força [...]”, aplicavam-se, portanto, a um parte das mulheres. Nem todas podiam evitar as ruas, principalmente as escravas. Outras nem mesmo queriam, como defende a própria Nísia Floresta (1989[1853]). A leitura dos autos criminais da Comarca de Vitória, no segundo quartel do Oitocentos, oferece uma excelente oportunidade para romper com os silêncios da história acerca das mulheres. Longe de esgotar essa temática, o presente artigo apenas apresenta a hipótese de que as mulheres pobres da região, sobretudo as escravas, participavam ativamente das atividades cotidianas. Mais do que isso, a presença feminina concorria nas assuadas e balbúrdias com os homens, capazes de expressar sua agressividade por meio da violência, considerada por tanto tempo monopólio dos homens. A sociedade capixaba, como restou demonstrada da leitura dos autos citados, observava com certa normalidade os “excessos” das cativas, acostumada à sua freqüência nesses eventos. Embora procurasse corrigir tais transgressões, não as consideravam dignos de maior empenho por parte das autoridades no seu controle. Talvez os membros da comunidade considerassem os expedientes cotidianos suficientes no controle dessas mulheres audaciosas, inquietantes e transgressoras. H ISTÓRIA ,

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1. No original: “Some forms of female slave resistance, until recently invisible, are beginning to surface in the literature. For example, Laura Edwards notes the role of female slaves in the American South initiating rumours about white slave owners that could be manipulated not only to damage that person’s reputation in white society but also indirectly undermine their prosperity as the value of slaves in part reflected their owner’s reputation”. 2. Informação extraída de Saleto (1996, p.77).

REFERÊNCIAS

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A VIOLÊNCIA FEMININA E O COTIDIANO DA ESCRAVIDÃO : O SILÊNCIO DAS FONTES

Regina Célia Lima Caleiro

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odos procuram explicações e respostas para a violência que permeia nosso diaa-dia. Com a sensibilidade própria do oficio dos historiadores, percebemos que as pessoas, quase sempre, deixam transparecer em suas falas o sentimento de nostalgia de um passado temporalmente indefinido, “[...] onde parecia reinar a solidariedade em lugar de discórdia, a lei e a ordem no lugar do crime e da violência” (ADORNO, 1999, p. 17). Foi justamente o “lugar comum” nas falas das pessoas o que nos intrigou e motivou as pesquisas que empreendemos, porquanto esse passado, reino da solidariedade, da lei, da ordem e da paz, que povoa a imaginação das pessoas não corresponde às evidências históricas que os pesquisadores têm divulgado. Portanto, se a nostalgia de uma sociedade pacífica e cordata é quase senso comum, a violência praticada pelas mulheres “comuns” sequer é aventada, a não ser como lembrança de histórias pitorescas ou anedóticas. Especialmente os discursos positivistas do início do século XX contribuíram para que a figura feminina fosse associada ao amor materno, ao recato, à religiosidade e ao altruísmo. Atributos que deveriam ser ostentados especialmente na vida privada, lugar “natural” das mulheres. Mas a imagem moldada em torno desses valores passou a ser revista. Quando rompido o espaço privado, as mulheres passaram a ocupar lugares sociais anteriormente impensáveis. Não nos ocuparemos com as discussões acerca dos motivos que impulsionaram essa mudança. Nossa preocupação prende-se à observação de que a visibilidade feminina, nos mais diversos espaços públicos, contribuiu para que a violência perpetrada pelas mulheres também se tornasse visível e preocupante. O que desejamos enfatizar é que a prática da violência não é, e não foi, apanágio do comportamento masculino. Portanto, partimos do pressuposto de que, se, por 178

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mais de quatro séculos, o espaço de ação das mulheres ficou restrito às quatro paredes domésticas ou às suas imediações, a violência praticada por elas, desdobramento natural dessas condições, permaneceu camuflada, próxima do imperceptível. Essas reflexões remeteram-nos ao cenário em que se vivenciou quase quatro séculos de história e cujo tom foi orquestrado por uma triste sinfonia: a escravidão no Brasil. Tema amplo, a escravidão foi e tem sido objeto de inúmeras interpretações e que mantém sua atualidade justamente pela amplitude de seus desdobramentos e abordagens, instigantes e provocadoras. Mary Del Priore definiu o impacto que o sistema escravista causou em nossa formação social e enfatizou o quanto esse tema ainda merece e necessita ser investigado. Pelo silêncio que a sufocou, pela violência extrema que a submeteu e pelas sombras que lançou sobre os valores de várias sociedades, a escravidão já foi comparada, no plano histórico, à matéria invisível que ocupa, segundo os astrofísicos, a maior parte do universo e cuja imperceptível presença explica o movimento de todos os objetos celestes. Há, portanto, um ‘buraco negro’ na história da sociedade e na nossa em particular (DEL PRIORE, 2001, p. 19).

Não intentamos de forma inócua reafirmar o que é inegável, que a escravidão foi cruel e violenta, ou que a violência social foi gerada apenas por ela, mas que esses atributos, inerentes à relação proprietários-escravos, constituíram-se como fatores relevantes também em outras formas de relações sociais. Ou seja, a proximidade, a convivência diária e rotineira com as mais diversas formas de violência acabaram por torná-la “normal” e assimilada em diversas instâncias, ultrapassando os limites da dominação senhorial e da resistência dos cativos. Colocar a questão nesses termos significou privilegiar as especificidades que informaram historicamente nossas práticas cotidianas. Nesse sentido, acreditamos que a violência que perpassa a sociedade brasileira é uma forma de relação social, fruto de um processo histórico que consumiu alguns séculos e que foi incorporada, mesmo de forma inconsciente, ao cotidiano da população, contrariando uma pretensa tradição pacífica da nossa história. Fernando Novais afirma que a escravidão foi uma marca indelével que perpassou nossa história colonial e adentrou o século XIX. Ainda que a vinda da Família Real significasse a civilité se espraiando no âmbito das elites, o “[...] teor violento da vida – decorrência inelutável do escravismo – continuava imperando nos sertões e nas zonas fronteiriças” (1997). Longe de homogeneizar os comportamentos no processo civilizador, como alertou o autor, “[...] acentuou a clivagem entre o mundo mais bem ordenado da polidez, das normas do convívio social, e os largos espaços da barbárie e violência” (NOVAIS, 1997, p. 445). A reflexão de Nicolau Sevcenko expressa a maneira como os desdobramentos da escravidão foram incorporados à nossa formação social, especialmente no que tange ao espaço que pretendemos vislumbrar, o da intimidade feminina: H ISTÓRIA ,

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A questão da privacidade é, sim, relevante, porque ela expõe as mazelas da nossa formação social e mostra, de maneira evidente, o quanto a sociedade brasileira tem uma singularidade assinalada pela herança escravista e colonial, até hoje mal resolvida (SEVCENKO, 1998, p. 359).

Na tentativa de aproximação da privacidade feminina, deparamo-nos com uma vasta bibliografia que evidencia a preocupação da Igreja e dos representantes do Poder Público com as práticas femininas. São inúmeras informações do empenho exacerbado de conter, classificar, culpabilizar e normatizar os comportamentos das mulheres, especialmente no que tange à sua sexualidade. Destarte, consideramos significativo e instigante o silêncio ao qual se relegou a violência, singularidade de nossa herança escravista, inserida no cotidiano das mulheres, dado relevante para a compreensão de nossa formação social. Pela especificidade das principais fontes utilizadas – autos criminais – foi possível realizar um inventário de experiências de vida que escaparam ao normativo e seu conseqüente julgamento institucional, bem como das expectativas sociais acerca do comportamento das mulheres, de acordo com o lugar por elas ocupado na sociedade do século XIX. Com esses pressupostos, intentamos compreender como a violência permeou o cotidiano das mulheres sem, contudo, comprometer as concepções generalizantes, formuladas fora dos muros acadêmicos, acerca do comportamento ou da “natureza” feminina, caracterizada pelos mais diversos adjetivos positivos. Essas generalizações terminaram por restringir sua humanidade histórica a estereótipos que atualmente os pesquisadores dedicam-se a compreender e desvincular de categorias abstratas. Destarte, analisar essas questões tornou-se um desafio e pode ser uma das formas de pensar suas ressonâncias contemporâneas, bem como para assumirmos uma nova postura perante a violência atual.

O UNIVERSO DA PESQUISA Para tratar de um tema tão amplo – violência, mulheres e escravidão – e conformá-lo ao ofício dos historiadores, nossa pesquisa foi delimitada temporalmente no século XIX e pela vigência do Código Criminal do Império, 18301888. O recorte geográfico foi dado pelas localidades que compuseram a comarca de Franca, interior paulista. A escolha dessa região obedeceu ao nosso interesse em face das relações existentes entre o rural e o urbano e das mudanças nele ocorridas ao longo do Oitocentos. Longe de considerar a localidade como uma unidade fechada, acreditamos que seria possível articular as transformações ocorridas na região estabelecendo conexões com a Capital da Província e do Império de modo geral. A delimitação da vigência do Código Penal permite avaliar a preocupação da justiça em qualificar a quebra da ordem e a responsabilidade criminal dos indivíduos, ou seja, o grau de violência que se admite como tolerável na sociedade. 180

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Entretanto, a possibilidade de aproximação do cotidiano feminino, com enfoque direcionado para situações violentas, conduz o pesquisador a um número limitado de fontes. Nesse sentido, optamos pelo registro da criminalidade, visto que são testemunhos dos momentos em que se quebra o consenso e afloram as tensões entre vítimas e algozes originando diversas formas de violências, ou seja, o objeto desta pesquisa. Aos renitentes quanto à utilização desse corpus documental cuja especialidade ressalta a violência, lembramos a afirmação de Maria Sylvia de Carvalho Franco “O contrário é verdadeiro: foi a violência entranhada na realidade social que fez a documentação nela especializada expressiva e válida” (1997, p. 17). Ao nos debruçarmos sobre os processos criminais em que as mulheres figuram como rés, considerando primordialmente que o fato criminoso é, como tantos outros, uma forma de relação social, fizemos uma opção prévia, ou seja, demonstrar que, apesar de todo o empenho de ordenamento, a sociedade brasileira do Oitocentos sancionava, de modo geral, a violência e as práticas delituosas femininas. Não queremos afirmar que as mulheres eram especialmente violentas, mas que contemplavam as diversas formas de agressão como alternativa viável para a resolução de seus conflitos amorosos, econômicos, maternos e também com os representantes da Justiça, que tentavam adequá-las aos interesses da nova ordem que se instalava. Acreditamos, ainda, que a violência que surpreendemos na documentação e que perpassou o cotidiano feminino foi, não unicamente, tributária da ordem escravista do Oitocentos que terminava por banalizar as sevícias nas múltiplas formas de relações humanas.

O SILÊNCIO DAS FONTES Significativamente, ao sucesso na investigação de fontes indicativas dos padrões de comportamento ideal das mulheres desejado pela elite dirigente, corresponde o fracasso acerca das interdições à violência praticada pelas mulheres. Ou seja, difícil seria contabilizar as referências normativas à sexualidade feminina, visto que uma preocupação obsessiva deu o tom aos discursos dos diversos representantes da Igreja, posteriormente assimilado pela elite dirigente. Emblematicamente, um silêncio instigante paira sobre as fontes no que diz respeito à violência praticada pelas mulheres. Mas, ao nos depararmos com o silêncio emblemático e instigante acerca da violência praticada pelas mulheres nos discursos moralizantes, percebemos que o menos evidente nas fontes não é de forma alguma menos significativo para nossa empreitada na busca do nosso objeto de estudos. Embora nossa afirmação possa ser considerada um tanto temerária, acreditamos que o descaso com a violência perpetrada pelas mulheres demonstra que esse tipo de comportamento não se constituiu como fator preocupante para os que desejavam “civilizar” o império. O mesmo silêncio negligente e intrigante paira sobre outras fontes investigadas. Os Relatórios dos Presidentes de Província alternam as visões positivas sobre o H ISTÓRIA ,

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comportamento público da população e as preocupações com a segurança individual dos paulistas, nada que diga respeito especificamente ao comportamento feminino. O uso costumeiro e indiscriminado de armas pela população foi uma preocupação constante das autoridades do Império. O art. 297, do capítulo V do Código Criminal, destinava-se à regulamentação de armas de defesa pessoal e proibia a população de “[...] usar armas ofensivas que forem proibidas. Penas de prisão de quinze a sessenta dias, além das perdas das armas”.1 Caberia às Câmaras Municipais determinar quais seriam essas armas proibidas. Entretanto, para as mulheres, mais que para os homens, entre a imposição da lei e sua real efetivação no cotidiano, existia uma enorme distância. Elas não circulavam pelas ruas portando objetos que pudessem ser classificados tradicionalmente como armas, pois, de modo geral, era do “caldeirão do cotidiano” que elas retiravam os instrumentos com que seviciavam suas vítimas. Quanto aos jornais locais, estes estampam notas mínimas e esparsas apenas acerca das mulheres provocadoras de arruaças: “Foram presas por ébrias e desordeiras Maria José da Conceição e Maria Guilhermina, conhecida por Maria Fubá”.2 Enveredamos por um outro caminho e novamente nossas perguntas ficaram sem resposta. Os “retratistas” da escravidão registraram em óleo sobre tela, aquarela sobre papel, bico de pena, cenas explícitas dos castigos aplicados aos escravos. Mas, nas cenas que perpetuaram os atos violentos banalizados pelo sistema escravista, encontramos apenas um “retrato” da violência que as escravas sofreram. A única exceção trata de “Castigos Domésticos” pintado por Rugendas (RUGENDAS, 1979, p. 68), cena que retrata a banalização dos castigos sofridos pelas negras e presenciados com indiferença pelas mulheres e crianças brancas. Diante do sofrimento da cativa que recebe as palmatoadas, da outra que aguarda apavorada para ser posteriormente castigada e da criança que chora, provavelmente o filho de uma delas, as outras mulheres e crianças estão distraídas brincando com um cão e com os piolhos que calmamente procuram nos cabelos. Exceção perpetuada na tela que confirma a regra vivenciada nas vidas informadas pelas relações impostas pela ordem escravocrata. Entretanto, os discursos normatizantes e moralizadores bem como os pincéis dos artistas são mais eloqüentes pelo que silenciam do que por aquilo que dizem. Cabe aqui uma reflexão: não importa quão lendárias ou fantasiosas sejam as histórias que se contam acerca da famosa e milagreira escrava Anastácia, talvez o que toque mais fundo no coração de seus devotos, ou o que impressiona os menos crentes seja a máscara de flandres que cobre parte de seu rosto pintado por artistas que não a conheceram, mas que se inspiraram nas histórias que a tradição oral popular tem perpetuado. De tudo o que foi dito acerca do silêncio em torno da violência inserida no cotidiano feminino, nos apossamos do silêncio como um elemento revelador de 182

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atitudes mentais, mais ou menos claras, ao qual as pessoas remetem para se conduzir na vida. Referimo-nos às práticas cotidianas de que não falamos em voz alta em decorrência dessas atitudes mentais que atribuem ao espaço doméstico, regido pelas mulheres, apenas qualidades positivas associadas ao sentimento de proteção e aconchego. Quanto à permissividade de algumas mulheres dentro do espaço doméstico, elas não negam o valor positivo do papel feminino idealizado apenas como mediador de conflitos, de trazer filhos ao mundo, assistir enfermos, acolher os “filhos pródigos”, rezar pelos que se foram e pelo futuro dos que ficam.

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CENÁRIO DA ESCRAVIDÃO

Torna-se primordial nos lembrarmos que as avós de nossas avós não viviam apartadas do contexto social onde foram engendradas suas histórias individuais. Como demonstrou Leila Mezan Algranti, nem os recolhimentos coloniais, cuja função era reafirmar os princípios e dogmas da fé católica, isentaram as mulheres das práticas cotidianas inerentes à estrutura da sociedade global. Mais forte que o próprio espírito religioso desenvolvido por essas comunidades, prevalecia a escravidão como sistema socioeconômico e elemento de diferenciação social e racial. A presença da escravidão, notadamente quando atinge proporções que marcam a formação social, como sucedia na sociedade colonial brasileira, é um dos elementos mais importantes de transformação do cotidiano das mulheres reclusas, leigas e religiosas. Nos conventos, ela alterava os princípios básicos da vida monástica, introduzindo nos claustros a propriedade privada e colocando em xeque os votos de obediência, pobreza e castidade. Reproduzia na clausura a hierarquia e a estratificação da sociedade colonial escravista ao distinguir a sua população em senhoras e escravas. Classificando as mulheres quanto à raça e à condição legal, a prática da escravidão separava as sexualmente disponíveis daquelas cuja honra deveria ser preservada. Interferia, portanto, nas representações da sociedade sobre as mulheres (ALGRANTI, 1993, p. 323).

Diferenciações que foram acentuadas no século XIX, em que as escravas não foram julgadas como as livres ou as libertas, assim como pobres e ricas não partilhavam das mesmas motivações tampouco do desenlace de seus conflitos e enfrentamentos pessoais e jurídicos. Mas todas foram protagonistas no cenário onde se encenou mais de três séculos de uma história cruel, em que os sentimentos brutalizados pela ordem escravocrata atingiram também as mulheres, tornando habitual a violência especialmente no espaço doméstico onde, com certa autonomia e liberdade, elas podiam agir. Importa lembrar que essas mulheres não viviam isoladas como madonas nos oratórios domésticos. No vai-e-vem da sobrevivência doméstica iam às feiras, à casa das comadres, aos batuques, às procissões e às igrejas, tanto quanto às cozinhas, aos tanques e aos quintais. Mas o cenário que descortinavam em suas andanças não era doce como as compotas que aprendiam a fazer desde meninas, nem perfumados H ISTÓRIA ,

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como as águas de cheiro que prazerosamente deitavam em seus colos. Seus olhos se deparavam com monogramas diferentes daqueles que eram bordados com capricho em pequenos lenços ou nos enxovais. Além das escarificações que encantavam artistas, como Rugendas e Christiano Júnior, a epiderme dos negros escancarava aos olhos de todos suas cicatrizes, marcas do cotidiano de brancos e negros permeado por dores físicas, morais, sevícias, submissão e insubordinação. No século XIX, o Império criava novas expectativas de convívio para a população, mas, no contexto social da escravidão, o cenário público era, antes de tudo, o palco de banalização da violência. As sevícias que se projetavam das senzalas para as ruas sujeitava os olhos da população aos horrores inerentes ao sistema escravocrata. As mulheres vivenciaram a experiência cotidiana de observar o tétrico espetáculo proporcionado pelo regime servil, não como simulacro, mas como vivência real de um mundo que não se acanhava em mostrar mutilações nem tampouco a compra e venda de seres humanos. Costas marcadas pelo látego impiedoso, mãos e dedos disformes pelas palmatoadas ou pelo aperto dos “anjinhos”, marcas de ferro quente com que os escravos eram “carimbados” como gado para que ostentassem a marca de seus donos. O ferro ardente não respeitava sexo nem idade. Crianças impúberes eram marcadas tal como os adultos. José Alípio Goulart cita anúncios de jornais que estampavam, sem nenhum constrangimento, sinais corporais em crianças evadidas ou colocadas à venda. Um deles dizia: “Um moleque fugido a 2 de maio de 1826 por nome Luís, entre 10 e 12 anos, no peito esquerdo tem a marca F.M.P”. Outro anúncio estampava: “Moleque de nação Quilimane, de idade de 11 e 12 anos tem a marca N&B” (GOULART, 1982, p. 68). Os atores ostentavam o sinal distintivo em uma golilha, ou seja, “[...] uma coleira como a de uso em cachorros” (GOULART, 1982, p. 71). Outros protagonistas desse trágico espetáculo mostravam-se aos olhos da população com o rosto coberto pela máscara de flandres, provida de pequenos orifícios através dos quais o supliciado via e respirava. Como animais de carga, alguns circulavam com máscaras confeccionadas em forma de bridões que vedavam apenas a boca de seu portador. O Código Criminal do Império exibia um minucioso aparato de repressão legal para conter as ações dos escravos tidos como criminosos, mas o valor despendido na aquisição dos cativos foi fundamental para que a lei fosse sabotada por seus proprietários que se encarregavam de castigar no âmbito privado suas “valiosas peças”. Nesses casos, ficava a cargo dos senhores e feitores imaginar e colocar em prática os mais hediondos suplícios. As cenas de castigos podiam ser vistas ou ouvidas tanto pelos habitantes de pequenas vilas e propriedades rurais como pelos moradores das cidades. Incontáveis aplicações de açoites de execução oficial eram levadas a cabo em público, no logradouro onde fora erguido o pelourinho. Os circunstantes podiam apreciar o verdugo e as reações do torturado. De acordo com Debret (1986, 96), citado por Goulart, o povo 184

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[...] admira a habilidade do carrasco que, ao levantar o braço para aplicar o golpe, arranha de leve a epiderme deixando-a em carne viva depois da terceira chicotada. Conserva o braço levantado por alguns segundos entre cada golpe, tanto para contá-los em voz alta, como para economizar suas forças até o fim da execução.

Destarte, além do legado do racismo, a escravidão proporcionou a banalização da violência, embora o mito da benevolência e da democracia racial persistisse na mentalidade de grande parte da população. Não por acaso, a violência das ruas foi adensada no cotidiano e dela foram partícipes mulheres de variadas condições jurídicas, sociais, econômicas e raciais. Mas, conforme demonstramos, uma visão falseada do cotidiano feminino impediu que discursos normatizadores e moralizantes demonstrassem preocupação com a violência praticada pelas mulheres. Entretanto, os vestígios dessas ocorrências não se perderam. Com eles intentamos nos aproximar de um mundo de vivências femininas quase esquecido, ou que, talvez consciente ou inconscientemente, queiramos esquecer.

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DO COTIDIANO

Em 1884, Maria Clara Branquinho, viúva, foi indiciada pelas sevícias praticadas contra sua escrava, Rita. O processo não esclarece se a cativa havia fugido de sua algoz, mas evidencia tanto a impunidade como o grau de crueldade da acusada. Ao ser inquirida sobre o fato de se achar coberta de cicatrizes, a escrava respondeu [...] que a única explicação é a falta de humanidade com que seus senhores a tem tratado, sendo constantemente castigada sem razão lícita como atestam os sinais que apresenta todo seu corpo. Que a maneira porque se castiga os escravos na fazenda de sua senhora é horrível: amarrados pelos pulsos com fortes cordas são suspensos ao ar e aí sofrem o castigo do azorrague até formar poças de sangue embaixo e depois são sujeitas a um banho de pimenta e sal, dobrando-se a tarefa do dia seguinte3 (grifo nosso).

A expressão “sem razão lícita” evidencia a aceitação dos castigos pelos escravos desde que estes fossem considerados “corretivos” e justos. Mas os castigos infligidos por Maria Clara Branquinho não se restringiam aos açoites; era seu costume submeter a cativa [...] e seus companheiros, quando têm de beber forçosamente debaixo de pancadas a água em que sua senhora se banha para depois acomodar-se na cama, e, para esse fim são chamados e ajoelhando-se ao redor da bacia aí deitando nos lábios na beira da bacia vão bebendo a água até que ela se acabe, ficando depois presos no quarto sofrendo duras ânsias, lançando finalmente a água.4

O drama da escrava Rita era agravado pela crueldade impetrada também contra aqueles que eram mais caros aos seus sentimentos. Relatou a pobre negra que “[...] o pai dela morreu por falta de trato, comido pelos bichos que assentavam nas feridas que lhe foram abertas no corpo pelo castigo de bacalhau que sofreu até que teve o H ISTÓRIA ,

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único alívio dos desgraçados que é a morte”. Rita, além de ficar sem o pai, havia perdido também seu marido “[...] assassinado por seu senhor na roça de milho, porque um dia lá fora consumido depois de ter saído do tronco e mordido por cães”. O desfecho desse processo referenda o que constatamos acerca das condenações das mulheres de acordo com sua condição social. Apesar de todos os relatos da escrava, prenhes de detalhes das mais variadas formas de crueldade, Maria Clara Branquinho foi absolvida. Aos menos avisados queremos esclarecer que não desconsideramos a possibilidade de que Rita tivesse tentado impressionar as autoridades com seu relato, mas que castigar escravos era uma prática banal e reconhecida como legítima social e juridicamente. Deixaremos em suspenso os debates teóricos acerca da crueldade ou da brandura do sistema escravista para direcionar nossas reflexões apenas ao que é inegável, ou seja, castigar fisicamente os escravos foi uma prerrogativa senhorial também empregada pelas mulheres. Os excessos na sua aplicação foram alvos das especulações dos jesuítas, juristas, intelectuais, mas sua abolição jamais foi proposta. Estado, Igreja, senhores e escravos entendiam, de forma variada, o ato de castigar. De acordo com Silvia Hunold Lara, a Coroa, para não perder o controle do poder na colônia, procurou cercear os abusos, tentando impor limites aos proprietários. A Igreja, em defesa de ideais humanitários e cristãos, enfatizava o papel paternal que o senhor deveria desempenhar, considerando lícito o castigo que visava à correção das faltas cometidas pelos cativos. Os proprietários estavam atentos aos limites das sevícias praticadas para não colocarem em risco seus investimentos e os escravos deveriam incorporar o pensamento de que deviam ser educados, não contestando o castigo “justo” e “corretivo”. Silvia Hunold Lara analisou vários processos e constatou que, mesmo agindo judicialmente contra seus senhores, alguns escravos acentuaram as qualidades educativas e disciplinadoras do castigo moderado (LARA, 1988). Para além dessas interpretações, o que desejamos enfatizar é que, “[...] servindo para educar, dominar, ordenar o trabalho, o castigo físico impunha-se como algo perfeitamente ‘natural’ [...]. Uma ‘naturalidade’ que, também ela foi essencial à continuidade do escravismo, à reprodução da relação senhor-escravo” (LARA, 1988, p. 72). Se aos conhecedores apenas da nossa “história oficial” causa estranheza a crueldade de Maria Clara Branquinho, lembramos que esse não é um caso excepcional. Procedimentos semelhantes chamaram a atenção e mereceram críticas variadas dos viajantes. Charles Ribeyrolles registrou os usos e costumes da população da Capital do Império e flagrou as “damas mercadoras” que chamou também de “matronas do lugar” com seu rosário de chaves e grupos de escravos vendedores cruzando com altivez e sem constrangimentos as ruas do Rio de Janeiro. Espantado com as mercadoras que em nada se aparentavam com as damas brancas trancadas em suas casas, desfiando eternos rosários e ladainhas, e que se ruborizavam ao simples olhar de um homem, registrou seu espanto e indignação. 186

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Não acrediteis que essa aristocracia do comércio negro, que tem prerrogativas e patentes, se deixe arrastar pelas suaves e santas piedades a ponto de socorrer os pés descalços da África, seus irmãos e irmãs. Ela é avara e implacável. Só ama e compreende o dinheiro, e os próprios portugueses as respeitam em negócios (RIBEYROLLES, 1976, p. 166).

No espaço citadino, elas foram surpreendidas também nas negociações de compra e venda de carne humana, bem vestidas e manuseando sem constrangimento a “mercadoria” disponível, o estado dos dentes, as nádegas, os peitos. De acordo com Tânia Quintaneiro, o tratamento desumano que algumas proprietárias dispensavam aos escravos, chegando, por vezes, às raias do sadismo, era notório para os viajantes. Casos de escravas desfiguradas por toda a vida e outras tantas mortas em conseqüência da crueldade das senhoras brancas foram anotados pelos viajantes sem que, contudo, houvesse notícia de que algumas delas tivessem sido punidas (QUINTANEIRO, 1995). Em uma gravura de Chamberlain que mostra um brasileiro examinando os dentes de uma negra antes de comprá-la, vê-se uma mulher que assiste à transação e que, segundo o artista, seria a criada do comprador. Mas, alerta a autora, como se trata de uma mulher branca, vestida e calçada, com capa e meias, é mais provável que fosse a esposa. Os escritos de Darwin contam que uma velha senhora, sua vizinha no Rio de Janeiro, possuía um “[...] instrumento próprio para esmagar os dedos de suas escravas”. Outro viajante extraiu de um jornal inglês, publicado no Rio de Janeiro, a notícia sobre duas moças escravas que tenham sido sujeitas “[...] às mais bárbaras torturas [...] uma delas morrera dos ferimentos, enquanto a outra estava desfigurada por toda a vida” (QUINTANEIRO, 1995, P. 55). Percebe-se que a presença das senhoras ultrapassava os limites do lar e se encaixava na estrutura escravista, no papel de administradoras da mão-de-obra servil. Os viajantes registraram casos de mulheres que substituíam maridos falecidos nas tarefas produtivas, especialmente as que viviam no interior. Durante o Império, a legislação sobre partilhas entendia o casamento como uma comunhão universal dos bens, que significava reconhecer a mulher como meeira, ou seja, proprietária da metade dos bens do casal. Sem os maridos, elas tomavam as rédeas dos negócios e administravam fazendas, compravam e vendiam mercadorias diversas. Essas não se coadunavam com a imagem das que observavam por trás das cortinas ou treliças o que ocorria nas ruas, quase como impassíveis modelos a serem retratados nas suas janelas designadas, por Ribeyrolles (1976, p. 171) como “moldura das mulheres”. Longe das cidades, do conforto e da proteção de familiares e da Justiça, as mulheres moradoras de longínquas fazendas, mesmo não sendo viúvas, permaneciam longos períodos sem os seus maridos, que se ausentavam durante meses para cuidar de seus negócios ou de outras propriedades. Maria José Dupré relatou que o pai ensinava o manejo de armas de fogo à sua mãe para que, na sua ausência, H ISTÓRIA ,

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pudesse defender os filhos e a propriedade. Escreveu a filha: “[...] creio que todas as mulheres dessa época residentes em fazendas distantes, eram corajosas. Mamãe herdou de vovó essa coragem.” Essa disposição para enfrentar as dificuldades do cotidiano as mulheres logo adquiriam, porquanto muitas delas, mesmo casadas com homens de posses, não dispunham de médicos ou de meios para abdicar dos diversos papéis que uma proprietária tinha que desempenhar. Em suas memórias a respeito dos afazeres da mãe, Maria José Dupré anotou que “[...] ela foi parteira, consertou braços e pernas, enfaixou ferimentos, extraiu dentes auxiliada por papai, deu remédios para lombrigas, tratou dos olhos das crianças, abriu abscessos, cortou tumores [...]” (DUPRE, apud MALUF, 1995). Mas havia também as que provocavam os tumores e abriam feridas com chicotes e ferro quente nos corpos de seus escravos. Em 1863, Anna Rosa de Jesus foi denunciada pelo promotor público por homicídio decorrente das sevícias praticadas contra a escrava Felícia. Em conseqüência do “clamor geral” da população, que proclamava o “[...] caráter irrascível, gênio forte, possuída pela ira e o fato de que era muito severa com seus escravos”. Por essas denúncias, o promotor solicitou ao juiz municipal a exumação do corpo da vítima. O cadáver, enterrado sem caixão, foi descrito como de uma preta de estatura ordinária, cheia de corpo, porém não gorda, com o nariz comprimido, orifícios do tamanho da circunferência de um dedo, sinais evidentes de sevícias nas nádegas, toda a coxa direita arroxeada, epiderme descascada em muitos lugares sem poder precisar os instrumentos que provocaram os ferimentos declarados. Os peritos encontraram ainda um rasgo debaixo das nádegas, sinais de cordas que circularam debaixo dos seios e nas costas. Registradas as sevícias, os peritos afirmaram não ser possível dizer o motivo da morte da escrava. Afirmamos que as decorrências inegáveis da escravidão constituíram-se como fatores relevantes em nossas práticas sociais e culturais. No que tange ao nosso objeto de investigação, a violência no cotidiano feminino, buscamos, em diversos autores, os indícios acerca das formas em que ela foi incorporada ao universo das mulheres na ordem escravocrata. Esse cotejo nos permitiu constatar que o teor violento da relação senhor-escravo permeou também a infância de incontáveis gerações de meninos e meninas, brancos e negros. Gilberto Freyre referiu-se à crueldade dos meninos brancos contra os moleques negros, companheiros e vítimas de brincadeiras brutais, e afirmou que essas relações infantis foram favoráveis ao desenvolvimento de tendências sádicas e masoquistas no caráter dos nhonhôs. Entretanto, o contato com o mundo modificava nos rapazes o senso pervertido das relações humanas. Inversamente, nas crianças do sexo feminino essas tendências foram aguçadas em decorrência da monotonia de suas vidas circunscritas aos domínios da casagrande. Como senhoras, conservaram, quase sempre, o mesmo “[...] domínio malvado sobre as mucamas que na infância sobre as negrinhas suas companheiras 188

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de brinquedo” (FREYRE, 2001, p. 392). De acordo com Gilberto Freyre, os relatos dos cronistas, dos viajantes, o folclore e a tradição oral confirmam muitas histórias do sadismo das senhoras de engenho contra os cativos. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam o salto de botina, dentaduras das escravas, ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de judiarias (FREIRE, 2001, p. 393).

Entretanto, após todas essas referências, embora coerente com a tese que se propõe, afirma em página posterior: Mas aceita, de modo geral, como deletéria a influência da escravidão doméstica sobre a moral e o caráter do brasileiro da casa-grande, devemos atender às circunstâncias especialíssimas que entre nós modificaram ou atenuaram os males do sistema. Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer outra parte da América (FREIRE, 2001, p. 406) (grifos nossos).

Não podemos negar que relações afetivas foram estabelecidas entre proprietários e cativos, mas enfatizar a “doçura” como característica da convivência imposta pelo próprio sistema escravocrata não nos parece muito convincente. Um aspecto a ser salientado é que a “doçura nas relações com escravos domésticos” contraria frontalmente o que a documentação pesquisada evidencia. Era justamente no espaço da intimidade, que as cenas de crueldade aconteciam. As vítimas, como verificamos, não são trabalhadores do eito e, sim, escravas domésticas, que cozinhavam, limpavam, dormiam aos pés das camas dos brancos. Portanto, não podemos generalizar o cotidiano e a privacidade doméstica como formas “especialíssimas” de atenuar os males do sistema. Homens e mulheres criados à sombra de todos os tipos de crueldade aplicadas de forma arbitrária contra os considerados “naturalmente” como seus inferiores acabaram por incorporar a violência ao seu procedimento, transmitindo esse procedimento de uma geração a outra, quase como uma herança cultural. Estudos posteriores contestaram as teses centrais de Gilberto Freyre, tornando a obra do pernambucano “[...] a matriz do dissenso historiográfico” sobre a escravidão (QUEIROZ, 1977, p. 104). Não pretendemos nesta tese discorrer sobre o percurso dessas discussões; nossa preocupação consiste em pontuar na escravidão a historicidade da violência inserida no cotidiano feminino sem, contudo, não nos esquecermos de que classificar o sistema escravista apenas como violento “[...] não explica coisa alguma, ou melhor, exprime o óbvio, com a desvantagem de sermos induzidos a pensar que, nas sociedades contemporâneas, as estratégias de reprodução das relações desiguais não são violentas” (LARA, 1988, p. 56). Nesse sentido, pontuar a violência do sistema escravocrata tornou-se apenas um ponto de partida para a compreensão de um código de valores que informou a H ISTÓRIA ,

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ação das mulheres, traçando uma rede de relações sociais tecida com elementos do sistema escravista. Meninos e meninas, crescendo e interpretando o mundo de acordo com a lógica escravista, “[...] aprendiam seu papel insensivelmente com a mesma naturalidade com que se acostumaram ao ruído da roda hidráulica e ao martelar da máquina despolpadora” (STEIN apud MALUF, 1995, p. 65). Maria Clara Branquinho e Anna Rosa de Jesus, protagonistas ativas das cenas de sevícias descritas nos processos, provavelmente se acostumaram ao ruído do chicote, aos gritos das vítimas, ao cheiro do sangue pingado no chão, limpo com um pano qualquer ou displicentemente esquecido para que o tempo se encarregasse de apagar suas marcas.

TRISTE

INFÂNCIA

As condições de vida dos órfãos tutelados eram muito semelhantes a dos escravos. Como afirma Sandra Lauderdale Graham (1992), o declínio da escravidão não enfraquecera as noções fundamentais que distinguiam os patrões dos trabalhadores, embora os padrões das relações sociais e de trabalho houvessem aparentemente se alargado para acomodar os novos tempos. Um fator comum a órfãos pobres e escravos eram os castigos a que ambos eram submetidos. Algumas vezes as crianças eram submetidas à sanha cruel de toda a família. Foi o que aconteceu a Joaquim, de quatro ou cinco anos, tutelado pelo lavrador Joaquim Pedro de Faria, cuja esposa “[...] dava ao tutelado os maiores maus-tratos e vexames, chegando a privá-lo do alimento necessário, acresce a isso a perseguição constante dos meninos do referido tutor”.6 A história de Carolina é ainda mais chocante, visto que a menor “[...] se acha em desespero pelos maus-tratos que tem, querendo se atirar ao mundo”.7 Esse modo de proceder também não era estranho para Placidina Jezuina da Rocha, denunciada em 1870, pelo juiz municipal, “[...] por castigar barbaramente a escrava Joana, de mais ou menos oito anos”. Os autos do corpo de delito registram “[...] cicatrizes feitas com as unhas e contusões no corpo que pareciam ser feitas com ferro”. O desespero de Joana fez com que ela procurasse Francisco Barboza Lima, depoente, para que ele a comprasse e que ela ainda não havia se matado “[...] porque não achava uma faca ou uma corda para se enforcar”.8 Consta do processo que Placidina era viúva e vivia com quatro filhos menores, portanto a figura onipresente, poderosa, espelho para olhos infantis não era exatamente o da mulher doce, perfeitamente adequada ao modelo idealizado da “natureza feminina”. Mas a crueldade de Placidina não se restringia às crianças cativas. Dez anos após o referido processo, ela foi novamente acusada por maus-tratos à menor livre e órfã Domingas. A menina havia sido posta sob tutela pelo Juiz de Órfãos na casa de Francisco Barbosa Lima que a empregara na casa de Placidina “[...] para socar

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arroz, lavar pratos e panelas, lavar a rua e as roupas da família”. No auto de perguntas feitas a Domingas, a menina respondeu que as queimaduras em seu peito e boca haviam sido provocadas por Placidina, que lançara sobre a menor duas colheres de ferro contendo gordura quente, e que era também autora das feridas em sua cabeça oriundas de tições de fogo e que as outras queimaduras eram fruto do castigo que recebera por ter se demorado na lavagem do arroz. Cansada de tantos sofrimentos, ela havia fugido da casa de Placidina e, com a ajuda de Emília Candida Ferreira, se apresentara ao Juiz de Órfãos. Provavelmente impressionado com as sevícias no corpo da menina, que apresentava também cicatrizes antigas, o juiz convocou algumas testemunhas, como o professor das filhas de Placidina, Tulipa e Eliza, freqüentador regular da casa. Mas o mestre, bem como Maria do Carmo de Jesus declararam que sabiam “por ouvir dizer” que os ferimentos eram provenientes de tombos e que Domingas havia sido empurrada por um irmão. Maria Candida de Jesus, prima e comadre da ré, foi mais eloqüente para explicar os ferimentos. Afirmou que as queimadura dos lábios e peito aconteceram quando “[...] a crioulinha no lançar feijão no fogo suspendeu a gordura quente e queimou-se”. Que ela ainda presenciara quando “[...] a crioulinha indo tirar uma caixeta de marmelada que estava em cima de um armário caiu e no tombo deu com a cabeça em um ferro”. Inquirida acerca das cicatrizes no braço da menina respondeu “que foi pereba”.

T EMPERO PARA OS DESAFETOS Em 1866, o alferes João Alexandre Dias queixou-se formalmente que Theodora, 40 anos, “escrava para todos os serviços”, havia assassinado Antônio, também escravo. Convencido de que o cativo não fora vítima de nenhuma enfermidade, ele havia reunido todos os escravos da fazenda e, após interrogá-los, descobriu uma poção em uma garrafa escondida na senzala dentro do ninho de uma pata. De posse da garrafa, solicitou um parecer do médico que fora até a fazenda para tentar salvar Antônio, o qual realizou uma pequena experiência, jogando o conteúdo da garrafa no bico de um pinto. Esse, no dia seguinte, apresentou nas asas as mesmas feridas que o moribundo. Testemunhas indicadas pelo solicitador de causas do alferes juraram que Theodora tinha por costume preparar poções para serem misturadas na “água dos brancos para acalmá-los” e outras “para castigar seus inimigos”.9 No primeiro interrogatório, Theodora confessou o crime e, ao ser interrogada sobre a causa do homicídio “[...] respondeu que ficou com raiva dele porque chegando o marido bêbado da cidade trouxe uns cobres que ela tirou”. No dia seguinte, desconfiado, o marido perguntou pelo dinheiro mas ela negou que tivesse conhecimento do seu paradeiro, mas Antônio “[...] contou que foi ela que tinha tirado e por isso ela pôs o veneno”. Interrogada acerca dos ingredientes utilizados no veneno, poção ou feitiço (três denominações utilizadas nos autos), respondeu ser uma mistura de “[...] cabeça de

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cobra, couro de sapo, pimenta do reino e flor de limãozinho do mato” que fora aplicada no colarinho da camisa da vítima causando esfolamento no local e que, posteriormente, espalhou-se pelo corpo todo terminando por levá-lo à morte. No segundo interrogatório, Theodora modificou sua versão do ocorrido, alegando que “[...] tinha sofrido prisão no tronco da casa de João Alexandre Dias e surras com um chicote de couro de quatro pernas durante nove dias, de manhã e à tarde”. O exame do corpo delito solicitado pelo curador da ré comprovou que ela havia sofrido açoites e também cortes com um canivete nas nádegas. A mudança na confissão associada às contradições na “formação da culpa” apontadas pelo curador surtiram efeito e Theodora foi absolvida por maioria de votos. Ricardo Alexandre Ferreira anotou que uma das dúvidas que mais o inquietaram, durante as pesquisas nos processos criminais de Franca, era saber se a constante mudança nas confissões dos cativos durante o julgamento acontecia por um sentimento de segurança dos acusados na presença do Juiz de Direito, ou por uma estratégia dos curadores para conseguir livrá-los de suas penas, evitando prejuízo para os senhores (FERREIRA, 2003). Acreditamos que essa dúvida permanecerá sem uma resposta efetiva, o que não impede a análise de algumas questões pontuais. No capítulo anterior, vimos que Maria Antônia e Firmina foram condenadas à prisão perpétua por homicídio cometido contra a família de seus senhores, fato que atentava frontalmente a sociedade escravista. Quanto à Theodora, sua vítima era um escravo como ela e, embora o prejuízo financeiro fosse incontestável, o assassinato, verdadeiro ou não, diferia totalmente dos anteriores. Outra questão a se considerar é que, apesar de as três acusadas terem alegado as torturas sofridas para que confessassem os crimes, seus relatos e os das testemunhas evidenciam que, nesses processos e em muitos outros, o recurso à violência era calculado e tramado antecipadamente. Nos pequenos fragmentos das histórias que os processos-crime nos contam, é perceptível que a premeditação precedia a violência feminina, especialmente nos casos em que elas agiam acumpliciadas. Elas tramavam também os tipos de “armas” com que pretendiam agredir suas vítimas. Circunscritas às suas casas e cercanias, brancas, negras, mulatas, cativas e senhoras recorriam ao que estava mais próximo do seu mundo, o “caldeirão do cotidiano”, para resolver seus conflitos. Flagrantes da vida doméstica são bastante significativos para a confirmação desse procedimento. Em 1887, na fazenda Jaborandy, propriedade do capitão Joaquim Garcia de Figueiredo, trabalhava como cozinheira Ignácia, 44 anos, casada, livre, tendo como companheira Sabina, uma escrava. Acusadas de terem envenenado o capitão Joaquim, responderam aos autos de perguntas que a vítima havia pedido que elas preparassem para ele uma porção de “salamargo” e elas, por engano, prepararam “sal tártaro”. Mulheres argutas, vingativas, ignorantes, nunca saberemos, pois as outras peças do processo se perderam, restou o registro dos “acidentes” de suas vidas.10 192

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Se Theodora, para manipular suas “poções”, lançava mão de cabeça de cobra, couro de sapo, limãozinho do mato e pimenta, as livres Domiciana Ferreira, Ana Angélica de Jesus e Maria Thomásia de São José também colheram nos quintais as pimentas “preparadas em uma xícara azul” para ferir sua vítima. As três mulheres, “pelo meio dia mais ou menos”, foram até a casa de Maria Pedra, afastaram a infeliz para fora “[...] e a botaram no chão, abriram as pernas e lhe puseram pimenta nas partes baixas”. O exame do corpo de delito efetuado por parteiras confirmou as versões das vítimas e das testemunhas. Declararam achar os órgãos genitais de Maria Pedra queimados e inflamados “[...] resultado evidente da introdução de uma substância cáustica no interior do dito canal, cujas feridas devem ser bastante dolorosas”.11 Ao que tudo indica, essa prática violenta generalizou-se entre as mulheres. Em 1807, na Vila de São João do Príncipe, Ceará, Ana Maria, sua filha e uma escrava não pouparam Gertrudes de sua sanha violenta. Agrediram sua vítima com pancadas de chicote e “[...] introduziram molho de pimenta nas suas partes mimosas”. Talvez a região torturada seja indício do motivo da rixa entre as mulheres ou “[...] talvez fosse apenas uma forma de lhe causar mais dor física e desacato moral” (VIEIRA JUNIOR, 2002, p. 270). Parece que, além de generalizada, esse tipo de violência atravessou os séculos e ainda está presente na memória de mulheres idosas que contam histórias muito parecidas com as que relatamos. Por respeito a essas senhoras, não as citamos nominalmente, queremos apenas registrar a permanência desse comportamento mais de um século após, o que constatamos nas fontes consultadas para o século XIX. Essas mulheres estão distantes da “condição feminina” estampada nos símbolos e nos mitos inspirados no ciclo biológico que evoca o eterno renascer, o poder de gerar e “dar à luz” novas vidas. Na literatura, nas “exempla”, nos modelos divulgados pela burguesia, pairam estereótipos de um tempo sem medida, ou seja, adaptáveis a qualquer conjuntura histórica. Mas o processo histórico de suas vidas se opõe ao domínio dos mitos, desvelando espaços femininos em que o cotidiano emerge das possibilidades abertas para ou pelas mulheres em um contexto histórico específico.

N OTA S

1. Código Criminal do Império do Brasil (1830). Parte IV, capítulo V, p. 187. 2. Arquivo Histórico Municipal de Franca. Jornal O Nono Distrito, 29 de janeiro de 1982, p. 3. 3. Arquivo Histórico Municipal de Franca, Caixa 52, códice 1107. H ISTÓRIA ,

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4. Arquivo Histórico Municipal de Franca. 6. Arquivo Histórico Municipal de Franca, 1883. Processo de Tutela n. 38. 1o Ofício Civil, caixa 0488. 7. Arquivo Histórico Municipal de Franca, 1862. Processo de Tutela n. 431. 1o Ofício Civil, caixa 0488. 8. Arquivo Histórico Municipal de Franca, 1870. Caixa 26, códice, 729. 9. Arquivo Histórico Municipal de Franca, 1866. Caixa 24, códice 656. 10. Arquivo Histórico Municipal de Franca, 1884. Caixa 52, códice 1087. 11. Arquivo Histórico Municipal de Franca, 1850. Caixa 12, códice 328.

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PARTE III

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PENITENTES E SOLICITANTES : GÊNERO , ETNIA E PODER NO BRASIL COLONIAL

Lana Lage da Gama Lima INTRODUÇÃO

Antes que se delineasse uma História de Gênero na Historiografia brasileira,

pela incorporação do conceito cunhado, nos anos 70, no bojo do movimento feminista norte-americano (SCOTT, 1991), o debate sobre a condição feminina no Brasil esteve em boa parte atrelado às discussões sobre o modelo familiar patriarcal, no campo que se convencionou chamar de História da Família. Preocupados em caracterizar a estrutura familiar na sociedade brasileira, os pesquisadores vinculados a esse campo (DIAS, 1984; CORRÊA, 1982; COSTA, 1977,1979; SAMARA, 1981,1983a,1983b,1996; SILVA, 1982,1984) dirigiram veementes críticas a autores, como Gilberto Freyre, Antônio Cândido, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda (FREYRE, 1975; HOLANDA, 1971; PRADO JÚNIOR, 1976; SOUZA, 1951), por sua ênfase, considerada excessiva, no predomínio da família patriarcal e na conseqüente posição submissa da mulher no período colonial. Mas é preciso reconhecer que Gilberto Freyre e Antônio Cândido, contra quem recaíram as maiores críticas, relativizaram suas afirmações. Assim como Gilberto Freyre não negou a existência de outras formas de organização familiar,1 Antônio Cândido chegou a chamar a atenção exatamente para o fato de vários autores exagerarem a submissão da mulher na sociedade colonial. Alerta repetido, ao longo do tempo, por outros estudiosos, como Russell-Wood, que chegou a afirmar que “[...] nenhum aspecto da História do Brasil recebeu tratamento mais estereotipado do que a posição da mulher e a sua contribuição para a sociedade e a economia da Colônia” (RUSSELL-WOOD, 1977, p. 1). Essa visão estereotipada do papel da mulher na época colonial está atrelada à idéia da família patriarcal como “[...] um tipo fixo onde os personagens, uma vez H ISTÓRIA ,

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definidos, apenas se substituem no decorrer das gerações, nada ameaçando sua hegemonia”, como aponta Mariza Corrêa (CORRÊA, 1982, p. 5). Eni Sâmara também sublinha a permanência desse modelo como “[...] exemplo válido e estático para toda a sociedade brasileira, esquecidas as variações que ocorrem na estrutura das famílias em função do tempo, do espaço e dos grupos sociais” (SAMARA, 1981, p. 17). É significativo que o modelo de família patriarcal e da mulher reclusa e submissa ainda persista, ao menos no senso comum, como representação do passado colonial brasileiro, apesar de se mostrar insuficiente para dar conta da diversidade das relações familiares e de gênero daquela época. Afinal, as pesquisas têm demonstrado que nem todas as estruturas familiares foram patriarcais na Colônia, como também nem todas as mulheres viveram em situação de reclusão e submissão. Inicialmente, é preciso lembrar que esse modelo foi construído a partir do exame da organização familiar da classe dominante, descrita com cores fortes por Gilberto Freyre. Mas a figura do pater familias não dá conta da vida familiar dos trabalhadores livres, forros e escravos, assim como a imagem das sinhás e sinhazinhas, recolhidas na casa-grande, não reflete a vida cotidiana das mulheres pobres. Mesmo considerando as famílias da classe dominante, o modelo acima referido não traduz toda a realidade vivida, como já apontava Antônio Cândido, ao chamar a atenção também para o que significava cuidar da casa para as senhoras de engenho. Elas eram, na verdade, gerentes de unidades de produção praticamente auto-sustentáveis, que deviam dirigir e vigiar o trabalho de um grande número de escravos, empenhados nos mais diversos serviços voltados para a subsistência da propriedade, tarefa que exigia considerável poder de decisão. Além disso, muitas mulheres, ao se tornarem viúvas, assumiam a frente dos negócios do marido falecido. No entanto, ainda que relativizado pelos seus próprios defensores, e contestado pelas pesquisas, esse modelo de relações familiares e de gênero se manteve como representação da sociedade colonial, como indica Eni Sâmara (1996, p. 1): A visão estereotipada da condição feminina e o quase desconhecimento da sua atuação na colonização do Brasil, serviram para mistificar por gerações a atmosfera rígida e autoritária das ‘famílias patriarcais’ e a exclusão das mulheres dos processos de tomada de decisão.

Ronaldo Vainfas (1989) apresenta uma interessante pista para a discussão dessa questão, ao apontar que, ao enfatizarem o papel da família patriarcal na sociedade colonial, Gilberto Freyre e Antônio Cândido estavam preocupados fundamentalmente com as relações de poder e não com a estrutura familiar. Nesse sentido, nenhuma parcela da sociedade colonial, esteve “[...] alheia ao poder e aos valores patriarcais”, independente do tipo de família em que estivesse inserida (VAINFAS, 1989, p. 110). Ao desvincular o patriarcalismo da estrutura domiciliar, tomando-o como modelo de relações de poder e conjunto de valores, Vainfas nos permite compre200

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ender melhor a permanência da família patriarcal como modelo de referência para as relações de gênero, que são as que nos interessam mais particularmente. Essa linha de análise pode ser corroborada por uma leitura menos preconceituosa das obras criticadas pelos pesquisadores vinculados à História da Família. Além de reconhecer a existência, na sociedade colonial brasileira, de outras formas de organização familiar, que qualifica como “parapatriarcais, semipatriarcais e mesmo antipatriarcais”, Gilberto Freyre aponta o fato de que a organização familiar patriarcal, entendida como elemento fundamental do estilo de vida das minorias dominantes, constituiu modelo seguido por toda a população: Expressão nítida desse familismo nos parece a generalização, no Brasil patriarcal – hoje a desintegrar-se – tanto entre gente moradora de casas de pedra e cal como entre moradores de casa de taipa, de barro e de palha, isto é, entre todas, ou quase todas, as camadas da população, do sentimento de honra do homem com relação à mulher (esposa ou companheira) e às filhas moças. Sentimento a que se devem numerosos crimes (FREYRE, 1975, p. 65).

Essa afirmação é muito significativa, pois, além de indicar o caráter ideológico do modelo patriarcal, desvinculando-o da estrutura familiar, aponta-o como causa de crimes, motivados pelo sentimento de honra masculina decorrente do tipo de relações de gênero que o patriarcalismo engendra. Também Sérgio Buarque de Holanda (1971) fornece indicações que nos levam ao mesmo caminho, ao afirmar que as camadas dominantes, ao deixar o campo pela cidade, a partir do século XIX, levaram consigo “[...] a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição”. Novamente, o modelo patriarcal é percebido como “mentalidade” ou “teor de vida”. Por isso, segundo o autor, mesmo na cidade, onde as estruturas familiares se transformam, a família patriarcal continua a fornecer “[...] o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos” (HOLANDA, 1971, p. 50-53). E, também, entre homens e mulheres, podemos acrescentar. Ancorado em um passado idealizado, o modelo de família patriarcal, ao incluir – como modelo de relações de poder – a submissão feminina, desempenha, ainda hoje, importante papel nas relações de gênero, legitimando pela tradição as situações de desigualdade e de dominação entre homens e mulheres e inclusive os crimes motivados pela noção de honra, citados por Gilberto Freyre. Por isso, a insistência na revelação das atitudes de resistência à dominação masculina na sociedade colonial se reveste de importância ideológica para a discussão atual sobre as relações de gênero. Não por acaso, na Historiografia brasileira dos anos 70 e 80, configurou-se um campo que, denominando-se “História dos Vencidos”, abria espaço para o resgate das lutas populares do passado, desde a rebeldia escrava e as insurreições da época regencial até o movimento operário. O estudo dessas lutas H ISTÓRIA ,

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era visto, por um grupo de historiadores e cientistas sociais, como instrumento de crítica ao discurso que se apoiava numa pretensa tradição pacífica do povo brasileiro2 para condenar, como fruto de influências exóticas, as atitudes de resistência à ditadura. Discurso sistematicamente divulgado pelos Governos militares. Assim, também, a revelação das várias formas de resistência das mulheres da colônia à dominação masculina põe em xeque a evocação do tradicional modelo patriarcal de família como legitimação do papel subalterno da mulher na sociedade brasileira contemporânea. Eni Samara, ao comentar a proliferação de domicílios chefiados por mulheres, verificada nas últimas décadas, especialmente nas áreas urbanas, lembra que essas formas de arranjo familiar, alternativas ao modelo patriarcal, não estavam ausentes da sociedade colonial, indicando que o conhecimento das “[...] estratégias improvisadas pelas mulheres na sua luta pela sobrevivência servem também para desmistificar o sistema patriarcal brasileiro, e a rígida divisão de tarefas e incumbências” (SAMARA, 1996, p. 2). Maria Beatriz Nader lembra que, no período colonial, a incidência de mulheres que viviam sós era grande, decorrendo da viuvez ou do abandono, muitas vezes causado pelo deslocamento dos homens em busca de outras oportunidades de trabalho e renda, ou ainda pelo recrutamento militar. Essas mulheres “[...] zelavam por seu patrimônio, administrando sozinhas os seus bens e os de sua família, ou mesmo trabalhando em pequenas manufaturas domésticas (fiandeiras, costureiras, tecelãs) ou na agricultura” (NADER, 1997, p. 51). Com efeito, os estudos que se contrapõem à visão estereotipada do papel da mulher na sociedade colonial têm enfatizado os aspectos econômicos de sua participação social, revelando a contribuição feminina para a produção e circulação de bens. Desde as viúvas que assumiam os negócios do marido – senhores de engenho, comerciantes ou tropeiros – até as negras quituteiras, as pesquisas têm mostrado uma grande variedade de atividades produtivas exercidas por mulheres, além do trabalho doméstico (DIAS, 1984; FIGUEIREDO, 1993). Outro campo que tem se mostrado bastante fértil para o exame da resistência feminina à dominação masculina é constituído pelo estudo do casamento, incluindo o divórcio, e do concubinato (FIGUEIREDO, 1993; SAMARA, 1981, 1983a, 1983b; SILVA, 1982,1984; SILVA, 2001; TORRES LODOÑO, 1988; VENÂNCIO, 1986). Também os estudos sobre os espaços destinados à reclusão feminina, como os conventos e recolhimentos, têm revelado que as mulheres não aceitavam passivamente a vida na clausura, imposta, muitas vezes, como punição a desvios da conduta considerada padrão (ALGRANTI, 1993; LIMA, 2002). Os pesquisadores empenhados em revelar os aspectos da vida feminina ligados ao casamento e à sexualidade na sociedade colonial têm encontrado nas fontes eclesiásticas um manancial rico e indispensável, na medida em que essas questões eram regulamentadas pela Igreja. Os documentos deixados pelas devassas e visitas episco202

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pais e pelo Juízo Eclesiástico abrigam inúmeras histórias de mulheres que recusaram o papel que lhes era destinado pelo do casamento ou da clausura, muitas vezes forçados, forjando variadas estratégias para escapar da submissão masculina. A documentação inquisitorial, já consagrada como fonte privilegiada para os estudos sobre a vida cotidiana na Colônia, também se apresenta fecunda para o estudo das relações de gênero nessa época. Exemplo significativo das amplas possibilidades de sua utilização é a biografia de Rosa Egipcíaca, fundadora do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, ex-escrava e ex-prostituta que se tornou, ainda em vida, verdadeira santa negra, cultuada no Rio de Janeiro em meados do século XVIII. Para reconstituir, com maestria, a trajetória de personagem tão singular, Luiz Mott valeu-se, entre outras fontes, do processo que Rosa sofreu no Tribunal da Inquisição de Lisboa (MOTT, 1993). Entre as fontes inquisitoriais particularmente férteis para o estudo das relações de gênero no Brasil colonial, destacamos os documentos relativos ao delito conhecido como “solicitatio ad turpia” ou simplesmente solicitação, caracterizado quando um confessor fazia propostas amorosas ou sexuais às penitentes na ocasião da confissão, delito cuja punição foi submetida à justiça inquisitorial, em Portugal, em 1599.3 Reunidos nos denominados “Cadernos dos Solicitantes”, depositados na Torre do Tombo, em Lisboa, esses documentos descrevem situações que hoje poderiam ser caracterizadas, no lato sensu, como assédio sexual, levando-se em conta a posição preeminente que o clero ocupava na sociedade colonial.4 Examinando essa documentação, encontramos 425 clérigos acusados de solicitação no Brasil, entre 1610 e 1810 (LIMA, 1990), o que indica que as mulheres assediadas não aceitavam todas passivamente serem vítimas de um delito que, nos dias de hoje, ainda é subnotificado, fazendo com que as estatísticas policiais fiquem bem aquém da realidade das ocorrências. Alguns desses casos, minuciosamente descritos nos documentos, chegam a caracterizar estupros ou tentativas de estupro, crimes cuja baixa notificação é também conhecida atualmente, fato que tem dado origem a políticas públicas visando a melhoria das condições de denúncia, como as Delegacias Especializadas de Atendimentos à Mulher e as campanhas pró-notificação. Dentro desse quadro, chega a surpreender a coragem de um número significativo de mulheres da Colônia em enfrentar seus agressores, sobretudo tratando-se de clérigos, cercados de privilégios e imunidades. O detalhamento característico da documentação inquisitorial nos permite acompanhar as estratégias de defesa a que recorriam e analisar as circunstâncias em que tomaram atitudes que, atualmente, poderiam ser vistas como sinais de “empoderamento” diante de uma sociedade bastante hostil à condição feminina. Não podemos esquecer que, mesmo hoje, as mulheres que denunciam terem sido vítimas de agressões sexuais têm que romper com uma primeira barreira, que é o risco de serem suspeitas de haver provocado a situação e de terem suas vidas devassadas nos tribunais e – nos casos mais notórios – na imprensa. H ISTÓRIA ,

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No caso do Brasil Colonial, vale notar que o famoso manual de confissão de Martim de Azpilcueta Navarro, escrito em meados do século XVI, com inúmeras edições nos dois séculos seguintes, dizia que, se um homem confessasse ter seguido uma mulher com más intenções, deveria desagravá-la da injúria para ser absolvido, mas somente se a mulher fosse “honesta” e estivesse trajada com recato (NAVARRO, 1552, v.1, p. 94). É bom lembrar ainda que a expressão “mulher honesta”, utilizada na qualificação das vítimas de delitos de natureza sexual, só foi eliminada do atual Código Penal em fins de 20035 e que os códigos de 1830, 1890 e 1932 reduziam a pena no caso de a vítima de estupro ser “mulher pública” ou prostituta.

A RESISTÊNCIA

FEMININA À SOLICITAÇÃO NO

B RASIL COLONIAL

Antes de examinar a documentação, procurando analisar situações que indicam a resistência das mulheres diante da solicitação, é necessário entendermos em que contexto essa reação se dá. Entre as 288 denúncias de solicitação das quais foi possível estabelecer a data, 216, isto é, 75%, ocorreram entre 1730 e 1760. Esse período foi marcado por um grande esforço por parte da Igreja para melhorar a organização eclesiástica no Brasil. Esforço que compreendeu o desmembramento do bispado do Rio de Janeiro, em 1745, pela criação dos bispados de São Paulo e Mariana, e as prelazias de Cuiabá e Goiás, constituindo uma estrutura administrativa eclesiástica que perduraria cem anos, já que novos desmembramentos só foram feitos a partir de 1848, quando Porto Alegre tornou-se sede de bispado. Essa nova divisão administrativa foi acompanhada da criação de paróquias, possibilitando melhor assistência à população. Também nesse período, destaca-se a ação reformadora episcopal, na procura de estabelecer maior controle sobre o clero paroquial e aprimorar sua formação intelectual e comportamento moral, preocupações refletidas nas Cartas Pastorais escritas pelos bispos da época. Verificam-se, ainda, a criação de seminários; a implantação das chamadas Conferências de Moral, destinadas a melhor capacitar o clero para o exercício de suas funções; e o estreito controle sobre as ordenações e licenças para pregar e ouvir confissões.Todo esse esforço, ocorrido em meados dos Setecentos, tinha como finalidade ajustar a Igreja colonial aos padrões do Concílio de Trento (1545-1568). A reforma do clero colonial era indispensável para que seus membros se tornassem efetivos agentes da Reforma Católica no Ultramar. Entre as medidas destinadas à sua moralização, destacamos a perseguição aos solicitantes, que corrompiam um dos mais importantes instrumentos usados para difundir as normas do catolicismo tridentino, o sacramento da penitência. Assim, coube aos bispos estimular o combate à solicitação, e ao Santo Ofício puni-la. 204

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É muito significativo que, considerando as denúncias registradas nos índices de solicitantes do Tribunal de Lisboa, tenhamos, no século XVII, 5,7% delas provenientes do Brasil, taxa que sobe para 28,2% no século XVIII.6 Dos 113 clérigos processados por solicitação nos séculos XVII e XVIII, 99, isto é, 87,6% foram julgados pelo Tribunal de Lisboa. Desses 99, pelo menos 21 ou 21,2% dos processos são provenientes do Brasil.7 Por outro lado, verificamos que os solicitantes constituem 38,5% dos sacerdotes processados pelo Santo Ofício português, entre os séculos XVI e XVIII, seguidos dos sodomitas, que representam 9,6%, e dos molinosistas, que formam 6,5% dos réus eclesiásticos. A solicitação foi, portanto, o delito cometido pelo clero que mais preocupou os inquisidores, delito cuja perseguição no Brasil atingiu o auge no século XVIII, quando 79,7% dos solicitantes foram processados.8 Obviamente, esse contexto favorecia as denúncias, que, em grande parte, eram fruto dos conselhos de outros confessores. Entre as denúncias encontradas, 228 contêm interessantes informações sobre o papel do próprio clero no combate à solicitação. Em 80 denúncias, essa intervenção é citada explicitamente. Dentre essas, 48, isto é, 60%, foram feitas por cartas escritas e enviadas aos comissários, em nome das penitentes, por outros confessores, que as alertaram para a obrigação de denunciar. As outras 32, que representam 40% das denúncias realizadas a mando de outro confessor, foram feitas diretamente aos comissários pelas mulheres, pois poucas sabiam escrever. Num universo de 503 denunciantes, encontramos apenas 14 denúncias escritas pelas próprias solicitadas, o que reflete a precária educação dada às mulheres na colônia (LIMA, 1986; SILVA, 1981). Entre as restantes das 228 denúncias que fornecem informações sobre quem alertou para o dever de denunciar, quatro foram feitas por escravas, aconselhadas por seus senhores, um deles padre; em três casos, as solicitadas esclareceram apenas ter “ouvido dizer” que eram obrigadas a procurar o Santo Ofício; e somente três demonstraram conhecimento do edital sobre a solicitação, o que mostra que sua divulgação foi insuficiente ou ineficaz. As outras 138 denúncias, apesar de não esclarecerem os motivos que levaram as penitentes a denunciar, apresentam outros dados significativos: 76, ou seja, 55% delas, foram escritas e encaminhadas por clérigos e, embora não se diga que eram confessores, pode-se supor que o eram, pois dificilmente matéria tão delicada seria tratada com um padre fora da confissão. Podemos supor, portanto, que entre as 228 denúncias selecionadas, 156, ou seja, 68,42%, se deveram à intervenção de outro confessor. Entre as denúncias que não especificam por quem foram aconselhadas, 40 foram feitas pelas próprias solicitadas e 21 por pessoas leigas, em sua maioria homens, entre os quais se encontra o único familiar envolvido (LIMA, 1990). Mesmo nesses casos, a ação de outro confessor podia se fazer sentir. Quando Francisco Félix Xavier H ISTÓRIA ,

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denunciou, em 1746, no Piauí, o Padre Valentim Tavares de Lima de haver solicitado Joana de Souza, explicou que a solicitação ocorrera havia dois anos e que não denunciara antes por inadvertência, até que “dando conta” ao seu confessor, soube da obrigação de fazê-lo (IAN/TT/IL. Caderno dos Solicitantes 26: 119). Os próprios confessores, engajados no movimento de reforma clerical estimulado pelos bispos, foram, portanto, aliados das mulheres na hora de denunciar os solicitantes. Por vezes, conseguiam desencavar solicitações ocorridas há muitos anos. Das 65 denúncias que fornecem essa informação, 15 foram feitas em menos de um ano após a solicitação; 21 entre 1 e 4 anos; 12 entre 5 e 9 anos; 9 entre 9 e 12 anos; e 3 entre 13 e 16 anos. Há, ainda, três denúncias feitas 20 anos após o fato, e mais três ocorridas 30 anos depois. Em outras duas, as mulheres informam simplesmente terem sido solicitadas havia muito tempo. Entre os confessores que atuaram na perseguição aos solicitantes, figuram com destaque os missionários. As missões proporcionavam às mulheres a oportunidade de se confessar a outro sacerdote que não o pároco ou capelão responsável pela freguesia em que habitavam, e que as havia solicitado. Entre os anos de 1730 e 1765, pelo menos 34 confessores foram denunciados por missionários. Um caso interessante, que demonstra o empenho, às vezes exacerbado, dos missionários nessa tarefa, é o de Frei Antonio do Extremo, que percorreu, entre 1740 e 1753, os sertões de Goiás, Minas, Mato Grosso e São Paulo, chegando até a Colônia do Sacramento (HOORNAERT, Tomo II/1). Frei Antonio denunciou quatro casos de solicitação, entre os quais um apresenta um detalhe intrigante. A solicitada, após escrever do próprio punho a carta-denúncia, procurou o comissário para dizer que tinha escrito “muitas palavras que não passaram na verdade e só acresceu por satisfazer às persuasões do padre missionário”. Acusou, então, o frade de, depois de ler a carta original, dizer que “não estava boa e que acrescentasse”, o que fez, embora não se lembrasse exatamente das palavras que usara. Confessando depois com um terceiro sacerdote, este a repreendera, mandando-a retratar-se com o comissário. Os acréscimos exigidos por frei Antonio do Extremo serviam para caracterizar indiscutivelmente o caso como solicitação, pois, segundo a moça, o acusado apenas lhe dissera na hora da confissão que fosse à sua casa porque queria lhe falar. Mas, na denúncia, afirmara que ele lhe fizera declarações de amor, perguntandolhe onde dormia e querendo saber se na sua camarinha tinha janela por onde entrar. Conta ainda a solicitada que, antes de procurar o comissário, relatara ao suposto solicitante o que ocorrera, perguntando-lhe por que a chamara à sua casa. O padre respondeu que era para aconselhá-la a não casar com certo moço e mandou-a retratar-se (IAN/TT/IL. Caderno dos Solicitantes 26: 352). Fossem ou não justificadas as desconfianças do missionário acerca das intenções do confessor, essa complicada história mostra como a dinâmica da perseguição aos solicitantes abria espaço para a reação feminina. Mas, se, por um lado, o 206

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zelo missionário incentivava e até agravava as denúncias, por outro, os acusados também atuavam junto às mulheres, tentando dissuadi-las de denunciá-los, como mostra outro caso, também revelado por frei Antonio do Extremo. O missionário comunicou ao comissário do Santo Ofício que, em confissão, duas mulheres haviam acusado padre Antonio Ribeiro da Cruz: uma delas, de ceder aos convites que ela própria lhe fizera na confissão, do que decorreu terem mantido trato ilícito durante seis anos; outra de ter sido solicitada por ele. No dia em que ouviu essas confissões, recebendo das mulheres licença para fazer as denúncias, frei Antonio do Extremo foi almoçar em casa do vigário Bento de Araujo Freitas. Aí encontrou o livro Félix Potestas e pôs-se a lê-lo, até ser chamado para a mesa, deixando o livro com a folha que estivera lendo marcada com uma dobra. Passados oito dias, padre Antonio Ribeiro da Cruz procurou o missionário, levando duas cartas em que as mulheres lhe retiravam a autorização para denunciar em seu nome, por intencionarem procurar diretamente o comissário. Esclarece o missionário que, ao entregar-lhe as cartas, disse o acusado que o vigário Bento de Araujo Freitas soubera, pela folha dobrada do livro, que o frade estivera lendo sobre a matéria da solicitação e o alertara para que, se tivesse alguma culpa, “cuidasse de a remediar”; por isso ele procurara as ditas mulheres e lhes pedira as cartas. A história causa estranhamento, pois não vemos muito sentido no fato de o acusado revelar ao denunciante suas estratégias para inocentar-se. De qualquer modo, mesmo sem a licença, que afinal lhe fora cassada pelas mulheres,9 o missionário procurou o vigário da vara10 – na falta de comissário – e depôs judicialmente sobre o que ocorrera (IAN/TT/IL.Caderno dos Solicitantes 26:358). Esse caso mostra que, se, por um lado, as mulheres encontravam apoio no próprio clero para denunciarem os solicitantes, por outro tinham que resistir à pressão dos acusados, que lhes dificultavam a reação, como se verifica na da história vivida pela crioula forra Caterina Alvares Mousinho, que teve a coragem de denunciar o vigário da vara de São João d’El Rei. O missionário frei Luís Maria de Fulgino, que promoveu a acusação de cinco solicitantes nas Minas Gerais, entre 1746 e 1755, ouvindo Caterina em confissão, alertou-a da obrigação de denunciar o padre José Bernardo da Costa, vigário da vara, por solicitar e perseguir sua filha adolescente, de nome Theodora. Para fazer a denúncia, a mulher procurou o pároco da Igreja de Santo Antonio de Val da Piedade, que, imediatamente, percebeu a gravidade da situação em que se encontrava envolvido. Tanto que, ao escrever, na falta de comissário do Santo Ofício no local, ao vigário-geral11 Lourenço de Queirós Coimbra, deixou claro que tivera a preocupação de advertir várias vezes a negra de que aquilo “não era brinquedo de meninos, que só dissesse a verdade pura”. Mas, acrescentou, o fato é que o caso já era de domínio público. O vigário da vara, como relatou Caterina, além de solicitar a menina, vivia importunando-a na rua e chegara a oferecer-lhe vinte oitavas de ouro pela filha. H ISTÓRIA ,

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Por outro lado, a menina, donzela, vivia sob guarda de seu pai – que era branco e tinha título de capitão –, só saindo de casa para ir à missa em companhia da mãe, que não morava com eles. Em suma: tinha bom crédito e reputação, o que dificultava qualquer argumento em favor do vigário da vara. Assustado com o fato de ter que incriminar uma autoridade da Igreja, o pároco ainda procurou o pai da garota, aconselhando-o a casá-la com certo moço seu pretendente. O pai entendeu o recado e insistiu para que mãe e filha retirassem a queixa, ameaçando levar Theodora para umas lavras distantes do arraial. De nada adiantou, Caterina persistiu na acusação, o que levou o próprio vigário da vara a intervir, chamando as duas à sua casa com ordem de prisão e obrigando a menina a depor judicialmente, longe da presença da mãe, que ficara em outra sala. Segundo o pároco denunciante, Theodora confirmara a solicitação, mas o vigário da vara forjara, em sua própria defesa, uma certidão falsa, com quatro testemunhas, que permaneceram atrás de uma cortina na hora do depoimento. A certidão dizia que a menina, ao depor, acusara o pároco de tê-la induzido a acusar falsamente o vigário da vara, em troca de dois escravos. Como se pode ver, os temores do pároco se confirmavam e a corda poderia arrebentar, como sempre, do lado mais fraco. Garante então ao vigário-geral que isso não passava de mentira, e que mãe e filha estavam dispostas a esclarecer a verdade publicamente na hora da missa. Com o agravamento da situação, o pai de Theodora acaba por afastá-la do arraial, enquanto o vigário da vara corria à Mariana com a declaração, supostamente falsa, com a qual, segundo o pároco denunciante, pretendia “fazer-lhe a cama e tirá-lo da igreja” (IAN/TT/ IL, Caderno dos Solicitantes 30: 56). A história de Caterina é muito significativa, pois mostra uma crioula forra e uma menina mulata, sendo capazes de enfrentar não somente as autoridades eclesiásticas, mas também o pátrio poder, nesse caso, de um homem branco e de posses, que, mesmo assim, se acovardara em vez de defender a honra de sua filha. Talvez porque, nesse caso, a menina fosse bastarda e filha de uma negra. Outra mulher que se mostrou mais corajosa do que o marido na hora de enfrentar as afrontas cometidas por um clérigo foi Maria Pereira. Seu marido, crioulo forro como ela, tentou impedi-la de denunciar o Padre Cosme Mendes da Silva, dizendo-lhe “[...] que não falasse nisso, que não era cousa em que falasse”. Ainda assim, por ser mulher casada “[...] e não poder sair fora, senão com seu marido”, ela pediu em segredo a outro confessor que fizesse a denúncia, não se submetendo às ordens maritais (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 30: 163). Por vezes, os sacerdotes chegavam às vias de fato, no afã de impedir as mulheres de denunciá-los, como fez frei Sysnando Nunes de Quadros, vigário da povoação de Urubu, na Bahia, no ano de 1750, com Ignácia Duarte, mulher casada que, ao ser solicitada, retrucou que “[...] se ele não a confessava por esse motivo ela se levantava e havia de dizer publicamente o que ele estava de todo dizendo”. 208

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Intimidado, o frade se recompôs, terminando de ouvir a confissão, mas não tardou em vingar-se, mandando que dois negros dessem uma surra na mulher, que ficou coberta de “pisaduras e feridas no rosto, quase cega, doente em uma cama” (IAN/ TT/ IL, Códice 5670, Caderno dos Solicitantes 31, p. 162-231). Além de correrem riscos desse tipo, as mulheres que resolviam denunciar os solicitantes viam a sua vida devassada pelo conjunto de inquirições destinado a estabelecer o “crédito da testemunha”. Nesses inquéritos, somente homens eram ouvidos,12 devendo atestar se as denunciantes eram pessoas de bom procedimento, reputação e verdade e, portanto, se lhes devia dar crédito nas denúncias que faziam. As respostas deixam claros os critérios usados nessa avaliação: “[...] são pessoas de melhor procedimento que tem esta terra, muito honestas e sisudas e de muita verdade pois sendo filhas de pais que as criam com reputação e recolhimento [...]” Ou: “[...] são pessoas de crédito e boa reputação vivendo com boa opinião, uma em casa de seu irmão e outra em casa de seu pai com muita modéstia e honestidade e julga se deve dar inteiro crédito aos seus ditos [...]” Ou ainda: “[...] como não conhecia não disse nada do seu bom ou mau procedimento, mas o devia avaliar pelo de seu irmão Francisco Gomes, que não pode deixar de ser bom o da dita Maria Gomes” (IAN/TT/IL, Códice 8174). Ou, ao contrário, “[...] sabe de ciência certa que é de mau viver no seu procedimento pois vive fora da companhia de seu marido” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 162). O crédito das mulheres estava, como vemos, sempre vinculado à tutela masculina, fosse do pai, marido ou irmão, mas a posição social e a origem étnica da denunciante também interferiam nessa avaliação. As oito índias que depuseram contra o padre Ventura de Albuquerque, processado em 1764, foram colocadas sob suspeição por vários depoentes, apenas pelo fato de não serem brancas. Um deles esclarece que, apesar de nada saber que desabonasse a conduta das mulheres, era de opinião que não se devia dar-lhe crédito em juízo ou fora dele porque, pelo conhecimento que tinha da “nação índia”, sabia “[...] serem pessoas de procedimentos vis, de pouco crédito e costumadas a mentir como também serem muito maldosas, de má consciência, costumadas a faltar a verdade e levantar testemunhos falsos”. Nesse caso, o Tribunal se mostrou bem mais coerente e sensato que o depoente, ao afirmar que [...] as debilidades que as testemunhas opõem ao crédito das índias fundam em uma generalidade transcendente a toda nação, o que é inadmissível porque então se seguiria que nenhuma poderia depor em juízo, o que é alheio às disposições de direito, por não serem compreendidos no édito proibitório, e bem contrário à praxe, ainda deste tribunal, que se não as considerasse capazes, não mandaria perguntar, e ratificar as testemunhas [...] (IAN/TT/IL, Códice 5670).

Assim, o padre acabou condenado por solicitação, apesar dos preconceitos coloniais. H ISTÓRIA ,

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As negras e mulatas sofriam a mesma sorte. Depondo sobre o crédito de Mônica, parda e escrava, José Mota de Araújo afirmou com desdém: [...] tem seus filhos, cujos pais ignora ele testemunha porque não é casada [...] porém não sabe que a mesma seja mentirosa nem levantasse falso testemunho [...] mas tem ele testemunha para si que a dita Mônica como mulata que é escrava não falaria verdade por ser semelhante casta de gente sempre propensa a falar mal de qualquer pessoa sem exceção alguma.

A concessão de crédito a mulheres dessa condição constituía exceção. A denunciante do pároco da freguesia de Parnaguá, no Piauí, foi apresentada por Francisco Xavier da Rocha, que encaminhou sua denúncia, da seguinte maneira: “Joana de Souza, casada, com sua casta de parda, porém com estimação e tida por verdadeira”. Sem dúvida, contribuiu para esse julgamento o fato de Joana ser casada e, portanto, inserida nos padrões sociais desejáveis e, sobretudo, apesar de parda, filha do coronel João de Souza (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 26, p. 119). Já Domingos Vianna, ao denunciar “de ouvida” as solicitações de padre Pedro da Silva, explicou que não o fizera antes porque uma das testemunhas era escrava, “de pouco ou nenhum crédito”, e da outra não se lembrava bem quem fosse, mas estava certo de que “não foi pessoa de suposição ou crédito” pois seria “ou índio ou escravo, gente de muito pouco crédito” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 27, p. 160). Às vezes, porém, o preconceito abria frestas permitindo que algumas denunciantes fossem acreditadas. Assim, a escrava baiana Antonia Barbosa teve sua denúncia considerada verdadeira, apesar de ser “[...] mulher preta mundana, como o são as demais negras da terra” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 19, p. 582). Além da questão racial propriamente dita, havia a distância cultural a impedir que essas mulheres fossem levadas em consideração. O depoimento de Antonia Barbosa é considerado verdadeiro também por ser ela “[...] muito ladina e com entendimento com termos que se lhe pode dar crédito a seus ditos”. Algumas mulheres reconheciam seus próprios limites para fazer a denúncia nos moldes exigidos. Domingas Cardosa, preta escrava, casada com um mulato forro, ao denunciar frei Euzébio dos Anjos, mercedário do Maranhão, desculpou-se por não saber precisar a data em que isso aconteceu “[...] por ser uma preta, que não atende com tanto cuidado a eras e a tempo” (IAN/TT/IL Caderno dos Solicitantes 19, p. 582). Mas, se as diferenças culturais dificultavam a determinação da data da solicitação, não impediram, contudo, que as negras soubessem que os confessores, ao solicitarem-nas, estavam infringindo códigos morais e religiosos, e algumas chegavam a repreendê-los abertamente. A mesma Domingas Cardoso, que se atrapalhava com as datas, ao denunciar outro confessor, padre Thomaz Lourenço de Aguiar, contou o seguinte: na véspera da desobriga, à noite, o pajem do vigário viera à sua casa com um recado para que fosse à igreja, pois o padre queria falar-lhe. A negra não foi, comparecendo apenas na manhã seguinte, para desobrigar-se. O padre a ouviu de confissão sentado em um banco e como ela acabasse de contar os pecados, 210

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perguntou se não tinha mais. Ela respondeu que era só, e ele atalhou: “Tu não te lembras da peça que me fizeste, não?”, dando-lhe em seguida as penitências e a absolvição. Acabada a missa, após ter comungado, Domingas foi para o rancho em que morava com o marido e, para sua surpresa, naquele mesmo dia, recebeu a visita do vigário. No meio da conversa, ela perguntou que história era aquela de peça, travando os dois o seguinte diálogo: – Te mandei chamar, por que não fostes? – Porque ia me confessar e não havia de ir a semelhante chamado. – Não sabias para que era. – Sim, àquelas horas, que podia ser mandar chamar uma mulher casada, que não tinha aí seu marido? – És muito escrupulosa [replicou o padre como fazendo admiração ou desprezo irônico]. Ainda que isso fosse algum ato desonesto isso não importa antes da confissão; leva-se para a confissão (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 27, p. 188).

Maria das Neves, preta casada com Carlos da Silva, branco, morador no Arraial do Boqueirão, freguesia de Francisco das Chagas em Pernambuco, ao denunciar que padre Manoel Lopes da Costa a havia solicitado, pegando-lhe “nos peitos e nos beiços convidando-a para atos desonestos”, conta que o repreendeu por ser “aquele lugar impróprio para tais maldades”. A explicação dada por Luzia, escrava angola do capitão Hierônimo de Albuquerque, para o comportamento pouco recomendável do padre Manoel Cardoso de Andrade, foi ainda mais reveladora da consciência crítica das mulheres, a respeito dos solicitantes. Inquirida como uma das mulheres solicitadas pelo capelão do Engenho do Cunhaú, Luzia afirmou que julgava não ter o dito padre “[...] muito assento no miolo pela freqüência que tinha de solicitações no confessionário” (IAN/TT/IL, IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 27, p. 167 e Caderno dos Solicitantes 31, p. 16). Essas atitudes, tomadas por mulheres negras, forras ou escravas, são muito significativas, pois mostram que, mesmo elas, sobre as quais recaía o maior peso da misoginia aliada ao racismo, não se submetiam totalmente aos abusos por parte dos homens, ainda que fossem brancos e preeminentes na sociedade. Mesmo para as brancas de boa condição social e vivendo dentro dos padrões exigidos, romper com a barreira do silêncio e denunciar os agressores significava colocar em risco a sua própria reputação. A carta enviada ao comissário do Santo Ofício, em 1792, por padre José Correia de Queirós, da Capitania de Goiás, mostra como os solicitantes costumavam se defender acusando suas vítimas. O padre fora denunciado de haver solicitado Maria Francisca, filha de Antonio Francisco de Barros, que assim relata o acontecido: “Resistindo-lhe a penitente ele a quis violentar, com desordenado e furioso ímpeto de que resultou grande escândalo às pessoas que o presenciaram”. Com efeito, ao ouvirem os gritos de Maria Francisca, que se achava a sós com o padre, H ISTÓRIA ,

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num dos cômodos da casa, as pessoas correram a acudi-la, deparando-se com o confessor “atracado na moça com tão cega fúria, que lhe rasgou a saia”. Pego em flagrante, o sacerdote defendeu-se da seguinte forma: Sendo vigário na freguesia do rio das Velhas, e pela distância de alguns moradores fui desobrigar em sua casa aonde se achava uma mulher casada a qual vivia com bastante lassidão nos costumes contra a castidade, e pela fragilidade humana, e com alguma inadvertência sucedeu fazer eu na ação desonesta tocando nas suas partes pudendas tendo-a confessado, de que logo caindo em mim tive sumo pesar; e cuidei em ver modo de me acusar e como a paragem é remota bastantamente: o não pude logo fazer por cujo motivo é também me achar gravemente enfermo vim para este distrito de São Vicente Pereira não só com ânimo de me curar como de fazer esta diligência, porém como a moléstia tem sido gravíssima tomando remédios continuamente tem esta sido a causa desta omissão por me achar ainda agora com a mesma indisposição como consta da certidão que remeto e por não demorar mais esta diligência tomei este expediente de me denunciar por este modo a Vossa Mercê, como ministro condigno do Tribunal do Santo Ofício (IAN/TT/IL, maço 247, nº 2798, grifo nosso).

Além da “lassidão nos costumes”, outro tipo de acusação podia atingir essas mulheres, com vistas a desqualificar suas denúncias, como ocorreu com Joana Maria Teresa da Luz, moça branca e donzela, a quem padre João Cordeiro perguntara, na confissão, “se tinha tido tocamentos nas partes ocultas”. Como a moça retrucasse nunca ter chegado com as mãos às referidas partes, disse-lhe: “Não creio, pois nem os mesmos sacerdotes vivem isentos disso, e só Maria foi privilegiada neste particular”. Reafirmando Joana que “não sabia, nem queria saber, que cousa eram os tais tocamentos, o dito padre lhe fez com o dedo ações insinuativas de como se faziam”. Não satisfeito, o sacerdote perguntou-lhe, ainda, se tinha pensamentos torpes com os confessores e se não tivera alguns com ele próprio e, ao ver que ela ia levantar-se, disse-lhe “[...] que não estranhasse o fazer-lhe semelhantes perguntas, pois o fazia, por saber que as mulheres são vergonhosas em explicar na confissão aquelas matérias”. Em sua denúncia, a moça observava que o padre “estava sorrindo nestas cousas e perguntas”. Compreensivelmente, a moça ficara perturbada com o que acontecera, o que fez com que o confessor que encaminhou a denúncia, frei Manoel de São Diogo, do Convento de Santo Antônio, juntasse a essa a observação de que ela estava sendo “muito vexada pelo demônio”. E, mesmo reconhecendo a seriedade da vítima, não deixou de abrir uma possibilidade para a defesa do acusado, alegando que “[...] bem poderia ser ilusão do mesmo [demônio] o referido na denúncia, ainda que julgasse o contrário por sempre achar Joana em seu juízo perfeito todas as vezes em que precisou falar com ela” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 30, p. 356). Outros sacerdotes, além do padre João Cordeiro, se excediam nas perguntas, confiantes de que o recato e o medo impediriam as mulheres de denunciálos. A parda Estácia Pinta Caldeira, casada com o branco Caetano Pacheco, denunciou padre Alexandre de Almeida por dizer no confessionário palavras 212

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das quais desconfiara, “[...] as quais palavras eram perguntar-lhe por cousas dos atos sexuais que licitamente ela tinha cometido com seu marido, mas que estas perguntas eram com tal miudeza que a envergonhavam, e estranhava por não lhas haver nunca perguntado outro confessor, e falava pelos próprios nomes nos instrumentos feminil e viril” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 30, p. 79). Também era comum que os padres tratassem com ironia, desprezo e violência as mulheres que se negam a satisfazer-lhes os desejos. Quando a parda forra Ana Maria dos Serafins repeliu as propostas de padre Bento de Souza Álvares, alegando que viera “[...] lavar-se dos seus pecados dos quais se arrependia”, o confessor retrucou que “[...] deixasse o arrependimento para a hora da morte e que ela tinha maiores culpas e contudo continuava nelas deixando o arrependimento para a hora da morte”. Em seguida, “se animou a querer-lhe levantar a saia” aproveitando-se de que a igreja estava vazia. Desvencilhando-se, a mulher saiu para a rua e o padre seguiu-a, tornando a pegar nela e tentar levantar-lhe a saia, quando ainda descia a ladeira do convento de São Francisco do Rio de Janeiro, em que ficava a capela dos terceiros, onde Ana Maria fora se confessar (IAN/TT/ IL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 208). Mas essas situações de violência não aconteciam apenas com as mulheres pobres, pardas ou negras, como demonstra a história de Quitéria Machada, mulher casada, de 34 anos, moradora do Brumado de Ibituruna, em Minas Gerais. No ano de 1754, Quitéria contou ao vigário da vara de São João D’El Rei que, depois de confessar-se com padre Caetano, ela lhe oferecera uma esmola para que lhe rezasse uma missa. Quando ia levantar-se do confessionário, o padre dissera: “Temme agradado tanto V.Mce. que somente por amor a V. Mce. venho ser capelão dessa Ibituruna”. Quitéria estranhou, retrucando: “De que sorte tenho agradado se não lhe conheço?” O confessor mudou então de assunto, perguntando quando lhe daria a esmola e, ao saber que ela a entregaria a seu marido para lhe dar, objetou que havia “de ser pela sua mão porque ela que a prometera”. Acabada a missa, Quitéria voltou para casa, situada perto da capela. A chegar, seu marido dissera que se preparasse para irem para a Fazenda do Brumado, partindo na frente. Fazia, então, os preparativos necessários para a viagem, quando viu aproximar-se um vulto encapuzado. Era padre Caetano, que viera buscar a esmola. O confessor perguntou-lhe logo pelo marido e, ao saber que saíra, sentara-se ao lado dela no banco da varanda. Quitéria fez menção de levantar-se para buscar o dinheiro, mas o padre disse que tinha tempo, pegando-lhe na renda da camisa. Assustada, a mulher desvencilhou-se e entrou. O confessor, sem se importar com a presença de seus filhos e de uma negrinha escrava, a perseguiu, “[...] encostando-a na parede da casa para lhe fazer a vontade, sem embargo dela estar prenha e lhe pedir pelas cinco chagas de Cristo que a deixasse”. Padre Caetano, que já perdera totalmente o controle e retrucou que “[...] pelas mesmas chagas lhe havia de fazer a vontade e descobrindo suas vergonhas com força pusera nelas as mãos da denunciante dizendo que seu H ISTÓRIA ,

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marido já era velho”. Debatendo-se, Quitéria conseguiu escapulir, fugindo para o quintal, enquanto o padre, inconformado, gritava: “Ainda apanho V.Mce. quando vier à missa”. Obviamente, a mulher deixou de ir à igreja e, com acentuado cinismo, o capelão chegara a perguntar a Antônio, seu filho, “[...] porque razão sua mãe não vinha à missa, que ele [...] não era onça”. “Daí a 3 ou 4 meses, adoecendo ela em razão da prenhez”, deixara a fazenda e voltara para a sua casa junto à capela e “engravecendo a doença por razão de estar a criança no ventre morta, como se viu ao depois”, a família, temendo que Quitéria morresse sem confissão, chamou Padre Caetano para assisti-la. Mas, nem diante do estado grave da mulher, o confessor conseguiu refrear sua luxúria e cinismo. Sentando-se junto à cama, esperou-a persignar-se dizendo então: “[...] sabe porque você está dessa sorte, porque V.Mce. não me fez a vontade”, e mais outras torpezas. Quitéria, indignada, perguntou se vinha confessá-la ou falar semelhantes coisas? Calmamente, o padre respondeu que não era pecado algum e pôs-se a ouvir sua confissão, como se nada tivesse havido. No entanto, o comportamento do padre fez Quitéria duvidar da eficácia de sua absolvição. O confessor, consciente das normas canônicas sobre a validade do sacramento,13 respondeu que não se preocupasse que estava confessada, perguntando, em seguida, “[...] se lhe prometia fazer a vontade quando estivesse boa, ao que ela respondeu que não era do seu gosto e que ele era anti-Cristo que a ia tentar”. O padre, então, absolveu-a normalmente, recomendando-lhe que não confessasse com outro e que, se o fizesse, não contasse nada do que se passara entre eles (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 28, p. 27). Considerando esse quadro, é bastante significativo que muitas mulheres, mesmo assim, tenham tido coragem de denunciar seus agressores, cuja ousadia por vezes não tinha limites, inclusive aquelas que não levavam vida tão exemplar, nem pertenciam às camadas dominantes da sociedade, como Quitéria. É o caso de Faustina de Oliveira, “mulher solteira e dama”, isto é, prostituta, a quem padre Francisco Mendes, vigário de Mogy, perguntou se não “[...] queria se estar por sua conta, e que lhe assistiria com todo o necessário”. Além de repreendê-lo por falar tais coisas em lugar sagrado e posteriormente denunciá-lo ao Santo Ofício, Faustina disse-lhe, ofendida, que “[...] nunca fora, nem pretendia ser amiga de clérigo” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 26, p. 88). História surpreendente também é a de Desidéria, crioula escrava do coronel Gonçalo Freire de Amorim, que, solicitada pelo padre Manoel Cardoso de Andrade, que intentava deflorá-la em troca de algumas “dádivas”, resistiu aos seus desejos para, mais tarde, quando já estava “desonestada”, entregar-se a ele. Depois da cópula, o capelão, decepcionado, queixou-se por ela só ter consentido quando “já estava corrupta” (IAN/ TT/IL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 143; Caderno dos solicitantes 31, p. 16). Outra mulher que, apesar de sua pobreza, resistiu às ofertas comumente feitas pelos sacerdotes em troca de favores sexuais, foi Luzia Caetana da Rocha. Em 214

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Pernambuco, na quaresma de 1761, lastimou-se, no confessionário, da miséria em quem vivia, “[...] carregada de filhos e sem seu marido, nem outro algum arrimo”. O vigário, padre João Francisco Xavier Luis e Paiva, pôs-se, então, a consolá-la, chamando-a para ir ao riacho do Santo Cristo onde lhe daria uma esmola. Desconfiada, Luzia fez-se acompanhar da filha Eufrásia, já mulher. Ao chegar, porém, recebera um recado, de um moleque, para que fosse a outro sítio perto dali, onde o padre acabou solicitando-a “com rogos para pecar com ela”. Ao denunciar o padre ao comissário do Santo Ofício, Antonio Álvares Guerra, Luzia acrescentou que “[...] não consentiria, nem levada do interesse do dinheiro que lhe oferecera para querer o pecado” (IAN/TT/IL, Caderno dos Solicitantes 31, p. 84). Esses casos demonstram que, também para as mulheres pobres, mesmo as que viviam sozinhas, eram escravas ou prostitutas, havia a possibilidade de fazer algumas escolhas na sua vida sexual, resistindo às tentativas dos padres de se aproveitarem de sua pobreza.

CONCLUSÃO Esse conjunto de histórias, reveladas pela documentação inquisitorial relativa à solicitação, evidencia que, mesmo em situação de desfavorável, numa sociedade machista e misógina como a do Brasil Colonial, as mulheres não se submeteram totalmente à dominação masculina, vinculada ao patriarcalismo, entendido como modelo ideológico que perpassava todas as classes sociais, a despeito de sua estrutura familiar. Particularmente em meados do século XVIII, aproveitando-se de uma conjuntura especial de perseguição aos solicitantes – estimulada pelo episcopado, empenhado em promover no Brasil as determinações do Concílio de Trento, inclusive quanto à qualidade intelectual e moral do clero –, mulheres de diferentes condições sociais reagiram contra a solicitação praticada por seus confessores, enfrentando diversos obstáculos para denunciá-los à Inquisição. Esses exemplos, uma vez conhecidos, certamente servirão para desmistificar o modelo patriarcal que, ainda hoje, constitui referência para as relações de gênero na sociedade brasileira e legitima, pela tradição, a submissão feminina. Servirão também para estimular as mulheres a denunciar os casos de assédio e violência sexual de que continuam a ser vítimas, e que permanecem subnotificados, apesar dos inegáveis avanços que a condição feminina tem tido na sociedade brasileira contemporânea.

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1. Gilberto Freyre admite, ao lado do patriarcado dominante e formalmente ortodoxo, a existência de famílias “parapatriarcais, semipatriarcais e mesmo antipatriarcais”, apontando que, do ponto de vista católico romano, essas formas não são nem mesmo consideradas como organizações familiares. Mas adverte que essa não pode ser a perspectiva do sociólogo, que deve reconhecer nelas formas diferentes de organização familiar, sem confundi-las com promiscuidade (FREYRE, 1975, p. 65). Caio Prado Júnior também menciona a existência de um grande número de famílias cuja união não era legalizada, alertando para que esse fato não seja simplesmente atribuído à indisciplina sexual, mas seja entendido como fruto, em grande parte, das dificuldades para se contrair matrimônio na Colônia. Chama, ainda, a atenção para o fato de que essas uniões, pela sua abundância, acabaram aceitas na sociedade colonial brasileira (PRADO JÚNIOR, 1976, p. 352-353). 2. Essa discussão originou-se da afirmação da cordialidade como traço característico do brasileiro, feita por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, a qual deu margem a inúmeros debates (HOLANDA, 1971). 3. Encontramos apenas cinco sacerdotes acusados de solicitar homens, todos em meados do século XVIII. Essa baixa incidência talvez se explique pelo fato de que era mais fácil para os padres terem encontros reservados com pessoas de seu próprio sexo do que com mulheres, fazendo com que não precisassem arriscar-se, cometendo um delito de foro inquisitorial; ou talvez porque temessem reações escandalosas dos homens, comportamento mais difícil de acontecer, tratando-se de mulheres, que tinham, como até hoje têm, maiores restrições quanto a expor publicamente fatos desse tipo, até pelo medo de serem colocadas sob suspeição de havê-los provocado. 4. O Código Penal Brasileiro define, no art. 216-A, “assédio sexual” como: Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena detenção, de um a dois anos. Dispositivo introduzido pela Lei n. 10.224, de 15.5.2001. O Projeto de Lei original previa um parágrafo único ao art. 216-A. Por meio dele, também cometeria o crime quem agisse: “I – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; II – com abuso ou violação de dever inerente a ofício ou ministério” [grifo nosso]. Esse parágrafo foi vetado com a justificativa de que descrevia situações que já estavam previstas, como causas especiais de aumento de pena, no art. 226 do CP (se o agente de crime contra os costumes for ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela). Essa justificativa não é aceita por Damásio E. de Jesus, por considerar que, sem o veto, poderiam ser punidas todas as espécies de assédio sexual, “inclusive os provenientes do abuso de dever inerente a ministério religioso” (grifo nosso), considerado como assédio atípico. Julgamos, portanto, poder assemelhar a solicitatio ad turpia ao crime de assédio sexual (Disponível em: http://www.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2386). 5. Até então, o Código Penal atual (Decreto Lei 2.848, de 7.12.1940) definia “posse sexual mediante fraude” como “[...] ter conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude (Art. 215) e “atentado ao pudor mediante fraude”, como “[...] induzir mulher honesta mediante fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (Art. 216). 6. Os números absolutos são: no século XVI – 610 denúncias, 35 oriundas do Brasil; no XVIII – 1.539 denúncias, 427 do Brasil (IAN/TT/ IL, Códice 775).

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7. Encontramos mais 26 casos de solicitação na Colônia que deram efetivamente origem a inquéritos judiciais, levados a efeito por comissários locais, segundo instruções dos inquisidores de Lisboa, e mais cinco casos em que o promotor do Santo Ofício, em vista das denúncias registradas nos cadernos dos solicitantes, requereu à Mesa que mandasse fazer judiciais as acusações, pedido que foi deferido. Se esses casos tiverem, efetivamente, originado processos, subiriam para 47 o número de solicitantes processados, oriundos do Brasil. 8. Estudos quantitativos mais recentes podem modificar esses números, mas acreditamos, sem reverter as tendências (LIMA, 1990). 9. É preciso não esquecer que a obrigatoriedade do sigilo sobre as matérias conhecidas em confissão tornava necessária a permissão das penitentes, para que as denúncias fossem encaminhadas ao Santo Ofício em seu nome. 10. O vigário da vara era representante do bispo em sua diocese, tendo, entre outras, as funções de promover devassas e inquirir pessoas, encaminhando os sumários ao vigário-geral, e dar sentenças em causas sumárias (SALGADO, 1985). 11. O vigário-geral tinha, entre suas atribuições, conhecer todas as causas crimes e cíveis e proceder contra todos que fossem contra o Direito Canônico e as Constituições do arcebispado (SALGADO, 1985). 12. Encontramos apenas um único caso de mulher chamada para depor: Rosa Maciel, que depôs no processo de padre Antônio Álvares Pugas, preso em 1742, acusado de solicitar mulheres no Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais (IAN/TT/IL, Maço 26, nº 256). Não encontramos nenhuma mulher como depoente nos inquéritos sobre a “opinião do delato”, em que testemunhas eram inquiridas sobre a vida e os costumes do acusado. 13. Inicialmente restrito aos bispos e concedido aos padres, sob licença episcopal, por volta do século XI, o poder das chaves, ou poder de absolver os pecados, suscitou inúmeras controvérsias no seio do Cristianismo. Uma dessas questões dizia justamente respeito às qualidades requeridas do confessor para sua eficácia, prevalecendo a convicção de que a absolvição independia da conduta de quem administrava o sacramento (LEA, 1968).

REFERÊNCIAS

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RELAÇÕES DE GÊNEROS , VIOLÊNCIA E MODERNIDADE NAS CRÔNICAS CARIOCAS

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arido cruel”; “Cena de ciúmes e homicídio”; “Infiel e sanguinária”; “Amor alucinado”, “Ciúme, ódio e vingança”; “Marido ultrajado”; “Passional e súbito”; “Amor trágico”; “As tragédias de amor – juntos, foram encontrados os dois cadáveres”; “Ciúme ou loucura? Trágica manhã”, “Um caso triste – um homem tenta matar a esposa a tiros”; “Por ciúmes – agressão à foice”; “Paixão sangrenta”; “Alvejada pelo esposo”; “Matou a esposa com uma punhalada”; “Neurastenia sangrenta”, esses são apenas alguns exemplos das manchetes que se tornavam cada vez mais freqüentes nos jornais que circulavam na cidade do Rio – por exemplo, o Jornal do Commercio e A Noite – nos últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do XX. Em geral, os casos que viravam manchetes e ocupavam espaço considerável na imprensa por vários dias referiam-se a personagens pertencentes aos segmentos sociais privilegiados ou se destacavam pela barbaridade da violência que, às vezes, atingia também os filhos do casal. Vejamos dois exemplos que tiveram ampla repercussão. Na noite de 15 para 16 de julho de 1911, Maria Ferreira Mendes Tourinho tornou-se protagonista de uma tragédia ocorrida numa pequena casa, situada num dos subúrbios do Rio de Janeiro, onde morava com o marido e os cinco filhos. Arthur Damaso Tourinho foi assassinado pela mulher que lhe desferiu três golpes de uma machadinha quando ele dormia. Na delegacia, ela declarou ter matado o marido porque, se não o fizesse, seria morta por ele. Na opinião dos médicos legistas que a examinaram, Maria manifestava, “um raro caso de degeneração mental”, devendo, por isso, ser recolhida a um hospital de alienados para ser examinada com mais calma. Em dezembro de 1912, os jornais do Rio deram todo o destaque de suas edições à “tragédia de Icaraí”. Na madrugada do dia 3, depois de ter passado horas bebendo 220

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com amigos e conhecidos na Confeitaria Paschoal e na sua filial, entre os quais Lima Barreto, o poeta João Pereira Barreto voltou para sua casa em Icaraí e assassinou sua esposa, Anna Levy Barreto, grávida, com um tiro, fugindo em seguida (MORAIS, 1933; ESPOSEL; LOPES, 1914). Cunhado de Sílvio Romero e figura popular nos meios intelectuais da cidade do Rio, João Barreto acabaria contando com o empenho do grande advogado dos “passionais”, Evaristo de Moraes. Submetido a três julgamentos, acabou definitivamente absolvido, sendo “restituído à liberdade e à vida”. Via de regra, contudo, consideradas fatos naturais e banais mesmo quando resultavam em homicídio, as agressões envolvendo relações amorosas e/ou sexuais vivenciadas por trabalhadores (as) eram veiculadas na imprensa em breves notas que se perdiam entre as muitas outras notícias publicadas. Histórias trágicas apareciam em colunas diárias com títulos que se repetiam – “Assassinato”; “Tentativa de Assassinato”; “Ferimentos Graves”; “Ciúmes”; “Navalhada”; “Espancamento”; etc. Naturalizava-se, assim, a violência “passional” entre os segmentos sociais pobres ou miseráveis da população. Foi o caso, entre tantos outros, dos dramas de Maria da Conceição, assassinada a tiros pelo ex-amante Manoel Galdino Sampaio; de Maria Innocência, agredida com uma tesoura pelo marido Domingos Alves da Costa, em janeiro de 1897; de Maria Keller a quem o amásio Casemiro Gewiatorki tentou matar com uma navalha, em novembro de 1899; de Amélia Jorge das Neves, morta pelo amásio José Pereira de Oliveira, em julho de 1901; e de Maria Piedade de Castro, barbaramente espancada pelo amásio Appolinário Deodoro da Silva em fevereiro de 1905. Ou, ainda, de Juvêncio Joaquim Nery, agredido com uma faca pela amásia Rosa em janeiro de 1891; de Olympio de Magalhães, que recebeu um tiro da ex-amante Maria da Conceição Antunes em abril de 1897; de Antônia Maria da Conceição, esfaqueada pela rival Rachel Maria da Conceição em novembro de 1899; e de João Marques Pereira Duarte, ferido gravemente a facadas pela amásia Paulina José da Costa, em janeiro de 1901, para citar apenas alguns exemplos de conflitos nos quais as mulheres foram as agressoras. Os conflitos passionais foram também objeto de muitas crônicas escritas por autores famosos e publicadas em jornais e revistas da época. Antes mesmo de ser proclamada a República, em janeiro de 1889, durante uma epidemia da febre amarela que grassava na corte, Raul Pompéia escreveu uma crônica, na qual abordou a “praga dos uxoricídios”,1 segundo ele “muito pior que a febre amarela e até pior que o recrutamento”.2 E reclamava: “Quase que cada semana é preciso abrir na crônica um quadro, para a notícia de um crime de mais ou menos autêntico ciúme”. Alguns anos depois, em inícios do novo século, João Luso (pseudônimo de Armando Erse) refere-se também, em uma de suas crônicas, ao crescente número de crimes passionais na Capital republicana, noticiados pela imprensa “em títulos monumentais, colunas maciças de pormenores de reportagem”. Em princípios da década de 1920, na crônica intitulada “Os plagiadores de crime”, Benjamim Costallat preocupa-se com H ISTÓRIA ,

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a “propagação assustadora” dos crimes passionais no Rio de Janeiro, afirmando não ter se passado “um dia, dos últimos que acabam de correr, sem que o noticiário dos jornais publicasse um crime passional [...]. Dias houve de dois casos”. Tais afirmações são apenas exemplos que reafirmam a idéia cada vez mais corrente em diversos tipos de registros coevos, segundo a qual se verificava um enorme crescimento dos crimes passionais na cidade do Rio. Como observou Susan Besse, é muito difícil avaliar se houve de fato uma proliferação desses crimes, tendo em vista a dispersão e a incompletude das fontes e, ainda, a subjetividade das estatísticas da época. De qualquer forma, o que parece fora de dúvida para a autora é que podemos observar um redimensionamento das repercussões em torno dos crimes passionais, sobretudo a partir dos anos 1910, quando estes assumiriam um novo perfil, tornando-se objeto de forte preocupação social e passando “[...] a ser vivenciados como algo particularmente ameaçador” (BESSE, 1989, p. 183). Pretendo, portanto, examinar neste artigo como alguns cronistas do período se colocaram diante de tema tão candente.3 Entre os registros produzidos por autores importantes, como Raul Pompéia (1863-1895); Henrique Maximiliano Coelho Netto (1864-1934); Armando Erse de Figueiredo (JOÃO LUSO, 1875-1950); Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922); João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Barreto (JOÃO DO RIO, 1881-1921); Orestes Barbosa (1893-1961); Benjamim Delgado de Carvalho Costallat (1897-1961), selecionei, como objeto de investigação, os que abordaram explicitamente os crimes passionais. Utilizo também alguns registros jurídicos e médicos, a fim de situar as principais correntes teóricas que informaram, na época, os debates sobre a questão. Trata-se, portanto, de buscar identificar e discutir algumas das tensões e disputas que marcaram o campo intelectual e literário4 brasileiro no período, expressas no enfrentamento de questões que envolviam a relação entre gênero, violência e modernidade. Antes de dar início à análise propriamente dita, é importante situar os referenciais que norteiam os termos das relações entre história e literatura, segundo o meu ponto de vista. Como qualquer outra fonte, as crônicas, os contos, os romances e as poesias são produzidos historicamente e, portanto, devem ser inseridos “[...] no movimento da sociedade”, cabendo ao historiador “[...] investigar as suas redes de interlocução social” e elucidar o modo como elaboram ou expressam “[...] a sua relação com a realidade social” (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p. 8-9) – sempre presente, mesmo quando não explicitada. São obras de ficção, mas nem por isso isentas de uma determinada lógica social, cuja identificação e interpretação são pressupostos indissociáveis da análise histórica. Entendo, pois, como Adriana Facina que, [...] mesmo o artista mais consagrado, considerado alguém dotado de um talento especial que o destaca de outros seres humanos, é sempre um indivíduo de carne e osso, sujeito aos condicionamentos que seu pertencimento de classe, sua origem étnica, seu gênero e o processo histórico do qual é parte lhes impõem. Sua capacidade criativa se desenvolve num campo de possibilidades que limita a sua liberdade de escolha (FACINA, 2004, p. 9-10).

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São objetos da análise aqui proposta alguns poucos contos e, sobretudo, crônicas que constituem um gênero literário especial. “Crônicas o que são? Pretextos ou testemunhos?”, pergunta José Saramago, brilhante escritor português da atualidade. Deixemos a resposta com aquele que foi um de nossos maiores cronistas. Segundo Machado de Assis, “[...] minha comadre crônica [...] é uma velha patusca, tanto fala como escreve, fareja todas as coisas miúdas e grandes, e põe tudo em pratos limpos” (“A=B”, GAZETA DE NOTÍCIAS, 1896). Situados nas interseções entre a ficção e a realidade, esses registros são testemunhas-chaves do cotidiano da cidade. Como vimos, segundo Raul Pompéia, os assuntos e acontecimentos em voga tinham obrigatoriamente um lugar garantido nos quadros que compunham as crônicas. Não seria diferente com os crimes passionais. Como os cronistas se posicionaram diante dos novos significados que vinham sendo construídos e difundidos em torno das agressões produzidas por conflitos envolvendo relações afetivas e/ou sexuais? Em primeiro lugar, é possível apreender uma forte presença da perspectiva segundo a qual a mulher seria a verdadeira culpada nesses casos, mesmo quando fosse ela a vítima. Assim, por exemplo, ao narrar o caso do assassinato de Antônio Ramos, ocorrido no centro do Rio, numa crônica de 2 de agosto de 1888, Raul Pompéia responsabiliza Maria de Silos – “[...] uma pardinha de vinte anos, pobre criatura sem educação nem senso moral, anêmica de corpo e alma” – pela tragédia. Em sentido próximo, João Luso, caracteriza Bemvinda – pivô do assassinato de seu suposto amante, Ramiro, por seu marido, Antônio Pataco – conforme os estereótipos em torno da mulata que, com seus “[...] randes olhos molhados de volúpia, boca vermelha e ardente, seio alto, ancas despenhando-se numa curva enérgica, desafiava o pecado no modo de andar, de olhar [...]” (ERSE, 1904, p. 73). Nos casos dos crimes passionais narrados por João do Rio em sua crônica “Crimes de amor” – inserida na famosa coletânea A alma encantadora das ruas (publicada originalmente em 1908) – e no conto “A aventura de Rosendo Moura” (JOÃO DO RIO, 1990), as mulheres, objetos ou pivôs das agressões, são sempre vistas como responsáveis e cúmplices pela violência de seus companheiros. Mais significativo, contudo, é que o raciocínio não seria aplicável para o caso das mulheres agressoras, como Herculana que, tendo matado o amante porque ele a xingara numa briga, é qualificada pelo cronista como “uma fera boceja” (JOÃO DO RIO, 1987, p. 143). Feroz e irracional, ou como no caso de Gladys Fire – protagonista do conto “Cleópatra” (JOÃO DO RIO, 1990) – fria e racional, quando assassinava os amantes que não guardavam segredo, colocando em risco seu casamento milionário, as mulheres são vistas por João do Rio como agressoras atrozes e traiçoeiras, por natureza. Benjamin Costallat defende, na crônica Os plagiadores do crime (COSTALLAT, 1922), que os crimes passionais que se “propagavam assustadoramente” na cidade do Rio, em princípios dos anos 1920, resultavam do plágio característico de “um meio social unido” que “pratica os mesmos crimes como usa das mesmas gravatas”, H ISTÓRIA ,

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onde “os elegantes matam a revólver; eliminam a punhal de prata” e “a plebe assassina com pedras, liquida a enxada”. Segundo o autor, “era sempre o mesmo marido desconfiado ou o mesmo amante ciumento que matava a mesma mulher adúltera ou a mesma criatura leviana”. Veicula-se aqui, mais uma vez, a desqualificação das vítimas femininas das agressões passionais. Na mesma época, Orestes Barbosa, definindo as mulheres em geral como “animaizinhos interessantes e gostosos”, atribui a Alberto Russo, que matou o rival Dourado com vários tiros, o estigma dos “homens fracos que se deixam dominar pelas mulheres”, conferindo implicitamente a responsabilidade da agressão à esposa do agressor. Mas não apenas as mulheres seriam objeto de desqualificação por parte do autor. Na história de amor entre Oscar e Salvador, que resultara na morte de suas esposas, ambos, sob o rótulo da “degeneração” e da “inversão sexual”, são considerados assassinos que “apavoravam seus colegas de prisão” (BARBOSA, 1922). De tudo que foi dito até aqui é possível observar que a construção da modernidade brasileira é tecida a partir da reprodução de antigos valores morais relativos a uma suposta natureza feminina, relidos e atualizados no bojo das profundas transformações visíveis, sobretudo nos contextos urbanos mais importantes. Como assinalou Susan Besse, as profundas rupturas que desencadearam a desestruturação da sociedade escravista brasileira tenderam “[...] a enfraquecer os laços familiares, a proporcionar novas aspirações e opções às mulheres e, por conseguinte, intensificar os conflitos entre os sexos” (BESSE, 1989, p. 186). Note-se, contudo, que, como ressalta a própria autora, as transformações nos comportamentos femininos, decorrentes da modernização, afetaram, principalmente, os hábitos e valores das mulheres de classe média que passaram a ter oportunidade de gozar maior autonomia, por meio do trabalho, por exemplo. Nesse sentido, é preciso não esquecer que as expectativas e escolhas das mulheres trabalhadoras já se pautavam sobre referenciais comportamentais específicos e, portanto, considerar os significados distintos das repercussões dessas mudanças nas relações e conflitos entre homens e mulheres pertencentes àquela classe social. Lima Barreto apreende com profunda sensibilidade as diferenças de classe entre as mulheres, ao criticar duramente a luta de feministas, como Berta Lutz, por interesses específicos das mulheres de classe média. Entre estes, destaca a reivindicação do acesso feminino aos empregos públicos que, segundo o autor, além de não representar uma ruptura efetiva da dependência econômica das mulheres (que para sobreviverem continuariam dependentes do trabalho masculino), nada tinha a ver com a realidade das mulheres pertencentes à classe trabalhadora. Estas, afirma ironicamente, não haviam dependido do “feminismo burocrático” para sobreviverem e sustentarem suas famílias trabalhando duramente até idades avançadas, como no caso da operária negra citada em “A Poliantéia das burocratas” (LIMA BARRETO, 1961). A percepção de diferenças que se sobrepõem a uma natureza feminina não é tão evidente, nem possui o mesmo significado político em outros olhares dos 224

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cronistas aqui considerados. Como vimos, no âmbito explícito do discurso de João do Rio, por exemplo, é possível identificar a reafirmação da existência de uma natureza característica da mulher (no singular). Ainda que partilhassem traços do que poderia ser qualificado como uma essência feminina – como a maldade e a dissimulação –, Herculana – “[...] uma negra roliça, de dentes afiados” (JOÃO DO RIO, 1987, p. 143) – não partilhava uma mesma identidade com a rica e excêntrica americana Miss Glayds Fire, do conto “Cleópatra” (JOÃO DO RIO, 1990). Diferenças étnicas e de classe faziam da primeira uma “fera irracional”, enquanto a segunda era dona de uma “inteligência refinada e calculista”. As agressões de mulheres e de homens por seus parceiros amorosos e/ou sexuais e rivais não são, evidentemente, uma novidade no alvorecer do século XIX. Até princípios do século XX, as situações definidas como adultério eram reguladas pelas determinações das Ordenações Filipinas que conferiam ao marido “traído” o direito de matar sua esposa e o rival, desde que este último não fosse de “maior condição que o marido” – nesses casos haveria obrigatoriamente a intervenção da Justiça régia (SAMARA, 1995). Com a promulgação do Código Criminal em 1830, o adultério passou a ser punido com a prisão, cabendo à esposa adúltera a pena de prisão com trabalho por um a três anos (art. 250), enquanto somente o marido que possuísse concubina “teúda e manteúda” seria submetido à mesma pena (art. 251). Os argumentos legais que poderiam levar à absolvição dos(as) acusados(as) nos casos de homicídio, tentativa de homicídio ou ofensas físicas cometidos por parceiros(as) amorosas e/ou sexuais que chegaram ao Judiciário não se pautavam no reconhecimento da irresponsabilidade provocada por impulsos da paixão ou da emoção. De acordo com o Código Criminal de 1830, a inimputabilidade era garantida apenas àqueles que cometessem o crime “sem conhecimento do mal” e sem “a intenção de o praticar” (art. 3o) ou que fossem enquadrados na categoria vaga de “loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos, e neles cometerem os crimes” (§ 2o, art. 10). Entretanto, como lembrou Eni Samara, durante o século XIX, ainda se legislou bastante com base nas Ordenações Filipinas – sobretudo no que se referia a assuntos civis, já que o primeiro Código Civil Brasileiro só seria aprovado em 1916. Entretanto, antes mesmo da aprovação do Código Penal republicano, a privação de sentidos começava a ser apontada nos tribunais como elemento atenuante ou dirimente da culpa ou responsabilidade para as agressões cometidas sob forte impulso da paixão ou da emoção. Hebe Mattos, por exemplo, refere-se ao caso da escrava Justina, que assassinou seus três filhos menores e depois tentou sem sucesso o suicídio, em 1878, no município de Campos (RJ). Em seu primeiro depoimento alegou “[...] que havia sido atentada pelo demônio”. No segundo, já orientada por advogados, fala em privação dos sentidos e que “[...] não se lembrava do que havia feito” (MATTOS, 1995, p. 127). Onze anos depois, na crônica mencionada anteriormente, Raul Pompéia referia-se à indulgência em relação aos criminosos por amor, H ISTÓRIA ,

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pautada na crença de que estes agiam movidos por um “desvario da paixão”. Criticando tal tendência, o cronista afirma: “É esta facilidade de psicologia barata, transplantada para o júri, que tem motivado a repetição dos crimes desta natureza”. Embora pautado nos fundamentos do Direito Clássico, o Código Penal de 1890 inclui em seu texto, o § 4o do art. 27, abrindo a possibilidade legal de absolver os(as) acusados(as) de cometerem crimes passionais – ou de amenizar as penas às quais eram submetidos –, com base no argumento da privação dos sentidos e da inteligência no momento do crime.5 Inspiradas em princípios do Direito Positivo, as defesas desses criminosos buscavam comprovar que, agindo sob os impulsos quer da “duradoura paixão”, quer da “súbita emoção”, no momento do crime, eles apresentavam perturbações psicofisiológicas que os tornavam completamente irresponsáveis por seus atos. Concedia-se, pois, um papel fundamental no tribunal às correntes da Medicina mental que conferiam aos estados emocionais e passionais o status de uma verdadeira obsessão, equiparando-os a uma espécie de loucura, que poderia atingir momentaneamente indivíduos mentalmente sãos. À medida que se disseminavam as absolvições ou penalizações leves de criminosos(as) passionais começaram a se difundir os embates opondo os defensores – entre os quais se destacou o advogado Evaristo de Moraes – e os opositores da inimputabilidade dos passionais – por exemplo, o médico Afrânio Peixoto.6 Concebendo-se como arautos da modernidade, os defensores e os opositores da inimputabilidade não manifestariam em seus confrontos posturas rigidamente fixadas em dois pólos antagônicos, não apenas porque compartilhavam entre si algumas crenças e valores fundamentais, mas também porque, entre as duas posições, é possível identificar muitas outras. À imagem dicotômica e simplificadora opondo os seguidores de Evaristo de Moraes aos que se alinhavam às concepções de Afrânio Peixoto os adeptos do direito clássico versus os defensores do direito positivo, juristas versus médicos, etc. sobrepõe-se a de um emaranhado permeado de tensões e interseções. Se, de um lado, os que condenavam as absolvições e penalizações leves dos passionais não eliminavam de forma absoluta situações de inimputabilidade, de outro, nem mesmo radicais, como Evaristo de Moraes e Heitor Carrilho (diretor do Manicômio Judiciário), reconheceriam o direito de matar aos assassinos por amor. Para Afrânio Peixoto, os estados emocionais ou passionais deveriam ser considerados juridicamente como atenuantes em casos muito especiais, cuja identificação dependeria da perícia dos especialistas na ciência médica (PEIXOTO, 1923). Por outro lado, Carrilho (1933, p.36) define “o amor que leva ao crime” como “amor patológico” ou “amor enfermiço”. Havia, ainda, posturas “intermediárias”, como a assumida por Lima Drummond (1910), professor de Direito Criminal da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Condenando a inimputabilidade dos passionais que poderiam ter evitado o ato de violência enquanto haviam mantido o controle dos sentidos e 226

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da razão, reconhecia, contudo, que, em casos especiais, a privação dos sentidos e da inteligência, não podendo ser evitada, justificaria a irresponsabilidade criminal. No mesmo sentido, Margarino Torres (1933), juiz-presidente do Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, afirmava que estados emotivos ou passionais excluíam ou diminuíam a imputabilidade, o que, entretanto, não tornaria os (as) agressores (as) irresponsáveis e terminava por reconhecer a necessidade das “penalizações” dos passionais para deter os “impulsos das paixões criminógenas” presentes na sociedade e “dispensar a vingança privada”. Propondo uma doutrina acerca da criminalidade específica dos emotivos e dos apaixonados, Evaristo de Moraes defende os princípios orientadores da “moderna Política Criminal”, inspirada nas teses fundamentais da Escola Positiva, segundo a qual a classificação dos criminosos, o estudo minucioso de cada individualidade criminosa, em relação ao seu crime e à individualização das penas, seriam procedimentos indispensáveis para assegurar a intimidação/correção dos criminosos e a proteção da sociedade. Tratava-se, pois, de considerar o criminoso e não o crime, a fim de garantir a eficácia da punição. O motivo a partir do qual seria possível caracterizar o crime e determinar a índole dos criminosos assumiria, portanto, uma importância crucial para a absolvição ou condenação e para a fixação das penas. Em Sociologia Criminal, Enrico Ferri, famoso criminalista italiano, defende que toda a penalidade seria inútil para os criminosos que agissem movidos pelo impulso de uma paixão não anti-social – o amor, a honra e a paixão política – e, portanto, compatível com os “interesses normais da sociedade”, na medida em que “[...] contribuem para o desenvolvimento e a consolidação da vida social e do progresso da humanidade” (FERRI, 1934, p. 60). Ferri chega mesmo a traçar o perfil dos delinqüentes emotivos ou passionais: eram homens jovens, executavam a agressão às claras sem premeditação, possuíam sensibilidade maior ou mais profunda que o normal, apresentavam precedentes ilibados e suicidavam-se ou tentavam de modo sério fazê-lo. Expressos nas crônicas examinadas, alguns desses princípios fundamentariam uma posição mais indulgente em relação aos homens heterossexuais acusados de crimes passionais. Se não encontramos em João do Rio (nos textos aqui considerados) uma postura explicitamente favorável à inimputabilidade desses criminosos, é inegável a simpatia e a comiseração do escritor diante do destino de Salvador Firmino, Abílio Sarano e Alfredo Paulino, protagonistas masculinos da crônica “Crimes de amor”: “Oh! O amor! Eu ouvira o amor sexagenário, o amor doloroso, o amor lilliput desse ménage de crianças! Todos tinham chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã condenados por um juiz indiferente” (JOÃO DO RIO, 1987, p. 143). A mesma benevolência é partilhada por Orestes Barbosa, ao refletir, por exemplo, sobre o caso de José Tranqueira, que havia matado a esposa, Matilde, por quem fazia os maiores sacrifícios, alimentando suas vaidades sem ter posses para H ISTÓRIA ,

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isso, ao flagrá-la em companhia de outro homem: “Devia matar? Não podia matar? Mas podia resistir ao amor louco que lhe conturbava os sentidos? E por que o prendiam então, a ele, o apaixonado da Matilde, em quem desfechou um tiro com o coração?” (BARBOSA, 1922, p. 66). Um personagem de outra de suas crônicas, o flautista Álvaro Paes Leme de Abreu – que matou o sogro, acusando-o de, juntamente com os filhos, tê-lo agredido, causando-lhe ferimentos e “transviado” sua esposa, transformando-a em uma prostituta – é visto como “[...] uma vítima do seu temperamento impulsivo e dos nossos irremediáveis erros sociais” (BARBOSA, 1922, p. 46). Em relação ao crime do moleque Ventura Bezerra, a posição de Orestes é ambígua. Convivendo como “[...] criado de casa de marafonas e porteiro de espeluncas, acabou criminoso passional só porque a corista, branca, não queria viver com ele”(grifos meus). Corrompido pelo “ambiente morno da perversão”, parece irresponsável por um crime provocado por um motivo caracterizado, a princípio, como banal. Contudo, a desculpabilização de Ventura nesse caso parece implícita na observação final do cronista, segundo o qual, rejeitado pela corista, o agressor teria olhado para a própria pele e refletido: “Era desaforo. Então só branco é que é gente?” (BARBOSA, 1922, p. 81). Posturas contrárias as até aqui analisadas começariam a ser veiculadas, contudo, antes mesmo da aprovação do novo Código Penal republicano. Apesar de expressar uma certa indulgência em relação ao crime de Umbelino Silos7 – a quem caracteriza como “[...] um desgraçado comprimido de toda parte, pela infidelidade da mulher, pelas injúrias de um sujeito sem escrúpulos e pelo desastre dos seus interesses” – em outra crônica publicada alguns meses depois, Raul Pompéia, condenava, como vimos, a benevolência em relação aos criminosos que agiam sob o impulso de um “desvario da paixão”, por uma “facilidade de psicologia barata, transplantada para o júri”. Segundo o cronista, nem “uma rara turbação do critério moral”, nem “uma idealização demente da honra” e nem “uma bestificação momentânea de ferocidade erótica” poderiam justificar “um atentado contra a existência de uma pobre mulher indefesa” (POMPÉIA, 1889). Também João Luso coloca em discussão, na crônica “Educação”, a legitimidade de se matar por amor, no posicionamento de Mendonça diante do crescente número de notícias sobre crimes passionais na cidade do Rio, em princípios do século XX: [...] Raro é o dia em que alguma grande paixão não acabe em grande crime. Mata-se a pessoa a quem se ama com a mais incoerente, a mais apavorante facilidade. Por qualquer coisa, uma infidelidade ligeira, um favor negado, uma promessa mal cumprida [...] (ERSE, 1935, p. 225).

Apesar da atualidade do fenômeno, não se deveria responsabilizar apenas a nova geração pelo fenômeno, mas levar também em consideração a educação que os rapazes receberiam desde pequenos, metendo-lhes na cabeça “noções de amor 228

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próprio intransigente, ferocidade exclusivista, confiança na impunidade”. O autor da crônica ressalva, contudo, que, ao fazer essas afirmações, Mendonça não refletia sobre o ato de presentear o seu filho de apenas quatro anos com uma espingarda. João Luso evidencia, assim, as contradições produzidas pelo advento de novos valores diante das permanências de práticas culturais, em especial relativas a padrões da masculinidade, profundamente arraigados na sociedade brasileira. Mas o próprio autor mostrou-se contraditório em relação àqueles que cometiam crimes movidos pela paixão. Como vimos, no conto “Carta da terra”, o crime de Antonio Pataco (além de trabalhador, “homem sério e de boa paz”) que mata Ramiro por este supostamente tentar seduzir sua esposa (“a bela e fogosa mulata” Bemvinda) parece implicitamente desculpável. Entretanto, dois dos cronistas aqui considerados não manifestariam qualquer ambigüidade ao condenarem a inimputabilidade ou as penalizações leves dos indivíduos acusados de crimes passionais. Dedicando várias de suas crônicas ao tema, Lima Barreto foi uma das primeiras vozes que se opuseram explicita e inequivocamente à absolvição ou à condenação branda dos “matadores de mulheres”. Para o escritor, os costumes que conferiam ao homem o direito de matar a mulher adúltera eram selvagens e bárbaros. Defensor do divórcio e crítico contundente da “ignóbil e iníqua” instituição burguesa do casamento, em “Os uxoricidas e a sociedade brasileira”, Lima Barreto (1956, p. 172-173) acusa as feministas de não lutarem: Contra um ignóbil e iníquo estado de espírito dessa ordem, que tende a se perpetuar entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbárie medieval, de quase escrava[...]; degradando-a à condição de cousa, de animal doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos [...]; não lhe respeitando a consciência e liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde quiser; contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-bostas feministas que há por aí.

Para o escritor, o divórcio seria, portanto, uma reivindicação muito mais legítima e conseqüente politicamente do que as bandeiras levantadas pelas feministas na época – como o acesso das mulheres aos empregos públicos e o voto feminino. A luta contra o casamento burguês recusava radicalmente a reificação das mulheres pelo domínio masculino, eliminando as condições que asseguravam aos homens o direito de vida e de morte sobre suas companheiras. Desse modo, condenava as feministas de se calarem diante do “absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres”. No mesmo sentido, reprovava a atuação de Evaristo de Moraes, não o perdoando por “explorar essa abusão bárbara de nossa gente”, sendo ele o liberal, o socialista quase anarquista, o profissional cuja “ilustração” e “talento” causavam tanta admiração em Lima Barreto. O projeto de modernidade defendido por esse autor remetese, portanto, à expectativa de construção de uma sociedade mais justa e solidária no H ISTÓRIA ,

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Brasil, a partir das reformas propostas em seu “manifesto” maximalista, inspirado numa combinação original de concepções liberais, socialistas e anarquistas. Na condenação da tolerância em relação aos crimes passionais, o raciocínio de Coelho Netto seria estruturado sobre outras bases. O argumento da privação de sentidos é caracterizado como a brecha, a “chave da cadeia” que franqueia “saída a todos os criminosos que dispuserem de meios políticos ou circulantes”, livrando da prisão os assassinos de adversários políticos, de rivais em amor ou apenas desafetos (COELHO NETTO, 1928, p. 273). Mas o alvo central das críticas do cronista é o tribunal do júri, à medida que buscava retirar-lhe a legitimidade: “[...] se o caso é de assassínio, com lances trágicos de cinema, digo logo, de mim para mim – esse está aí, está perdendo os sentidos para os efeitos patéticos do júri e mais uma vitória da Liberdade. E tal é o Tribunal que nos defende, tal é a instituição que zela pela vida da sociedade” (COELHO NETTO, 1928, p. 275). Esse posicionamento expressa um debate mais amplo que permeava o campo jurídico da época, onde, responsabilizado freqüentemente por decisões consideradas fruto da ignorância e do conservadorismo – entre as quais a absolvição dos “matadores de mulheres” –, o júri popular sofria ataques que colocavam em xeque a validade de sua manutenção na estrutura jurídica brasileira. Em sua defesa, contudo, levantavam-se algumas vozes, como a de Margarinos Torres, ao afirmar, na conferência realizada na Sociedade Brasileira de Criminologia, em princípios de 1933, a importância do júri popular não apenas como instituição jurídica, mas também política. Segundo o jurista, a apreciação de um crime depende de um equilíbrio perfeito entre razão, experiência e sentimento, já que não se resume a uma questão médica e jurídica, sendo também uma questão moral, exige a avaliação de diferentes saberes. A partir dessas considerações, é possível, pois, situar o lugar político do projeto de modernidade para o Brasil, de viés autoritário, defendido por intelectuais como Coelho Netto. Não por acaso, como vimos, Raul Pompéia, florianista convicto, condenava a indulgência do júri, presa fácil de uma “psicologia barata”, em relação aos “criminosos por amor”. As controvérsias em torno dos crimes da paixão, envolvendo amplos segmentos da intelectualidade nas primeiras décadas republicanas, expressavam confrontos entre diferentes projetos de modernização da sociedade brasileira, cujos parâmetros se encontravam referidos às sociedades burguesas européia e norteamericana e que, portanto, pressupunham a difusão de padrões normatizadores das relações afetivas, sexuais e familiares profundamente distintos dos que eram compartilhados pela maior parte da população – inclusive pelas frações da classe dominante. Tratava-se, pois, de civilizar hábitos, valores, comportamentos que, cúmplices da “ignorância”, do “atraso” e da “barbárie” comprometiam, evidentemente, os caminhos para o progresso e a modernidade. Mas como fazê-lo? Os embates em torno dos chamados crimes passionais podem nos dizer muito nesse sentido, ao colocarem em cena as tensões entre concepções diferenciadas 230

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sobre o papel que deveria caber ao Estado neste processo civilizador. Para os simpatizantes dos passionais, talvez essa tarefa devesse ser realizada pela conciliação entre modernidade e conservadorismo. Se lavar a honra com sangue deixava de ser, para esses agentes, um gesto reconhecido como direito e como um negócio privado, poderia, contudo, ser desculpabilizado desde que devidamente domesticado pelas mãos da Justiça e, portanto, pela intermediação tornada imprescindível dos Poderes Públicos. Travestida em loucura de amor, mesmo que sob o diagnóstico de patologia, a defesa da honra, avalizada pelo Estado, adquiria uma certa compatibilidade com a modernidade. Diferentemente, os que se colocavam contrários à indulgência em relação aos criminosos passionais propunham que o tal processo civilizador representasse uma ruptura efetiva com as práticas e concepções culturais do passado e, para tanto, era necessário um Estado interventor e suficientemente forte para varrer qualquer vestígio daquilo que concebiam como bárbaro e atrasado – incluindo hábitos e comportamentos das elites. Como vimos, na prática, esses embates, envolvendo expressivos segmentos da intelectualidade coeva (juristas, médicos, escritores, etc.), traduziam diversas posturas possíveis entre as duas posições acima esboçadas. Entre uma “modernidade conservadora” e uma “modernidade moderna”, havia inúmeros projetos de modernização para a sociedade brasileira em disputa. Entre os que forneceram as propostas vitoriosas, evidenciava-se a cumplicidade em torno da perspectiva de modernizar a desigualdade – na feliz expressão de Susan Besse (1999) – ainda que por caminhos diversos e, muitas vezes, incompatíveis.

N OTA S

1. Uxoricídio é o termo empregado para definir o assassinato da esposa pelo próprio marido. 2. Ressalte-se que o recrutamento era desde o período do Império, um dos principais alvos do ódio e da insatisfação da população. 3. As reflexões aqui apresentadas resultam de duas pesquisas, ambas já concluídas, que contaram com o apoio do CNPq e da FAPERJ. Da primeira, sobre crimes passionais e relações de gêneros na cidade do Rio, entre 1890 e 1930, participaram como bolsistas de Iniciação Científica: Alexandre E. da Silva; Cláudia P. da Trindade; Gabriela C. Buscácio; João Daniel L. de Almeida; Sílvia Amaral P. de Pádua; Tania Mittelman. Os resultados completos serão divulgados no do livro “Conflito e violência nas relações entre os gêneros Rio de Janeiro, 1890-1940” (em elaboração). Da outra, intitulada “Trabalho, relações de gêneros e questão racial: memórias da cidade através das crônicas (1870-1930)”, participaram os bolsistas de APT, Adriana Maria Ribeiro (APT) e de IC Tania Mittelman, Daniel Angelim, Leonardo Ayres Padilha e Leandro Rosetti de Almeida. 4. A noção de campo é entendida aqui conforme as definições dadas por Pierre Bourdieu (1974, 1968, 1994). H ISTÓRIA ,

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5. Como vimos nos exemplos citados no início, homens e mulheres foram acusados de cometerem agressões passionais, embora nos jornais e processos judiciais pesquisados constatemos que os homens configuraram a maioria absoluta dos agressores, enquanto as mulheres constituíram a maioria absoluta das vítimas. Não nos deteremos aqui na análise das ações das mulheres acusadas. É preciso, contudo, considerar que também elas foram muitas vezes absolvidas ou tiveram suas penas reduzidas pelo argumento da privação dos sentidos e da inteligência. Sobre o assunto, vejamse os meus dois artigos (ENGEL, 2000, 2001a). 6. Ao lado de alguns conceituados juristas, Roberto Lyra Peixoto destacou-se como um dos promotores da campanha contra os crimes passionais dirigida pelo Conselho Brasileiro de Higiene Social (CBHS), criado em fevereiro de 1925, na cidade do Rio. 7. Completamente endividado, Umbelino Silos matou Antônio Ramos que, além de amante de sua ex-esposa, Maria de Silos, vivia a “amofiná-lo” com escárnios e insultos (POMPÉIA, crônica de 2 de agosto de 1888).

FONTES

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REFERÊNCIAS

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VIOLÊNCIA SUTIL CONTRA A MULHER NO AMBIENTE DOMÉSTICO : UMA NOVA ABORDAGEM DE UM VELHO FENÔMENO

Maria Beatriz Nader

O estudo da violência no campo das relações de gênero tem um longo caminho

a ser percorrido, verificando-se que são amplas as formas de agressão dirigidas ao sexo feminino. A Historiografia geralmente abrange a violência física contra a mulher de modo genérico, não se identificando distinções quanto a outros tipos de investidas que não aparecem nas estatísticas nem na documentação que dá suporte à Historiografia de gênero. A omissão e a indiferença pelos sentimentos que se veiculam em direção à mulher não são historicamente consideradas condutas agressivas, pelo fato de suas seqüelas não serem tão transparentes como a violência física e pela impossibilidade feminina de comprovar materialmente um fenômeno abstrato e sutil. A imposição dos papéis sociais rígidos, a proibição de desejos e outras formas de agressão, como humilhação e constrangimento, que provocam a chamada dor moral são suas práticas mais comuns e passam despercebidas. Primeiro, pela sociedade, que naturaliza gestos que oprimem e cerceiam desejos e ações, imprimindo argumentos voltados à proteção da mulher. Depois, pelo marido, que, por entendimentos culturais adquiridos desde a infância, acredita ter a posse e o poder sobre a esposa. O compartir de ações sociais “naturalizadas” com o poder almejado pelo homem legitima a violência abstrata praticada contra a mulher e fomentam práticas sociais que exprimem atitudes de agressão sutil no relacionamento conjugal. São essas práticas que nortearão a discussão central deste artigo, que de início envolve o paradoxo de que o lugar que melhor deveria proteger suas mulheres, do ponto de vista das relações de gênero, envolvendo afetividade e segurança, é o que as trata pior, o ambiente doméstico. Identificado sociologicamente como o lugar por excelência onde se desenvolvem os sentimentos que nortearão os valores nascidos da coabitação e da intimidade, a H ISTÓRIA ,

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família é a representação mais próxima do que se compreende como um agrupamento de seres que geram única e exclusivamente apoio e solidariedade entre si. Contudo, analisando a relação estrutura familiar e violência de gênero Almeida (apud COELHO, 2005, p. 58) desmistifica essa visão e acusa a família de ser uma instituição violenta, principalmente no que tange à mulher, pois em se “[...] considerando a população adulta, a violência é notadamente de gênero, atingindo, preferencialmente a categoria que se inscreve de forma subordinada no contexto de relações desiguais de gênero”. Por outro lado, porém, não se pode esquecer que é no ambiente doméstico que os membros da família, instituição humana de construção cultural, devem encontrar um sentimento de segurança emocional, por ser o local onde o indivíduo desenvolve os primeiros contatos mais íntimos e onde os acontecimentos mais importantes da vida são vividos. No ambiente doméstico, onde se reúne a família que não encontra no sentimento afetivo o apoio necessário ao equilíbrio emocional, a normatização de leis, usos e costumes interfere mostrando que a família é mais importante do que o sujeito, mesmo sendo o lugar onde são gerados os conflitos e ambigüidades que acarretam sérios problemas emocionais no indivíduo e onde ocorre o desentendimento e a violência de gênero, que se inicia com a promoção da dor moral sentida a cada humilhação ou gesto de desprezo. Por sua ligação com a família ter sido determinada por convenção histórica, a mulher é a maior vítima das práticas de violência que se estabelecem na família, cujas relações no interior do ambiente domiciliar nem sempre são desajustadas emocionalmente. Em vários aspectos, essas práticas se camuflam sob gestos de ternura que destroem o indivíduo, constituindo-se em um problema social que chega a tornar-se uma violação dos direitos humanos, tal como a promoção da alienação e a proibição da expressão e da locomoção.1 Nascidas no seio da família primitiva que se reduzia em círculos conjugais cada vez menores, as práticas da violência de gênero foram perpetuadas no ambiente doméstico patriarcal. Reconhecido historicamente como espaço feminino por excelência, o universo doméstico é, sem dúvida, o componente mais visível da segregação de gênero. Em todas as épocas históricas, a mulher sempre foi tida “[...] como objeto de reprodução e manutenção do status social”, nos dizeres de Morgado (1987). E, desde a Grécia Antiga, o lugar onde a mulher melhor poderia representar seu papel social era o espaço doméstico, onde, por viverem isoladas e manterem somente contato com pessoas da família, muitas vezes compartilhando unicamente com a presença “embrutecedora” de servos ou escravos, tornaramse ignorantes e inexperientes. Essas práticas até hoje mostram que existe uma estreita ligação entre o poder e a violência. Um poder que se pauta na aquisição e manutenção de bens econômicos, políticos e a criação de status que precisa se legitimar de forma constate. À 236

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simples ameaça de sua diminuição, surge um convite à investida e à ofensa à mulher que está mais próxima, aquela com a qual o agressor divide o ambiente doméstico. Assim como as mulheres escravas no Brasil colonial eram submetidas ao seu proprietário, que as controlava não somente pela sua condição jurídica, mas também pela sua condição de mulher na sociedade patriarcal, a violência de gênero promovida pelo parceiro pode ser definida como conduta agressiva que ocorre em virtude da condição de mulher na sociedade. Beauvoir (1980) tem a esse propósito uma visão muito lúcida, quando afirma que a História reservou para a mulher um lugar pequeno. Para a autora, a História considerou a mulher como pertencendo a uma categoria inferior, pois os registros sobre ela ficaram ligados à sua condição, ao seu lugar na família, na memória do mundo privado, relacionada com o domicílio familiar, ao qual fora ligada por determinação e convenção. A Psicologia Social explica a violência contra a mulher a partir da frustração que o homem, sujeito cuja função social é atuar no mundo público para prover o privado, se encontra em uma situação sócio-econômica injusta. Se o poder é visto como a base para a compreensão das relações de gênero, conforme afirma Arendt (1985), a derivação da situação sócio-econômica injusta pode gerar nos sujeitos grande hostilidade. Três caminhos são utilizados pelos homens para descarregar suas frustrações com a possível perda de poder: no primeiro, pode gerar ações no mundo exterior para modificar a situação que os frustra; no segundo, o sujeito pode orientar sua frustração para si próprio; e, no terceiro, pode dirigi-la a outro sujeito próximo ou mais débil. Como o primeiro caminho é o mais difícil de ser percorrido, por fatores externos que poderão obstaculizar as mudanças socioeconômicas do sujeito, os outros dois são mais fáceis de percorrer (ZURUTUZA, 1995). Normalmente, o terceiro caminho é canalizado para a esposa ou companheira, o ser mais próximo do homem. Na maioria das vezes, isso ocorre pelo fato de ele, por obstáculos pessoais, ser incapaz de verbalizar seus sentimentos de frustração. Ou, ainda, porque existem os estereótipos patriarcais que insistem em permanecer em nossa sociedade. Zurutuza (1995) mostra que a tese feminista sobre a questão da violência de gênero confirma essa última possibilidade, quando aponta esse fenômeno como resultado direto dos valores patriarcais que valorizam positivamente o sexo masculino e tudo que a ele diz respeito e desvaloriza tudo que é feminino e diz respeito à mulher. A diferença de gênero torna-se desigualdade hierárquica, afirma a autora, e o homem exerce o poder de agredir a mulher com legitimidade. Arendt (1985) assevera também que, onde quer que a violência e o poder combinem, ele, o poder, somente precisa ser legitimado, nunca justificado. Em outras palavras, somente o fato de estarem presentes na mente do homem atitudes de desvalorização feminina já é suficiente para que aqueles que não suportam suas frustrações patriarcais não H ISTÓRIA ,

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atendidas descarreguem sua agressividade sobre a mulher. Costumam apelar para a recordação de estereótipos ou signos que humilham sua companheira, como cantigas e piadas sobre o sexo feminino, ou mesmo a castigam fisicamente. Em sociedades onde o patriarcalismo ainda se faz presente, é bem difícil ter um conhecimento quantificado da violência de gênero, pois as investidas são ocultadas não somente por seus autores, mas, freqüentemente, também pelas mulheres que são vítimas. Nessas sociedades, agredir as mulheres é um comportamento habitual e muitas delas, por serem condicionadas à submissão, acreditam serem essas investidas um ato normal e não lhes dão a devida importância. No Brasil colonial, ficou “patenteado” o entendimento de que o marido tem direitos sobre a sua esposa, inclusive para “educá-la”. Dom Francisco Manuel de Melo (apud ALGRANTI, 1993), em 1650, ensinava que a esposa não só devia aceitar a investida do marido, mas também lhe agradecer pelo fato de ele a estar educando. O art. 242 do Código Civil Brasileiro, de 1917, dizia que a mulher deveria obedecer ao marido, corroborando a expectativa masculina de domínio sobre a mulher. Até hoje, muitas mulheres brasileiras ocultam da própria família as investidas agressivas que recebem de seus maridos, pelo medo e pela vergonha que sentem de conviver com um homem que a maltrata e a humilha. Também não as denunciam às autoridades, que pouco fazem para protegê-las. Somente nos anos de 1990, foram criadas algumas políticas públicas destinadas ao combate à violência contra a mulher – SOS Mulher e as delegacias especializadas (COELHO, 2005). Várias outras explicações também podem ser dadas para o entendimento do fenômeno da violência de gênero. Os mais conhecidos e destacados pela academia são os vícios do álcool e das drogas (ALMEIDA, 1998; LANGLEY; LEVY, 1980; MORRISON; BIEHL, 2000). A falta de dinheiro, a distinção de classe e as diferenças entre os níveis educacionais dos cônjuges também são apontadas pelos trabalhos acadêmicos, mas são raros os que dão uma idéia mínima da amplitude do fenômeno, até mesmo porque as estatísticas não referendam o tema. Discutido por áreas do conhecimento que pesquisam somente uma vertente disciplinar ou atuam em termos de interdisciplinaridade, como nas áreas Biomédicas e Humanas, a violência de gênero também é abordada pela Antropologia, Medicina, História, Psicanálise, Enfermagem e Sociologia, que dissertam sobre todos os fenômenos que perpassam a vida do gênero feminino. Mas os estudos que se apóiam em estatísticas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, por informações de Secretarias de Segurança Pública de alguns Estados do Brasil, em estudos de organizações, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Mundial, a Organização Mundial de Saúde (OMS), entre outros, são poucos. Normalmente esses trabalhos se limitam a abordar os números de mulheres que sofreram alguma violência física. Contudo, a violência, conforme abordada neste trabalho, não está em nenhuma estatística, não pode ser contabilizada, nem tampouco observada a “olho nu”. 238

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Muito embora bastante conhecida e sofrida pela maioria das mulheres que vivem uma relação conjugal, a violência em epígrafe é abstrata e impalpável, além de somente ser percebida pela pessoa que a experimenta. A humilhação e o constrangimento são dois exemplos que podem ser destacados como violência sutil, ou seja, aquela que não deixa marcas no corpo físico, mas magoa e transforma o interior da vítima, fazendo muitas vezes com que esta mude o seu comportamento sem que aja uma explicação aparente. Como não há exposição de dados mensurados, nem mesmo nenhuma pesquisa que registre ou aborde especificamente esse tipo de violência na história da mulher, torna-se oportuna a orientação para que sejam observadas atitudes de violência contidas nas entrelinhas da Historiografia de gênero, assim como na Bíblia, nas revistas e na literatura. Fontes primárias específicas sobre a violência sutil, em toda a História, praticamente não existem. Nem escritas por mulheres, nem por homens. Na história bíblica, na Antigüidade, nos períodos do medievo e moderno, até mesmo no pósmoderno, dificilmente se encontra uma fonte primária reveladora da investida delicada, empalmada sob o silêncio moral tal como entendemos hoje o seu significado, que não se traduz em “dano moral”, amplamente discutido pelos juristas, porque entendido socialmente como sendo “natural” e “banal” na convivência conjugal, daí ser considerado historicamente sem importância. Depoimentos verbais contidos em obras das áreas do Direito e da Psicologia fazem alusões ao tema, mas raros o analisam profundamente e quase sempre apontam a violência física. Valle (apud RAMOS, 2000), na obra Dano moral, inclusive, afirma que tanto a dor física quanto a moral não são diferenciadas pela Fisiologia e a Psicologia. Para o autor, há diferença somente na sua causalidade, pois ambas, dor física e dor moral, ficam igualadas quando impedem o indivíduo de exercer suas funções sociais. Mesmo as pesquisas quantitativas, que demonstram as taxas da violência física contra a mulher no Brasil, até hoje são precárias. Em 1988, a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE) realizou uma pesquisa nacional que contabilizou somente pequeno alcance do problema. Apenas alguns dados possibilitaram verificar a informação de que a violência cometida contra as mulheres se dava em maiores proporções no interior do ambiente doméstico. Dentre as mulheres que afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência, 65% disseram ter sido agredidas dentro de casa e 35% em outros lugares. A Fundação Perseu Abramo, durante o ano de 2001, realizou uma pesquisa sobre a mulher brasileira em 187 municípios do País, incluindo obrigatoriamente todas as Capitais e municípios que tivessem mais de 500 mil habitantes. A pesquisa contou com um universo feminino respondente de 2.502 mulheres, com faixa etária a partir de quinze anos, e versou sobre temas como saúde, trabalho, sexualidade, violência, educação, atividades domésticas, cultura política e lazer, revelando dados um pouco H ISTÓRIA ,

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mais abrangentes sobre a questão da violência sutil. Tudo isso torna penoso o caminho da abordagem acadêmica da violência impalpável contra a mulher. Especificamente no Brasil, embora haja muitas pesquisas sobre a história das relações de gênero desde os tempos coloniais, dificilmente alguma se debruça sobre as práticas da violência sutil. Mesmo aquelas que abordam a violência de modo geral e as que dão maior importância à violência de gênero não conseguem aproximar-se da realidade da violência sutil, aqui traduzida como atitude perspicaz, às vezes imperceptível e velada.

MANIFESTAÇÕES HISTÓRICAS DA VIOLÊNCIA SUTIL Ao se analisar o comportamento da violência abstrata contra a mulher, adulta e parceira conjugal, chama a atenção, de imediato, a consideração social que se faz da relação mulher e casamento. Arbitrária e com interesses políticos e econômicos, essa relação, principalmente no Brasil, se fez sob os ditames culturais de uma sociedade obsoleta e pautada no poder masculino que dominou as instâncias sociais desde os tempos coloniais. A Historiografia aponta que, durante o período colonial, a compreensão masculina que se fazia da relação mulher e casamento se dava pela interpretação da tutela que o homem exercia sobre a mulher. Diretamente relacionada com a ordem econômica e política, ou seja, com o poder, essa tutela promovia a dependência feminina e fortalecia a rígida divisão social do trabalho que mantinha a supremacia masculina na sociedade (NADER, 2001). Por outro lado, as correntes religiosas que influenciaram o Brasil da mesma época mantinham resquícios da histórica aversão da Igreja à instituição casamento e à mulher. Pela primeira, porque entendia que induzia ao pecado do sexo, e, pela mulher, porque a comparava com o pecado. Por entender ser responsável pela destruição do pecado na terra, a Igreja deveria constantemente vigiar de perto o casamento e a mulher. Para isso, tratou de fortalecer o entrelaçamento de ambos (NADER, 2003). O eixo de ligação entre o poder masculino e o interesse religioso figurou na história como o meio ideal para que ocorresse aquele atrelamento e as conseqüências das posições masculina e religiosa podem ser sintetizadas para a justificação da violência sutil dentro da relação conjugal, não só no Brasil colonial, mas em diferentes momentos da história.

CASAMENTO NA INFÂNCIA E CLAUSURA COMPULSÓRIA NO BRASIL COLONIAL O espaço domiciliar foi o ambiente que marcou profundamente as relações de gênero e propiciou a propagação da violência contra as mulheres, no sistema patriarcal que vigorou durante séculos. As mulheres de classes mais abastadas tinham uma 240

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educação voltada unicamente para o casamento e isso as fazia dependentes do marido, sem terem opção de escolha quanto ao destino que deveriam dar às suas vidas. Isso as transformou em presas fáceis às investidas sutis, estúpidas e cerceadoras, que lhes foram infligidas pelos maridos e pela sociedade de modo geral. Negandolhe identidade e acesso às oportunidades, muitos homens, bem posicionados econômica, intelectual e socialmente, dispensaram às mulheres um tratamento grosseiro e rígido de práticas humilhantes e constrangedoras dentro do próprio espaço doméstico. Manter os filhos, cuidar da casa e preparar as refeições são competências que milenarmente foram atribuídas às mulheres e, por isso, consideradas atividades de trabalho de menor expressão social. Confinar a vida feminina entre os muros domésticos e obrigá-la a um comportamento retraído foi, sem dúvida, um dos meios “[...] mais eficazes para controlar e reproduzir as desigualdades entre os sexos”, afirmam Hertrich e Locoh, (2004, p. 127), e um dos primeiros atos da violência sutil da História. As mulheres moradoras da colônia portuguesa na América conviveram sob a égide do discurso de que deveriam obedecer aos seus pais sem contestar e aos seus maridos sem deixar transparecer que discordavam de seu comportamento. Desde muito cedo, recebiam castigos físicos para a submissão e a obediência, seja de mulheres mais velhas, como a mãe ou tias, seja por meio da violência masculina do pai, dos irmãos ou dos primos. Convertida em pessoa inferior e tida como incapaz física e intelectualmente, a mulher sofreu durante séculos o constrangimento de não poder ter vontade própria pela inferioridade que lhe era atribuída e por ser dependente economicamente do pai ou do marido. Pela própria estrutura econômica e social implantada no Brasil, desde os tempos coloniais, o casamento tornou-se o melhor destino para a mulher de qualquer segmento social acima da escravidão. A menina, tão logo atingisse a puberdade, passava pelo constrangimento de ser dada em casamento a um homem escolhido unilateralmente pelo pai. Casada por imposição e interesse de família, muitas vezes nem conhecia o homem a quem deveria dar seu corpo e sua própria vida. Existe razão para acreditar que esse casamento era uma experiência traumática para a noiva, pois, ainda muito nova, era obrigada a deixar a casa paterna para seguir o desconhecido que se tornara seu marido, além de ser compelida a permitir-lhe entrar na sua maior intimidade. Afetividade raramente pesava na determinação de uma união entre os sexos pelo casamento, que se transformava em uma transação econômica na qual o sentimento era o que menos importava. A própria Igreja Católica apoiava esse tipo de enlace, pois via com desconfiança o amor entre os cônjuges. Por seu entendimento, a ligação afetiva entre os nubentes “[...] parecia roubar de Deus a devoção que lhe era devida” (COSTA, 1983, p. 218). Por casar-se muito cedo, a menina era proibida de brincar como os meninos. Sua infância era muito curta e logo deveria comportar-se como uma senhora. H ISTÓRIA ,

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Durante sua vida adulta, tinha grande número de concepções, pois a própria sociedade colonial esperava que tivesse muitos filhos. E, como esses morriam muito cedo ou já nasciam mortos, seus partos ocorriam com muita freqüência. Várias vozes se fizeram contra esse costume. Na Europa, entre os séculos XVI e XVIII, os manuais de Medicina que consideravam as implicações ginecológicas do parto afirmavam que, para as mulheres, os casamentos precoces poderiam ser muito perigosos. Para eles, as mulheres muito jovens, ainda sem vigor físico, poderiam gerar crianças fracas e doentes. Além disso, afirmavam que as mulheres que começavam a procriar muito cedo se expunham às tensões do parto e poderiam sofrer sérios danos, com prejuízo inclusive para as crianças que poderiam nascer atrofiadas e doentes (MACFARLANE, 1990). Em 1791, Francisco José de Almeida (apud SILVA, 1984), autor do Tratado da Educação Física dos Meninos, discutia o casamento precoce e não acreditava que as primeiras menstruações da menina a fizessem apta à procriação. Para ele, somente depois da puberdade é que os órgãos estariam prontos para o sexo, e isso acontecia a partir dos dezoito anos. Mas a realidade era bem diferente. A mulher, não pertencente à categoria social de condição de escrava, deveria seguir comportamentos de acordo com as regras instituídas pelo código moral da sociedade que se apoiava no poder do sexo masculino para sobreviver. Normalmente, casavam-na aos treze anos de idade e, em geral, aos quinze já eram mães. Nessa idade, já tinha a responsabilidade da maternidade sobre os seus ombros, além da supervisão dos trabalhos domésticos e o cuidado com o marido e os filhos. Vivia a violência do isolamento e tinha pouco ou nenhum contato com o mundo além das paredes do domicílio. Seus desejos eram ignorados e, muitas vezes “[...] eram reputadas como brinquedos e meios de desfrute sexual”, observou John Luccoch (apud QUINTANEIRO, 1996, p. 41), o mercador inglês que ficou célebre por fazer comentários a respeito das mulheres brasileiras, durante sua viagem ao Rio de Janeiro, no século XIX. Por depender da autoridade masculina, a mulher que vivia isolada e confinada ao lar, único espaço em que podia transitar com certa liberdade e onde passava a maior parte de sua vida, não tinha permissão para expressar suas idéias e seus gostos. Sua locomoção era cerceada e só podia sair para ir à Igreja quando acompanhada, além de ter permissão só para ler o catecismo e obras religiosas. Vigiada de perto por seu marido, sua participação na vida social era realizada pelas poucas saídas da família, assim mesmo somente para participar de festejos religiosos. Em função dessa vida confinada no domicílio e do desgaste físico a que eram expostas desde jovens, as mulheres das classes dominantes da Colônia chegaram a ser classificadas, pelo próprio John Luccoch, como preguiçosas, gordas e precocemente envelhecidas. O código de valores e de comportamento impunha que a mulher casada deveria se enquadrar na relação conjugal para se afastar da vida mundana, sujeitar-se 242

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aos desejos do marido, seu dono e senhor, que poderia corrigi-la e castigá-la por qualquer ato de desagravo. A esposa deveria humilhar-se e obedecer ao marido sem contestar, uma vez que fora criada somente para isso, mostrando-se, inclusive, agradecida por tal correção. Pela simples desconfiança de estar praticando atos considerados levianos, a mulher era punida com castigos que variavam da morte à reclusão. Essa reclusão compulsória era realizada, normalmente, em recolhimentos2 distantes de sua casa e que serviam para a conservação da virtude e da honra que lhe era atribuída. Por longos séculos, a sociedade brasileira considerou as mulheres fracas e passivas e, por isso, não lhes permitiu participar da vida pública, além de reputar inconcebível às mulheres o direito de participar de discussões políticas e realizar atividades profissionais. Em vez de receber uma educação que as preparassem profissionalmente, elas eram treinadas somente para tomar conta da casa e administrar os serviços domésticos, seguindo à risca o modelo ideal de mulher estipulado pela fé cristã. Comum na maioria das histórias ocidentais e como norma principal das relações conjugais em muitas partes do mundo, a socialização do gênero feminino é reforçada pela idéia de preservação da família. Retratado pela Historiografia de gênero como um dos fenômenos mais importantes para esta preservação, o papel de esposa é formulado desde as consideradas esposas-bíblicas que a religião cristã e as práticas legais trataram de fornecer como modelo de mulher casada (YALOM, 2002). No Livro dos Provérbios, escrito por Jó, no capítulo 31:10-28, encontra-se o modelo da mulher ideal que deveria ser seguido pela mulher casada. Nele, torna-se evidente que a mulher virtuosa tem um valor que excede às jóias mais encantadoras e finas, que o coração do marido lhe é confiado e que ela lhe deve praticar sempre o bem, nunca o mal, buscando trabalhar para ele de bom grado. Dá a conhecer que as tarefas diárias da esposa devem ser como um navio mercante [que] de longe traz o seu pão, explicando que a mulher deve se levantar muito cedo, ainda noite, para organizar sua casa, determinar tarefas aos empregados e não agir como o pão da preguiça. Manifesta, ainda, que a esposa deve trabalhar com suas próprias mãos o fuso e a roca, fazendo para si e para sua casa todas as roupas, que deve falar com sabedoria e que a lei da beneficência deve brotar de sua palavra. Com essas atitudes, Jô afirma que a mulher será chamada de “bem-aventurada” por seus filhos e louvada por seu marido, que dirá: “Muitas filhas obraram virtuosamente, mas tu a todas és superior”. Esse modelo, escrito por um homem e impregnado de caracteres culturais a ele contemporâneos, tornou-se o modelo da mulher ideal, levando seu entendimento a toda Bíblia e, por conseqüência, ao cotidiano da vida conjugal em toda a História. De cunho claramente misógino, o modelo prega a obediência feminina e transforma a mulher casada em uma trabalhadora braçal da casa de um patrão que lhe paga somente com palavras de “louvor”. Com base nesses princípios modelares, o homem, dono “da” casa e com poderes absolutos sobre os membros da família, gerenciou, durante séculos, o H ISTÓRIA ,

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comportamento da mulher, impondo-lhe normas e regras. Por ser o provedor do lar e dono da vida de seus familiares, quando não era atendido, podia constranger e corrigir de forma agressiva suas mulheres, até mesmo tirar suas vidas sem que surgisse alguém que protestasse. Não fugindo à regra do objetivo geral da manutenção da supremacia masculina, a dependência econômica da esposa de classes mais abastadas em relação ao marido norteou a história da violência contra a mulher também no ambiente religioso dos recolhimentos. A sociedade ocidental confirmou o ideal bíblico de modelo feminino, mantendo a prática da punição às mulheres que transgredissem as regras estipuladas para o seu comportamento na relação conjugal. Na Europa, desde o início do Cristianismo, com características adequadas à época, a prática do enclausuramento feminino era realizada por mulheres que dedicavam suas vidas a Deus, vivendo afastadas da sociedade, em comunidades próprias ou mesmo em suas próprias casas. Eram mulheres que escolhiam viver isoladas do mundo, consagradas como virgens, ou mesmo mulheres viúvas que optavam em continuar sua vida sem a companhia do elemento masculino. Estabelecendo plenamente seus direitos de existência através dos séculos, essas instituições foram se utilizando do aspecto reforçado da importância e necessidade de isolamento. Apesar de a existência da clausura nos recolhimentos estar diretamente ligada às questões de prover as mulheres de princípios morais, de preservar os bons costumes e a castidade, muitas dessas casas prestaram serviços aos maridos que, de alguma forma, desejavam livrar-se de esposas indesejadas. A sociedade brasileira, de modo geral, utilizava-se dos recolhimentos para enclausurar mulheres que insurgiam contra a violência masculina, principalmente as exercidas no interior do espaço doméstico. A violência de trancafiar mulheres nos recolhimentos, à revelia de seus desejos, tornou-se uma das práticas do dispositivo da dominação masculina sobre as esposas, muito embora o próprio casamento pudesse ser considerado uma instituição apropriada para enclausurar mulheres nos muros do lar, principalmente as que tinham origem nas camadas dominantes. As instituições femininas de clausura, no século XVIII, já se encontravam longe dos princípios traçados nos seus estatutos e muitas passaram a ser vistas somente como estabelecimento de reclusão. Nos relatos de Joaquim José de Macedo sobre o recolhimento construído ao lado da capela de Nossa Senhora do Parto, Rio de Janeiro, nesse século, se encontra a comprovação de que os recolhimentos eram utilizados pelos maridos como um espectro ameaçador para as esposas e uma arma de prepotência masculina (ALGRANTI, 1993). Referindo-se a isso, Vainfas (1986) afirma que a prisão de mulheres nos recolhimentos equiparava-se à reclusão doméstica por todos almejada em defesa da própria honra. O marido, quando viajava, com receio de que sua esposa pudesse se comportar de modo a ferir a honra da família, enclausuravam-na nos recolhimen244

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tos, assim como as suas filhas. Homens que saíam por longas temporadas, como era o caso do trabalho dos paulistas que passavam anos procurando ouro e buscando realizar o apresamento de índios para trabalharem em suas lavouras ou para o tráfico, encarceravam suas mulheres nos recolhimentos, deixando-as isoladas e submetidas à rígida disciplina imposta pelos regentes daquelas casas de clausura. O imaginário masculino de que a esposa infiel macularia o seu nome e desonraria o homem perante a sociedade, o que, para Caird (apud YALOM, 2002, p. 300) era “[...] a mais ingênua proclamação da teoria do direito de propriedade”, levou muitos deles a se serviam dos recolhimentos também para evitar escândalos e punir as esposas que os traíram. Mas, também muitas vezes, o marido que queria se livrar de sua esposa, usava o subterfúgio da desconfiança de estar sendo traído. Durante o processo de divórcio, pelo código de valores e de comportamento moral da sociedade colonial, os maridos podiam depositar suas esposas na prisão dos conventos. As mulheres deveriam ficar aguardando, presas, enquanto os tribunais eclesiásticos procediam a ações requeridas pelo marido que delas queriam se livrar. A Igreja Católica apoiava esses costumes e fazia vistas grossas, chegando muitas vezes a incentivar a punição das mulheres. Dom Francisco Manuel de Melo (apud ALGRANTI, 1993) comparou a mulher com uma planta que, para crescer na melhor casta, necessitava ser podada, torcendo-lhe às vezes os raminhos e cortandolhes as vergônteas. Por seu turno, o Governo colonial, que não reconhecia a violência contra o gênero feminino como um problema político ou econômico, não interferia nesse tipo de violência, considerando-a irrelevante e natural, além do reconhecimento de que o ato de violência contra a mulher era legitimado pelo código de moralidade popular. A presença das mulheres casadas na clausura, seja do ambiente doméstico, seja do recolhimento, mostra a maneira como essa instituição adaptou-se ao cotidiano da violência sutil das relações conjugais na sociedade brasileira. E mais, que a maior parte dos comportamentos agressivos contra a mulher foi institucionalizada, isto é, esses comportamentos tornaram-se parte de usos e costumes sendo, por isso, socialmente aceitos até hoje.

A SOLIDÃO FEMININA NO CASAMENTO DO B RASIL CONTEMPORÂNEO Na época da elaboração do livro, Mulher: do destino biológico ao destino social, quando pesquisei a mulher vitoriense que gerenciava sua própria unidade doméstica, chamaram-me a atenção alguns relatos que retratavam as referências de rompimento conjugal. Observei que, dentre esses, se destacava a solidão. As muitas mulheres3 que falaram do assunto, mesmo de forma simplificada, mostraram a mágoa que sentiam diante de atitudes de descaso de seus ex-maridos. Absolutamente mais comum e infinitamente mais danosa do que a violência física, a violência sutil da solidão é uma forma de abuso difícil de ser identificada H ISTÓRIA ,

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porque, além de não deixar marcas no corpo, não é uma violência imediata, por ser continuada no tempo e incentivada por toda a sociedade. Muito embora os relatos fossem feitos por mulheres que passaram pelo processo de divórcio, a pedagoga Belkis Morgado, autora da obra A solidão da mulher bem-casada (1987), afirma que a solidão é um reflexo da experiência do casamento bem-sucedido. Para a autora, a mulher, ao se casar, tem por obrigação não desejar algo mais do que ter a sua família. Além disso, a sociedade espera que ela faça tudo para agradar seu marido. Ao longo de seu argumento, a autora mostra que, ao se casar, a mulher recebe uma carga de responsabilidades e que, para conservar-se bem casada, deve promover uma mudança radical em seu comportamento. Para confirmar seus propósitos, enumera alguns fatos que revelam como a permanência de valores masculinos dos maridos pressiona e violenta sutilmente suas esposas, transformando-as em vítimas da solidão do casamento perfeito. Para corroborar a violência no casamento feliz, o primeiro fato ocorre no dia em que mulher se casa. É o “assassinato sutil e lento, metódico e invisível,” que faz a mulher perder uma parte de sua individualidade ao adotar o “nome de casada”. Embora atualmente exista legalmente a opção pela mudança ou não do nome de ambos os cônjuges, muitos homens ainda insistem em acrescentar o seu sobrenome ao da esposa. Após o casamento, normalmente a mulher passa a ser “Senhora. Fulano de Tal” (MORGADO, 1987, p. 79). Outro fato radical e que sobrevive em toda sua plenitude até o presente momento é o afastamento de parte dos relacionamentos sociais individuais. Ou seja, ao contrair o matrimônio, a mulher se afasta das “amizades de solteira”. Principalmente os relacionamentos com amigos do sexo masculino. Isso, se já não ocorreu durante o período de namoro, pois, para muitos homens, há incompreensão de que possa haver um relacionamento de amizade entre um homem e uma mulher. Eles acreditam que sempre vai ocorrer algum interesse sexual por parte do “macho” que se aproxima de uma “fêmea” (MORGADO, 1987). Em relação às amizades femininas, isso também ocorre, pois o marido, se não de forma abrupta, vai aos poucos afastando a esposa de amigas que não aceita. Principalmente as amigas solteiras independentes e que gostam de sair e passear. Maria, uma das respondentes da pesquisa sobre unidades domésticas gerenciadas por mulheres, em Vitória, mostra a veracidade desse fato, quando relata um dos motivos que a levaram ao rompimento conjugal. Quando me casei, o meu marido me afastou do mundo. Não me levava ao cinema e nem me deixava ir com minhas amigas. Às vezes eu saia com minha irmã e uma prima. Levar as crianças na praia. Quando voltava ele dizia que eu era vagabunda e que gostava de sair sem ele. Depois eu chamava ele para sair comigo. Ele dizia que estava cansado. Nunca saia comigo, nem gostava de que eu saísse com outra pessoa.

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Revela Morgado (1987, p. 81) que os hábitos das mulheres, quando se casam, sofrem modificações em pouco tempo e muito rapidamente, pois, para se manter bem casada, ela deve deixar de ter um “[...] o riso mais solto, os gestos mais largos, idéias modernas”, que são características de pessoas que vivem “[...] relacionamentos personalizados que caracterizam o estado de solidão”. Logo, acredita ser o horário de lazer feminino, depois do casamento, limitado a períodos entre as atividades domésticas e as diversões femininas serem sempre as que agradam ao marido. Mulher casada, em qualquer contexto social, não sai sozinha à noite para divertirse, pois normalmente o marido não aceita esse tipo de comportamento. Referindo-se a isso, acrescenta que a mulher vai se despersonalizando à medida que assume os múltiplos papéis sociais impostos pelo casamento, ou seja, doméstica, esposa e mãe. No desdobramento dessas tarefas, deve-se somar ainda o papel de mulher bonita, jovem e alegre, para que possa sempre despertar o desejo do marido e não ficar sozinha. Existem vários tipos de solidão, mas nenhuma delas é mais prejudicial à mulher do que a solidão do estar junto do homem que ama e que sequer olha para ela. Popularmente conhecida “solidão a dois”, essa é a solidão do isolamento que impede a comunicação e demonstra claramente que o cônjuge ou parceiro não tem interesse algum no que é importante para o outro. A solidão que se traduz no desprezo pelo parceiro e que se transforma na violência sutil do distanciamento e da separação dentro de casa. A expressão “solidão a dois”, contudo, só recai sobre a mulher que fica trancafiada nos muros domésticos e, importante notar, se agrava quando surge a maternidade. A mulher, que durante anos de sua vida só se dedica aos cuidados dos filhos, deixa aos poucos de ter opiniões próprias, passando a refletir o pensamento do marido. Este, por sua própria função social, nunca está sozinho e continua vivendo uma vida paralela profissionalmente, encontrando amigos, diversificando sempre seus contatos com o mundo público, uma vez que seus interesses extrapolam os muros domésticos. Penha, outra respondente da pesquisa citada, afirma que [...] ficava sozinha em casa o dia todo tomando conta das crianças enquanto ele saia para trabalhar e só voltava tarde da noite. Às vezes nem falava comigo aonde ia depois do serviço ou com quem estava [...].

Muitas mulheres, mesmo aquelas que não somente cuidam de suas casas e filhos, mas que também desenvolvem alguma atividade no mercado de trabalho, passam pelo processo violento da solidão conjugal. Depois de horas trabalhando fora de casa, quando voltam, ficam sozinhas cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos. Sozinhas porque os seus maridos ou não participam das atividades domésticas ou não retornam para casa junto com elas, chegando tarde da noite e alegando vários motivos para isso. Também em fins de semana muitas mulheres ficam sozinhas com os filhos enquanto o marido sai para “bater uma pelada” ou ir à casa de parentes e amigos. H ISTÓRIA ,

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Rosa conta, em uma de suas respostas à pesquisa sobre mulheres que gerenciam suas unidades domésticas: “Nos os sábados, de manhã, ele ia jogar uma pelada e depois tomar cerveja no bar perto de casa e eu ficava fazendo o almoço, sozinha”. Afirma que tinha esperança de que, no próximo final de semana, ele a convidaria para ir com ele, ou mesmo ficaria em casa fazendo-lhe companhia, mas isso não acontecia e ela ficava muito triste. Outra respondente afirmou que se “[...] definhava a cada dia e perdia até a vontade de viver”. Mara, depois de dez anos casada com Fábio, resolveu pedir o divórcio por causa da solidão que sentia no casamento e porque achava que ele tinha outra. “Queria morrer”, afirmou. Em um artigo sobre relações extraconjugais, intitulado Por que traímos nossas mulheres?, a revista Ele/Ela, em 1981, trouxe a público o depoimento de dezoito homens casados. Alguns desses respondentes que afirmaram ter tido relações fora do casamento acusaram suas mulheres de redução do desejo sexual à medida que os filhos foram nascendo e, por isso, eles procuraram em outras a realização de seus próprios desejos. Acusaram suas mulheres de estarem feias e não terem mais desejo sexual por passarem horas sem dormir no cuidado com as crianças enquanto eles dormiam, porque o homem tem “de trabalhar no outro dia” (ALVES, 1985, p. 87). Discutindo a necessidade de a mulher ter de se cuidar para não ficar sozinha, Morgado (1987, p. 86) afirma que “O bom marido pode até ser um transgressor da fidelidade, mas isto é considerado não como uma agressão à mulher, e sim como culpa da mulher, que se descuidou do corpo (está feia, gorda ou magra demais)”, e acrescenta que, no casamento, por ser uma instituição que sobrevive somente quando as necessidades materiais e as representações sociais são mantidas, a mulher tem “que ser perfeita e manter-se permanentemente jovem”. Essa idéia repete as orientações que as mulheres recebiam de revistas femininas e de informações gerais como O Cruzeiro, na década de 1950. O Jornal das Moças, em 29 de outubro de 1959, aconselhava-as ao cuidado com a beleza, principalmente depois de já ter “conseguido marido”, pois “Um homem que tem uma esposa atraente em casa esquece a mulher que admirou na rua”, e era preciso ficar bonita para “segurá-lo”. Ao se preocupar com o aspecto externo da mulher, as revistas e jornais desqualificavam as insatisfações femininas. Não se importando com os sentimentos e os desejos da mulher, as revistas incentivavam-na a esconder suas inseguranças e a ficar “quietas”, não fazendo nenhum barulho enquanto o marido “fuma seu charuto, pensativo”, pois ele tem muitos problemas. Por isso, a revista O Cruzeiro, em 15 de março de 1958, aconselhava a mulher, além de se manter bonita, ser gentil e calar-se quando ele chegasse em casa cansado ou aborrecido. Essa era forma de manter o casamento feliz. Isso reforça o entendimento de que a carência, a angústia e a necessidade de estar de acordo com os modelos sociais definidos como o ideal para a mulher levam a mulher a se tornar mãe, “doce e suave madona” ao mesmo tempo em que cobram dela a “permanente beleza” e “frescura para seu marido”. 248

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Quando mais velhas, depois de os filhos terem saído de casa, a solidão da mulher bem casada se avoluma, assevera Morgado (1987). O tempo, que era ocupado com os filhos, se transforma num vazio e os momentos de trabalho se tornam tediosos. O lazer de tomar chá com amigas, freqüentar reuniões em igrejas, participar de cursos de doces e artesanato, não preenche a vida feminina. O homem, nesse momento da vida, costuma mudar de hábitos e de trabalho. É a Idade do Lobo, quando busca novas atividades e, na maioria das vezes, procura se relacionar com mulheres mais jovens. Por isso, a figura do marido cada vez mais distante da do namorado, do noivo, da pessoa que foi amada, tira da mulher suas chances de se colocar como uma “pessoa inteira”. A autora chama a atenção para essa fase da vida feminina. Para ela, as mulheres na meia-idade – na década de 1980, isso era compreendido logo após os quarenta anos – depois de ficarem sozinhas sem os filhos, sentiam seus desejos se reaflorarem, mas não encontravam nos maridos a ressonância necessária para voltar a ter uma vida ativa sexualmente. – Ah! Disse a mulher ao marido. Como eu queria ter um caso de amor! – Filha, acho que você precisa consultar um médico, respondeu ele. Acho que a menopausa anda deixando você meio biruta. Você precisa tomar hormônios para entrar nos eixos [...] (MORGADO, 1987, p. 93).

O diálogo criado ou repetido pela autora parece uma brincadeira, mas causa mal-estar e revela o quanto a violência sutil está presente no cotidiano de milhares de mulheres até os dias de hoje.

C ONSIDERAÇÕES FINAIS No Brasil, profundas mudanças sócio-econômicas ocorreram nas últimas décadas, transformando a composição das famílias e alterando o entendimento social do comportamento feminino. Embora as mudanças tivessem um significativo impacto sobre a maior participação das mulheres na sociedade de modo geral, não conseguiram promover totalmente uma transformação no entendimento de que não há mais espaço para a violência de gênero. Pesquisas afirmam que, em todo o mundo, o patriarcalismo, cujas estruturas se pautam na dominação masculina sobre a mulher, ainda se firma no entendimento do direito da apropriação do trabalho reprodutivo feminino e da reificação sexual (ALMEIDA, 1998; HERTRICH; LOCOH, 2004; BARELLA, 2005). O entendimento patriarcal do poder do homem continua mostrando sua performance, à medida que continua ocorrendo violência de gênero, principalmente no ambiente doméstico. Na pesquisa desenvolvida pela Fundação Perseu Abrano, intitulada A mulher brasileira nos espaços público e privado, realizada em outubro de 2001, foram H ISTÓRIA ,

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abordadas questões qualitativas, cujos resultados corroboram a permanência de práticas patriarcais masculinas dentro dos lares brasileiros. Ouvindo 2.502 mulheres, em suas próprias casas, independente de denúncia de violência, a pesquisa procurou obter dados que permitissem conhecer aspectos que envolvem a violência no ambiente doméstico. Os resultados mostraram que, do universo de mulheres respondentes, aproximadamente 49% já foram vítimas de agressão física, e a responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% e 70% das ocorrências de violência. Nas respostas sobre a violência física, pode-se depreender a presença da violência sutil baseada no entendimento da dominação masculina. Contudo, ela não é aparente. Observa-se que, no momento em que as mulheres foram estimuladas a responder sobre as diferentes formas de agressão, o índice de violência sexista aparece de forma acentuada. Nas denúncias sobre ameaças com armas, vê-se o cerceamento do direito de ir e vir (24%), incluindo nesse dado a proibição de a mulher sair de casa (3%) só ou com amigas e não poder trabalhar fora (2%). Outras denúncias, como os xingamentos, com ofensa à conduta moral da mulher (27%), o desrespeito e desqualificação constantes ao seu trabalho, dentro ou fora de casa (12%), e a ameaça de espancamento a si própria e aos seus filhos (12%) são dados que mostram violência sutil ainda muito presente na vida das mulheres brasileiras. No universo da pesquisa, observa-se também que, pelas respostas de opinião, 78% das mulheres entrevistadas verbalizaram atitudes masculinas que demonstram a constante presença da violência sutil nas relações conjugais. Suas respostas acusam os homens de continuarem a pensar que têm poderes sobre elas, de serem “machões” e insistirem no entendimento patriarcal de que as mulheres são suas propriedades (6%). Das mulheres entrevistadas, 36% acham que eles são autoritários e pensam que elas lhes devem obediência. Por isso, 14% acreditam que eles se “acham mais e melhor do que elas”, o que demonstra que, para os homens que acham que podem tudo (33%), as mulheres nunca sabem nada (13%) e só por ser mulher elas têm menos direitos (12%). Um sintoma de presença de violência sutil aos moldes de poder masculino patriarcal, ainda bastante impregnado na cultura brasileira, é a crença masculina de que só o homem está certo no que faz, “por querer ser mais e ter mais poder”, afirmam 13% das mulheres que reclamam nunca serem ouvidas. Para eles, as mulheres nunca têm razão (13%). Mesmo sem considerá-las “importantes” socialmente, os homens têm muito ciúme das mulheres (21%), usando esse sentimento como principal motivo da violência conjugal. Muitas mulheres (8%) denunciam que seus cônjuges acham que é obrigação delas estarem disponíveis para o sexo na hora em que eles querem, e se isso não ocorre, eles ficam com ciúmes e as acusam de terem outros (3%). A par dessas breves constatações, percebe-se que a mulher contemporânea, apesar das muitas conquistas alcançadas no campo do direito, na educação, na 250

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política, na economia e mesmo na sociedade e na cultura, ainda sofre muito com a violência dentro do ambiente doméstico. Nos últimos anos, o movimento feminista vem colocando em pauta a questão da violência de gênero presente no cotidiano de mulheres que dependem economicamente de seus maridos e de mulheres que há muito se libertaram dessa dependência. Isso quer dizer que as conquistas das mulheres não aplacaram a situação de violência que se instalou na sociedade humana, pois, como afirma Hannah Arendt (1985), a violência sempre esteve presente na História.

N OTA S

1. No contexto da violência sutil, contudo, não cabe a mesma definição que é dada à violência psicológica, pois a definição desta última se aproxima mais da ocorrência de destruição de pertences pessoais, de gritos e ameaças como meios predominantes de resolver conflitos. 2. Por recolhimento entende-se, no âmbito desta pesquisa, a instituição anexa aos conventos, cujas finalidades eram, dentre outras, abrigar e educar parcela da população feminina da sociedade brasileira. 3. Algumas serão citadas no presente artigo e seus nomes serão fictícios.

REFERÊNCIAS

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VOZES FEMININAS ( AINDA ) SILENCIADAS : RANÇOS E AVANÇOS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL

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Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti “Não há um, mas muitos silêncios, e eles são a parte integral das estratégias que fundamentam e permeiam os discursos”. MICHEL FOUCAULT, 1978. “As mulheres vão perdendo o medo de denunciar porque se sentem mais apoiadas” TXARO ARTEAGA, Instituto Vasco de la Mujer, 2000.

MATIZES DA HISTÓRIA RECENTE : CONSIDERAÇÕES INICIAIS Minha separação foi uma das formas de encontrar a mim mesma, porque ele é muito dominante e violento [...] tenho que continuar longe dele. Hoje me dou conta do que foi viver com medo [...] No início tudo era maravilhoso, especial, mas com o tempo ele foi mudando e se tornando violento, agressivo mesmo. Tudo mudou ainda mais quando disse que estava grávida. Ele me olhava com raiva e tudo era motivo de ciúmes [...]. Meu pai sempre foi autoritário e controlava tudo. Ouvir gritos e xingamentos era costume e faziam parte de minha vida, desde de menina. Ouvir xingamentos, palavrões e ameaças de meu companheiro era apenas uma continuação da juventude. De palavras para tapas, muros e uso de cintos foi um pulo [...]. Somente acordei, quando meu filho de oito anos repetiu as mesmas palavras do pai e quando coloquei ele de castigo, ele me disse: ‘Painho faz a mesma coisa e você não diz nada’. Nesse momento, tomei a decisão de sair de casa e meus filhos foram a força que precisava [...]. Já passou mais de ano, e me sinto bem. Tenho um trabalho. Mas, apesar de parecer tonta, ainda gosto dele e eu rezo para que ele mude (2º depoimento de J.M.S, baiana, 32 anos, mãe de 3 filhos, para a DEAM. Salvador, maio de 2005).

A expressão da violência familiar é assinalada como um ciclo vicioso do qual a

saída é temerosa e difícil. A repetição – pelo pai e pelo companheiro – dentro da experiência de vida de J.M.S. somente reforçou seu silêncio, até que a geração seguinte a colocou em questionamento. Um olhar portas adentro é necessário, H ISTÓRIA ,

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mas deve-se cuidar, pois muitas vezes a situação de violência aparece como processo inviolável e que deve continuar invisível. Afinal, mesmo com os dados obtidos até o momento, se visualiza um perfil de vítimas que não denunciam, por vergonha, medo ou lealdade e, quando o fazem, a freqüência e a intensidade da violência podem ser subtraídas do que realmente acontece na vida familiar e cotidiana. O privado vai se tornando público ao longo dos últimos 25 anos, assinalando que as relações de gênero ainda podem estar silenciadas e que há muito que fazer. Os silêncios que rodeiam o tema requerem atenção, por estarem cerceados de conspiração, ignorância ou familiaridade, combinando múltiplos fatores e facetas que encobrem o cotidiano velado dentro da vida familiar. A violência doméstica ocupa espaços e agendas a partir da década de 1980, demonstrando que tal fato não atinge somente famílias de determinadas classes sociais, regiões, religiões ou raça. Ranços de uma cultura patriarcal e hegemônica, os atos de violência física, psicológica ou sexual contra mulheres, por exemplo, foram colocados na pauta de uma ampla reação em níveis locais, nacionais e internacionais. Ao percorrer a história brasileira, é difícil não notar que a exclusão social e de gênero estiveram sempre presentes como elementos fundadores das ações públicas e privadas, especialmente quando os temas são violência doméstica, tráfico de mulheres e turismo sexual. Dentro desse contexto, os silêncios foram superiores aos protestos e ao dizer “não”, pelo menos até o início dos anos 80. Os ranços são ainda aparentes e os avanços identificados como processos de “longa duração”. Isso porque, quando analisamos a questão da violência sexual e doméstica, é importante destacar, a priori, que, a partir da pressão desenvolvida pelos dos movimentos de mulheres, tanto no Brasil quanto no plano internacional, ambas têm sido formuladas em uma série de publicações, convenções e acordos, além de ações de caráter mais global e campanhas massivas em multimeios e gerenciadas por parcerias entre setores preocupados com tal temática. Partindo dessa premissa – e tendo como objetivo neste texto traçar perspectivas e abordagens sobre a violência doméstica no Brasil nas últimas duas décadas – é fundamental retomar abordagens conceituais e separar categorias como agressão e violência. Seguindo a proposta de Soledad Heiremans (2004), a primeira referência vincula-se no fato de a conduta ter intenção de causar danos, enquanto a segunda associa-se ao uso extemporâneo ou inadequado da força ou poder. Concomitantemente, é possível empregar o termo “abuso” para referir-se a algumas ações que, dentro do contexto familiar, podem ser legitimadas pelo uso comunitário, mas cuja propriedade ou intensidade conduz a resultados negativos para algum de seus integrantes. Outras vertentes que contribuem para a compreensão de tipos de violência apontam para a observação como “[...] ato cometido dentro da família por um de seus membros, prejudicando gravemente a vida, o corpo, a integridade psicológica ou a liberdade de outro membro” (ANTONY; MILLER, 1996, p. 14). Ademais, 254

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o conceito de violência doméstica ou intrafamiliar agrupa categorias distintas como a violência conjugal, o maltrato infantil e ao idoso. No entanto, neste capítulo, a ênfase é a prática do primeiro exemplo, tomando como ponto de partida que esta se consolida cada vez mais como um fenômeno social cujo locus é a família e que consiste no uso de meios instrumentais por parte do cônjuge (consensual ou legal) “[...] para intimidar psicologicamente ou anular física, intelectual e moralmente sua parceira, com o objetivo de disciplinar segundo seu arbítrio e necessidade a vida familiar” (DUQUE; RODRIGUEZ; WEINSTEIN, 1990, p. 14). Enveredando pela década de 90, temos organismos e agências internacionais, como as Nações Unidas e organizações não-governamentais, à frente do processo de inclusão social, recomendando aos Estados membros que esse tipo de violência seja tratada como questão social e política, almejando-se criar mecanismos para redução de sua incidência, bem como oferecer serviços de apoio às vítimas.

V IOLÊNCIA CONTRA A MULHER: SILÊNCIOS E CONSCIENTIZAÇÃO “A violência contra mulheres e crianças é o crime encoberto mais numeroso do mundo”. Essa assertiva foi proclamada pela ONU, em 1980, revelando uma situação corriqueira e que ainda não tinha estatísticas suficientes nem estudos para dimensioná-la efetivamente. Não obstante, essa foi uma das alavancas para chamar a atenção para o que ocupava os lares por diversos séculos. Diversos foram os fatores auxiliares na manutenção do silêncio sobre a situação de violência doméstica: a necessidade de resguardar a privacidade familiar, diferenças culturais sobre a concepção de violência, medo de expor e falar sobre o fato. Também existem outros elementos que transformaram – ou pelo menos ajudaram a transformar – esses silêncios em avanços, em processos de conscientização e esclarecimento, como pode ser detectado com a organização do movimento feminista, abertura de refúgios, delegacias especializadas e programas governamentais e não-governamentais, ademais de uma intensa preocupação e divulgação por parte da comunidade internacional em relação ao tema de Direitos Humanos e Direitos Específicos. Em plena década de 1980, essa dinâmica e novos rumos que caracterizam pautas e agendas relativas às políticas sociais ganham maior reforço, inclusive na América Latina, com grande participação de ONGS, tais como Flora Tristan (Peru), Casa de la Mujer (Colômbia), Lugar de Mujer e Centro de Estúdios de la Mujer (Argentina), Centro de Estúdios de la Mujer e Casa de la Mujer “La Morada” (Chile) e SOS Mulher (Brasil). Sem embargo, o problema da violência doméstica e da denúncia de maus-tratos em relação a mulheres e crianças assinala-se como preocupação pública e coletiva. Ainda no que se refere à realidade latino-americana, a ISIS International, em princípios dos anos 90, lança uma publicação que revela investigações detalhadas e comparativas para o continente: H ISTÓRIA ,

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A mulher tem nos países da América Latina e Caribe uma situação de vulnerabilidade independente de sua classe ou inserção laboral. Um dos aspectos que as igualam em possibilidade concreta de sofrer algum tipo de violência contra sua pessoa. A violência contra a mulher, especificamente a violência que sofre no interior da família, foi um tema tabu condenado à invisibilidade, ao silêncio da intimidade do lar e a justificativa por parte de costumes e tradições culturais (ISIS, 1992, p. 44).

Outro marco dessa “nova configuração” de políticas públicas, sem dúvida, foi a divulgação da Declaração sobre a eliminação da violência contra a mulher (CEDAW, 1993). Em dezembro de 1993, esse documento foi aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas e estimulou o surgimento de ações e acordos internacionais e nacionais. O texto reconhece a urgência de uma extensão universal à mulher dos direitos e princípios relativos à igualdade, segurança, liberdade, integridade e dignidade de todos os seres humanos. Outro aspecto assinalado como prioritário é considerar qualquer ato de violência contra a mulher como violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, inclusive levando-se em consideração que esse ato impede as mulheres – total ou parcialmente – de usufruir tais direitos e liberdades. Definindo-se, na Declaração, o que se entende por violência contra a mulher, quase todas as publicações e projetos posteriores seguem a mesma determinação – como sendo “[...] todo o ato de violência baseado no pertencimento ao sexo feminino que tenha, ou possa ter, como resultado, um dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para a mulher, assim como as ameaças de tais atos, a coação, ou privação arbitrária da liberdade, tanto se ocorrerem na vida pública como na vida privada”. Mais do que uma proposta para mulheres, a declaração avança quando sinaliza que estão elencadas todas as violações atreladas à violência sexual, física e psicológica, vivenciadas em âmbito familiar, na comunidade ou perpetradas pelas instituições representativas do Estado. Destarte, sua erradicação requer uma atuação veemente nos espaços públicos e privados. Já como exemplo das discussões promovidas para o continente americano, outros tratados e convenções também configuraram essa frente pró-direitos humanos e da mulher. Esse é o caso da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, aprovada em Belém do Pará em 1994. Nesse mesmo ano, o Brasil assinou a Convenção que apontava a violência física, sexual e psicológica como integrante da violência contra a mulher: [...] a) que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b) que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus-tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e c) que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

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Recomenda o documento que todos os esforços devem ser feitos para prevenir quaisquer formas de violência, além de criar espaços de atendimento às vítimas com respeito e eficiência. O texto endossa e ratifica, além de ampliar em certos detalhes as premissas da Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU). Aliás, como agente fomentador de projetos sociais, a ONU esteve à frente, sendo seguida por outras instituições internacionais e nacionais. Dentre dos seus vinte e cinco artigos, a Convenção delimita claramente o campo dos direitos por ela protegidos, estabelecendo os deveres a serem cumpridos pelos estados membros e indicando também mecanismos interamericanos de proteção e de encaminhamento de denúncias. Na Convenção, confirmam-se o que se entende por discriminação e quais os objetivos a serem empreendidos pelos Estados signatários, como apresentado a seguir: Artigo 1º- Definição da Discriminação contra as Mulheres - Para os efeitos da presente Convenção, a expressão discriminação contra as mulheres significará qualquer distinção, exclusão ou limitação imposta com base no sexo que tenha como conseqüência ou finalidade prejudicar ou invalidar o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das mulheres, independente de seu estado civil, com base na igualdade de homens e mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais no campo político, econômico, social, cultural e civil, ou qualquer outro.

Após esse consenso, houve um aumento progressivo de número de delegacias especializadas para mulheres e de propagandas educativos que alertavam para a violência não somente contra a mulher, mas também em relação a crianças e a adolescentes. Trabalhos científicos, pesquisas financiadas por organismos internacionais e nacionais promoveram um verdadeiro alerta vermelho para a situação crítica e os silêncios que havia nesse setor social. Em seguida, os pontos a serem implementados, como integrantes da gestão pública de cada um dos participantes, seguiriam as propostas evocadas em plenária e transcritas para o documento final do evento (art. 2º): [...] a) consagrar o princípio da igualdade de homens e mulheres nas suas constituições nacionais, ou outra legislação apropriada, caso ainda não se encontre aí consignada, e a garantir, através da lei ou de outros meios apropriados a execução prática desse princípio; b) adotar medidas legislativas apropriadas e outras, incluindo sanções, se for o caso, proibindo toda a discriminação contra as mulheres; c) criar proteção legal para os direitos das mulheres numa base de igualdade com os homens e garantir, através de tribunais nacionais competentes e de outras instituições públicas, a proteção eficaz das mulheres contra qualquer ato de discriminação; d) absterem-se de qualquer ato ou prática de discriminação contra as mulheres e assegurarem-se de que as autoridades e instituições públicas atuarão em conformidade com esta obrigação; e) tomar todas as medidas necessárias para eliminar a discriminação contra as mulheres por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa; f ) tomar todas as medidas necessárias, incluindo legislação, para modificar ou abolir leis, regulamentos, costumes ou práticas existentes que constituam uma discriminação contra as mulheres; g) revogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra as mulheres (CEDAW, 1994, p. 1). H ISTÓRIA ,

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Apesar de todo o avanço em relação às normas e aos acordos internacionais e ratificados pelos países que integram o impulso por melhores condições de vida das mulheres, a violência e os abusos sexuais, além de maus-tratos e pressão psicológica ainda se configuram como instrumentos que confirmam uma visão de que as mulheres seguem sendo um objeto e não sujeito, mas como um meio do que como fim em si. Por isso, o perigo real pode ser evitado por meio de processos de conscientização das causas que perpetuam tal condição e traçando novas estratégias que obriguem uma reação massiva contra tudo que impeça a efetivação da igualdade e justiça social. Denotando mais do que uma preocupação pontual e exclusiva, a existência de um interesse comum (CAMPS; GINER, 2002) de mundialização ou universalização do feminismo acaba por definir um modelo bastante difundido nos últimos anos. Universalizar a causa feminista “[...] significa não deixá-la somente nas mãos das mulheres, reduzindo-as a projetos marginais próprios de instituições de mulheres e de ministérios de assuntos sociais” (CAMPS, 1998, p. 22-3).

DIREITOS HUMANOS E VIOLÊNCIA : PONTO DE PARTIDA PARA PROJETOS PÚBLICOS?

Representantes de países americanos fomentaram um levante contra qualquer violação de direitos da mulher. Embora já existissem alguns mecanismos de denúncia da violência e de violações de direitos humanos por toda a América Latina e também no Brasil, os movimentos sociais e feministas, de modo geral, não buscavam ainda acionar essas cortes internacionais quando eram explicitados casos relativos à violência. Do mesmo modo como as feministas, na década de 70, particularizaram suas causas, em meados dos anos 90, havia indícios de ações bastante pontuais. Afinal, a questão da violência exercida contra mulheres é ainda um aspecto pendente na agenda de alguns países, mesmo levando-se em consideração os inúmeros projetos e esforços realizados. Isso porque essa violência é um sério obstáculo para alcançar liberdade e justiça social. Sem dúvida, é uma das áreas em que o predomínio de um sexo sobre o outro – por isso o uso do termo violência de gênero (SAFFIOTI, 2001, 2004) – incide em uma das formas mais graves, considerando que afeta diretamente o desenvolvimento individual e social da mulher, impedindo-a de atingir o mínimo exigido na convivência entre seres humanos. A violência, consoante a diretora geral do Instituto da Mulher (Espanha), Asunción Miura, é um campo no qual o ser humano que a exerce perde tal condição. Para acabar com a violência, “[...] é necessário que todos a condenemos e sejamos intolerantes frente a ela. A violência somente será eliminada quando as comunidades se negarem a perdoá-la e os violentos se conscientizem de que devem deixar de utilizá-la”. Menciona que a eliminação desse procedimento – especialmente quando se trata de mulheres e crianças diante de uma situação de violação no âmbito doméstico –, é um caminho a ser trilhado a partir de políticas 258

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públicas e de instituições não-governamentais, principalmente ao se almejar a igualdade e se “[...] exigir relações de respeito e de mútua cooperação entre homens e mulheres nas quais a violência não é cabível” (MIURA, 2003, p. 6-7). Aqui vale a assertiva de que é dentro da vida familiar que a violência toma maior configuração e acontece. Tal fato impõe silêncios realmente difíceis de serem ultrapassados, afinal, as representações sociais sobre a família sempre a associam com um conjunto de relações e de redes de pertencimento que se matizam em lugar privilegiado e protegido, caracterizando-se pelo afeto positivo e pelo apoio e vínculos entre seus membros. Em realidade, os documentos assinalados anteriormente eram básicos para as ações que foram levadas à discussão em nível mundial em duas grandes conferências promovidas pela ONU. Na cidade do Cairo, em 1994, a Conferência Mundial de População e, no ano seguinte, a Conferência Mundial da Mulher em Pequim. Ambas ratificaram os documentos afirmando que, para potencializar a contribuição da mulher para o processo de desenvolvimento, seria importante a eliminação da discriminação e da violência das quais elas eram e são vítimas. Novamente, denota-se a emergência de políticas públicas vigorosas e que estivessem nas ações prioritárias dos Países membros. Os dois Programas de Ação destacavam a relevância da adoção imediata de políticas governamentais, respaldadas pelas agências internacionais, como ONU, Banco Mundial, BIRD, dentre outros, para a eliminação da violência em qualquer dos espaços mencionados. Como conseqüência, os Estados membros que aprovaram esses vários documentos e programas de ação – entre eles o Brasil – assumiram responsabilidades e compromissos nesse sentido. Não obstante, contava-se internamente com o Programa Nacional de Direitos Humanos que incorporava uma seção específica sobre violência doméstica, respondendo não apenas a uma postura governamental, mas também aos compromissos assumidos e assinados até 1995. No período entre as décadas de 70 e 90, a ação do movimento de mulheres foi exitosa no que se refere ao reconhecimento de suas manifestações e bandeiras, seja nacional, seja internacionalmente. Um dos grandes destaques para expansão foi delinear o fenômeno da violência doméstica como sendo de caráter político e merecedor de respostas rápidas por parte do Estado e da sociedade civil. Com o fim da ditadura militar brasileira, era mais do que urgente reverter o quadro social de exclusão e injustiças. Somente em 2000, com apoio da UNIFEM e da Fundação Ford, é publicado um guia especializado, intitulado de “Violência Contra a Mulher: um Guia de Defesa, Orientação e Apoio”. O objetivo último desse esforço foi contribuir para a ampliação da cidadania feminina na luta contra a violência doméstica e sexual. Ademais, divulga informações e serviços – específicos para o Estado do Rio de Janeiro –, mas importantes como contribuição para outras instituições seguirem como modelo. Mais do que uma orientação para as vítimas, tornou-se referência para policiais, assistentes sociais, advogados e profissionais de outras áreas que atendem as vítimas, H ISTÓRIA ,

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bem como instrumento difusor para a própria população, com o intuito de incentivar o reconhecimento da violência como “[...] um atentado aos Direitos Humanos, um obstáculo ao desenvolvimento e à consolidação plena da democracia no Brasil” (CEPIA; CEDIM, 2003). Ao retomarmos o processo de democratização e abertura política, faz-se presente a idéia de observar a construção histórica do próprio movimento e de suas mais distintas expressões. Na década de 70, apesar da ditadura e da censura, registrou-se um fato oportuno analisado por meio do sistema estatístico. Por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi pressionado, em particular, pelos movimentos de mulheres e de negros, para fazer uma revisão de sua metodologia aplicada às questões de raça e gênero, incluindo – desde a construção, coleta e análise de dados – a diversidade vivenciada na sociedade contemporânea, não só o que estava associado aos dados socioeconômicos, mas sobretudo à diversidade sexual e étnica da população do Estado brasileiro. Esses esforços, para que se desagregassem os dados estatísticos por sexo e raça em relação às questões de emprego, participação política e níveis de renda, indicaram novas interpretações e ofereceram maior visibilidade às discriminações vividas pelos segmentos dentro das relações sociais e das experiências cotidianas. O avanço atingido com essa nova metodologia abriu possibilidades para inúmeros trabalhos acadêmicos que tentam construir/reconstruir a trama socioeconômica do País. Entretanto, buscar nos dados criminais as representações sociais que compõem a vida e a condição de mulheres e negros/as apresenta dificuldades maiores do que trabalhar com outros indicadores, como estatísticas sociais e dados oriundos do Ministério da Saúde. Afinal, até o momento, não existe no Brasil um sistema nacional integrado de estatísticas criminais, sendo a única referência os dados produzidos e divulgados pelas Secretarias de Segurança Pública. Ao enveredar pela temática da violência doméstica faltam dados estatísticos, ou estes são muito precários, sem base metodológica previamente definida ao longo da construção informacional e das publicações desses resultados, sem contar com dados desagregados por sexo. Muitas informações estão concentradas nas DEAMS ou por pesquisas de organizações não-governamentais, como a CHANGE e a WOMENKIND, ambas de origem britânica. Desse modo, a dificuldade em comparar esses dados que envolvem diferentes análises, interpretações e pressupostos acaba por restringir as informações colhidas às Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres, criadas a partir dos anos 80. De maneira mais ampla, as delegacias especializadas são consideradas mais do que entidades que registram e apuram denúncias de crimes de natureza doméstica e sexual,1 oferecendo serviços extrapoliciais, tais como assistência social e psicológica às vítimas. Isso requer recursos humanos preparados para causas específicas, imputando às políticas públicas e programas vinculados à mulher uma noção de que esse tipo de ato, freqüentemente, é executado no âmbito doméstico e faz parte 260

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dos silêncios femininos impostos por uma cultura de supremacia masculina. É preciso ir além desses obstáculos, pois “[...] das 411.213 notificações registradas em 2000, em 267 DEAMS, 113.727 foram de lesão corporal e 107.999 de ameaças” (CONSTANTINO, 2001, p. 3). Os dados são alarmantes, mas não compõem ainda o que realmente tem acontecido nas casas e nos lugares de onde saem as vítimas. Atualmente, existe um grande esforço do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher para elaborar um diagnóstico amplo sobre a estrutura das delegacias para mulheres, inclusive demarcado pelo Plano Nacional de Políticas para Mulheres, veiculado a partir de dezembro de 2004 e muito trabalhado no Dia Internacional da não-violência contra a mulher (25 de novembro).2 Em depoimentos coletados para a confecção do Relatório das DEAMS, constam representações de sua atuação, função e atendimento, bem como a perspectiva que ultrapassa o simples e restrito atendimento somente às mulheres. Como uma unidade policial de aspecto pouco policial, mas social. Diante do quadro violento que assola o país (homicídio, roubo, etc.) a violência doméstica acaba sendo encarada como algo secundário na escala de prioridades. Delegacias especializadas em atendimento de crimes contra a violência doméstica, que dão um caráter social ao atendimento prestado pelas DEAMS. Em muitos casos, tal perspectiva é até correta, porém essa visão se torna distorcida, atribuindo às DEAMs o caráter de uma delegacia de menor relevância. É vista como órgão que dá apoio assistencial. A maioria dos casos apurados são crimes de menor potencial ofensivo e as DPs trabalham com casos de maior gravidade. Quando há funcionários eficientes, eles não são enviados às DEAMS e sim para as DPs para apurar os casos graves e são esses que a população cobra com maior rigor de nossos governantes e superiores (SOARES, 2004, p. 123).

Em outra entrevista, é possível extrair os preconceitos e os enfrentamentos diários vivenciados pelos funcionários e policiais que integram as delegacias especializadas, pois esses órgãos são “[...] vistos pelos próprios policiais como de segunda categoria porque fazem também um trabalho preventivo e conciliador”, revela Solange Jurema, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CONSTANTINO, 2001, p. 3). Em geral, as DEAMs registram, como ocorrências mais comuns, as lesões corporais, estupros e ameaças; mas não incluem, em sua área de competência, homicídios e crimes contra a honra, o que se confirma, para os anos 2004 e 2005, de acordo com os relatórios da unidade de Salvador. Esses casos são transferidos para as Delegacias de Polícia. A violência contra as mulheres é uma prática rotineira e somente ganhou maior força e destaque já em plena década de 90. As associações e organizações feministas e femininas já traziam em seus planos e plataformas uma intensa movimentação em relação a essa temática, mas somente em 1991 definiu-se claramente contra a violência do marido justificada pela traição. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) prescreveu um crime cuja razão era “defesa da honra”, alegando que “[...] não poderia ser visto como uma reação normal e legítima contra o adultério”, acrescentando que a defesa não era a honra, “[...] mas vaidade e H ISTÓRIA ,

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presunção exagerada” (VENUCCI, 1991, p. 552). Além desses aspectos, pode-se acrescentar que algumas dessas ocorrências são pormenorizadas, como é o caso de estupro, pois, quando praticado por membros das famílias (particularmente pais e padrastos), tendem a ser omitidos e não denunciados. Os crimes praticados por homens contra as mulheres são acontecimentos cuja denúncia é vista como imprópria por ocorrerem nos espaços privados. “Tanto os policiais excluem estes crimes da caracterização da criminalidade, como as mulheres se recusam a processar judicialmente seus agressores” (SUAREZ; BANDEIRA, 2004, p. 68). Trazendo a realidade cotidiana de milhares de mulheres que sofrem violência e transformam suas ações em silêncio, podemos buscar dados degradantes, não só do aspecto social e cultural, mas também as ações paradoxais empreendidas pelo próprio Poder Jurídico. Os dois casos ganharam divulgação na imprensa brasileira em 2001 por se tratar de envolvimento de menores. A primeira, uma menina de quinze anos, habitante de Ponte Nova, Minas Gerais – ameaçada com uma faca – e a segunda, de Oeiras, no Piauí, com quatorze anos. Nos dois casos, após a ação penal privada, o Tribunal de Justiça concluiu que se configurava claramente como crime hediondo e os réus foram condenados à prisão fechada. As apelações dos réus foram encaminhadas aos Tribunais de Justiça dos dois Estados. No Piauí, sendo relator o desembargador José Albuquerque, foi entendido “[...] que mesmo na conjectura da concordância da menor para a prática do sexo, fica caracterizado o crime de estupro em sua modalidade ficta, isto é, com violência presumida”. A pena condenatória foi mantida nos mesmos termos em que havia sido imposta pelo juiz da comarca, porque a vítima não era maior de quatorze anos. Ao retomar o caso mineiro, o Tribunal entendeu – apesar da faca na garganta da vítima, constrangendo-a à prática sexual – que não houve, nas palavras da decisão, como “[...] cogitar de ação pública incondicionada. Na verdade, a ação seria mesmo de natureza privada, ficando a atuação do Ministério Público condicionada ao oferecimento de representação pelos representantes legais da ofendida”. Desse modo, reconhecia-se a violência real3 e a legitimidade do Ministério Público, sem cogitar a necessidade de representação. Contudo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao negar a violência real da faca na garganta, acabou por decretar a nulidade do processo e a extinção da punibilidade, em virtude da decadência reconhecida, sendo expedido o alvará de soltura. Os dois casos estão na “Revista dos Tribunais” (v. 781, set. 2001) e demonstram explicitamente a imprevisibilidade no julgamento dos processos. Ao dar continuidade à ação penal, as famílias e as meninas estupradas buscavam justiça e os processos são longos. Assim como esses casos, milhares são os relatos dentro das DEAMS sobre os contrastes e os paradoxos da Justiça oficial, quando, em face de uma certa conduta, preferem e privilegiam os pormenores 262

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técnicos, ainda que muito relativos, em vez da prática efetiva do espírito da lei e de seus efeitos na realização do justo.

E M BUSCA DE UM MAPEAMENTO : A VIOLÊNCIA EXPLICITADA Para configurar o novo mapa social para o Brasil, as estatísticas são reveladoras não só das instâncias sociais contemporâneas, bem como da implementação, a partir de início da década de 80, de uma série de estudos e instituições de pesquisa que traziam novas contribuições e abordagens às análises sociais. Para exemplificar, pode-se citar que o movimento feminista apontava a existência de uma violência específica contra a mulher em sua pluralidade (cultural, doméstica, escolaridade e renda, acessibilidade e condições no mercado de trabalho), mas que somente integrou o Suplemento Especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) para o ano de 1988 acerca da justiça e vitimização. Nesse relatório, entre as mulheres vítimas de violência, um percentual maior que 65% correspondia ao espaço doméstico. A partir desses indicadores, uma análise foi esboçada para exemplificar tais características, pois os conflitos privados dificilmente chegam ao conhecimento da polícia e à divulgação. [...] 67% das pessoas que foram agredidas por parentes ou pessoa conhecida preferem não recorrer à polícia e, quando o fazem, nem sempre chegam a registrar queixas. Conflitos circunscritos ao âmbito doméstico traduzem uma pauta cultural que dissocia o âmbito das relações privadas das instituições públicas. Daí que agressões não sejam tratadas como questões de polícia. 66% dos autores são parentes e pessoas conhecidas em conflitos que ocorrem no âmbito doméstico. A questão não é a inexistência de conflitos, mas a idéia de que eles são estritamente privados e sua resolução ampara-se, talvez, no conhecido provérbio de que ‘roupa suja se lava em casa’. Ocorre que a roupa é muita e bastante suja. 66% das vítimas de violência em casa são mulheres. 74% delas estão na faixa de 18 a 50 anos de idade e em 70% são vítimas de agressões de parentes. As outras vítimas de agressões em casa são menores de 17 anos (28%) (PAIXÃO; BEATO, 1997, p. 233).

Consoante com os dados expostos, confirma-se o silenciamento quanto à violência doméstica, inferindo a idéia de que existe um padrão de conflitos que raramente chega ao conhecimento das instâncias de segurança pública, principalmente por se tratarem de conflitos e ações se não domésticos, pelo menos são realizados e/ou envolvem pessoas conhecidas da vítima. Certamente, no cômputo dos custos de se acionar o Estado, está uma orientação motivacional que demarca uma linha divisória entre a legalidade e o âmbito das relações pessoais. Além disso, tradicionalmente, tem-se a tendência de naturalizar a violência doméstica, o que legitima tratá-la como um problema de foro privado, gerando uma tácita aprovação ao fato e ao comportamento de banalização da sociedade em geral. Dentre as propostas enumeradas pelo convênio entre organizações governamentais sobre as DEAMS, a de “valorização da função policial educativa, preventiva e investigativa” H ISTÓRIA ,

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é tida como possibilidade real, incrementando projetos internos como o aconselhamento, mediação e conciliação, além da capacitação e da divulgação por meio de campanhas e cursos que sensibilizam profissionais e comunidade sobre questões de gênero e direitos humanos. Muitas mulheres procuram as delegacias para atendimento ou, conforme a antropóloga Kelly Cristiane da Silva, responsável pelo levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher, “[...] apenas para que a delegada converse com o agressor, geralmente da própria família, como forma de repreendê-lo. Elas não chegam a registrar ocorrência. Por esse motivo, é importante que haja profissionais capacitados” (apud CONSTANTINO, 2001, p. 3). Talvez seja justamente essa fronteira entre vida privada e pública que tenha alavancado a discussão sobre órgãos governamentais que fossem capazes de ir além do atendimento convencional, rompendo barreiras tradicionais do funcionamento e da gestão pública e direcionando para uma nova forma e maneira de gerir programas sociais. Isso não significou somente o alargamento do universo a ser pesquisado, mas obrigava o Estado a repensar essa situação, propondo uma atuação concreta para que os projetos e os programas sociais pudessem intervir e alterar tal quadro. “Diz um provérbio que o homem não sabe por que bate, mas a mulher sabe por que apanha. Isso oculta uma realidade triste. Nem sempre as vítimas denunciam seu agressor. Muitas não registram queixas na polícia e nos hospitais. Voltam para casa e silenciam” (NUNOMURA, 2002, p. 10). Nos finais dos anos 70, começaram a surgir denúncias crescentes acerca da violência doméstica, com relatos de espancamentos, ameaças e mesmo homicídios de mulheres. Muitos desses casos eram tratados pelo Judiciário como “legítima defesa da honra”, nos quais homens ofendidos tinham uma autorização tácita da sociedade para matar ou usar da violência contra suas mulheres, com absolvições judiciais ou processos intermináveis. Após trinta anos, os números ainda não são exatos, mas demonstram a urgência de uma pauta especial. Em muitos casos, as cifras aparecem camufladas em pedidos de pensão de alimentos, guarda, investigação de paternidade, decorrentes de separações motivadas por ambientes violentos. Já em plena década de 80, iniciativas de ordem nãogovernamental e governamental de ajuda solidária para as mulheres em situação de violência foram essenciais nas manifestações contra a exclusão e os silêncios femininos, como é o caso do “SOS-Mulher”, criado em São Paulo (1982). O número de denúncias foi tão expressivo, e as dificuldades encontradas para encaminhamento aos órgãos de segurança pública foram tantas, que se tornou necessária a formulação urgente de políticas na área. Para exemplificar a ação estatal, o surgimento das “delegacias da mulher” demonstra um ponto de referência do aparato público. Ademais, ONGS também atuam na esfera da violência doméstica, como é o trabalho realizado pela Casa de Cultura da Mulher Negra (CCMN), com sede em Santos. Oferece palestras, atendimento especializado e 264

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criou campanhas publicitárias, além do lançamento – em abril de 2001 – de um manual chamado “Violência contra a mulher, um novo Olhar”. A iniciativa da Casa de Cultura da Mulher Negra foi levada a outras cidades, como Belo Horizonte e São Paulo, para a adoção de protocolo de atendimento e assistência por parte de órgãos governamentais no combate e detecção de violência doméstica. Do porteiro aos enfermeiros, dos atendentes aos médicos, conscientização e preparo de profissionais para ler “nas entrelinhas”, ampliando o atendimento meramente físico para a situação e o contexto social das pacientes. A instância competente para tal finalidade foi sancionada com o nome de Serviço de Atendimento à Mulher e seu objetivo era treinar funcionários das delegacias para atender a esse tipo de ocorrência, contando com o apoio de psicólogos e assistentes sociais. Ao propor uma revisão da situação feminina e atendimentos abertos, algumas organizações não-governamentais tomam para si a responsabilidade de promover e dar visibilidade aos enfrentamentos e às urgências em busca de um “novo contrato social” (PHILLIPS apud CASTELLS, 2003). Afinal, é impossível avançar neste estágio de construção da cidadania social, sem reorganizar esse contrato, revendo fronteiras entre as vidas pública e privada. Rosiska Oliveira, presidente do Centro de Liderança da Mulher, com sede no Rio de Janeiro, confirma: Compreender que a humanidade é composta de dois sexos, iguais e diferentes, tem conseqüências. A sociedade tem de redefinir-se, porque estão chegando ao espaço público, pessoas que engravidam e amamentam, que têm sensibilidade e linguagem própria – fruto de uma experiência diferente da dos homens [...].

Aliás, a proposta aqui é justamente indignar-se e demonstrar que o mal-entendido persiste, tanto quanto se fala nas funções públicas e privadas direcionadas às mulheres. E continua: “[...] é preciso reconhecer que as atividades da esfera privada são devoradoras de tempo, têm valor social e econômico incontestável e representam, para as mulheres, um freio a suas ambições de liderança” (OLIVEIRA, 2000, p. 26-27) e de visibilidade de suas experiências. Em depoimentos colhidos com titulares da DEAM do município de Salvador, Bahia, pode-se detectar o aumento de casos de violência, muito mais por grau de violência e temor em relação à sua própria vida ou à dos filhos do que por conscientização. No entanto, em um levantamento realizado em bairros, sobretudo nos mais carentes, foram contabilizados 298 casos para o mesmo período: “Não é possível sequer arriscar uma projeção sobre volume de crimes. Sabemos que o total de estupros pode ser ainda maior que os 298 levantados, além das agressões, ameaças, assaltos e seqüestros” (Entrevista com a delegada Isabel Alice Jesus de Pinho, 13-10-2003). H ISTÓRIA ,

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“A aparente fragilidade feminina aliada ao fato de que as mulheres não lêem as páginas policiais dos jornais e, por isso, não conhecem os procedimentos de abordagem utilizados nos diferentes crimes, as tornam vítimas preferenciais e vulneráveis aos criminosos” (Entrevista com a delegada Francineide Moura, 16-10-2003). Outro exemplo de irregularidades na apresentação de dados sobre a violência sexual no Brasil é que estes são, geralmente, subestimados. O número de estupros registrados aumentou de 8.081, em 1996, para 15.106 em 1999 em âmbito nacional, segundo dados do Ministério da Justiça, publicados em 2000. Isso se deve, na opinião de alguns estudiosos, à atuação das Delegacias da Mulher, que facilitaram as denúncias. Nesse contexto de silenciamentos, um dado que pode ser destacado é o perfil das vítimas de agressão, realizado pelas DEAMS do Estado do Rio de Janeiro. As informações trazem em seu bojo mais do que a urgência em implantar políticas públicas e punições severas, traz o reflexo da falta de programas educativos e de apoio jurídico para as vítimas, podendo ser listado em de alguns índices: 82% das mulheres que procuraram as delegacias para denunciar crimes eram esposas dos agressores, sendo 50% vinculadas à ocupação doméstica, 30% alfabetizadas, 74% com filhos (GOVERNO, 1999). De um lado, essas taxas reforçam a situação de fragilidade social das vítimas, sem recursos e sem condições para escapar da violência doméstica. Por outro, desfazem o mito criado de que a violência contra a mulher é um fenômeno estritamente relacionado com a pobreza, refutando diversas tendências da literatura específica. Para confirmar essa hipótese, retomamos alguns dados, novamente para o ano de 1995: 5,82% dos Boletins de Ocorrência diziam respeito a mulheres com renda superior a cinco salários mínimos e 5,7% com nível superior de instrução. Para as mulheres com melhor condição econômica e independência financeira, existem outros recursos a serem acionados, como buscar apoio de especialistas jurídicos. Entretanto, isso pode induzir a uma idéia de que seu comparecimento às delegacias seja estatisticamente menos expressivo, mas não indica, necessariamente, que elas sejam menos agredidas do que as que estão em condições menos abastadas ou possuem menor escolaridade.

EM BUSCA DE SOLUÇÕES COLETIVAS: CONFERÊNCIAS, NÚCLEOS E PROGRAMAS Após a Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada em 1993, o Ministério da Justiça iniciou um ciclo de reuniões com grupos e representantes da sociedade civil para delinear estratégias que objetivassem pelo menos diminuir a violência, incluindo a de gênero, além de rever as metodologias aplicadas nas pesquisas estatísticas nacionais. Nesse período, formaram-se grupos de trabalho para definir as ações conjuntas, confecção de um sistema integrado de estatísticas sobre violência, desagregando por raça e gênero, bem como definições de uma metodologia que permitisse a organização de instrumentos de coleta de dados 266

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capazes de caracterizar as nuances da violência no País, além da implementação de políticas públicas que possibilitassem diminuir a ocorrência desse fenômeno. Essas diretrizes foram responsáveis pela revisão de dados sobre violência de gênero e organização de seminários e projetos de pesquisa do Núcleo de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo (USP), revelando a intensidade das contribuições acadêmicas. Ademais, procuravam elaborar o pré-projeto para o Programa Nacional de Direitos Humanos, incluindo a necessidade de elaboração de um mapa da violência urbana, com base em dados e indicadores de desenvolvimento urbano e qualidade de vida. A partir dessas promoções, acompanhava ainda esse panorama uma recomendação acerca da implantação imediata do que intitularam Programa de Integração das Informações Criminais, visando à criação de um cadastro nacional de identificação criminal detalhado e que pudesse servir como fonte primária nas investigações e mapeamento da violência, predominantemente nas capitais, num primeiro momento, e etapas do projeto maior. Contando com essas propostas no nível federal, também foram elencados esforços concretos, como a normatização e a exigência de registros de ocorrências criminais das polícias civis estaduais. Contudo, as determinações estaduais não seguiam uma metodologia uniforme nacional, não permitindo estudos comparativos entre os diversos Estados ou mesmo dentro do próprio Estado. Tampouco esses registros, isoladamente em cada Estado, permitem extrair sugestões para políticas públicas de âmbito nacional, assinalando um caráter mais pontual. Ao apontar este panorama dos silêncios e da falta de programas nacionais que atendam diretamente às vítimas de violência doméstica,4 ainda existe um outro aspecto a ser abordado e que demonstra uma ação menor do Poder Judiciário. Há uma hierarquia de crimes, caracterizando uma seletividade entre os mais diferentes atos de violência cometidos não só contra a mulher, mas em relação a qualquer indivíduo. Crimes cometidos no espaço público, por exemplo, são considerados mais graves do que aqueles que ocorrem e tomam lugar no âmbito doméstico. Crimes cometidos por estranhos são considerados mais graves do que aqueles realizados por membros da própria família, embora o Código Penal indique como agravante o fato de o agente agressor ser pessoa que prive da intimidade da vítima, configurando abuso de confiança e qualificação do crime. Nesse sentido, sublinham-se alguns fatos relevantes no que tange às realidades encontradas sobre violência doméstica: sua especificidade de gênero (mulheres) e o locus de ocorrência (espaço doméstico). Tendo em vista este arcabouço de uma nova abordagem para a realidade vivida dentro de casa, as DEAMS – por meio de dados mais específicos – deram visibilidade aos crimes até então silenciados e sinalizaram a urgência de sensibilização e elaboração de programas que não só buscassem apoio psicológico e jurídico, com o intuito de proteger as vítimas. Outro fator pouco valorizado está na idéia de que o estupro não é apenas um crime contra a mulher; mas, sobretudo, uma questão H ISTÓRIA ,

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de saúde pública. A vítima requer atenção do sistema de saúde para a detecção precoce de doenças sexualmente transmissíveis (DST) e de gravidez, além de acessibilidade aos serviços de abortamento legal, garantidos pela legislação vigente. A partir dessas informações, nos finais do século XX, evidencia-se a necessidade de articulação entre os diversos organismos públicos, a sensibilização e os projetos educativos veiculados em larga escala, além da divulgação dos acordos e tratados internacionais assinados pelo Estado brasileiro para garantir condições de saúde e justiça às mulheres, inclusive caracterizando a violência contra a mulher como questão prioritária e de direitos humanos. Nesse trabalho diário e silencioso das DEAMS, podem-se extrair mais do que simples dados sobre a condição feminina e os seus silêncios. Apesar de avanços inegáveis, a violência doméstica e sexual, instalada com naturalidade na cultura brasileira, saiu da invisibilidade pela ação dos movimentos de mulheres – e esse sempre foi um dos pontos de maior polêmica e que somente ganhou maior força na década de 1990 –, mas ainda está engendrado nas relações interpessoais nos mais diferentes estratos sociais, constituindo-se em negação dos direitos mais básicos de cidadania. Outro aspecto que deve ser abordado é o planejamento familiar. Sem dúvida, essa foi uma das constantes demandas do movimento de mulheres (desde 1970), sendo, inclusive, reconhecido como direito na Constituição. Todavia, essa é uma das abordagens mais controversas, pois está longe de ser realidade para a maioria das mulheres brasileiras, sobretudo as de baixa renda.

CONSTRUINDO REDES E VISIBILIDADES : CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao inserir a violência de gênero ou doméstica de maneira mais visível, alguns dados não deixam de ser alarmantes, mas esboçam proposições e iniciativas que podem gerar políticas públicas e ações conscientizadoras para toda a sociedade. Por exemplo, em 2004, algumas instituições não-governamentais revelaram indicadores sobre a situação da violência contra as mulheres. A Fundação Perseu Abramo, por exemplo, afirmou que 11% das brasileiras com quinze anos ou mais já foram vítimas de espancamento e que uma, em cada cinco mulheres, foi agredida pelo menos uma vez. A pesquisa demonstra ainda que o marido ou companheiro é responsável por 56% dos espancamentos, 53% da ameaças com armas e 70% da destruição dos bens. Mais da metade das vítimas não procura ajuda pelos mesmos motivos que foram apontados no início deste texto: temor, medo e vergonha. Outra pesquisa, também referente ao ano de 2004, promovida pelo IBOPE e pelo Instituto Patrícia Galvão, revelou que 30% da população do País consideram a violência contra a mulher como o problema que mais preocupa a brasileira, deixando para trás outros, como o câncer de mama e a AIDS. O estudo ressalta que 90% dos brasileiros acreditam que o agressor deveria sofrer um processo e ser encaminhado para uma reeducação. 268

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Diante de um quadro repleto de desigualdades, em especial no que se refere ao gênero, geração, raça e classe, pode-se justificar como um imperativo a adoção gradual e cada vez maior de ações que promovam medidas afirmativas para a correção dessas condições. Não menos relevante é a implantação de mecanismos institucionais de políticas e iniciativas de promoção da igualdade. A presença, em todo o território brasileiro, de organizações públicas e civis que respaldem a isonomia, mais especificamente das mulheres, tais como Conselhos e Coordenadorias, bem como de organizações, devem ser apoiadas por representarem novos canais de interlocução e parceria entre sociedade civil e Estado, enfatizando a promoção de ações contra a violência doméstica, além de criar espaços de prevenção e punição (ou de reeducação como aparece pela primeira vez na proposta de seminário que ocorreu na Espanha em 2000 – intitulado Feminismo es... y será – e foi retomado no Plano Nacional de Políticas para Mulheres, de 2004) (DOLZ, 2000). A originalidade dessas instâncias é o desempenho de um duplo papel, da abertura de um amplo diálogo e revigoramento de ações inclusivas: em sua interlocução para dentro do aparelho do Estado, reivindicando e acompanhando a implementação de políticas públicas que atendam às necessidades e direitos das mulheres; em sua interlocução com a sociedade civil, promovendo a mobilização de recursos humanos e materiais disponíveis no mundo das organizações nãogovernamentais, universidades e mídia para iniciativas de melhoria da qualidade de vida das mulheres e da promoção da não violência doméstica e familiar. As organizações que estiveram à frente do movimento de mulheres brasileiras do último quartel do século XX mapearam – em suas missões, reivindicações e ações múltiplas, o que podemos denominar de “formas de ação”. Foram muitas as suas representações, desde grupos de reflexão – como bem desenvolveram as acadêmicas e intelectuais – até os grupos de prestação de serviços e de intervenção social, em âmbito local, nacional ou internacional. Em alguns casos, foram explicitamente copiados de modelos implantados na Europa e nos Estados Unidos, mas não deixavam de cumprir o papel de organizações que promoviam e buscavam assegurar os direitos e a efetiva inclusão das mulheres no processo econômico e social contemporâneo como agentes e atoras de sua própria história. Ademais, como grupos de pressão, juntamente com avanços nas discussões de políticas públicas no Brasil, essas parcerias sinalizaram para a atuação ou trabalho em rede. Reunindo distintos grupos me instituições sociais, essa prática pode criar “[...] um contexto onde podem emergir redes e responder diretamente â necessidade de apoio e auxílio, utilizando recursos próprios” (ELKAIM, 2002, p. 105). Partem da idéia de compartilhamento e de que, por meio da vivência grupal sistemática, aspectos e reivindicações comuns da condição e vida das mulheres acabariam orientando o desenvolvimento de mecanismos de autodefesa em relação à opressão específica a que estavam sujeitas, bem como modificando a forma de promoverem H ISTÓRIA ,

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um largo processo de conscientização. A premissa do inter-relacionamento marcava a maior parte das organizações, especialmente as de caráter não-governamental, além de grande ênfase no aspecto de intercâmbio promovido e favorecido pela socialização do cotidiano e das experiências de mulheres como instrumento de conscientização. Em relação à questão exposta acima, Sheila Rowbotham (1981, p. 132) acrescenta que muitas organizações deixavam seus objetivos e metas de lado por valorizarem a prática intimista, auto-referenciada, “[...] centrada no indivíduo sem que se faça a passagem para o social. [...] Corre o perigo de enveredar pelos descaminhos dos estereótipos e de um ‘machismo às avessas’, resultado de uma visão sexista da opressão da mulher, que desemboca, em geral, na ‘guerra dos sexos’”. Partindo dessa leitura, é relevante mostrar ainda que, se as redes e as organizações feministas não traçarem sua ideologia e campo de ação de maneira a romper com as amarras e categorias já existentes, não haverá nenhuma mudança estrutural, pois, desse modo, ao não questionarem o sistema que gerou a desigualdade e a exclusão das mulheres, esses grupos acabam por manter inalterada a divisão social do trabalho, reproduzindo a opressão e não contestando de fato as condições culturais e sociais que deram origem a tal situação. Entretanto, assumem uma postura de denúncias e se voltam para uma reflexão crítica acerca da sua própria ação e práxis, constituem-se importantes instrumentos de lutas feministas para sua libertação e construção da justiça social. Por essas razões, a temática violência de gênero deve saltar de ações pontuais para uma reflexão mais ampla por parte da própria sociedade, permitindo a criação e a organização de redes que atuam nas diversas nuances que exigem a abordagem, compreendendo que o uso da força e da agressão (seja psicológica, seja física) não é somente um ato individual, mas, sobretudo uma das pontas mais importantes da agenda sobre relações de gênero. As contradições e as propostas que percorreram o Brasil dos anos 70 em diante são ratificadoras também das contradições sociais, da implementação de políticas públicas e das múltiplas ações e manifestações erigidas dentro do movimento de mulheres. Isso porque é indispensável fazer uma reflexão sobre as diretrizes das ações gerenciadas por esses grupos sem perder a integração com a organização das mulheres, para reivindicarem os serviços, denunciar, transformar e criar instrumentos válidos de ação e reflexão das mulheres para a superação de sua opressão. A percepção de que o movimento de mulheres dispõe, ao longo do processo histórico atual, de um dinamismo e de contradições internas também faz com que se compreenda melhor a composição social das redes criadas neste momento histórico. No movimento de mulheres, as formas de apoio mútuo podem ser vistas como voltadas para diversos aspectos de oposição. Algumas são especialmente contra o domínio dos homens sobre as mulheres em relação “[...] ao sexo e a consciência gerada pela desigualdade e que, na prática, estão ligadas às condições de trabalho 270

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e de habitação, à lei, assim como às nossas próprias idéias de sexualidade e masculinidade”. Para complementar, é relevante comprreender que “[...] outras formas de organização de apoio não têm por objetivo ir contra o poder do Estado e que a força do feminismo está em que, partindo-se de determinadas circunstâncias da vida diária seja possível avançar para as relações engrenadas de poder, que compreendem não só as mulheres, como também os homens” (ROWBOTHAM; OUTROS, 1981, p. 136-137). É fundamental salientar que o problema da violência doméstica foi eixo de preocupação e já apresenta certa visibilidade, especialmente de caráter legal. Além disso, também se consideram as mudanças na mentalidade, uma ação educativa desde o ensino básico e dentro do ambiente familiar que proponha uma cultura de convivência e de respeito aos direitos humanos. Não se duvida de que esse tema foi convertido em um dos eixos centrais das discussões contemporâneas, mas convém ressaltar que não se configura como um problema novo e nem está completamente delimitado, conforme já foi revelado. Nesse sentido, mencionar a violência contra a mulher na esfera doméstica é fazer visível o que, em princípios da década de 1970, estava totalmente silenciado, implicando uma nova leitura e desconstrução da dicotomia entre público e privado.

N OTA S

1. Os principais crimes contra a mulher, apurados em especial nas DEAMS, são: constrangimento ilegal (Código Penal, Art. 146), ameaça (CP, Art. 147), calúnia (CP, Art. 138), difamação (CP, Art. 139), injúria (CP, Art. 140), estupro (CP, Art. 213), atentado violento ao pudor (CP, Art. 214), lesão corporal (CP, Art. 129) e assédio sexual (CP, Art. 216-A). 2. Data que homenageia as irmãs Maria Tereza, Pátria e Minerva Mirabal que, em 1960, foram presas, torturadas e assassinadas na República Dominicana, durante a ditadura. A data foi designada, em 1999, pela Organização das Nações Unidas (ONU). 3. Vale lembrar que o Código Brasileiro define a violência em duas instâncias/espécies: ficta (quando a vítima não é maior de 14 anos) ou real (quando a vítima é impedida de resistir pela violência ou pela grave ameaça de sofrê-la). 4. Com o intuito de difundir direitos e reforçar as campanhas contra a violência doméstica, a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH), do Ministério da Justiça, lançou no ano de 2003 uma cartilha – intitulada “Cidadania das Mulheres: tecendo uma rede de solidariedade” - com informações para auxiliar mulheres vítimas de violência doméstica. Dados levantados pela SEDH revelam que as mulheres só buscam ajuda depois de terem sido agredidas dez vezes, em média. Os companheiros, maridos, namorados ou ex-namorados são os responsáveis por 80% das mortes violentas de mulheres no Brasil. Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aponta que 25% dos dias de trabalho parados de mulheres têm como causa a violência doméstica. H ISTÓRIA ,

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REFERÊNCIAS

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H ISTÓRIA ,

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PARTE IV

MANIFESTAÇÕES DO PODER FEMININO

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SENHORAS DO AÇÚCAR : RIQUEZA E VIDA MATERIAL EM ITU (1780-1830)

Eni de Mesquita Samara

Desde o início da colonização brasileira, a produção açucareira e o sistema

escravista implantado definiram os contornos de uma sociedade assentada em valores hierárquicos e nas distinções sociopolíticas e econômicas entre livres e cativos. Nesse sentido, a atividade canavieira, além de se destacar na economia colonial, atuou como um elemento definidor dos princípios reguladores das relações sociais, das atitudes senhoriais dos proprietários e da deferência dos socialmente inferiores (SCHWARTZ, 1997). A consecução do ideal de ser senhor (por meio da monopolização da terra, de escravos, de mercês e honrarias) representa a reconstrução dos valores e comportamentos da velha sociedade portuguesa sobre novas bases na Colônia. É, portanto, a cristalização de uma sociedade hierárquico-estamental-cristã, mas escravista também, resultante da integração da grande propriedade, da escravidão e dos princípios estamentais provenientes do mundo ibérico. A combinação entre os valores ibéricos e as especificidades da Colônia, por exemplo, a sociedade escravocrata, requereu do colono uma adaptação que não excluiu a busca de honra, prestígio, dignidade e nobilitação, anseios para os quais o papel da família e das estratégias familiares revela-se crucial. Assim, a concentração de terras, de escravos e de capital nas mãos de poucas famílias, que constituíam a chamada elite local, se dava não somente em áreas voltadas à exportação, mas também naquelas dedicadas ao abastecimento interno (SAMARA, 2003, parte I). Apesar dos inúmeros estudos que tratam dessa problemática no período colonial brasileiro, ainda são requeridas análises que se detenham mais substancialmente na constituição da denominada “nobreza da terra”. Esta, por meio dos clãs H ISTÓRIA ,

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familiares e de seus principais membros, ocupava praticamente todas as esferas do poder local e pertencia às instituições mais prestigiadas da época. É necessário, também, compreender melhor a atuação das mulheres em um contexto em que, a princípio, poder, riqueza e espaço público eram atributos masculinos, pois sabemos, por meio de pesquisas recentes em fontes da época, que as mulheres participaram ativamente das atividades urbanas e dos trabalhos no campo. Elas lideraram famílias e negócios, receberam dotes e legítimas, cuidaram de patrimônios e moveram ações nos tribunais.1 Dessa maneira, a sua presença nos documentos contradiz estereótipos e padrões que perpetuam sua submissão e restrição ao âmbito privado, mostrando que é possível refazer a conexão entre as suas histórias de vida e o processo de circulação de riqueza, nascimento das vilas e expansão do povoamento. Assim, faz-se primordial reconstruir a história dessas mulheres não como exemplos isolados, mas por meio de uma visão mais ampla que abranja o contexto econômico, com o crescimento das vilas, o aumento de atividades e a circulação de riqueza gerada pela produção e exportação do açúcar. Nessa perspectiva, os inventários, testamentos e Maços de População (DAESP, MSS, Itu, latas 71-79), produzidos em Itu, no período da lavoura canavieira, fornecem ricas informações para a análise das mulheres, permitindo entender como se dava a constituição das linhagens femininas no processo de acumulação dos patrimônios e da transmissão de bens entre os membros das famílias e grupos sociais. Itu, desde sua fundação, em 1610, foi palco para o desenvolvimento de atividades de subsistência que forneciam um pequeno volume de excedentes que eram comercializados. Esse quadro prolongou-se até 1765, quando Francisco Cunha Menezes, o Morgado de Mateus, assumiu o governo de São Paulo. O governador, que exerceu o cargo até 1775, implementou resoluções que contribuíram para a melhoria das condições da capitania, com o estímulo ao crescimento da lavoura canavieira, viabilizada pela formação de uma economia de mercado, ligada à demanda propiciada pelo Rio de Janeiro e pela inserção de Santos no mercado internacional. Além disso, Bernardo José de Lorena, que assumiu o cargo em 1788, oficializou o incentivo à exportação de gêneros agrícolas, retomando e dando continuidade às medidas. Dessa forma, de uma fase de despovoamento e pobreza que caracterizava São Paulo até meados do século XVI, vai-se operando uma transformação contínua até as primeiras décadas do século XIX. Itu, uma das regiões mais expressivas do “quadrilátero do açúcar” (PETRONE,1986), composta pelos municípios de Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí, teve um enriquecimento favorecido pela expansão da agricultura comercial, que, desde a segunda metade do século XVIII até o século XIX, coexistiu com uma economia de subsistência. 278

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Existiram, portanto, grandes e pequenos proprietários, tropeiros, camaradas, escravos, agregados, enfim, uma série diversificada de categorias sociais que compunham a sociedade escravista da época. Apesar dos diversos ofícios existentes e dos cultivos de milho, feijão, fumo e algodão, a produção de maior destaque era a da cana-de-açúcar, que mobilizava grande parte da população ligada à produção e comércio desse gênero. O desenvolvimento e a intensificação do processo de povoação de Itu são comprovados pelo aumento de sua população que, de 2.211 habitantes, distribuídos por 255 fogos,2 em 1773 (DAESP, Maços de População, MSS, Itu, lata 71, 1773), passou a ter 8.577 habitantes e 1.041 casas (DAESP, Maços de População, MSS, Itu, lata 78, 1829) em 1829 (Tabela 1).

TABELA 1 – População, Itu, 1773 - 1829

Ano

Fogos

Habitantes

1773

255

2211

1792

1317

9410

1798

894

7162

1803

1088

9411

1809

1095

9566

1813

857

5674

1818

1072

8906

1822

900

8563

1829

1041

8577

Fonte: DAESP, Maços de População de Itu, latas 71-79

Apesar de a vila ainda representar, nesse momento, um prolongamento da área rural, já começa a demonstrar uma diversidade maior de ocupações, como se pode perceber principalmente nos recenseamentos populacionais desse período. Nesse sentido, os Maços de População mostram a participação das mulheres, cabeças de domicílio, como louceiras e tecelãs desde 1773 (Tabela 2). Elas também estavam inseridas ativamente no processo de circulação da riqueza, de liderança de famílias e de negócios, tanto que, em 1798, treze mulheres aparecem arroladas como senhoras de engenho em Itu. H ISTÓRIA ,

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TABELA 2 – População, Itu, 1773 - 1829 Ano

Senhoras de Engenho Nº

1773



1785 1792

Louceiras

com agr. total de agr. Nº

Tecelãs

com agr. total de agr. Nº

com agr. total de agr.





2





2









































1798

13

3

15

7

4

7

26

7

15

1803

9

4

13

12

6

12

9

3

5

1809

19

12

26

8

3

6

68

27

42

1813

14

3

4

9

3

10

91

37

57

1818

21

5

9

8

1

2

97

17

34

1822

29

4

7

8

2

4

47

13

22

1829

16

3

15

2





15

3

4

Fonte: DAESP, Maços de População de Itu, latas 71-79

Muitas delas organizavam o seu trabalho apenas com a ajuda de familiares, outras contavam também com o apoio de agregados e/ou possuíam escravos (Tabela 3). TABELA 3 – Proprietárias com escravos – valores totais de escravos em inventários Ano

até 100

até 500

mil reis

mil reis







1













2









1





1









1



2

1









3

4

6



0

1

1

6

7

7



17801790 17911800 18011810 18111820 18211830 Total

até

até

até

Mais de

1:000$000 3:000$000 5:000$000 5:000$000

Nada consta

Fonte: Arquivo do Museu Republicano “Convenção de Itu”- MP-USP, Inventários MSS 1780-1830.

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Pelos dados dessa tabela, verifica-se que os “estereótipos patriarcalistas” perpetuados em relação ao período colonial brasileiro, que pregam a mulher restrita ao âmbito privado e submissa ao marido, são desconstruídos pela atuação das mulheres. Esse é um indicativo de sua presença na economia da época e da sua participação na gestão de negócios, seja na condição de viúvas, seja na de casadas na ausência dos maridos. Nesse sentido, as Ordenações Filipinas asseguravam que as mulheres receberiam metade do patrimônio do casal, pois, quando um dos cônjuges falecia, após o pagamento de suas dívidas, seu espólio era dividido em duas partes. A primeira era herdada pelo parceiro. A outra metade era repartida, e dois terços cabiam aos herdeiros do inventariado e o restante, ou seja, um terço, era doado aos legatários. Dessa forma, muitas vezes, cabia às mulheres, além do cuidado dos bens que herdavam, o controle das “fábricas de açúcar”. Dessa forma, para mapear o cotidiano das mulheres na sociedade e na economia, são importantes os inventários produzidos na vila de Itu, durante o período de 1780 a 1830, pois fornecem a descrição dos bens do inventariado, seus herdeiros e legatários, informando as quantias e propriedades recebidas pelas partes. Além disso, os testamentos complementam os dados dos inventários, explicitando anseios, pensamentos e disposições mortuárias e, em alguns casos, podem expressar até mesmo os modos de organização familiar e administração do domicílio. No testamento de D. Maria Joaquina Souza, por exemplo, verificamos, pelo seguinte relato: [...] declaro que pela minha avançada idade e moléstias não podendo com o pezo do governo e administração de minha caza e conhecendo na pessoa de minha filha Maria Antonia Texeira suficiente capacidade lhe imcubi administração da dita minha caza no mez de agosto do anno de mil oitocentos e quinze, cuja a administração ella tem dezempenhado com todo zello, e actividade,

que a tarefa de zelar pelo domicílio era exercida pela viúva, que, por motivo de doença, não podendo mais arcar com tal responsabilidade, deixou-a a encargo de sua filha, mesmo tendo filhos. Assim, solteiras, casadas ou viúvas lideravam famílias e muitas vezes proviam o próprio sustento e o da prole, moviam ações nos tribunais, eram testamenteiras, pediam divórcio e titulavam os filhos. Desde o processo de povoamento acompanharam maridos e filhos, reivindicaram sesmarias e estavam presentes nas vilas e povoados do interior. Como proprietárias, constituíam patrimônios próprios e distribuíam os seus bens de acordo com as suas vontades, beneficiando outros parentes no lugar do próprio marido. Dessa maneira, brigas familiares, por ocasião de partilhas de herança, eram bastante comuns no século XVII, bem como aconteciam nos períodos subseqüentes. Especialmente rico sobre o assunto é o inventário de Maria da Anunciação, que faleceu em 1795 e era esposa do Capitão Antonio Francisco Baruel e membro H ISTÓRIA ,

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de uma das mais importantes famílias da região de Mogi das Cruzes.3 A saga dessa família começa com a chegada ao Brasil do aventureiro Henry Barewell, em 1590, que fora abandonado aqui pela armada do pirata Thomas Cavendish, e vincula-se ao nascimento da cidade de Suzano que, na época, pertencia a Mogi. Da mescla do sangue inglês com o português e o indígena resultaram gerações de eclesiásticos e potentados locais que acumularam grande riqueza por meio de alianças e casamentos. Maria da Anunciação, pelo que arrola o inventário, possuía escravos, inúmeras jóias (anéis, correntes, adereços, brincos e topázio, ametista, ouro e diamantes), o que demonstra que era abastada, além do fato de que sabia assinar. Entretanto, grande parte dos bens citados, além de terras, casas, objetos, escravos e roupas, foram levados a leilão em hasta pública para pagamento das suas dívidas. Não sabemos se o casamento foi regido por contrato ou meação, mas o documento contém inúmeras queixas sobre a partilha que, ao que tudo indica, privilegiava o irmão e testamenteiro da falecida, o alferes Pinto Xavier de Toledo. O marido qualifica, inclusive, a atitude da falecida de “escandalosa” e “maldosa”, pois legara a ele trastes de couro, roupas e os piores escravos, doentes, cegos e sifílicos, (DAESP, Inventário MSS, ordem 776, caixa 164, 1796). Ao que tudo indica, Maria da Anunciação desafiava, ainda que em suas disposições mortuárias, o poder do marido que era legítimo pela lei, e a Historiografia recente é rica em exemplos de situações em que a submissão feminina é mais um mito do que realidade (SAMARA, 1986). No sentido da superação da idéia da ausência da mulher nos negócios, as mortes dos maridos são representativas de uma situação em que as mulheres ganhavam maior autonomia, pois tinham necessidade de assumir o comando de seus domicílios e de administrar o patrimônio herdado que, às vezes, incluía unidades produtivas. Ao analisar o inventário, de 1808-1809, do tenente José Alves Lima comprovamos que ele era casado e não possuía herdeiros nem legatários, portanto todo o seu legado foi transmitido à sua mulher, D. Gertrudes Umberlina Ferras de Campos, que recebeu, dentre outros benefícios, vinte escravos, dois quartéis de canas, um sítio no bairro de Anhembu com casas de vivenda, casa de engenho e de purgar, fábrica de açúcar, além de coxos, formas, cobres assentados e um lambique de destilar. Esses bens apontam indícios de elementos da estrutura da lavoura canavieira e eram comumente herdados por viúvas de senhores de engenho. Para os historiadores dedicados ao estudo da condição feminina no passado, recuperar as mulheres na sua identidade social e mostrar a sua presença no processo de tomada de decisões é inicialmente um desafio. Assim os trechos dos documentos históricos reproduzidos neste estudo são valiosos para resgatar a atuação social feminina. Seguindo essa linha historiográfica de pesquisa, merecem destaque os trabalhos de Susan Rogers sobre o mito da dominação masculina e os “poderes” femininos 282

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(ROGERS,1975) e o de Michelle Perrot, sobre a mulher popular rebelde, entre muitos outros (PERROT, 1988). No caso da América Latina, Alida Metcalf mostra que as pesquisas de historiadores, sociólogos e antropólogos apontam duas visões distintas. Uma delas, inclusive, propõe que a criatura passiva, protegida e isolada, sugerida pelos estereótipos, na realidade nunca existiu. Decidindo e gerenciando negócios, essa mulher, por vezes, tinha mais direitos que as anglo-saxônicas do mesmo período (METCALF,1989/1990). Relatos de situações nas colônias ibéricas, recuperados por Charles Boxer, indicam que, em alguns casos, eram mais poderosas que os homens (BOXER, 1975). Esse pesquisador descreve que, no mundo ibérico, a rotina diária das suas vidas era freqüentemente quebrada por períodos de extrema ansiedade, sempre que seus companheiros se internavam em território inimigo ou se embrenhavam pelo sertão, como também aconteceu no Brasil (PERROT, 1988).4 Não são poucas as cenas de valentias nas quais contracenaram as mulheres dos primeiros tempos, filhas e esposas dos povoadores. Outras de espírito mais aventureiro vieram em busca de casamento e melhores oportunidades, já que, estatisticamente, predominavam os homens, situação que começaria a se modificar somente na segunda metade do século XVIII. Para Maria Odila Silva Dias (1984), que também enfoca essa questão, o processo colonizador e a marcha do povoamento provocavam o desequilíbrio dos sexos ocasionando uma população com predomínio de mulheres especialmente nas áreas urbanas. Maria Nizza da Silva reforça essa idéia, quando afirma que uma das principais características da vida conjugal na Capitania de São Paulo era a freqüente ausência dos maridos de suas casas por períodos longos, acarretando conseqüências. Em primeiro lugar, a mulher paulista adquiriu, durante a época colonial, uma certa autonomia, na medida em que se viu muitas vezes sozinha, obrigada a resolver seus problemas e a lutar pela sua sobrevivência. Essa situação determinou um aumento do poder materno e a fixação dos filhos homens ao lar, a fim de colaborar mais eficazmente na sobrevivência da unidade familiar. Emancipação ou casamentos tardios resultaram desse aumento da participação materna. Exemplos desse tipo são comuns nos inventários, como o de Rosa Maria, de 1803, no qual está descrito que fora casada com Reinaldo Pinheiro que “[...] logo que se casou se ausentou para as partes de Mato Grosso há muitos anos” (ARQUIVO DO MUSEU REPUBLICANO “Convenção de Itu” - MP-USP. Inventário de Rosa Maria 1803, cx.16A). Outra conseqüência da separação dos casais foi uma vida sexual mais espaçada e a diminuição considerável no número de filhos, quando não uma relação sexual extraconjugal (SILVA, 1984). Isso é perceptível em levantamentos antes realizados por estudiosos da família e também nos inventários de mulheres ituanas que, H ISTÓRIA ,

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entre 1780 e 1830, não tinham filhos. Já as que eram mães, em geral, não tinham mais que seis filhos (Tabela 4). TABELA 4 – Mulheres proprietárias – quantidade de filhos de mulheres inventariadas

Quantidade

nº de inventários

sem filhos

14

1à2

1

3à4

3

5à6

2

7à8

0

9 à 10

2

mais de 10

0

Fonte: Arquivo do Museu Republicano “Convenção de Itu”- MP-USP. Inventários MSS 1780-1830.

Como se pode perceber, a questão dos movimentos populacionais internos é crucial para entendermos o papel dos gêneros na sociedade colonial já que as ausências masculinas propiciaram maior autonomia e tomada de decisões pelas mulheres. Esse não é apenas o caso de Itu, pois essa é uma realidade das áreas de colonização ibérica e em especial das economias urbanas voltadas para os setores de abastecimento e de serviços, nas quais atuavam principalmente as mulheres (SAMARA, 2003). Isso nos leva a concluir que as histórias das Senhoras de Engenho não podem ser vistas como exemplos isolados, pois as disposições testamentárias e o arrolamento dos bens no momento da partilha nos contam muito sobre a circulação da riqueza, o povoamento e as condições de vida dos habitantes (SAMARA, 2003). Por isso, é impossível separar a História das Mulheres, do contexto geral da época, sob pena de enfatizarmos apenas estereótipos e arquétipos que não contemplam os seus diferentes modos de vida (SAMARA, 2003). Algumas atividades econômicas, por sua vez, eram desempenhadas especialmente pelas mulheres que estavam bastante vinculadas aos setores de abastecimento e de serviços e empregavam parte da mão-de-obra urbana. Nesse conjunto diversificado de ocupações lideravam famílias e negócios agregando inúmeras vezes outras mulheres. É o caso de Anna Maria de Jezus, branca, solteira de 34 anos, 284

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que, com suas três agregadas, vivia de costuras (DAESP, MSS, Itu, lata 78). Também de Maria Tereza do Monte, branca, solteira, 40 anos, que, juntamente com suas quatro agregadas, era costureira em Itu no ano de 1822 (DAESP, MSS, Itu, lata 78). Assim, verificamos que, nos fogos em que as mulheres eram chefes da casa por viuvez ou celibato, elas buscavam sempre exercer uma atividade de base econômica a exemplo do que ocorre na primeira Companhia de Ordenanças, no centro de Itu, em 1818, onde 22 casas eram comandadas por mulheres. Dentre elas, seis viviam de fiar, cinco dos jornais de escravos, uma de agências, dois de negócios e oito de costuras (DAESP, MSS, Itu, lata 78). O que se percebe mais, portanto, nesse período, é que, apesar de os homens constituírem a maioria na força de trabalho, não são poucas as mulheres que dirigiam propriedades, negócios e viviam de rendas, de um ofício ou serviço. O número de senhoras de engenho, lavradoras, negociantes, costureiras, agenciadoras, tecelãs e rendeiras surpreende, especialmente se pensarmos em uma estrutura social em que os homens livres e pobres tinham poucas oportunidades de trabalho e a figura da mulher estava vinculada ao âmbito doméstico (Tabela 5). A existência de senhoras de engenhos, por sua vez, é comprovada pelos números dos recenseamentos no período, ou seja, 121 arroladas de 1798 a 1829.

TABELA 5 – Mulheres senhoras de engenho ano

Senhoras de Engenho Nº

1798

13

1803

9

1809

19

1813

14

1818

21

1822

29

1829

16

Fonte: DAESP, Maços de População de Itu, latas 71-79

Verificamos, ainda, que, dentre os documentos existentes no acervo do Museu Republicano “Convenção de Itu”, de 30% a 40% dos inventários eram de mulheres. H ISTÓRIA ,

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TABELA 6 – Mulheres proprietárias – total de inventários Anos

número de

total de

%

total de

%

inventários

mulheres

mulheres

homens

homens

1780-1790

9

3

33,33

6

66,67

1791-1800

15

6

40,00

9

60,00

1801-1810

66

23

34,85

43

65,15

1811-1820

87

27

31,03

60

68,97

1821-1830

146

59

40,41

87

59,59

Total

323

118

36,53

205

63,47

Fonte: Arquivo do Museu Republicano “Convenção de Itu” – USP. Inventários MSS 1780-1830

Desse conjunto de mulheres que aparecem nos censos, 118 foram inventariadas e, dentre elas, as senhoras de engenhos correspondem a 22 processos, em sua maioria, referentes ao período compreendido entre 1821 e 1830. Desse total, dezessete eram casadas, cinco viúvas e nenhuma solteira (Tabela 7 e 8).

TABELA 7 – Mulheres proprietárias – inventário de mulheres com engenho anos

total de mulheres

total de inventários de mulheres com engenho

1780-1790

3

1

1791-1800

6

2

1801-1810

23

2

1811-1820

27

4

1821-1830

59

13

Total

118

22

Fonte: Arquivo do Museu Republicano “Convenção de Itu”- MP-USP. Inventários MSS 1780-1830

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TABELA 8 – Mulheres proprietárias de engenho – Estado civil

Anos

total de inventários de mulheres com engenho

casadas

viúvas

solteiras

1780-1790

1

1

0

0

1791-1800

2

2

0

0

1801-1810

2

2

0

0

1811-1820

4

2

2

0

1821-1830

13

10

3

0

Total

22

17

5

0

Fonte: Arquivo do Museu Republicano “Convenção de Itu”- MP-USP. Inventários MSS 1780-1830

Uma análise mais apurada desses documentos nos leva a entender melhor o papel que desempenhavam nessa sociedade e o montante da sua riqueza pessoal. Nesse sentido, o caso de Izabel Novaes de Magalhães, inventariada em 1827, é significativo. Viúva do capitão-mor Joaquim Duarte do Rego e possuidora de um patrimônio considerável para a época, mas que escreve em seu testamento que desde o falecimento do marido gastava apenas em sua manutenção e obras pias. A proprietária possuía escravos na vila e nas fazendas, parte deles em conjunto com outras pessoas. No total, eram 94 cativos, casas na vila, plantações de cana, sítio, engenho e fazenda, o que rendeu um Monte-Mor de 89:182$194 e, excluídas as dívidas e a terça, restou a cada herdeiro 14:863$820. Era católica e tinha um filho padre, o reverendo Joaquim Duarte de Novaes, duas filhas recolhidas no Convento de Santa Thereza, outro filho já falecido e duas netas órfãs. De sua terça, foram beneficiários o Convento de São Francisco, os recolhimentos de Maria de Deus e de Santa Thereza, o Seminário dos Meninos e as obras da Matriz. No conjunto desse inventário, não estão arroladas jóias ou vestimentas, mas, sim, livros de orações que comprovam a devoção e humildade perante Deus, da rica Senhora de Engenho possuidora de uma das maiores escravarias da Capitania de São Paulo e que, no entanto, parecia querer comprovar que levava uma vida modesta (MUSEU REPUBLICANO. “Convenção de Itu” Inventários MSS, 1827, caixa 33 A). Comparada com as demais Senhoras de Engenho inventariadas, a sua fortuna e número de escravos era bem superior, já que as outras tinham entre 9 e 32 escravos. Dentre as proprietárias, a viúva Anna Leme da Silva, em 1812, possuía apenas nove escravos, uma morada de casas de taipa, um pilão de dois andares na Rua das H ISTÓRIA ,

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Casinhas e um sítio engenho também com morada de casas de dois andares cobertas com telha que deixou aos seus cinco herdeiros (2 homens e 3 mulheres) que receberam o valor líquido de 690$554 cada um (MUSEU REPUBLICANO “Convenção de Itu” Inventários MSS, 1812, caixa 18 B). Situação econômica semelhante era a de D. Maria Ribeira de Araújo, que possuía dez escravos, um sítio, engenho e canas que deixou a sete herdeiros (4 filhos e 3 filhas). Vários deles já haviam recebido doações e adiantamentos da legítima e, para as filhas ainda solteiras, deixou moradias como dote (MUSEU REPUBLICANO “Convenção de Itu” Inventários MSS, 1827, caixa 33 A). Em sua terça, a viúva privilegiou as filhas e concedeu alforrias a mulheres escravas. Assim como as demais inventariadas, tinha muitos negócios e dívidas. Havia realmente um privilegiamento das filhas nas partilhas do Monte-Mor durante o período colonial brasileiro? Seria essa uma conduta característica das mulheres proprietárias? O cerne dessas questões em parte já foi desvendado por Nazzari, quando afirma que, no século XVII, os pais favoreciam ao máximo suas filhas, “[...] dandolhes dotes maiores do que aquilo que seus irmãos herdariam mais tarde ou, fazendo doações tão grandes a moças solteiras em seus testamentos que elas também herdariam mais que seus irmãos” (NAZZARI,1997, p. 88). Segundo a autora, esse costume muda e os dotes caem em desuso ao longo do século XIX, com o declínio do poder patriarcal, o desenvolvimento de uma economia de mercado e as mudanças que ocorrem nas famílias (NAZZARI,1997). Porém, ao que tudo indica, muitas proprietárias perpetuaram esse costume de deixar bens e escravos para filhas e netas, o que pode ter originado, inclusive, verdadeiras linhagens de fortunas femininas. Esse procedimento está presente no inventário de D. Maria Joaquina Souza, que, em 1820, legou escravos para as filhas, além de incumbir uma delas, D. Maria Antonia Teixeira, da administração da casa. É importante ressaltar que era comum os inventários serem realizados por viúvos, enteados, genros, mas, nesse caso, essa tarefa foi realizada pela filha. Entre os bens dessa Senhora de Engenho constavam 23 escravos, casas na vila, canas, açúcar, sítio de engenho e terras, além de três livros: [...] humas oras marianas avaliadas na quantia de $480 Reis com que na margem se sahe hum livro intitulado estímulos do amor avaliado na quantia de $160 Reis Outro livro intitulado gemidos da mãe de deos avaliados na quantia de $160 Reis [...] (MUSEU REPUBLICANO “Convenção de Itu”, Inventários MSS, 1820, caixa 24B).

Esses livros deviam ser realmente preciosos, pois aparecem ao lado de bens vultosos, como os 23 escravos avaliados em 4:134$600, a morada de casas na vila (500$000), as canas (160$000), o açúcar (464$800), o engenho e o sítio 288

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(3:200$000). Do seu destino pouco sabemos, mas provavelmente continuaram em mãos femininas, já que a inventariante não tinha herdeiros do gênero masculino. No inventário de Jozé d‘ Amaral Gorgel, datado de 1806, dos diversos bens arrolados, também encontramos oito livros: “Horas Marianas”, “Tomos de cirurgia clasica”, “Aviso ao povo por Tifot”, “Cultura da America”, “Cultura das Batatas” e dois exemplares da “Imitação de Christo e da Santisima Virgem” e, dentre esse itens, a maioria foi doada à viúva, com exceção apenas de “Cultura das Batatas” e “Horas Marianas”. Tal fato surpreende, visto que a maior parte das mulheres era iletrada no período colonial. Outro aspecto interessante a ser destacado nos inventários era o repasse dos pagamentos devidos ao inventariado (credor) como parte da herança ao cônjuge ou a seus herdeiros e legatários. Exemplifica esse caso o processo de João de Anhaia Leme, de 1807, em que a inventariante e viúva Ignacia de Almeida recebeu quartéis de cana, porções de terras, animais, utensílios domésticos e o repasse das dívidas de José d´Frias, José Bicudo, capitão José Goes Paxeco e Ignacio Alves Lima, devidas ao falecido. Outras mulheres donas de engenhos, por sua vez, não tiveram os seus inventários concluídos devido a disputas familiares, como é o caso de D. Josefa Maria de Góis Paxeco, proprietária de 32 escravos e demais bens, sítio engenho, chácara no subúrbio, canaviais, terras, casas na vila e tenda de ferreiro (MUSEU REPUBLICANO “Convenção de Itu”, Inventários MSS, 1824, caixa 29B). Mesmo assim, ao que tudo indica, exerciam poder familiar e compunham a elite local juntamente com os homens importantes. As suas histórias sugerem caminhos para repensarmos o conjunto dessa sociedade e a sua presença registrada regularmente em todas as fontes ibéricas, dos cartulários às demandas judiciais, torna possível resgatá-las e integrá-las nesse contexto. Além disso, é preciso avaliar como se identificavam com os valores ideológicos do projeto colonizador português e as condutas próprias que desenvolviam no sistema aqui implantado, visando a entendê-las dentro do seu próprio tempo e na construção de sua identidade. Por isso, é preciso analisar com cuidado os documentos históricos que, além de comprovar sua presença como proprietárias, permitem desvendar aspectos da mentalidade de uma época. Sendo assim, características da cultura material podem ser resgatadas, principalmente nos inventários, que enfatizam a importância dada a objetos e imagens religiosas e a influência do catolicismo, especialmente entre as elites. Por outro lado, mostram que as Senhoras do Açúcar continuavam a atividade produtiva antes realizada pelos maridos, comandando a família, as escravarias e os negócios.

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N OTA S

1. SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento. São Paulo, século XVII. Bauru/ SP, EDUSC, 2003; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1984; DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder na São Paulo do século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; KUSNESOF, Elizabeth Anne. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social. Família e grupos de convívio. Revista Brasileira de História, RBH, n. 17, 1988-1989; METCALF, Alida. Mulheres e propriedade: filhas, esposas e viúvas em Santana de Parnaíba no século XVIII. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica – SBPH São Paulo, n 5, 1989/1990; NAZZARI, Muriel. Dotes paulistas: composição e transformações (1600-1870). RBH, São Paulo, n. 17. 2. Unidades domésticas e de produção. 3. Sobre os Baruéis, ver SAMARA, Eni de Mesquita et al. Suzano: sua gente e sua história (inédito a ser publicado pela Prefeitura Municipal de Suzano). 4. Sobre o papel das Bandeiras na economia paulista, ver: MONTEIRO, John M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 121 e 199.

F O N T E S M A N U S C R I TA S

DEPARTAMENTO AEROVIÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Maços de população, MSS, Itu, latas 71-79. MUSEU REPUBLICANO “Convenção de Itu”- MP-USP Inventários MSS, 1780-1830.

REFERÊNCIAS

BOXER, Charles. Mary and Misoginy. London: Duckworth, 1975. DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e poder na São Paulo do século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. KUSNESOF, Elizabeth Anne. A família na sociedade brasileira: parentesco, clientelismo e estrutura social: família e grupos de convívio, Revista Brasileira de História, RBH, n 17, 1988-1989. METCALF, Alida. Mulheres e propriedade: filhas, esposas e viúvas em Santana de Parnaíba no século XVIII. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, SBPH, São Paulo, n. 5, 1989/ 1990.

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MONTEIRO, John M. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. NAZZARI, Muriel Dotes paulistas: composição e transformações (1600-1870). Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 17, 1997. PERROT, Michelle. Os excluídos da História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. PETRONE, Maria Thereza Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765-1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro.1986. ROGERS, Susan. Female forms of power and the myth of male dominance. American Ethnologist, v. 2, n. 4, nov. 1975. SAMARA, Eni de Mesquita et al. Suzano: sua gente e sua história (inédito a ser publicado pela Prefeitura Municipal de Suzano). ———. A família brasileira. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. ———. Família, mulheres e povoamento: São Paulo, século XVII. Bauru/SP, EDUSC, 2003. ———. Las relaciones sociales e las formas de trabajo en la América Latina del siglo XVIII. In: TANDETER, Enrique (Dir.) Historia General de America Latina IV: Procesos americanos hacia la redefinición colonial. Paris, Ediciones. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: T. A. Queiroz/ EDUSP, 1984.

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MULHERES SÓS EM MINAS GERAIS : VIUVEZ E SOBREVIVÊNCIA NOS SÉCULOS XVIII E XIX

Ida Lewkowicz Horacio Gutiérrez

Mulheres sozinhas, sem maridos, não constituíram figuras estranhas na sociedade

colonial e no século XIX, no Brasil. A dificuldade de encontrar um casamento formal e a limitação do alcance desse estado conjugal atingia mulheres de todas as camadas sociais, acentuando-se a restrição para as livres pobres e para as forras. As casadas tornaram-se mais vulneráveis que os homens à viuvez e com chances menores de “recasamento”, isto é, mais propensas a ficarem sós, sem companheiros. Em uma sociedade em que a chefia de domicílios por mulheres apresentava-se como algo não incomum e o trabalho fazia parte da vida da maioria, talvez a viuvez não as lançasse em situações catastróficas, além da perda emocional que pudesse acarretar. Na legislação, as viúvas são reiteradamente lembradas nos capítulos que tratam das heranças e “recasamentos”, seja para diferenciá-las dos homens, seja para regulamentar a especificidade de seu estado conjugal.1 As solteiras, por sua vez, permaneceram ignoradas pelos legisladores. Embora a viuvez tenha feito convergir mulheres de condição conjugal similar num segmento reconhecível por todos, muitas outras variáveis, tão ou mais importantes, impediriam que elas encontrassem em sua condição um interesse necessariamente comum. A principal delas foi evidentemente a origem social. Na sociedade que se construiu na América portuguesa, polarizada em senhores e cativos, as viúvas escravas ou as viúvas livres pobres dificilmente se identificariam com as viúvas de elite e vice-versa. Outras variáveis também contribuiriam para heterogeneizar o segmento das viúvas, como a idade ou a ocupação das envolvidas. É fácil determinar com precisão o número de viúvas livres dentro do quadro conjugal do passado. Em Vila Rica, por exemplo, no início do século XIX, quando a localidade já era um centro urbano estabilizado, o porcentual de viúvas entre as mulheres com mais de 292

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50 anos chegava a quase 13%, e dos viúvos a 4%. Esses dados são fornecidos por listas nominativas, que seguramente seguiam as normas da Igreja Católica, isto é, registravam a morte de cônjuges que previamente tinham consagrado a sua união perante ela. Difícil, porém, é contabilizar a contento a morte de cônjuges que viviam em concubinato, prática, como é sabido, muito difundida na colônia e, em particular, em Minas Gerais.2 Assim, o correto seria considerar os dados dos censos apenas como aproximação, como o limite inferior do que realmente acontecia. Em outras localidades mineiras, como Mariana e Furquim, o percentual de viúvas acima dos 50 anos foi maior, entre 20 e 24%, e o dos viúvos caía a quase metade deste valor (Tabela 1).3 TABELA 1 - Porcentagem de Viúvas e Viúvos na População Livre de Minas Gerais, 1804-1831 Estado conjugal

Mulheres 15-49 anos

50 e + anos

Homens 15-49 anos

50 e + anos

Vila Rica (1804) Viúva

2,6

12,7

0,8

3,6

Casada

23,2

13,1

25,4

28,8

Solteira

74,2

74,2

73,8

67,6

Total (N)

1743

609

1189

476

Furquim (1804) Viúva

1,8

19,7

1,2

12,5

Casada

29,7

23,5

31,2

45,8

Solteira

68,5

56,8

67,6

41,7

Total (N)

340

132

250

120

Viúva

4,5

20,9

2,0

10,7

Casada

19,6

19,6

27,0

36,6

Mariana (1809)

Solteira

75,9

59,5

71,0

52,7

Total (N)

515

158

296

112

Mariana (1831) Viúva

3,7

23,9

0,8

9,3

Casada

25,2

11,5

19,5

33,9

Solteira

71,1

64,6

79,8

56,8

Total (N)

855

314

800

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Obs.: Exclusive a periferia de Mariana no ano 1809, onde o Rol não indica a idade das pessoas. A periferia compreendia 192 domicílios que representam 29,6% do total de 648 domicílios constantes no Rol. Fonte: Vila Rica e Furquim: Costa (1981, Apêndice); Mariana (1809): Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Rol de Confessados,1809, Livro 7, Prateleira R; Mariana (1931): Arquivo Público Mineiro, Listas Nominativas de Habitantes, 1831-32.

É possível pensar-se na possibilidade de uniões consensuais generalizadas ao se confrontar o número de viúvos em outras sociedades latino-americanas. Na cidade do México, um terço das mulheres adultas eram viúvas em 1811 e, em 1848, chegavam a 41% (ARROM, 1988). O número de solteiras, demasiado alto nas localidades mineiras – entre 60% e 74% em áreas mais urbanas (Vila Rica e Mariana) e 57% em uma área mais rural (Furquim), no segmento de mulheres com 50 anos ou mais – encaminha para a conclusão de que as solteiras tiveram ou ainda teriam uniões não legalizadas, e que não havia tanta preocupação em ocultar essa situação. No México, muitas mães solteiras apresentavam-se como viúvas para facilitar sua aceitação social, escapar da autoridade masculina ou defender sua honra; assim, o número de viúvas fictícias foi ponderável (MACAA, 1991). Tal figura não pode ser apreendida na documentação existente para Minas Gerais e possivelmente ela não existira na sociedade mais fluida que se formou na América portuguesa. Havia razões demográficas para que as viúvas fossem mais numerosas que seus pares masculinos. O diferencial de idade entre os cônjuges as favorecia; elas eram, em regra geral, mais jovens, e o número de mulheres em idade de casar e da mesma condição social foi sempre superior ao dos homens. Os dados de Minas Gerais mostram que as esposas eram, em média, oito anos mais novas que seus maridos (Tabela 2). Não é essa, no entanto, a única razão que explica a abundância de viúvas em face aos viúvos. Como foi comum no período colonial – e ainda é hoje –, a mortalidade masculina nas faixas etárias avançadas era superior à feminina, fazendo com que o casal se rompesse mais facilmente pelo desaparecimento do esposo. Ainda uma terceira causa deve ser lembrada: a oportunidade de novos casamentos era mais fácil para os viúvos do que para as viúvas. Índices de homogamia elaborados por Maria Luiza Marcílio para várias localidades do Rio de Janeiro e de São Paulo dos inícios do século XIX apontam nessa direção (MARCILIO, 1981). No México da mesma época, a proporção de “recasamentos” de viúvos foi o dobro das viúvas, diminuindo, assim, a parcela de viúvos, pois, nos recenseamentos, incorporavam-se ao segmento dos casados.

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TABELA 2 - Diferencial de Idade entre os Cônjuges Livres: Minas Gerais, 1831 e 1838

Localidade

Número de Casais

Diferença de anos

da amostra

entre marido e mulher (média)

Ouro Preto (1838)

271

8,5

Cachoeira (1831)

119

7,8

Matozinhos (1831)

199

7,7

Ribeirão de Alberto Dias (1831)

98

7,5

Capela Nova (1831)

73

6,4

760

7,8

Total Fonte: Adaptado de Ramos (1978)

A identidade feminina foi, no período colonial, acentuadamente demarcada pelo estado conjugal. Um momento importante do aparecimento da mulher como personalidade legal quanto à posse de bens era quando recebia o dote para fins matrimoniais; pais, parentes, amigos e mesmo desconhecidos empenhavam-se em destinar uma quantia ou bens para as moças honestas e brancas (LEWKOWICZ, 1993). Enquanto solteiras, as mulheres eram protegidas em sua honra carnal: numerosos itens das Ordenações Filipinas prescreviam penas severíssimas para os que atentassem contra a virgindade das jovens que estivessem em poder dos pais.4 As Cartas de Seguro, instrumento jurídico presente na legislação filipina, eram por vezes utilizadas por donzelas ao se verem perseguidas por homens mal intencionados.5 As Ordenações e as leis posteriores que as complementaram preocupavam-se em proteger as mulheres, devido ao que se entendia então por falta de discernimento. Na parte intitulada Axiomas e Brocardos de Direito Extrahidos da Legislação Brazileira Antiga e Moderna (ALMEIDA, 1870), trabalho originalmente publicado pela primeira vez em 1773, aparecem 20 verbetes que iniciam com a palavra mulher. O primeiro refere-se a um título do livro quarto das Ordenações Filipinas: “Mulher - Tem fraquesa de entendimento” (ALMEIDA, 1870). Desse axioma inicial decorrem os demais que demonstram a subordinação da mulher casada ao marido; são 16 axiomas que tratam de situações da mulher em relação ao marido e ao matrimônio, e um refere-se às prostitutas que perturbam o “socego publico” e que por isso devem assinar “o termo de bom viver”. Há ainda um verbete que menciona a posição da mulher como tutora e outro que a livra da pena de galés, que H ISTÓRIA ,

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deveria ser substituída pela de prisão com trabalho. Não existem menções às mulheres como celibatárias, pois, apesar da valorização da castidade, seu destino primordial, a vocação feminina por excelência seria a maternidade. As referências às mulheres aparecem sempre adjetivadas nas suas relações com os homens e seu estado conjugal levado em conta: mulher casada, mulher viúva ou mesmo barregã ou concubina, que são as categorias em que eram freqüentemente citadas nas Ordenações Filipinas. A viuvez aparece na documentação como um estado tão respeitado quanto à castidade. Porém, mulheres viúvas eram um alvo bastante frágil, pois ficavam a mercê dos juízes de órfãos encarregados legalmente de observar a proteção das heranças existentes; prejudicá-las, entretanto, era motivo de indignação geral. Um relato que compõe o texto A justiça na Capitania de Minas Gerais conta o vexame pelo qual passou Quitéria, crioula forra, ao perder o marido, um pobre sapateiro, quando ela se achava ausente da terra. Um certo capitão José Maurício de Souza, embora não fosse juiz de órfãos, passou a tomar conta de seus bens. Por ocasião do retorno da liberta, o dito capitão negou-se a entregar o que lhe pertencia, especialmente uma escrava. Argutamente, porém, Quitéria, valendo-se de uma viagem do aproveitador, retomou a escrava. Na sua volta, o capitão Maurício, ao saber da iniciativa da mulher, mandou chamá-la e, publicamente na rua, protagonizou violenta cena: [...] descompoz a dita viuva, lançandoa de pernas acima e dandolhe muitas pranxadas com a Catana, e Couces, tendo já ali dous escravos seus com Cordas, e por elles mandou a marrer a pobre viuva, carregada de filhos, e a mandou metter no tronco da Contagem donde o dito Mauricio é fiel, a onde a teve preza quatro dias, com notavel escandalo de todos ainda dos seos proprios Amigos... e Outros muitos que estranharão não só a desfeita que fez a pobre Viuva, como tambem o não lhe pagar os jornaes da Sua escrava de quem ele se tinha servido de annos. (A JUSTIÇA NA CAPITANIA DE MINAS GERAIS, 1899, p. 66).

Mesmo viúvas mais ricas arcaram com contratempos ao pretender autonomia e conseguir realizar suas vontades. Dona Luiza de Souza e Oliveira enfrentou vários problemas para se casar novamente, justamente pelo fato de ter sido casada com o dono de uma das maiores fortunas das Minas: Matias Barbosa da Silva, proprietário da fazenda da Barra (TRINDADE, 1923). A filha única que tiveram casouse em uma família portuguesa nobre, avoenga do conde Linhares, passando a viver em Portugal com o marido. A viúva, Dona Luiza de Souza e Oliveira, quis casar-se com o Dr. Manoel Ribeiro de Carvalho, advogado em Mariana, porém o casal teve que recorrer a autoridades eclesiásticas superiores explicando que ambos [...] estão comprometidos a cazar hum com o outro, mas isto se não effeituará, salvo se V.Sa se dignar dispençar com os Supplicantes não só em os banhos de Portugal, mas tambem nos deste Bispado, por cauza de justamente receaream os Supplicantes os malliciozos impedimentos [...].

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Referiam-se às dificuldades impostas pelo genro, que, possivelmente, interessava-se pelos bens que haviam ficado em poder da viúva. Esta relatava a situação, explicando que o marido da filha havia determinado que um representante cuidasse dos bens que lhe couberam com a morte do coronel, que, entrementes, se intrometera também na administração dos bens da viúva, prejudicando-a, dandolhe apenas “[...] hua pequena porção dos jornaes de huns negros, a qual não chega para sua sustentação”. As “[...] avultadas conveniencias” dos administradores determinadas pelo genro cessariam com o casamento. Assim, a viúva tinha pressa para se casar, a fim de evitar que o genro sucedesse também na metade que lhe pertencia. A demora na realização do matrimônio fazia com que “[...] cada vez mais vão tendo grande deminuição os seus bens” (TRINDADE, 1955, v. 3, p. 198-199). A legislação não favorecia D. Luiza, pois um Alvará, de 23 de novembro de 1770, determinava que viúvos e viúvas, para serem privados da administração dos bens, não necessitavam chegar ao casamento. A simples notícia da intenção impedia-os de terem acesso aos bens. Mas, por fim, o casal conseguiu casar-se apesar da má vontade da descendência e dos constrangimentos legais. Não obstante a situação geral de subordinação das mulheres, paradoxalmente as viúvas tiveram um papel-chave na transmissão do patrimônio;6 embora, em sua maioria, fossem meeiras – quando se casavam pelo costume do Reino – tinham o direito de ser tutoras e ficavam como cabeça de casal, administrando os bens familiares enquanto os filhos fossem menores. No testamento, o pai poderia designar tutor e curador para os órfãos (ALMEIDA, 1870). Em caso de inexistir tal cláusula, o juiz determinava as pessoas adequadas para a função. A vontade da mãe, entretanto, vinha após a do pai, pois, se ele não designasse tutor, e a mãe ou avó “[...] quizerem ter as Tutorias, ou Curadorias de seus filho, ou netos, não consentirá o Juiz dos Orfãos, que usem dellas, até perante elle se obrigarem de bem e fielmente administrarem os bens e pessoas de seus filhos, ou netos [...]” (Almeida, 1870). Como a feitura de um testamento não era um hábito que cobrisse a totalidade da população proprietária, e os inventários sem esse documento constituíssem a maioria dos registros sucessórios, as viúvas tornavam-se, geralmente, as gerentes dos bens do casal. As restrições legais às viúvas eram bastante rígidas e quase as condenavam a permanecerem nesse estado. As Ordenações Filipinas (Título 102 do livro quarto, no 4º parágrafo) determinavam que, se a mulher fosse viúva e curadora ou tutora de seus filhos, ou netos, perderia esse direito ao se casar. Mesmo se enviuvasse novamente, não poderia retomar a tutoria ou curadoria. Os Títulos 105, 106 e 107 seguem a mesma orientação. O Título 105 refere-se às mulheres viúvas com mais de 50 anos que tivessem filhos. Esse título determinava que a mulher nessas condições não pudesse dispor de seus bens adquiridos ao tempo de casada, nem sequer se os tivesse recebido de ascendentes ou descendentes. Quando falecesse, os herdeiros seriam os parentes mais H ISTÓRIA ,

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próximos e nunca o marido, caso os filhos não mais existissem. O Título 107, entretanto, era o mais restritivo: “[...] das viuvas, que alheão, como não devem, e desbaratão seus bens”. A legislação pretendia “[...] supprir a fraqueza do entender das mulheres viúvas, que depois da morte de seus maridos desbaratarão o que tem [...]”. Nos lugares onde isso ocorresse, a Justiça local deveria tomar conta dos bens e dar sustento a mulheres nessas condições. Caso a mulher fosse viúva de “fidalgo, ou de Desembargador, ou Cavalleiro”, a Justiça deveria intervir rapidamente “[...] para mandarmos o que for Direito sem scandalo de sua geração”. As viúvas, mesmo com tantas restrições, podiam ser bons partidos, principalmente se possuíssem outros predicados que as tornassem atraentes no mercado matrimonial: poderiam, assim, concorrer com noivas jovens e solteiras, as mais favorecidas para encontrar um cônjuge. No Arquivo Eclesiástico de Mariana, encontra-se registrado um caso incomum, mas que indica, num caso extremo, as possibilidades das combinações matrimoniais. Trata-se de um processo de dissolução de promessa de casamento – desposórios de futuro ou esponsais7 – no qual o noivo, Fernando Dias Leite, pedia, em 1765, para ser dispensado do compromisso que tinha com uma moça bem jovem, porque pretendia casar-se com a mãe da própria, que acabara de enviuvar. A repentina paixão de Leite devia-se, possivelmente, à herança da viúva (RAMOS, 1975). Portanto, se não acreditarmos na sinceridade dos sentimentos do noivo, tudo leva a crer que, apesar das restrições legais, havia caminhos que permitiam à viúva e seu segundo marido disporem, de alguma forma, dos bens do casamento precedente. lei de nove de setembro de 1769 reafirmou as Ordenações e confirmou a proibição de as mães serem tutoras, pois, no entender do rei, eram prejudiciais [...] as desordens causadas pelas Mulheres, que ficando viúvas com Filhos, ou com Netos, se deixão alliciar para passarem a segundas Núpcias pelos vadios e cubiçosos, que não buscão o estado do Matrimonio para os santos fins, que a Igreja ensina, mas sim e tão somente para se arrogarem a administração, uzurpação, e delapidação dos bens das ditas Viuvas, e dos Orfãos seus filhos, ou seus Netos (ALMEIDA, 1870, p. 1040).

O ano de 1769 marcou o início de uma guinada jurídico-filosófica: leis sucessivas, na direção da Ilustração, guiaram Pombal e Portugal pelos caminhos da modernidade (FALCON, 1982) que, entretanto, excluíram as mulheres. Nada diferente, em todo caso, do que ocorria em outras regiões da Europa, onde os direitos de sucessão eram bem mais restritos. Na História da Vida Privada, Michelle Perrot lembra o destino difícil das mulheres sozinhas, particularmente das viúvas “[...] tidas como sexualmente perigosas devido à sua suposta luxúria, por vezes ficavam relegadas ao exterior da casa, em cabanas, com algumas roupas e subsídios [...]” (PERROT, 1995, p. 139). As dificuldades das viúvas para concorrer no mercado matrimonial esbarravam na idade, mas não tanto como à primeira vista poderia parecer. Nem todas as viúvas eram idosas. Em torno de 40% das viúvas mineiras tinham menos de 50 298

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anos, e a sexta parte menos de 40, ou seja, estavam ainda em idade fértil (Tabela 3). O que dificultava o acesso delas ao recasamento era, provavelmente, mais a existência de filhos menores e, no caso das viúvas com bens, as restrições que a legislação lhes impunha para administrar e manter em seu poder as heranças. As viúvas de Vila Rica, em 1804, mantinham, como dependentes, em média, duas crianças em seus domicílios, maior que a média de crianças em domicílios chefiados por solteiras ou casadas. Essa situação implicava para elas travar uma persistente luta pela sobrevivência e carregar um ônus que certamente seria avaliado pelos possíveis pretendentes. O “recasamento” poderia significar um alívio às preocupações financeiras, mas, em contrapartida, o novo estado de casada poderia significar também a perda de independência que a viuvez lhes teria trazido. TABELA 3 - Idade das Viúvas na População Livre de Minas Gerais,1804-1838 VilaRica (1804)

Mariana (1809)

Mariana_(1831)

Idade





%



15 - 19

1

0,8

0

0,0

0

0,0

1

0,9

20 - 29

4

3,3

1

1,8

2

1,9

1

0,9

30 - 39

13

10,7

7

12,5

12

11,1

17

14,5

40 - 49

27

22,1

15

26,8

18

16,7

25

21,4

50 - 59

26

21,3

11

19,6

29

26,9

32

27,4

60 +

51

41,8

22

39,3

46

42,6

41

35,0

Total

122

100,0

56

100,0

107

100,0

117

100,0

%

Ouro Preto (1838)

%



%

Obs.: Exclusive a periferia de Mariana no ano de 1809, cujo Rol não indica a idade das pessoas. A periferia compreendia 192 domicílios que representam 29,6% do total de 648 domicílios constantes no Rol. Fonte: Vila Rica (1804): Costa (1981, Apêndice); Mariana (1809): Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Rol de Confessados,1809, Livro 7, Prateleira R; Mariana (1831): Arquivo Público Mineiro, Listas Nominativas de Habitantes, 1831-32; Ouro Preto (1838): Ramos (1990).

Nas Minas Gerais, apesar de todas as limitações legais,8 na prática, a viuvez tornava as mulheres efetivamente mais independentes. Passavam a chefes de domicílios e geriam os negócios que porventura os maridos deixaram a elas e aos filhos, quando menores. Sendo meeiras do patrimônio do casal, adquiriam uma nova posição, de mando, desconhecida em outras fases da vida, primeiro na casa dos pais ou tutores e depois sob a dominação do marido. Centenas de famílias proprietárias de sítios e fazendas nas antigas zonas de mineração eram dirigidas por mulheres. O sítio Engenho de Pinhões, que possuía 35 alqueires de terras plantadas, dois bois de carro, duas bestas muares e 12 escravos, era de propriedade do casal Amorim que tivera nove filhos. Em 1814, época H ISTÓRIA ,

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do inventário, um dos filhos já alcançara 25 anos e duas moças haviam se casado e levado cada uma um escravo como dote. Paulo de Oliveira Amorim havia deixado bem claras suas últimas vontades, ao ditá-las ao notário: Declaro que pelo bom conceito que possuo da dita minha mulher reconhecendo nela predicados para a melhor administração zelo e cuidado dos nossos filhos a nomeio e instituo por tutora dos mesmos para que melhor os possa trazer e conservar conforme é devido e muito confio na sua prudência (ACSM, 1789).

Em muitos casos, a mulher acabava sendo mesmo a administradora dos bens que haviam pertencido ao casal, principalmente quando havia filhos menores. Nessa situação, pedia-se o adiamento da partilha para não prejudicar o patrimônio, pois, com a divisão costumeira, venda de terras e escravos, nada sobraria. Foi relativamente usual pedido como o da viúva de Antonio Alvares Ferreira, que falecera em 1749 e, em 1754, ele solicitara prazo de dez anos para dividir os bens, a fim de não prejudicar o patrimônio dos filhos (ACSM, 1750). Assim, passou a tocar os negócios antes dirigidos pelo marido. Em Vila Rica, no início do século XIX, 45% dos domicílios eram chefiados por mulheres, a maioria solteiras, seguidas pelas viúvas. Apesar dessa condição conjugal, as que viviam solitárias eram poucas, havendo crianças em quase todos os domicílios. Comparadas com as chefes solteiras e casadas, as viúvas mantinham, em média, um número maior de crianças, praticamente igualando-se à média de filhos que residiam nos domicílios chefiados por homens casados (Tabela 4). As viúvas mineiras caracterizaram-se por administrarem agregados e escravos, em número que igualava ou às vezes superava os que estavam sob dependência de mulheres casadas ou solteiras. Isso, mais que opulência, demonstrava seu estado econômico precário e a necessidade que tinham, por motivos de subsistência, de participar sistematicamente dos mercados locais. A fragilidade das viúvas, se houve alguma, estava aqui patente em seu estado econômico incerto. No entanto, a viuvez era praticamente a única fase da vida em que as mulheres anteriormente casadas puderam estar à testa de um empreendimento financeiro, embora nem todas as viúvas fossem chefes de domicílios nem gerissem negócios. Talvez fossem as chefes as de melhor situação, contando com residência própria ou alugada, e com agregados ou escravos nos quais podiam se apoiar economicamente; outro conjunto de viúvas – quase um quarto do total na Comarca de Mariana – vivia subordinado a distintos chefes de famílias (Tabela 5). A Comarca de Mariana incluía 37 distritos além da cidade do mesmo nome, e contemplava um universo de 1.033 viúvas em 1831. Desse total, 3,7% tinham a condição de agregadas, quase 5% eram escravas, umas poucas (0,6%) viviam em casa dos pais ou eram parentes colaterais do chefe (0,7%) e a maior parte das não chefes residia em domicílios nos quais não tinha qualquer vínculo de parentesco com o dono, vivendo seguramente de favor (14,4%). 300

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TABELA 4 – Viúvas e Viúvos Chefes de Domicílio e seus dependentes em Vila Rica, 1804

Crianças

Média por Agregados Média por

Estado

Chefes

Escravos

Média por

Total

Média por

conjugal

Número

%



domicílio



domicílio



domicílio



domicílio

Viúvas

109

14,2

239

2,2

206

1,9

270

2,5

824

7,6

Casadas

21

2,7

35

1,7

29

1,4

60

2,9

145

6,9

Solteiras

638

83,1

745

1,2

687

1,1

565

0,9

2635

4,1

Total

768

100,0

1019

1,3

922

1,2

895

1,2

3604

4,7

Mulheres

Homens Viúvos

22

2,3

35

1,6

22

1,0

3,7

1,7

116

5,3

Casados

403

43,0

911

2,3

315

0,8

742

1,8

2757

6,8

Solteiros

512

54,6

187

0,4

515

1,0

1025

2,0

2239

4,4

Total

937

100,0

1133

1,2

852

0,9

1804

1,9

5112

5,5

Total

1705

-

2152

1,3

1774

1,0

2699

1,6

8716

5,1

Fonte: Ramos (1975)

Essa condição precária obrigava-as a trabalhar. Assim, a participação das viúvas no mercado de trabalho foi mais comum do que se pensa, e essa inserção muitas vezes não foi uma opção pessoal de independência, nem uma escolha procurada ou desejada. Também muitas mulheres solteiras, por necessidade, tiveram que enfrentar tal situação, mas geralmente tratava-se das mais pobres, que se dedicavam principalmente à prestação de serviços. Entre as viúvas mineiras, resguardada a divisão do trabalho por sexo, bastante marcada em Minas Gerais, as ocupações que desempenharam coincidem, grosso modo, com aquelas exercidas pela população em geral, isto é, vincularam-se basicamente à confecção e à agricultura.

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TABELA 5 – Inserção das Viúvas e Viúvos na Estrutura Domiciliar da Comarca de Mariana, 1831-32 Viúvas Posição no domicílio

Número

Viúvos %

Número

%

Total

Chefes de fogo

782

75,7

251

74,0

1033

Filhos do chefe

6

0,6

1

0,3

7

Parentes colaterais do chefe

7

0,7

1

0,3

8

149

14,4

40

11,8

189

38

3,7

15

4,4

53

Sem parentesco com o chefe Agregados Escravos Total

51

4,9

31

9,1

82

1033

100,0

339

100,0

1372

Obs.: A Comarca de Mariana compreendia, além da cidade de Mariana, mais 37 distritos Fonte: Arquivo Público Mineiro, Listas Nominativas de Habitantes, 1831-32

Do total de viúvas em Mariana, quatro quintos tinham ocupação definida, chegando a menos de 20% as sem ocupação. Panorama similar atingia os viúvos. Fiandeiras, costureiras, tecelãs e rendeiras foram os ofícios que envolveram 44% das viúvas. Outras 24% figuraram em tarefas ligadas à terra, como lavradoras e agricultoras, e apenas umas poucas trabalharam como negociantes, cozinheiras, mineiras ou jornaleiras (Tabela 6). No século XIX, em Minas Gerais, a tecelagem foi um setor que congregou principalmente mão-de-obra feminina, ao passo que a agricultura, comércio e mineração eram áreas de cunho eminentemente masculino.9 Se o trabalho remunerado outorgava às viúvas experiências novas e perspectivas de mudanças em relação à vida familiar que a sociedade lhes reservava, é necessário perguntar até que ponto o novo estado conjugal aumentava a sua independência, poder, mobilidade social e, inclusive, realização pessoal, em relação ao estado de casadas ou solteiras. O trabalho apresentava várias faces, com diversos graus de dificuldades, remunerações e prestígios, conforme a ocupação exercida. Possibilitava a formação de nova família ou constituía um empecilho? Viuvez era o estado ideal para a mulher ou representava solidão e pobreza? Enfim, são algumas questões que se propõem à Historiografia e que, para o caso das viúvas, reclamam ainda pesquisas. A viuvez no mundo colonial não tem merecido até hoje uma análise particularizada no Brasil, e a razão talvez resida na idéia de que se trata de um segmento populacional pouco numeroso e com aparentemente escassa influência na composição familiar. Soma-se a isso o fato de a viuvez, atualmente, estar associada à velhice, ou seja, à fase final do ciclo de vida e, portanto, com participação restrita no mundo do trabalho e na geração de bens. Entretanto, em Minas Gerais, os viúvos e, em particular, as viúvas, não foram, nos séculos XVIII e XIX, necessariamente idosos; participaram do mercado matrimonial, 302

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às vezes até com entusiasmo, principalmente os viúvos; chefiaram domicílios quase sempre e tiveram de lutar pela própria subsistência e pela de seus dependentes. TABELA 6 – Ocupação das Viúvas e Viúvos na Comarca de Mariana, 1831-32 Viúvas

Viúvos

Total

Ocupação



%



%



%

Confecção

457

44,2

15

4,4

472

34,4

Fiandeira

331

32,0

0

0,0

331

24,1

Costureira

75

7,3

1

0,3

76

5,5

Teceloa

41

4,0

0

0,0

41

3,0

Alfaiate

0

0,0

13

3,8

13

0,9

Rendeira

10

1,0

1

0,3

11

0,8

Agricultura

251

24,3

111

32,7

362

26,4

Lavrador

211

20,4

96

28,3

307

22,4

Agricultor

28

2,7

5

1,5

33

2,4

12

1,2

10

2,9

22

1,6

Ofícios diversos

Agricultor com engenho de açúcar

43

4,2

87

25,7

130

9,5

Negociante

22

2,1

15

4,4

37

2,7

Mineiro

9

0,9

18

5,3

27

2,0

Jornaleiro

1

0,1

21

6,2

22

1,6

Ferreiro

0

0,0

18

5,3

18

1,3

Carpinteiro

0

0,0

14

4,1

14

1,0

Cozinheiro

11

1,1

1

0,3

12

0,9

Outras ocupações Sem ocupação Total

89

8,6

69

20,4

158

11,5

193

18,7

57

16,8

250

18,2

1033

100,0

339

100,0

1372

100,0

Obs.: A Comarca de Mariana compreendia, além da cidade de Mariana, mais 37 distritos Fonte: Arquivo Público Mineiro, Listas Nominativas de Habitantes, 1831-32

N OTA S

1. A análise da viuvez no México conta com o artigo de MacCaa (1991). Para um balanço da extensa historiografia sobre a viuvez na Europa e nos Estados Unidos, ver Blom (1991). 2. Um indicador indireto para o concubinato pode ser a taxa de ilegitimidade. Em Minas Gerais, em 1804, o porcentual de filhos ilegítimos entre a população livre oscilou de 46% em H ISTÓRIA ,

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Mariana a 81% em N. S. dos Remédios (COSTA, 1981). Na população escrava, os valores eram maiores. 3. Os autores agradecem a Clotilde Andrade Paiva a autorização para consultar o censo de Mariana de 1831, por ela originalmente coletado e digitado. 4. Como exemplo, são os títulos 16, 21, 22, 23, do livro 5, que se referiam ao seguinte, respectivamente: “Do que dorme com a mulher, que anda no Paço, ou entra em caza de alguma pessôa para dormir com mulher virgem, ou viúva honesta, ou scrava branca de guarda”; “Dos que dormem com mulheres orfãs, ou menores que stão a seu cargo”; “Do que casa com mulher virgem, ou viuva, que stiver em poder de seu pai, mãi, avô, ou senhor, sem sua vontade”; “Do que dorme com mulher virgem, ou viuva honesta per sua vontade” (ALMEIDA. Código philippino ou Ordenações, 1870, livro 5, p. 1482). 5. Carta de seguro era a promessa judicial pela qual o réu, debaixo de certas condições, se eximia da prisão até a decisão final da causa. Cf. Pereira e Souza no dicionário jurídico, apud Cândido Mendes de Almeida, p. 1173. O assento da Casa da Suplicação CCXXXI é o seguinte: “Aggravo se pronuncia no crime de virgindade deve ser interposto dentro de dez dias depois de apresentada a Carta de Seguro, e não depois do depósito de caução” (ALMEIDA, 1870, v.1, p. 195 – Auxiliar Jurídico, p. 195). Recurso desse tipo foi levado a efeito no Serro Frio (Minas Gerais) em meio ao confronto comum nos tempos coloniais entre governadores e ouvidores. D. Rodrigo de Menezes, o governador, acusou o ouvidor Seixas Abranches de pretender “[...] deshonestar uma moça donzella, filha de Pae honrado, morador na mesma Vila, e como ela não condescendeu com o pessimo intutito desse Ministro, em despique a culpou por amancebada, sendo tida, havida, e reputada por Donzela: difamada por este modo tirou Carta de Seguro [...]”. 6. Maria Beatriz Nizza da Silva chama a atenção para esse aspecto (1987, p. 19-25). 7. Acerca dos esponsais e sua dissolução, ver Silva (1984, p. 84-97). 8. As leis portuguesas privilegiavam os descendentes. A esposa era desfavorecida e, em caso de separação, ficava a mercê dos filhos. O título 109 das Ordenações reza o seguinte: “Para que huma mulher possa haver a posse e cabeça do casal, he necessario ter estado ao tempo da morte de seu marido teúda e manteúda, como marido e mulher”. É relatado o caso de Ignez Ferreira, no qual o juiz deu posse dos bens do casal, mas o ouvidor revogou-a por ela não provar que vivia com o marido Antonio de Brum ao tempo de sua morte, como requer a Ordenação, “[...] o que visto, e como o dito defunto depois de casado não podia fazer tao grande doação a sua mulher em prejuizo e odio de de seus filhos, sem insinuação, nem mandar que sua mulher ficasse em posse contra as regras do Direito, e contra a Ordenação com o mais dos Autos, declaro a dita Ignez Ferreira não ficar em posse, e cabeça de casal, e que a fazenda do defunto Antonio de Brum se entregue a seus herdeiros, e condemno a Appellante nas suas custas dos Autos, no que emendão a sentença do Ouvidor, em abril de 1591” (ALMEIDA, 1870, p. 358). 9. Ver Libby (1988, p. 73-92). Entretanto, o pequeno comércio (fixo e ambulante) era atividade essencialmente feminina (FIGUEIREDO, 1993, p. 33-71).

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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, CÂNDIDO MENDES DE (Org.). Código philippino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal. Rio de Janeiro: Instituto Philomathico, 1870. 3 v. + 2 de Auxiliar Jurídico. ARQUIVO DA CADA SETECENTISTA DE MARIANA (ACSM). Inventário e testamento de Antonio Álvares Ferreira, 1750. 1-33-843, f. 59, 60, 80v e 81. Inventário e testamento de Paulo de Oliveira Amorim, 1789. 2-81-1742, f. 3. ARQUIVO ECLESIÁSTICO DA ARQUIDIOCESE DE MARIANA. Rol dos confessados, 1809, Livro 7, prateleira R. ARROM, SILVIA MARINA. Las mujeres de la ciudad de México: 1790-1857. México: Siglo XXI, 1988. BLOM, IDA. The history of Widowhood: a bibliographic Overview. Journal of Family History, v. 16, n. 2, p. 191-210, 1991. COSTA, IRACI DEL NERO DA. Populações mineiras. São Paulo: IPE, 1981. FALCON, FRANCISCO CALAZANS. A época pombalina. São Paulo: Ática, 1982. FIGUEIREDO, LUCIANO. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio/ Edunb, 1993. LEWKOWICZ, IDA. As mulheres mineiras e o casamento: estratégias individuais e familiares nos séculos XVIII e XIX. História, São Paulo, n. 12, p. 13-28, 1993. LIBBY, DOUGLAS COLE. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988. MARCÍLIO, MARIA LUIZA. Mariage et remariage dans le Brésil traditionnel: lois, intensité, calendrier. In: DUPÂQUIER, Jean et. al. Marriage and remarriage in populations of the past. Londres: Academic Press, 1981. p. 363-373. MCCAA, ROBERT. La viuda del México borbónico: sus voces, variedades y vejaciones. In: AIZPURU, Pilar Gonzalbo (Org.). Familias novohispanas: siglos XVI al XIX, México: El Colegio de México, 1991. p. 299-324. PERROT, MICHELLE. Figuras e papéis. In: História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. v. 4, p. 121-186. RAMOS, DONALD. Marriage and the family in colonial Vila Rica. Hispanic American Historical Review, v. 55, n. 2, p. 200-225, 1975. ———. City and country: the family in Minas Gerais, 1804-1838. The Journal of Family History, v. 3, n. 4, p. 361-375, 1978. ———. União consensual e a família no século XIX: Minas Gerais, Brasil. Estudos Econômicos, v. 20, n. 3, p. 381-405, 1990. Revista do Arquivo Público Mineiro. A justiça na capitania de Minas Gerais. n. 4, 1899. H ISTÓRIA ,

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SILVA, MARIA BEATRIZ NIZZA DA. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T.A. Queiroz/ Edusp, 1984. ———. Família e herança no Brasil colonial. Anais da VI Reunião da SBPH, 1987. p. 19-25. TRINDADE, RAYMUNDO O.

DA.

Genealogias mineiras. Ponte Nova: Typographia Ideal, 1923.

———. Velhos troncos mineiros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1955. v. 3.

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INDÍCIOS E FRAGMENTOS DAS LUTAS DAS MULHERES NA CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DAS CIDADES PAULISTAS : OS

“ CAUSOS ” E OS SILÊNCIOS

Lídia M. Vianna Possas Uma mulher desejava ser admitida na estrada de ferro, mas não havia verba. Morrendo o burro, admitiu-se a mulher, pagando-lhe com a verba destinada à alimentação do animal. Essa mulher ficou conhecida como: a funcionária que entrou na vaga do burro (SCHOPPA, 1988).

E

ssa é uma das inúmeras histórias, um daqueles “causos” que faziam os ferroviários da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil – a NOB – darem boas gargalhadas e interiorizassem o sentimento de pertencentes ao mundo muito próprio e com um imaginário coletivo e rico de imagens e de representações, onde apenas eles existiam. No entanto, permitiu-me pensar, conforme Walter Benjamim (1985) nos sugeriu, que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sendo assim, tomei o referido “causo” como uma possibilidade, um indício para a investigação respeitando os seus limites. O que representaria a imagem criada? Que relação existiria entre a mulher e o burro? Em princípio, para o historiador da cultura, um rico fragmento do cotidiano, um indício revelador de representações de mundo masculino. Um vestígio apreendido, fonte histórica que poderia ser reinterpretada diante do silêncio do sujeito omisso, no caso a mulher admitida na vaga do burro e de uma sutil presença de ironia, de zombaria (SOIHET, 2001). Penso tratar-se de uma dessas oportunidades para rever narrativas e as construções conceituais das relações de gênero1 e mesmo rever as imagens femininas estereotipadas entre a mulher “pública” e a “privada”. Adentrar a história das ferrovias, ao passado do século 20, vislumbrando outras percepções e consciente da distância e da distinção entre as temporalidades, do presente e do passado, me possibilitou revelar uma outra H ISTÓRIA ,

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construção do conhecimento histórico. Na perspectiva de Gadamer (1998), seria a busca da compreensão dessa realidade que residiria na (re)elaboração de um outro projeto de conhecimento, assumindo o ato e a escolha feita (BURKE,1992), ou seja, expondo publicamente o meu ponto de vista particular sobre aquele passado. O espaço dos trens e dos trilhos são identificados, desde o II Império Brasileiro (1840-1889), como a prova concreta do progresso, principalmente a chegada da modernidade nessas terras tropicais americana. A presença da ferrovia representava o acesso à tecnologia, à máquina despertando o orgulho nacional em frente à indústria nascente e concretizava um futuro promissor, mascarando as nossas raízes oligárquico-conservadoras diante das relações escravistas presentes, reinventadas e institucionalizadas na sociedade imperial (ALENCASTRO, 1997). Com isso me ative a olhar mais atentamente o cotidiano, as práticas culturais e as relações de gênero capazes de novas evidências históricas, percebendo outros sujeitos, e observando de que maneira os desdobramentos das relações de poder operam em microinstâncias, tão sutis, submersas diante dos modelos explicativos estruturais e universalistas. Ao prosseguir com a análise sobre as permanências de imagens como essas – dos causos – espécie de discurso irônico, zombarias na República Brasileira instalada em 1889, seria possível construir outras tantas histórias! Portanto, procurar essa e outras histórias tornou-se instigante. Como e de que maneira se deu a inserção feminina nesse cenário de expansão territorial e ferroviária pelo sertão paulista? Os trens e trilhos foram identificados desde o século XIX como uma espécie de monumento móvel que construiu sentidos, formas de sociabilidade e uma cultura própria, bastante arraigada no imaginário coletivo dos ferroviários e das ferroviárias, em um passado não tão distante e que ainda permanece no recôndito da memória individual de cada um deles e delas. Investindo nessa perspectiva, verifico um paradoxo, na medida em que, ao lado de um discurso ufanista do progresso e da modernização tecnológica que justifica os atos, as condutas e até as arbitrariedades, percebo a existência de profundos silêncios gerados pela ausência da fala de mulheres, das mais pobres, das indigentes, todos sujeitos excluídos da construção dessa história que se perpetuou até recentemente. O espetáculo dos caminhos de ferro com suas estações monumentais nas grandes cidades e aquelas geradoras de urbes provincianas, narradas em prosa e verso, toma novas direções, se partirmos da busca de visibilidades e da inserção das mulheres, percebendo as diferenças no cotidiano que cada uma delas construiu a partir de suas experiências. Desmontar as formas de poder e de exclusão a que estiveram submetidas são algumas questões relevantes que esclarecem a nossa experiência republicana, recolocadas a partir de um novo prisma sobre os trens e trilhos. Penso que devemos olhar de novo, sim, para o passado, mas lembrando que é o presente que suscita novas perguntas. Assim, sem perder a mania do historiador pelas origens dos fatos, pela busca de documentos inéditos escritos, fico mais atenta e sensível às singularidades, às particularidades que me permitem perceber como as diferen308

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ças individuais são elaboradas e estão implícitas nas distintas vidas dos cidadãos. Elas são mascaradas pelas relações de poder que tendem ao homogêneo e não foram percebidas pelos observadores mais preocupados em explicar os grandes movimentos históricos, os sistemas e a projeção de vida dos heróis transformados em mitos. Assim, quero olhar, olhando como o míope que aproxima e concentra a visão sobre o objeto, sobre um alvo, no dizer do escritor Machado de Assis (18391908) em “A Semana” (1900). Para tanto, coloco-me atenta às minúcias que compõem este mundo dos artefatos de ferro, sempre identificados pelas suas locomotivas, seus trens e seus trilhos, como também seus odores e ruídos que interagem com a história dos orgulhosos ferroviários, homens viris e resolutos.

Foto 1 – Os Escritórios da NOB, até meados dos anos 30, eram um espaço destinado ao “sexo forte”, lugar de conversas e experiências entre os homens. Fonte: POSSAS, Lidia M. Vianna. Mulheres, trens e trilhos, Edusc, 2001.

Tomo, por exemplo, a idéia contida na expressão “Maria Fumaça”, denominação atribuída à principal máquina de tração e reconhecida no senso comum pelo aspecto possante das caldeiras e do carvão fumegante. Nesse universo metálico, represento apenas uma força de expressão, pois, ao serem indagados sobre o porquê dessa imagem feminina, eles foram unânimes em responder: significa a mulher, sim, mas traduzida pela imagem da mulher faladeira, espalhafatosa que chega nas cidades, porém sempre conduzida por um homem – o maquinista, que a controla muito bem! Essas imagens sobre as locomotivas, as representações que enfatizavam o intrépido bandeirante paulista e as experiências cotidianas captadas no espaço dos trens e dos trilhos me levou a refletir sobre a forte construção simbólica que elas geraH ISTÓRIA ,

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ram. São uma rica teia de significados e de apropriações que as pessoas elaboraram diante da expansão do maquinismo, transformada em vitrine do engenho da indústria moderna no século 20, quando as mulheres não tiveram vez Ao lado da idealização maravilhosa do progresso, observa-se, no entanto, um grande processo de exclusão. Contabilizei um contingente populacional expressivo, como aquelas “mulheres públicas”, as prostitutas, embarcadas, muitas vezes, à força no Rio de Janeiro e despejadas nessas frentes pioneiras paulistas, em nome de uma política urbana de limpeza e saneamento da cidade, por volta de 1910, no complexo processo de uma Belle Époque tropical (NEEDELL, 1993). Essa percepção me leva a apreender, com certo cuidado, o significado, por exemplo, da festa coletiva nas chegadas e saídas dos trens mas estações, do convívio permanente de uma multidão, da presença dos poderosos e dos excluídos, entre falas, sentimentos e ironias que se esbarravam nas estações de trens, conforme me suscita, de forma esplendida, o romance do escritor russo Leon Tostoi (18281910), em Ana Karenina, com o seu suicídio nos trilhos, em frente à multidão. Assim, tomo o movimento das máquinas que não é constante como uma espécie de metodologia de trabalho, pois elas aceleram e se tornam mais lentas como a própria locomotiva que se aproxima de uma estação mais vagarosamente, permitindo ver melhor a paisagem, as pessoas. Essa é a chance de observar fragmentos, indícios que me levam a entender a sociedade brasileira e as conjunturas dos anos 30 e 40. Foi com essa lentidão de sentidos que me detive sobre cidades do Estado São Paulo, especificamente as novas urbes do Oeste paulista, primeiro Bauru, região do interior, ainda inóspita no início do século 20 e, depois, Marília, projetada no auge cafeeiro da década de 20 no mesmo século.

Fotos 2 e 3 – Cidades paulistas inserindo-se no processo de modernização: a cidade de Marília: época de sua fundação em 1929 com a formação da rua principal e 1936 vivenciando um contraditório cotidiano e práticas sociais

As ferrovias, seja a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, a NOB, seja a Companhia Paulista avançavam pelo “Brasil Novo”, fundando cidades e introduzindo os 310

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Rolls-Royces que passavam a encalhar na areia das ruas da cidade. Homens, mulheres, famílias chegavam em busca de enriquecimento e novas oportunidades envolvidos pela febre dos negócios, dos cartórios, das fazendas e do café. No dizer do poeta: mil forasteiros chegaram nos trens da manhã, em uma espécie de “[...] ressonância de passos em marcha batida para a conquista do desconhecido!!” Esse verso é de Rodrigues de Abreu, poeta que escrevia nos jornais locais com o pseudônimo de “João do Nada”, réplica do célebre dândi carioca, João do Rio, e muito ligado aos modernista paulista. Nessas novas cidades, a socialização do espaço público se concretizava rapidamente. As ruas ganharam novas dimensões, pelos negócios que ofereciam como pelas relações sociais incentivando outras práticas. O que antes se apresentava como um espaço eminentemente masculino passou a receber novos atores sociais e, entre eles, as mulheres que conquistaram maior visibilidade gerando certo desconforto para aquelas mentes conservadoras que se sentiam impelidas a rever e incentivar a permanência da mulher no lar. No depoimento da ex-normalista Nair Salles, que se tornou ferroviária da NOB em 1937, é significativa a sua ânsia de mudança e lutou por isso: Eu era professora primária e dava aula numa classe rural. Passava a semana toda na casa da fazenda e só voltava para cidade nos fins de semana. Gostava muito do meu trabalho, mas a oportunidade de entrar para o Noroeste me atraía muito. Não sei, mas lá parecia um trabalho diferente!!!.

No editorial do jornal “Alto Cafesal”,2 de julho de 1931, da cidade vizinha, Marília, intitulado “Espaço Masculino”, um jornalista passou quase diariamente a discutir sobre o “real lugar” da mulher, o significado da liberdade e do seu acesso ao espaço público. Por que incomodava tanto os avanços femininos? Assinada por “Lucílio”, uma das matérias chamou a atenção pelo seu discurso contundente contra a campanha do acesso do sufrágio às mulheres, que emergia naquele momento mesclada às reivindicações constitucionalista dos paulistas de pós-30. Ele enfatizava: “Não convém tirá-la do lar para galardoá-la com um titulo que nem a maioria dos brasileiros cultos ainda quis honrar”. Esses discursos lidos na contramão evidenciam, por sua vez, a presença das resistências, das lutas surdas das ferroviárias e de outras mulheres que aproveitavam as brechas deixadas pelos movimentos de disputas políticas e das tentativas armadas de retomada do poder pelas oligarquias paulistas em frente ao Governo centralizador de Vargas, após a Revolução de 30. Essas novas condições políticas possibilitaram a ampliação da cidadania que culminou com o acesso do voto feminino em 1932. Tais conjunturas, refletidas a partir da interação com as especificidades históricas das cidades das frentes pioneiras paulistas, vinham associadas às possibilidades abertas pelo processo de urbanização avassalador que, desde as primeiras décadas do H ISTÓRIA ,

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século 20, se verificava materialmente na presença de rede de hotéis e pensões que cresciam, nas lojas de comércio de materiais de construção e também em uma especulação imobiliária avassaladora presente nos classificados dos jornais locais. Um novo cenário urbano era registrado pelos fotógrafos de rua, demonstrando novas práticas sociais exercidas pelas mulheres, principalmente das camadas médias, como sair às ruas, trabalhar fora, andar sozinhas.

Foto 4 – Cidade de Bauru e a principal via de comércio. Os anos 20. Os modernistas paulistas tinham “chegado com os trens da manhã”, introduzindo os “vícios chics da paulicéia desvaraida”. O espaço público era ampliado pela presença da modernidade. A mulheres começavam a caminhar sozinhas nas ruas... Fonte: POSSAS, Lidia M. Vianna. Mulheres, trens e trilhos, Edusc, 2001.

No entanto, isso não passava imune aos olhos dos conservadores que observavam, nessas mudanças, perigo iminente. Os jornais das cidades do interior paulista denunciavam em crônicas alarmantes a preocupação com o percentual cada vez mais expressivo de mulheres que se colocavam no mercado de trabalho e deixavam o seu “santo” lugar: o lar. Agora alfabetizadas e com certa autonomia de formação profissional, elas passaram a disputar as ofertas de emprego disponíveis e a desempenhar, junto aos desclassificados sociais em papéis informais, a luta cotidiana pela sobrevivência, não só nas ruas da capital paulista, como nas cidades do interior (MALUF; MOTT, 1998; PINTO, 1994). Assim, um processo de modernização pode ser constatado nos caminhos de ferro que construíram uma territorialidade nesse do espaço físico do sertão e, nesse mesmo espaço, foram responsáveis pelo controle de práticas sociais e de estratégias de poder sobre as relações de gênero, de como definir tarefas rotineiras, as normas para o exercício de uma sociedade burguesa centralizadora destinada à reprodução 312

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do capital e, conseqüentemente, a sua acumulação. Dessa forma, associando as teias do poder das oligarquias e as relações que ela produziu, é possível perceber os mecanismos dos “micropoderes” (FOUCAULT, 1994), criados pela ferrovia e que se disseminaram por todo o espaço que ocupou, sem qualquer distinção social, atingindo a tudo e a todos e reforçados pelo imaginário hierárquico no cotidiano onde as pessoas deveriam conduzir suas vidas de maneira tão exemplar: o cumprimento de horários, a disciplina rígida, o respeito e hierarquia de funções. A ferrovia levou para dentro do lar seus princípios, valores e comportamentos. Nesses espaços grandiosos, reforçados por retóricas épicas, onde se conciliavam o otimismo triunfante do projeto social nacional com a ampliação do mercado mundial, as mulheres estiveram presentes em diferentes formas de luta. Porém, como vê-las e ouvi-las? É possível identificá-las em todas as nuances sociais, mas de maneira concreta pelas fotografias tiradas pelos fotógrafos ambulantes que percorriam as cidades do interior paulista e, preocupados em registrar as imagens urbanas, transformando-as em mercadorias por meio dos cartões postais, deixavam transparecer as distintas inserções femininas. Elas estavam lá, apesar de todo o discurso normativo que insistiam em colocá-las no recôndito doméstico. No entanto, podem ser captadas desempenhando papéis diversos, como mulheres da elite burguesa, devidamente acompanhadas ou mesmo sós, conciliando a locomoção com a possibilidade do trabalho informal, comércio ambulante, associando-se também à mendicância e à prostituição, todas transitando apressadamente, silenciosamente, fazendo parte de um momento, de um tempo. Desde 1889, o Brasil tinha construído 9.500km de estrada de ferro. São Paulo, desde 1887, havia fixado 3.300km de trilhos, ou seja, 35% (AZEVEDO, 1950). Com a República cafeeira (1889-1930), garantiu-se a expansão do mundo capitalista, segundo preceitos europeus que confirmavam sua hegemonia com a ocidentalização da forma burguesa liberal de ser, assimilada principalmente pelas classes letradas. As elites agrárias constituíram um sistema oligárquico, sendo as principais beneficiárias dessa gestão do capital e da divisão internacional do trabalho, protegido por um conjunto expresso no patrimonialismo, clientelismo e nepotismo, que controlava o Estado pelo monopólio dos postos de direção e cargos técnicos, bem como das atividades de maior rentabilidade. O crescimento da população de São Paulo foi retumbante entre 1890-1920, quando foi possível verificar os seguintes aumentos: 1890 – 64.934, 107% de crescimento; 1900 – 239.820, 269%; 1920 – 579.033, 141% (PINTO, 1994). Esse aumento populacional ampliou a proletarização e a pauperização sem segurança no trabalho formal, com grande índice de rotatividade da mão-de-obra e crises cíclicas das atividades industriais que forjaram a criação de práticas de sobrevivência cotidianas. Uma leva considerável de homens e mulheres passou a buscar, nas recentes frentes pioneiras paulistas e nas novas urbes, novas atividades como mascates de toda ordem. H ISTÓRIA ,

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Com a possibilidade dos pequenos ofícios autônomos, de vendas ambulantes, oferta de toda sorte de quinquilharias e serviços e da proliferação das pensões baratas, oferecidas nas proximidades das estações ferroviárias, elas aproveitavam as condições que o progresso econômico de São Paulo oferecia e também diante da contratação de mão-de-obra para a lavoura. Criadas para o lar e acostumadas às inúmeras funções domésticas, as mulheres, ricas ou pobres, desenvolveram uma grande flexibilidade e formas de improvisação devido às condições de aprendizagem pela observação e aptas para execução de qualquer tipo de serviço, diferente da formação dos homens que era mais especializada e definida e que naquele momento se colocava em crise diante das mudanças ocorridas pelos avanços tecnológicos, da informação e mundialização dos mercados. Assim, as mulheres, ao adentrarem ao mercado de trabalho, e atuando no espaço onde se fazia a experiência da ferrovia, desempenharam funções variadas, incluindo a prostituição esporádica, a gerência de pensões populares, principalmente aquelas de pernoite, quando eram vítimas de inúmeras agressões e violências. Um fragmento do jornal mariliense evidencia como as mulheres consideradas “públicas” enfrentavam a sobrevivência diária: [...] sr Antonio Jordão, proprietário do Hotel Cafezal tem queixado várias vezes na delegacia de seus hóspedes incomodados as altas horas da noite por uma mulher que deseja sempre falar com um hóspede ou pensionista desse hotel. Agora a policia conseguiu prender a importuna mulher que é ‘decaída’ Izaura Garcia, identificando depois de passar-lhe uma raspansa [...] (ALTO CAFESAL, 25-08-1929).

No entanto, foram capazes de desenvolver o espírito de independência ao ponto de serem identificadas como “mulheres fortes, bravas e valentonas”, muitas vezes transformadas em personagens literárias, do tipo “Maria Tomba Homem”. Durante o dia, executam tarefas de empregadas domésticas, arrumadeiras dos quartos das pensões e, à noite, circulam nas ruas do meretrício. A consolidação da ferrovia no País, como opção da República e prioridade de sustentação do projeto viário, foi instigada pelas exportações ampliadas significativamente diante das guerras mundiais (1ª Grande Guerra 1914-1918 e 2ª Grande Guerra, 1939-1945), pelo desenvolvimento industrial interno e pelos novos padrões de consumo adquiridos e motivados, cada vez mais, pela nova onda publicitária e pela entrada de novos hábitos, agora norte-americanos. As revistas ilustradas passaram a ter grande tiragem e penetraram pelo interior do Estado, levando a sedução pelas vitrolas e geladeiras. O mundo do rádio e do cinema veio ampliar e reforçar novos padrões de comportamento, principalmente feminino. A ferrovia passou a ser também responsável por levar as novas condições de consumo e de fazer circular as novas idéias, principalmente um novo perfil de mulher, imitação de personagens cinematográficos, mais audaciosa e provocante, como nas cenas dos filmes de Hollywood, onde Greta Garbo, e mesmo a nossa Carmem Miranda, apareciam como símbolos de uma sexualidade mais livre e de exuberância física. 314

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Assim, as mulheres passaram a adentrar ao espaço da ferrovia, principalmente nas atividades dos escritórios, entre os anos 30 e 40, primeiro pelas articulações e indicações de políticos locais e depois por concursos públicos, oficialmente instalados com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público, o DASP, em 1938.3 Diante disso, novos comportamentos e mesmo valores foram introduzidos alterando significativamente as relações e as formas de sociabilidade, uma vez que, nesses escritórios das ferrovias, o ambiente era de exclusiva natureza masculina. É evidente que isso gerou momentos de grande tensão e mesmo conflitos, diante da presença da figura da mulher no espaço público, até então identificada como “mulher de todos”, ou ainda “mulher vagabunda”. Foi necessário rever os estereótipos, as relações de poder e ressignificar as imagens da “mulher de família” e da “mulher pública”. As experiências das mulheres nas ferrovias podem ser traduzidas em lutas e formas sutis de resistências, como usar calças compridas, fumar, conversar e rir em público, além de impor uma outra percepção de rotina, por meio de novos usos e costumes, como o tempo e a utilização da toilette e mesmo dos direitos adquiridos diante da maternidade.

Foto 5 – A vida das “mulheres públicas” e seu cotidiano na cidade de Bauru, evidenciavam outras práticas, fora do espaço do lar. Essas mulheres viveram também a história da ferrovia enfrentando a polícia e resistindo . Imagem encontrada no Inquérito Policial de 6/5/1938 diante do suicídio de uma prostituta. Fonte: POSSAS, Lidia M. Vianna. Mulheres, trens e trilhos, Edusc, 2001.

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Esses espaços das ferrovias não só concretizaram a fundação de cidades, mas os princípios republicanos que então se implantavam foram sendo incorporados e, também, questionados. Por exemplo, a garantia do espaço privado (individual e não político), como lugar por excelência feminino, com as experiências de privacidade, do lar, da maternidade. Uma consciência de cidadania, mesclada de resistência por parte de muitas mulheres que não aceitavam esses papéis prescritos, veio provocar mudanças substantivas das relações, da opção diante do casamento, da vida profissional e mesmo da escolha dos parceiros. É claro que improvisações foram feitas. As escolhas individuais de muitas mulheres forçavam situações complexas, em que o público e o privado perdiam as especificidades normativas e se conciliavam nas práticas cotidianas Como disse D. Sazinha, esposa de um chefe de estação em Campo Grande: “[...] o vagão de trem, tendo ao fundo cargas para transportar, era ao mesmo tempo a minha casa, o meu quarto, a minha cozinha – lugar onde criava a minha família” (Fig. 3). Isso he permitia transitar no espaço da ferrovia, ora em casa, ora fora dela, resguardada e ao mesmo tempo convivendo e participando das atividades que a ferrovia possibilitava, como vender artigos, costurar e lavar os uniformes. Há outros exemplos, como o de D. Lazara, admitida em 1934, que fazia questão de dizer: “Fiz tudo na vida, além de ferroviária, fiz flores, bordado, crochê, costurei e vendi revistas e jornais... Só não fui [...]”. E tem o caso da amazonense Maria José Nunes solteira, que, como datilógrafa, veio parar nos escritórios da NOB. Tomei conhecimento de sua existência por meio de um inquérito policial de 3-10-1934 que investigava o assassinato do primeiro integralista morto em um comício do movimento da AIB, Ação Integralista Brasileira (1932-1938), na cidade de Bauru. Ao se interrogada, fez questão de informar ao escrivão: “Apesar de ser mulher, vestia a camisa verde, de que me orgulha, para contribuir para a salvação de minha pátria”. Esses e outros tantos fragmentos, fontes dispersas nos registros da história já construída, atestam práticas e estratégias de sobrevivência diárias que envolveram as mulheres em seus distintos percursos e atuações, traçando cada uma delas trajetórias que me permitiram reconstruir outras histórias sobre a formação das cidades paulistas. O mais intrigante de toda essa experiência foi olhar de novo o mundo da ferrovia no panorama da modernização do Oeste Paulista e verificar como a existência concreta das mulheres é pouco percebida nas narrativas, nos relatórios e documentos oficiais pesquisados. Elas não são vistas como detentoras de individualidade, como personagens históricos concretos. Apresentam-se sem relevância política e socialmente desvalorizadas, mesmo aquelas que apresentavam nível de escolaridade, conforme se pode observar nos registros pessoais. Muitas eram normalistas formadas, outras tinham cursos de secretária, contadoras ou datilografia. Por que sua imagem é rarefeita nos relatórios, na documentação, na corres-

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pondência oficial e até em grande parte da memória dos ferroviários? Inseridas na vida cotidiana, improvisando papéis e criando novas relações e formas de organização, as mulheres não conseguiram se apresentar como sujeitos, possuidoras de identidade. Os documentos não falam dos excluídos, embora os silêncios sejam evidências significativas e as fontes escritas quase sempre estejam comprometidas com valores outros de dominação e poder. Assim, a presença das mulheres nas ferrovias para alguns ferroviários mais memoriosos e num esforço de memória, era associada à imagem de “mulheres de conduta questionável”, até mesmo como sendo “vagabundas”. Dessa maneira, é possível perceber como os preceitos do Código Civil de 1916 foram incorporados, a ponto de prescrever como a mulher deveria ser: uma “[...] nova ordem jurídica (que) incorporava e legalizava o modelo que concebia a mulher como dependente e subordinada ao homem, e este como senhor da ação”. O direito de a mulher casada trabalhar dependia da autorização do marido ou da decisão judicial. Com isso, delineavam-se as prerrogativas de um e de outro em nome da família exemplar, burguesa, o sustentáculo da sociedade. Definiram-se as linhas de conduta, da decência e, conseqüentemente, das práticas ilícitas. Como não estavam no lar, que era visto como o seu lugar, e adentrassem a uma esfera até então eminentemente masculina, passaram a ser identificadas como “mulher pública”, demonstrando as dificuldades cotidianas que, por exemplo, as funcionárias ferroviárias enfrentaram para romper os preconceitos da exclusão em uma sociedade repleta de estereótipos: “[...] ao marido cabia prover a manutenção da família, à mulher restava a identidade social como esposa e mãe. A ele, a identidade pública; a ela, a doméstica”. Antes dos anos 30, sua inserção em instituições, como na ferrovia, no âmbito do espaço público das cidades de representação extremamente masculina, as imagens femininas podiam ser lembradas por meio de discursos cômicos e desmoralizantes, uma causalidade inédita gerando anedotas repletas de zombaria e ironia, como bem ressalta a historiadora Rachel Soihet (2001), em artigos encontrados em jornais e revistas de ferroviários, como o “causo” narrado no início. Ao final dos anos 30, apesar de elas passarem a ser admitidas como funcionárias públicas em várias ferrovias, mediante provas de habilitação e de todo o trabalho desempenhado das variadas funções ocupadas e alguns poucos elogios de chefias, em seus prontuários, ainda eram vistas de forma caricatural e não tinham conseguido conquistar a visibilidade que elas esperavam, como profissionais desejosas de fazer uma carreira, uma vez que todos os postos de direção dos departamentos e das divisões, bem como as decisões, eram atribuídos com exclusividade aos homens. Permaneceram, assim, às margens, carregando conceitos ainda repletos de dúvidas sobre sua conduta, seja moral, seja ideológica, ao tomar posições mais politizadas e ao defender seus direitos como cidadã. Era possível vê-las, ainda nos anos 60, dentro dos papéis prescritos ou como meras figurantes nesse cenário viril. Em uma publicação comemorativa da revista

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“Ferrovia/SP” (n. 260), sobre a Noroeste, NOB, ao inaugurar o “tráfego dieselisado”, eram identificadas no conjunto das autoridades presentes, apesar de serem, na fotografia, a maioria dos funcionários: “[...] senhoras que alegraram a festividade com sua graça e distinção”. O espetáculo dos trens e dos trilhos articulou-se como projeto de construção do Estado-Nação moderno. Assim sendo, nos discursos dominantes, a mulher promovida a “dona-de-casa-de família” adquiriu potencialidade única no espaço do privado, dando proteção à infância, o que era vital para que a Nação atingisse seu ideal. Daí o modelo normativo de mulher, mãe que viesse garantir esse objetivo. Era preciso defini-la, restringir as fronteiras entre a liberdade e a interdição, impedir sua livre circulação nos espaços públicos e puni-la severamente diante de qualquer tentativa de desobediência ou insubmissão. Não é por acaso que elas, ao terem acesso ao corpo de funcionários/trabalhadores da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, encontraram já pronta e fortemente arraigada uma metáfora, “eram todas vagabundas”. Fazer de conta, resistir, aceitar, provar o contrário, permanecer em silêncio ou retirar-se foram algumas das estratégias assumidas pelas mulheres ferroviárias que vieram participar da formação das cidades nas frentes pioneiras paulistas. Dessa maneira, procurar as imagens femininas esforçando a experiência visual possibilitou resgatá-las das margens das histórias convencionais e reforçou uma certeza: foi preciso olhar de novo os trens e trilhos, a formação das urbes em um amplo processo de modernização para compreender a história ainda restrita e parcial da República Brasileira e assim poder ter acesso a outras histórias!

N OTA S

1. Gênero é entendido como uma categoria de análise que distingue a diferença entre os sexos, fora de qualquer explicação biológico-determinista, evidenciando a persistência da desigualdade a partir da construção dos perfis de comportamento feminino e masculino como uma construção e relação de poder definidos um em função do outro, relacionados e constituídos cultural e historicamente em um tempo, espaço e cultura determinados. Ver Matos, 2000; Possas, 2001; Muraro R. M; Puppin, 2001. 2. O jornal “Alto Cafesal”, cuja denominação original é com “s”, foi fundado um ano antes da emancipação oficial do Patrimônio (Alto Cafezal) em 1928, juntamente com o outro jornal, o “Correio de Marília”, ambos com uma circulação semanal no local. 3. Criado pelo Estado-Novo, pelo do Decreto–Lei, nº. 579, de 30-07-1938, visava a organizar o funcionalismo público com de uma coordenação diretamente ligada à Presidência da República, no caso Getúlio Vargas, que nomeava um presidente-administrativo e este controlava todas as relações de trabalho. Ver Possas (2001, p. 300-302).

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REFERÊNCIAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In. História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p.12- 44; 60-78. AZEVEDO, F. de. Um trem que corre para o Oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de Viação Nacional. São Paulo: Martins Ed. S.A., 1950. BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ática, 1985. BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994. GADAMER, Hans-Geor. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. MALUF, Marina; MOTT, Maria Lucia. Recônditos do Mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil Republica: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 368-421. MATOS, M. Izilda. Por uma história da mulher. Bauru: EDUSC, 2000. PINTO, M. Inês Borges. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp, 1994. POSSAS, L. M. V. Mulheres, trens e trilhos. Bauru: EDUSC, 2001. SOIHET, Rachel. Sutileza, ironia e zombarias: instrumentos no descrédito das lutas das mulheres pela emancipação. In: MURARO, Marie; PUPPIN, Andrea Brandão (Org.). Mulher, gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Relumé Dumará: FAPERJ, 2001.

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SOBRE OS AUTORES

ADRIANA PEREIRA CAMPOS é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, especialista em História pela mesma instituição, doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do Centro de Estudos do Oitocentos com apoio do Prroonex/CNPq. ARION MERGÁR é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo e Juiz de Direito. ENI DE MESQUITA SAMARA é professora do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo, mestra, doutora e livre-docente em História pela mesma instituição, com pós-doutorado no Population Research Center, Texas, Austin. FÁBIO DE SOUZA LESSA é professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre e doutor em História pela mesma instituição. GILVAN VENTURA DA SILVA é professor e atual coordenador do Programa de Pósgraduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em História pela Universidade de São Paulo.

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HORACIO GUTIÉRRREZ é professor e atual coordenador do Programa de PósGraduação em História Social da Universidade de São Paulo, mestre e doutor em História pela mesma instituição. IDA LEWKOWICZ é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (campus de Franca), mestra e doutora em História pela Universidade de São Paulo. JANE SOARES DE ALMEIDA é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista (campus Araraquara) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, mestra em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, doutora em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo, livre-docente pela Universidade Estadual Paulista com pós-doutorado na Harvard University e na Universidade Autónoma de Barcelona. JOSÉ RIVAIR MACEDO é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em História pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Universidade Nova de Lisboa. LANA LAGE DA GAMA LIMA é professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, mestra em História pela Universidade Federal Fluminense e doutora em História pela Universidade de São Paulo. LÍDIA MARIA VIANNA POSSAS é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (campus Marília), mestra em História pela mesma instituição (campus Assis) e doutora em História pela Universidade de São Paulo. MAGALI GOUVEIA ENGEL é professora do Departamento e do Programa de PósGraduação em História da UFF e do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. MARIA ANGÉLICA R. DE SOUZA é mestra em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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MARIA BEATRIZ NADER é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestra em História e Filosofia da Educação e doutora em História pela Universidade de São Paulo. MARIA ELENA BERNARDES é pesquisadora do Centro de Memória da Unicamp, mestra e doutora em História pela mesma instituição e professora de História da Educação. MARIA IZILDA SANTOS DE MATOS é professora titular do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica/SP. Autora entre outras obras de Por uma história das mulheres (Edusc/2000); Meu Lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade (Cia. Editora Nacional/2001); e Âncora de emoções (Edusc/2004). REGINA CÉLIA LIMA CALEIRO é professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros e do curso de Direito das Faculdades Pitágoras de Montes Claros, mestra em História pela Universidade Estadual Paulista (campus de Franca) e doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. SEBASTIÃO PIMENTEL FRANCO é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em Educação pela mesma instituição e doutor em História pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] VANESSA RIBEIRO SIMON CAVALCANTI é professora do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica de Salvador, mestra em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutora em História pela Universidade de Leon (Espanha).

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