\"História Nômade\": Território Transversal de Saberes e Aprendizagem como Diferença

Share Embed


Descrição do Produto

VALMIR KNOP JUNIOR

“HISTÓRIA NÔMADE”: TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES E APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA

ITAJAÍ (SC) 2015

UNIVALI UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ Vice-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa, Extensão e Cultura Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE Curso de Mestrado Acadêmico em Educação

VALMIR KNOP JUNIOR

“HISTÓRIA NÔMADE”: TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES E APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA

Dissertação apresentada ao colegiado do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação – área de concentração: Educação – (Linha de Pesquisa Cultura, Tecnologia e Processos de Aprendizagem). Orientador: Prof. Dr. André Luís Alice Raabe.

ITAJAÍ (SC) 2015

2

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação, Extensão e Cultura - ProPPEC Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE Curso de Mestrado Acadêmico

VALMIR KNOP JUNIOR

“HISTÓRIA NÔMADE”: TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES E APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA

Itajaí, 18 de agosto de 2015.

Membros da Comissão: Orientador:

Membro Externo:

________________________________________ Prof. Dr. André Luís Alice Raabe _________________________________________ Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo

Membro representante do colegiado: ________________________________________ Prof.a Dr.a Regina Célia Linhares Hostins

3

RESUMO O presente trabalho, escrito por um professor de História, toma a pesquisa em Educação como um território onde é possível problematizar poderes, saberes e práticas escolares no que eles têm de modelizante e, a partir daí, compor possibilidades para além dessa modelização. Em nossa pesquisa, tal movimento passa pelo emprego das “ferramentas conceituais” da Filosofia da Diferença. Com Deleuze (1992b), tomamos a filosofia como produção de conceitos, produção de pensamento: pensar como ato criativo que vai engendrar o “pensar” no próprio pensamento. Ao criar pensamento, nossa filosofia coloca-se em relação a saberes de outros domínios, estabelecendo conexões, articulando novas possibilidades: pensar para além da modelização, pensar como criação de diferença. Em nossa pesquisa, produzimos uma criação conceitual ao fazer a “disciplina de História” operar como um “território transversal de saberes”. Movimento em que a atuação do professor de História não é mais de ordem “disciplinar”, mas uma atuação em rizoma, operando agenciamentos para mobilizar, em transversalidade, os saberes da História e múltiplos outros saberes (Geografia, Antropologia, Filosofia, Artes, Música, etc.), buscando com os estudantes múltiplas aprendizagens como criação de diferença. Tal criação de pensamento do professor-pesquisador fez-se em um duplo movimento de mútuas implicações: criação conceitual e criação de práticas com estudantes, por meio da realização de uma oficina, a “história nômade”. A oficina realizou-se em quinze tardes entre o final de outubro e o começo de dezembro de 2014 em uma escola pública em Itapema/SC. Passaram por ela nove estudantes dos oitavos e nonos anos do Ensino Fundamental, que frequentavam suas séries regulares no turno da manhã e participaram da oficina no turno vespertino. Na oficina, realizamos atividades utilizando a web e nos organizamos de uma maneira diferente da qual os jovens estavam acostumados nas “aulas normais”. As aprendizagens dos estudantes partiram de suas inquietações, de suas percepções, de seus desejos, que serviam de motivação para suas explorações na web. Ali trabalhamos como professor-pesquisador que, juntamente ao grupo, operou o “território transversal de saberes”, criando aprendizados como diferença, compondo um rizoma de multiplicidades de saberes. Palavras-chave: Aprendizagem. Web. Rizoma. Filosofia da diferença. Transversalidade. Território transversal de saberes.

4

ABSTRACT This work, written by a History teacher, assumes research in Education as an area where it is possible to problematize power, knowledge and school practices in what they have of modeling and, from there, compose possibilities beyond that modelization. In our research, such movement goes through the use of ‘conceptual tools’ of the Philosophy of difference. With Deleuze (1992b), we take philosophy as production of concepts, production of thought: think as a creative act that will engender ‘thinking’ at the very thought. When creating thought, our philosophy is placed in relation to knowledge of other domains, establishing connections, articulating new possibilities: think beyond modelization, think as difference creation. In our research, we produced a conceptual creation while making the ‘History discipline’ operate as a ‘transverse territory of knowledge’. Movement in which the history teacher performance is no longer of ‘disciplinary’ order, but a performance in rhizome, operating assemblages to mobilize, in transversality, History knowledge and multiple other knowledges (Geography, Anthropology, Philosophy, Arts, Music etc.), seeking with the students multiple learning as difference creating. Such a creation of thought of the teacherresearcher was made in a double movement of mutual implications: conceptual creation and creation of practices with students through the realization of a workshop, a ‘nomadic history’. The workshop was held in fifteen afternoons between late October and early December 2014 in a public school in Itapema/SC. Nine students of eighth and ninth years of elementary school took part - they attended their regular classes in the morning and participated in the workshop in the afternoon. During the workshop, we performed activities using the web and organized ourselves in a different way in which these young students were used to in ‘regular classes’. The students’ learning arose from their worries, their perceptions, their desires, which served as motivation for their exploration on the web. There we worked as teacherresearcher that along with the group operated the ‘transverse territory of knowledge’ creating learning as difference, composing a rhizome of knowledge multiplicities. Keywords: Learning. Web. Rhizome. Philosophy of difference. Transversality. Transverse territory of knowledge.

5

LISTA DE DIAGRAMAS

Diagrama 1: Rizoma

14

Diagrama 2: Árvore como modelização. Organização linear, hierarquizante e concentradora 15 Diagrama 3: Rizoma “História nômade”

20

Diagrama 4: Regiões de intensidade do rizoma “história nômade”

21

Diagrama 5: Rede de relações atravessando o indivíduo

26

Diagrama 6: Molaridades, molecularidades e linhas de fuga

27

Diagrama 7: Múltiplos delineamentos compondo um indivíduo

29

Diagrama 8: Delinear segmentaridades modelizantes, estabelecer linhas de fuga, fazer rizoma

31

Diagrama 9: Segmentaridades modelizantes na escola

35

Diagrama 10: Molaridades de espaço e tempo na escola

37

Diagrama 11: Signos mobilizando pensamento/desejo e aprendizagem como diferença

64

Diagrama 12:Território transversal de saberes emitindo multiplicidades de signos

80

Diagrama 13: Rizoma de aprendizagens como diferença

89

Diagrama 14: Atividade da “diferença” como pretexto para multiplicidades de signos que mobilizam 119 Diagrama 15: “Caminhos” de aprendizagem como diferença

131

Diagrama 16: “Caminhos” de aprendizagem como diferença

141

6

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Perfil da “história nômade” na rede social diasporabr

74

Figura 2: Blog historianomade.blogspot.com.br com a “tag cloud”

75

Figura 3: Postagem de conteúdo no historianomade.blogspot.com.br

77

Figura 4: Postagem de “ME”

92

Figura 5: Postagem de “ME”

93

Figura 6: Estudante explorando hipertexto

99

Figura 7: Postagem de “LE”

100

Figura 8: Postagem de “ME”

112

Figura 9: Postagem de “MM”

113

Figura 10: Usos da Web

120

Figura 11: Postagem de “A” e comentário de “GU”

124

Figura 12: Estudantes trabalhando em dupla

125

Figura 13: Postagem de “LE”

126

Figura 14: Postagem de “ME” e comentários do professor-pesquisador e de “A”

136

7

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

9

2 “HISTÓRIA NÔMADE” COMO RIZOMA

13

3 ESCOLA, PLANO IMANENTE E SEGMENTARIDADES

22

4 ESCOLA E MODELIZAÇÃO

32

4.1 TEMPO, ESPAÇO E CORPO

35

4.2 SABERES

40

4.3 FILOSOFIA DA REPRESENTAÇÃO E DA APRENDIZAGEM

44

4.4 DESEJO

48

5 “HISTÓRIA NÔMADE”: TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES E APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA

52

5.1 POR UM PENSAMENTO SEM IMAGEM, OU UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA NA EDUCAÇÃO 55 5.2 FILOSOFIA DA DIFERENÇA, PENSAMENTO COMO CRIAÇÃO

57

5.3 PENSAMENTO COMO SENTIDO E VALOR

58

5.4 APRENDIZAGEM E SIGNOS, OU APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA

60

5.5 APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA E A TRANSVERSALIDADE

68

5.6 HIPERTEXTO E A “HISTÓRIA NÔMADE” NA WEB

71

5.7 “HISTÓRIA NÔMADE”: HISTÓRIA COMO “TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES” 79 6 A OFICINA “HISTÓRIA NÔMADE”

81

6. 1 CARTOGRAFIA COMO “MÉTODO DE CAMPO”

81

6.2 PLANEJANDO A OFICINA

85

6.3 NOMADIZANDO SEGMENTARIDADES, A ÁGUA FLUINDO ENTRE AS PEDRAS

89

6.4 PENSANDO COM O HIPERTEXTO

107

6.5 “TEMA LIVRE”... RIZOMA

119

8

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

146

REFERÊNCIAS

149

APÊNDICES

157

9

1 INTRODUÇÃO O presente trabalho, escrito por um professor de História, toma a pesquisa em Educação como um território onde é possível problematizar poderes, saberes e práticas escolares no que eles têm de modelizante e, a partir daí, compor possibilidades para além dessa modelização. Em nossa pesquisa, tal movimento passa pelo emprego de uma filosofia que opera ao agenciar multiplicidades: nossa articulação de possibilidades utiliza as “ferramentas conceituais” da Filosofia da Diferença. Com Deleuze (1992b), tomamos a filosofia como produção de conceitos, produção de pensamento: pensar não como “reflexão” sobre alguma coisa, mas como ato criativo que vai engendrar o “pensar” no próprio pensamento. Ao criar pensamento, nossa filosofia se coloca em relação com saberes de outros domínios, estabelecendo conexões, articulando novas possibilidades: pensar para além da modelização, pensar como criação de diferença. Realizamos nossa pesquisa como um professor-pesquisador que opera um pensamento “nômade”, que não busca definições nem formas, mas que percorre, delineia... Nosso trabalho lida com multiplicidades sem querer reduzi-las a modelos, compõe um conjunto de relações complexas que se dão como “rizoma”: mobilização de multiplicidades de pensamento, problematizações e criação... Movimento de criação que se dá no próprio criar-se: pois fazer rizoma não é seguir nem reproduzir modelos, mas é um ato contínuo de produção de diferença. Nossa pesquisa compõe um rizoma, agenciamento1 de multiplicidades, que estabelece conexões com a filosofia da diferença de Deleuze (1976, 1985, 1988, 1992, 1999, 2002a, 2002b, 2003), Deleuze e Guattari (1977, 1995a, 1995b, 1997, 2010), Deleuze e Parnet (1998), Guattari (1981, 1992) e, ainda, Guattari e Rolnik (2005). Também mobiliza uma problematização das práticas e saberes escolares que passa por Foucault (1987, 1991, 1997, 1999a, 1999b, 2000, 2003, 2008). Assim como pensa filosoficamente a Educação e a aprendizagem como diferença com Gallo (2000, 2008, 2010, 2012), Kastrup (1999, 2001, 2003, 2009), entre outros pesquisadores. Também faz conexões com conceitos de Lévy (1998, 1999) ao operacionalizar o uso de ferramentas web. E, ainda, ressoa pelo rizoma as filosofias de Spinoza (2009) e Nietzsche (1983). Nosso trabalho problematiza práticas escolares em suas modelizações constituintes do espaço, tempo, saberes e pensamento, série de operações normatizadoras e reprodutoras que

1

Agenciamento é o acoplamento de um conjunto de relações (ZOURABICHVILI, 2004, p. 9).

10

acabam impossibilitando o aparecimento da diferença. Contudo, não nos contentamos com as problematizações, partimos delas para articular práticas: buscamos a composição de um território de multiplicidades em que o pensamento filosófico da educação e as práticas escolares abram-se à novas conexões. Ampliação do círculo de discernibilidade, em que “aprender” seja criar diferença e não reproduzir saberes, com os estudantes tomados em suas singularidades e não colocados em uma ordem de “dever ser” modelizante. Tal movimento é operacionalizado por uma filosofia que se dá como criação de conceitos, como criação de pensamento... Em nossa pesquisa, produzimos uma criação conceitual ao fazer a “disciplina de História” operar como um “território transversal de saberes”. Movimento onde a atuação do professor de História não é mais de ordem “disciplinar”, mas uma atuação em rizoma, operando agenciamentos para mobilizar, em transversalidade, os saberes da História e múltiplos outros saberes (Geografia, Antropologia, Filosofia, Artes, Música, etc.), buscando com os estudantes múltiplas aprendizagens como criação de diferença. Tal criação de pensamento do professor-pesquisador faz-se em um duplo movimento de mútuas implicações: criação conceitual e criação de práticas com estudantes, por meio da realização de uma oficina, a “história nômade”. Assim, nossa “problemática de pesquisa” é fazer a “disciplina de História” operar como “território transversal de saberes” para criar práticas escolares onde a aprendizagem seja produção de diferença. O “objetivo geral” de nosso trabalho foi realizar e cartografar as práticas da oficina “história nômade”, onde operamos o “território transversal de saberes” e buscamos aprendizagens como diferença. Para tal, como “objetivos específicos”, delineamos práticas e pensamentos filosóficos modelizantes na escola, buscando deles fazer “linhas de fuga” ao produzirmos novas práticas e novos conceitos. Também, operacionalizamos conceitualmente a “história nômade” com a filosofia da diferença, conceituamos a “aprendizagem como diferença” e criamos o conceito de “território transversal de saberes”. E, ainda, produzimos e instrumentalizamos ferramentas web (blogs e rede social) para a oficina, buscando com seu uso o trânsito transversal dos saberes trabalhados pelos estudantes. A oficina “história nômade” realizou-se em quinze tardes entre o final de outubro e o começo de dezembro de 2014 em uma escola pública em Itapema/SC. Passaram pelos movimentos da oficina nove estudantes dos oitavos e nonos anos do Ensino Fundamental, que frequentavam suas séries regulares no turno da manhã e participavam da oficina no turno vespertino. Ali trabalhamos como professor-pesquisador que, juntamente ao grupo, operou o “território transversal de saberes”, criando aprendizados como diferença, compondo um

11

rizoma de multiplicidades de saberes. Na oficina, realizamos atividades utilizando a web e nos organizamos de uma maneira diferente da qual os estudantes estavam acostumados nas “aulas normais”. Em nossos encontros, as aprendizagens dos estudantes partiam de suas inquietações, de suas percepções, de seus desejos, que serviam de motivação para suas explorações na web. Ao professorpesquisador cabia incentivá-los a criar e seguir seus próprios caminhos de aprendizagem e não homogeneizar os movimentos. Trabalho de “fazer com” os jovens, tomando-os como singularidades, positivando a diferença, trocando ideias, compartilhando links, ouvindo, convivendo, problematizando, colaborando na operacionalização dos saberes... Nossas práticas na oficina possibilitaram aos estudantes, cada um à sua maneira, conectarem-se com as multiplicidades do “território transversal de saberes”. Movimento em rizoma em que os próprios jovens, com seus desejos e pensamentos mobilizados singularmente, exploravam a web, selecionavam temas de interesse, trocavam entre si e com o professor-pesquisador e, assim, iam tomando posse de seus caminhos de aprendizagem, que foram registrados e compartilhados em uma rede social. A oficina “nômade”, experiência de um coletivo, foi criando a si própria em uma ética de abertura: experimento vivo, para além de modelizações, fomos compondo multiplicidades de caminhos, com professor-pesquisador e estudantes afirmando suas potências singulares, constituindo um território rizomático de saberes e práticas escolares em processo que produziu uma série de aprendizagens como diferença. O presente texto é a trajetória de nossa pesquisa, cuja composição das problematizações, operacionalização e criação de conceitos, instrumentalização de ferramentas web e concepção, realização e cartografia da oficina compõem um rizoma de nossas movimentações e de suas múltiplas conexões entre si. Em nosso primeiro capítulo, ‘História nômade’ como rizoma, delineamos o conceito de rizoma para com ele operacionalizarmos nosso trabalho. Nos capítulos Escola, plano imanente e segmentaridades e Escola e modelização, problematizamos a modelização da escola em suas práticas e pensamentos filosóficos. No capítulo ‘História nômade’: território transversal de saberes e aprendizagem como diferença, operacionalizamos conceitos da filosofia da diferença como linhas de fuga da modelização. Ali conceituamos a “aprendizagem como diferença” e criamos nosso conceito de “território transversal de saberes”. A partir desses delineamentos conceituais,

produzimos

a

“história

nômade”

na

web,

onde

criamos

blogs

e

instrumentalizamos o uso de uma rede social para a oficina. Agenciando as problematizações, mobilizações conceituais, criações de pensamento e ferramentas web, realizamos e

12

cartografamos os acontecimentos da oficina, que aparecem no capítulo A oficina ‘história nômade’. No último capítulo, discutimos nossos percursos de pesquisa e traçamos algumas “considerações finais” sobre nosso rizoma “história nômade”.

13

2 “HISTÓRIA NÔMADE” COMO RIZOMA Quando

lidamos

com

“rizoma”,

estamos

lidando

com

multiplicidades.

Multiplicidades, sobreposições, entrelaçamentos de planos que não podem ser reduzidos a uma unidade sem que percam imediatamente a sua natureza de multiplicidades. Fazer multiplicidades sem “traduzi-las” ou “organizá-las” em termos de um modelo fixo. Com este trabalho, colocamos as práticas escolares e a filosofia da educação em termos de rizoma e, assim, movemo-nos para além de práticas e pensamentos modelizadores – um movimento de rizoma que coloca filosofia e práticas escolares em abertura sem a necessidade de fechamentos em modelos. Nosso trabalho é movimento que traça delineamentos: pensa filosoficamente e traça linhas, compõe práticas e traça linhas, vai a campo e traça linhas - fazemos uma “cartografia”. Registramos movimentos no próprio fazer-se da movimentação - a “história nômade” é cartografia de pesquisa de pensamento filosófico, criação de pensamento, operacionalização de práticas e realização de oficina com estudantes como um rizoma. Assim, a “história nômade” não é apenas a oficina, mas a oficina está agenciada nas multiplicidades compostas por nossa pesquisa. Nossa dissertação é um “mapa” de nossas movimentações de pesquisa, relações complexas e em aberto, pois rizoma é “intermezzo”, “[...] o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e...e...e...’” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15). Estamos tratando de multiplicidades que se conectam (diagrama 1), de hibridações que mudam de acordo com os novos acontecimentos que criam e não tratando de conceitos prévios e definições fechadas (FERREIRA, 2008, p. 34).

14

Diagrama 1 – Rizoma

Fonte: Elaborado pelo autor.

Ao pensar filosoficamente e praticar educação como rizoma, vamos compondo linhas de fuga da modelização, vamos compondo um mapa de multiplicidades e diferenças sempre em aberto, sempre em fluxo... Movemo-nos para além da “imagem dogmática do pensamento”, que erige modelos estáveis e universais que implicam sempre na existência de um ponto de vista fixo, invariável. Fazemos rizoma ao colocarmo-nos em movimentação, produzindo diferença em nosso fluxo de experimentações enquanto professor-pesquisador que cria delineamentos de pensamento e realiza com eles uma oficina com estudantes. Mover-se em rizoma, como as gramas que se espraiam pela terra sem uma raiz central, com inúmeras linhas fibrosas que se engalfinham formando um conjunto complexo. Rizoma como multiplicidades, ao contrário da modelização que se dá como “árvore”, linear, hierarquizante, concentradora (diagrama 2) e relacionada à maneira disciplinar e de controle que configura muitas das práticas escolares e de pensamento filosófico. Compomos nossa pesquisa como uma organização pelas multiplicidades, que se espraia de modo não hierárquico e possibilita o aparecimento da diferença permitindo que a criação se repita incansavelmente (FERREIRA, 2008, p. 33).

15

Diagrama 2 - Árvore como modelização. Organização linear, hierarquizante e concentradora

Fonte: Elaborado pelo autor.

Assim, o rizoma seria uma maneira de expressar as multiplicidades sem ter de ligá-las a uma unidade. Para pensar sempre em multiplicidades no plural, pois não se trata de “a multiplicidade” que acabaria gerando o binarismo “Uno-múltiplo” que submeteria a multiplicidade à unidade e assim estagnando-a e impedindo o seu devir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser construída: escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15).

Nossa “história nômade” quer fazer acontecer linhas de fuga da modelização que estabelece práticas hierárquicas que constituem saberes, espaços e tempos educativos que acabam regulando e mediatizando fluxos e impedindo o acontecimento das multiplicidades. Pensar filosoficamente e praticar educação como modelização é estar em um plano de “árvore”, é operar em uma “imagem dogmática do pensamento” que vai separar e compartimentalizar saberes em uma lógica central que remete à unidade conceitual, classificatória e reducionista (FERREIRA, 2008, p. 30) - o pensamento que nunca compreendeu as multiplicidades (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 13).

16

No território das práticas educativas como rizoma, temos o que Gallo (2008, p. 68) chama de “educação menor”. É justamente nesse território que criamos nossas práticas - aqui “menor” não se trata de inferior, mas de uma busca por linhas de fuga que apontem aberturas e singularidades. É que a “educação menor” operacionaliza a educação como rizoma e não está preocupada em instaurar uma totalidade, constituir modelos, não quer ser uma “educação maior”. Não interessa à educação menor criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Não se trata de buscar a complexidade de uma suposta unidade perdida. Não se trata de buscar a integração dos saberes. Importa fazer rizoma. Viabilizar conexões e conexões; conexões sempre novas. Fazer rizoma com os alunos, viabilizar rizomas entre os alunos, fazer rizoma com projetos de outros professores, manter os projetos abertos. (GALLO, 2008, p. 68).

Avesso aos modelos e às modelizações, rizoma é movimento, é fluxo, é criação. Tal agenciamento de pensamento e práticas possibilitou criações conceituais e práticas na oficina que positivaram as singularidades dos estudantes na composição de saberes enquanto multiplicidades. Ao iniciar as atividades da “história nômade” o professor-pesquisador colocava aos jovens: “Imagine algo que você gosta muito, ou algo que lhe desperte o interesse, ou ainda algo que você tenha curiosidade...” O rizoma incentivando o aparecimento de abordagens, temas, sensibilidades que não passaram pela necessidade de unificação de acordo com um currículo pré-determinado, ou um tema que seria estendido ao grupo, etc., mas movimentos múltiplos de composição de diferença. Falava o professor-pesquisador: “pode ser sobre uma coisa que você goste e queira saber mais, pode ser sobre algo que você tem curiosidade, algo que lhe preocupa... se não sabe direito o que pesquisar, dê uma navegada na internet, explore temas, converse, pense e escolha o que mais lhe agrada”. Deslocamentos produtivos que não passaram pela necessidade de controlar respostas, avaliar disciplinarmente os trabalhos, mas um fluir com a própria fluência, viabilizando conexões para além da compartimentalização dos saberes. Os estudantes, individualmente ou em pequenos grupos, tomaram a iniciativa e, em parceria com o professor-pesquisador, trabalharam temas em multiplicidades, como por exemplo: “ataques de ácido na Índia”, “preconceito contra nordestinos”, “nazismo”, “racismo nos EUA”, “sociedades secretas”, “poesia”, “skate”, “música dos povos indígenas”, “amizade”, “criatividade”, “paisagens brasileiras”, entre outros. O movimento de produção de diferença não se deu somente na oficina, mas durante todo o processo do fazer-se da pesquisa, pois nossa “história nômade” não foi a aplicação empírica de um modelo teórico dado de antemão. A oficina (trabalho com os estudantes) foi

17

parte de um processo de criação de diferença e está agenciada no rizoma que compomos numa operatividade que conectou conceitos, criações conceituais e práticas em agenciamentos experimentais e criadores do professor-pesquisador. Tal movimento (não hierárquico, não unificador) de rizoma de nossa “história nômade” operou seis “características aproximativas”: 1) e 2) “Princípio de conexão e de heterogeneidade”: “[...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15). O rizoma é um sistema “acentrado”, faz conexões sem obedecer a uma ordem hierárquica ou filiações. Conecta-se por aliança, crescendo por todos os lados e em todas as direções (KASTRUP, 2003, p. 54). Em nossa pesquisa conectamos planos heterogêneos: problematizamos práticas modelizantes na escola e no pensamento filosófico, buscamos linhas de fuga com o pensamento da diferença, operacionalizamos uma oficina, realizamos a oficina com estudantes, com os estudantes produzimos aprendizagem como diferença. Conexões heterogêneas, rizoma. E, ainda, por “princípio de heterogeneidade”, o rizoma não se reduz à linguagem, as conexões se dão mesmo não estando expressas em uma página, ou em um capítulo – complexidade latente de conexões que não cessa de pulsar. “Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15). 3) “Princípio de multiplicidade”: “[...] é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidades, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15). Multiplicidades não apenas no tocante aos temas trabalhados na oficina, mas como a própria composição de nossa dissertação. Em nosso trabalho, não atuamos como um “sujeito” que estuda um “objeto”, mas fazemos rizoma, compomos uma pesquisa como um plano de multiplicidades de conceitos, criações conceituais e práticas com estudantes. Se tratamos de multiplicidades, como já estamos tratando, não podemos pensar em termos de uma totalidade unificante de “objeto” e “sujeito”. “[...] uma multiplicidade não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mudem de natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 19). Não estamos tratando de uma teoria como modelo que seria aplicado numa prática empírica, mas estamos operando um princípio de diferença interna, de autocriação (KASTRUP, 2003, p. 54), cujas grandezas e determinações expandem-se de acordo com os seus agenciamentos (FERREIRA, 2008, p. 35). Ou, ainda, as multiplicidades do rizoma definem-se pelas linhas de fuga que traçam. Nossa pesquisa lida com multiplicidades por ser delineamento de pensamento e práticas que criam linhas de fuga no seu próprio fazer-se.

18

4) “Princípio de ruptura a-significante”: “[...] contra os cortes demasiados significantes que separam as estruturas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 18). Uma ruptura “asignificante” diz respeito justamente às tensões entre a criação e o desmancho dessas mesmas criações, são linhas de movimento, um tempo inventivo (KASTRUP, 2003, p. 55). Para além de um “Significante” modelizante, arborizante, redutor da polivocidade expressiva, que faz calar as virtualidades infinitas das línguas menores e das expressões parciais (GUATTARI, 1992, p. 42). Quando se produz um território, este pode desterritorializar-se, fazer apontar linhas de fuga: “[...] a forma surge como uma linha que se fecha, abolindo temporariamente o movimento criador. Mas ela sempre pode encontrar uma linha de fuga que lhe recoloque no devir” (KASTRUP, 2003, p. 55). Assim, nossa pesquisa vai movimentar-se como linha de fuga no sentido de romper modelizações, mas não quer que sua ruptura se torne um novo modelo. 5) e 6) “Princípio de cartografia ou de decalcomania”: “[...] um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 22). Nosso rizoma é “mapa”, é performance e se opõe ao “decalque” por estar voltado à uma “experimentação ancorada no real”[...]. “[...] o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, demonstrável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 22). Já o decalque não é performance, é competência presumida, é reprodução do mapa e, quando quer “traduzir” um rizoma, transforma-o em outra coisa que não mais rizoma, pois ele “[...] organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir alguma coisa” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 23). O rizoma, “[...] enquanto mapa, possui sempre regiões insuspeitas, uma riqueza geográfica pautada em uma lógica do devir, da exploração, da descoberta de novas facetas” (GALLO, 2008, p. 77). Não se trata de tomar o mapa como o oposto do decalque, assim como não se trata de tomar o uno como oposto das multiplicidades: enquanto o decalque age como modelo transcendente, “[...] sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 26), o rizoma é um processo imanente que reverte o modelo, esboçando um mapa (FERREIRA, 2008, p. 38). Assim, a “cartografia” do mapa aponta que o pensamento no rizoma não é representacional, mas inventivo (KASTRUP, 2003, p. 55), assim como nossas práticas da oficina foram inventivas.

19

Fazer mapa ao movimentar-se em razão do próprio movimento. Pensamento inventivo que quer reverter os modelos: no rizoma operamos um “pensamento nômade”, pensamento como criação. Filosofar aqui é engendrar pensamento no próprio pensamento e não “refletir sobre algo”. Um tipo de pensamento filosófico que se espraia e constitui territórios no seu próprio fazer-se. Aqui não estamos filosofando sobre alguma coisa, mas usando a filosofia como ferramenta para criar pensamento e práticas, pois juntamente com a oficina, nossa pesquisa produz pensamento filosófico. Enquanto o pensamento e as práticas modelizantes são sedentárias, fixas e distribuem os homens em um espaço fechado, o trajeto nômade, rizomático, dá-se em espaço aberto. “A vida do nômade é intermezzo. Até os elementos de seu habitat estão concebidos em função do trajeto que não para de mobilizá-los” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 51). É que o espaço do nômade é liso e seu pensamento desenvolve-se em função de singularidades não universalizáveis (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 48). Assim, operamos um pensamento filosófico que, como rizoma, busca o “fora” da modelização. Tomamos a filosofia como aquela que deve ser capaz de produzir pensamento: pensamento que cria, busca diferenças, articula-se com multiplicidades... Assim, em nossa composição de práticas escolares, a aprendizagem vai dar-se como produção de diferença, pois aprender no pensamento nômade, no rizoma, é aprender fazendo diferença – o que se busca é um espaço de aprender das multiplicidades e não a medida ou o controle (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 11). Não buscamos modelos fixos e a necessidade de controlar o movimento, mas percorremos, engendramo-nos (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 30). É uma busca por colocar as variáveis em estado de variação contínua (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 36). Trata-se de tomar as multiplicidades como elas próprias - eis o rizoma, o modo de organização das práticas e do pensamento, da filosofia de nossa “história nômade”. Prática de pensamento nômade do professor-pesquisador: nosso trabalho “história nômade” compõe um rizoma (diagrama 3) que atravessa e é atravessado pela problematização das práticas e pensamento modelizantes na educação; pela filosofia da diferença de Deleuze, e outros; pelo conceito de “aprendizagem como diferença”; pelo conceito de “hipertexto”; pelos usos da web; pelo conceito de “transversalidade”; pela criação conceitual de “história como território transversal de saberes”; pelo conceito de “educação menor”; pelas criações de práticas da oficina “história nômade”; e tantos outros.

20

Diagrama 3 - Rizoma “História nômade”

Fonte: Elaborado pelo autor.

“História nômade” é o mapa de nossos delineamentos como professor-pesquisador: nossa mobilização de conceitos, nossa criação conceitual, operacionalização de ferramentas na web, realização da oficina com os estudantes, produção de aprendizagens como diferença com eles... um movimento de pesquisa que traça nosso trajeto muito antes de nossa “ida a campo”. Exploração de trajetos dinâmicos, o presente texto é rizoma que traçamos durante nosso próprio movimento do fazer-se da pesquisa, que não é fruto de um modelo, ou de ideias prontas, nem regras pré-determinadas... ele é criação que agencia forças e intensidades, com ele desenhamos nossas conexões, onde fizemos, como professor-pesquisador, a nossa própria aprendizagem como diferença bem como operacionalizamos tal aprendizagem como diferença com os estudantes. Cartografia de delineamentos: nosso rizoma é mapa aberto de explorações de meios por trajetos dinâmicos ao pensarmos com a filosofia da diferença e, com isso, criarmos conceitos e operacionalizarmos a oficina. Rizoma que agencia nossa cartografia das práticas da oficina, onde o professor-pesquisador vai compor novos delineamentos ao acompanhar os processos com os estudantes. Assim, vamos conectando multiplicidades sem hierarquizar conceitos, tomando-os como multiplicidades de atravessamentos, sem pretender seguir ou estabelecer modelos de pensamento ou de práticas… rizoma: mapa que se faz ao fazer-se...

21

Um rizoma é composto por regiões contínuas de intensidades, os platôs (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 33). “Chamamos de ‘platô’ toda multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 33, grifo dos autores). Nosso rizoma possui, pelo menos, três grandes platôs (diagrama 4): “delineamento das práticas escolares modelizantes e delineamento da imagem dogmática do pensamento”; “filosofia da diferença ou pensamento sem imagem e a aprendizagem como diferença”; e “história nômade como produção conceitual e como prática de oficina com estudantes”. Todas essas regiões de intensidade são planos coexistentes, conectam-se heterogeneamente, atravessam-se como problemáticas e conceitos que ressoam entre si durante toda a composição da dissertação, que se atravessam permanentemente por tomarmos nosso pensamento como rizoma que lida com delineamentos sempre em aberto e em conexão... rizoma como maneira de pensar na imanência e nas multiplicidades e, assim, produzir diferença. Nosso trabalho faz rizoma como prática de “educação menor”, filosofia como intervenção no mundo, de um professor-pesquisador que traça delineamentos de multiplicidades que criam um território de pensamento e práticas escolares como produção de diferença. Diagrama 4 - Regiões de intensidade do rizoma “história nômade”

Fonte: Elaborado pelo autor.

22

3 ESCOLA, PLANO IMANENTE E SEGMENTARIDADES Agora, pensamos filosoficamente como rizoma ao tomarmos nosso pensar como um traçar de linhas que compõem relações. Neste capítulo, Escola, Plano Imanente e Segmentaridades e no capítulo seguinte, Escola e Modelização, vamos compor nossa problematização da modelização das práticas escolares, tomando nosso pensamento como um “desenhar” segmentos de força que perpassam relações. Aqui, delineamos a problemática a partir da qual criamos nossos movimentos de pesquisa: a escola segundo suas configurações modelizantes, que constituem práticas e pensamentos que impedem o aparecimento da diferença. Assim, compomos um mapa, fazemos uma cartografia. Um estudo como algo: “precisamos saber o que impede o rizoma e disto fazer linha de fuga”. Ou ainda, vamos delineando o “solo” e o “horizonte” da produção de nossa pesquisa. Na “história nômade”, optamos por ferramentas teóricas e práticas para compor movimentos numa fluência rizomática. Não tratou-se, simplesmente, de “inserir a informática” na escola, ou de “aplicar” alguma teoria ou alguma ideologia da educação, mas tratou-se de criar movimentos ao mobilizar multiplicidades. Tal criação de rizoma passou por um trabalho de cartografia de práticas e pensamentos escolares segundo o regime de forças que eles constituem, para daí traçarmos nossos próprios regimes, buscando uma fluência que possibilite a criação de diferença. Tomamos as práticas escolares no que elas têm de organização linear, hierárquica, arborescente e, dali, fomos criando nossas práticas em rizoma. Professor-pesquisador como aquele que [...] faz a prospecção dos dispositivos do poder, assinalando-lhe, em um complexo de operações, sua natureza e sua forma de disposição. Esse, um pensador dos espaços que não se detém nos limites e faz instrumento de exploração das novas fronteiras educacionais. (NOVAES, 2007, p. 27).

Os estudantes participantes da “história nômade”, cada um à sua maneira, perceberam a fluência das práticas que fomos estabelecendo. Nossa proposta foi trabalhar como professorpesquisador juntamente ao grupo de estudantes, buscando o aprendizado como diferença, usando a web como ferramenta de trabalho, compondo um rizoma de multiplicidades de saberes e de aprendizagens. Durante a realização da oficina sugerimos que eles, de modo espontâneo e voluntário, nos dessem opiniões sobre os trabalhos, por meio de mensagem privada pela rede social na qual fizemos as atividades. O estudante “GU” escreveu em sua mensagem para o professor-pesquisador: “[...] aprendi muito sobre o que eu estudei e criei, porque não é um assunto chato, ele é um assunto legal e divertido. O meu trabalho é sobre o nazismo e o neonazismo.” O estudante, assim como seus colegas de oficina, usou a web para

23

trabalhar temas que ele mesmo escolheu, criou postagens na rede social, afirmando sua potência de produzir diferença em parceria com o professor-pesquisador. Escreveu o estudante “LE” em sua mensagem: “Na oficina estamos aprendendo várias coisas, ela está me ensinando coisas que eu não conseguia aprender em aulas na sala, ela nos ajuda a entender que não é só de um jeito que podemos aprender as coisas. [...]” O estudante percebeu, em suas práticas, que não existe apenas uma maneira de aprender – não mais um professor que “passa a matéria”, ou “ensina e avalia o aprendizado”, onde “todos devem aprender o mesmo assunto ao mesmo tempo”, mas possibilidades de multiplicidades de práticas escolares, onde o estudante se conecta a elas produzindo diferença. Tal flexibilização também foi exposta pela estudante “A”, agora no tocante ao acesso aos saberes: “ […] Sobre o uso da internet ela é o modo mais fácil de se conseguir informações do Brasil e do mundo, na oficina foi essencial o uso da internet, se for comparar as aulas normais com as aulas que foi utilizado a internet, a internet irá ganhar, pois é mais fácil e rápida […]”, escreveu em sua mensagem, apontando para as potencialidades da web como ferramenta para agenciar multiplicidades de saberes. Fluidificações das práticas escolares para fazer as singularidades dos estudantes acontecerem como produção de diferença. Para possibilitar esta fluência de saberes, de pensamentos e de desejos dos estudantes e sua composição com o papel do professorpesquisador, nosso trabalho de pesquisa passou por uma cartografia que tomou para si a tarefa de delinear onde, nas práticas e pensamentos escolares de modo geral, forças fazem composição como “árvore” (territórios que hierarquizam as práticas, tornando-as modelizações). Trabalho de delinear tais forças e se posicionar diante delas, buscar agenciamentos não modelizadores entre estudantes, professor-pesquisador, saberes, pensamentos, desejos... O critério para a composição dessas linhas e desses territórios são os elementos constitutivos dos poderes, segundo ferramentas teóricas de Foucault, que estuda os regimes de saberes, tempo e espaço das sociedades modernas e contemporâneas. Também é critério para nosso delineamento, o pensamento da diferença de Deleuze e outros autores da Filosofia da Diferença. Assim, ao delinearmos poderes que vão constituindo territórios, tomamos as práticas da “educação”, da “escola”, do “ensino de história”, etc., não como algo neutro, tampouco como produto de alguma evolução progressista – as práticas escolares são permeadas de relações de poder, são constituídas em composição com relações de poder. Dentro da escola, também não tomamos como dados os “sujeitos” da educação que estariam em frente aos igualmente dados “objetos” do conhecimento. Isso seria já fazer um decalque,

24

repetir modelizações. Para sair das modelizações arborescentes, tratamos de compor uma cartografia que problematiza práticas escolares nas quais os corpos estão colocados e os regimes de saberes que são considerados válidos. Uma problematização das operatividades constitutivas de tempo, de espaço, de saberes e de pensamento. Essa maneira de realizar nossa pesquisa, tomando a escola na concretude de suas práticas, nas composições que lhes são inerentes, é o que chamamos de pensar em “imanência”. Pensar em imanência ao compor o rizoma: fazer uma filosofia prática que toma o pensamento em uma concretude tal que este não seja assimilado ou identificado a algum princípio superior que funda a realidade como o faz a imagem dogmática, modelizante do pensamento. Mas, antes, uma filosofia que pensa e problematiza as relações constitutivas das modelizações. Entenda-se que, aqui, não estamos falando de teorias educacionais, ideologias, etc. Assim, não se trata de pensar em termos de princípios como “a Verdade”, “o progresso”, “a consciência”... Tampouco se trata de pensar de acordo com “leis que explicam a sociedade”, como “as leis positivistas da História”, nem “as leis da dialética”, nem o unidimensional “desenvolvimento capitalista”, por exemplo. Exemplos de casos distintos que têm em comum o estabelecimento de princípios gerais modelizantes que decalcariam nosso rizoma. Exercitamos nosso trabalho atentos ao valor e ao sentido da relação de forças que se apoderam de alguma coisa, atentos às relações de força que vão se compondo, aos agenciamentos que vão sendo engendrados. Tomamos a escola como campo social constituído por corpos em relações complexas: corpos e forças que estabelecem certas composições, certos agenciamentos em sua concretude. Não pensamos de acordo com formas ou funções colocadas de antemão, pois “[...] um plano de imanência não dispõe de uma dimensão suplementar: o processo de composição deve ser captado por si mesmo, mediante aquilo que ele dá, naquilo que ele dá. É um plano de composição [...]” (DELEUZE, 2002b, p. 133). Então, nosso trabalho de pesquisa passa, concretamente, pela criação de um plano de pensamento e práticas que possibilitem a diferença. Por estarem agenciadas em linhas de força, as práticas educativas de modo geral se dão como algo político, mas não um político necessariamente de modo ideológico: uma espécie de rede com base em uma lógica das conexões (KASTRUP, 2003, p. 53), ou, ainda, um “plano coletivo de forças” (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009, p. 92). Dessa maneira, apesar de todas as potencialidades e as utilidades para a vida, que não negamos, as práticas educativas de modo geral também aparecem como algo político quando implicadas e

25

implicantes em redes de poderes e saberes modelizantes, ao produzirem-se como uma complexa rede que conecta a vida de acordo com determinada lógica. Um certo tipo de política, por estarem as práticas escolares implicadas em redes de entrelaçamento de normas, relações sociais, práticas, saberes que acabam por formar este “plano coletivo de forças”. Diante de tal plano, cabe ao professor-pesquisador da “história nômade” repensar e recriar relações das “aulas normais” ou “aulas na sala” para compor práticas onde os desejos, os pensamentos, os saberes encontrem fluências diferentes... “não é só de um jeito que podemos aprender as coisas”, diria o estudante “LE”. Os “objetos” do mundo (as práticas escolares inclusive) não possuem uma natureza fixa, mas estão abertos à variação, em constante transformação, resultantes de composições do plano das formas com o plano movente das forças ou coletivos de forças (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009, p. 94). Essa composição dá-se por segmentaridades e fluxos e não por totalidades fixas: uma consequência dessa maneira de pensar é o abandono da ideia de “sujeito” e “objeto” como algo dado de antemão. Tratamos “sujeito” ou “objeto” como algo que se compõe com o campo social. Ou seja, há toda uma rede, uma série de linhas, de segmentaridades de forças e corpos que vão compondo e decompondo aquilo que entenderíamos como um “sujeito” ou um “objeto” dado. Um plano de composição atravessado por inúmeros segmentos que vão se rearranjando, compondo novos segmentos, novos movimentos... multiplicidades. Assim, nunca vamos descrever ou tomar “a escola em sua totalidade”, como uma generalidade fixa, mas vamos tratar de segmentos de poderes que a atravessam, a compõem. Múltiplos atravessamentos ao invés de uma totalidade fixa, plano de composição complexo com múltiplas relações. Ou, ainda, pensando em imanência, não somos constituídos por totalidades, mas por múltiplos atravessamentos de forças de variada extensão e intensidade. Plano complexo e com múltiplas relações, por exemplo: quando falamos que tal aluno ou professor “pensa”, e é claro que eles pensam, este pensamento não é puramente uma operação de um “sujeito”. Este pensar também existe como algo que está implicado em um campo coletivo de forças na medida em que se encontra agenciado e, também, em boa parte moldado por dispositivos materiais e coletivos (biblioteca... internet... ideias de uma época... amigos... família... moda... igreja...etc.). O “sujeito” não é dado como uma identidade fixa em separado e em relação com um “objeto” - tratamos a questão percebendo que, no íntimo do “sujeito”, existe toda uma rede que se entrelaça, colocando em contato uma complexa relação entre coisas e pessoas. Também, os “objetos” de conhecimento se colocam de modo complexo, pois, por de

26

trás dessa entidade, aparentemente estável, que é o “conhecimento”, está uma rede agonística, uma rede de poderes, uma rede heterogênea que mantém sua existência – sendo agonísticas também as línguas, os instrumentos de trabalho, as máquinas, os métodos. Enfim, há esta série de atravessamentos: a pessoa pensa, mas pensa dentro dela uma rede de relações; ela sabe, mas também o saber sabe nela. Um território complexo como uma rede que liga termos cujas relações são primeiras do que os próprios termos ligados. O espaço inteiro está coberto por linhas de força constituidoras desse campo dinâmico, no qual a ação entre os corpos (diagrama 5) seria determinada justamente pela configuração de forças presentes no conjunto total do campo (ESCÓSSIA; TEDESCO, 2009, p. 96). Diagrama 5 – Rede de relações atravessando o indivíduo

Fonte: Elaborado pelo autor.

Tais linhas de força, linhas de composição são, em maior ou menor intensidade ou extensão, operações produtivas de poder e de saber que constituem segmentos, nos constituem, constituem os espaços, constituem saberes; enfim, linhas, segmentos que configuram uma rede, um campo dinâmico em sua relação com os corpos. Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentarizada conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das operações. (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 84).

27

Indivíduos e grupos, somos segmentarizados. E todo esse plano coletivo de forças é feito de linhas de natureza bem diversa. Linhas como uma série de operações de natureza diversa que atravessam e constituem nossa existência de modo abrangente. Deleuze e Guattari (1995b) falam de três tipos de linhas (diagrama 6): as “molares”, as “moleculares” e as “linhas de fuga”. Diagrama 6 - Molaridades, molecularidades e linhas de fuga

Fonte: Elaborado pelo autor.

Um tipo são as linhas de “segmentaridade dura”, com espécies de segmentos bem determinados, grandes segmentos que nos constituem, macro segmentaridades. Tal série de operações são chamadas de segmentaridades “molares”, como, por exemplo, [...] a família – a profissão; o trabalho – as férias; a família – e depois a escola – e depois o exército – e depois a fábrica – e depois a aposentadoria. E a cada vez, de um segmento a outro, nos dizem: agora você já não é um bebê; e na escola, aqui você não é mais como em família; e no exército, lá já não é como na escola... (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145).

Esses segmentos molares vão constituindo a maneira que vamos nos compondo no campo coletivo: vivemos em uma família, o papel social da família nos atravessa; temos um trabalho, nossa profissão também compõe uma segmentaridade molar em nós; pertencemos à uma classe social, outra molaridade; nos aposentamos, novos segmentos delineiam-se, etc. A

28

escola, de maneira geral, está repleta de segmentaridades dessa natureza: as disciplinas de tempo e espaço, os saberes necessários, as avaliações, as hierarquias, etc. Essas segmentaridades atravessam-nos e constituem-nos de várias maneiras, nunca em uma totalidade, mas em uma rede complexa de atravessamentos, de segmentaridades. Tais segmentaridades molares podem ser como “binárias”, a partir de grande oposições duais como: as classes sociais – rico e pobre; homens e mulheres, adultos e crianças, etc. Mas, também, podem dar-se “circularmente”: em círculos cada vez mais vastos como as “minhas ocupações”, as “ocupações de meu bairro”, de “minha cidade”, “meu país”, “do mundo”, etc. Também somos segmentarizados “linearmente”: em uma ou mais linhas retas, em que cada segmento representa um episódio ou um processo; e mal acabamos um, começamos outro, como que demandados para sempre, como família, escola, exército, profissão... (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 84). Por exemplo, nessa segmentaridade linear dão-se operações de Estado, de governo, onde uma espécie de olho central permanece invariante em relação aos deslocamentos, uma modelização: o espaço político sobrecodifica, constitui códigos/significados sobre os segmentos das linhagens, transformando o mundo em cidade, transformando os espaços em aberto em espaços ocupados, em segmentaridades cada vez mais duras (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 88). Daí podermos falar que essa segmentaridade molar é de ordem macropolítica. E existe toda uma série de segmentaridades desta ordem operando na escola e elas nos são problemáticas pois operam modelizações, segmentaridades duras que impossibilitam a diferença. Existem ainda segmentaridades mais flexíveis, que operam de outra maneira, mas que também nos constituem. Tais linhas são chamadas de “moleculares”. Não que sejam mais íntimas ou pessoais, pois elas atravessam tanto as sociedades, os grupos quanto os indivíduos. Elas traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas dirigem até mesmo processos irreversíveis. Mais, porém, do que linhas molares a segmentos são fluxos moleculares a limiares de quanta. Um limiar é ultrapassado, e não coincide, necessariamente, com um segmento das linhas mais visíveis. Muitas coisas se passam sobre essa segunda espécie de linhas, devires, micro-devires [...]. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146).

Se as segmentaridades molares são segmentaridades de ordem maior, nas molecularidades trata-se de fluxos de quanta, uma micropolítica que não para de remanejar seus segmentos, de agitá-los (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 97). E aqui não se trata de “pequeneza”, mas da natureza de sua “massa”, pois uma organização molar, de segmentaridade dura.

29

[...] não impede todo um mundo de microperceptos inconscientes, de afectos inconscientes, de segmentações finas, que não captam ou não sentem as mesmas coisas, que se distribuem de outro modo, que operam de outro modo. Uma micropolítica da percepção, da afecção, da conversa, etc. (DELEUZE; GUATTARI,1995b, p. 90).

E, ainda, não se trata de propriamente separar as linhas do “molar” dos fluxos do “molecular”, pois toda a sociedade, todo o indivíduo são atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo. Elas se distinguem por não terem os mesmos termos, não terem as mesmas correlações, não terem o mesmo tipo de multiplicidade. São inseparáveis ao pressuporem uma a outra (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 90); estão em uma pressuposição recíproca (diagrama 7), implicados de maneira imanente.

Diagrama 7 - Múltiplos delineamentos compondo um indivíduo

Fonte: Elaborado pelo autor.

Se pensarmos, por exemplo, na segmentaridade molar “homem – mulher”, quantas multiplicidades moleculares perpassam essa relação, quantos “micro-sexos” ou “microsexualidades”. Ou, se pensarmos a molaridade “classes sociais”, que remetem às “massas”, podemos pensar dentro dessa classe social toda uma composição de fluxos moleculares de outros agrupamentos que não se articulam da mesma forma, pois não possuem os mesmos movimentos, repartições, nem objetivos, nem as mesmas maneiras de lutar: por exemplo, os movimentos LGBT, as lutas de minorias, ou, ainda, resistências cotidianas e pontuais. Ou, ainda, se pensarmos na burocracia como molaridade em sua segmentaridade dura de

30

repartições, de chefias, de hierarquias, colocadas juntamente a molecularidades de flexibilidades, comunicações entre as repartições, pequenas perversões da burocracia, ou, também, inventividades (DELEUZE; GUATTARI, 1995b). Ainda, a molaridade de um Estado fascista não se manteria sem toda uma molecularidade de “microfascismos”, comportamentos fascistas nas pessoas, nos grupos (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 92). Ou, também numa relação recíproca, a molaridade da educação de modo geral enquanto segmentaridade dura dos currículos, das avaliações, das hierarquias e das formalidades que colocam sempre em jogo molecularidades de afetos, de invenções, de improvisos, de alegrias, de tristezas, de indisposições, de animosidades, etc. A percepção deste jogo entre linhas molares e fluxos moleculares faz parte do trabalho da cartografia de nossa “história nômade”. Pensamos em termos de múltiplos atravessamentos de poder que compõem e agenciam os indivíduos, os coletivos, os saberes, etc. Tomamos essa composição como uma política, um certo regime de forças que preexiste ao indivíduo. Daí teríamos diante de nós o trabalho de problematizar a constituição e o fluxo desses delineamentos e de buscarmos, como professor-pesquisador, práticas que apontem para possibilidades de diferença, de criação e não simplesmente tomarmos a educação como um processo modelizante de assujeitamento a um suposto mundo dado. Pois, existe ainda um terceiro regime de linhas, além da molaridade e molecularidade: são as “linhas de fuga”. Elas se dão “[...] como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, em direção de uma destinação desconhecida, não previsível, não preexistente” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146). Por exemplo, “[...] uma sociedade nos parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga se delineiam” (DELEUZE, 1992, p. 212). São esses movimentos que vão ocupar, preencher o espaço-tempo, ou inventar novos espaços-tempos (DELEUZE, 1992, p. 212). Essa linha parece surgir depois, se destacar das outras, se conseguir se destacar. Pois, talvez haja pessoas que não tem esta linha, que tem apenas as duas outras, ou que tem apenas uma, que vivem apenas sobre uma. No entanto, de outra maneira, essa linha está aí desde sempre, embora seja o contrário de um destino: ela não tem que se destacar das outras; ela seria, antes, primeira, as outras derivariam dela. Em todo caso, as três linhas são imanentes, tomadas umas das outras. Temos tantas linhas emaranhadas quanto a mão. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 146).

Assim, pensamos esse plano de imanência em suas segmentaridades molares e fluxos moleculares, mas também buscamos possibilidades em suas linhas de fuga, possibilidades de criar novos espaços-tempos, novos territórios (diagrama 8). Procuramos delinear um campo

31

coletivo de forças, essas linhas, essas segmentaridades que atravessam a escola, a educação, a história, a filosofia, a aprendizagem, os saberes, mas também apontamos linhas de fuga na busca por novas práticas como professor-pesquisador. Diagrama 8 - Delinear segmentaridades modelizantes, estabelecer linhas de fuga, fazer rizoma

Fonte: Elaborado pelo autor.

Nas partes seguintes de nosso texto, especialmente no capítulo Escola e Modelização, vamos pensar práticas e pensamentos da escola disciplinar como molaridades, vamos delinear composições molares para dali compormos nossas criações de pensamento e práticas escolares como linhas de fuga.

32

4 ESCOLA E MODELIZAÇÃO A oficina “história nômade”, linha de fuga da modelização, realizou-se em quinze tardes, entre o final de outubro e o começo de dezembro de 2014, em uma escola pública em Itapema/SC. Passaram pelos movimentos da oficina nove estudantes dos oitavos e nonos anos do Ensino Fundamental, frequentando suas séries regulares no turno da manhã e participando da oficina no turno vespertino. Na oficina “história nômade”, realizamos atividades utilizando a web e nos organizando de uma maneira diferente da qual os estudantes estavam acostumados nas “aulas normais”. Em nossos encontros, queríamos que as ações dos estudantes sempre partissem de suas inquietações ou desejos, que serviam de motivação para suas explorações na web. O professor-pesquisador não cobrava respostas, mas os incentivava a criar e a seguir seus próprios caminhos. Atento em produzir novas linhas e territórios de práticas, trocava ideias, problematizava, colaborava na operacionalização dos saberes, buscando fazê-los criar seus próprios caminhos de aprendizagem, caminhos singulares e ir registrando tal movimento em postagens em uma rede social. Nessa composição, a oficina foi fazendo-se no seu próprio fazer-se. Experimento vivo, fomos constituindo nossos caminhos rizomáticos de estudantes e professor-pesquisador. Um acontecimento da oficina foi marcante. Lembro-me que estava com os estudantes no pátio da escola, estávamos esperando o horário para podermos usar a biblioteca. Estávamos eu, professor-pesquisador, junto aos estudantes da oficina sentados nos bancos do pátio coberto da escola. No mesmo espaço, estava alguma turma do Ensino Fundamental, juntos ao seu professor, na aula de Educação Física: estavam espalhados pelo pátio e participavam de um jogo. Nosso grupo ocupava os bancos aleatoriamente, sentados em duplas ou trios conversando entre si. Era o quinto dia das atividades da oficina e a estudante “OE” estava a meu lado. Era o segundo dia de “OE” com o grupo. Conversávamos descontraidamente... Na “história nômade” ela estava ainda sentindo o ritmo, procurando entender o que estava acontecendo. Naquele momento das atividades, estávamos pesquisando sobre o tema “diferença” e esse era o assunto de muitas conversas entre os estudantes da oficina. “OE” me olhou e depois perguntou: “mas, o que o professor quer nos ensinar com essa atividade?”. Ela era aluna de um nono ano de Ensino Fundamental, fiquei surpreso e contente com sua pergunta. Ela ainda colocou “o que o professor espera da gente?”. Eu respondi: “Quero que vocês pensem com as suas próprias ideias...”, “quero que vocês aprendam a pensar com a sua própria cabeça...”.

33

Essa fala de professor-pesquisador que quer que a estudante “pense com suas próprias ideias...” - uma frase que pode ser colocada em funcionamento em diversas perspectivas, mas do que estamos tratando? Por exemplo, em História, este “pensar” pode ser colocado em um positivismo de querer que o aluno atinja determinado estágio científico de conhecimento. Ele também poderia ser colocado em uma dialética, em busca do pensamento autônomo e crítico. Mas, para este professor-pesquisador, a questão se coloca de outra maneira. Estamos fazendo nossa pesquisa com ferramentas teóricas da Filosofia da Diferença, nosso exercício de “pensar” é fazer rizoma, pensar e fazer rizoma... No rizoma tomamos o pensamento como criação (criação dos estudantes e criação do professor-pesquisador...). Por ser múltiplo, o rizoma possui várias entradas. Ele sempre se dá no intermezzo, no movimento, nos devires, ele está sempre se fazendo. Ele não pode ser tomado como algo linear, a reprodução de algum modelo, ou como uma totalidade determinável, ou, ainda, algo que pode ser “traduzido” em termos positivistas, ou dialéticos, ou estruturalistas, etc. Ou, ainda, ser reduzido a uma resposta a algum comando disciplinar ou palavra de ordem. Tal “tradução” já é acabar com o rizoma. Rizoma como maneira de pensar, pensar como diferença. Nosso fazer rizoma ao pensar e praticar educação passa, entre outras coisas, por estar aberto às singularidades dos estudantes e do próprio professor-pesquisador, ao invés de colocar, de antemão, objetivos, hierarquias, conceitos, etc., como um “dever ser” de modelização. Pois, se o rizoma é uma organização de multiplicidades, o estudante vai se conectar a essas multiplicidades de acordo com a sua singularidade, de acordo com sua diferença e não através de algum modelo. Em nosso rizoma “história nômade”, o professor-pesquisador fez com os estudantes caminhos múltiplos de aprendizagens, de acordo com as singularidades colocadas pelos próprios estudantes. Não foi posta uma “matéria” que “deveria” ser “aprendida”, mas uma multiplicidade de movimentos de criação: este é o “pensar com as suas próprias ideias”, uma concepção de aprendizagem que possibilita à aprendizagem dar-se em uma multiplicidade de dimensões. Esse seria o “pensar” que falava para “OE”. “Quero que vocês pensem com as suas próprias ideias...”. “OE” ficou pensativa com minhas palavras e eu continuei: “É que na escola, na maioria das vezes, existe uma matéria que todos devem aprender ao mesmo tempo... já notou?”. “Pois é!”, exclamou ela com certa cumplicidade: “e tem matérias que é só decorar pra fazer a prova...”. “Pois é”, disse eu, “mas... aqui eu gostaria que você usasse a sua criatividade, a sua curiosidade para buscar coisas que te interessam aprender, para teres uma opinião tua sobre as coisas... e não apenas tipo... repetires a opinião do professor...”. Ela interagia com minhas palavras: “Muitas vezes

34

tenho dificuldade em dar minha opinião... é que tenho medo de ser julgada... é mais fácil quando tem a resposta pronta pra gente... mas isso não é certo”. As suas palavras me surpreendiam: “Acho que entendi... o professor quer que nós tenhamos nossas próprias ideias... mas é tão difícil pra mim...”. Trazemos essa conversa com “OE”, pois ela fez pensar nas relações disciplinares entre professor, estudante e os saberes muitas vezes colocados na escola: é que, em muitos casos, os saberes trabalhados na escola dão-se em uma relação onde se confunde obediência com conhecimento, onde o pensamento é colocado sempre em termos de um modelo dado de antemão. Relação na qual o pensamento deve sempre se dar de acordo com determinado modelo. E, aqui, não estamos falando que a escola sempre opera por modelização, ou que todos os professores são modelizadores, ou, ainda, que os modelos são ruins ou bons, ou o nosso modelo é a síntese, ou novo paradigma, etc. Queremos problematizar a escola em suas operações por modelização, neste agenciamento entre práticas e pensamento e traçar linhas de fuga que nos permitam criar novos territórios. Nosso problema em relação à modelização é que ela é um impeditivo ao aparecimento da diferença. Em nossa conversa com “OE”, sobre o “pensar com as suas ideias”, perpassava a relação de modelização que se dá na escola. Várias segmentaridades modelizantes atravessam as práticas escolares. Imaginemos exemplos simples como: “Parabéns, Fulano! Mais uma nota dez! Você é um aluno exemplo!”, diz a professora ao entregar a avaliação para a turma, fazendo questão de dizer na frente de todos a nota de “Fulano”. Após a professora fazer sua fala solene, nosso “aluno exemplar”, de peito estufado, entreolha as meninas ao seu lado com ar de superioridade, pois elas “falharam”: desta vez “tiraram apenas nota nove” e tampouco foram exaltadas. Os três sentam-se nas primeiras carteiras, afastados do “resto da turma”, que tem “vários problemas de indisciplina e falta de interesse”. Ou, também: “Você de novo aqui na sexta série Beltrana!”, diz, com um misto de raiva e desdém o professor logo no primeiro dia de aula, ao ver que a “aluna repetente” já estava se juntando a outras “alunas perigosas” da antiga quinta série. “Vamos mudar todo mundo de lugar já! Nem se acostumem!” Ou, ainda: “Cicrano! Que notas são estas! Você precisa estudar mais! Deste jeito você não vai ser nada na vida!”. Fala a Orientadora Educacional atrás de sua mesa, com um tom maternal e compassivo para um “aluno desinteressado”, cujo pai estudou “somente até a quarta série” e sustenta sua família com dignidade por meio de seu trabalho como “catador” de recicláveis. Tomamos a relação de modelização que se dá na escola pelas segmentaridades que a constituem: onde estar escolarizado significa inscrever-se em um tipo de saber e ter seu corpo

35

colocado em uma determinada configuração espaço-temporal. É que as segmentaridades duras, modelizantes da escola (diagrama 9) que descrevemos aqui se dão como arborescência, de acordo com o modelo da “árvore”: linear, concentrador e hierarquizante, que faz sempre referência à uma unidade classificatória e que impossibilita a diferença. Diagrama 9 - Segmentaridades modelizantes na escola

Fonte: Elaborado pelo autor.

4.1 TEMPO, ESPAÇO E CORPO Tomamos as práticas modelizantes como segmentaridades duras que possuem uma presença no campo social na organização dos saberes, do pensamento, do desejo e nas práticas de organização de tempo e espaço escolares. Trazendo a ideia de campo imanente, de plano coletivo de forças, percebemos que as práticas sociais escolares são permeadas e constitutivas de saberes e poderes, e, aqui, estamos atentos para a série de linhas, de mecanismos

que

constroem,

moldam

e

coordenam

determinadas

ações

sociais

institucionalizadas. Não se trata de “descrições totais”, decalques da escola, mas do delineamento de determinados segmentos que atravessam as práticas escolares e configuram certas operações modelizantes.

36

Ao traçar essas linhas não entendemos a escola como algo neutro, mas como uma composição de linhas de poder. Ou melhor, buscamos salientar segmentaridades que compõem a escolarização segundo composições de poderes, que fazem uso de formas de regulação social que vão se dar como modelização ao dispor os corpos no tempo e no espaço segundo um princípio de organização. Assim, reconhecemos que as situações sociais possuem “[...] restrições e constrições historicamente inscritas” e que as práticas escolares aparecem como “formas politicamente sancionadas” (POPKEWITZ, 2011). Organização de tempo e espaço escolar: os horários, as configurações arquitetônicas como atravessamentos que vão compondo os corpos. Imaginemos os muros da escola que configuram o espaço, o ano letivo que constitui o tempo... Na sala de aula, as filas de carteiras, tendo como referência o quadro e a centralidade do professor que “tudo vê e controla”... São mecanismos “disciplinares” cuja criação data dos séculos XVIII e XIX e que possuem, em maior ou menor grau, permanências contemporâneas na medida que são segmentaridades molares onde o capitalismo vai socializando o corpo enquanto força de produção, enquanto força de trabalho (FOUCAULT, 2000). Atravessamentos no campo coletivo de forças como macropolítica modelizante. Segmentaridades molares que compõem as práticas escolares como um dispositivo de um determinado poder político: a escola em seu papel social de “produção de sujeitos”, ou “produção de subjetividades”, e essa produção passa, necessariamente, por um conjunto de técnicas e práticas que configuram os corpos segundo condições de espaço e de tempo (diagrama 10).

37

Diagrama 10 - Molaridades de espaço e tempo na escola

Fonte: Elaborado pelo autor.

Esse conjunto de técnicas de disposição dos corpos é o que chamamos de “disciplina”, regime de poder, onde “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo” (FOUCAULT, 2000, p. 80). Estamos tratando de desdobramentos, na escola, de um conjunto de segmentaridades molares, como um conjunto de técnicas socialmente utilizadas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas, tornando o exercício do poder o menos custoso possível e fazendo com que seus efeitos sejam levados a seu máximo de intensidade e estendidos o mais longe possível, fazendo assim crescer os elementos de docilidade e utilidade do sistema produtivo (FOUCAULT, 1987, p. 191). O poder disciplinar dá-se como um poder que, ao invés de apropriar-se ou de retirar, tem como função compor práticas produtivas espaço e temporalmente para, dessa forma, retirar e apropriar-se ainda mais e melhor (FOUCAULT, 2000). Estamos aqui tratando de operações de poder como algo “produtivo”: um poder que cria a realidade e não um poder que mutila o corpo ou faz calar as vozes, mas de mecanismos molares que criam o “estar no mundo” nos corpos, que criam e dão voz ao compor “saberes”. Tomamos esse “modo de organização” como uma espécie de funcionamento de base de uma sociedade que vai ser toda atravessada e penetrada por uma série de mecanismos disciplinares. Mecanismos de base, pois, mesmo antes de ideologias ou teorias, estes vão constituindo as segmentaridades da implantação dos corpos no espaço, sua distribuição em

38

relação mútua, sua organização hierárquica, a disposição dos centros e dos canais de poder, a definição de seus instrumentos e modos de intervenção. E essa ação sobre os corpos não trata simplesmente de “fabricar corpos obedientes”, trata-se de corpos moldáveis e maleáveis, mas não à força: o poder disciplinar atua no nível do corpo e dos saberes, do que resultam formas particulares tanto de estar no mundo (eixo corporal) como no modo de cada um conhecer o mundo e nele se situar (eixo dos saberes) (VEIGA-NETO, 2011, p. 71). Ao adotarmos tal perspectiva, somos o professor-pesquisador que opera uma análise ascendente do poder, ou seja, não tomamos por critério uma dominação global que se pluraliza e repercute até embaixo, mas tomamos os fenômenos, técnicas, procedimentos de poder que atuam nos níveis mais baixos e daí são anexados por fenômenos mais globais (FOUCAULT,

2000,

p.

185).

Enfim,

estamos

tratando

de

atravessamentos,

de

segmentaridades que se compõem em um certo plano de imanência das forças. Sob o poder disciplinar, os indivíduos são constituídos por atravessamentos que compõem o espaço e o tempo segundo instrumentos práticos e cotidianos, como a “vigilância hierárquica”, a “sanção normalizadora” e o “exame” (FOUCAULT, 1987). A “vigilância hierárquica”, ao mesmo tempo uma peça do aparelho de produção e uma engrenagem do poder disciplinar, aparece em maior ou menor grau, de modo explícito ou sutil. Várias operações onde o “nível inferior” na hierarquia está sob o jugo de vigilância do “nível superior” e isso é “naturalizado” pelas configurações de espaço e tempo. Outro instrumento cotidiano que atravessa o tempo e o espaço disciplinar é a “sanção normalizadora”, que é a presença de um pequeno sistema penal que vai quadricular os espaços vazios deixados pelas leis e vai constituir o “bom” que deve ser gratificado e o “mal” que deve ser punido, onde a disciplina vai aparecer sempre como um modelo reduzido do tribunal: “[...] a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares e que compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui, em uma palavra, ela normaliza” (FOUCAULT, 1987, p. 165). Tal movimento acaba “naturalizando” a necessidade de punição e de recompensas que estabelecem, no fim das contas, o que é o “normal” e o “correto”, agenciando atitudes cotidianas em face a comportamentos e a condutas, esquadrinhando os espaços sociais segundo as segmentaridades da disciplina. E também o “exame” que, para além de sua relação com determinada concepção de aprendizagem, vai se dar também como uma segmentaridade que opera um controle normalizante que vai qualificar, classificar, punir, vai demonstrar força e vai estabelecer a verdade, vai manifestar a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam (FOUCAULT, 1987, p. 165). Como, por exemplo, as “provas”, as “notas”, os

39

“resultados”, o “boletim” que vão indicar o “rendimento escolar”, indicar a “aprovação” ou “reprovação”, mecanismos que vão classificar os alunos segundo índices de produtividade dentro das condições espaço-temporais da escola. Nesse movimento, multiplicidades são segmentarizadas por uma operação molar que “classifica” o “rendimento” escolar: com a pretensão da pedagogia em possuir ou almejar o “controle” sobre o aprendizado. Temos uma concepção de ensino que levará à uma “naturalização” da homogeneização, pois tem como objetivo que todos “aprendam” a mesma coisa da mesma maneira (POPKEWITZ, 2011). Ao compor esses delineamentos, não estamos querendo dizer que eles sejam “maus” ou “bons” em si, estamos delineando molaridades que existem, obviamente, em multiplicidade com outras linhas. O que trazemos de especificidade é o delineamento de um campo imanente de práticas segmentarizantes que se dão muito concretamente antes dos objetivos escolares de “formar” estes “cidadãos” “alfabetizados”, “autônomos”, “críticos”, “conscientes”, “empreendedores”, etc., e independentemente de certas ideologias e teorias educacionais. Estamos tratando os poderes e suas configurações de acordo com o seu espraiamento, e não necessariamente de acordo com sua centralidade: o poder disciplinar da vigilância hierárquica, da sanção normalizadora, do exame é exercido em vários níveis e se distribui em rede por toda sociedade, ativando, em maior ou menor grau, molaridades de modelização, de contenção de multiplicidades e sua subsunção em algo útil e produtivo, em processos onde a reprodução e a normatização são o “modus operandi”. Ou, ainda, que, ao custo da produção social de uma unidade, existe certo sacrifício das multiplicidades e da diferença. Na oficina “história nômade”, pensamos a necessidade de flexibilizar as relações de espaço e de tempo, eliminando ao máximo segmentaridades modelizantes de vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame, buscando constituir outras relações que se deem segundo a potência dos estudantes e do próprio grupo da oficina de produzir diferença. Nossas práticas, nesse sentido, foram de abertura e acolhida de multiplicidades e não de condução dos corpos para configurações modelizantes, buscando sempre um mínimo de reprodução das configurações disciplinares. O “pensar com suas próprias ideias”, que falávamos para “OE”, e que falamos para todos os estudantes da oficina, vinha sempre como a busca por aprendizagens de acordo com as singularidades de cada um, de acordo com caminhos de aprendizado como diferença e não como a operatividade disciplinar de colocar a aprendizagem como algo controlável espaço e temporalmente, de exame, de avaliação com a pretensão de que todos aprendem a mesma coisa ao mesmo tempo. Fazer rizoma ao colocar multiplicidades em jogo e não conduzi-las para denominadores comuns arborescentes.

40

4.2 SABERES Agenciados à configuração de espaço e de tempo, os mecanismos “disciplinares” também colocam um determinado regime de saberes que nos faz penetrar no problema da modelização como organização do pensamento, pois os “conhecimentos” que são “ensinados” e “aprendidos” não se dão de modo neutro. E aqui lançamos mão do conceito-ferramenta de “máquina abstrata”, um dispositivo de poder tal que “[...] organiza os enunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e os sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem sobre os outros” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 150). Essa máquina abstrata opera por “sobrecodificação”, ou seja, “[...] assegura

a

homogenização

dos

diferentes

segmentos,

sua

convertibilidade,

sua

traduzibilidade, ela regula as passagens de uns nos outros, e sob que prevalência” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 150). Sua eficácia depende do Estado ou de determinado agenciamento que a efetue em um campo social. Essa máquina abstrata de sobrecodificação: [...] define uma segmentaridade dura, uma macro-segmentaridade, porque ela produz, ou melhor, reproduz os segmentos, opondo-os de dois em dois, fazendo ressoar todos os seus centros, e estendendo um espaço homogêneo, divisível, estriado em todos os sentidos. (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 104).

Estamos tratando do conjunto básico de regras que governam a produção de discursos de uma determinada época. São as regras que funcionam como condições de possibilidade para que algo seja pensado (VEIGA-NETO, 2011). Foucault pensa a questão com o conceito de episteme: [...] a episteme não é o que se pode saber em uma época, tendo em conta insuficiências técnicas, hábitos mentais, ou limites colocados pela tradição; é aquilo que, na positividade das práticas discursivas, torna possível a existência das figuras epistemológicas e das ciências. (FOUCAULT, 1997, p. 218).

Assim, se temos uma concepção de nosso “aparato perceptivo” ou “aparato cognitivo” como algo condicionado por uma “episteme”, que nos capacita experienciar certos efeitos de acordo com suas configurações, temos de preocupar-nos com o poder/saber subjacente, ou com os conjuntos de condições que vão permitir ou legitimar certas asserções de verdade (MARSHALL, 2011, p. 24). Ao cursar uma “série”, ou “ciclo” escolar, além de colocado em uma determinada configuração disciplinar de espaço e tempo, o indivíduo está entremeado a uma máquina abstrata de sobrecodificação: um processo que aponta para um denominador comum. Estar escolarizado significa inscrever-se em um tipo de saber, o saber pedagógico (RÍOS, 2002, p.116).

41

O “discurso educacional” como algo “necessário”, “normal” ou até “natural”. Ao ingressar no mundo escolar, o indivíduo está sendo colocado em uma segmentaridade que lhe é preexistente, pois existe uma certa “economia política do trabalho escolar” (RÍOS, 2002, p. 116), que “arborifica” os discursos escolares, naturaliza hierarquias, estabelece limites, processos que acabam por subsumir as multiplicidades. Operações de poder que, em maior ou menor grau, vão operando a eliminação de singularidades e sua inscrição na “visão de mundo dominante”, em um evidente processo de modelização por colocar o pensamento, a relação com os saberes segundo um determinado “princípio absoluto de inteligibilidade”. Esses “princípios de inteligibilidade” são construídos na imanência das forças sociais. Foucault chama a atenção para os diferentes “regimes de verdade” de uma dada sociedade, considerando-os como produzidos a partir de vários discursos que são, também, lugares de poder. Estamos tomando a “verdade” como algo ligado circularmente à regimes de poder: pensemos nas “verdades” que possibilitaram o acontecimento da escravidão no Brasil, ou as “verdades” do nazismo, as “verdades” do apartheid, exemplos simples de como a “[...] verdade existe em uma relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade” (GORE, 2011, p. 10). Falar em regimes de verdade implica uma noção de política de verdade, a saber, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros. As relações de poder, ao constituírem o corpo social, não se estabeleceriam sem um discurso. Dessa maneira, percebemos que não há possibilidade de exercitar-se o poder sem uma certa “economia dos discursos de verdade”, pois “[...] somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade” (FOUCAULT, 2000, p. 180). E daí se dá a verdade colocada como regime, como economia de poder, pois tais discursos são fundamentos de inteligibilidade social ao passo que “[...] somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2000, p. 180). Como escreve Gore, ao considerar a “política de verdade” na educação: Dito de forma breve, os discursos baseados na disciplina da Psicologia e vinculados a noções particulares de ciência tem sido mais prontamente aceitos que outros tipos de discursos; a razão científica tem sido o meio principal pelo qual esses discursos são sancionados; as técnicas empíricas tem tido primazia na produção da verdade; tem-se concedido um status profissional, científico e intelectual àqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdade. (GORE, 2011, p. 10).

Toda essa política da verdade acaba operando como uma máquina abstrata de

42

sobrecodificação ao organizar os enunciados dominantes em uma implicação recíproca com a ordem estabelecida de uma sociedade. Ou, ainda, na escola, há um agenciamento entre os saberes válidos e as práticas de configuração dos corpos segundo relações espaço temporal. Nesse momento, podemos pensar no “papel do professor” que, para sê-lo, há de reproduzir toda uma série de “discursos verdadeiros” dentro da já tratada materialidade da instituição escola, pois, ao operar na máquina abstrata dos saberes, o professor, como parte do aparelho da escola, é aquele que vai efetuar cotidianamente essa máquina. Efetuar em termos de saberes, enunciações, mas também em termos de corpo agenciados na disciplinaridade. Assim podemos problematizar o estatuto do saber que é “objeto” de transmissão em uma certa organização escolar com o intento de perceber a colocação social dos discursos de verdade como discursos de poder. O processo pedagógico corporifica relações de poder entre professores e aprendizes ao colocar qual saber é válido, qual valor é produzido, o saber de quem (GORE, 2011, p. 13). Ao pensarmos a escola dessa maneira, podemos perceber as relações de poder que estão presentes na composição da seleção, da organização e da avaliação do conhecimento escolar, qual a forma pela qual tais saberes “[...] constroem, moldam e coordenam as ações sociais através de relações e de princípios ordenadores estabelecidos nos processos de categorização” (POPKEWITZ, 2011, p. 183). É a questão das lutas por imposição dos sentidos, lutas pelo poder da palavra. É o caso de funções como: “que posso saber”, “o que posso fazer”, “quem sou eu”, como estabelecendo uma normalidade, ou, ainda, uma modelização. Varela descreve a constituição das disciplinas e sua colocação dentro dos campos globais da ciência em face à especialização dos saberes e a busca de seus limites. No que Foucault (1999a) chamou de “disciplinamento interno dos saberes”, ela coloca a “pedagogização do conhecimento”: O Estado, a partir dos postulados da Economia Política, em relação com o desenvolvimento das forças produtivas e com a necessidade de governar os sujeitos e a população, empreendeu uma ampla reorganização dos saberes servindo-se de diferentes procedimentos. E assim, frente a saberes plurais, polimorfos, locais, diferentes segundo as regiões, em função dos diferentes espaços e categorias sociais, o Estado, através de instituições e agentes legitimados (entre eles, desempenharam um papel destacado, os professores) pôs em ação toda uma série de dispositivos com a finalidade de se apropriar dos saberes, de discipliná-los e pô-los a seu serviço. (VARELA, 2011, p. 90).

Nessa apropriação de saberes que é a pedagogização do conhecimento, os novos princípios de regulação das práticas estatais são corporificados na pedagogia. Como vimos na questão da disciplinarização dos corpos por configurações espaço-temporais, no século XIX,

43

corporifica-se uma relação entre práticas estatais de governo e comportamento e disposições individuais, com a identidade dos indivíduos devendo ser vinculada aos padrões administrativos encontrados na sociedade mais ampla (POPKEWITZ, 2011, p. 183). Tal movimento possui permanências na contemporaneidade. Nessa perspectiva, o currículo, por exemplo, aparece como um conhecimento historicamente formado sobre o modo como as crianças tornam o mundo inteligível e tais esforços de organizar os saberes não deixam de ser formas de regulação social, pois, além de serem produzidos por meio de estilos privilegiados de raciocínio, corporificam formas particulares de agir, sentir, falar, ver o mundo e o “eu” (POPKEWITZ, 2011, p. 174). Se destacarmos o problema dos saberes e sua supervisão, a Sociedade Disciplinar vai transformar as crianças em aprendizes ao instituir categorias de aprendizagem (VARELA, 2011). Ou, ainda, historicamente falando, a criança moderna é atravessada por segmentaridades que a constituem como alguém que deve dar atenção às coisas do mundo e não apenas confiar em uma fé transcendental: se, no “mundo anterior”, a verdade era buscada na divina providência, a “modernidade” tomou certas visões religiosas sobre salvação e as combinou com disposições científicas. A Sociedade Disciplinar, “moderna”, erige a racionalidade como princípio explicativo e motor da ação humana, ao contrário da “medieval” Sociedade de Soberania, com a centralidade das explicações e motivações colocadas segundo uma ordem divina: daí o fato de nossa sociedade perceber com naturalidade o fato de a criança ser colocada na escola como aprendiz. Assim, o corpo, o desejo e os saberes vão passando por atravessamentos disciplinares e se constituindo segundo este princípio explicativo determinado. Varela (2011, p. 91, grifo do autor) percebe nisso uma “[...] ‘afinidade eletiva’ entre a disciplinarização dos saberes e a tentativa de construção social de um novo tipo de sujeito”. Dessa forma, é constituída uma “episteme” que vai engendrar um “saber pedagógico” que, praticamente, impossibilita pensar a Educação fora do predomínio de uma razão modelizante, pois, em muitos sentidos, “educação” vai significar “produção de racionalidade”, com essa razão tendendo a se universalizar e se abstrair, ocultando, com isso, seu caráter particular e histórico (SILVA, 1996, p. 248). Enfim, movimentos de disciplinarização dos saberes ligados a modos de subjetivação específicos, para formar não só capitalistas, mas também produtores (VARELA, 2011, p. 92). O novo regime de verdade, ao selecionar os saberes válidos, segundo essa ordem de saber-poder, vai operacionalizar o Estado disciplinar como estruturador do campo do possível. A “história nômade” é justamente a problematização e a construção de linhas de fuga

44

dessa disciplinarização dos saberes como regime de verdade. Produzimos práticas escolares que agenciam saberes e corpos em uma organização em rizoma e, assim, buscamos a aprendizagem como diferença, com o professor em um papel de composição com a singularidade dos estudantes e não como operador da reprodução de um regime de verdade. Os saberes em rizoma adquirem uma operatividade não disciplinar, mas transversal. Organização de saberes como multiplicidades que são operadas pelos estudantes como criações de pensamento, como produção de diferença. 4.3 FILOSOFIA DA REPRESENTAÇÃO E DA APRENDIZAGEM Agenciada

nas

práticas

escolares

modelizantes

da

máquina

abstrata

de

sobrecodificação e seu “regime de verdade”, existe uma maneira de pensar, chamada por Deleuze (1988) de “Imagem Dogmática do Pensamento”. Tal maneira de pensar tem grande relação com Platão (1949), naquilo que Deleuze chama de “Filosofia da Representação”, pensamento que atravessa também grande parte da filosofia ocidental, passando por Descartes, Kant e Hegel, sendo, também, chamada “filosofia clássica racionalista”. Maneira de pensar que se funda na “distinção entre modelo e cópia” e que sobrecodifica muito da maneira disciplinar de se “avaliar o aprendizado”. O pensamento ocidental é, desde a Antiguidade, herdeiro do pensamento representacional platônico. Segundo Platão (1949), vivemos em um mundo onde não temos acesso à realidade, mas somente a cópias, simulacros do mundo real, que é o “mundo das ideias”. Tal asserção é demonstrada em sua célebre Alegoria da Caverna, parte da obra A República, escrita no século IV a. C. (PLATÃO, 1949). Ela trata da emergência do homem racional saindo de uma caverna na qual apenas se veem sombras bruxuleantes, e que, estando fora dessa caverna, ele consegue ver a realidade na sua totalidade. Tal homem racional, segundo a alegoria, é o filósofo que acede novamente ao interior da caverna para trazer a verdade àqueles que ainda enxergam somente sombras irreais. Nesse sentido, dar-se-ia a educação: uma arte de dar meios para uma visão correta, atraindo a alma para a verdade, voltando o espírito para as alturas (PLATÃO, 1949). Platão coloca o mundo dos sentidos, o mundo dos fenômenos como algo inferior ao mundo das ideias, que é o lugar das essências imutáveis de todas as coisas, dos verdadeiros modelos (arquétipos): o mundo das ideias é o verdadeiro, aliás o mundo sensível só existe como participante do mundo das ideias, do qual é apenas sombra ou cópia (ARANHA, 1986, p. 126). A relação entre modelo e cópia, entre mundo das ideias e simulacro, é apontada por

45

Deleuze como a motivação fundamental de Platão: a dualidade manifesta entre aparência sensível e essência inteligível. Para o filósofo clássico, como se sabe, não seria possível o conhecimento verdadeiro do mundo sensível, sendo possível somente um verdadeiro conhecimento das essências, das ideias (MACHADO, 2010, p. 41). Assim, temos a busca do conhecimento como a busca por um “princípio absoluto de inteligibilidade”, um princípio transcendente, um inteligível superior. Dessa forma, se existe aparência, trata-se de distinguir as aparências bem fundadas de outras aparências, “malignas” e “maléficas”, “insinuantes”, que não respeitam nem o fundamento, nem o fundado (MACHADO, 2010, p. 45). Essa vontade platônica de distinguir entre a boa e a má cópia, simulacro, ou ainda cópia inferior, dá-se através da produção de critérios de seleção. Platão faz ali duas distinções: a primeira, entre o modelo ideal e a cópia; seguida da segunda, entre a própria cópia e o simulacro, o fantasma, a cópia ruim. Uma cópia bem fundada seria aquela com uma semelhança interna com a identidade superior da ideia. Assim, a divisão seria um método seletivo cujo objetivo é obter uma linhagem pura a partir de um determinado material impuro, indiferenciado, indefinido, que deve ser excluído para que seja possível o aparecimento da ideia. Ou seja, trata-se de um “método” para instituir um fundamento que permite avaliar os pretendentes à ideia (MACHADO, 2010, p. 47). Deleuze aponta, na motivação do processo platônico de fundação da representação, a exclusão, a repressão das cópias sem semelhança, a repressão dos simulacros. Aponta, aí, tratar-se de uma filosofia que institui uma “imagem dogmática do pensamento”, que justifica uma certa ordem tida como “normal”, “natural” e, assim, não possibilitando que sejam pensadas as multiplicidades, impossibilitando-se pensar a diferença como diferença pura. E, aqui, vamos delineando a colocação desta imagem dogmática do pensamento na educação em sua dimensão, antes de mais nada, política. A importância de tal imagem dogmática do pensamento nas segmentaridades duras de uma educação voltada à subjetivação, à “produção de sujeitos” dados. É a questão da composição do campo coletivo de forças em que - especialmente tratando-se de Educação -, antes do ser, há a política. Ou, ainda, trata-se de uma questão de poderes constituintes, pois estamos tratando, em última instância, da negação de singularidades pela imposição de modelos como algo que constitui um campo de “normalidade”, um território onde práticas são vistas como “naturais”. Assim, a Filosofia da Representação na Educação vai operando capturas da diferença nos espaços escolares: o sistema de representação colocado pela imagem dogmática está estampado nos currículos e tem normalizado a diferença, impondo uma versão unívoca, modelizante daquilo que implica ser a criança, a aprendizagem, a cultura e, portanto, ser e

46

estar nas instituições (RÍOS, 2002). A diversidade é transformada em adversidade no processo de instauração da univocidade, ou, ainda, a diferença é transformada em diversidade: as multiplicidades são racionalizadas e representadas. Assim, tratamos por modelizantes as práticas e os saberes que buscam subordinar a diferença à identidade de um modelo. Costa (2005, p. 1.266), ao escrever sobre “a educação como missão civilizadora” e sua relação com “[...] fardos que podem acompanhar a atividade docente”, aponta para o processo de modelização que dissimularia uma determinada operação de “pseudo-assemelhamento”: um processo no qual impera uma dissimetria, uma relação de forças comandada pela hierarquia entre o modelo e a cópia. Segmentaridade presente nos exemplos de uso daquele conceito de “aluno modelo”, ou, ainda, “aluno exemplar”. Os critérios de avaliação para chamar um estudante de “aluno modelo”, ou “cidadão consciente”, ou “crítico”, ou algo que o valha, para fornecer-lhe notas, classificações e etc., fazem parte de um processo de modelização, sustentado por esquemas disciplinares de controle em suas práticas e em seus discursos, como também pela Filosofia da Representação como imagem dogmática do pensamento. O “aluno exemplar” e seu arremedo, o “aluno desinteressado”, e toda série infinda e complexa de pequenas categorizações empregadas cotidianamente nas escolas, vão operando a sobrecodificação da diferença que é assimilada como cópia. Busca-se o assemelhamento como condição para o reconhecimento do “outro”. Mais especificamente, na avaliação escolar, o reconhecimento do “outro” e sua aprendizagem: aquilo que é díspar precisa ser sobrecodificado, “traduzido” para as categorias do “saber pedagógico”, precisa de um assemelhamento. Daí o uso de expressões como “aluno desinteressado”, ou “indisciplinado”, ou “risco social”, ou “reprovado”, etc.

Tal prática descreve o viés fortíssimo de

racionalização da vida social e de instrumentalização utilitarista da razão (COSTA, 2005, p. 1.263). Há uma constante busca por uma certa “cura social” que passa inequivocamente por ações de controle fundadas em uma filosofia modelizante que entende o controle, a vigilância, a punição, o diagnóstico, o enquadramento como uma pura e neutra “promoção do bem”. Tal afirmação faz mais sentido se colocada ao lado de falas bastante comuns entre educadores: o “formar mão de obra”, ou, ainda, o exemplo do “aluno modelo”, ou o “cidadão crítico” (o formar para a “cidadania”, para a “autonomia”, etc.), entre várias outras. Tais falas operam por meio da figura do educador, cujas ferramentas de trabalho são práticas e discursos em maior ou menor grau ligados aos processos de modelização. Esse processo de modelização observa-se no processo de racionalização das práticas de ensino e de aprendizagem, especificamente. Tais práticas, muitas vezes, são ainda

47

associadas à reprodução do mesmo, do igual, do semelhante. O ensino, nessa perspectiva, é passar adiante, transmitir o que já anteriormente teria sido pensado pelas instituições, pela cultura, etc. Enfim, por tudo que, nesses termos, tenha assumido o sentido de exemplar, de modelar. Sob a imagem dogmática do pensamento, a aprendizagem é pensada em seus elementos de “recognição”: reconhecimento e repetição do que já havia sido ensinado, transmitido (COSTA, 2005, p. 1.263). Nessa relação entre modelização e aprendizagem, estamos diante de operações de necessidade cotidiana tais quais: “O que é isto? É uma mesa”; “Qual o nome daquela fruta? É maçã”, ou “Qual o comprimento daquela parede? Cinco metros”, operações de recognição, de reconhecer o que já foi ensinado. Operações em que tempo, espaço e saberes são formatados para produzirem aprendizagens de acordo com uma mediação normativa e modelizante que diz “conteúdo X” ou, ainda, “problema Y”. E os estudantes, no mesmo tempo e espaço, aprendem o tal conteúdo ou resolvem determinado problema. No entanto, parece que o pensamento pode mais do que isso, não deveria se resumir a simplesmente reconhecer. E quantas vezes a escola se estabelece como promotora de saberes de recognição. A aprendizagem é vista como uma espécie de recuperação de um mundo que “existe lá fora” e que deve ser reconhecido (ROY, 2002). Tal operatividade faz o pensamento passar sempre por um modelo que descarta multiplicidades e transforma a diferença em um impeditivo. A oficina “história nômade” vai operar linhas de fuga para além da arborescência modelizante da configuração de saberes e avaliação como recognição segundo a Filosofia da Representação ou imagem dogmática do pensamento. Ao atuar como rizoma, tomamos o pensamento como afirmação da potência de produzir diferença nos estudantes e no próprio professor-pesquisador. Tal pensamento vai ampliar o círculo de discernibilidade que define o que é considerado digno de ser notado e o que deve ser descartado, pois um pensamento que afirme a diferença vai ensejar novas possibilidades, instaurar um aprender que não é reproduzir, mas inaugurar. Inventar o ainda não existente e não se contentar em apenas repetir um saber. A aprendizagem dá-se de outro modo quando operamos em rizoma: é linha de fuga das normatizações e das avaliações disciplinares e de controle, pois se dá em uma composição entre o pensamento do estudante e multiplicidades de saberes não estruturados disciplinarmente. Na “história nômade”, a presença do professor não passa necessariamente por uma mediação de saberes, em que os estudantes vão fazer como o professor (professor como o modelizador do “bom fazer”, ou do “correto”, ou do “consciente” e que “analisa”,

48

“mensura”, ou “avalia”, o estudante...). Mas o professor-pesquisador como alguém que vai buscar, em uma linha sempre delicada e sensível, composições com o pensamento do estudante; o professor-pesquisador vai fazendo com o estudante essa composição de pensamento buscando sua singularidade, buscando potencializar sua diferença. Ao professorpesquisador cabe estar aberto às singularidades do estudante, fazendo com ele composições em diferença com as multiplicidades mobilizadas pelo rizoma; buscar uma sutileza sensível de composição que quer afirmar a potência de criar diferença do estudante e do próprio professor-pesquisador... afirmação da potência de criar diferença do rizoma... 4.4 DESEJO Podemos dizer que o regime de saberes, pensamento e as configurações espaçotemporais disciplinares operam uma determinada composição de desejo. Composição em que o desejo se dá como arborescência quando é capturado e posto a produzir e a funcionar agenciado nas relações disciplinares. Desejo... traçamos relações de espaço e tempo que configuram molarmente o corpo. Tomemos agora a sua movimentação: o desejo. O desejo como o que movimenta o corpo. Para tal, pensamos com Deleuze e Guattari (2010): o desejo é produtivo, ele é uma “máquina” que produz conexões, produz agenciamentos, produz vida. O desejo não é uma falta (do tipo, estou com fome, desejo comer). Também não tomamos o desejo necessariamente como libido (desejo sexual). Mas delineamos o desejo como algo produtivo: uma potência que não para de produzir. O desejo é uma potência de agir no mundo, é o produtor do real (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Viver é desejar. Pensar algo é uma operação de desejo, em uma produtividade em que, antes do pensamento, há o desejo. Desejo é constante expansão, constante movimento, independentemente de sua intensidade ou sentido. Não que ele possa tudo, “desejo matar, posso matar, pois desejar é produtivo” - nada disso. Tampouco, “desejo voar, vou pular do prédio agora”. O que salientamos é que somos seres que nos movemos em desejo. Pensamos com Spinoza (2009), desejo como “[...] a própria essência do homem à medida que esta é concebida como determinada a agir de alguma maneira” (SPINOZA, 2009, p. 141). Essência determinada a agir, essência como movimento, como devir. Compreendendo esse desejo “[...] todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado [...]” (SPINOZA, 2009, p. 141). Assim, ele está sempre preenchido, de alegria ou de tristeza, ou de miséria, etc., pois é impossível que a vida não nos preencha: “desejar é construir um

49

conjunto” (DELEUZE, 2012). Assim, nada falta ao desejo. A falta seria antes seu “contraefeito”: “Não é o desejo que se apoia nas necessidades. Ao contrário, são necessidades que derivam do desejo: elas são contraproduzidas no real que o desejo produz” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 44). Se sou um leitor e minha vida se produz também no desejo de ler, a falta de leitura não é algo que lhe falta, mas antes uma contraprodução (“quero ler, agora não posso, que ruim”) de meu desejo (“ler é viver”). Desejamos comer para viver, a fome a ser saciada, ou não, é o contraefeito do desejo. O desejo nos termos de um acoplamento produtivo, como agenciamento: o desejo e seu objeto constituem uma só coisa. O desejo do leitor agencia livro, biblioteca, aos temas favoritos, aos escritores prediletos, às suas sutilezas, etc. O desejo do jovem jogador agencia a bola, o campinho, os colegas do time, o drible, o gol, etc. O desejo compõe-se socialmente: o desejo, essa “maquinaria desejante” (acoplamento do desejo aos seus objetos) é, primeiramente, social (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Tomando o desejo como social, agora, especificamente, delineamos movimentações do desejo quando este se agencia na própria segmentaridade disciplinar e ali se produz. Ao delinear a Sociedade Disciplinar, vemo-la operando segmentaridades de tempo e espaço que configuram corpos. Contudo, vamos tomar agora esses corpos também como corpos desejantes. Assim, a questão é: por onde passa o desejo quando este percorre as segmentaridades disciplinares? Quais caminhos se dão ao desejo quando este é capturado e se compõe com as segmentaridades disciplinares? Se o desejo é produção, não para de acoplar-se em fluxos contínuos e de objetos parciais, fragmentários (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Vamos pensar o desejo quando este se compõe com o tempo e espaço disciplinar nos termos que estamos tratando até aqui. Se o espaço-tempo disciplinares são molaridades, o desejo dá-se como molecularidade que está também ali passando. Pensamos esse desejo de modo específico quando se dá como acoplamento aos objetos de poder da disciplina em sua parcialidade fragmentária, local, pontual, molecular. O que vai produzir esse desejo? Quais composições ele vai efetuar? Não é nossa intenção fazer algo como uma “teoria geral do desejo”, como também não é o caso de uma “teoria geral da escola”. Vamos, neste momento de nosso trabalho, trabalhar determinadas composições moleculares do desejo com a molaridade das práticas escolares. Vamos pensar um determinado delineamento social do desejo quando este se agencia aos poderes, tendo em vista que “desejar é construir um agenciamento” (DELEUZE, 2015). Importante ressaltar: não estamos dizendo aqui que o desejo “apenas” se agencia com os poderes (felizmente não!). Existem infinitas composições do desejo: nossa intenção neste

50

momento é pensar o desejo quando em sua composição com a segmentaridade da disciplina, operação de poder, agenciando-se ao gerar centros unitários de poder no professor, na diretora, no aluno, etc. Nessa configuração específica que estamos tratando, o desejo vai se dando como uma espécie de “preposto” do poder. Tomar o desejo, especificamente, quando se agencia com o poder: o trabalho disciplinar, molar, de regular a multiplicidade e colocá-la como algo útil como uma função política modelar no próprio desejo, como modo de controle no próprio desejo daquele que está agenciado na máquina disciplinar. Maquinaria de desejo que se acopla com a própria segmentaridade e que atravessa todo o campo de forças disciplinares. Há toda uma operação modelar de poder em funcionamento, uma captura do desejo dizendo por onde ele deve passar: é um estado fixo que se coloca no lugar do fluxo. As configurações espaço-temporais disciplinares compõem, além do corpo, o desejo. Uma segmentaridade disciplinar dura, molar, que insiste em fazer o desejo passar por um sentido, de maneira semelhante como se faz passar com os corpos. Uma implicação molecular do desejo neste agenciamento, uma espécie de agenciamento de cumplicidade do desejo com este poder disciplinar. E a questão complexa é: Onde o desejo é do “sujeito” e onde o “sujeito” é efeito de uma captura do desejo? Por exemplo, o desejo do estudante que diz: “Me comportei bem, fui elogiado e ganhei um ponto positivo”; ou: “Hoje fui elogiado porque fiz a tarefa”... O desejo é capturado e colocado sob determinado funcionamento disciplinar. Assim o próprio desejo torna-se disciplinar – disciplina do desejo, desejo de disciplinar. Tornamo-nos, dessa forma, prepostos do poder em nosso corpo e em nosso desejo. E daí a problematização: O que foi feito deste corpo? Por onde passou seu desejo? Molaridades disciplinares operando capturas, corpos e desejos se armazenando em uma determinada ordem estabelecida, pois há um interesse que os corpos e os desejos tomem determinada direção. A disciplina investe politicamente nos corpos e também nos desejos. Segmentaridade dura que acaba gerando toda uma série de impeditivos para o surgimento de pensamentos e desejos de diferentes possibilidades. Segmentaridades que operam impeditivos para o aparecimento da diferença. Na oficina “história nômade”, buscamos agenciamentos não disciplinares de desejo. Com o estudante e o professor-pesquisador investindo seus desejos na potência de produzir diferença, compondo suas aprendizagens de acordo com sua singularidade, com suas preferências, suas curiosidades, suas problematizações, colocando o desejo em uma composição ativa com o pensamento em uma afirmação dos saberes estudados, como afirmação de sua própria singularidade. Ou, ainda, o “motor” da aprendizagem como

51

diferença é o desejo do jovem: na oficina não houve nenhuma cobrança de presença, de horários, etc. Os estudantes compareceram à oficina porque assim o desejaram e produziram o que produziram porque assim o desejaram... desejo em composição com o rizoma... desejo como afirmação de sua singularidade...

52

5 “HISTÓRIA NÔMADE”: TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES E APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA Ao delinearmos as arborescências modelizantes disciplinares, vimos seu agenciamento com a “imagem dogmática do pensamento”. Para traçar nossas linhas de fuga e fazermos rizoma, utilizamos ferramentas teóricas da filosofia da diferença para operacionalizarmos conceitualmente nosso pensamento e nossa oficina. Aqui também vamos agenciando como rizoma nosso pensamento filosófico com nosso pensamento da História para conceituar o “território transversal de saberes”. Para Deleuze (1976), a tarefa da filosofia da diferença é reverter a imagem dogmática do pensamento. O uso do conceito de “dogmática” para delinear a imagem do pensamento vem da observação de que tal imagem oculta o trabalho das forças estabelecidas, do plano imanente que acaba determinando os pressupostos do pensamento. Quando falamos da verdade “simplesmente”, ou do “verdadeiro” tal como é em si ou para nós, ou, ainda, como tomamos determinado pensamento como “ciência pura”, devemos perguntar, escreve Deleuze (1976), quais forças escondem-se no pensamento daquela verdade. Questionarmo-nos acerca do sentido e do valor, de quais forças se entrelaçam naquele pensamento. Enfim, trata-se de relacionar o “verdadeiro” com o que ele pressupõe, avaliar a verdade de um pensamento de acordo com as forças ou o poder que o determinam a pensar, e a pensar isto em preferência àquilo (DELEUZE, 1976). A imagem dogmática do pensamento oculta tais pressupostos e apresenta o pensamento como algo que é exercido “naturalmente”. Ou seja, tem como dado o pensador como alguém que ama o verdadeiro e que o pensamento possui ou contém formalmente esse verdadeiro. Pressupõe que somos desviados desse verdadeiro por algo exterior ao pensamento: somos desviados pelo “erro”, o efeito destas forças estranhas ao pensamento. Assim, bastaria um “método” para se pensar bem, pois, pelo método, “conjuramos o erro” (DELEUZE, 1976). Assim, a filosofia clássica do tipo racionalista vai estabelecer a figura do método: como a busca da verdade seria algo natural, bastaria uma decisão e um método capaz de vencer as influências exteriores que desviam o pensamento de sua vocação, um método que exorcize a confusão de tomar o falso como verdadeiro (DELEUZE, 2003). Tais pressupostos tem a forma do “todo mundo sabe”: são tidos como implícitos, pois “ninguém pode negar”, pois é a forma da representação e o discurso representante, são constitutivos da imagem dogmática do pensamento, os pressupostos da filosofia clássica de tipo racionalista (DELEUZE, 1988).

53

Pensar não se dá como algo natural. O verdadeiro não é o elemento do pensamento: o elemento do pensamento é o sentido e o valor (DELEUZE, 1976). Pensar depende das forças que se apoderam do pensamento. Só encontramos as verdades aí onde elas estão, na sua hora e no seu elemento, no seu plano de imanência, no campo coletivo de forças. Toda verdade é verdade de um elemento, de uma hora e de um lugar (DELEUZE, 1976). Como escreve Nietzsche (1983), a verdade dá-se como uma soma de relações humanas solidificadas pelo uso, logo possui um cunho moral. O que é verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, 1983, p. 48).

Pois ser racional é universalizar impressões em conceitos, é formar um esquema, edificar uma ordenação mais sólida, regular. Assim, a verdade dá-se como um “operar no ordenamento”, aparece como um “sentimento moral”. Contudo, a natureza não conhece formas nem conceitos. Cada povo tem seus conceitos e suas exigências de verdade, pois a verdade é antropomórfica, seu procedimento consiste em tomar o homem como medida de todas as coisas, mas disso se esquece e logo a toma pelas coisas mesmas (NIETZSCHE, 1983). Advertimos que não se trata aqui de discutir a verdade de dizer que aquilo é um copo e falar “por favor me passe o copo” e querer receber um dinossauro (a questão da recognição...). Ou “cair em um relativismo absoluto”, em dizer que “tudo é caos”, etc. e etc.; ou de “criticar os valores morais de nossa época como uma bandeira ideológica” ou propor que “na escola as pessoas quebrem tabus com doze anos de idade” ou algo que o valha. Trata-se, nada mais e nada menos, do que pontuar que a verdade é algo humano e, logo, contingente. A perspectiva de verdade, como estamos delineando, inscreve-se em um plano coletivo de forças: não se trata de discutir certas verdades e certas morais, mas trata-se sim de colocá-las em seu devido lugar, que é na terra, nas contingências do humano e não em uma pretensa transcendência fora da história. É nessa perspectiva de inscrever regimes de poder e verdade em um plano coletivo de forças que nosso emprego da Filosofia da Diferença encontra nossa concepção de História. Tomamos a História como uma “genealogia” (FOUCAULT, 1987) que vai justamente problematizar as constituições das verdades e práticas sociais como que atravessadas em

54

imanência por configurações de poder. Assim, podemos dizer que nosso pensamento historiográfico é pensamento em imanência e genealógico, pois enquanto a verdade moral pergunta pela fonte última dos valores, a genealogia da moral (e da verdade) pergunta sobre a valoração dos valores: “Quem atribuiu este valor ao valor?”, pois o valor, a verdade, o conhecimento são postos, impostos, instituídos, são colocados como segmentaridades e operados em uma máquina abstrata de sobrecodificação. O valor, tal como o conhecimento, pertence ao campo da invenção, não pertence ao campo da transcendência (CORAZZA; TADEU, 2003). O que estamos tratando aqui, em última instância, são das condições dessas invenções, do campo coletivo de forças que as produz. Tudo que se pensa não é, de natureza, a “verdade moral definitiva”, porque é crivada pelo “método racional” ou balizada pela instituição ou autoridade sabe-se lá qual. Isso é tudo contingente, motivado por sentidos e valores imanentes colocados historicamente. Por exemplo, há bem pouco tempo, basta recordar, tinha-se a questão da homossexualidade balizada por verdades morais, científicas, etc., que lhe colocavam, muitas vezes, em lugares de “não aceitação”, de “aberração”, motivos de preconceito e etc. Atualmente, podemos dizer que, mesmo com várias permanências de preconceito, existe uma maior tolerância com os homossexuais, possibilitando a essas pessoas exercitarem suas vidas de outro modo: estão “saindo do armário”, como dizem os jornais e as revistas; estão fazendo “paradas do orgulho gay” para lutarem pelo que acreditam, pois sua condição não é mais considerada tão afrontosa, tampouco aberrante para parcelas cada vez mais significativas da sociedade. Contingência de verdade também quanto ao divórcio, que nos anos setenta era algo impensável juridicamente e agora é algo comum, cada vez mais socialmente aceito e cada vez menos tido como algo moralmente condenável. Se pensarmos em termos de Século XIX, era algo científico e moralmente justificável, “digno” inclusive, alguém ter escravos. Hoje, mesmo o Brasil ainda sendo um país com graves problemas de racismo, a moral admite a presença de “negros” a conviver junto aos “brancos” nos mais diversos espaços. Nas práticas escolares, já tivemos regimes de verdade que instituíam castigos físicos, hoje isto é visto como aberração. Não querendo insinuar que tais mudanças de valores e “verdades” sejam a imagem de um “progresso” da lógica ou algo que o valha, apenas elencamos exemplos simples de como diferenças superaram verdades moralmente colocadas, materialidade histórica de nossa problematização genealógica da constituição de verdades como operações de poder. Verdades e valores não estão acima da história, em uma condição transcendental e soberana, mas são constituídos pelos movimentos imanentes de relações de forças.

55

Assim, se as práticas sociais não são neutras e o pensamento não é o exercício natural de uma faculdade, mas algo exercitado segundo um sentido e um valor, ele pode dar-se de modo a constituir movimentos outros, diversos, múltiplos, vívidos, que apontem para a diferença. A questão não é o pensamento exercido com “pureza” e “método”, mas a ordem de valores e sentido que se apossam do pensamento e fazem pensar. 5.1 POR UM PENSAMENTO SEM IMAGEM, OU UMA FILOSOFIA DA DIFERENÇA NA EDUCAÇÃO Como professor-pesquisador, tomamos o pensamento como potência de afirmação de uma diferença pura, criadora de novas possibilidades e não reproduções balizadas por sentidos modelizantes. Trata-se da busca pelo emprego de um novo uso do pensamento nas práticas escolares, pensamento rizomático que estabelece relação com as forças externas à representação, intentando fazer o pensamento sair de sua imobilidade, procurando encontros, intercessões (MADARASZ, 2005). Na Filosofia da Diferença, pensar é criar conceitos, conceitos que possam fazer alianças com o extra-filosófico e produzir uma onda de força que nos faça pensar (MADARASZ, 2005). Rizoma, pois, desde que o pensamento tem como objeto o novo, ele torna-se experimentação (LINS, 2005). Assim nosso uso da filosofia vai dar-se como processo de criação, como criação do pensamento (MACHADO, 2010). Nesse movimento, descodificamos os aspectos impeditivos do pensamento da diferença, operando criações conceituais como ferramentas para buscar um aprendizado enquanto diferença. Na filosofia da diferença, neste “pensamento sem imagem” que não quer ser reprodução de modelos, nosso pensamento vai dar-se como criação. “[...] a filosofia não é uma reflexão sobre a exterioridade da filosofia, uma reflexão sobre domínios ou áreas extrínsecas ao discurso; ela é um processo de criação” (MACHADO, 2010, p. 12). O pensador na imagem dogmática do pensamento “reflete”, pensa sobre e remete seu pensar à representação. Em nosso trabalho, a filosofia deve reivindicar para si “[...] a produção de conhecimento ou, mais propriamente, a criação de pensamento, como acontece como as outras formas de saber, sejam elas científicas ou não” (MACHADO, 2010, p. 12). Pensar fora da representação. A filosofia da diferença não é um modelo para a criação, mas uma prática de criação, ela faz rizoma. Assim, fazemos rizoma ao tomarmos nosso pensamento como criação. A filosofia da diferença é uma prática, pois a “virtualidade” do pensamento da diferença vai se “atualizando”2 como criação. A filosofia de Deleuze, Guattari 2

Aqui, estamos tratando do virtual na filosofia, ou melhor, de uma filosofia virtual. Não confundir com o

56

e outros é tomada como virtualidade, pois estabelece algo como que “mundos possíveis” que são atualizados na criação do pensamento, em nosso caso, em nossas práticas de pensamento e em nossas práticas na oficina. Filosofia como criação e não como subsunção de modelos. Criação de nossos próprios usos do pensamento da diferença, constituindo linhas de fuga, criando um território rizomático como máquina de mutação. Fazemos rizoma ao tomarmos a filosofia como criação. Assim essa atualização de uma virtualidade é sempre diferenciação: atualizar o virtual é uma criação de diferença (DELEUZE, 1988). Dessa forma, muito importante: em nosso trabalho, não estamos pensando sobre a filosofia da diferença; estamos utilizando-a como ferramenta prática, imanente, ao criar nosso rizoma. Assim, o rizoma “história nômade” não é a oficina, mas a oficina compõe-se no rizoma. Não estamos aqui aplicando uma teoria onde a oficina seria a parte empírica, como na imagem dogmática do pensamento. Rizoma é criação em ato e não modelo a ser seguido. A “história nômade” é um rizoma de criação de pensamento e práticas, no qual está agenciada a oficina. Nosso trabalho dá-se no pensamento da diferença, em um “pensamento sem imagem”, e, para tal, vamos pensar com os conceitos dos pensadores no intuito de construir nossos próprios conceitos, nossas próprias práticas, nosso próprio rizoma: “história nômade” como criação de diferença. Nossa criação conceitual faz a “disciplina de história” operar como um “território transversal de saberes”, em que a atuação do professor de História não é mais disciplinar, mas em rizoma, operando agenciamentos para mobilizar os saberes da história e múltiplos outros saberes (Geografia, Antropologia, Filosofia, Artes, Música, etc.) de maneira transversal e hipertextual. E isso se faz em um duplo movimento: como criação conceitual e como criação de práticas com os estudantes. A “história nômade” como um rizoma que estabelece relações e ressonâncias com os delineamentos disciplinares de tempo, espaço, saberes e pensamento (não só na problematização das modelizações escolares disciplinares, mas também como nosso “referencial historiográfico”, a genealogia dos poderes, o nosso pensamento sobre a História de modo geral); com a filosofia da diferença; com o conceito de aprendizagem como virtual da web, realidade virtual, etc. O virtual como um “mundo possível”, como uma característica da Ideia, em que, a partir de sua realidade de Ideia, a existência é produzida (DELEUZE, 1988). Nosso rizoma é criação em que pensamos com a virtualidade das filosofias dos autores: nosso trabalho é “atualizá-las” em nossas próprias criações de pensamento, criações conceituais, nas práticas da oficina..., pois a atualização do virtual é sempre diferenciação, é sempre uma criação (DELEUZE, 1988). Então, não se trata, aqui, de “aplicar” um “conceito teórico” em uma “prática empírica” como aponta a imagem dogmática do pensamento. Tomamos a filosofia como ferramenta de criação, em que pensamento e prática se implicam mutuamente: uma virtualidade se atualiza como diferença, como criação. A existência da realidade do virtual dá-se na atualização como diferença.

57

diferença; com o conceito de transversalidade; com o conceito de hipertexto; com o conceito de cartografia; com a “história como território transversal de saberes”; entre outros conceitos; e a oficina com os estudantes, seus afetos, suas diferenças, os saberes pesquisados, suas singularidades... 5.2 FILOSOFIA DA DIFERENÇA, PENSAMENTO COMO CRIAÇÃO O impulso inicial e permanente do pensamento da diferença consiste em liberar todo pensamento daquilo que o entrava e o deforma. Sair do decalque modelizante e arborescente e compor mapas, fazer rizoma. Impulso de liberação, de desembaraçamento, igualmente válido naquilo que chamamos de prática da vida cotidiana ou na vida política: desembaraçar-se das divisões e regras artificiais, dos poderes, das instituições, dos impedimentos, das representações, das ideias feitas, dos clichês. Desembaraçar-se, reativar sem parar o movimento (SCHÉRER, 2005). Esse também foi nosso impulso inicial neste trabalho: colocar-se como professor-pesquisador que faz rizoma. Como aquele que, muito antes das práticas da oficina, já está fazendo, em si, esse trabalho de desembaraçamento, de reativação de movimentos. Por ser uma filosofia prática, por não se tratar de pensar algo fora, mas algo imanente, pensar como diferença é uma espécie de “invenção de si”, pois cria a diferença como um devir, antes de mais nada, em si próprio. Fazer rizoma em si próprio. Daí vamos constituindo um território de experimentações de pensamento e práticas educativas como diferença: rizoma. Positivar a diferença como linha de fuga da modelização. Tirar a diferença de seu “estado de maldição”, colocando-a como sendo feliz, pois é afirmativa como afirmação da afirmação, possibilitando assim a criação do novo (MARINHO, 2012), não apenas “nos estudantes”, mas antes de mais nada, em nós mesmos. Estamos fazendo rizoma também em nós usando como ferramenta uma filosofia prática, um pensamento diferencial que privilegia a ideia de diferença para instaurar novos ângulos e perspectivas do real (VASCONCELOS, 2005). Assim, temos na filosofia da diferença um instrumental de criação de pensamento prático. Dessa maneira, durante todo este trabalho, estamos nos colocando no território do “pensador criador”, fazendo rizoma, colocando conceitos em relação com outros domínios do saber, estabelecendo conexões ou ressonâncias de um domínio ao outro: filosofia da diferença, usos da web, história, “história nômade”... Agenciando espaços, operando transversalidades, buscando estabelecer práticas que produzam a diferença. Para tal,

58

desterritorializamos a disciplina de história e a reterritorializamos como operadora da transversalidade: “história nômade”, um “território transversal de saberes”, a compor agenciamentos de novos sentidos e valores nos recursos da web e em outros recursos, acessos a saberes para fazer rizoma nas práticas escolares. 5.3 PENSAMENTO COMO SENTIDO E VALOR Ao delinearmos a imagem dogmática do pensamento, vimos que ali ele é tomado como algo naturalmente e de direito voltado ao bem pensar. A representação tem o pensamento como já contendo formalmente o verdadeiro. No pensamento da diferença, o “verdadeiro” não é o elemento do pensamento: o elemento do pensamento são as forças que dele se apossam e o fazem pensar. Melhor dizendo, o elemento do pensamento é o sentido e o valor (DELEUZE, 1976). Basta remetermo-nos aos delineamentos da disciplinaridade e seus planos de imanência que engendravam as “verdades” como uma construção: um campo coletivo de forças, todo um trabalho das forças estabelecidas. É a partir do sentido e do valor ali engendrados que se dão como regimes de verdade. Ou, ainda, quando a pessoa pensa, pensa em função de sentido e de valor, que nele engendra. Assim, as categorias do pensamento não seriam o verdadeiro e o falso e sim algo como o “nobre” e o “vil”, o “alto” e o “baixo”, etc., segundo a natureza das forças que dele se apoderam (DELEUZE, 1976, p. 70). Aqui o pensamento, colocado em termos de sentido e valor, não constitui, como na recognição, o “erro” como estado negativo (DELEUZE, 1976). Assim, dizer “3+2=6” ou falar “bom dia”, quando é de noite, é apenas um tipo de erro pueril, artificial. O pensamento, adulto e atento, tem outros inimigos, estados negativos muito mais profundos. A tolice é uma estrutura do pensamento como tal – não é uma maneira de se enganar, ela exprime de direito o contra-senso do pensamento. A tolice não é um erro nem um tecido de erros. Conhecem-se pensamentos imbecis, discursos imbecis que são feitos inteiramente de verdades; mas essas verdades são baixas, são as de uma alma baixa, pesada e de chumbo. A tolice e, mais profundamente, aquilo de que ela é um sintoma: uma maneira baixa de pensar. Eis o que exprime de direito o estado de espírito de um espírito dominado por forças reativas. Tanto na verdade, quanto no erro, o pensamento estúpido só descobre o mais baixo, os baixos erros e as baixas verdades que traduzem [...] o reino dos valores mesquinhos ou o poder de uma ordem estabelecida. (DELEUZE, 1988, p. 70).

O pensamento no rizoma não se coloca em termos de “verdade” ou “erro”, mas em termos de “alto” ou “baixo pensamento”, de acordo com as forças de sentido e valor. Por exemplo, no Brasil, em meados do século XIX, “3+2=6” era um erro infantil e pueril, como

59

hoje ainda o é. Mas, naquela época, alguém comprar um lote de cinquenta seres humanos para trabalhar como escravos era algo amparado por verdades científicas que justificavam a “inferioridade dos negros”: eis a “tolice”, a “baixeza do pensamento”, que traduz a mesquinhez do capital, a mesquinhez de uma ordem estabelecida que afirmava o baixo pensamento como verdade. Assim, tomamos os saberes da “história” aliados transversalmente com vários outros saberes, geográficos, antropológicos, filosóficos, literários, artísticos, etc. delineando um “território transversal de saberes” em multiplicidades para a problematização de “baixos pensamentos” e, especialmente, para a criação de pensamento. Não é nosso interesse aqui fazer algo como uma “teoria geral dos valores e sentidos que evitam o baixo pensamento”, isso seria remeter nosso trabalho à representação, seria fazer decalque. No entanto, instrumentalizados por um “território transversal de saberes”, como professor-pesquisador operando filosofia da diferença na história, problematizamos essas forças reativas à vida, forças que impedem as multiplicidades serem possíveis. Buscando, daí sim, sair do emaranhado modelizante da baixeza do pensamento e fazer do pensamento como sentido e valor, aquele que afirma a vida como potência, que afirma a potência de criar diferença em seu próprio fazer-se. A filosofia da diferença faz rizoma e vai colocar-se em relação intrínseca com saberes de outros domínios, com o objetivo de estabelecer conexões ou ressonâncias de um domínio a outro (MACHADO, 2010), em um movimento de “transversalidade”. Transversalidade como uma mobilidade de saberes para além da mobilidade disciplinar, que é insuficiente para as multiplicidades do rizoma. Transversal, pois compõe atravessamentos entre os saberes, constitui territórios próprios de criação. Transversalidade como matriz de mobilidades abrangentes entre os liames do rizoma (GALLO, 2008). Como, por exemplo, o grotesco e o vil “baixo pensamento”: “os negros são inferiores aos brancos”, que, ainda, é presente em falas, piadas, etc. em nossa sociedade. Existe uma série enorme de saberes históricos, geográficos, antropológicos, filosóficos, literários, artísticos, etc., com argumentos consistentes de sobra para denunciar a baixeza de tal pensamento. E além, tais saberes em transversalidade possuem uma grande riqueza de “mundos possíveis” para pensar a afirmação da diferença, a potência de saber como diferença. Adiante, transversalidade não é apenas uma mobilidade de saberes, mas uma mobilidade de rizoma e, consequentemente, uma mobilidade não disciplinar, uma mobilidade que se quer fora da imagem dogmática do pensamento, pois, voltando ao nosso exemplo, não adiantaria elevar a “denúncia da baixeza” ao estatuto de modelo a ser reproduzido como

60

recognição, visto que daí, mais uma vez, estaríamos no território da representação, do decalque. Por exemplo, o professor fazer o estudante decorar um texto sobre escravidão e “cobrar” em um questionário as “respostas certas” é fazê-lo um “sabido em escravidão”, que não criou nada novo, apenas reproduziu uma lógica normatizante que simplesmente elimina a potência de criação do estudante. Tampouco cabe, munidos de certa ideologia, buscar “conscientizá-lo”, pois ainda estaríamos no território da representação, sendo a “consciência” o modelo identitário da verdade, a “consciência” como um modelo vindo de fora, colocando o pensamento em uma condição de passividade frente à “voz autorizada e verdadeira” do professor. A transversalidade trata de mobilizar saberes como multiplicidades, buscando sempre fazer do pensamento algo ativo e potente em afirmação da diferença. Em nosso trabalho, engendramos os “conteúdos da disciplina de história” com outros saberes, formando algo como um “território transversal de saberes” buscando possibilitar encontros com a diferença. Assim, nosso trabalho de professor-pesquisador não é fazer questões e fornecer respostas. Pretendemos que o “território transversal de saberes” mobilize o pensamento do estudante como valor e sentido ao emitir uma série de “signos” que seriam os inicializadores de todo um aprendizado. 5.4 APRENDIZAGEM E SIGNOS, OU APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA Como rizoma, as práticas educativas não colocam a aprendizagem em termos modelizantes, representacionais, disciplinares, nem de controle. Ao pensarmos com a filosofia da diferença e não mais na imagem dogmática do pensamento, operamos uma grande mutação ao colocarmos a “aprendizagem” em outros termos, pois tomamos o pensamento em outros termos. Pensar é um acontecimento extraordinário no próprio pensamento, para o próprio pensamento, mas é sempre necessário que algo o “[...] force a pensar, lance-o em um devir ativo” (DELEUZE, 1988, p. 72). Pensamento sem objetivos predefinidos por uma ordem modelizante que o constitua. Como rizoma, o pensamento se lança em um devir ativo. Um devir é um movimento cuja destinação desloca-se na medida de sua própria mudança, não é uma abertura com destinação pré-definida e também não é antecipável. Sua “finalidade” é imanente ao próprio movimento, dá-se no próprio movimento. “Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se

61

trocam” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 3). Pensar é uma “enésima” potência do pensamento, mas é preciso que ele seja elevado a essa potência de devir para que se torne “o leve”, “o afirmativo”, “o dançarino” (DELEUZE, 1988, p. 72). E esse algo que o força a pensar é o encontro com o signo (DELEUZE, 2003, p. 15). O signo é o que coloca o pensamento em devir. Para Deleuze (2003, p. 4), “[...] aprender diz respeito essencialmente aos signos” - “tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos” (DELEUZE, 2003, p. 4). Os signos são específicos e constituem a matéria desse ou daquele mundo (DELEUZE, 2003, p. 4), ou ainda “tudo é signo”. Entretanto, por outro lado, “os signos são heterogêneos” (MACHADO, 2010, p. 195) e, assim, trata-se aqui de certa exploração dos “[...] diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos” (DELEUZE, 2003, p. 4). Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objetos de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja “egiptólogo” de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação aos signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. (DELEUZE, 2003, p. 4, grifo do autor).

Sobre a variedade dos signos, existem os “signos mundanos”, o mundo mesmo, heterogêneo. “[...] não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão reduzidos e em tão grande velocidade” (DELEUZE, 2003, p. 5). Também “signos de amor”, pois “apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite” (DELEUZE, 2003, p. 7). Ainda “signos da natureza”, as impressões ou qualidades sensíveis (DELEUZE, 2003, p. 10). Esses três são os “signos materiais”. O quarto tipo são os “signos da arte”: “[...] os signos convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, são aprendizados inconscientes da própria arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte” (DELEUZE, 2003, p. 13). E é no encontro com os signos que o pensamento é forçado a pensar: Quem procura a verdade? Nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca. [...]. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários. [...]. A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. (DELEUZE, 2003, p. 14-15).

A verdade vai sempre depender do acaso dos encontros, e essa verdade vai se dar

62

como uma espécie de coação ao pensamento. E aqui nosso conceito de aprendizagem como diferença, sentido amplo, vai dar-se em uma composição que não é modelizante, representacional, disciplinar, nem de controle... pois não há uma maneira previsível que estabeleça o aprender, não existe como propor um “método” geral e universalmente válido que vá “garantir o aprendizado”, pois “procurar o verdadeiro” depende do encontro com um signo que vai exercer em nós um certo tipo de “violência” que força a pensar. “[...] o acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado” (DELEUZE, 2003, p. 15). Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente ‘bom em latim’, que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado? Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende. Quem sabe como se tornar um grande escritor? Diz Proust3 [...]: “Não me impressionei menos ao refletir que talvez as obras-primas mais extraordinárias de nossa época tenham saído, não dos concursos universitários, de uma educação modelar e acadêmica, [...] mas do contato com as ‘pesagens’ e com os grandes bares”. (DELEUZE, 2003, p. 21, grifos do autor).

Esse “perder tempo” é justamente sentir o efeito violento de um signo e ficar um tempo indeterminado procurando o seu sentido. “[...] por isso, quando pensamos que perdemos nosso tempo [...] estamos muitas vezes trilhando um aprendizado obscuro, até a revelação de uma verdade desse tempo que se perde” (DELEUZE, 2003, p. 21). É preciso sentir o efeito de um signo para que depois o pensamento seja forçado a procurar seu sentido. Esse “tempo perdido” dá-se, pois existe uma relação da aprendizagem com a decepção: ficamos, de certa forma, decepcionados quando o “objeto” do signo não nos revela o segredo que esperávamos encontrar (DELEUZE, 2003). Dessa forma, não há maneira de aplicar-se uma forma geral psicológica que vá garantir o aprendizado de todos no mesmo tempo e da mesma maneira. No máximo, isso vai gerar um saber normatizado, quando não uma velada coação à obediência que vai ser confundida com conhecimento (“estudei para fazer a prova final e passar de ano”...). “[...] aprender não é reproduzir, mas inaugurar; inventar o ainda não existente, e não se contentar em repetir um saber [...]” (SCHÉRER, 2005, p. 1.188). E aí aparece toda a limitação das verdades propriamente intelectuais por faltar-lhes a necessidade (DELEUZE, 2003, p. 22). Assim, na “história nômade” não estamos ali “ensinando algum conteúdo”, tampouco

3

Deleuze cita Proust em sua obra Em busca do tempo perdido que serve ao seu Proust e os Signos (DELEUZE, 2003).

63

“cobrando e avaliando aprendizados”, mas antes disponibilizando signos múltiplos aos estudantes que vão neles “perder tempo”, explorá-los, achar algo interessante, cativante, intrigante por emitir algo que lhe mobilizou o pensamento e vai colocá-lo em devir ativo de exploração, pesquisa, sensibilidades, pensamento, troca, conversas, emoções... Não formatamos tempo e espaço para produzir aprendizagens de acordo com uma mediação normativa. A aprendizagem se dá em outros termos quando operamos em rizoma: o “perder tempo” é linha de fuga das normatizações e avaliações disciplinares e de controle, pois se dá em uma composição entre signo e pensamento mobilizado que vai fazer devir, o pensamento vai desenvolver-se em seu próprio desenvolvimento e isto é algo dado como diferença, algo além de controles modelizadores, imprevisível, misterioso de certa forma até... “Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente ‘bom em latim’, que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviram de aprendizado?” (DELEUZE, 2003, p. 21, grifo do autor). Falamos, por isso, de uma “aprendizagem como diferença”, pois ela é devir, multiplicidades imprevisíveis de composição de algum signo com o pensamento como sentido e valor no estudante (diagrama 11). Ao professor-pesquisador cabe estar aberto às singularidades do estudante, fazendo com ele composições em diferença com as multiplicidades mobilizadas pelo rizoma: sutileza sensível de composição no lugar de um objetivismo de recognição agenciada por segmentaridades disciplinares de espaço, tempo e saberes. “Perder tempo” na composição do devir do pensamento com os signos ao invés de um “conteúdo” a ser “trabalhado” em “X aulas de Y minutos” que vão ser “avaliadas” e “produzir nota”... Nas atividades da oficina “história nômade”, os estudantes apareciam nas tardes por vontade própria, não havia chamada, “não valia nota” para a oficina nem para as disciplinas regulares, não havia cobranças de prazos, eles não eram avaliados segundo medidas de rendimento. Nossa prática era explorar saberes, explorar encontros, vivências, pensamento, sensibilidades em uma “perda de tempo”...

64

Diagrama 11 - Signos mobilizando pensamento/desejo e aprendizagem como diferença

Fonte: Elaborado pelo autor.

É por meio dessa busca pela sensibilidade em relação aos signos que a aprendizagem como diferença vai estabelecendo-se como rizoma, pois cria linhas de fuga para o objetivismo da recognição. A recognição coloca uma realidade exterior fixa fundada na imagem dogmática do pensamento, ao passo que a sensibilidade da composição em devir do pensamento, a partir dos signos, traz multiplicidades que são diferença. A imagem dogmática do pensamento coloca a faculdade da razão como algo superior, coloca a realidade em termos de algo inteligível e formulado e que deve ser mediado pela educação (disciplinar...), no caso, pelo professor. Como já vimos, é tendência de a representação fundar a realidade em seus termos objetivos. Enfim este “objetivismo”: [...] é a tendência da inteligência. A inteligência deseja a objetividade, como a percepção, o objeto. Anseia por conteúdos objetivos, significações objetivas explícitas, que ela própria será capaz de descobrir e de receber, ou de comunicar. É, pois, tão objetivista quanto a percepção. Ao mesmo tempo que a percepção se dedica a aprender o objeto sensível, a inteligência se dedica a apreender as significações objetivas. Pois a percepção acredita que a realidade deva ser vista, observada, mas a inteligência acredita que a verdade deva ser dita e formulada. (DELEUZE, 2003, p. 278).

Atitude “intraduzível” ou ainda “impensável” pela imagem dogmática do pensamento, estar aberto ao signo é operar uma ampliação no círculo da discernibilidade, é ampliar os limites do possível além de uma inteligência e percepção objetivadas pela representação; estar

65

aberto para as multiplicidades colocadas e para as singularidades do estudante em suas composições de aprendizagem como diferença. Como rizoma estabelecemos multiplicidades de caminhos não modelizantes justamente por mobilizarmos pensamento, que faz devir, por multiplicidades de signos. Um tipo de abertura que vai além dos objetos designados, das verdades inteligíveis e formuladas, das cadeias de associações subjetivas. Ao abrir-se para o “fora” da representação, há a composição com “[...] as essências, que são alógicas, ou supralógicas” (DELEUZE, 2003, p. 36). Elas ultrapassam qualquer estado de subjetividade ou propriedades do “objeto”, os signos mundanos, amorosos e mesmo os sensíveis são incapazes de revelar-nos: é apenas no nível da arte que as essências são reveladas (DELEUZE, 2003). A essência revelada na obra de arte “[...] é uma diferença, a diferença última e absoluta. É ela que constitui o ser, que nos faz concebê-lo. Porque só a arte, no que diz respeito à manifestação da essência, é capaz de nos dar o que procurávamos em vão na vida” (DELEUZE, 2003, p. 39). Com isso não queremos dizer que vamos “abandonar a lógica” e apenas “estudar a arte” ou algo assim... é que o tipo de prática educativa que estamos compondo no rizoma vai nos colocando em uma espécie particular de indiscernibilidade entre algo “lógico”, ou “científico”, e algo “estético”, da ordem do “sentir” e do “criar”, por assim dizer. Os estudantes são motivados por algo indizível, inefável e não necessariamente por uma justificativa lógica, objetiva, de importância modelar colocada de antemão... o aprender como diferença, como um tipo especial de arte, como um tipo especial de sensibilidade e de criação... Estamos diante do problema filosófico das faculdades. Para Deleuze existe o encadeamento das faculdades, mas estas não convergem, não colaboram entre si, sob a forma de um “objeto” considerado o mesmo e da unidade do “sujeito” do conhecimento (MACHADO, 2010). Existe sim um “uso paradoxal das faculdades”, em que cada faculdade tem um objeto próprio, específico, que não pode ser objeto de nenhuma outra (MACHADO, 2010). Assim, a sensibilidade, na presença do signo (aquilo “que só pode ser sentido, o insensível ao mesmo tempo”), eleva-se a um tipo de exercício que não se dá em uma concordância, mas em um jogo discordante entre as faculdades (DELEUZE, 1988). No encontro com o signo, a alma torna-se perplexa como se este fosse portador de um problema e aciona as faculdades que se mobilizam de modo discordante: a sensibilidade, forçada pelo encontro a sentir, força a memória a recordar-se. Ou, ainda, memória e sensibilidade divergem, “[...] gerando uma experiência de estranhamento potencializada pelo frescor da sensibilidade [...]. É que a aprendizagem começa quando não reconhecemos, mas, ao

66

contrário, estranhamos, problematizamos” (KASTRUP, 2001, p. 18). O encontro com o signo produz devir, problematização no pensamento. Dessa forma, do sentir ao pensar: [...] se desenvolveu a violência daquilo que força a pensar. Cada faculdade saiu dos eixos. Mas o que são os eixos a não ser a forma do senso comum que fazia com que todas as faculdades girassem e convergissem? [...] Em vez de todas as faculdades convergirem e contribuírem para o esforço comum de reconhecer o objeto, assiste-se a um esforço divergente, sendo cada uma colocada em presença de seu “próprio”, daquilo que a concerne essencialmente, discórdia das faculdades, cadeia de força e pavio de pólvora, em que cada uma enfrenta seu limite e só recebe da outra (ou só comunica à outra) uma violência que a coloca em face de seu elemento próprio, como de seu disparate ou de seu incomparável. (DELEUZE, 1988, p. 140, grifo do autor).

Ampliação da discernibilidade. Cada faculdade descobre a paixão que lhe é própria, sua diferença radical. As faculdades não são figuras já referidas e referidas à representação, elas não convergem e são legisladas pela razão, mas, ao contrário, são “[...] estados livres ou selvagens da diferença em si mesma que são capazes de levar as faculdades a seus limites respectivos” (DELEUZE, 1988, p. 144). Aqui evidenciamos que o pensamento não é inato, mas deve ser engendrado no pensamento. O problema não é dirigir nem aplicar metodicamente um pensamento preexistente por natureza e por direito tal qual a representação, mas fazer com que nasça aquilo que não existe, porque “[...] pensar é criar, não há outra criação, mas criar é antes de tudo, engendrar, ‘pensar’ no pensamento” (DELEUZE, 1988, p. 145). Enfim, o signo sentido nos força a pensar, mas pensar não é representação, mas “[...] gênese do ato de pensar no próprio pensamento” (DELEUZE, 2003, p. 91). Uma consequência disso é que o pensamento como representação vai limitar as possibilidades do uso das outras faculdades, que seriam tidas como inferiores. Aqui não se trata de tomar o pensamento como algo que sempre deve vir primeiro, mas possibilitar aberturas a sensibilidades diferentes, aos signos, que podem afirmar a sua diferença ao colocarem o pensamento a pensar na diferença. Em nosso rizoma, em especial em nossa postura de professor-pesquisador na composição com os estudantes, tratou-se de não limitar o estudante à representação, ao uso do raciocínio como simples recognição. A “história nômade” agencia as práticas escolares de uma maneira a possibilitar o encontro com signos que podem acionar faculdades da sensibilidade que poderão engendrar formas de pensamento diferentes. Ter em vista que “[...] a aprendizagem segue a via dos encontros e dos amores [...]” (SCHÉRER, 2005, p. 1.191). É abrir-se para aquilo que só pode ser sentido. Não limitar o pensamento à representação é admiti-lo como criação, o pensamento não é aquele que apenas reconhece (3+2=5, “bom dia” quando é de manhã), mas também é aquele que cria, ao se abrir ao sensível, à memória, aos

67

signos emitidos pelo mundo, pelo amor, pela arte, por outros pensamentos. Para o professor-pesquisador que busca composições de aprendizagens como diferença, há de relevar-se os encontros, os signos que nos acionam sensibilidades, sabores, lembranças, amores, ódios, amizades, etc. que vão, daí sim, mobilizar nosso pensamento como sentido e vontade. Pensamento e prática que buscam o desembaraçamento, buscam escapar de fixações primeiras, atravessar cortinas subjetivantes para poder liberar algo como que o espaço infinito que ela nomeia, reconhecendo, aí, o único indubitável existente: as multiplicidades e as singularidades (SCHÉRER, 2005, p. 1.185). Enfim, aprender não mais como um mimetismo harmônico e ordeiro, mas uma apropriação de signos de coisas que nos despertam sensibilidades, pois somos movidos pelo interesse, pelo notável que nos mobiliza a ação. A aprendizagem que releva a diferença vai se dar quando ocorre a repetição, de uma forma nova, dos signos que nos chegam (MARINHO, 2012). Uma repetição da diferença, como uma atualização da virtualidade que é criação de diferença. É aqui que se dá a distinção entre “saber” que é da ordem da recognição, com o “aprender” que é este ato de criação. Com efeito, de um lado, o aprendiz é aquele que constitui e inventa problemas práticos ou especulativos como tais. Aprender é o nome que convém aos atos subjetivos operados em face da objetividade do problema (Ideia), ao passo que saber designa apenas a generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra de soluções. (DELEUZE, 1988, p. 160).

Assim, como professor-pesquisador, nosso aprender é criação e operacionalização da “história nômade” como oficina, como um rizoma de saberes em abertura como multiplicidades de emissão de signos. Cabendo ao professor-pesquisador operacionalizar fluxos de ofertas de signos, possibilitando múltiplas sensibilizações que mobilizem o encontro do outro com o pensamento. Assim, estudantes e professor-pesquisador estão sempre na tarefa de interpretar como um apoderar-se dos problemas ao criá-los segundo suas próprias singularidades (O que me interessou? O que despertou minha sensibilidade?). E, para tal, não existe uma fórmula pronta nem leis gerais, mas práticas de conjugação de pontos relevantes, constituição de campos problemáticos próprios e singulares, espaços de diferença. Composições, como vínhamos tratando. Como escreve Deleuze sobre sua experiência de aprender a nadar como conjugação de seu corpo com o mar: Aprender a nadar é conjugar pontos relevantes de nosso corpo com os pontos singulares da Ideia objetiva [...]” do mar “[...] para formar um campo problemático. Esta conjugação determina para nós um limiar de consciência ao nível do qual nossos atos reais se ajustam as nossas percepções das correlações reais do objeto, fornecendo, então, uma solução do problema. Mas, precisamente, as Ideias

68

problemáticas são ao mesmo tempo os elementos últimos da natureza e o objeto subliminar das pequenas percepções. Deste modo, “aprender” passa sempre pelo inconsciente, passa-se no inconsciente, estabelecendo, entre a natureza e o espírito, o liame de uma cumplicidade profunda. (DELEUZE, 1988, p. 160).

Daí o aprender vai passar para o nível das molecularidades, das sutilezas das conjugações entre o estudante e os signos que o mobilizam. Conjugações sensíveis dos signos e o pensamento mobilizado como criação de sentido e valor abrem-nos para possibilidades múltiplas, heterogêneas, em uma ética de abertura para mundos possíveis. Aprender é criar diferença. 5.5 APRENDIZAGEM COMO DIFERENÇA E A TRANSVERSALIDADE Se a aprendizagem se dá como a composição de um pensamento em devir mobilizado pelo contato com signos, precisamos de uma mobilidade de saberes em rizoma. Assim, tomamos a transversalidade como o trânsito dos saberes entre os liames do rizoma. Os saberes em multiplicidades, operando em rizoma, adquirem um estatuto incompatível com a disciplinaridade dos saberes. Em uma abordagem diferente do conhecimento, que não operam mais segundo uma imagem dogmática do pensamento, os saberes passam a ser uma funcionalidade (GALLO, 2008, p. 78): “O conhecimento não é nem forma, nem uma força, mas uma função: ‘eu funciono’” (DELEUZE; GUATTARI, 1992b, p. 275). Se o encontro com os signos vai mobilizar o pensamento, no rizoma lidamos com um novo regime de desejo (um desejo que está em composição com o pensamento em devir acionado pelo signo). Um novo regime de saber que não faz mais o desejo de saber passar necessariamente por configurações disciplinares pré-definidas, modelares. Contudo, “eu funciono”: o conhecimento como função do desejo de saber, suas problematizações, suas composições, o saber como razão da afirmação da potência de produzir diferença. Dessa maneira, aparecem novas possibilidades de abordagem do próprio conhecimento (GALLO, 2000). O rizoma rompe, assim, com a hierarquização – tanto no aspecto do poder e da importância, quanto no aspecto das prioridades na circulação – que é própria do paradigma arbóreo. No rizoma são múltiplas as linhas de fuga e portanto múltiplas as possibilidades de conexões, aproximações, cortes, percepções etc. Ao romper com esta hierarquia estanque, o rizoma pede, porém, uma nova forma de trânsito possível entre seus inúmeros “devires”; podemos encontrá-la na transversalidade. (GALLO, 2008, p. 78, grifos do autor).

Guattari (1981) escreve, no território das práticas institucionais terapêuticas, sobre a possibilidade de uma “transversalidade” em oposição a uma “[...] verticalidade que

69

encontramos por exemplo nas descrições feitas pelo organograma de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes, etc.)” e em oposição a “[...] uma horizontalidade como a que pode se realizar no pátio do hospital, no pavilhão dos agitados [...] ” (GUATTARI, 1981, p. 95-96). Sendo a transversalidade como “[...] uma dimensão que pretende superar os dois impasses, o de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade; ela tende a realizar uma comunicação máxima e sobretudo nos diferentes sentidos” (GUATTARI, 1981, p. 96). Ou, ainda, tomar um certo “plano da transversalidade” que expressa uma dimensão que não se define nos limites estritos de uma identidade, de uma individualidade, de uma forma, do tipo “esse saber”, “o meu saber”, “o saber que o outro tem e pode transmitir”, mas que “[...] experimenta o cruzamento das várias forças que vão se produzindo a partir dos encontros entre os diferentes nós de uma rede de enunciação da qual emerge, como seu efeito, um mundo que pode ser compartilhado [...]” (PASSOS; EIRADO, 2003, p. 115-116). Assim podemos [...] tomar a noção de transversalidade e aplicá-la à imagem rizomática do saber: ela seria a matriz da mobilidade entre os liames do rizoma, abandonando os verticalismos e horizontalismos que seriam insuficientes para uma abrangência de visão de todo o “horizonte de eventos” possibilitado pelo rizoma. (GALLO, 2008, p. 79, grifo do autor).

Uma organização de multiplicidades de saberes com uma organização de mobilidade entre os saberes que também opera em multiplicidades. Uma relação não disciplinar com os saberes, rompendo imagens como “conhecimentos da História”, os “conhecimentos da Geografia”, os “conhecimentos das Ciências”, etc. A transversalidade não é disciplinaridade, tampouco é interdisciplinaridade, transdisciplinaridade. E, também, não é a transversalidade proposta pelo MEC. Não é disciplinaridade, pois, além de buscar a ruptura da compartimentalização do saber, também busca romper seu correlato prático de que o aprendizado só pode acontecer sob controle (GALLO, 2000). Não é interdisciplinaridade, que é mais uma busca por integração de disciplinas, buscando construir uma axiomática comum que visa uma visão unitária de um setor do saber (GALLO, 2000, p. 26). A interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade compõe-se de várias disciplinas, ou seja, ainda estaríamos no campo disciplinar. Da mesma forma com os “temas transversais” do MEC (ética, meio ambiente, sexualidade, etc.) que se propõem a “atravessar” as disciplinas, que, no fim das contas, é uma maneira de interdisciplinaridade (GALLO, 2000, p. 36). Em todos esses casos, estamos diante de um paradigma arborescente de organização dos saberes, enquanto “[...] o acesso transversal significaria o fim da compartimentalização, pois as gavetas seriam abertas; reconhecendo a

70

multiplicidade das áreas do conhecimento, trata-se de possibilitar todo e qualquer trânsito por entre elas” (GALLO, 2000, p. 34). O acesso transversal dos saberes é da natureza do rizoma e só pode acontecer com a busca de saberes “não disciplinares”, que não remetem à imagem dogmática do pensamento: tais saberes seriam “saberes híbridos”, para pensar “problemas híbridos” (GALLO, 2000, p. 28). Nossa operatividade é em saberes e problemas híbridos agenciados como rizoma em práticas de aprendizagem como diferença e sua abertura para multiplicidades. O rizoma opera segundo um “princípio de conexão” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 15), cujas conexões de seus liames dão-se por proximidade, por contato: os saberes se colocariam em agenciamento segundo as necessidades do aprendizado do estudante, segundo o agenciamento imanente de seu desejo com o pensamento, formando, a partir dos seus interesses, uma espécie de “campo problemático híbrido”, ou, ainda, um certo “campo de interesses” em que os saberes de “diversas áreas” fossem mobilizados e tomados de modo operatório, funcional. Ainda, o rizoma opera por um princípio de heterogeneidade (DELEUZE; GUATTARI, 1995a), cujas multiplicidades não se reduzem a unidades. E, ressaltamos: transversalidade não quer dizer uma “aleatoriedade sem sentido”, no estilo “agora pode tudo”, pois sempre haverá a figura do professor no seu fazer com, buscando trazer as conexões e incentivá-las de modo a relevar-se os encontros, os signos que nos acionam sensibilidades, sabores, lembranças, amores, ódios, amizades, etc. que vão, daí sim, mobilizar o pensamento como sentido e vontade. Sempre considerando que a transversalidade, assim como o rizoma, não é algo pronto e dado, mas sempre um exercício, é sempre da natureza do processo, pois o rizoma não tem começo nem fim, sempre um meio, um intermezzo. Enfim, [...] a transversalidade rizomática [...] aponta para o reconhecimento da pulverização, da multiplicização, para a atenção às diferenças e à diferenciação, construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões infinitas. (GALLO, 2008, p. 79).

Assim, a transversalidade, como elemento de trânsito de saberes em práticas de aprendizagem como diferença, vai ser a possibilidade de uma produção singular a partir de múltiplos referenciais, em um processo que se dá no seu próprio fazer, sem a possibilidade de vislumbrar de antemão o resultado (GALLO, 2008, p. 80), dadas as características da aprendizagem como diferença.

71

5.6 HIPERTEXTO E A “HISTÓRIA NÔMADE” NA WEB Agora, pensamos em ferramentas que possibilitem a aprendizagem como diferença. Passamos pelo delineamento de segmentaridades modelizantes (disciplina, imagem dogmática do pensamento) e delineamos com as ferramentas do pensamento da diferença uma série de conceitos em rizoma e, assim, traçamos linhas de fuga de territórios modelizantes. Novamente, não se trata de uma “parte teórica” de nosso trabalho, mas um exercício de pensamento como criação de conceitos voltados a potencializar a diferença em práticas educativas. Se temos na aprendizagem como diferença uma composição do pensamento como devir mobilizado pelo signo, temos um novo regime de desejo nas práticas educativas, em que os saberes são tomados como funções cuja mobilidade é transversal. Assim, precisamos de ferramentas que nos conectem de modo rizomático a um fluxo de saberes que comporte multiplicidades. Optamos pelos “usos da web” pois a tomamos como ferramenta prática para compor um fluxo transversal de saberes colocados, também, de modo rizomático, em um fluxo agenciado pelo desejo de saber do estudante. A web, por sua organização não linear, não hierárquica e que possibilita múltiplas expressões e conexões também pode ser tomada como um rizoma. Quando navegamos pelo “ciberespaço”, que é “[...] o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 1999, p. 93), muitas vezes compomos conexões que não passam por uma compartimentalização disciplinar. Assim, pensamos o uso de blogs, vídeos, redes sociais e demais recursos da web como ferramentas a serem usadas na aprendizagem como diferença. Para compormos nossas operatividades de usos da web, utilizamos o conceito de “hipertexto”, criado por LÉVY (1998; 1999) para pensar a mobilidade da comunicação no ciberespaço. No ciberespaço, por meio da navegação pela web, temos um novo sistema de escrita, uma metamorfose da leitura (LÉVY, 1998, p. 22). O hipertexto dá-se em uma dinâmica em que o texto é estruturado em rede, é constituído por nós e links: elementos de informação, imagens, sequências musicais, referências, notas, “botões” indicando passagens entre nós, etc. (LÉVY, 1999). O hipertexto dá-se como uma “informação multimodal” disposta em rede de navegação rápida e “intuitiva”. Não se trata mais de seguir os instrumentos de leitura, virando páginas, deslocando volumes de livros, percorrendo a biblioteca: estamos agora diante de um texto móvel, caleidoscópico e que move suas facetas, dobra-se e desdobra-se à vontade do

72

leitor (LÉVY, 1999). Reiteramos: estamos tratando aqui de uma maneira de leitura, de exploração de saberes e sua operatividade no que ela tem de específico e prático e não estamos propondo dialéticas: “O hipertexto é a síntese e vai substituir o livro”; “O hipertexto é melhor que o livro”, “Computador é bom, livro é ruim”, “A educação deveria ser toda informatizada”, “Se dá para fazer com livro, por que fazer com computador?”, etc. Estamos tratando do hipertexto como ferramenta que possui especificidades que se conectam com a transversalidade e o rizoma. Tratamos da imanência da web e seus usos como ferramenta prática e ao nosso alcance. Portadora de multiplicidades, a hipertextualidade dá-se com cada um, atores da comunicação ou elementos de uma mensagem, em sua escala, construindo e remodelando universos de sentido (LÉVY, 1998, p. 15). O hipertexto dá-se como um espaço de percurso para leituras possíveis, é como se o seu autor constituísse uma matriz de textos potenciais e cabendo ao seu leitor ou navegador a realização de alguns desses textos, colocando em jogo, cada um à sua maneira, uma combinatória entre os nós (LÉVY, 1999). E sendo possível ainda aos leitores não apenas a navegação, mas também acrescentar, modificar nós, conectar um hiperdocumento a outro, traçar links hipertextuais entre um grande número de documentos, etc. (LÉVY, 1999), pois, no hipertexto, está a possibilidade da interatividade, a possibilidade de reapropriação e de recombinação material da mensagem por seu receptor (LÉVY, 1999). Interessante perceber que o conceito de hipertexto não se fecha somente sobre as possibilidades da web, que reconhecemos como a forma mais direta e óbvia de hipertextualidade. Ele ressalta que o hipertexto é uma maneira de pensar e praticar fluxos de saberes para esferas da realidade em que significações estejam em jogo. Por isso, na “história nômade”, ao compor linhas em rizoma, utilizamos a web como componente hipertextual, mas também os livros da biblioteca, conversas, trocas, entre outros como componentes da rede de interatividade. Dessa forma, o hipertexto aparece com múltiplas possibilidades, às quais Levy (1998) coloca em seis princípios. Um primeiro, o “princípio de metamorfose” - a rede está em constante construção e renegociação (LÉVY, 1998, p. 15). Um segundo, o “princípio de heterogeneidade” - a rede é uma heterogeneidade de pessoas, grupos, artefatos, forças naturais e todos os tipos de associações que puderem se constituir entre esses elementos (LÉVY, 1998, p.15). Terceiro, o “princípio de multiplicidade e de encaixe das escalas” - o hipertexto é portador de multiplicidades e se organiza de modo fractal, onde cada nó ou conexão, quando analisado, se dá como composto por toda uma rede e assim indefinidamente ao longo de uma escala de graus de precisão (LÉVY, 1998, p.16). Um quarto, “princípio de exterioridade” - a rede não

73

possui uma unidade orgânica, tampouco um motor interno: suas dinâmicas de composição e recomposição dependem de um exterior indeterminado de novos elementos, conexões e etc. (LÉVY, 1998, p.16). Quinto, o “princípio de topologia” - nos hipertextos tudo funciona por proximidade, o curso dos acontecimentos é uma questão de caminhos: não se trata de um espaço universal homogêneo, tudo que se desloca deve utilizar-se da rede hipertextual tal como ela se encontra, ou senão modificá-la (LÉVY, 1998, p. 16). E um sexto, o “princípio de mobilidade dos centros” - a rede possui diversos centros, perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, fazendo-se como que ao redor de infinitas ramificações (LÉVY, 1998, p. 16). Complementando esses princípios, “[...] tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões” (LÉVY, 1998, p. 20), nós que podem, por sua vez, conterem uma rede inteira. E, ainda, “[...] funcionalmente, um hipertexto é um tipo de programa para a organização de programas ou dados, a aquisição de informações e a comunicação” (LÉVY, 1998, p. 20). A transversalidade, como estamos delineando, dá-se dentro do rizoma por princípios de conexão e de heterogeneidade, em um fluxo que nos remonta aos princípios de “multiplicidade e encaixe das escalas”, de “topologia”, de “mobilidade dos centros”... Daí nossa atitude de construir, dentro do rizoma, um material em hipertexto, a “história nômade” na web. Essa hipertextualidade possibilita transversalidades motivadas pelo aprendizado como diferença, em que o estudante vai seguir suas motivações e criar traçados próprios, formando campos de saberes de acordo com seus interesses e sensibilidades, em uma composição de desejo que coloca o saber como afirmação da diferença. Essa formação de um campo de saberes de acordo com as buscas do estudante seria formada por “intensidades”. Platôs de intensidades de composição de desejo e pensamento fazendo associações com saberes, pois a atividade interpretativa elementar é a associação: assim, dar sentido a um texto é o mesmo que ligá-lo, conectá-lo a outros textos, portanto dar sentido a um texto é o mesmo que construir um hipertexto (LÉVY, 1998). E o que conta é a rede de relações pela qual a mensagem será capturada, pois o hipertexto lida com a estrutura indefinidamente recursiva do sentido, “[...] pois já que ele conecta palavras e frases cujos significados remetem-se uns aos outros, dialogam e ecoam mutuamente para além da linearidade do discurso, um texto já é sempre um hipertexto, uma rede de associações” (LÉVY, 1998, p. 45). Pensando nas práticas da oficina com o pensamento da diferença, produzimos materiais na web e operacionalizamos usos da web. Criamos dois blogs4 e também 4

“Um blog ou blogue (contração do termo inglês web log, 'diário da rede') é um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos ou posts. Estes são, em geral, organizados de

74

operacionalizamos o uso de uma rede social virtual5, a diasporabr.com.br6. Na rede social, criamos um perfil chamado “história nômade” (figura 1), a partir do qual fizemos as interações via web da oficina. Figura 1 - Perfil da “história nômade” na rede social diasporabr

Fonte: Rede social diasporabr.

Pensamos o uso dessa rede social como ferramenta: um ambiente de interação e produção de hipertexto. Nela os estudantes criaram seus perfis, postaram, trocaram mensagens e interagiram em rede social. Construímos o blog, historianomade.blogspot.com.br (figura 2), no qual fizemos uma espécie de curadoria de links diversos que fomos encontrando na web. Fizemos 283 postagens diversas, com links para reportagens, artigos, entrevistas, vídeos, imagens de obras de arte, fotos que tratam de assuntos múltiplos, entre outros. Foi nos processos de pesquisa de conteúdos e postagens desse blog que começamos a criar nosso conceito de “história nômade” forma cronológica inversa, tendo como foco a temática proposta do blog, podendo ser escritos por um número variável de pessoas, de acordo com a política do blog.” Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2014. No caso da “história nômade”, as postagens dos blogs foram feitas pelo professor-pesquisador. 5

“As Redes Sociais Virtuais são grupos ou espaços específicos na Internet, que permitem partilhar dados e informações, sendo estas de caráter geral ou específico, das mais diversas formas (textos, arquivos, imagens fotos, vídeos, etc.).” Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2014.

6

A rede social diasporabr é uma rede que funciona de maneira parecida com o facebook, mas sem fins lucrativos, sem propagandas e onde os dados compartilhados não são utilizados com fins comerciais. Descentralizada, funciona com software livre e cada um pode usá-la da maneira que quiser. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2014.

75

como “território transversal de saberes”.

Criamos o material para disponibilizá-lo aos

estudantes, mas ele não resume nosso uso da web, ele é mais um recurso, mais uma ferramenta em nosso rizoma. Tomamos a web como algo mais vasto, pois tanto o blog quanto o ciberespaço, de modo geral, são uma matéria pronta para metamorfoses (LÉVY, 1998), cujo estoque de dados disponíveis cresce o tempo todo, sendo preciso estruturá-lo, cartografá-lo, criar matrizes, interfaces para lidar com dados e etc. (LÉVY, 1998). Não há uma identidade estável na informática, os computadores “[...] são redes de interfaces abertas a novas conexões imprevisíveis, que podem transformar radicalmente seu significado e uso” (LÉVY, 1998, p. 62). Tampouco todo o conteúdo disponível na web pode ser acessado, pois a emergência do ciberespaço não significa que “tudo” pode enfim ser acessado, o “todo” está fora de alcance. O que se trata é de compor um determinado caminho hipertextual, cabendo ao seu usuário reconstruir “[...] totalidades parciais à sua maneira, de acordo com seus próprios critérios de pertinência. Por outro lado, essas zonas de significações apropriadas deverão necessariamente ser móveis, mutáveis, em devir” (LÉVY, 1998, p.161): saberes em fluxo, mobilidade rizomática. No blog temos um tag cloud, recurso de hipertexto amplamente usado e conhecido, que é uma representação visual de dados indexados segundo palavras-chave de postagens diversas. Além do tag cloud, os tags estão presentes nas respectivas postagens. O recurso serve, além da própria rolagem das páginas, como entrada para o material postado e trânsito entre eles. Figura 2 - Blog historianomade.blogspot.com.br com a “tag cloud”

Fonte: Blog historianomade.blogspot.com.br.

76

Exercício de compor parte de um “território transversal de saberes”, em que multiplicidades de saberes se entrecruzam em transversalidade, os tags são os seguintes, relacionados com seus nomes / temas e o número de postagens correspondentes: “2013” (em 24 postagens), “2014” (em 10 postagens), “África” (em 43 postagens), “Agrotóxico” (em 3 postagens), “Água” (4), “Amizade” (3), “América Latina” (12), “Animação” (17), “Antiga” (18), “Arqueologia” (12), “Arte” (74), “Arte Barroca” (1), “Arte Rupestre” (4), “Ásia” (13), “Astecas” (1), “Astronomia” (2), “Atualidades” (157), “Bandeirantes” (3), “Brasil” (107), “Castelos” (2), “Cidades” (18), “Ciências” (24), “Colônia” (15), “Comportamento” (153), “Consumismo” (11), “Contemporânea” (147), “Dinossauros” (7), “Direitos Humanos” (14), “Ditadura” (4), “Diversidade” (60), “Doação de Órgãos” (2), “Educação” (46), “Egito” (15), “Escravidão” (45), “Esporte” (3), “Estrada Real” (2), “EUA” (17), “Europa” (23), “Faraós” (6), “Favelas” (13), “Fenícia” (1), “Ferrovias” (4), “Filmes” (15), “Fome” (4), “Fotografia” (17), “Games” (3), “Garimpo” (7), “Guerra” (8), “Guerra Mundial” (6), “Gênero” (9), “Homofobia” (3), “Idade dos Metais” (2), “Imagem” (20), “Incas” (2), “Indústria” (30), “Internet” (15), “Invenções” (17), “Latifúndios” (7), “Língua Portuguesa” (2), “Madeireiras” (5), “Maias” (1), “Medieval” (9), “Meio Ambiente” (44), “Meios de Transporte” (11), “Migração” (6), “Minas Gerais” (2), “Mineração” (6), “Mitologia” (4), “Moderna” (3), “Movimento Passe Livre” (3),

“Mulheres” (7), “Mundo” (31), “Museus” (4), “Mídia” (20),

“Música” (5), “Nazismo” (6), “Neonazismo” (5), “Oceania” (4), “Paisagem” (2), “Patrimônio Histórico” (31), “Pirâmides” (11), “Pobreza” (24), “Poesia” (3), “Poluição” (12), “Povos Indígenas” (25), “Preconceito” (51), “Protestos” (32), “Pré-Colombiana” (5), “Pré-História” (23), “Racismo” (37), “Reforma Religiosa” (3), “Religião” (15), “Robótica” (5), “Santa Catarina” (1), “Tecnologia” (51), “Templos” (5), “Terras Indígenas” (20), “Terremoto” (1), “Tortura” (4), “Trabalho” (55), “Trabalho Infantil” (3), “Violência” (60). Ao dispor temáticas como um rizoma de multiplicidades e com diversos atravessamentos transversais, a curadoria não privilegia alguma perspectiva historiográfica, muitas postagens nem são da “disciplina” história. A ideia é privilegiar multiplicidades, mas também é fruto de felizes acasos de nossas navegações na web: quando o professorpesquisador se deparava com algo interessante, postava no blog (figura 3). Aliás, fazer postagens no historianomade.blogspot.com.br é um processo aberto, sempre em andamento, matéria em constante metamorfose. As multiplicidades agenciadas nas postagens foram configurando um “território transversal de saberes”. Postagens como signos emitidos ao heterogêneo: como algo que, no acaso dos encontros, pode mobilizar o desejo, inquietar, gerar curiosidade; enfim, pode

77

mobilizar o estudante de alguma forma. As postagens, em sua maioria possuem um título, uma imagem e um pequeno texto introdutório com o link, além dos tags.

Figura 3 - Postagem de conteúdo no historianomade.blogspot.com.br

Fonte: Blog historianomade.blogspot.com.br.

Os estudantes não precisam ler o blog linearmente ou, ainda, inteiramente. Ele é um hipertexto e é explorado de acordo com a singularidade do usuário. Aliás, como é pensado como transversalidade de saberes, interessa-nos o blog mais como emissão de signos do que suporte para “conteúdos” propriamente ditos: hipertextos como multiplicidades emissoras de signos. Uma história não linear, não teleológica, mas como uma rede de problemáticas, artes, vídeos formando um rizoma, com múltiplos pontos de entrada, múltiplas transversalidades e conexões entre temas, problemas, inquietações, curiosidades, imaginações. Articulação nômade, rizomática de saberes, buscando sentidos e valores do pensamento e produzindo signos que estimulem buscas e problematizações dos alunos em torno de um campo aberto, transversal de saberes e que faça rizoma. O rizoma não é o blog. O blog conecta-se nele como uma ferramenta, produz conexões hipertextuais por proximidade aos links dentro dos links, etc., e, assim, articula territórios na própria web. E, também, não é necessariamente ponto de entrada para esse rizoma, pois, além do blog, usamos também a rede social diasporabr.com.br, o google.com, outras redes sociais, sites em geral, o youtube.com, outros blogs e tudo aquilo que estiver na web. Por isso,

78

tratamos de “usos da web”. E o rizoma não está só na web, como já dito, ele também está nos livros da biblioteca, nos encontros, nas trocas com colegas, professor-pesquisador, etc. Ele é matéria em mutação, expansão sempre aberta: são territórios onde se dão acontecimentos, experiências. O rizoma não para de desdobrar-se. O material “história nômade” na web, produção concreta de pensamento e hipertextos do professor-pesquisador, dá-se como uma criação de pensamento como um sentido, como uma criação de mundos possíveis, é real enquanto virtualidade: ele é virtual. Assim como o pensamento da diferença é o virtual a partir do qual atualizamos como diferença nossas criações conceituais, o material web é virtualidade para os estudantes, que o atualizam singularmente em seus aprendizados como diferença. Ao explorar a web, o estudante faz atualização como diferenciação, atualização que é sempre uma criação (DELEUZE, 1988). Quais caminhos transversais podem seguir as curiosidades dos estudantes? Quais signos podem ser mobilizadores de desejos, de imaginações, de pensamentos? É nesta abertura processual de explorações múltiplas que tomamos nossas atividades, ao contrário de um “planejamento de aula” que tem seu foco em um determinado produto e que se faz por limitação de uma possibilidade preexistente (ensinar X, aprender X, ou X – 1, X – 2, etc.). Como professor-pesquisador, disponibilizamos material web como virtualidade de emissão de multiplicidades de signos e temos nas composições dos estudantes a sua atualização como criação de diferença, como trânsito transversal entre multiplicidades que fazem agenciamento de signos, desejos, pensamento, etc. Afirmação do múltiplo, alegria do diverso (DELEUZE, 1988). Ao usarmos a web como ferramenta, estamos exercitando um território relevando que: Novas formas de pensar e de conviver estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática. As relações entre os homens, o trabalho, a própria inteligência depende, na verdade, da metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. Escrita, leitura, visão, audição, criação, aprendizagem são capturados por uma informática cada vez mais avançada. (LÉVY, 1998, p. 4).

Como rizoma, não queremos tomar essas novas formas como modelo, tampouco fazer de nossos usos dessas novas formas um modelo. Queremos exercitar possibilidades práticas, compor nosso rizoma no movimento de devir, no movimento de sua própria composição. As possibilidades do campo informático são justamente isto: possibilidades, que podem ser bem utilizadas, estudadas e aperfeiçoadas cada vez mais. Não faz sentido ignorar sua presença ou reduzi-la, por exemplo, a um “problema do consumismo”, ou “separação do ser humano da natureza”, ou “o computador não substitui o livro ou o professor ou o contato humano direto”

79

- esses debates sobre a substituição não abarcam a complexificação das relações em andamento e acabam obstruindo as verdadeiras aberturas em jogo; aberturas que dizem respeito aos novos modos de criação e recepção de saberes que se apoiam nas ferramentas do ciberespaço (LÉVY, 1999). Assim, optamos por manter nosso foco em pensar, receber ou fazer acontecer o qualitativamente novo, visando os novos planos de existência virtualmente trazidos pela inovação técnica (LÉVY, 1999): agenciar usos da web em nosso rizoma “história nômade” como algo prático. Aliás, se não fossem as possibilidades imanentes dos usos da web, nosso trabalho de oficina não teria acontecido. 5.7 “HISTÓRIA NÔMADE”: HISTÓRIA COMO “TERRITÓRIO TRANSVERSAL DE SABERES” Estamos pensando a Educação com uma filosofia que é criação de conceitos. Criando uma composição que se coloca como rizoma, transversalidade e hipertexto e que vai fazer a “disciplina de história” operar como um “território transversal de saberes”: reterritorialização da disciplina de História em um rizoma. Em nosso rizoma “história nômade”, operacionalizamos conceitos e colocamos o pensamento filosófico e as práticas educativas em termos de diferença. Tal movimento nos levou a necessidade de pensar uma certa reconfiguração prática e imanente da operatividade da disciplina de História. Assim, fazemos rizoma usando a “história” como uma articulação nômade, rizomática de saberes, buscando sentidos e valores do pensamento e produzindo signos como multiplicidades que estimulem buscas e problematizações dos estudantes em torno de um campo aberto, transversal de saberes e que faça rizoma. A “história” aqui não teria na separação “passado-presente” ou em “evoluções históricas” o seu foco. Vamos tomar sempre como ponto de partida o presente que comporta múltiplas temporalidades, em que o passado e o presente se dão como elementos que coexistem, um presente que não cessa de passar e um passado que não cessa de ser, mas pelo qual todos os presentes passam (DELEUZE, 1999). Nosso “conceito de história” é o mesmo que tomamos quando pensamos as configurações disciplinares: um delineamento dos campos coletivos de forças que contém essas múltiplas temporalidades de permanências. Como já delineamos na aprendizagem como diferença, nossa “história” dá-se como um campo de saberes em fluxos transversais que emitem signos (diagrama 12) a serem interpretados de acordo com o aprendizado como diferença, e dessa mobilização de saberes estaríamos sempre buscando singularizações.

80

Assim, “[...] a questão não é propriamente trabalhar os conteúdos da história, mas trazer à tona seus embates e problemas, e se permitir envolver com eles mediante as questões da atualidade, do presente” (FOUCAULT, 2003, p. 191). É o sensível da diferença mobilizando o pensamento (e não a recognição) que vai propiciar esse encontro com situações novas, constituindo-se a “história nômade” um espaço de problematização do pensamento muito mais do que seu desfecho (FOUCAULT, 2003). Diagrama 12 - Território transversal de saberes emitindo multiplicidades de signos

Fonte: Elaborado pelo autor.

A “história nômade” quer fazer rizoma com os estudantes e toma os saberes como territórios abertos pela transversalização, com horizontes, mas sem fronteiras. Seu território é a desterritorialização, pois busca sempre novas conexões, novas possibilidades: seus saberes são operacionais, sua ética é a abertura ao devir. É um “território transversal de saberes”.

81

6 A OFICINA “HISTÓRIA NÔMADE” Nossa composição de rizoma continua na realização da oficina. Na oficina “história nômade”, buscamos o aprendizado como diferença, mobilizamos a “disciplina de história” como um “território transversal de saberes” que emite multiplicidades de signos que possam mobilizar, nos estudantes, sensibilidades, memórias, pensamentos, colocando-os em um movimento de criação singular. Nosso “método” para o trabalho nas oficinas foi a cartografia, quando realizamos um duplo trabalho: pesquisador atento e professor que fez com os estudantes seus caminhos de aprendizagem como diferença. 6. 1 CARTOGRAFIA COMO “MÉTODO DE CAMPO” A oficina “história nômade” quer fazer aprendizagens como diferença, quer fazer aparecerem linhas de fuga, multiplicidades, quer fazer rizoma. E um rizoma é um mapa aberto e conectável entre suas partes, não reproduz algo fechado em si mesmo, mas se constrói e contribui para a conexão de campos (DELEUZE; GUATTARI, 1995a) - de um mapa se faz a “cartografia”, esse é nosso “método”. Em oposição aos pressupostos da imagem dogmática e valendo-se do pensamento como rizoma, a intenção é manter as multiplicidades, não fazendo sobre elas um decalque que, ao tentar “traduzir” o mapa, o invade e o transforma em outra coisa, pois “[...] organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque não reproduz senão a si mesmo quando crê reproduzir alguma coisa” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 23). Enfim, aqui, conhecer não é representar ou reconhecer a realidade (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 13), como faria a imagem dogmática do pensamento. A “cartografia” é uma pesquisa que pensa com a filosofia da diferença e encarrega-se de delinear o rizoma, levando em conta que ele se compõe de linhas que fazem dimensões, mas também se compõe de “[...] linhas de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 32). Assim, cartografar é estudar processos acompanhando movimentos muito mais do que buscando apreender estruturas e estados de coisas. Estamos aqui com um método para investigar processos, considerando as multiplicidades enquanto tais, sem querer intentar formular regras ou protocolos (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 13).

82

A pesquisa cartográfica vai tomar o conhecimento desde o momento de sua produção, não como algo generalizante, mas como algo singularizante e único, cujos movimentos de pesquisa serão do viver. Desse modo, a cartografia vai ativar linhas de fuga no acontecimento pesquisado, porque o que está em jogo nos processos do conhecer são os devires do mundo a partir das singularidades e na abertura de lugares que possam romper com os sentidos conhecidos (KIRST et al. 2003). Enfim, a cartografia propõe-se a capturar no tempo o instante do encontro dos movimentos do pesquisador com os movimentos do território de pesquisa. É o encontro que se registra e não seus objetos. O cartógrafo sabe que é impossível congelar um objeto para estudar sua natureza sob todos os ângulos, isentando-se de implicação direta, conforme propõe a ciência positivista. “Cartografar é seguir o movimento de ecceidades7 [...] que se conectam e produzem desvios ao invés de regras, a partir daí, novos movimentos” (KIRST et al., 2003, p. 100). A cartografia implica em um mergulho no plano da experiência, em que conhecer e fazer tornam-se inseparáveis, impedindo qualquer pretensão de neutralidade ou suposição de um sujeito e um objeto cognoscentes prévios à relação que os liga (PASSOS; BARROS, 2009). Como fizemos durante todo este trabalho - desde o delineamento das sociedades disciplinares e de controle e sua imagem dogmática do pensamento até o pensamento da diferença -, há de supor-se a implicação dos elementos em um campo coletivo de forças, em um plano imanente que constitui agenciamentos que se implicam mutuamente. [...] o cartógrafo não se quer neutro, quer-se justamente desimpedido e tensionado pelo encontro com o mundo através da pesquisa. O cartógrafo procura afirmar-se através do encontro com o objeto e não no distanciamento dele [...] Cartógrafo e objeto nascem juntos e percorrem a vida de modo inseparável na criação de problemas. (KIRST et al., 2003, p. 96).

É que a ciência cartográfica, ao buscar desemaranhar-se do pensamento da representação e afirmar a diferença, inventa “sujeitos”, conceitos e “objetos”. “[...] as sensações, os conceitos e as percepções são um elo, algo que acontece entre pesquisador e objeto, sendo o material que faz com que se tornem contínuos e amalgamados na medida das inspirações que ambos lançam no mundo” (KIRST et al. 2003, p. 98). Assim, a mera presença no campo da pesquisa expõe o cartógrafo a inúmeros elementos salientes, colocando-o em uma “[...] atitude atencional de ativa receptividade”, de acolher os signos que distingue no campo (KASTRUP, 2003, p. 38-39), em uma postura correlata à do estudante, que, pretendemos, busca afetar-se por signos que serão interpretados, desencadeando a 7

“Ecceidades” são acontecimentos de singularidades, de diferença (DELEUZE; GUATTARI, 1995a).

83

aprendizagem como diferença. Considerando-se imerso, o cartógrafo vai desenhar a rede de forças à qual o “objeto” ou fenômeno em questão encontra-se conectado, dando conta de sua modulação e do seu movimento constante. Para isso é preciso, em um certo nível, se deixar levar por esse campo coletivo de forças. Não se trata de uma mera falta de controle de variáveis. A ausência do controle purificador da ciência experimental não significa uma atitude de relaxamento, de “deixar rolar”. A atenção mobilizada pelo cartógrafo no trabalho de campo pode ser uma via para o entendimento dessa atitude cognitiva até certo ponto paradoxal, onde há uma concentração sem focalização. O desafio é evitar que predomine a busca de informação para que o cartógrafo possa abrir-se ao encontro. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 57, grifo dos autores).

“Buscar informações” implica o distanciamento “sujeito X objeto” da representação. Já a busca da cartografia pelo “encontro” dá-se em um abrir-se no agenciamento, na relação de cofuncionamento com o plano coletivo de forças e seu “desenho” em um mapa. É um tipo de atitude, como o rizoma, de processualidade. “[...] a espessura processual é tudo aquilo que impede que o território seja um meio ambiente composto de formas a serem representadas ou de informações a serem coletadas (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 58). O rizoma sendo mapeado é algo como um “objeto-processo”. Como o próprio ato de caminhar, onde um passo segue o outro em um movimento contínuo, cada momento da pesquisa traz consigo o anterior e se prolonga nos momentos seguintes. O objeto-processo requer uma pesquisa igualmente processual e processualidade está presente em todos os momentos – na coleta, na análise, na discussão dos dados e também [...] na escrita dos textos. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 59).

O cartógrafo está no mesmo plano intensivo, engendrado no acontecimento, em uma atitude de “atenção concentrada e aberta” - em campo para estar junto e participar daquilo que está acontecendo, para conhecer com a cognição ampliada, isto é aberta para o plano dos afetos. Imerso no campo, o cartógrafo “produz dados”, os dados são produzidos juntos com o campo, em uma constante implicação mútua (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 61). Nessa prática, dá-se a escrita e/ou desenho de um diário de campo ou caderno de anotações. Podemos dizer que para a cartografia essas anotações colaboram na produção de dados de uma pesquisa e tem a função de transformar observações e frases captadas na experiência de campo em conhecimento e modos de fazer. Há transformação de experiência em conhecimento e de conhecimento em experiência, em uma circularidade aberta ao tempo que passa. Há coprodução. As observações anotadas são como um material para ter à mão, não apenas no sentido de poderem ser trazidos à consciência, mas no sentido de que se deve poder utilizá-los, logo que necessário, na ação. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 70).

84

Um diário de campo que contenha diálogos literais, impressões, experiências, uma espécie de: [...] método-pensamento, em que a experiência singular com os outros não se separe da experimentação com a própria escritura. A interpretação não deve se sobrepor à alteridade e à novidade trazida pelos eventos do campo. A experiência de campo, com todas as suas arestas e estranhezas deve trabalhar contra as tendências generalizantes, simplificadoras e redutoras. Não se trata de opor a empiria segura à teoria generalizante. Quando a interpretação sobrecodifica a experiência de campo não estamos frente a “teoria”, mas a um certo uso da teoria, a um certo uso dos conceitos, que geralmente acompanha uma maneira de viver o trabalho de campo. Quando a experiência de campo inspira a teoria, é possível conseguir uma inteligibilidade dos fenômenos que pouco tem de interpretação, é antes mais uma forma de experimentação, agora com o pensamento e a escritura. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 72, grifo dos autores).

E, assim, vai se constituindo uma determinada “política de dados do campo”, que se trata de não fazer dos participantes meros objetos da pesquisa ou da construção coletiva do conhecimento no qual eles estão implicados. Da mesma forma com a escrita, que deve conter as implicações da experiência do campo: a escrita deve incluir as contradições, os conflitos, os enigmas, os problemas em aberto. Não é necessário que as conclusões constituam “todos fechados e homogêneos”, tampouco que sejam meras confirmações de modelos teóricos preexistentes, pois a expansão do campo problemático dá-se tanto pelas conclusões como por suas inconclusões (BARROS; KASTRUP, 2009). Enfim, cartografar como acompanhar processos sendo transportado por afetos, afetos próprios de um território, de um projeto, de um modo de fazer, pois nessa modalidade de pesquisa o “sujeito” e o “objeto” fazem-se juntos, emergem de um plano afetivo do fazer com (BARROS; KASTRUP, 2009). Há um coletivo se fazendo com a pesquisa, há uma pesquisa se fazendo com o coletivo. A produção dos dados é processual e a processualidade se prolonga no momento da análise do material, que se faz também no tempo, com o tempo, em sintonia com o coletivo. Da mesma maneira, o texto que traz e faz circular os resultados da pesquisa é igualmente processual e coletivo, resultado dos muitos encontros. (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 73-74, grifos dos autores).

Estar implicado na atividade de produção de conhecimento que se dá na experiência. Uma experiência que emerge de uma experimentação, pois a experiência não diz respeito ao que já está dado como inelutável, mas é da ordem da emergência de alguma mudança. “[...] assim, se há dado, este se constitui na experiência e não pode ser concebido antes do ato de experimentar” (PASSOS; EIRADO, 2009, p.126, grifo dos autores). E, aqui, trata-se de considerar a “performatividade da experiência”, em que “sujeito” e “mundo” incorporem-se.

85

O cartógrafo acompanha essa emergência do si e do mundo na experiência. Para realizar sua tarefa não pode estar localizado na posição do observador distante, nem pode localizar seu objeto como coisa idêntica a si mesma. O cartógrafo lança-se na experiência, não estando imune a ela. Acompanha os processos de emergência, cuidando do que advém. (PASSOS; EIRADO, 2009, p. 129).

O cartógrafo habita um território existencial e, com ele, compõe-se por engajamento, cultivando uma disponibilidade à experiência, cultivando uma receptividade afetiva ao campo (ALVAREZ; PASSOS, 2003, p. 135). Essa postura que colocaremos como professorpesquisador da oficina “história nômade”: um fazer com o da oficina engendrando uma cartografia do “saber com”, em que aprendemos com os eventos à medida que os acompanhamos e reconhecemos neles suas singularidades. Compreende de modo encarnado que, mais importante que o evento em geral, é a singularidade deste ou daquele evento. Ao invés de controlá-los, os aprendizescartógrafos agenciam-se a eles, incluindo-se em sua paisagem, acompanhando os seus ritmos. Nesse sentido, os aprendizes-cartógrafos estão interessados em agir de acordo com esses diversos eventos, atentos às suas diferenças. O pesquisador se coloca em uma posição de atenção ao acontecimento. (ALVAREZ; PASSOS, 2003, p. 144).

Nesse engajamento de habitar o território, o cartógrafo é provocado e contagiado pelas experiências de habitação e abandona as regras fixas e experimenta a abertura de uma “[...] atenção flutuante, em uma espreita a avaliar e tomar decisões encarnadas na experiência concreta” (ALVAREZ; PASSOS, 2003, p. 147). É o aprender com, em que se acolhe e se é acolhido na diferença. “[...] a cartografia introduz o pesquisador em uma rotina singular que não separa teoria e prática, espaços de reflexão e de ação. Conhecer, agir e habitar um território não são mais experiências distantes umas das outras” (ALVAREZ; PASSOS, 2013, p. 149). Enfim, e acima de tudo, cartografia é uma questão de aprendizado da sensibilidade ao campo de forças, um aprendizado da atenção ao presente vivo que é suscitada pela experiência da pesquisa (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009, p. 201). 6.2 PLANEJANDO A OFICINA A oficina “história nômade” realizou-se em quinze tardes entre o final de outubro e o começo de dezembro de 2014 em uma escola pública em Itapema/SC. Passaram pelos movimentos da oficina nove estudantes dos oitavos e nonos anos do Ensino Fundamental. Por frequentarem suas séries regulares no turno da manhã, os jovens participaram da oficina no turno vespertino. Inicialmente a oficina seria realizada em outra escola, que oferecia os recursos que

86

considerávamos melhores e foi com aqueles espaços em mente que pensamos a oficina. Lá teríamos a disposição cerca de quinze netbooks e rede wireless, uma sala para uso exclusivo, além de pátio arborizado, refeitório com ótima circulação, um anfiteatro, condições onde o espaço seria potencialmente mais aberto, onde a própria arquitetura nos permitiria exercitar linhas de fuga das configurações espaço-temporais disciplinares. Infelizmente, apesar de a rede wireless cobrir todo o terreno da escola, a qualidade da internet não era satisfatória. Após testes, constatamos que era muito lenta e não daria conta de atividades onde houvessem acessos simultâneos. Após alguns meses de negociação, não conseguimos melhorar a qualidade de conexão. Nesse tempo, soubemos de outra escola da cidade que dispunha de cobertura wireless e a contatamos. Assim, chegamos até a escola onde realizamos nosso trabalho. A cobertura wireless era limitada ao espaço interior do prédio e não contava com computadores portáteis. A escola contava com uma biblioteca com três computadores e uma “sala informatizada” com dezessete computadores. Em conversa com a direção e a supervisão, eles solicitamente disponibilizaram o espaço e o tempo para os trabalhos. Ficou acertado a seleção de quinze estudantes de oitavos e nonos anos que se interessassem a frequentar, por vontade própria, a “história nômade”. Nos contatos iniciais, foi-nos oferecido o uso de um auditório de espaço amplo e até uma pequena sala, contígua à sala da supervisão. Além do mais, foi comentado que os estudantes possuíam dispositivos móveis como notebooks e tablets. Ficamos felizes com a acolhida e com a disponibilidade de internet, mas teríamos o desafio maior de buscar compor nossas linhas de fuga em configurações arquitetônicas mais fechadas, mais formatadas na concepção espaço-temporal da disciplinaridade. Os estudantes foram selecionados para a participação pela direção e pela supervisão. Nas palavras da diretora: “Eles adoram vir para a escola... aqui na escola temos várias atividades de contra-turno, como dança, esportes, coral, e fica difícil para estes frequentarem a oficina, já que os horários não permitem... temos também vários horários com aulas de recuperação e reforço... daí todos estes alunos sempre estão frequentando a escola... mas daí tem os alunos “bons” que não frequentam as aulas de reforço e não fazem nenhuma atividade de dança ou coral... eles sempre querem vir na escola mas não podem... daí vai ser bom esta atividade para os bons poderem frequentar a escola também... vamos entrar em contato com eles para eles virem na tua oficina”. Trabalhamos com um pequeno planejamento prévio para as atividades da oficina “história-nômade”: Em um primeiro momento, dar-se-iam os primeiros encontros da oficina, com os espaços e tempos, com o professor, com os estudantes, com a rede wireless da escola e

87

com a rede social diasporabr.com.br. Nesse primeiro momento, intentamos estabelecer boas relações, fazer o cadastro na rede social, apresentar os blogs de conteúdos e, especialmente, conversar e trocar ideias sobre nossas intenções com a oficina. Queríamos estabelecer relações de empatia, confiança e estímulo para exercitar o papel de professor-pesquisador que emite signos mobilizadores de sensibilidades e de pensamentos, e, também, do professorpesquisador animador dos hipertextos, procurando constituir relações e práticas que buscassem o estudante como singularidade. Para operacionalizar o início dos trabalhos e criar conexões dos estudantes com os materiais,

a

web,

os

espaços

e

os

hipertextos,

criamos

um

blog,

o

historianomade.wordpress.com e nele formulamos uma questão que é “pré-texto” para as atividades: “O que é diferença?”; ou, ainda: “Crie seu próprio conceito de diferença”. Essa não é propriamente uma atividade de aprendizagem como diferença, pois os estudantes não estão tomando posse do problema - trata-se apenas de um ponto de partida operacional da oficina. Não consideraremos suas “respostas” como “corretas” ou “erradas”; antes, as tomamos como pré-texto para que eles explorem o hipertexto e que possamos viabilizar a oficina de forma prática. O que nos interessa é permitir que os jovens componham seus próprios movimentos nos blogs, na rede social, nos movimentos da oficina de maneira geral, para que estabeleçamos relações possíveis para, daí sim, fazer rizoma com os saberes. Nesse nosso início de exercício, o que está em questão são quais composições são feitas e quais composições podem ser feitas e se elas são boas ou são más do ponto de vista da potência do agir, de acordo com os sentidos e vontades que fazem pensar e agir (SILVA, 2002). Aprender como conceber encontros, composições: o pensamento vai adquirir algo como uma busca por criar conceitos e traçar determinados planos, determinados caminhos de aprendizagem. Releva-se, então, que, em nossa perspectiva de tomar o aprender como esse encontro com signos, o acento não é na emissão dos signos (o ensinar) mas no encontro com os signos (o aprender), não importando necessariamente por quem ou pelo que eles tenham sido emitidos (GALLO, 2012). O que importa não é necessariamente o processo de controle, as medições dos processos de aprendizagem, mas o processo, o acontecimento, já que o aprendizado acontece, singularmente com cada um (GALLO, 2012). Assim, não colocamos a questão “o que é a diferença” buscando necessariamente a “resposta correta”, mas o fazemos para ensejar que o processo se inicie, buscando colocar os estudantes em contato com nosso rizoma. Por isso, que a ênfase se dá no fazer com o outro e não no fazer como o outro, imitando o outro, ou respondendo uma questão ou resolvendo um problema “corretamente”.

88

[...] nada aprendemos com aquele que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem “faça comigo” e que, em vez de nos propor gestos a serem reproduzidos, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo. (DELEUZE, 2003, p. 48).

Nesse aprender como acontecimento há uma demanda por presença, por relação, tratase de entrar em contato, em sintonia com os signos, deixar-se afetar por eles, na mesma maneira em que os afeta e produz outras afecções (GALLO, 2012). O aprender implica em si a heterogeneidade como relação, aprender é encontrar-se com o outro, com o diferente, é invenção de novas possibilidades: queremos o aprender como o avesso da recognição modelizante. Os signos, como problemas, como ponto de relacionamento, sempre vão pedir uma resposta, mas esta é sempre inovadora, singular. Por conta dessa relação sempre heterogênea é que, em uma aula, acontecem sempre múltiplas aprendizagens (GALLO, 2012). Nessa relação complexa, múltipla, heterogênea, não estamos lidando tão somente com movimentos de ideias, mas também com movimentos da sensibilidade, do corpo, da presença. Esse aprender como sensível é o “aprender como acontecimento”, como presença espaçotemporal, como processo, como passagem, algo que se dá na ordem do sensível mais do que simplesmente como algo do inteligível. A questão, enfim, é se como professores somos capazes de reconhecer e valorizar essas diferenças ou se permaneceremos no papel de trazer todos para o mesmo lugar sempre, mesmificando, reproduzindo, homogeneizando (GALLO, 2012). Em um segundo momento, temos propriamente o rizoma, nosso movimento mais importante - pretendemos aqui que o estudante já esteja ativo, que tome para si questões em condições ativas, que tenha seu pensamento mobilizado e que faça rizoma na oficina “história nômade”. Buscamos a construção, individualmente ou em grupos, de movimentos de rizoma que conectem pesquisas e produções que partirão das singularidades dos estudantes (diagrama 13). Buscamos o fazer com os estudantes e o professor-pesquisador movimentos de composição de trabalhos, mobilizados pelos múltiplos signos emitidos em nossos movimentos, discussões, encontros, desencontros na “história nômade” e fora dela, em uma “aprendizagem que segue a via dos encontros e dos amores [...]” (SCHÉRER, 2005, p. 1.191). Que

estes

encontros

com

os

signos

possibilitem

transversalizações

e

hipertextualidades agenciadas individualmente, em grupos ou ainda no fazer com o professorpesquisador animador dos saberes-fluxo, que acompanha e gera aprendizagens como diferença e ali produz novos hipertextos. Esperamos fazer rizoma nos encontros, nos agenciamentos da oficina, podendo esse rizoma ter uma temática ou várias, pois suas

89

movimentações e desdobramentos queremos, de fato, que sejam de antemão imprevisíveis, se dando na imanência de nossas práticas, tendo em vista a busca por singularidades, quando o grupo adquire a liberdade de criar e viver seus processos. É esse o momento mais precioso e que mais esperamos cartografar, pois é aqui que buscaremos delinear o rizoma como tal.

Diagrama 13 - Rizoma de aprendizagens como diferença

Fonte: Elaborado pelo autor.

Nossos critérios são a busca pelo aprendizado como diferença, por singularidades, saberes em transversalidade e hipertextualidade a partir das sensibilidades e dos encontros que façam rizoma, que coloquem em jogo e conectem multiplicidades. As atividades, intentamos, resultarão na produção de hipertextos com as ideias e conexões de saberes e links produzidos individualmente ou em grupos e feitos em conjunto com o professor-pesquisador. 6.3 NOMADIZANDO SEGMENTARIDADES, A ÁGUA FLUINDO ENTRE AS PEDRAS Tínhamos acertado a presença de quinze estudantes, com dispositivos de acesso à web. Após alguns contratempos e desencontros de datas, começamos a realizar os trabalhos no dia 29 de outubro de 2014, logo no começo da tarde. Os quinze estudantes não estavam presentes, “houve um problema de comunicação”, “mas eu vou ligar pra eles e eles já vem”, disse a supervisora escolar. “Sem problemas”, aguardei na biblioteca a chegada do grupo. Apareceram depois de uma hora duas estudantes, “ME” e “A”.

90

Acreditava que viriam mais pessoas, mas com duas estudantes já era possível iniciar, pois poderíamos trabalhar sem necessariamente formar uma “turma”. Perguntei se elas tinham algum dispositivo de acesso à internet, “temos celular”. Sem problemas, comentei que se tivessem notebook ou tablet seria bom. “ME” falou que sua mãe tinha um notebook e “A” comentou de um tablet. Mas nunca trouxeram, sem problemas. Já havia reservado um datashow no auditório pois pretendia apresentar o projeto, a rede social, os blogs por lá, imaginando a presença de quinze estudantes, mas tive que mudar de planos. Estávamos com a biblioteca disponível e ela possui três computadores. Instalamo-nos por lá. Mostrei a elas a rede social diasporabr, elas se cadastraram e fizeram algumas postagens8 de teste. Chamou a atenção como aprenderam rápido a lidar com a ferramenta. No período de testes anterior à oficina, cheguei a recear que os estudantes fossem encontrar alguma dificuldade em utilizar a diasporabr. Mostrei as possibilidades de postagem, o modo de agrupar as postagens usando o marcador “#historianomade”, mostrei as opções de postar imagem, as mensagens em privado, os recursos para o uso da rede social. O que aconteceu com “ME” e “A” depois se confirmou com os outros estudantes na oficina: eles, com seus treze a quinze anos, possuem fluência no uso do computador. É espontâneo para eles a navegação na web. Logo abriram uma janela do Google e começaram a navegar, buscando ideias para postar. Ao realizar as pesquisas, mostrei a elas a possibilidade de, além do texto, poder subir uma imagem (fazer upload), mostrei como salvar uma imagem da web no computador e depois postá-la na rede social. Aprenderam rapidamente, trocamos mensagens de teste. “ME” fez uma postagem na rede social de uma imagem do personagem Homer Simpson com camiseta preta da banda Guns N’Roses e escreveu: “Música inspira alguma coisa?”. Respondi, no campo dos comentários: “Eu acho a música uma arte muitíssimo inspiradora”. Em seguida, “ME” postou uma imagem de sua banda favorita: “Música de meu gosto, além de ser pop é uma mistura de pop e rock”. “A” comentou: “R5”, comentei: “Quem são? Não conheço... posta uma música deles, do youtube”. “ME” respondeu “Tá!”, mas não postou, como estávamos próximos, abriu uma janela do Youtube e colocou para tocar. Aliás essa foi uma prática comum, colocar música durante as atividades, sempre que possível. “A”, que estava no Google, postou uma imagem com os arcos olímpicos, uma estátua clássica de atleta grego lançando disco e uma representação de uma maratona. Ela comentou a imagem: “Grécia Antiga”. Comentei: “Qual é o teu esporte favorito?”; ela respondeu:“Vôlei”.

8

Sempre que nos referirmos a postagens dos estudantes, são postagens na rede social diasporabr.

91

Satisfeitos com as interações, resolvi mostrar a elas o blog com o tag cloud. Sentado ao seu lado, cada uma em frente a um computador, pedi que digitassem o endereço historianomade.blogspot.com.br e lhes mostrei o blog, e descrevi seu funcionamento. Falei que ele é um material para a consulta dos estudantes, com vários temas que poderiam ser encontrados e explorados rolando as páginas ou consultando a nuvem de temas, o tag cloud. Também mostrei o blog historianomade.wordpress.com, que tinha as instruções para a atividade da criação de um conceito de “diferença” e um vídeo9. Nesse momento, sem querer, “ME” bateu no roteador e ficamos sem internet. Como alternativa pensamos em usar seus aparelhos de celular e meu netbook, mas não tínhamos a senha do wireless, “ME” foi até a supervisora e trouxe a senha, mas não deu certo, a senha não conectava. Fizemos algumas tentativas, a supervisora, solícita, apareceu mas não pôde nos ajudar. Optamos, então, em nos dirigir à “sala de informática”. Lá chegando, o espaço não estava disponível “Só estará disponível nas duas últimas aulas... depois do recreio”. Já estava quase na hora, esperamos um pouco e fomos para a “sala de informática”. Chegando na sala, a responsável nos indicou cinco máquinas que “estão funcionando” - de dezessete computadores, foi-nos indicado cinco que estavam funcionando. Daí elas se instalaram uma ao lado da outra, em dois computadores. Mostrei-lhes o blog no wordpress com a atividade da “diferença”. Ali, mostrei-lhes o vídeo. As máquinas não tinham caixas de som e uma das meninas falou que a “sala de informática” tinha fones de ouvido, pediu para a responsável que lhe entregou dois pares. Ao tentar conectá-los, vimos que as máquinas tinham entrada para fone de ouvido na parte de trás, viramos o gabinete, inserimos e ainda assim não funcionou o som. “Tem que ver qual que está funcionando”, disse a responsável. E assim fomos tentando até conseguirmos uma máquina. “A” e “ME” revezaram-se para assistir ao vídeo em uma máquina e exploravam o blog no wordpress em uma máquina ao lado. O vídeo rodou razoavelmente, pois, além de tudo, outra dificuldade foi a qualidade da internet, que se mostrou instável: às vezes ficava muito lenta, às vezes simplesmente parava para depois voltar. 9 A atividade Crie seu próprio conceito de “diferença”, apesar de o título valer-se de duas expressões importantes dentro da filosofia da diferença, “diferença” e “conceito” não se dão no sentido apresentado por Deleuze e Guattari. Trata-se antes de uma problematização sobre a diversidade. Uma atividade de pré-texto para a atividade principal de nossa oficina, uma oportunidade para vivenciarmos a posse das ferramentas, dos computadores, dos dispositivos móveis, da conexão de internet, da web, da rede social, dos blogs, das relações entre nós, entre os espaços. O vídeo “Diferença” trata de diferenças entre pessoas e diferenças entre povos pela história sob o ponto de vista da diversidade: diferenças entre o colonizador europeu e o nativo americano, entre o latifundiário e o escravo africano no Brasil, entre nazistas e judeus, ciganos e homossexuais na Segunda Guerra. Problematizando essas diferenças como atitudes etnocêntricas, colonizadoras, conforme Leach (1989), que coloca a ideia de que não existem culturas melhores nem culturas piores, apenas culturas diferentes.

92

Elas trabalhavam sozinhas. Queria observar como se davam no exercício de exploração do hipertexto, do vídeo e na interpretação do texto onde propomos a atividade “Crie seu próprio conceito de diferença”. Elas assistiram ao vídeo, leram as instruções da atividade. “ME” foi direto para o Google pesquisar e foi postar o resultado no diasporabr: uma imagem de um personagem “smiley” pensativo entre dois pontos de interrogação com a legenda “O que é a diferença?”. A partir de pesquisa no Google, ela postou na rede social, também, imagens de um braço com uma orelha implantada e uma montagem fotográfica engraçada com uma pessoa com um par de orelhas enorme, onde ela escreveu: “Diferença Parte 1. Todos nós somos iguais, não por sermos pessoas ou seres humanos, somos iguais tanto por dentro como por fora (só se você tiver alguma doença de multiplicação)”. Apesar de o texto parecer confuso, entendi seu senso de humor. Ao ver a postagem, demos risada e ela ficou à vontade para continuar fazendo suas explorações. Figura 4 - Postagem de “ME”

Fonte: Rede social diasporabr.

93

Prosseguindo, “ME” postou (figura 4) uma imagem onde duas mãos, uma de pessoa “branca” e outra de pessoa “negra” formavam o contorno de um coração que abraçavam um planeta terra que brotava como se fosse planta, como se fosse algo para ser cuidado por todos, negros e brancos, e escreveu “Diferença parte 2. Somos diferentes por morar em cidades ou países diferentes, não somos diferentes por termos classes diferentes (rico e pobre), nem mesmo por cor e raça nem mesmo pelo poder!” Figura 5 - Postagem de “ME”

Fonte: Rede social diasporabr.

“A” estava se adaptando às atividades. Ela postou uma foto de duas crianças abraçadas uma menina loira e um menino negro, com a legenda “Somos todos iguais não importa a cor ou a religião” e continuou explorando a partir do Google. Com suas postagens, pude perceber que tanto “A” quanto “ME” problematizavam a questão da diversidade colocada pelo vídeo, expressando a necessidade de respeito, mas colocavam suas opiniões passando por caminhos diferentes, por percursos de hipertexto que seguiam suas singularidades. Não havia uma “resposta correta” cobrada pelo professor-pesquisador, mas sim uma busca pelo processo, o que estava se delineando de uma maneira bem interessante. Em seguida “ME” encontrou, nas suas explorações, uma página com o título “21 coisas que as pessoas criativas fazem diferentes das outras. Se você é criativo entenderá a

94

maioria”, ficamos lendo o texto, pensando e nos divertindo ao nos identificarmos ou não com características como “eles sonham o tempo inteiro” e outras características. Daí comentei com “ME” que “achei bacana” ela ter encontrado essa página e pedi para que ela postasse no diasporabr. “ME” é uma menina que se mostra espirituosa, faz comentários inteligentes, é leve e divertida. Está muito à vontade, gosta de trabalhar ouvindo música nos fones de ouvido de seu celular e demonstrou ser muito ativa nas postagens, ativa em buscar no Google, interessada. Mostrou seu senso de humor, irreverência e desprendimento naquela postagem sobre a orelha - “Todos nós somos iguais, não por sermos pessoas ou seres humanos, somos iguais tanto por dentro como por fora (só se você tiver alguma doença de multiplicação)” ao ver a inusitada imagem de uma experiência de implante de uma orelha ao antebraço nas imagens do Google, logo fez piada sobre a orelha que “se multiplicou” no braço e sobre as orelhas gigantes e caricatas. Ao ater-se sobre a página das “21 coisas que as pessoas criativas fazem diferentes das outras”, levou-me a pensar que pareceu ter sido mobilizada por aspectos criativos... enfim, algum “signo da criatividade” levou-lhe a explorar o material, que acabou gerando uma leitura coletiva com o professor-pesquisador, rendendo um encontro de risadas e pensamento. Como estava aberto à essa composição de desejo colocada pelo pensamento mobilizado por um signo, achei muito positiva essa bifurcação criada por “ME”: sair da pesquisa sobre “diferença” e ler e, depois, postar sobre “criatividade” não se trata de “falta de atenção”, “desperdício de tempo”, “enrolação”, ou alguma outra classificação que poderia ser produzida se estivéssemos olhando as coisas com “olhos disciplinares ou de controle”... pelo contrário. São movimentos como esses que nos parecem próximos da aprendizagem, da aprendizagem como diferença, onde signos compõem com o pensamento, em um movimento de desejo que não é previsto e que tampouco buscamos controlar, mas, antes, buscamos estimular, incentivar... o aprendizado na felicidade do acaso dos encontros. Essa foi a nossa primeira tarde na oficina. Muitos improvisos devido à falta de condições: tinha me programado para receber quinze jovens, vieram duas, achei que teriam seus próprios dispositivos, mas tinham apenas o celular, que serviu em momentos posteriores da oficina. Devido ao tamanho da tela, o celular não é o ideal para pesquisas ou leituras, no que as próprias meninas concordaram. Também tivemos dificuldades com o acesso à rede wireless, ficamos sem internet na biblioteca, internet instável e tivemos bastante trabalho para encontrar as poucas máquinas que estavam funcionando na “sala informatizada”. A sala informatizada era ocupada, volta e meia, por algum professor e eventuais estudantes, assim como acontecia com os computadores da biblioteca. Quando tentamos na primeira vez usar o espaço, lá estava uma turma em aula. Depois fiquei pensativo sobre a

95

instabilidade da internet, as desatualizações de software, especialmente navegadores que não suportam sites mais modernos, o diasporabr inclusive. A própria responsável pela sala de informática em um determinado momento comentou das dificuldades. Contudo, nossa postura de professor-pesquisador foi a de buscar sempre fluir, inclusive, por entre essas dificuldades de espaço, de qualidade de internet, de computadores defasados. Fluir e buscar fazer acontecer a oficina junto aos estudantes, fluir como água. Fluir como água entre as pedras, não se deixar represar, buscar maneiras de fluir. Fluir não só na busca por espaços e condições para a oficina, mas também fluir como professor-pesquisador. Antes de mais nada, tomando os jovens sempre em sua potência, buscando sempre o acontecimento de sua diferença. Interagir com espontaneidade, sem julgamentos, sem vontade de avaliação, de classificação. Nunca buscando remeter o processo a algo exterior (avaliação, passar de ano, conceitos de desenvolvimento, etc.), pois, se tomarmos as crianças já com uma série de pressupostos homogeneizantes e limitantes, já transformamos a fluidez do rizoma em algum esquema modelizante. Assim fomos abrindo mão de segmentaridades disciplinares que poderiam configurar nosso olhar em um sentido de comparar de acordo com um denominador comum. Por exemplo, “ME” e “A” interagiam comigo e, especialmente, com os hipertextos, de maneira diferente, cada qual com ritmos próprios. Sem problemas. De minha parte, deixava sempre que elas experimentassem a melhor maneira, buscando que ficassem à vontade para compor seus movimentos. Nunca passou por minha cabeça julgar seus gostos musicais, sua “cultura”, avaliar sua “origem social”. Nunca tomar o estudante como alguém que tem um passado de “fracasso” (do qual ela deve se envergonhar) e que desenha já um futuro também “fracassado” (que o castiga) (GALLO, 2012, p. 7). Tampouco ver o estudante como alguém a priori incapaz, como portador de uma cultura inferior, que deve ser ajudado pela escola impreterivelmente, pois não conseguirá fazê-lo de outra forma, pois isso já seria pressupor a necessidade de homogeneização como fator único, como única possibilidade. Nossa perspectiva aponta para a necessidade de deixar de lado esse tipo de exigência modelizante, pois o estudante vai aprender quando se sentir livre para viver a sua própria experiência (GALLO, 2012, p. 7). Essa vivência da própria experiência foi se dando na exploração dos hipertextos, nas postagens, nas leituras sempre como construção. Experimentação de novas ideias e deslocamentos e não propriamente a compreensão e operacionalização de seus estatutos (GRISOTTO, 2012, p. 181). Aprendizagem do pensamento se servindo menos do exercício de verdades comuns a todos do que relevando e investindo na multiplicidade de abordagens e nas

96

criações, ensejando, dessa forma, propostas inusitadas, que libertem as forças do pensamento, pois ensinar é sempre possível, mas a aprendizagem é intransferível e só acontece se o estudante tomar o que se ensina para si e o que foi ensinado já se torna outra coisa (GRISOTTO, 2012, p. 183-185). Assim, o que esperava das estudantes é que elas intervissem por meio da criação. E aqui tomamos a criação não necessariamente como uma grande ideia inédita, ou uma grande obra de arte, por exemplo. Cada postagem na rede social tomamos como uma criação, pois os signos aos quais o estudante se submete, seu desejo, as singularidades em relação à sua escolha lhe são únicos e suas construções conceituais sempre o serão segundo a inserção de aspectos peculiares: a cada refluxo do pensamento se dá uma nova possibilidade subjacente que subentende o próprio ato de criar (GRISOTTO, 2012, p. 185). Assim, nossos encontros vão se dando como invenção. O professor-pesquisador vai dar espaço à singularidade dos estudantes, possibilitando o surgimento de algo inesperado, estabelecendo relações inéditas entre o conhecimento e as pessoas, e os conhecimentos são “pré-textos” para novas criações (GRISOTTO, 2012). Em um rizoma múltiplas podem ser as entradas para a prática do pensamento, e a questão é dar condições para que se fortaleça e impulsione a capacidade criativa. Na segunda tarde da oficina, compareceram “A” e os novos estudantes “MM”, “LU” e “LE”. “ME” não pôde vir, tinha avisado no encontro anterior. A primeira coisa que notei é que não vieram os quinze estudantes, mas, no final das contas, achei isso bom, pois a escola não ofereceria estrutura física, internet e computadores para um grupo maior. A partir deste encontro, comecei a achar razoável o fato de estarmos em poucas pessoas, pois ficou mais fácil de fluir pelas dificuldades que encontrávamos. Eu havia reservado a sala da informática para nosso grupo. Encontrei os estudantes na frente da escola e fomos juntos para lá. “MM” trouxe um notebook, “LU” e “LE” trouxeram seus tablets. Tentaram conectar seus dispositivos na rede wireless, o que levou um bom tempo de tentativas fracassadas. Após conectado, outro problema: a internet estava muito lenta. Além do mais, a sala, que estávamos dividindo com a responsável e mais duas professoras, estava muito quente. A responsável não ligava o ar pois ele estava com o filtro de ar sujo: “Está sujo, se eu ligar vai encher de pó aqui... eu já falei pro ‘X’ vir limpar hoje de manhã e até agora ele não veio... eu não vou ligar, eu vou deixar assim até ele chegar...”. O calor, a falta de conexão wireless de qualidade me fez lembrar da biblioteca, talvez por lá as coisas fluíssem melhor. Convidei os estudantes e fomos para lá. Chegando lá, pudemos ligar o ar, deixando o ambiente agradável. No entanto, os três

97

computadores ainda estavam sem conexão, possivelmente, desde o último encontro, dois dias antes. Fiquei decepcionado e receoso dos estudantes afastarem-se por esta nossa dificuldade de usar a internet, além da falta de espaço adequado. A biblioteca, mais uma vez, estava a nossa disposição, não precisando dividir seu espaço com outras pessoas, o que nos deu mais tranquilidade. Resolvi conversar com eles, falar dos objetivos da oficina. Entre outras coisas falei que o projeto não era “meu”, era “nosso”, pois estávamos juntos buscando criar maneiras diferentes de aprender. Comentei que, geralmente, nas “aulas normais”, as pessoas tinham de aprender todas juntas, ao mesmo tempo, um mesmo assunto e do mesmo jeito e que, com a nossa oficina, nós estávamos tentando fazer com que as pessoas aprendessem cada uma no seu ritmo, de acordo com seus gostos, pois cada pessoa tem a sua maneira própria de aprender, nenhuma pessoa é igual a outra. Achei interessante a atenção deles, o interesse e, especialmente, o brilho nos olhos quando falava que as pessoas podem aprender cada uma à sua maneira. Senti ali uma conexão deles com a proposta e, também, uma certa conexão nossa como grupo em buscar meios de fazer a oficina acontecer. Tentamos mais uma vez conectar os dispositivos, mas sem sucesso. “LU” comentou que “a internet às vezes falha, e tem lugares que pega melhor...”. Resolvemos sair da sala e buscar pontos no prédio onde talvez a conexão fosse melhor. Então notamos que a menos de três metros da porta da biblioteca havia um ponto de wireless, mas seria difícil ficarmos por ali, o espaço não era adequado pois era uma passagem. Até me ocorreu em improvisar ali mesmo umas mesas. Daí alguém comentou da escada: no outro lado do prédio, na descida para a sala de informática havia uma escadaria onde havia um outro ponto. Fomos até lá. Sentados em uma escadaria com menos de três metros de largura, conseguimos uma conexão de internet bem fraca. O vídeo no Youtube demorou para carregar, o tablet de “LU” tinha o som bem fraco e o vídeo ficou praticamente inaudível. O som no tablet do “LE” era um pouco melhor, mas ainda não foi suficiente o volume. “MM” lembrou que tinha fones de ouvido e assistiu ao vídeo em seu celular, depois emprestou-os ao “LU” que assistiu de seu tablet. Já eram três da tarde e “MM” teve de sair para um compromisso, que já havia comentado comigo desde o começo da tarde. Fomos tentar novamente a sala de informática. Fomos “A”, “LU”, “LE” e eu até a sala de informática. O espaço estava desocupado, e os estudantes foram procurando algum computador que estivesse funcionando. Em alguns computadores, a internet estava funcionando, mas o navegador rodava Youtube, mas não funcionava o conector dos fones de ouvido. Em algumas máquinas, era impossível entrar no diasporabr pois o menu para login não carregava, dada a desatualização do navegador.

98

Aconteceu também em alguns navegadores do tag cloud não carregar. Assim, íamos de máquina em máquina até que, finalmente, os três estudantes conseguissem fazer os trabalhos. Para assistir vídeos, eles ainda se revezaram no uso do fone de ouvido. Depois de uns vinte minutos, conseguimos começar a trabalhar com a atividade do conceito de diferença. Eles ficaram sentados e eu, por vezes, me sentava próximo para dar instruções ou ajudar com problemas de funcionamento ou, ainda, para acompanhar e orientar nas postagens: “Olha só... não posta direto tá, primeiro faz um rascunho no word, pra gente dar uma olhada e ver se não precisa corrigir alguma coisinha, tá bom?”. Eles faziam alguns erros de ortografia e também, por vezes, a concordância era confusa e daí me chamavam para ajudar, mas nem sempre chamavam, por isso algumas postagens estão com erros de português. Descobrimos, durante o uso, que a diasporabr não oferece o recurso de edição da postagem já feita, daí relevamos pequenos erros, mas pedia sempre que fizéssemos uma revisão antes de postar. No geral, os estudantes ficavam explorando e postando (figura 4). Eu os deixava à vontade, acompanhava de longe e volta e meia me aproximava para ver como eles trabalhavam, buscando sentir o processo. Sempre falava buscando empatia, “faz de conta que eu não estou aqui... pode continuar aí... é que eu quero ver a maneira que vocês trabalham, a maneira que vocês estão fazendo...”, quando interagia com eles e resolvia algum problema, corrigia algum texto ou conversava sobre algum assunto que estavam explorando, ou dava dicas, muitas vezes filmava a tela do computador com meu tablet. No começo, também comentava “isso é pra eu ter de material para escrever depois... eu não filmo a gente, eu filmo a tela pra gravar nosso trabalho, tá?”. Eles não se importavam e entendiam meu processo. Sentia que, quando finalmente conseguíamos trabalhar, eles estavam à vontade, exploravam com gosto, interagiam com naturalidade. Era nítida a leveza da composição entre desejo e pensamento que se delineava nos encontros, os estudantes faziam com gosto.

99

Figura 6 - Estudante explorando hipertexto

Fonte: Acervo do autor.

Estava me colocando na posição do professor que não é o “portador do saber”, mas que gera processos de aprendizagem, um animador do hipertexto. Eu não estava me colocando como disciplinador, mas muito mais próximo de um professor animador dos saberes hipertextuais em fluxo, que, junto aos estudantes, vai mobilizando aquilo que Lévy (1998, p. 4) chama de “[...] novas formas de pensar e de conviver estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática”. Percebia um processo acontecendo, uma certa mutação nas segmentaridades disciplinares se desenhando. Durante a pesquisa, estávamos buscando delinear esses processos. Eu pedia a todos que fossem postando suas ideias como maneira de registro, pois eu não estava preocupado com o resultado final propriamente, não queria pedir-lhes um “produto” ou uma “avaliação final” ou “conclusão final”. Tomando sempre as postagens como movimentos de criação, queria compor o processo, o fazer-se fazendo, as intensidades que iam se colocando... assim as postagens são processo, são os caminhos de cada estudante registrados no hipertexto. “A” que já havia visto o vídeo e já estava pensando sobre o conceito de diferença e postando suas ideias, continuou suas explorações. Postou uma imagem de três jovens, um branco, um negro e um asiático e escreveu: “Não importa se somos brancos, negros ou pardos porque somos todos seres humanos”. Adiante postou uma imagem estilizada de pessoas de mãos dadas rodeando o planeta Terra e colocou: “Vivemos em um único planeta com diversas culturas e idiomas”. “LU” me chamava a atenção por ler mais, não passava rapidamente sobre os blogs, tinha a atitude de olhar com calma, de ler, de ponderar em sua exploração. Em um determinado momento, perguntei-lhe se estava tudo funcionando e aproveitei para perguntar o

100

que estava fazendo, se já tinha postado: “Estou me aprofundando”, respondeu. Daí lhe sugeri o tag cloud. Ele explorou com calma até encontrar um link com um vídeo chamado “Diferença entre o Ocidente e o Oriente”, um vídeo com cerca de uma hora e meia de duração e com uma linguagem de documentário. Ele colocou os fones de ouvido e foi assistir. Chamou-me a atenção seu ritmo concentrado, introspectivo. A primeira postagem (figura 6) de “LE” na rede social foi de um “meme10”: uma bela foto focando duas mãos juntas, sujas de terra, de agricultor ou jardineiro, que seguram um punhado de terra do qual brota uma planta, com a mensagem: “Todos querem o perfume das flores, mas poucos sujam as suas mãos para cultivá-las. Augusto Cury”. Sua postagem recebeu cinco curtidas e um compartilhamento durante a oficina, foi uma das que mais “fez sucesso”. Figura 7 - Postagem de “LE”

Fonte: Rede social diasporabr.

A próxima postagem de “LE” foi uma foto de sete jovens adultos de diferentes etnias, dispostos lado a lado e nela escreveu como legenda: “somos todos iguais mas há diferença na

10 “Na sua forma mais básica, um Meme de Internet é simplesmente uma ideia que é propagada através da World Wide Web. Esta ideia pode assumir a forma de um hiperlink, vídeo, imagem, website, hashtag, ou mesmo apenas uma palavra ou frase. Este meme pode se espalhar de pessoa para pessoa através das redes sociais, blogs, e-mail direto, fontes de notícias e outros serviços baseados na web tornando-se geralmente viral.” Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2014.

101

cultura, na vida e etc”. Durante suas explorações, chamou-lhe a atenção uma postagem do tag cloud: “26 lugares de tirar o fôlego para visitar na América Latina”, uma matéria com belas fotos de paisagens e com breves textos tratando dos lugares como “destinos turísticos”. “LE” se sentiu atraído pela matéria, ficou um bom tempo olhando para as fotos das paisagens, que eram exuberantes. Em nossa conversa, notei que ele não parou naquele material pensando em “diferença” propriamente. Algo diferente estava acontecendo... Assim como ocorreu com a postagem de “ME”, “21 coisas que as pessoas criativas fazem diferentes das outras. Se você é criativo entenderá a maioria”... Algo passava por ali... Cada um à sua maneira, “LE” e “ME” compunham bifurcações, tais movimentos se davam como algo que lhes emitisse algum signo... que levasse seu desejo a explorar alguma coisa que seguia por um caminho diferente da atividade proposta inicialmente, algo que parecia partir de um impulso próprio. Assim, como estava aberto às singularidades dos estudantes, deixei que ele continuasse sua exploração, não tomando a sua atitude como um “erro” de interpretação de nosso “tema gerador” diversidade. Ao contrário, fiquei feliz em perceber que estava permitindo ao estudante fazer uma composição de signo e pensamento onde seu desejo de aprender não seria segmentarizado em uma postura disciplinar do professor. São momentos como estes que nos interessam, pois eles promovem as aberturas, são eles é que delineiam as intensidades de um aprendizado como diferença, pois partem de um contato com o signo e não de uma conformação recognitiva, mostram que esses nossos caminhos de aprendizagem não são lineares e que os estudantes podem, durante essa exploração aberta, serem afetados por coisas que lhes interessam e que ali vão fazer um caminho diferente. Em sua postagem sobre as paisagens da América Latina, “LE” anexou uma bela foto de uma cachoeira da Floresta Amazônica com o texto: “Não precisa sair da América Latina pra tirar férias, pois muitas pessoas acham que nos outros países tem belos lugares e que é diferente do Brasil. Mas não é verdade pois o nosso continente tem belas paisagens”. No campo dos comentários, pedi para que ele postasse o endereço da matéria, pedia sempre a todos que, ao postarem alguma imagem ou texto tirados de algum link, que postassem nos comentários o seu endereço, sempre buscando ampliar as conexões de hipertexto. Enquanto olhávamos juntos as fotos e conversávamos sobre os lugares, “LE” comentou que mora em um sítio e trabalha com animais, corta trato, essas coisas. Daí me veio a conexão com suas postagens, o “meme” das mãos de terra de onde brota uma planta, a opção pelo link das paisagens... ele me parece estar atento aos signos da terra, das plantas, da paisagem, do trabalho no campo e, como estava à vontade, colocou-se em devir com esses signos que lhe dizem tanto...

102

“MM” fez sua postagem de casa: uma imagem de uma caricatura onde várias pessoas de diversas etnias e religiões estão de mãos dadas formando uma roda, abaixo da imagem escreveu: “Todos nós somos diferentes, independente da cor ou religião! Ser diferente é a arte de ser humano, quando nós aceitamos a diferença das outras pessoas, não só fazemos bem, mas nos sentimos bem!”. Postagem que mostra sua sensibilidade em relação à diversidade. O post feito “fora” do horário da oficina, ou melhor, uma postagem utilizando as possibilidades do hipertexto, reconfigurando tempo e espaço nas práticas educativas: “MM” teve de sair mais cedo, foi ao seu compromisso e ao retornar para sua casa fez as explorações e criou sua postagem. Pude conferir, à noite, em minha casa, sua postagem. Com os movimentos da oficina, vamos tomando uma postura diante do conhecimento e suas possibilidades, de não se contentar com a recognição, mas buscar reapropriações criativas por meio de encontros sensíveis com os conhecimentos tomados como signos que vão mobilizar o pensamento para a diferença, para o singular. É nessa perspectiva que buscamos operacionalizar a história como “território transversal de saberes” em nossas oficinas: entender que, antes de haver uma linearidade no pensamento (em nosso caso, responder à uma questão “o que é diferença?”), o pensamento se dará como aquele que se espraia, constitui espaços, tipos, relevos, paisagens, cores, sonoridades, intensidades, modos. Muito mais elementos do sensível oferecendo o que pensar aos estudantes do que necessariamente conteúdos da razão a serem compreendidos e apreendidos (DELEUZE, 2003). Aqui, seguimos Foucault quando este trabalha com os acontecimentos passados: “[...] a questão não é propriamente trabalhar os conteúdos da história, mas trazer à tona seus embates e problemas, e se permitir envolver com eles mediante as questões da atualidade, do presente” (FOUCAULT, 2003, p. 191). É o sensível e não a recognição que vai propiciar este encontro com situações novas, possivelmente até então colocadas à margem, tornando-se este um espaço de problematização do pensamento muito mais do que seu desfecho (FOUCAULT, 2003). Nesses intensos dois primeiros dias de oficina, nesse nosso exercício de habitar um território existencial na busca de compor um “objeto-processo” de pesquisa, sentimos dinâmicas que nos mobilizaram o pensamento. Em primeiro lugar, uma leveza. Mesmo com todas as dificuldades estruturais, lidar com práticas escolares dessa maneira dá-se com leveza... leveza aliás que também sentimos em todos os estudantes, cada um à sua maneira. Essa leveza fez-nos pensar no movimento que estamos traçando, de “nomadizar as segmentaridades”, de sermos como água fluindo por entre as pedras. Estamos em um movimento de dissolver segmentaridades disciplinares: a figura do professor, a circulação nos

103

espaços e nos tempos, a relação com os saberes mobilizados em hipertexto, o desejo dos estudantes passando de outra maneira. Quando nosso rizoma delineou as segmentaridades do plano imanente da escola e da sociedade disciplinar em especial, falávamos da impossibilidade de se pensar em termos de sujeito e objeto, pois pensamos em termos de imanência a um campo coletivo de forças múltiplas que segmentariza e compõe aquilo que chamamos de sujeito e objeto. Assim, tratam-se

de

corpos

agenciados

em

multiplicidades,

atravessados

por

múltiplas

segmentaridades. E, especialmente no caso das práticas escolares, aquilo que tomaríamos como sujeito e objeto são antes agenciados nas segmentaridades disciplinares ou de controle. Assim, quando um professor, em um espaço escolar, levanta a voz em volume e imponência: “Silêncio turma, atenção na aula!”; ou, até quando afetuosa, a professora fala sobre a “importância da consciência social”, não se tratam de falas de sujeitos autônomos propriamente, mas de uma rede complexa de relações que falam ali com ele. A voz que comanda “silêncio!” não seria necessariamente ouvida se ela não estivesse agenciada aos poderes que constituem o espaço-tempo da sala de aula, não seria necessariamente obedecida se seus saberes não fossem autorizados e, especialmente, se não houvesse toda uma lógica produtiva que lhe dá validade: conhecimento transmitido, registrado, exercitado, avaliado, gerando boletim, aprovação ou reprovação, respaldo social... Certamente, nossas falas na oficina estavam em boa parte engendradas e autorizadas em uma rede de segmentaridades disciplinares, elas não se dissolveram totalmente. Mesmo porque a oficina estava acontecendo em grande parte no espaço da escola, espaço institucional e também a circulação dos desejos estava passando ainda por uma palavra de ordem “o que é a diferença?”. Mas havia sempre um trabalho de buscar “nomadizar” essa relação. Cuidar com o tom de voz, evitando volumes altos que seriam interpretados como comandos autoritários, cuidados ao tratar das relações ao ponto de buscar colocar-se como, no mínimo, um desviante dessa voz disciplinar. Colocar-se como alguém que busca uma nova voz, como alguém que busca mais uma composição de forças com os estudantes do que uma mediação de “verdades”, “modelos” ou de “conteúdos” a serem aprendidos... uma nova relação com aqueles jovens. Nova relação que se dá em um sentido de não avaliá-los disciplinarmente, não desconfiar ou subestimar suas inteligências, não enquadrá-los mentalmente em esquemas disciplinares, não rotulá-los, não tratá-los como alguém que está ali para aprender aquilo que você tem a ensinar. Mas tomar a atividade de resolução de problema “o que é a diferença” como apenas um pré-texto para o exercício do pensamento como diferença para compor nosso rizoma. Enfim, uma nova relação vai se criando, antes de mais nada, em uma busca de

104

nomadizar as tão presentes capturas disciplinares. O professor-pesquisador, ao buscar dissolver, a partir de sua ação, as segmentaridades disciplinares, busca antes de mais nada o encontro. Já não nos reconhecemos na necessidade de reprodução, “preciso passar o conteúdo”, na medição, “o Fulano está atrasado em relação ao resto da turma”, no controle de horários, faltas, chicletes, fones de ouvido, uniforme, etc. Tampouco na representação, “Cicrano é um exemplo de aluno! Dá até gosto!”, ou “seu conceito de diferença é nota dez!”. Não estávamos ali para produzir resultados disciplinares, mas para produzir intensidades, processos não numeráveis, mas que apontassem movimentos para um novo sentido... sentido de mutação dos arranjamentos. E a primeira mutação se produziu no próprio professor-pesquisador. Não estávamos “dando aula diferente”, inserindo o computador, a web, tampouco estávamos ali como um sujeito epistêmico universal neutro conhecendo um objeto por meio de um método segundo a imagem dogmática do pensamento. Estávamos antes de mais nada problematizando o contemporâneo ao problematizarmos as relações de força “professor disciplinar e seus agenciamentos”. E nessa militância de desfazer-se e refazer-se ao buscar conexão a outras superfícies, movimento de buscar traçar outras linhas nos encontros da oficina, em imanência, com os conceitos de nosso rizoma, estava sempre implicada uma leveza de buscar o processo nos encontros e não em resultados de nota, de lógicas majorantes. Implica em estar presente e disponível, mas não controlador ou até invasivo. De estar disposto a encontrar-se nos agenciamentos e não em classificar, não julgar segundo valores exteriores. Busca constante por desvencilhar-se desses agenciamentos de autoridade em nós e ouvir, permitir, sentir, compor na imanência dos encontros... e o sentimento disso é, antes de mais nada, a riqueza de uma grande leveza. Uma nomadização, transformação de si. Movimento que não sedentariza seu desejo nas segmentaridades do poder, que não quer ser um preposto do poder, mas que vai buscar mover-se em potência, buscar fazer linhas de fuga e compor outros territórios, nomadizar, fazer rizoma. E essa leveza em nós também é leveza nos estudantes, pois nas relações que estamos compondo o desejo vai passar por outras produções. Não passa por capturas de fluxo e regulação de circulações do tipo “produzir nota”, “fazer exame”, “ser alguém na vida”, “cidadania”, etc. Eles estão ali sem obrigação de frequência, sem avaliação por notas, sem exames, sem exercícios, sem cobranças da ordem do “saiba isto porque é importante...”. Houve sempre os nossos registros, a cartografia, mas ela se dá em outras direções, busca antes o devir, busca antes dar passagem para que nos tornemos outros. Assim o desejo vai se dando em rizoma: na composição dos hipertextos, no gosto pelo

105

uso da web, pelo gosto de passar uma tarde na oficina, pelas aberturas possibilitadas para além da disciplinaridade. Desejo que está produzindo movimentos outros que é processo de fluidez no acontecimento, que também se desembaraça, fazendo os jovens que estão ali agenciaremse em imanência com outras forças – e este é o processo que cartografamos: Sentimos e somos a leveza do fazer com. Aliás, tal impressão começou de modo paradoxal: diante da grande dificuldade e incerteza que foram os momentos iniciais da oficina. Deu-se quando verificamos que os recursos eram limitados, que teríamos de, como nômades, trilharmos o caminho ao caminhar: “não tem dispositivo móvel... vamos para a biblioteca... caiu a internet da biblioteca... vamos para a sala de informática... procurar computadores que estejam funcionando... internet instável... navegador desatualizado... fone de ouvido não funciona...”. Sempre tomamos a postura de fluir, no desejo de fazer a oficina acontecer, sabendo que todas as dificuldades também são dados dos processos que estão se desenhando. E o surpreendentemente positivo foi perceber a disposição dos estudantes em também fluir por entre os impeditivos. O fazer com se colocou antes mesmo de começarmos, ao procurarmos espaços, ao procurarmos algum computador que estivesse funcionando... compartilhar o computador... aguardar o outro usar na ausência de máquinas para todos... aguardar até que a biblioteca ou sala de informática ficasse disponível... foram movimentos que se desenvolveram até os momentos finais da oficina. Assim, fomos desmontando segmentaridades disciplinares e criando nossos próprios movimentos, algo novo, criando com nossos desejos na fluidez do acontecimento. Na relação com os saberes, nas dinâmicas da hipertextualidade, pudemos ver novos movimentos acontecendo. Os signos da web, os signos da própria palavra “diferença”, signos da criatividade, signos do humor, signos da terra, das paisagens, das plantas, signos dos bons encontros, signos de leveza. Signos que motivam o pensamento segundo um sentido e um valor imanentes, no acontecimento: algo estava acontecendo para além das palavras de ordem, criação de si no agenciamento com os saberes. Quando propomos alguma “atividade”, não buscamos um “significado” de diferença, o enunciado é antes um pré-texto... queremos antes viabilizar conexões entre os estudantes, entre os estudantes e os saberes, entre os estudantes e o professor. Não há de antemão nenhum saber em si como valor, mas sempre pré-textos para os encontros, pois o pensamento vem, como sentido e valor imanentes, mobilizado pelo encontro com o signo. Ou, ainda, como falava aos estudantes em uma conversa coletiva sobre a oficina: “Estamos começando com esta atividade de pensar sobre a diferença, mas eu não estou pedindo uma ‘resposta correta’... vocês vão postando as ideias que vocês vão tendo... se quiserem postem imagens

106

que mostrem suas ideias... vamos fazendo acontecer... quero que nós juntos vamos criando a maneira de acontecer a oficina... então fiquem à vontade... me interessa é que vocês tenham as suas próprias ideias, me interessa que vocês aprendam a pensar com a suas próprias ideias...”. Pensamento como exercício de singularidade, professor trabalhando em uma composição de forças com os estudantes, processo espontâneo, onde o estudante cria a si mesmo em seus próprios processos. “Pensar com suas próprias ideias” constituindo um território que não é a da produção de subjetividades segundo as maquinarias disciplinares e de controle e sua correlata imagem dogmática do pensamento. Ao valorizarmos a diferença no estudante, tomamo-la como singularidade. Assim nossas práticas escolares apontam para outros sentidos que não modelos que definem de modo unilateral a maneira de perceber o mundo (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Estaríamos apontando sim para linhas de fuga e buscas por novas maneiras de perceber o mundo. Mas isso não se daria em uma lógica modelizante, em que o professor se colocaria como portador de alguma “fórmula” para se “perceber o mundo de modo diferente”, criada de antemão e aplicada no estudante, em uma lógica que apenas reativaria a representação e sua tendência de igualar tudo por meio de categorias redutoras (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Não há modelo de rizoma! Trata-se de ensejar a diferença no estudante, a partir do estudante colocado em um campo coletivo de forças que o agencie como singularidade: nosso intento é antes permitir um agenciamento de singularidades desejantes (GUATTARI; ROLNIK, 2005) a partir do contato com signos que mobilizem a criação, a sensibilidade e o pensamento como diferença. Práticas escolares em que professor e estudantes busquem compor forças de modo ativo ao se abrir para processos de singularização. O que vai caracterizar um processo de singularização [...] é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder global, em nível do saber, em nível técnico, em nível das segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos. A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante. (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 55).

Assim estamos em um território aberto, para o qual não existem receitas nem programas. “[..] fazer vazar singularizações onde só há subjetivação. Não é um processo fácil, mas é apaixonante e desafiador” (GALLO, 2010, p. 241). Práticas escolares que colocam o pensar como mais importante do que o reconhecer, buscando que, em tal movimento, devires aconteçam e que a singularidade aprenda a se afirmar como tal.

107

Dessa forma, buscando desenhar nosso rizoma, o nosso fazer “com” em favor da multiplicidade e em oposição “à medida” foi começando a compor uma caminhada. Fomos formando uma espécie de corpo coletivo que não segue modelo preestabelecido, mas se dá em uma experimentação com contornos flexíveis: “varanda – biblioteca – escada – corredor – sala de informática – essa máquina não funciona – aquela funciona – postar no diasporabr – pesquisar no Google – dar a sua opinião – estar atento aos signos – encontros – fazer com – conversar – o tablet funciona aqui – ouvir música – rir – falar sério – criar sua singularidade nos acontecimentos...”. Um corpo coletivo de multiplicidades, com outro tipo de divisão de trabalho e que vai compondo uma certa consistência com o caminho que percorre ao trilhar, devir. Itinerantes, ambulantes, compondo mutações dos agenciamentos de desejo... água fluindo. 6.4 PENSANDO COM O HIPERTEXTO Já me ocorria, quando do planejamento da atividade do “conceito de diferença”, exibir um filme. O filme é sempre uma oportunidade interessante para pensar... Mas preferi deixar as atividades irem acontecendo para sentir a fluência da oficina. Durante contatos com os estudantes, mencionei minha vontade de exibir um filme, e eles se animaram muito com a ideia. Quando descrevia o filme que tinha em mente, eles já queriam saber “quando vamos assistir?”. O filme foi Escritores da Liberdade, de 2007. A temática da “diversidade” o atravessa e, por isso, pensava já em exibi-lo. Ele conta uma história real de uma professora nos EUA que vai trabalhar com estudantes em situação social delicada e que tem problemas em lidar com a diversidade/diferença por pertencerem a gangues rivais. O filme é relativamente atual, tem uma boa trilha sonora e uma narrativa bem fluida. A sinopse do filme: “Uma jovem e idealista professora chega à uma escola de um bairro pobre, que está corrompida pela agressividade e violência. Os alunos se mostram rebeldes e sem vontade de aprender, e há entre eles uma constante tensão racial. Assim, para fazer com que os alunos aprendam e também falem mais de suas complicadas vidas, a professora Gruwell (Hilary Swank) lança mão de métodos diferentes de ensino. Aos poucos, os alunos vão retomando a confiança em si mesmos, aceitando mais o conhecimento, e reconhecendo valores como a tolerância e o respeito ao próximo”11. Fiz a exibição do filme como parte das atividades do “conceito de diferença”. Queria

11 Sinopse extraída de . Acesso em: 10 dez. 2014.

108

que o filme fosse mais um elemento que os levasse a pensar, a criar postagens, fosse mais um emissor de signos que pudesse mobilizar pensamento. Na tarde da exibição nos encontramos em frente à escola no começo da tarde e subimos até o auditório onde montamos o projetor e a tela da escola e o conectamos ao meu netbook e às minhas caixas de som. Estavam presentes “ME”, “A”, “LE”, “LU”, “MM” e três novos estudantes “OE”, “GU” e “AL”. Assistimos ao filme com tranquilidade. Após a exibição, fiz uma apresentação do projeto, já que muitos não participaram da conversa anterior. Minha fala foi parecida com a fala que fiz na biblioteca, onde expus que o projeto era uma busca por novas maneiras de se aprender, que ele era uma criação nossa, era coletivo e falei que, muitas vezes, a escola quer que aprendamos todos juntos, ao mesmo tempo, um mesmo assunto e que na “história nômade” estávamos buscando o ritmo de cada um, os interesses de cada um e a web iria nos ajudar nisso. Após a exibição do filme, as explorações sobre a diferença como diversidade continuaram nos encontros seguintes da oficina. Acabei optando por não fazer uma conversa coletiva após o filme, procurei evitar que minha fala acabasse fixando significados segundo uma autoridade. Preferi que eles colocassem suas opiniões e sentimentos sobre o filme na rede social e que as postagens repercutissem entre eles, buscando ver o desenrolar em um espaço hipertextual de discussão ou de conhecimento das opiniões dos colegas de oficina. No encontro após a exibição de Escritores da Liberdade, fiz uma postagem. Juntamente a uma foto da personagem da professora, escrevi:

“Boa tarde! Hoje vamos continuar a montagem do nosso conceito de diferença... E aí, gostaram do filme? Poste onde você sentiu ou viu diferença no filme “Escritores da Liberdade”. Gostaria de compartilhar alguns links: Aqui está o artigo do filme na Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Freedom_Writers Este é o site do projeto, está em inglês, mas tem as fotos da professora e dos estudantes na 'vida real': http://www.freedomwritersfoundation.org E aqui um clipe do filme, com a trilha sonora oficial: 'I Have a Dream' do rapper Common: http://www.youtube.com/watch?v=QcVjKAKRpDw Valeu! = ]”

Estávamos professor-pesquisador e estudantes ocupando computadores na sala de informática. “ME” e “A” haviam decidido subir até a biblioteca para trabalhar por lá. De lá “ME” postou: “Olha já atualizei o meu perfil, mas agora estamos sendo retirados da

109

biblioteca porque virão alunos fazer trabalho!” Ela estava colocando dados e foto no seu perfil na rede social e depois iria postar sobre o filme. Logo em seguida postou: “Aaaaahhhh e não deu tempo de eu fazer o texto do que eu acho!”. “ME” e “A” desceram até a sala de informática e ficaram procurando alguma máquina disponível e que estivesse funcionando. Após encontrar, “ME” postou uma bela frame do filme onde a professora sorria ao “tocar aí” com um aluno também sorrindo. No canto superior da imagem estava escrito: “O melhor ensino é o exemplo”. Sua postagem: “‘O melhor ensino é o exemplo’. O filme não mostra que somos diferentes, mas sim que somos todos iguais, eu ainda não tenho o sentido do que é a diferença! Mas ainda estou procurando!: D” A postagem recebeu o comentário de “LE”: “é isso aí duda”; e de “GU”: “muito bom duda”; e ela respondeu: “Vlw!”, ou seja, “valeu!”. “GU” postou: “O filme mostra a história de alunos negros que são muito barraqueiros na escola por terem influência de suas famílias. A diferença que eu observei no filme é que os alunos eram pessoas boas, mas só precisavam do incentivo que alguma pessoa que tenha uma boa conduta e experiência de vida.” “LU” postou: “No filme haviam várias gangues de raças diferentes, tinham os negros, os asiáticos, os latinos e outros que se dividiam entre as etnias e se isolavam. Após muito tempo na sala de aula a professora consegue fazer com que os alunos se misturem. Vários alunos sofriam em casa, alguns até abandonados em reformatórios”. Com essas postagens, que delineavam percepções dos estudantes sobre o filme, a relação da diferença/diversidade foi se dando como uma espécie de troca de ideias, uma cooperação sob o hipertexto, pois cada postagem era lida pelos colegas, eventualmente recebia comentários, geralmente era “curtida”. Ou seja, a rede social servia para trocas, não apenas registros individuais. Ao navegar pelas postagens dos colegas, houve sempre uma prática de levantamento de informações sobre o que pensavam, tal compartilhamento também ia configurando um caráter colaborativo, coletivo por meio do hipertexto. “LE” postou mais uma foto da sala de aula do filme e escreveu: “Os alunos, por serem negros, já vinha na cabeça das pessoas que eram bandidos e por isso os alunos tem grande influência de ser barraqueiros”. “LE” já fazia uma relação entre o preconceito e a violência, percebendo-a como uma espécie de círculo vicioso. Sentado com ele e conversando, pude perceber que ele compunha suas ideias usando, além de suas impressões, as postagens dos colegas. Mas não como cópia, mas como composição, elas o ajudavam a pensar. E, conversando com os demais, percebi que todos, cada um à sua maneira, sentiam-se positivamente influenciados pelas postagens dos colegas. “A” postou: “Escritores da

110

Liberdade. A diferença pode ser facilmente encontrada neste filme, pois os alunos que frequentam esta escola não se misturam com pessoas que são diferentes (de outras raças ou culturas). São frequentes as brigas por territórios entre gangues e com vários jovens mortos”. “ME” postou uma frame do videogame “GTA12” onde aparece uma gangue de jovens armados e escreveu: “No filme percebe-se que todos os adolescentes tem problemas com gangues e com violência”. Foi interessante perceber essa troca na rede social, o sentido colaborativo do hipertexto, a articulação entre as percepções dos estudantes. O que estava acontecendo é que as postagens sobre o filme estavam, qualitativamente falando, compondo algo como que uma “inteligência coletiva” do grupo sobre o filme, sobre a diferença/diversidade, sobre a experiência com o pensamento. Também ia se configurando um professor-pesquisador que conversava, que não “pegava no pé”, que não controlava, pois acreditava na colaboração, que acreditava expressamente na inteligência e na sensibilidade dos estudantes, que trocava ideias sobre as postagens, recomendava leituras, músicas, links, incentivava que eles explorassem os blogs, o Google, a web em geral, em busca de “inspiração”, que recomendava que pensassem com calma, com tranquilidade, que auxiliava na escrita ou na navegação, resolvia problemas no software navegador, no editor de texto, que articulava territórios de pensamento e práticas escolares... aí estava se compondo uma figura diferente de professor, pois nossos movimentos

de

professor-pesquisador

estavam

delineando

o

estabelecimento

de

aprendizagens cooperativas, em que: Sua competência deve deslocar-se no sentido de incentivar a aprendizagem e o pensamento. O professor torna-se um animador da inteligência coletiva dos grupos que estão a seu encargo. Sua atividade será centrada no acompanhamento e na gestão das aprendizagens. O incitamento à troca de saberes, a mediação relacional e simbólica, a pilotagem dos percursos de aprendizagem, etc. (LÉVY, 1999, p. 170).

Ao acompanhar as postagens de “ME”, vinha-me a impressão que ela estava vendo as coisas como “somos todos iguais” e não necessariamente percebendo a diversidade como algo positivo. Eu não estava tomando isso como “erro”, mas gostaria de compor com ela a partir de uma pequena provocação que lhe emitisse signos. Estava sentado próximo a ela e “A”. Então, perguntei:“Mas 'ME', você fala que todos somos iguais... concordo contigo, pois somos todos iguais... mas será que também, ao mesmo tempo, não somos também diferentes? Por exemplo, você gosta de R5, eu já gosto do Sepultura... e os estudantes do filme, eles não tinham entre si 12 “GTA” é a abreviatura de Grand Theft Auto, jogo para computador onde o personagem protagonista é um criminoso integrante de gangue de rua. Extraído de . Acesso em: 10 dez. 2014.

111

diferenças também?”. Ela me olhou pensativa. “A” que participava da conversa, ouvindo atentamente, a olhou e sorriu. “Vou deixar você pensando, tá bom? Qualquer coisa me chama...”. Retirei-me e fui acompanhar outros estudantes. Ela se voltou para seu computador. “A” falou com ela, elas conversaram por uns instantes e depois lembro de ter visto “ME” escrevendo. Sua postagem (figura 5) foi a seguinte: uma interessante montagem com foto de dois aquários: um lotado de peixes do qual um peixe saltava e caia no aquário ao lado, onde ele teria “todo o espaço”, pois ele será o único peixe no aquário. Abaixo da imagem escreveu: “Na minha opinião, a diferença não vem em termos de: ele é branco e eu sou negra, você fuma e eu não, você é de uma gangue e eu de outra... não é assim que ocorre a diferença, a diferença vem das pessoas! Eu tenho uma vida diferente da sua, eu gosto de coisas diferentes de você, você pode gostar de uma música que eu não goste, isso é a diferença. Acho que muitas pessoas confundem diferença com racismo ou algo do tipo, eu não gostar de você porque você é preto, amarelo, rosa, branco, não é diferença, isso já é um outro caminho! Mas agora eu falar que não gosto de você porque você não vê o mesmo programa de televisão do que eu já é besteira! Todos nós temos as nossas vidas, vidas extremamente diferentes umas das outras, mas é claro que todo mundo passa por fatos felizes, chatos, irritantes, etc. … mas todos somos diferentes! Eu sou diferente de você que está lendo isso agora!”.

112

Figura 8 - Postagem de “ME”

Fonte: Rede social diasporabr.

Após nossa conversa, a conversa com “A” e, possivelmente, após uma consulta às postagens de seus colegas, “ME” pensou sobre seu conceito de diferença a partir de outro ponto de vista. Ela não “teve de mudar de opinião pois o professor falou o que era certo”, ela não “corrigiu suas ideias”, ou algo do gênero. Ela ampliou seu ponto de vista a partir de composições que seguiram caminhos singulares de conversas com o professor-pesquisador, com a colega mais próxima, com postagens de colegas que lhe fizeram criar uma postagem em que ela delineia seu pensamento sobre as diferenças entre as pessoas, sobre a diversidade no seu cotidiano, trazendo o filme para a sua realidade de dia a dia como sentido e valor. Logo após, ela fez uma segunda postagem em que ela apresenta seu pensamento e o conecta hipertextualmente a um link: “Pessoas podem fazer outras coisas para mudar o mundo. A diferença está no nosso cotidiano para fazer a vida das pessoas, imagine se fôssemos todos iguais! Não iria ficar legal! Pessoas mudam isso com a diferença”. Logo abaixo postou, entre aspas uma citação: “'Fazer a diferença é uma atitude normal das pessoas, pois cada um de nós deseja de alguma forma deixar a marca de sua atuação, o registro de sua competência, mostrar o quanto pode contribuir em uma determinada situação com as pessoas que estão ao nosso redor'”. Na parte dos comentários, ela postou o link do “boog.com.br” que foi fonte da

113

citação. “LE” comentou: “Bem interessante pois se as pessoas fossem todas iguais não teria felicidade ou motivo para viver”. E “ME” respondeu: “Aham Todos somos seres humanos!”. Interessante na postagem a observação da importância da diferença para que aja a mudança, movimento! É bom ver como “ME” coloca o seu pensamento em composição com sentido e valor ao positivar a diversidade, a afirmação da diversidade e ver os sentidos e valores de baixeza do preconceito. Importante perceber que a criação de seus posts repercute em leituras, “curtidas” e comentários, ao colocar o link do texto que tirou a citação, cria uma ligação hipertextual que vai conectar a saberes, ampliando assim o nosso rizoma. “MM” assistiu ao filme com o grupo mas teve que faltar no encontro seguinte e fez sua postagem (figura 5), mais uma vez, de casa: “'Escritores da Liberdade'. O Filme conta sobre negros, brancos, latinos e japoneses que estudam em uma mesma sala aonde eles não coincidem suas ideias! Esse filme aborda mais sobre a diferença de cada pessoa, que nós devemos nos reunir independente de cor! No final do filme os alunos que não se gostavam viraram melhores amigos, pois eles se conheceram melhor”. “MM” mostrou em sua postagem que percebeu a positividade da diversidade entre as pessoas e viu que no filme essa é uma mensagem importante. Figura 9 - Postagem de “MM”

Fonte: Rede social diasporabr.

“OE” assistiu ao filme em sua primeira participação no “história nômade” e só retornou após duas semanas - mesmo assim fez postagens sobre a diferença. “OE” é a menina que cito no começo deste trabalho, que me perguntou: “Mas, o que o professor quer nos ensinar com essa atividade?”, “o que o professor espera da gente?”. Quando respondi: “Quero que vocês pensem com as suas próprias ideias...”; “quero que vocês aprendam a

114

pensar com a sua própria cabeça...”. “OE” contava da insegurança que sentia em dar suas opiniões, pois sentia medo de ser julgada. Essa conversa se passou antes de entrarmos na biblioteca, local de nossas atividades naquela tarde. Após “OE” fazer sua conta na rede social, ler as postagens dos colegas, navegar pelos blogs, chamou-me para conversar. O assunto novamente foi sua insegurança em dar suas opiniões. Para ajudá-la a pensar, fui lhe fornecendo ideias como signos, queria que isso lhe ajudasse a compor seus pensamentos: “Imagina... as pessoas são diferentes entre si não é? ... por isso que nem sempre as opiniões são iguais... e pensar diferente dos outros não precisa ser motivo de vergonha, nem de medo... eu acho que as pessoas em geral poderiam confiar mais nos seus pontos de vista... isso não quer dizer que não devamos ouvir pontos de vista diferentes do nosso, respeitar ideias diferentes das nossas... mas acho que sempre podemos acreditar em nós mesmos, pois isso nos fará bem...”. Falei-lhe para tentar exercitar sua confiança, pois, na oficina, ninguém estava julgando as ideias dos outros, muito pelo contrário, conhecer as ideias dos colegas nas postagens e nas conversas era uma ótima maneira de aprender. “Eu mesmo, como professor, aprendo o tempo todo com os estudantes... e nem só de assuntos ou coisas que eles me contam... aprendo com o seu jeito de ser, a influência dos lugares onde vivem... se a gente estiver atento, estaremos sempre aprendendo...”. Assim, fui incentivando-a a deixar o medo de lado e investir em sua potência, em acreditar em sua própria diferença. Sentia que “OE” me ouvia e compunha seus pensamentos comigo, mas não ficava muito à vontade no ambiente da biblioteca. Então, falei: “Não precisa postar nada agora, viu? Se quiseres, podes ficar explorando, pensando, lendo coisas, fazendo rascunhos... você não precisa se apressar...”. Notei que minhas falas iam lhe acalmando: deixei-a à vontade para “perder tempo” e compor seu pensamento em seu ritmo, sem cobranças de tempo, sem controles, tampouco julgamentos. Após um tempo ela me chamou: “Professor... eu acho que prefiro escrever isso em casa... posso?”. “Claro!”, respondi. “Se preferes assim, fique à vontade...”. Ela continuou sua tarde explorando hipertextos, repostou uma postagem de “LE”, aquela imagem com as mãos com um punhado de terra de onde brotava uma planta com os dizeres: “Todos querem o perfume das flores, mas poucos sujam as mãos para cultivá-las. Augusto Cury”. Depois, à noite, de casa, “OE” fez três postagens muito interessantes. Uma primeira, uma imagem onde apareciam sete esqueletos idênticos, um ao lado do outro. Logo abaixo de cada esqueleto palavras o identificavam “Branco”, “Negro”, “Gay”, “Hétero”, “Católico”, “Espírita”, “Judeu”. A imagem trazia os dizeres: “Entendeu a diferença?”, “Ou quer que eu desenhe mais?”. A imagem trazia a mensagem de igualdade independentemente das diferenças/diversidade. Com a imagem, ela escreveu: “Diferença, Diferença... Diferença é a

115

qualidade que permite que algo se distinga de outra coisa / ser. O termo pode ser usado para mencionar a variedade de coisas de uma mesma espécie. Mas, basta apenas saber o conceito da sentença em questão? Ao avistar um andarilho... Qual a sua reação? Porventura, poderia ser de piedade, talvez aversão. Mas, antes de elaborar um preconceito é necessário pôr-se no lugar do ser humano a quem se julga. Não que há algo errado em possuir conceitos concretizados. Mas é necessário refletir, ser racional, enfatizar o “porquê” das diferenças”. Fiquei muito feliz com sua postagem, pois ela mostrou toda a desenvoltura que tinha ao conversar. Era uma menina calma, atenta, sensível e demonstrou a necessidade de avaliarmos nossos preconceitos, muitas vezes fundados em impressões de baixo valor, “[...] é necessário refletir, ser racional, enfatizar o ‘porquê’ das diferenças”. Após ler suas postagens, encontrei uma conexão com seu texto e postei como comentário: “Olha só: há vinte anos esse médico cuida das vidas de moradores de rua. Médico se veste de mendigo para cuidar da saúde de moradores de rua”. E postei o link do site “meionorte.com”. Ali criei uma conexão transversal e hipertextual que compunha com o seu pensamento, que ficou ali registrado para “OE”, que visitou o link e comentou comigo pessoalmente, e ficou também para os colegas navegarem por sua postagem: o rizoma em abertura na singularidade da estudante e na singularidade do professor-pesquisador... Suas ideias continuavam em uma segunda postagem. Uma imagem onde aparecem seis homens em posição frontal, cinco deles iguais, na mesma posição, vestindo terno e gravata e em preto e branco. Um é diferente, é colorido e está plantando bananeira. Escreveu: “Diferença 2 de 3. Há inúmeras classes diferenciais, tais como culturais, sociais, etc. Infelizmente, o mundo ainda ‘engatinha’ no quesito diferença. Os ideais são o que de mais profundo há em cada um de nós, e também os mais difíceis de mexer, porque neles mora toda uma vida, de avanços e recuos, até que eles se desenvolvam dentro de nós. Quanto mais fortes forem nossas ideologias, mais difícil será que nos deixemos enganar. Sendo assim jamais obedeceremos as doutrinas dessa terrível ditadora chamada sociedade”. Gostei muito da desenvoltura como “OE” apresentava suas ideias, como ela demonstrava a importância de termos nossas próprias ideias, “ideologias” como ela tratou, em frente a preconceitos e outras injustiças colocadas socialmente. Ao conversarmos depois, pessoalmente, chegamos ao assunto da palavra “ditadora”. “OE” argumentou: “É que muitas vezes as pessoas acreditam em alguma coisa só porque a sociedade diz... mas aquela coisa nem sempre é certa...”. Depois de nossa conversa, ela postou nos comentários: “Sobre a parte ‘Sendo assim, jamais obedeceremos as doutrinas da terrível ditadora, chamada sociedade’: assim sendo, não nos deixaremos enganar por certas ideias preconceituosas”. Com as

116

postagens e conversas com “OE”, pude perceber que ela tinha ideias muito interessantes e posições próprias sobre as coisas e pude compreender melhor seu “receio” em opinar, pois, muitas vezes, quando destoamos do que é aceito pela maioria, somos, antes de mais nada, de certa forma punidos ou culpabilizados por pensarmos diferente. Percebi nos processos de “OE” a afirmação de sua potência singular ao ter opiniões diferentes da maioria. “OE” pôde fazer uma prática escolar que afirmasse sua singularidade de pensar e opinar para além do receio de ser julgada por isso... e isso tudo me lembrou de um parágrafo de Guattari e Rolnik (2005, p. 59): “É preciso que cada um se afirme na posição singular que ocupa, que a faça viver, que a articule com outros processos de singularização, e que resista a todos empreendimentos de nivelação da subjetividade”. Em nossa linha de fuga da modelização que nivela as subjetividades, fazemos rizoma ao buscar a afirmação da diferença dos integrantes da oficina (estudantes e professorpesquisador). A “história nômade” quer afirmar as singularidades ao buscar afirmar a sua própria diferença enquanto prática escolar que vai constituindo liames qualitativos, intensidades que fazem viver diferenças, opiniões divergentes da maioria, maneiras de organizar-se nos estudos, ritmos de aprendizagem, etc. Operações de fortalecimento mútuo, de afirmação da potência de fazer a diferença. “OE” ainda fez uma terceira postagem. Nela, uma imagem de quatro homens, de pé e aparentemente dormindo, pendurados por cabides em uma armação estilo arara. Na imagem a legenda: “Todos iguais? Você não precisa ser.”. “OE” escreveu: “Diferença 3 de 3. Podemos não concordar, mas nunca invadir o espaço do outro, todos temos o dever e o direito de transmitir um legado. E assim é a vida: ora concordando, ora não, o importante é que cada um tenha suas ideias formadas, sendo flexível o bastante para ouvir a outra parte. Encerro assim, como disse um velho amigo: ‘Sou um apreciador dos opostos, das diferenças. Se fosse para apaixonar-me por uma pessoa em tudo parecida comigo, eu namoraria com o espelho’ (Augusto Branco)”. A postagem teve o comentário de “A”: “A frase tem um grande impacto, bem criativo”. “OE” em seu terceiro post continua exercitando a colocação de seu pensamento em termos de valor e sentido ao pensar a convivência, a alteridade. Suas palavras conectam-se à leitura de “A”, que inclusive comenta, conecta-se com aqueles que leram, compõe movimentos em nosso rizoma. Suas palavras, ao repercutirem, vão além do “receio de ser julgada” e afirmam seu pensamento como afirmação de sua diferença, em um exercício que produz singularidade, pois produz pensamento que não passa por moldes, mas que se afirma como potência de diferir. Ela tem opiniões diferentes e, nessa prática, ela cria a si própria.

117

Nesse primeiro movimento da oficina, lendo as postagens, compartilhando com os estudantes, vendo seus movimentos, suas explorações do hipertexto, suas trocas de ideias que não aparecem expressas nas postagens, mas que sempre aconteciam, fiquei feliz com nosso rizoma... quanta leveza! Ao buscarmos ir além das modelizações, quantas conexões foram feitas! Mesmo com todas as dificuldades com computadores, espaços limitados na sala de informática e biblioteca, rede wireless instável, entre outras, tivemos na vontade dos jovens, suas composições de desejo como potência de criar, a potência de fazermo-nos como singularidades. Muito satisfeito, postei: “Olá! Estou gostando muito das postagens sobre a diferença! Gostei que vocês estão usando suas próprias ideias e opiniões e optando por exemplos que partem de suas curiosidades, pontos de vista, gostos, etc. Sem contar que vocês mostram muita naturalidade ao usar os recursos dos blogs, rede social diasporabr e pesquisas no google... Vi também a diferença aparecendo no próprio trabalho, pois todos tratam o assunto de acordo com o seu ponto de vista, ou seja, cada um mostra uma diferente ideia de diferença! ; ] Parabéns à tod@s! = ]]]]]]]”. Estudantes experienciando seus próprios movimentos, sua potência de diferença neste movimento de singularização do rizoma: movimento automodelador, autocriador que não se confunde com “individualismo”, tampouco com atos “isolados” de aprendizagem. O movimento do hipertexto, mesmo partindo de postagens individuais, foi tomando um aspecto colaborativo muito interessante, pois as postagens anteriores dos colegas serviam como signos para o pensamento, para as composições que não se repetiam como modelo, como “cola”, como “cópia”, como “vou ver como meu colega está fazendo para fazer igual...”, mas que pareciam levá-los em consideração em seu valor e em seu sentido. Além do mais, nunca houve cobranças disciplinares de nota, de prazos, de comportamento, etc., mas houve sim algo espontâneo, uma vivência compartilhada. Daí a composição da oficina adquirir algo de coletivo em um sentido de compartilhamento de saberes, de links, de opiniões no hipertexto e fora dele, nas convivências e trocas que fomos estabelecendo. Foi um movimento que qualitativamente apontou para uma certa sinergia, para a composição de uma “inteligência coletiva” da “história nômade” ao mesmo tempo que se investia na singularidade de cada estudante. Essa inteligência coletiva estimulada pelo professor-pesquisador que mobiliza os saberes hipertextualmente deu-se em um movimento qualitativo no sentido de “[...] permitir que os seres humanos conjuguem suas imaginações a serviço do desenvolvimento e da emancipação das pessoas” (LÉVY, 1999, p. 208) ao transversalizar saberes na busca por singularização. Nosso movimento ressoa essa sinergia da qual trata Lévy (1999): é um

118

processo coletivo e para a coletividade, que compreende faculdades de aprendizagem e competências adquiridas e colocadas em sinergia, que vai compondo uma série de relações, de significados colocados em relação, compreendendo reservas dinâmicas de memória comum, apoiando as capacidades de inovar e de acolher as inovações. A “história nômade” - como um projeto aberto e em abertura, que comporta e estimula a diferença e que tem na hipertextualidade uma ferramenta potente. Está claro, o movimento social e cultural que o ciberespaço propaga, um movimento potente e cada vez mais vigoroso, não converge sobre um conteúdo particular, mas sobre uma forma de comunicação não midiática, interativa, comunitária, transversal, rizomática. Nem a interconexão generalizada, nem o apetite das comunidades virtuais, nem tampouco a exaltação da inteligência coletiva constituem os elementos de um programa político ou cultural no sentido clássico do termo. E ainda assim, todos os três talvez sejam secretamente movidos por dois ‘valores’ essenciais: a autonomia e a abertura para a alteridade. (LÉVY, 1999, p. 132, grifo do autor).

Práticas escolares como movimentos que se desenvolvem na imanência das práticas, para além da necessidade de representação pela imagem dogmática do pensamento, para além do pensamento de Estado e sua necessidade de modelizações e controle. Rizoma como multiplicidades de mutação de práticas, série de reconfigurações de poderes (que sempre são modelizantes) que dão lugar à potência da diferença: os usos da web como ferramenta, a hipertextualidade como espaço transversal onde a aprendizagem se conecta com movimentos de singularização, de afirmação da diferença como potência criativa, sensível, de pensamento. Nesse primeiro momento, fizemos nossos “ensaios” e “testes” ainda em uma posição passiva de “responder a uma questão/problema: crie seu próprio conceito de diferença”, prática que ainda estaria enleada com muitas segmentaridades disciplinares, especialmente na presença de um comando do professor que questiona “o que é a diferença?”, colocando o estudante imediatamente em uma posição passiva de responder o que foi perguntado. No entanto, tomamos essa posição inicial como a menos importante, pois abrimo-nos para a diferença ao buscar o desembaraçamento da disciplinaridade e do controle ao tratar o questionamento inicial como pretexto para a criação, sensibilidades, explorações dos estudantes (diagrama 14). Não nos colocamos como o professor que queria ensinar saberes colocados de antemão e avaliar disciplinarmente os trabalhos, mas tomamos a postura de fluir com a própria fluência, movimento de composições espontâneas que vai sempre buscando a singularização dos estudantes e do professor-pesquisador... vetor de linha de fuga que aponta para a criação de novas práticas escolares para além da modelização.

119

Diagrama 14 - Atividade da “diferença” como pretexto para multiplicidades de signos que mobilizam desejo e pensamento

Fonte: Elaborado pelo autor.

Para o segundo momento, “tema livre”, estudantes em postura ativa de mobilizar desejo e pensamento segundo signos que lhe afetam. 6.5 “TEMA LIVRE”... RIZOMA Neste momento, nossos movimentos no corpo coletivo da oficina “história nômade” foram criando e vivendo seus processos com conexões mais rizomáticas. Antes mesmo desse momento, estávamos desenhando um processo de rizoma ao romper certas segmentaridades arborescentes, lineares, hierárquicas e caminhando em novas intensidades. Intensidades estas que não podem ser enumeradas: não são quantitativas, mas qualitativas em termos de mutações e movimentações. Movimentos da experiência com o hipertexto, com uma nova configuração de professor, com uma configuração singular de oficina que ia se construindo ao fluir por entre segmentaridades disciplinares na busca de constituir um espaço próprio... movimentos de criação. Ao realizarmos a atividade de responder à questão “o que é a diferença”, mesmo colocados de antemão em situação passiva e disciplinar diante dos saberes, podíamos sentir que os estudantes estavam lidando de maneira espontânea com o computador, com o hipertexto, com as relações entre o grupo. E, especialmente, percebíamos que, por vezes, paravam em sites, informações, vídeos que lhes atraíam de certa forma (figura 7)... ali

120

ficavam, exploravam. Estavam à vontade nas interações com o hipertexto. Se estivéssemos pensando de maneira disciplinar, com um foco produtivista, tais “flutuações” talvez fossem colocadas como “desatenção”, “falta de interesse nos estudos”, “erro”. O peso disciplinar de submeter as multiplicidades à sua unidade... Com a diferença positivada, é justamente essa deriva que vai compor o contorno do contato com os signos, pois não se trata de um método que vai garantir o aprendizado, mas, antes, trata-se de produzir encontros... a relação aqui é outra. Positivamos a diferença ao ponto de positivarmos uma “perda de tempo”, ao invés de inserir o estudante em uma segmentaridade produtivista que faz seu desejo passar por uma palavra de ordem... Como escreve Deleuze é preciso perder tempo no contato com os signos: Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente “bom em latim”, que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado? (DELEUZE, 2003, p. 21). Figura 10 - Usos da Web

Fonte: Acervo do autor.

“LE” olhando com curiosidade as fotos das paisagens... “ME” lendo e comentando o artigo sobre pessoas criativas... são exemplos de momentos onde se deu um especial movimento de diferença, pois ali o desejo se encontra com o saber e vai se movimentar como transversalidade. Assim, durante a atividade de “aquecimento”, já buscava sensibilizá-los: “e aí... tens algum assunto que te interessa? Já vai pensando... se encontrares alguma coisa durante as tuas explorações... uma pesquisa com ‘tema livre’... individual, dupla, grupo... vocês escolhem...”. Esse momento de nossa cartografia, de nossa oficina “história nômade”, é quando

121

buscamos um maior movimento de desvinculação dos agenciamentos disciplinares dos saberes. Buscamos movimentos de mutação: fazer passar o desejo de uma relação de “você precisa saber isto” para algo como “o que você gosta?”, “o que você quer saber?”... Buscar que o desejo passe pelo saber e não que o saber passe em termos de operacionalização de uma ordem, “faça a atividade: o que é ‘X’?”. Antes o rizoma, o saber como a busca de um pensamento que foi mobilizado pelo encontro com signos, desfazer a produção disciplinar de sujeitos em sua relação com os saberes. Buscar antes a singularidade do desejo que vai passar pelo saber e afirmar-se... os saberes dando-se não mais como resposta a uma palavra de ordem, mas antes produzir encontros onde ele se dê como potência afirmadora de sua própria diferença. E se o desejo, o encontro com os signos, é o que move a relação com os saberes, estes não precisam necessariamente passar segundo um esquadrinhamento disciplinar. Há uma abertura, pois, nessa relação, o saber vai inventar-se no próprio fazer. Tal criação vai agenciar os saberes em fluxos inéditos, transversais. Movimentação de multiplicidades, rizoma. “Tema livre... o quê você quer saber?”. Entre idas e vindas na biblioteca, na sala de informática, por vezes com alguns estudantes na biblioteca e outro grupo na sala de informática, fomos compondo nossas relações como rizoma. Dentro das possibilidades de espaço na biblioteca, na sala de informática ou até mesmo no pátio, dependendo do sinal do wireless, os alunos eram livres para optar o lugar onde trabalhariam, inclusive a ideia inicial era contar com um bom sinal de wireless e a posse de dispositivos móveis que possibilitassem aos estudantes a maior liberdade de movimentação possível dentro dos espaços da escola. Quanto ao tempo, não realizávamos chamada, não havia qualquer controle ou cobrança quanto a horários, presença, avaliação... os estudantes vinham por vontade própria. Nossos movimentos, desde o início da oficina, foram de estabelecer, ao máximo, linhas de fuga das configurações de espaço-tempo disciplinares. Houveram participações de diversos espaços na escola, houveram participações de casa, em horários alternativos, aos estudantes era permitido, aliás incentivado, o “perder tempo” navegando na web, não houve uma lógica de “todos precisam acompanhar as atividades”; enfim, as configurações espaço-temporais foram dando-se com espontaneidade. Como professor-pesquisador, eu compunha meus movimentos ao observar, deixar a vontade na navegação, de ajudar quando chamado, de ajudar com instruções sobre o computador que, às vezes, não tinha o software adequado, buscando alternativas de espaço, buscando estar presente e compor nos encontros o papel do professor do fazer com. Os parágrafos que seguem são narrativas de atividades que se desdobraram durante vários

122

encontros da oficina, encontros onde os movimentos de estudo se dão na conjugação de pontos relevantes a partir do estudante, mudança qualitativa nos processos de aprendizagem... liame de cumplicidade entre o desejo e o pensamento, novas subjetividades... “tema livre”... rizoma. Na medida que alguns estudantes iam concluindo as atividades da “diferença”, senti a necessidade de postar “oficialmente” a atividade do “tema livre”. Digo postar “oficialmente” pois já vinha conversando com eles sobre isso há alguns encontros. Postei uma imagem de um simpático e curioso cachorro pastor alemão espiando por uma cerca e escrevi:

“Olá! Essa é para quem já postou o seu conceito de diferença... Imagine algo que você gosta muito, ou algo que lhe desperte o interesse, ou ainda algo que você tenha curiosidade... Imaginou? E que tal saber mais sobre isso? Vamos fazer uma pesquisa com tema livre! Escolha um assunto que lhe desperta interesse ou curiosidade e vamos juntos pesquisar! Pode ser sobre uma coisa que você goste e queira saber mais, pode ser sobre algo que você tem curiosidade, algo que lhe preocupa, ou ainda sobre algo que você viu na nossa oficina... se não sabe direito o que pesquisar, dê uma navegada na internet, explore os temas no historianomade.blogspot.com, converse, pense e escolha o que mais lhe agrada. Após a escolha do tema o professor vai lhe dar algumas dicas... Já tem gente postando assuntos bem interessantes e que vão render ótimas pesquisas! ; ] E aí, qual assunto lhe interessa? Sobre o que você quer saber?”.

Minha ideia com essa postagem era registrar o início do segundo movimento de nossa oficina. Muitos já estavam trabalhando com as explorações em “tema livre”, outros ainda postavam sobre a “diferença”. Não pressionei um “ritmo” para o grupo... o movimento foi espontâneo e logo todos estavam buscando e pesquisando assuntos de seu interesse. “LE” e “GU” formaram uma dupla e sentados lado a lado começaram a explorar o tag cloud do historianomade.blogspot.com. Faziam com calma, olhavam, rolavam a página, conversavam entre si. “Estamos pensando... ainda não sabemos o que pesquisar...”. “Tudo certo, explorem à vontade...”. Não tinha pretensão de controlar seus ritmos, prever algo. Queria colaborar em sua composição de forças, como vi que pensavam e exploravam juntos, deixei-os à vontade. Depois, quando passei pelos dois novamente, estavam às voltas com uma reportagem que tratava de uma moça indiana que foi vítima de ataque de ácido e que criou uma grife em que as modelos são, como ela, vítimas de ataques de ácido. Os dois postaram,

123

no perfil do “LE”, uma foto de três sorridentes e orgulhosas moças vítimas de ataque que posavam com as roupas da grife e escreveram: “LE e o GU pesquisaram sobre dois casos de violência contra a mulher na Índia, o primeiro caso mostra uma história sobre 5 garotas que foram atacadas pelos pais ou familiares que foi jogado ácido em seus rostos enquanto estavam dormindo. Elas criaram uma grife de roupas e usaram garotas atacadas como modelos, para divulgar o caso que acontece frequentemente na Índia”. Conversamos sobre o machismo, que também no Brasil existem pessoas que tratam as mulheres como inferiores, sobre casos de brigas e agressões entre casais, Lei Maria da Penha... mas lhes chamavam muito a atenção os ataques da Índia e, assim, indignados, fizeram uma segunda postagem, fruto da exploração de uma outra página: “O segundo caso fala sobre o ataque com ácido na Índia, esse ataque aconteceu por causa dos ciúmes dos maridos, que não concordam com o fim de seus relacionamentos, então eles partem para agressões e jogam ácidos em suas mulheres isso é um caso que os indianos não dão muita bola porque eles acham que isso é apenas uma briga de casal. Eu acho que os indianos estão errados em jogarem ácido em suas mulheres, porque as mulheres não são culpadas em quererem terminar seus relacionamentos com seus maridos, porque se elas não gostam mais deles, eles não devem obrigá-las e escravizá-las a ficar com eles então eu acho errado eles fazerem esse tipo de maldade com as mulheres”. Junto ao texto, postaram uma foto de mulher vítima de ataque e como comentário colocaram o link do artigo consultado “Ataques com ácido: a outra face dos ataques na Índia”. Que signos de indignação ou também compaixão, ou até horror em ambos o que lhes compôs desejo e pensamento ao tratar do caso das garotas... O assunto é chocante, especialmente as fotos das jovens, que vivem com seus rostos e partes do corpo desfigurados e foi na imanência da percepção do problema que criaram postagens e mobilizaram pensamentos em valor e sentido ao ponto de pensar de forma ética: “as mulheres não são culpadas em quererem terminar seus relacionamentos com seus maridos, porque se elas não gostam mais deles, eles não devem obrigá-las e escravizá-las a ficar com eles então eu acho errado eles fazerem esse tipo de maldade com as mulheres... ”. O movimento que fizeram foi de partir do “objeto” para, posteriormente, criar seu conceito ético: nossas conversas sobre as relações entre marido e mulher em geral lhe interessavam, mas as especificidades do caso das vítimas de ataques de ácido é o que lhes mobilizava. Eles estavam interessados naquilo que o assunto trazia de único: “os indianos estão errados em jogarem ácido em suas mulheres”, assim faziam um caminho onde os signos lhe mobilizavam algo como que uma “emoção criadora” (KASTRUP, 1999, p. 20), um contato que gera um “abalo afetivo” (KASTRUP, 1999, p. 20), que os levou a pensar, criar

124

sua pesquisa e compor seu pensamento ético em termos de valor e sentido imanentes ao caso estudado. Figura 11 - Postagem de “A” e comentário de “GU”

Fonte: Rede social diasporabr.

“A” explorava o tag cloud e vi que entrou em links sobre “música indígena”, mas a máquina onde estava não funcionava o Youtube. Procuramos outro computador e providenciei para ela um fone de ouvido. Passou boa parte da tarde ouvindo músicas a partir de uma matéria do site “Ciência Hoje das Crianças” e de pesquisas no Youtube. Por alguns momentos, “ME” levantava de seu computador e ia até “A” e ouvia também. Elas comentavam, riam. “esta música aqui não é indígena não... nada a ver!”. Chamaram-me para ouvi-la e constatei que não tinha nada a ver mesmo, a música em questão lembrava um axé music ou algo assim. Daí comentei que já vi vários vídeos de grupos musicais de povos indígenas brasileiros que tocavam forró, rap; conversamos sobre as mutações que os povos nativos do Brasil têm experienciado desde a época do chamado descobrimento. “Tem gente que pensa que índio é só aquele que vive na mata, anda com o corpo pintado, com cocar e tanga... mas existem índios genuínos que vivem de outras maneiras...”, comentei. “É que na realidade as culturas dos povos se modificam com o tempo e muitos povos nativos que entraram em contato com os ‘brancos’ passaram por várias modificações, mas continuam sendo povos nativos, ou povos indígenas...”. Ficamos trocando mais um pouco e “A” decidiu postar sobre suas experiências

125

(figura 7): “A música e os índios. Na Amazônia ocidental existem várias tribos com ritmos diferentes, por mais que não possamos entender o que eles estão cantando, podemos sentir o tom. Algumas músicas são suaves e outras agitadas, com vários instrumentos que são feitos de animais”. Na parte dos comentários, “A” postou o link que explorou. Chamou-me a atenção a sua sensibilidade para a música. Notava o prazer que tinha em ouvir as músicas, em problematizá-las: “esta aqui não é música indígena não...”. “A” passou boa parte da tarde com a música de povos indígenas. Seu desejo compôs um território onde passaram sensibilidades, timbres, ritmos, instrumentos feitos com recursos da floresta, cantos, vozes, palavras de significado desconhecido para ela mas que a tocavam em emoções - “por mais que não possamos entender o que eles estão cantando, podemos sentir o tom”... sensibilidade que se abre ao diferente, repertório cultural que se abre para a diversidade e para a alteridade “na Amazônia ocidental existem várias tribos com ritmos diferentes”... multiplicidades atravessando sua pesquisa, sempre partindo da mobilização de sua sensibilidade, onde o seu desejo compõe territórios sensíveis. Figura 12 - Estudantes trabalhando em dupla

Fonte: Acervo do autor.

“GU” e “LE” estavam explorando o tag cloud naquela tarde (figura 9). Estavam à vontade, conversavam, trocavam ideias. Os dois fizeram duas postagens usando o perfil de “LE” na rede social. Uma primeira trazia uma bandeira nazista com uma suástica, com dois parágrafos,

resultado

de

explorações

no

endereço

“http://www.brasilescola.com/historiag/nazismo.htm” que eu havia disponibilizado no tag cloud do blog historianomade.blogspot.com.br. No primeiro parágrafo, intitulado “Nazismo Alemão”, informações sobre a crise pós-guerra e os tratados que geraram revolta na Alemanha. Em um segundo parágrafo, com o título “Hitler”, se lia, entre outras coisas: “[...] Hitler defendia a hegemonia da raça ariana, alegando que a Alemanha só se reergueria quando os povos se unissem ‘em um só povo, em um só império, em um só líder’. Outras

126

etnias, como judeus e negros deveriam ser eliminadas [...]”. Após esta, “LE” ainda fez outra postagem (figura 10), agora individualmente. Uma imagem com uma foto de Hitler com as legendas: “Se você é a favor da violência contra mulheres, negros, crianças ou minorias; Pensa que pobre e morador de rua é sinônimo de delinquente; Acha que bandido tem que morrer; Acredita que chacinas e grupos de extermínio são uma forma de justiça social; CUIDADO: VOCÊ PODE SER NAZISTA! Se persistirem os sintomas, procure um bom professor ou um livro de história mais próximo de você”. A seguir, “LE” postou sua opinião sobre o assunto: “Nazismo é um regime político que foi comandado por Adolf Hitler. Hitler não gostava muito de homossexuais. Ele era um homem cruel, ele mandava matar crianças e gays, eu acho que Hitler não tinha piedade nem amor por nada”. Um tema que estava indexado no tag cloud “Nazismo” chamou a atenção da dupla, que resolveu seguir lendo, pesquisando em um movimento espontâneo em uma tarde de atividades... “LE” saiu mais cedo devido a um compromisso, e “GU” continuou suas explorações sozinho. Figura 13 - Postagem de “LE”

Fonte: Rede social diasporabr.

“GU” conversava comigo enquanto pesquisava no Google imagens de suásticas: “e aí o que está fazendo?”, “pesquisando sobre o nazismo professor”. Conversamos sobre o nazismo, falamos sobre as postagens que tinham feito. Comentei sobre a época da crise da Alemanha com o final da Primeira Guerra, que estavam com tudo destruído, inflação... e que

127

começaram a aparecer pessoas que culpavam os estrangeiros pela situação. Daí começaram a aparecer pessoas que passaram a perseguir judeus, homossexuais... consideravam-se uma raça superior... “E o Hitler... era o chefe deles?” Falei sobre a ascensão de Hitler e a criação dos guetos de judeus, falei que “A Lista de Schindler” mostrava bem isso tudo... notava seu interesse e recomendei-lhe o filme. “Vou ver esse filme professor... vou pegar ele da locadora...”. E continuou sua pesquisa. A presença do professor-pesquisador como alguém que está auxiliando a composição de saberes: os rapazes estavam explorando sobre o nazismo, fizeram postagens com textos pesquisados, imagens, deram opinião... o professor senta com eles, ouve e troca ideias. Nessa troca se dá uma pequena “aula”, mas não com o tom expositivo, tom de voz de autoridade sobre os saberes e sobre os corpos, preposto do poder do Estado no espaço-tempo escolar. A “aula” é antes uma conversa, atravessada por afetos, troca, leveza: composição onde o professor traz suas referências e leituras sobre o assunto para auxiliar na mobilização do pensamento do estudante. Mobilização do pensamento que não se iniciou em uma palavra de ordem do professor (comando de autoridade que faz o desejo do estudante passar por segmentaridades disciplinares), mas que se iniciou de modo espontâneo, partiu dos estudantes e suas explorações, por meio da mobilização do pensamento por algum signo - uma relação que coloca a “busca pelo saber” como uma própria descoberta e invenção de si, busca por singularidade, pela potência da diferença dos próprios estudantes, que tomam posse de suas problematizações e assim vão criando diferença. “BR” compareceu a apenas uma tarde da oficina. Quando veio conversar comigo falou que gostaria de participar, mas que tinha compromisso com seus treinos de futebol e nem sempre poderia frequentar. Falei que ele poderia frequentar quando quisesse, sem problemas, e se precisasse faltar “paciência” - ele sorriu com a acolhida. Sentei com ele em um computador da sala de informática e lhe falei sobre a oficina. Criamos o seu perfil na rede social. Falei-lhe que sua primeira atividade, como “aquecimento”, seria pensar e postar a sua ideia sobre “diferença”. Mostrei-lhe o vídeo sobre a diferença / diversidade e o tag cloud, “aí tem vários coisas... talvez te interesse... mas se quiseres podes usar o Google, ou qualquer outro site...”. Deixei-o à vontade para explorar e pensar e fui acompanhar outros estudantes. Ele postou: “Há vários tipos de diferenças, diferenças de pessoas, coisas, bactérias, etc. Bom, acho que tudo no mundo há diferenças. Irei comentar sobre a diferença de pessoas, pois existem pessoas brancas, negras, grandes, pequenas, gordas e magras, novas ou idosas, com o gostar de coisas diferentes. Pois como no Brasil, existem times diferentes, que muitos brasileiros torcem para times diferentes. Todas as pessoas gostam de coisas diferentes. Fazem

128

coisas diferentes. Como eu gosto de andar de long, tenho amigos que gostam de andar de bicicleta, outros que gostam de andar de moto, pois todos sentem adrenalina por praticar esportes”. Gostei de seu texto, pensou a diversidade a partir de seu dia a dia. Após fazer a postagem, “BR” chamou-me para mostrá-la. Li e comentei que gostei pois ele pensou usando exemplos do seu dia a dia, mostrando o seu ponto de vista. “BR” me olhou compenetrado quando lhe falei para pensar em um assunto que lhe interessasse, um tema de livre escolha. Ele estava com “MM” na sala de informática. Naquela tarde estávamos em dois grupos: “BR” e “MM” na sala de informática e “ME”, “A” e “GU” na biblioteca. “Pode pensar... não precisa responder agora... se quiseres podes ficar navegando... explorar o tag cloud... o Google... qualquer coisa me chama, eu estou por aqui ou na biblioteca...”. “MM” estava pesquisando algumas imagens em uma janela do Google e em uma outra tinha aberta o tag cloud. Ela era ativa, fazia suas explorações e conversávamos frequentemente. “Estou vendo alguma coisa aqui... sobre racismo...”. Os dois ficaram trabalhando e fui até o segundo piso, na biblioteca. Percebei que eles trocavam ideias, “MM” lhe dava dicas, mostrou-lhe as opiniões sobre diferença que os colegas já haviam escrito. Quando desci “MM” e “BR” conversavam, perguntei como estavam as coisas: “Estou pesquisando sobre amizade”. Ele estava navegando por resultados de uma busca do Google, abrindo páginas, explorando. Depois de um tempo perguntei se ele já tinha tentado a Wikipedia. Ele não conhecia. Pedi para que ele digitasse no campo do Google “amizade wikipedia”. Abriu a página ficou explorando e decidiu ler sobre “amizade entre pessoas de sexos diferentes”. “MM” havia achado uma foto de Ruby Bridge, menina negra norte-americana sendo escoltada por policiais para poder frequentar a escola, em 1960. E postou a foto no diasporabr com a legenda: “Racismo: A Pequena Ruby Bridge e a História do Racismo nos EUA”. Mostrou-me a postagem e conversamos sobre o racismo nos EUA e suas diferenças com o racismo no Brasil. Lembramos que o racismo começou com a escravidão e que muitas pessoas não sabem disso e ainda reproduzem ideias de há anos. Ela se interessou pela história da menina e fez uma pesquisa que continuou no encontro seguinte da oficina. Após ler um link do tag cloud, ela postou: “Na época em que Ruby nasceu (1954) a entrada de negros nos colégios foi restrita, e só poderiam entrar quem fizesse testes, esses testes foram criados para que as crianças negras não entrassem nos colégios de ‘brancos’. Mas a mãe de Ruby, lutou pelos direitos de sua filha e queria que ela tivesse o melhor estudo, então colocou-a aos 6 anos em a escola toda ‘branca’”. Depois, ao ler a postagem pelo diasporabr, interagi por comentário passando um link de outro caso de racismo na mesma

129

época nos EUA: “Olha só: nesta época as pessoas tinham piscinas somente para brancos”. “MM” postou ainda uma foto colorida da chegada de Ruby, de mãos dadas com a mãe, em meio a protestos das pessoas brancas, que faziam “cara feia” e portavam cartazes e placas do tipo “white only”, escrevendo: “Ruby chegou para seu primeiro dia de aula com uma escolta de quatro agentes federais e foi recebida com desprezo por uma multidão sinistra das donas de casa e adolescentes. Muitas mães tiraram seus filhos da escola, e falavam que só iriam voltar quando Ruby estivesse fora da escola, por todo o ano letivo os professores daquele colégio só deram aula para 5 alunos, Ruby e mais 4 estudantes brancos”. Logo após, postou como comentário o link da página que leu, citando-a como “Fonte”. Na semana seguinte a postagem recebeu o comentário de “GU”: “muito boa essa história dessa menina, que é desrespeitada porque ela é negra”. Movimento de composição entre estudante e professor-pesquisador nas conversas presenciais e nas mobilizações de hipertexto, fazendo rizoma ao conectar saberes e disponibilizá-los na web para seus colegas, que leem, curtem, comentam... o rizoma em abertura... “MM” ainda postou: “O caso de Ruby foi histórico, tanto que foi feito para Ruby um livro "Through My Eyes" (Através dos Meus Olhos). Este livro conta tudo o que Ruby passou, todos os conflitos que enfrentou quando era criança. Além de um livro foi feito também um filme”. Ela postou links para os sites do livro e do filme, em inglês. Postou, nos comentários, um link do filme no Youtube. Em uma postagem final, “MM” coloca uma foto de Ruby nos dias de hoje e escreve: “Apesar de tudo Ruby não deixou de ser feliz, e hoje em dia é filantropa! Aprendi que devemos seguir em frente apesar das outras pessoas não aceitarem nossas diferenças, devemos procurar nossos direitos e sabermos mais sobre o que se passa no mundo. Como Ruby seguiu em frente devemos seguir também e não nos deixar abater por pessoas que não aceitam nossas diferenças”. A pesquisa de “MM” não apenas repercute o conceito de “racismo”, por exemplo (não se dá como algo como: “vamos dar exemplos de racismo”, em que o conceito anterior de “racismo” vai representar a realidade, vai reduzindo os “objetos” a elementos já conhecidos no exemplo). Ela compõe seu pensamento e seus conceitos com signos sensíveis ao observar uma foto de uma garotinha que precisava de escolta policial para poder frequentar a escola. É uma mobilização de desejo segundo uma certa sensibilidade que vai levá-la a criar um caminho de aprendizagem: a menina... que era negra... nos EUA... um caso histórico... racismo... diferença / diversidade... escola... O caminho que fez o pensamento de “MM” é um caminho de emoção, indignação... que vai levando a criar seu pensamento, a compor suas próprias problematizações com uma certa simpatia pela personagem “Ruby Bridge” que, daí

130

sim, vai fazendo agenciamentos com conceitos – um caminho que vai das “coisas” até os conceitos. Ao mesmo tempo, ela compõe sua pesquisa com fluência entre hipertextos, fazendo conexões com links diversos, filme, livro, fotografias, Ruby Bridge adulta...o pensar rizomático não é só do professor-pesquisador, mas as práticas colocadas em termos de transversalidade e hipertextualidade vão dando condições para composições de desejo, pensamento e transversalidades hipertextuais de maneira singular, criando diferença, pensamento e práticas em rizoma. “BR”, que participou de nossas conversas sobre Ruby e racismo e que, depois fiquei sabendo, conversou com “MM” sobre amizade (“BR” é rapaz, “MM” uma garota) postou uma foto de dois jovens, uma garota e um rapaz em um abraço fraternal com o texto: “Amizade entre sexos diferentes”, que falava entre outras coisas que “No Brasil frases de preconceito como ‘amigo de mulher é viado’ ditas prioritariamente por namorados ciumentos”. O texto foi assunto para conversa. Saberes nos encontros das amizades, signos de uma tarde de experiências em saberes transversais. A ausência de uma segmentaridade disciplinar de saberes e corpos possibilitou ao sentimento de simpatia de “BR” ser motivo de suas explorações, motivo de sua busca por saber. Sua postagem mobilizou o professor-pesquisador, “BR” e “MM” … “acho natural pessoas de sexo oposto serem amigas” dizia eu, “é que muitas vezes os rapazes não entendem a amizade e ficam querendo sacanear...”, dizia “BR”. “Mas isso já é preconceito!”, completou “MM”. Uma conversa sobre a naturalidade em ter amigos do sexo oposto, as relações entre aceitação em um grupo. “BR” só pôde participar da oficina naquela tarde, mas sua sensibilidade singular de trazer o saber para sua vida fica em nosso movimento de cartografia. Um movimento em que a busca dos saberes se dá como afirmativa da vida em sua imanência e não como um conceito colocado de modo unilateral (“é importante você saber isso!”, como um comando ou palavra de ordem disciplinar). Na afirmação da diferença de “BR”, vivenciamos uma aprendizagem como “experiência de problematização”, “invenção de problemas” (KASTRUP, 1999, p. 17) (“é possível um rapaz ser amigo de uma garota?”), que mobilizou explorações transversais no hipertexto e composições com colega e professor-pesquisador... estudantes mobilizando desejo e pensamento na posse dos problemas estudados, criação de singularidade (diagrama 15)... diferença...

131

Diagrama 15 - “Caminhos” de aprendizagem como diferença

Fonte: Elaborado pelo autor.

“GU” estava pesquisando e sentei ao seu lado e perguntei: “Tá... mas me diz aí o que é que mais te impressionou no nazismo...”. “Acho que foi o símbolo”, respondeu ele... “Sabia!” exclamei sorrindo. E assim fomos conversando sobre a suástica... ela é um símbolo bem mais antigo e mais amplo do que o nazismo, vários povos usaram a suástica como símbolo religioso bem antes do nazismo... Comentei também que muitos estudantes desenham a suástica e gostam dela por ser um símbolo muito bonito, coisa que eu também acho, mas o problema é que ela adquiriu um significado bem pesado... ele concordou. Saí e ele fez uma postagem falando sobre o que foi o nazismo, sobre Hitler e sobre a suástica ser um símbolo anterior ao nazismo e que é um símbolo bonito. Quando me chamou para ajudá-lo na escrita do texto comentei que tinha um amigo com uma suástica hindu tatuada no peito, contei que ele era praticante de ioga e que não era nazista. Ele ficou empolgado. Em sua postagem

132

colocou uma bandeira nazista e escreveu: “Nazismo. O Nazismo é um movimento político alemão, foi comandado por Adolf Hitler. Hitler era um homem que não gostava de judeus, gays e negros. Hitler foi preso em 1923, então enquanto estava na prisão criou um livro chamado “Mein Kampf” (Minha Luta). Quando saiu da prisão, reorganizou um partido e criou uma espécie de polícia militar. Hitler escolheu a bandeira do nazismo por ter um bom significado e ela é muito bonita, o significado dela é vida”. Achei interessante pesquisar o nazismo pelo viés do símbolo da suástica. Ele e “LE” já haviam explorado a crueldade do nazismo, mas agora o interesse era no símbolo, que ele achava bonito, independentemente do significado histórico que adquiriu no século XX. Sugeri que “GU” fizesse uma busca sobre a suástica na Wikipedia. Ele digitou a busca, abriu a página, juntos vimos que: “A suástica ou cruz gamada é um símbolo místico encontrado em muitas culturas em tempos diferentes, dos índios Hopi aos Astecas, dos Celtas aos Budistas, dos Gregos aos Hindus”. Abrimos uma imagem que compilava várias suásticas. Ficamos apreciando imagens de suásticas de diferentes povos... vendo seus detalhes, cores, desenhos... depois ele fez uma postagem com o texto da Wikipedia que estávamos explorando, juntamente a uma imagem de uma suástica tibetana. Um momento interessante quando houve a composição em uma apreciação estética, histórica... sensibilidades e abertura a novos significados... conexões entre estudantes e professor-pesquisador no hipertexto... Certa tarde, estávamos na biblioteca e resolvi fazer uma experiência usando imagens de livros didáticos. “ME” e “A” já haviam combinado de trabalhar juntas, postando pelo perfil de “ME”- tinham pensado em estudar a colonização do Brasil. “GU” estava curioso com o neonazismo e eu queria mostrar-lhe algumas imagens. Decidimos nos revezar, juntamente a “MM” e “OE”, que também estavam na oficina naquela tarde, o uso dos três computadores do espaço alternando seu uso com conversas usando as imagens dos livros didáticos. Para “GU” mostrei fotos de Hitler falando para multidões, mostrei algumas artes de propaganda nazista e uma foto de jovens hitleristas. Conversamos, falei-lhe sobre as imagens e ele ficou curioso com esse movimento de jovens nazistas e a violência toda implicada. Ao sair de nossa conversa, foi pesquisar sobre neonazistas e postou um texto que leu: “O neonazismo está associado ao resgate do nazismo, ideologia política propagada por Adolf Hitler, a partir do começo da década de 1920”. Mais tarde, quando li sua postagem pelo computador, postei no comentário o link para uma reportagem: “Olha isso: Ameaça do neonazismo persiste no Rio Grande do Sul. Prisão não costuma inibir os simpatizantes de ideais nazistas”. Ele leu e no outro encontro postou uma imagem de um jovem com um taco e ao fundo uma bandeira nazista com um texto com o

133

título “Conclusão sobre o neonazismo”. Mostrava que “O movimento neonazista está infiltrado em vários países, o Brasil é um deles” e falava da violência de neonazistas que “passaram perto do bar e observaram os três amigos que eram judeus, eles começaram a bater, chutar e dar facadas” e que “As vítimas ficaram traumatizadas por causa do acontecimento”. Com “GU” tivemos um movimento de composições em que a curiosidade do estudante o fez percorrer caminhos que agenciam o nazismo alemão da primeira metade do século XX, o símbolo da suástica vista como algo além do nazismo, como um símbolo belo e com significados religiosos em vários povos, a crueldade e o preconceito, e permanências nos dias de hoje e ainda no Brasil, com os neonazistas. Além de explorações no hipertexto, conversas com o professor, recomendação de filme, tivemos o uso da biblioteca, empregando imagens de livros didáticos em uma conversa em uma mesa da biblioteca. A pesquisa de “GU” demonstrou um fôlego interessante, foi abrangente, espraiou-se com os movimentos de seu pensamento. Nesse sentido, ele foi autor de seu caminho de aprendizagem, pois seu desejo de saber, de explorar, sua sensibilidade foi agenciando-se e produzindo singularidade. Ele se percebeu ativo em seus processos de aprendizagem, tendo no professor-pesquisador, no hipertexto, nos colegas, nas imagens dos livros parceiros de composição de um processo que era dele, afirmação de sua potência de produzir diferença. Antes de sentar na biblioteca com “A” e “ME”, eu havia separado três livros didáticos para, mostrando as imagens impressas, conversar sobre a colonização do Brasil. As duas sentaram e eu comecei a mostrar uma imagem das capitanias hereditárias e a falar da maneira que fomos colonizados, sobre tirar riquezas do território e levar para a Europa. Nisso, “ME” empolga-se, interrompe-me e dá-nos uma aula sobre história colonial. Emocionei-me! Nunca tinha sido “cortado” em minhas falas de professor... “Fala mais ‘ME’!”. Foi muito divertido. “ME” tinha muito para falar e o fazia com propriedade: falou da monocultura, da cana-deaçúcar, latifúndios, a “plantation”, produção que visa o mercado externo e não o desenvolvimento da colônia, um modo de produção que apenas visa extrair riquezas. Contribuí com a sua fala ao ressaltar da sociedade desigual, escravocrata e elitista que tal organização econômica produz. “ME” buscou sua apostila para falar da importância do nordeste brasileiro nessa época, arrematando: “Foi no nordeste que tudo começou...”. As duas estavam indignadas com as reações logo após a eleição presidencial daquele ano, devido a uma série de opiniões preconceituosas sobre o povo nordestino, que o qualificava como “inferior” e “culpado” pela reeleição da presidente. Elogiei o seu entusiasmo e participação. Sugeri que sua pesquisa tratasse também do preconceito com o povo nordestino de um modo geral, no que as duas concordaram com empolgação. Após nossa conversa e minha feliz

134

surpresa, as duas foram para um computador. A dupla foi fazendo suas postagens pelo perfil de “ME”. A primeira trazia como imagem uma foto de um molhe de cana de açúcar e tinha como texto: “22 de abril de 1500 – vinda dos portugueses para o Brasil. Época em que o pau-brasil foi explorado. Para fazer o trabalho de cortar e levar o pau-brasil até as caravelas os portugueses fizeram trocas de bugigangas como: espelhos, apito, chocalhos. O Brasil foi atacado pelos holandeses, ingleses e franceses. Para o término destes ataques D. Pedro I enviou para o Brasil ‘guarda-costas’, termo de defesa que não deu muito certo. Depois o rei de Portugal organizou a primeira vinda para o Brasil com a intenção de colonizar. Esta vinda foi comandada por Martins Afonso de Souza e teve como objetivo colonizar, expulsar os invasores e começar o cultivo de cana-de-açúcar”. A postagem recebeu comentário de “GU”: “adorei este post porque ele fala da vinda dos portugueses para o Brasil”. “ME” respondeu: “Sim, aliás, fala do Brasil, né! Não adianta postar apenas coisas dos outros países!”. Aqui a dupla justifica sua opção por buscar compor sua pesquisa ao tomar posse da problematização: “falar do Brasil”... Aliás a ideia da dupla de estudar a colonização foi motivada pela indignação de comentários preconceituosos contra nordestinos acontecidos depois do resultado das eleições presidenciais. Movimentos de singularização onde há uma composição do desejo com o pensamento que cria e toma posse dos problemas. Em seguida, “ME” postou uma imagem do antigo muro de Berlim com a legenda: “Como assim querem fazer um muro para dividir o Nordeste do Brasil inteiro??”. “A” postou uma imagem de fundo de cor rosa com a frase “a pior violência é o preconceito”, e, abaixo, escreveu: “Preconceito no Brasil”. Nas duas postagens eu fiz o mesmo comentário: “Olha só: este texto sobre o papel de muitos jornais e revistas no preconceito contra os nordestinos. ‘Preconceito contra nordestinos foi alimentado pela loucura de colunistas’”, juntamente ao link no “blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br”. Mais uma vez o professor-pesquisador vai compondo com as estudantes, compartilhando hipertextos, conectando saberes em transversalidade... Logo após “ME” e “A” fizeram outra postagem, onde se lia: “Olha, é uma palhaçada...mentira né?? Por causa de uma eleição querem fazer um muro para dividir o Nordeste do Brasil, que palhaçada! Isso é uma pouca vergonha. Vou explicar sobre as eleições: CADA UM VOTA EM QUEM ACHA MELHOR!!!!!! Para o Nordeste a votação da Dilma foi melhor, para as pessoas que dizem que eles são burros, ignorantes e muitas outras coisas...isso é errado. Foi no Nordeste que tudo começou, a colonização dos portugueses, a fase da cana-de-açúcar, a

135

venda de açúcar para a Europa, o café e várias outras coisas, resumindo tudo o que eu falei, TUDO COMEÇOU LÁ! Aqui não é Berlim e não precisa ser, fora do Nordeste, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, entre outras, para esses estados o melhor para eles é o que eles escolhem, e porque que o Nordeste não pode ter a sua liberdade? Apesar de o voto ser de cada um, cada um vota em quem quer, ninguém tem que julgar outro porque votou no Aécio ou na Dilma!”. Achei muito interessante os caminhos que a dupla estava compondo... algum signo de indignação lhes mobilizava, partiam de uma pesquisa sobre a história do Brasil para pensar em termos de sentido e valor a baixeza do preconceito contra os nordestinos. Em outro momento nos encontramos e conversamos mais sobre o assunto e da conversa surgiu outra postagem, como complemento: “O que tem a ver? Na política já dizem que cada um vota em quem achar melhor, que cada voto é secreto. Depois da política, que disseram que a Dilma tinha ganho e que ela tinha dominado o nordeste, todo mundo ficou revoltado. Fizeram coisas que não se deve fazer, falaram coisas que não se deve falar e agiram de modo errado. E se em 1500 quando os portugueses vieram para cá, e se não existisse o Nordeste? Nada teria acontecido! Nada a ver construir um muro para dividir o Nordeste”. O caminho de pesquisa que elas estavam traçando com essas postagens era alimentado por postagens do professor-pesquisador, que buscava na web links tratando do preconceito não apenas na ocasião do resultado das eleições, mas também este preconceito como algo histórico. Postaram uma ideia de “A” (figura 11): “O preconceito com os nordestinos é bastante comum com várias pessoas que moram no sul”. Comentei a postagem com uma ligação: “Olhem isso: o preconceito contra o nordestino no Sul e Sudeste do Brasil” e postei um link para o texto do site webartigos.com. “A” respondeu ao meu comentário: “O preconceito contra os nordestinos realmente é muito comum, mas devemos fazer a nossa parte para que esse preconceito acabe”.

136

Figura 14 - Postagem de “ME” e comentários do professor-pesquisador e de “A”

Fonte: Rede social diasporabr.

No movimento de compartilhamento de hipertexto, as duas leram os artigos que lhes encaminhei e postaram recortes com as ideias principais em dois posts. Um fazia um panorama sócio-histórico do preconceito contra os nordestinos e elas postaram, entre outras coisas, a ideia: “Mas, o fato é que existe preconceito contra os nordestinos por parte da maioria da população do Sul e do Sudeste do Brasil, principalmente contra aqueles que saem do seu lugar de origem em busca de uma vida melhor para si e para sua família no Sudeste e Sul do país. [...]. A imagem que os sudestinos e sulistas tem do Nordeste passa pelo seguinte imaginário coletivo: analfabetismo, a miséria, a seca, o flagelado, homem rude e a mulher caipira [...]”. Após o texto com o recorte, um comentário como conclusão: “Olhem, o que mais predomina é por nossa região! Isso não deveria acontecer!!!”. Com a leitura e a postagem, elas puderam delinear que o preconceito com o nordeste não é uma novidade das eleições de 2014, mas um triste acontecimento compartilhado por muitos moradores do sul e do sudeste. A outra postagem recortava ideias principais de outro artigo, que tratava das agressões aos nordestinos que eram “culpados” pela reeleição, onde muitos justificavam seu preconceito e desinformação como se fosse “liberdade de expressão” e trazia, entre outras coisas, que: “Esconder-se atrás da justificativa da ‘liberdade de expressão’ para a depreciação da dignidade humana é, portanto, a mais pura covardia”. Fiquei muito satisfeito com os caminhos. Elas estavam mobilizando-se criticamente, lendo artigos, trazendo conhecimentos históricos para resolver uma problemática cotidiana e atual

137

em suas vidas. Estavam compondo os seus próprios movimentos de busca por saber, mobilizados pelos signos que lhes tocavam no momento, fazendo de suas pesquisas uma afirmação de sua diferença. Em outra conversa que tivemos, elas me falaram de postagens nas redes sociais twitter e facebook que demonstravam grande preconceito. Estavam com vontade de trabalhar com essas postagens, mostrando o quanto estas são preconceituosas. A próxima etapa de seu trabalho foi fazer, pelo Google, uma busca por capturas de tela com postagens preconceituosas da época após as eleições. Postaram imagens de comentários infelizes e preconceituosos como: “Desculpem nordestinos, mas essa região do Brasil merecia uma bomba como Nagasaki, para nunca mais nascer uma flor sequer por 70 anos. #votocensitáriojá”, entre outros. A pesquisa de comentários como esse serviu como conexão e materialidade do preconceito estudado nas postagens anteriores, dando maior concretude aos argumentos de “ME” e “A” da necessidade de repensar atitudes preconceituosas, buscar conhecimento e respeitar a diversidade. Durante os trabalhos das postagens anteriores, aconteceram duas interessantes bifurcações, caminhos transversais e rizomáticos que renderam postagens. Enquanto pesquisava sobre o preconceito no Brasil, “ME” estava com uma janela do Google imagens aberta. Nela fotos de pessoas negras e entre elas o escritor Machado de Assis. Estava próximo a ela, acompanhando “A” e, por acaso, vi sua pesquisa e comentei: “Olha só o Machado de Assis... conhece esse cara? É escritor...”. Ela me olhou interessada e respondeu que não. Olhei para “A” e ela também disse que não. Contei para elas a história do seu conto O Alienista, em que um médico prende uma cidade inteira no hospício, pois qualquer um que ele julgasse estranho logo o classificava como louco e mandava internar... elas riram da história. Olhei novamente para a tela da pesquisa e vi uma foto de Cruz e Souza e exclamei: “Esse aqui é um de meus poetas favoritos, ele era catarinense e sofreu muito preconceito por ser negro... gosto muito da sua poesia!”. Estávamos próximos à estante de poesia da biblioteca e facilmente encontrei um volume de Obras Escolhidas de Cruz e Souza e li alguma coisa, interpretando o que lia. As meninas acharam interessante e estranho o tom mórbido da poesia... e acharam engraçado também pois sabiam de meu gosto por heavy metal, filmes de terror e coisas assim, pois já tínhamos conversado sobre isso. “ME” se empolgou e abriu uma janela do Youtube onde colocou uma poesia engraçada e jocosa sobre o “Cume de uma montanha”... rimos muito com a poesia e com o seu jeito de interpretá-la. Mas o que me chamou a atenção foi que “ME” realmente tinha achado interessante o texto de Cruz e Souza e abriu uma página do Google para ler um pouco sobre ele. Depois fez uma postagem,

138

juntamente a uma foto do poeta catarinense, e escreveu: “Cruz e Souza foi um grande negro brasileiro que sofreu racismo e muitas outras dificuldades” e, logo abaixo, a poesia Ironia de Lágrimas: “Junto da Morte é que floresce a Vida! Andamos rindo junto à sepultura. A boca aberta, escancarada, escura Da cova é como flor apodrecida. A Morte lembra a estranha Margarida Do nosso corpo, Fausto sem ventura... Ela anda em torno a toda a criatura Numa dança macabra indefinida. Vem revestida em suas negras sedas E a marteladas lúgubres e tredas Das ilusões o eterno esquife prega. E adeus caminhos vãos, mundos risonhos, Lá vem a loba que devora os sonhos, Faminta, absconsa, imponderada, cega!”

Abaixo da poesia, ela, jocosa, postou ainda: “#deixaquieto #nosvemosnasegunda!”. Registo de uma transversalidade cujas composições da estudante se encontram com a colega, com o professor-pesquisador, com a poesia, com o riso, com um livro da biblioteca... momento de fruição estética, do estranhamento com a linguagem de um poeta que trabalha com temáticas macabras e assustadoras, momento de pesquisa sobre o racismo e o preconceito, das dificuldades do poeta catarinense... rizoma, imprevisível, multiplicidades em jogo, abertura em expansão... Outra postagem que ocorreu durante a pesquisa de “ME” e “A” sobre a história do Brasil e o preconceito com os nordestinos partiu de “A”. Ela estava explorando quando se deparou com alguma referência ao movimento “O Sul é Meu País” e me chamou, perguntando do que se tratava. Eu disse: “É um movimento de pessoas que querem a separação dos estados do sul do restante do país...”. Pesquisamos no Google e exploramos a página do movimento. Comentei com ela que um dos principais argumentos dos separatistas era que o dinheiro dos impostos cobrados no Sul não retornava para a região. A ideia de separar o sul do resto do país indignava “A”. Após conversar, deixei-a à vontade explorando o site. Depois ela fez uma postagem com o símbolo do movimento “O Sul é meu país” e escreveu: “O preconceito é muito comum, até existe um movimento que se chama O Sul é meu País que quer separar o sul do resto do Brasil”. “ME” comentou a postagem: “Nada a ver isso, porque o Brasil é assim, ninguém tem que separar nada!”. Também comentei, trazendo um link sobre o assunto: “Olha isso: ‘Com vergonha moral do Brasil, movimento separatista

139

quer plebiscito pela independência do Sul’”. Mais um momento onde a transversalidade dos saberes no hipertexto nos permitiu conectar saberes, ampliar discussões, trazer novos elementos, sempre partindo das explorações da estudante e sua composição com o professorpesquisador. “MM” queria pesquisar sobre os “Iluminatti”... achei interessante pois esse é um assunto relativamente corrente nas redes sociais, como uma das muitas “teorias da conspiração”, mas não faz parte das discussões da “cultura histórica”, embora exista certa produção historiográfica sobre o tema. Como o assunto é amplo, nebuloso e tem muito a ver com as “teorias da conspiração”, resolvi indicar que ela assistisse ao documentário “Zeitgeist”, disponível no Youtube. Comentei que o documentário põe em questão o ataque às torres gêmeas e ventila a ideia de manipulação, em que o ataque teria sido orquestrado por motivos políticos. Lembrei a ela que na história são inúmeros os exemplos em que ataques são forjados para “dar uma desculpa” para iniciar alguma guerra. Citei os exemplos dos estopins da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Conversando com ela, fui ficando curioso pelo motivo que a levou a querer abordar um tema tão controverso... “É que o ‘X’, que estuda comigo vive falando dos Iluminatti, que o Bush é um Iluminatti, que os Iluminatti enganam as pessoas, que eles são satanistas...”. Achei interessante ela trazer para a oficina tal curiosidade: ela, de certa forma, borra a fronteira dos saberes aceitos disciplinarmente. Sua primeira postagem foi o link no Youtube do filme “Zeitgeist”. Nos comentários, postei mais dois vídeos, relacionados aos atentados de 11 de setembro: “Vídeo de 12 minutos: Diversos ângulos do atentado de 11 de setembro – imagens captadas pela população” e o link do Youtube. E “Vídeo de 25 minutos: a farsa de 11 de setembro” com o link correspondente. Ela assistiu aos vídeos e comentou comigo da controvérsia em torno do atentado, se teria sido um ataque terrorista ou uma farsa. Conversamos e lhe falei que, na história, existiram e ainda existem sociedades secretas e que existem muitos rumores, reais e fictícios, em torno delas. Comentei que na política existem vários grupos que buscam o poder, alguns mais abertos e fáceis de identificar como partidos políticos, por exemplo. Outros são mais difíceis de identificar como grupos dentro de governos, dentro de partidos políticos, grupos de empresários. Falei, também, das sociedades secretas como a Maçonaria, Rosa Cruz, que possuem ritos secretos, que só são conhecidos pelos seus membros. “MM” me ouviu e foi explorar mais sobre Iluminatti, sociedades secretas. Fez uma postagem com uma imagem de um olho dentro de uma pirâmide, imagem atribuída a uma simbologia Iluminatti e escreveu: “Quem realmente são os Iluminatti? ‘Iluminatti’, plural do latim ‘Iluminattus’, ‘aquele que é iluminado’”. Postei nos comentários: “Iluminatti (plural do

140

latim Iluminattus, ‘aquele que é iluminado’) é a denominação de diversos grupos, alguns históricos e outros modernos, reais ou fictícios”, com o link do verbete “Iluminatti” na Wikipedia. Em sua próxima postagem, “MM” mostrou que havia explorado o link que indiquei e outro também dentro da Wikipedia, além de compor com nossas conversas. Escreveu: “Imagina-se que os Iluminatti sejam um grupo secreto, estilo uma ordem ou sociedade secreta que ajudou em guerras com o objetivo de promover o mal. Um exemplo que eles promovem isso foi a derrubada das torres gêmeas, mas não existem provas. É o que é chamado de Teoria da Conspiração”. Logo abaixo colou uma parte do verbete: “Teoria da Conspiração” da Wikipedia, inclusive com o link, onde se lia, entre outras coisas: “Teoria da Conspiração é qualquer teoria que explica um evento histórico ou atual como sendo resultado de um plano secreto levado a efeito geralmente por conspiradores maquiavélicos e poderosos, tais como ‘sociedades secretas’ ou ‘governos sombra’ [...]”. Adiante, “MM” postou um dos vídeos que eu havia indicado nos comentários, intitulado A farsa do 11 de setembro e disponível no Youtube, seguido do texto: “O vídeo fala das possibilidades das torres gêmeas terem sio derrubadas através de bombas e não por causa dos aviões, pois são ouvidas várias explosões. Mostra vários pontos onde provavelmente explodiu algo antes do impacto do avião no prédio. Também mostra sobre o Pentágono aonde se diz que foi destruído por causa de um avião, mas o tamanho do avião não corresponde ao tamanho do buraco que ficou no local, as asas do avião iriam fazer mais destruições e em um vídeo gravado da parte de trás do ponto não mostra vestígios de nenhum avião. Este fato é polêmico. A teoria da conspiração diz que isso foi coisa dos Iluminatti, mas não se sabe se isso é verídico ou não”. Fiz ainda um comentário com um link: “Olha só isso: o ator Jim Carrey falando sobre os Iluminatti na televisão norte-americana”. A partir da curiosidade de “MM” sobre um assunto nebuloso, pudemos compor uma abordagem sobre os Iluminatti fazendo cruzamentos da história, com comparações de atentados que geraram guerras, com sociedades secretas, com uma problematização das forças políticas, secretas ou não, presentes na sociedade... vários saberes mobilizados transversalmente para colocar a questão problema de “MM” em termos mais amplos, além de crendices ou superstições, mas também sem dar respostas definitivas, pois, em questões de poder, sabemos da existência de manipulações, mentiras, jogos de forças. Enfim, não quisemos aqui colocar uma verdade definitiva sobre os Iluminatti, sociedades secretas, teorias da conspiração ou ao atentado às Torres Gêmeas, mas sim instrumentalizar o pensamento da estudante sobre uma questão contemporânea que atravessa a política internacional, a economia, as redes sociais, boatos, notícias...instrumentalização que rendeu a “MM” respostas, mesmo que temporárias e em

141

aberto, para a curiosidade que lhe despertava ouvir seu colega de classe tanto falar de “Iluminatti” (diagrama 16). Diagrama 16 - “Caminhos” de aprendizagem como diferença

Fonte: Elaborado pelo autor.

“GU”, por vezes, ficava pronto em seus trabalhos e me olhava um pouco ansioso. Eu sentia que ele gostava de movimentar-se e eu sempre lhe falava para que, a hora que ele quisesse, poderia sair e dar uma volta no pátio da escola, conversar com algum amigo que porventura estivesse por lá. Sentia que o ambiente de quatro paredes, por certos momentos, não lhe fazia tão bem. “GU” vinha sempre de skate e conversávamos bastante sobre o esporte, manobras, lugares para andar na cidade. “GU” fez duas postagens sobre o seu esporte favorito: um vídeo do atleta Cody Cepeda no Youtube intitulado Best of Cody Cepeda (New Style 2014)”, e escreveu: “eu postei porque eu gosto dele e eu amo o skate”. Uma coisa que me chamou a atenção foi a semelhança física de “GU” com Cody Cepeda e postei nos comentários: “Massa! E ele é parecido contigo né? Hahahahahahah. Conhece esse cara aqui? É daqui de Itajaí”. E postei um vídeo do Youtube de um talentoso skatista local. Em uma segunda postagem, uma foto de um skatista manobrando em uma rampa e um recorte do

142

verbete “skate” da Wikipedia. Entre outras coisas, trazia: “Os skates originalmente eram muito primitivos, não possuíam nose nem tail, eram apenas uma tábua com quatro rodinhas. [...]”. Quando nos encontramos pessoalmente, conversamos sobre as postagens, as manobras, a história do skate e a conversa foi fluindo, falamos sobre o preconceito que muitos tinham com o skate... falamos de preconceito em geral e a conversa chegou em uma notícia que lhe mostrei na tela do computador: “Segundo dados oficiais, a cada 2 horas 7 jovens negros são mortos no Brasil. Isso que autos de resistência não são computados, bem como para o Datasus (Departamento de informática do SUS, Sistema Único de Saúde) homicídios são tratados como ‘morte por causa ignorada’. Além do mais, segundo dados da própria PM (os quais admite-se são estimativos: ou seja, o número de assassinatos é maior) 6 pessoas são mortas por dia pela Polícia Militar”. A notícia estava vinculada à campanha “Jovem Negro Vivo” da Anistia Internacional. Como ele se interessou, leu o artigo A violência contra jovens negros no Brasil por completo, seguindo o link para o site da revista “Carta Capital”. Também explorou o site da Anistia Internacional, onde assistiu a um vídeo que propunha uma petição a qual ele assinou. Em seu post colocou uma imagem do rosto de uma criança negra tendo ao fundo uma bandeira do Brasil e escreveu: “Eu entendi que os jovens do Brasil estão morrendo cada vez mais. O vídeo tenta mostrar para nós que os jovens e os negros não devem ser mortos só porque são jovens ou porque são negros. Então não deixe que os jovens e os negros morram, tentem ajudar esses jovens, não deixem que eles morram inocentes. Eu acabei de assinar um manifesto para que os jovens do Brasil não sejam mais assassinados”. Logo abaixo seu texto, o link para a Anistia Internacional, onde se lia: “Jovem Negro Vivo – Anistia Internacional. Dos 30.000 jovens vítimas de homicídios por ano no Brasil, 77% são negros. Queremos ver os jovens vivos! Chega de homicídios!”. Nos comentários, ele postou ainda o link para o artigo do site da revista que estávamos lendo. No contato do estudante com o professor-pesquisador em conversas informais, momento em que a singularidade do estudante é positivada, é parte da composição de suas buscas por saberes, suas sensibilidades... o rizoma, sempre em abertura, contempla saberes múltiplos, transversais e essa valorização é valorização do estudante, que afirma sua potência de ser diferente... trocas no espaço-tempo da oficina que vão compondo conexões para outros saberes, fazendo rizoma com outras problemáticas, que agenciam desejo, pensamento, sensibilidades... ampliação, multiplicidades... Foi constante esse tipo de relação entre estudantes e professor-pesquisador de composição de potências, de certa cumplicidade na troca de ideias, nas escritas, nas conexões

143

de saberes com links, vídeos, pequenas conversas como aulas. Um delicado exercício de ouvir os jovens sem julgamentos disciplinares ou de controle, sem pressões produtivistas modelizantes, buscando fazer com eles seus caminhos de aprendizagem. Por exemplo, foi comum durante as oficinas trocarmos ideias e compartilharmos nossos gostos musicais e tais momentos de trocas, conversas, risadas, pensamentos, fomos estabelecendo relações. Em uma tarde da oficina, estávamos “ME”, “A” e “GU”, deveria ser umas quatro horas da tarde e eles já tinham encaminhado seus trabalhos e postado seus processos. De modo espontâneo estávamos nós quatro em frente a um computador da biblioteca ouvindo alguma música pelo Youtube. De repente criamos, ali no momento, uma roda onde cada um colocaria uma música de seu gosto: “ME” colocou R5, “A” uma música do Justin Bieber, “GU” colocou “a nova” do Criolo e eu pus uma música do Sepultura. E, assim, ficamos por quase uma hora, colocando músicas, ouvindo e conhecendo os gostos musicais, conversando sobre música, sobre respeito, diversidade, preconceito, indústria da música... pensamento, risadas, trocas, convivências... criação de linhas de fuga das segmentaridades disciplinares e de controle, novos territórios de práticas escolares... novas composições de desejo... rizoma... Sobre a oficina “história nômade”, desde seu início, as postagens nunca foram algo “automático”, “mecânico” ou “frio” - fizeram parte de um tempo explorado, pensado, sentido, lido, trocado. Não se tratou de simplesmente alimentar um perfil de rede social. Cada postagem é um momento de um processo de busca e exploração do hipertexto, de procurar links, de fazer da web instrumento de conexão do desejo com os saberes. A cada postagem havia uma troca com o professor, que não estava ali para controlar, mas para encontrar-se... professor que, por vezes, ouvia as histórias das postagens, ouvia opiniões, ajudava na ortografia e gramática do texto, ajudava com o uso do computador, mas que também contava histórias, dava opiniões. As postagens não são o “resultado”, mas movimento hipertextual do processo de agenciamento de saberes em transversalidade. O que estamos aqui delineando é um movimento em que o desejo se dá no espaço, no tempo e na relação com os saberes de uma forma diferente, pois não opera de acordo com toda a série de segmentaridades disciplinares, mas antes cria seu próprio espaço, cria suas intensidades, vai conectando as buscas por saberes em um movimento de abertura que se faz ao fazer-se. Esse movimento produz novas subjetividades, automodelizadoras, que se conectam às multiplicidades do rizoma de acordo com sua própria diferença, pois, antes de mais nada, na oficina, os corpos não estão colocados em uma segmentaridade onde o desejo deve responder de modo passivo a comandos normativos, segmentaridades espaço-temporais ou de imposição de necessidade de saberes a serem depois avaliados. O desejo nos processos da “história-

144

nômade” foram se colocando em composição ativa, afirmativa de si. O jovens se entenderam como ativos e, dessa maneira, produziram devires, movimentos de transformação. Ao estarem livres para explorar o hipertexto tornam-se responsáveis por si, pelos seus saberes e isso é processo de transformação em devir... “tornar-se outros” de modo singular e em razão de sua própria potência, pois não existe um modo pré-definido que diga como os corpos devem se dispor, como o tempo deve se dar, quais movimentos de saber são melhores que outros, não se coloca o saber como questão de resposta a comandos, onde ele só pode se dar de modo passivo. Aqui a direção da atividade dá-se no próprio mover-se, que, por sua vez, é razão de potência do movimento. Quanto mais participávamos da oficina, mais à vontade ficávamos ao nos relacionar entre nós, em relacionarmo-nos com os hipertextos, com a colocação dos desejos e dos saberes de modo ativo ao ponto de irmos trilhando por entre as segmentaridades e construindo nossos espaços, nossas convivências, nossos encontros em multiplicidades que não precisavam ser reduzidos a um Uno. Não eram avaliados segundo um modelo: nossos encontros como singularidades que não precisam ser avaliadas, classificadas, medidas disciplinarmente... estar em acontecimento, devir... criar diferença... Vivenciamos com os usos da web possibilidades múltiplas adquiridas pelos saberes em fluxo, com a velocidade e operacionalidade da informática fazendo um agenciamento com os desejos dos jovens, que se mobilizavam com os saberes, que mobilizavam pensamento. Oficina como corpo coletivo de movimentos do ciberespaço, movimentos de diferença, fazendo linhas de fuga das segmentaridades e construindo o seu próprio novo território: máquina de mutação... rizoma. Desenho de novos convívios, relações com os saberes, relações entre professor-pesquisador e estudantes... novas possibilidades de abordagem do conhecimento. Os movimentos que compusemos não querem se colocar como a maneira única “de se fazer rizoma”, não se trata de fazer modelos: rizomas são multiplicidades, composição de exercícios de singularidades. O que produzimos na oficina é um contorno que se deu na vivência coletiva que vem a “produzir a possibilidade do novo” (GALLO, 2008, p. 61). A oficina se deu como um corpo coletivo de mutações e o presente trabalho foi um desenho de nossas movimentações. Contudo, esse desenho não é o único e nem está fechado... em novas práticas, ele pode (e talvez deva!) agenciar-se com novas produções, fazer rizomas onde os estudantes e o professor-pesquisador façam acontecer pesquisas de maior fôlego, aprofundamentos, novas relações entre saberes, composição de grupos móveis de interesse e trabalho, rearranjamentos desses grupos, exploração de espaços físicos mais amplos e abertos, experiências mais amplas, conexões a distância, rearranjamentos em outros espaços, atuação

145

em espaços físicos diferentes, ao ar livre, arborizados, salas com poltronas, mesas amplas, livros, TV, som, com melhor qualidade de conexão com a internet, com dispositivos móveis, com novos usos da web, mas também em composições com professores-pesquisadores de várias áreas operando em transversalidade... um rizoma com professores-pesquisadores em conexão múltipla, artes, geografia, literatura, teatro, capoeira, ciências, robótica, música, programação, web design, jogos... O nosso trabalho de compor um contorno estabelece, então, uma experiência com a aprendizagem como diferença em uma virtualidade que pode se atualizar e, enquanto tal, produzir múltiplas diferenças. O devir nas práticas escolares, pois o rizoma nunca para, está sempre em processo, para além dos produtivismos disciplinares e de controle e em um movimento de multiplicidades de fazer-se constante. Processo de abertura, abertura em processo... rizoma...

146

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o rizoma “história nômade”, operamos conceitos não buscando definições ou fechamentos, mas percorremos, delineamos... Utilizamos os conceitos como ferramentas que se conectaram como multiplicidades para podermos delinear problematizações, produzir novos conceitos, operacionalizar material web, conceber, realizar e cartografar a oficina. Assim, produzimos um plano imanente de pensamento e práticas escolares que agenciaram professor-pesquisador, estudantes, desejos, pensamentos, criações, saberes, sensibilidades, usos da web... Algo que não foi resultado da aplicação de um modelo, que não possui uma forma fixa, mas que é antes uma criação de existência que se deu no próprio criarse, por estarmos, desde o início de nossa pesquisa, operando em rizoma. Não se tratou da “aplicação” de alguma teoria, tampouco de “analisar” algo, mas tratou-se da criação de pensamento e práticas, movimentos de pesquisa em imanência... Nosso trabalho foi criação de um território imanente de existência. Criação imanente de experiência, rizoma. Sem seguir e sem produzir modelos, sem querer criar alguma representação, sem intenção de fazer de nossas práticas decalque arborescente. Nossa cartografia da “história nômade” como um mapa onde delineamos movimentos de criação de pensamento e práticas que tiveram existência concreta. Rizoma de práticas e pensamento escolares... conexões que foram compondo nossos movimentos. Movimentos de criação, práticas e pensamentos como produção de diferença. Nas práticas da oficina, mesmo com nossas dificuldades de espaço, pois não tivemos propriamente a liberdade de transitar por toda a escola acessando a internet por rede wireless, como havíamos planejado inicialmente, conseguimos operar uma série de linhas de fuga da disciplinaridade. Em nossas relações de tempo e espaço, os estudantes mostraram fluidez por entre dificuldades, pois, nem sempre contando com um local apropriado para a oficina, compusemos movimentos nômades de um grupo em busca de espaços na biblioteca, na sala de informática, aguardando horários disponíveis, procurando sinal de internet, procurando máquinas em funcionamento, etc. Criamos um certo “espírito” de grupo, que nos permitiu fluir e criar nossas próprias relações com tempo e espaço. Especialmente, operamos nomadismos por nosso trabalho positivar a diferença com as operações do “território transversal de saberes”. Nossas práticas não passaram por molaridades modelizadoras como cobranças de entregas, controles hierárquicos, exames e avaliações, mas sim contaram com a frequência voluntária dos estudantes, que trabalharam em uma “perda de tempo” de explorar web, trocar ideias com o professor, com os colegas...

147

Houveram estudantes que frequentaram mais a oficina, outros menos... mas o importante foram as intensidades produzidas. O trânsito transversal e hipertextual da oficina permitiu-lhes acessar e interagir com as multiplicidades dos saberes segundo os ritmos, escolhas, nuances de cada um, num movimento de conexões rizomáticas que se fizeram no próprio fazer-se, devir nômade dos pensamentos e dos desejos. Ao colocarmos espaço, tempo e saberes em termos de multiplicidades rizomáticas e não em termos de medida e controle produzimos nossas relações imanentes para a aprendizagem. E os movimentos dessas relações são o “produto” de nossa pesquisa (com palavra produto entre aspas, pois nos interessa menos os resultados materializados do que a intensidade dos processos delineados). Movimentos de abrir mão de molaridades e fazer os desejos passarem em termos de multiplicidades, compondo com os pensamentos criações de diferenças. Jovens cujos desejos por saberes percorreram o hipertexto em termos de transversalidade. O professor-pesquisador fez com os estudantes, compondo com seus desejos e pensamentos, em uma atitude de colaborar com o fluxo. Assim, possibilitou processos de afirmação da diferença de cada jovem participante que estava aprendendo criando, criando e aprendendo, movimento de afirmação de sua potência singular... Pois não existe vida que não seja singular! As vidas não são comparáveis, avaliáveis, controláveis, modelizáveis se pensamos e praticamos educação em termos de multiplicidades... o que coube ao professorpesquisador foi incentivar o fluxo do fazer-se da própria diferença dos estudantes, de si próprio e da oficina como movimento de grupo... A transversalidade dos saberes, aliada às possibilidades hipertextuais do usos da web, desenhou caminhos singulares de aprendizagem dos estudantes. Exploração dos blogs e da web em geral, mas também troca e interação por meio da rede social com visualizações das postagens, “curtidas” e comentários compuseram um movimento coletivo de colocar as criações de diferença em circulação. Certamente, se não fosse nosso acesso à web, não teríamos tanta fluidez na exploração, busca, compartilhamento e disponibilidade dos saberes de nosso “território transversal”. A web foi uma ferramenta importante. Os estudantes lidavam com surpreendente espontaneidade com o “território transversal e saberes”, não necessitando para as suas explorações que seus saberes passassem por uma modelização disciplinar. O desmanche das segmentaridades disciplinares foi espontânea: por estarem em movimentos de abertura, os estudantes operaram pensamentos nômades, percorreram e criaram seus próprios percursos transversais de acordo com suas problematizações, seus desejos em composição com pensamentos. Nosso “território transversal de saberes”, ao positivar a diferença, mobilizou

148

multiplicidades que foram acessadas, percorridas, agenciadas, recombinadas, recriadas de acordo com a singularidade de cada estudante em processos de criação de suas próprias diferenças. Dessa maneira, a oficina foi, antes de mais nada, atitude de cada estudante que participou, atitude do professor-pesquisador... Os movimentos foram atitudes de criação espontânea por darem-se a partir de uma determinada maneira de preencher os desejos. À medida que as multiplicidades de signos emitidos pela “história nômade” mobilizava desejos e pensamentos, tornávamo-nos ativos ao efetuarmos nossas próprias potências, ao afirmarmos nossas diferenças. Assim acabamos produzindo movimentos no espaço e tempo escolares que delinearam atitudes que compuseram algo como um “modo de viver” na oficina. Um “modo de viver” em imanência que permitiu as multiplicidades e que afirmou as diferenças, exprimindo nossas singularidades. Práticas escolares sem modelos, sem representações, sem disciplinarizações. Práticas como rizoma, como devir, pois existimos todos ao criarmos nossa própria existência... Nossas vidas na “história nômade” foram ativas e esta foi, mesmo de maneira tácita, a “maior” aprendizagem como diferença que criamos. Foi, pelo menos, o maior aprendizado deste professor-pesquisador: aprendemos ao criarmos um modo de viver de “vidas ativas” que não precisam estar submetidas a ordens de “dever ser”... Aprendemos ao criarmos práticas escolares que nos possibilitaram investir em nossas singularidades, afirmar nossos desejos e nossos pensamentos e assim fomos produzindo um tipo de subjetividade que cria a si própria ao afirmar-se como criadora. Saberes como “pretexto” para a criação de nossas singularidades... Processo de desprendimento e invenção, pois quanto mais convivíamos na oficina, mais à vontade ficávamos, quanto mais explorávamos e compartilhávamos saberes, mais à vontade ficávamos para fazê-lo mais uma vez, e mais... Experiências com a web, com colegas, com professor-pesquisador, com saberes, com sensibilidades, com trocas, com multiplicidades onde afirmávamos nossos desejos, nossos pensamentos, nossas diferenças e, assim, transformamo-nos a nós mesmos nos processos. Desejo por saberes em sua utilidade segundo o pensamento mobilizado por signos, postura ativa de exploração, desejo ativo por saberes. Desejo e pensamento não mais passivos em relação a molaridades disciplinares, mas ativos porque agenciados com os signos do “território transversal de saberes” ao produzir aprendizagens como diferença. Singularidades onde a existência coincidiu com os desejos, que ampliaram a nossa discernibilidade com um certo “gosto de viver”... aprender como criar, criar como aprender, produzir diferenças, aberturas, devires... “história nômade”...

149

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JR. D. M. de. A história em jogo: a atuação de Michel Foucault no campo da historiografia. Anos 90. Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.79-100, jan./dez. 2004. ALMEIDA, A. L. C. Pós-modernismo, pós-estruturalismo e nova história: a recusa da razão totalizante. Pro-Posições, v. 8, n. 2[23], p.85-91, março, 1999. ALIEZ, E. Deleuze filosofia virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996. ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 131-149. ARANHA, M.L. de; MARTINS, M. H. P. Filosofando. Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. BARROS, L. P. de; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisaintervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 52-75. BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BIANCO, G. Gilles Deleuze educador: sobre a pedagogia do conceito. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 179-204, jul./dez. 2002. ______. Otimismo, pessimismo, criação: pedagogia do conceito e resistência. Educ. Soc. Campinas, vol. 26, n.93, p.1289-1308, set./dez., 2005. CORAZZA, S. Não se sabe... Educação & Sociedade. Campinas, vol. 26, n. 93, p. 12051208, set./dez., 2005. ______. Noologia do currículo: vagamundo, o problemático, e Assentado, o resolvido. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 131-142, jul./dez. 2002. CORAZZA, S.; TADEU, T. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. CORRÊA, E. M. Currículo e ensino de ciências na educação de jovens e adultos: entre linhas, saberes e diferença. 2013. 76f. Dissertação. (Mestrado em Educação em Ciências e Matemáticas – Educação em Ciências). Universidade Federal do Pará. Belém, 2013. CORRÊA, G. C. Oficina – Novos Territórios em Educação. In: Pedagogia Libertária: Experiências Hoje. São Paulo: Imaginário, 2000. p. 77 – 162. COSTA, S. de S. G. De fardos que podem acompanhar a atividade docente ou de como o mestre pode devir burro (ou camelo). Educação & Sociedade. Campinas, v. 26, n. 93, p.1257-1272, set./dez. 2005.

150

______. Sociedades de controle e educação. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2014. CRAGNOLINI, M. Estranhos ensinamentos: Nietzsche – Deleuze. Educ. Soc. Campinas, v. 26, n. 93, p. 1195-1203, set./dez. 2005. DELEUZE, G. O Abecedário de Gilles Deleuze. D de Desejo. 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2015. ______. Bergsonismo. São Paulo: 34, 1999. ______. Conversações. Rio de Janeiro: 34, 1992. ______. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ______. A imanência: uma vida... Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 10-18, jul./dez. 2002a. ______. Espinosa. Filosofia Prática. São Paulo: Escuta, 2002b. ______. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. ______. Pensamento nômade. In: MARTON, S. (Org.). Nietzsche hoje? Colóquio da Cerisy. São Paulo: Brasiliense, 1985. ______. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka. Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. ______; ______. Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: 34, 1995a. ______; ______. Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3. São Paulo: 34, 1995b. ______; ______. Mil platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 5. São Paulo: 34, 1997. ______; ______. O anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: 34, 2010. ______; ______. O que é a filosofia? São Paulo: 34, 1992. DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998. DREYFUS, P.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. DOLL JR., W. E. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. ESCÓSSIA, L. de; TEDESCO, S. O coletivo de forças como plano de experiência

151

cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 92-108. FERREIRA, F. T. Rizoma: um método para as redes? Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 28-40, mar. 2008. FERRONATO, M. A. S. V. A representação como limitação – crítica de Deleuze à noção de diferença ontológica em Heidegger. Acta Scientiarum. Maringá, v. 32, n. 1 p. 81-89, 2010 FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999a. ______. Ditos e Escritos. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. ______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999b. ______. Introdução à vida não fascista. In: ESCOBAR, C. H. de (org), “Dossier Deleuze”. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991. ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000. ______. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. ______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. GALLO, S. As múltiplas dimensões do aprender... In: CONGRESSO DE EDUCAÇÃO BÁSICA: Aprendizagem e Currículo. COEB 2012, 2012, Florianópolis. Anais eletrônicos...Florianópolis: UFSC, 2012. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2015. ______. Deleuze & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. ______. Educação: entre a subjetivação e a singularidade. Educação, Santa Maria, v. 35, n.2, p. 229-244, maio/ago. 2010. ______. Transversalidade e educação: pensando uma educação não disciplinar. In: ALVES, N.; GARCIA, R. L. (Orgs.). O sentido da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 17-41. GARCIA, W. Territórios virtuais e educação. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 67-76, jul./dez. 2002. GAUTHIER, C. Esquizoanálise do currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 143-155, jul./dez. 2002.

152

GOMES, P. B. M. B. Devir-animal e educação. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 59-66, jul./dez. 2002. GORE, J. M. Foucault e educação: fascinantes desafios. In: SILVA, T. T. da. (Org.) O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 9-20. GRISOTTO, A. Filosofia da diferença: apontamentos em torno da aprendizagem do pensamento em filosofia. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v. 14, n. 1, p. 179198, jan./jun. 2012. GUALANDI, A. Deleuze. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: 34, 1992. ______. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005. GUIZZO, D.C.; INVERNIZZI, N. A potencialização das práticas biopolíticas pela tecnologia: novas produções do corpo e gênero feminino. Revista Ártemis. 2012, jan-jul, vol. 13, pp. 119-128. HARVEY, D. A Condição Pós-Moderna. Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. São Paulo: Loyola, 1993. JENKINS, K. (Org.). The postmodern history reader. New York: Routledge, 1997. KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Martin Claret, 2009. KASTRUP, V. A rede: uma figura empírica da ontologia do presente. In: FONSECA, T. M. G.; KIRST, P. G. Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p. 53-62. ______. Aprendizagem, arte e invenção. Psicologia em estudo, Maringá, v. 6, n. 1, p. 17-27, jan./jun. 2001. ______. A invenção de si e do mundo. Uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas: Papirus, 1999. ______. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.) Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 32-51. KIRST, P. G. et al. Conhecimento e cartografia: tempestade de possíveis. In: FONSECA, T. M. G.; KIRST, P. G. Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p. 91-102. KOHAN, W. O. Entre Deleuze e a educação: notas para uma política do pensamento. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 123-130, jul./dez. 2002.

153

KROEF, A. Currículo-nômade: sobrevôo de bruxas e travessias piratas, 2003.172f. Tese (Doutorado em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação) Universidade Federal do Rio Grande só Sul. Porto Alegre, 2008. LARROSA, J. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, T.T. da (Org.) O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 35-86. ______. Nietzsche & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. LEACH, E. Etnocentrismos. Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989. p.136-15. 5 v. Anthropos - Homem. LEGOFF, J. Foucault e a “nova história”. Plural. Sociologia, USP, São Paulo, n.10, p. 197209, 2o sem., 2003. LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999. _______. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: 34, 1998. LINS, D. Mangue's School ou por uma pedagogia rizomática. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1229-1256, set./dez. 2005. LYOTARD, J. F. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. MADARASZ, N. A potência para a simulação: Deleuze, Nietzsche e os desafios figurativos ao se repensar os modelos da filosofia concreta. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1209-1216, set./dez. 2005. MAIRESSE, D. Cartografia: do método à arte de fazer pesquisa. In: FONSECA, T. M. G.; KIRST, P. G. Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003, p.259-272. MARINHO, C. M. A filosofia da diferença de Gilles Deleuze na filosofia da educação no Brasil. 2012. 463 f. Tese (Pós-Doutorado em Educação – Filosofia e História da Educação) – Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, SP, 2012. MARSHALL, J. Governamentalidade e educação neoliberal. In: SILVA, T. T. da. (Org.). O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 21-34. MARTINS, A. (Org.) O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009. MATTA, A.; Tecnologias de aprendizagem em rede e ensino de história. Utilizando comunidades de aprendizagem e hipercomposição. Brasília: Líber Livro, 2006. MENEZES, A. B. N. T. de. Foucault e as novas tecnologias educacionais. Espaços e dispositivos de normalização na sociedade de controle. In: ALBUQUERQUE JR., D. M.;

154

VEIGA-NETTO, A.; SOUZA, A. de. Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. MOSTAFA, S. P. O pragmatismo clássico americano e a filosofia da diferença: questões para a educação. Contrapontos, Itajaí, v. 13, n. 2, p. 120-129, mai./ago. 2013 NIETZSCHE, F. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. NOVAES, A. (Org.). Mutações. Ensaios sobre as novas configurações do mundo. São Paulo: Agir, 2007. PASSOS, E.; BARROS, R. B de. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.17-31. PASSOS, E.; EIRADO, A. do. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 109-130. PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. PETERS, M. Geofilosofia, educação e pedagogia do conceito. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 77-87, jul./dez. 2002. ______. Governamentalidade neoliberal e educação. In: SILVA, T. T. da (Org.). O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 211-224. ______. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Uma introdução. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. PLATÃO. A república. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1949. POPKEWITZ, T. S. História do currículo, regulação social e poder. In: SILVA, T. T. da (Org.). O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 173-210. PORTOCARRERO, V. Os limites da vida da biopolítica aos cuidados de si. In: ALBUQUERQUE JR., D. M.; VEIGA-NETTO, A.; SOUZA, A. de. Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. POSTER, M.; SAVAT, D. (Orgs.). Deleuze and new technology. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1998. PRADO FILHO, K.; TETI, M. M. A cartografia como método para as ciências humanas e sociais. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 38, p. 45-59, jan./jun. 2013. RÍOS, G. A captura da diferença nos espaços escolares: um olhar deleuziano. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 111-112, jul./dez. 2002.

155

RODRIGUES, H. O. Foucault e a história: produzindo um campo de múltiplas possibilidades. Diálogos & Ciência, Salvador, Ano 9, n. 26, jun. 2011 ROLNIK, S. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer […]. In: FONSECA, T. M. G.; KIRST, P. G. Cartografias e devires: a construção do presente. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.207-218. ROY, K. Gradientes de intensidade: o espaço háptico deleuziano e os três “erres” do currículo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 89-109, jul./dez. 2002. RUDIGER, F., Introdução às teorias da cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2003. SANTOS, E. de F. S. Notas de Leitura. Harvey, David. A Condição Pós-Moderna. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 6, n.1. p.181-187, verão 2001. SCHÉRER, R. Aprender com Deleuze. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1183-1194, set./dez. 2005. SILVA, M. C. A escola como primado da representação: as contribuições do pensamento de Gilles Deleuze. Conjectura: Filosofia e Educação, Caxias do Sul, v. 19, n. 1, p. 157-172, jan./abr. 2014. SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2012. ______. Identidades Terminais. As transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis: Vozes, 1996. SOUZA, R. M. Rizoma Deleuze-Guattariano: representação, conceito e algumas aproximações com a educação. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília, n. 18, p. 234-259, maio/out. 2012. SPINOZA, B. de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. TADEU, T. Arte do encontro e da composição: Spinoza + Currículo + Deleuze. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 47-57, jul./dez. 2002. TEIXEIRA, M. Currículo de história nos anos iniciais: da diversidade à diferença. 2011. 50 f. TCC. (Faculdade de Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFGRS, Porto Alegre, 2011. VARELA, J. In: SILVA, T. T. da (Org.). O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 87-96. VARELA, J.; ALVAREZ-URÍA, F. Arqueologia da la escuela. Madrid: Las ediciones de La Piqueta, 1991. VASCONCELLOS, J. A filosofia e seus intercessores: Deleuze e a não-filosofia. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1217-1227, set./dez. 2005.

156

VEIGA-NETTO, A. Foucault & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. VEYNE, P. M.; Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. WILLIAMS, J. Pós-estruturalismo. Petrópolis: Vozes, 2012. ZOURABICHVILI, F. Deleuze e a questão da literalidade. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p.1309-1321, set./dez. 2005. ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Campinas: Ifch-unicamp, 2004.

157

APÊNDICE

Postulados da imagem dogmática do pensamento Em sua obra Diferença e Repetição, Deleuze (1988) elenca postulados, todos implicados uns nos outros, que fundam a imagem dogmática do pensamento e, consequentemente, impedem o aparecimento de uma filosofia da diferença. 1) O primeiro postulado é o “princípio da cogitatio natura universalis”, que é a posição de tomar o pensamento como exercício natural de uma faculdade, naturalmente em afinidade com o verdadeiro. Sempre sob um duplo aspecto: uma boa vontade do pensador e uma natureza reta do pensamento. Assim, o pensamento conceitual filosófico dá-se implicitamente sob uma imagem dogmática, pré-filosófica, tida como natural, em que o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, o possui formalmente e o quer materialmente. É sobre essa imagem que se presume que cada um saiba o que significa pensar (DELEUZE, 1988, p. 131). Esse postulado, de certa maneira, fundamenta a operação de segmentaridades modelizantes, pois o modelo vai ser justificado como que identificado com a verdade pois pensado corretamente como algo natural. Ou, ainda, o pensamento vai se dando, vai passando pela modelização em sua própria composição. Eis porque tal imagem de pensamento é descrita por Deleuze como dogmática, ortodoxa, ou imagem moral do pensamento: ela persuade de que o pensador é sempre imbuído de boa vontade, uma boa natureza que vai fundar a suposta afinidade universal do pensamento com o verdadeiro. Motivo este também que leva Deleuze a perceber esta imagem de pensamento em grande parte das filosofias, de Platão a Hegel, passando por Descartes e Kant. Ao criar sua filosofia, ele não se apoia na imagem moral do pensamento, mas toma como ponto de partida uma crítica radical desta imagem de seus postulados, “[...] como se o pensamento só pudesse começar, e sempre recomeçar, a pensar ao se libertar da imagem e dos postulados” (DELEUZE, 1988, p. 131-132): novamente, é que o pensamento não é exercido como uma boa vontade naturalmente voltada à “verdade”, mas é algo que é tomado segundo um sentido e um valor, sendo este “sujeito epistêmico universal” na realidade uma operação de saberes e poderes constituídos historicamente segundo um campo coletivo de forças. 2) O segundo postulado da imagem dogmática do pensamento é o “ideal do senso comum”, que coloca a edificação da imagem dogmática do pensamento como algo de direito: “todo mundo sabe o que é pensar”, ou ainda, “todos sabem o que significa pensar”, uma compreensão implícita suposta pelo “Eu penso” como primeiro conceito (MACHADO, 2010,

158

p. 315). O bom senso ou o senso comum naturais são tomados como determinação do pensamento puro, cujo sentido prejulga sua própria universalidade como algo de direito, estendido a todos e da mesma maneira. É o senso comum que forma a identidade do objeto que é fundada no sujeito pensante. E isso nos faz lembrar que as práticas modelizantes sempre se impõem a uma universalidade por direito. Para aplicar o direito, reencontrar o espírito bem dotado, seria necessário um “método” explícito (DELEUZE, 1988, p. 132). O sujeito, em uso do método, torna-se sempre igual a si e a todos, pois, como modo de apreensão do que é geral e estático, o método propõe-se a excluir do homem toda a diferença e movimento, tudo o que é imprevisto e contingente. [...] Acreditava ser possível um conhecimento direto, exato e frio das ‘coisas em si’, como se a razão, suposta independente dos acidentes, refletisse uma imagem impossível de ser vislumbrada com os olhos, mas unicamente através de conceitos fixos, aos quais se atribui uma realidade demonstradamente necessária. (KIRST et al., 2003, p. 93-94).

É a “[...] apologia do método como condição de atingir e aderir à verdadeira natureza do pensamento e lhe dar universidade” (MACHADO, 2010, p. 133), vencendo as influências exteriores que o fazem tomar o falso por verdadeiro, que o desviam de sua vocação. Enfim, a imagem dogmática vai instituir-se justificando e sendo justificada como algo universal de direito por estar balizada por um método que conjura o erro. No entanto, esse método pressupõe e institui uma separação entre “sujeito” e “objeto” que dissimula a constituição mesma e imanente de todo um campo coletivo de forças. 3) O terceiro pressuposto é a “recognição”. Estamos diante de operações de necessidade cotidiana, tais quais: “O que é isto? É uma mesa”, “Qual o nome daquela fruta? É maçã”, ou “Qual o comprimento daquela parede? Cinco metros”. Entretanto, parece que o pensamento pode mais do que isso, não deveria se resumir a simplesmente reconhecer. E, quantas vezes, práticas escolares se estabelecem apenas como promotoras de saberes de recognição: a aprendizagem é vista como uma espécie de recuperação de um mundo que “existe lá fora” e que deve ser reconhecido (ROY, 2002, p. 93). Existe uma sutileza a ser delineada aqui, pois o reconhecido é um objeto, mas também sentidos e valores sobre o objeto. Se a recognição encontra sua finalidade prática nos “valores estabelecidos”, é toda uma imagem do pensamento como cogitatio natura que, sob este modelo, dá testemunho de uma inquietante complacência. Como diz Nietzsche, a verdade parece ser uma criatura bondosa que ama suas comodidades, que dá, sem cessar, a todos os poderes estabelecidos a certeza de que jamais causará o menor embaraço a alguém, pois ela definitivamente, é apenas a “ciência pura”... (DELEUZE, 1988, p. 134).

Operatividades de recognição que vão garantir certas trivialidades cotidianas, mas

159

resumir as potencialidades do pensamento a tais trivialidades seria sempre estar em um pensar movido a reencontrar permanentemente o “Estado”, a “Igreja”, o “mercado”, modelizações... Enfim a reproduzir as segmentaridades sem nunca poder criar diferença. Existe uma série de questões que estão além de simples operações de recognição e pensar a diferença é justamente provocar no pensamento forças que não são as da recognição (DELEUZE, 1988, p. 135). Assim, postular ao pensamento a operação em forças para além da recognição é provocar nele possibilidades novas, múltiplas, que ensejariam a diferença. 4) O quarto pressuposto é o “elemento da representação”. Representação é a reprodução, no pensamento, de um modelo dado de antemão como verdadeiro enquanto “cogitatio natura universalis”. Assim o pensamento submete à categorias formais e classifica aquilo que é apresentado como particular, enfim ele submete a diferença à uma identidade definida de antemão. Para Deleuze (1988) a representação se dá quando a diferença é subordinada à identidade: conhecer nada mais seria do que reconhecer. Representar é identificar a um modelo, mas não qualquer modelo, o modelo verdadeiro. A representação é o senso comum do cogitatio natura universalis, a natureza universal do pensamento. Pois o modelo de recognição já pressupõe o exercício concordante de todas as faculdades13 de conhecimento sobre um “objeto” considerado idêntico ou a concordância das faculdades fundada no “sujeito” pensante considerado universal, exercendo-se sobre um “objeto” (MACHADO, 2010, p. 135). As faculdades de sensibilidade, imaginação, memória, razão são tidas como dispostas hierarquicamente segundo uma faculdade legisladora superior que é a razão, o pensamento do cogitatio natura universalis. E é sob a legislação deste pensamento que as faculdades entram num acordo que justifica a própria universalidade do pensamento. As faculdades de sensibilidade e imaginação são subordinadas ao pensamento, que é tido como naturalmente voltado à verdade e que deve fazê-las girarem e convergirem. Assim, ao representar se dá ao pensamento um suposto lugar de faculdade privilegiada e que é de senso comum. Tal pensamento como faculdade privilegiada traz a forma do “Mesmo” da recognição e ao fazer as demais faculdades convergirem, acaba por limitar as contribuições da sensibilidade e da imaginação a um já pré-determinado “bom senso”. O pensar na representação é pressuposto na unidade de todas as faculdades no 13 Estamos aqui fazendo referência ao pensamento de Kant (2009), do qual Deleuze toma a teoria das faculdades. Kant vai, em sua doutrina das faculdades, buscar fixar as estruturas a priori do Sujeito universal, as condições necessárias a toda experiência possível (GUALANDI, 2003, p. 91). Indo além da distinção entre racionalismo e empirismo, Kant postula que nossa experiência é organizada pelas formas de nossa sensibilidade que estão a priori e são a condição própria da experiência: para conhecer temos que organizar as coisas a partir da forma a priori de tempo e espaço. Nessa organização estão as faculdades da sensibilidade, de impressões vindas da experiência, que são organizadas por nossas faculdades de conhecer, que são da razão, constituindo assim o conhecimento (ARANHA, 1986, p. 177-178).

160

“sujeito”, exprimindo a possibilidade de todas as faculdades se referirem a uma forma de “objeto” que reflita a identidade subjetiva (DELEUZE, 1988, p.133): O pensamento é suposto como sendo naturalmente reto porque não é uma faculdade como as outras, mas referido a um sujeito, é a unidade de todas as outras faculdades que são apenas seus modos e ele orienta sob a forma do Mesmo no modelo de recognição. (DELEUZE, 1988, p. 133)

Assim, a natureza reta do pensamento e a boa vontade do pensador significam o exercício concordante de todas as faculdades sobre um objeto considerado idêntico, ou a concordância das faculdades fundada no sujeito pensante universal exercendo-se sobre um objeto qualquer (MACHADO, 2010, p.135). Enfim, na representação aparece o “sujeito” como a suposta identidade de um Eu como unidade e fundamento de todas as faculdades e o “objeto” como a identidade do objeto qualquer, ao qual se julga que todas as faculdades se reportam (DELEUZE, 1988, p.138). Estamos diante do “sujeito idêntico unificador das faculdades”, sendo sempre o mesmo eu que pensa, lembra, imagina, percebe e que vai se dirigir a uma “identidade do objeto”: o mesmo “objeto” que é pensado, lembrado, imaginado, percebido. A “inteligência” quer a identidade, estabelecer regularidades e suprime as relações complexas do campo coletivo de forças. Aqui se dá a “identidade do conceito”, a forma do “Mesmo” na recognição, a verdade como adequação. A determinação do conceito necessita da comparação dos predicados possíveis com seus opostos, num procedimento que tem como objetivo reencontrar (identidade enquanto reconhecimento). Ainda, o conceito “objeto” é pensável em termos de analogia no juízo, que vai remetê-lo a outros conceitos. E ainda temos o objeto do conceito, em si mesmo ou em relação a outros objetos, que remete à semelhança como requisito de uma continuidade na percepção (DELEUZE, 1988, p. 137). É sobre estes quatro elementos, a “identidade do conceito”, a “oposição na determinação do conceito”, a “analogia no juízo” e “semelhança no objeto” que se dará o “eu penso” como fonte destes elementos e unidade de todas as faculdades: “eu concebo”, “eu julgo”, “eu imagino” e “me recordo”, “eu percebo”. E é sobre estes ramos que a diferença é “crucificada”: pois só pode ser pensado o diferente quando colocado em relação a uma identidade concebida (a diferença é remetida a uma identidade que a subsume a algo já concebido), uma analogia julgada (a diferença vai ser pensada não enquanto tal, mas como análoga a algo), a uma oposição imaginada (a diferença é “filtrada” num binarismo, se não é certo, só pode ser errado, etc.), a uma similitude percebida (a percepção sempre sendo remetida ao pensamento como organizador das demais faculdades, que vai ver no “objeto”

161

não sua diferença, mas sua similitude a algo já dado). Enfim, é sobre esta quádrupla determinação que a diferença torna-se objeto da representação, ou ainda é aqui que se dá a impotência do mundo da representação em pensar a diferença em si mesma (DELEUZE, 1988, p.137). E retomando nossos delineamentos das modelizações, temos aqui a fundação, no campo coletivo de forças, de segmentaridades duras que vão se dar constituindo um “dentro” e impossibilitando o pensamento acerca de um “fora”, tornando impossível o pensamento da diferença... Daí, nas práticas escolares, tal postulado fica muito evidente quando, por exemplo, um estudante apresenta uma determinada visão de mundo ou sensibilidade diferente. Ela então é trazida para o território de um conceito, sob uma imagem dogmática de pensamento, estando a escola, o professor, a orientação educacional, etc. sempre prontos à “traduzi-la” segundo os termos da representação. As possíveis diferenças que apareceriam nesta espontaneidade passam por uma modelização que as remetem aos campos do idêntico, situando a diferença como algo semelhante, análogo, quando não oposto a algo já existente. São as dificuldades que a escola tem ao lidar com o novo, o imprevisível, o imponderável, com as diferenças que irrompem em nossa atualidade. Costa (2014, p. 4) escreve que isso se dá pelo fato da escola só conseguir captar o que já está de alguma maneira representado, instituído, normalizado, enfim compondo já alguma estratificação. Ou ainda porque está acostumada a pensar a realidade a partir de categorias de contradições, disjunções exclusivas do tipo “ou isso ou aquilo” assim insistindo em preservar a si mesma no reconhecimento do antigo, na recognição do idêntico e na realização de alternativas dadas de antemão. Enfim, temos aqui uma descrição de uma sobrecodificação das diferenças segundo segmentaridades duras, com práticas escolares empregando a representação e seus discursos arborescentes, hierárquicos que vão afirmar sempre a si mesmos como modelização. 5) Um quinto postulado, “o 'negativo' do erro”. Na representação, o erro é tido como desventura do pensamento. Segmentaridade binária, o erro é tido apenas como o reverso de uma ortodoxia racional e testemunha em favor daquilo que se desvia (DELEUZE, 1988, p. 147). O erro exprime ao mesmo tempo tudo de mal que pode acontecer ao pensamento, mas como produto de mecanismos externos (DELEUZE, 1988, p. 163). Qualquer pensamento que não esteja fundado na imagem dogmática do pensamento não pode ser pensado. Sob a segmentaridade dura binária, todas as errâncias, divagações, perambulações e diversidades imprevistas são negativadas, excluídas de antemão e ainda servem de testemunha da ortodoxia

162

racional. Negativar o erro é descartar, sob o império do cogitatio natura universalis, todas as nuances e sutilezas do aparecimento da diferença. Assim, o aluno “indisciplinado”, o “errado” é testemunha da necessidade de mais disciplina. Não se questiona a possibilidade de se educar de outra forma, noutras configurações de espaço e tempo, noutras operatividades de saber, em outras medidas: o pensamento da representação barra tais prospecções ao reduzir o “indisciplinado” ao “erro”, numa operação modelizante incapaz de sutilezas outras... Enfim, o binarismo “certo ou errado” dissimula o campo coletivo de forças e é uma linha dura da máquina abstrata de sobrecodificação que impede o pensamento da diferença, aniquilando-a. 6) e 7) Sexto postulado, “o privilégio da designação” e sétimo postulado, “a modalidade das soluções”. Em nossa experiência como professor de história sempre causou certa indignação a relação com que os estudantes se mobilizavam com a leitura, sendo nosso trabalho, obviamente, ajudá-los nesse sentido. Nosso objetivo sempre foi que eles, cada um segundo suas características, tirassem conclusões próprias, singulares até. Daí usarmos de um artifício para causar-lhes um certo impacto, buscando reterritorializar as suas práticas de leitura. O artifício era uma “atividade”, que consistia em “escrever um texto no quadro”, seguido de um “questionário”. Solene e paternal, o professor “mandava” a turma “copiar do quadro, pois vamos fazer uma atividade”. Sob a seriedade do comando, todos punham-se a copiar em silêncio, “normalmente”. Aplicamos a “atividade” durante vários anos, em várias turmas desde o ensino fundamental até o ensino médio. O texto e as questões sempre mudavam, mas eram, mais ou menos, assim: “O decíbelo de Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres. Como já estudamos no ano passado, sabemos muito bem das forguilezas e atolíndelos do decíbelo de Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres. Por todo país do Brasil, Florêncio Cautelos gundiu belíssimas forguilezas. Já Cefrázio Torres belizerou por todo o país da Espanha. Até que se juntaram numa dolcítrea na França. E foi lá que, levados por Nulcina Frates, fizeram o seu primeiro decíbelo. O decíbelo foi a primeira máquina capaz de forguilezar e belizerar automaticamente. Por esta bela dogilidade, Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres ficaram muito ricos e famosos. Questionário: a) Qual foi o país que Florêncio Cautelos gundiu belíssimas forguilezas? b) O que fez Cefrázio Torres na Espanha? c) Onde Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres se juntaram?

163

d) O que foi o decíbelo?” O professor após escrever a “atividade” no quadro, aguardava solene que todos terminassem de copiar. Então começava: “vocês estudaram ano passado o caso de Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres, estão lembrados, não é?”. Faziam cara franzida, alguns se entreolhavam, mas as resposta eram esparsas “não professor”. E o professor com cara mais séria “como não! Vocês nem lembram o que estudaram no ano passado!”, alguns ficavam desconfortáveis, outros discutiam entre si que “não, a gente não estudou” e certo burburinho. “Mas tudo bem, sem problemas, eu explico pra vocês, mas antes eu vou ler o texto aqui e depois vocês respondem o questionário, certo?”. Eles não tinham outra opção e respondiam afirmativamente, “certo”. Solene e pausadamente o professor lê o breve texto, com grande convicção e propriedade. Finda a leitura, sem muita empatia, “comanda” que eles façam o questionário. Todos abaixam a cabeça no caderno e resolvem a “atividade”. Em cinco minutos a maioria já está pronta, o professor, agora com mais empatia espera “todos acabarem para fazer a correção”. Todos prontos, começa a “correção”: “vamos ver então, a primeira questão 'a) Qual foi o país que Florêncio Cautelos gundiu belíssimas forguilezas?'” Muitos levantam a mão querendo “participar”, o professor dá voz a Fulano que lê sua resposta: “Brasil.” O professor solenemente elogia Fulano e pergunta “e aí turma, todos acertaram?”, em coro respondem “sim!”. “Que ótimo! Vamos agora para a segunda questão, leia para nós Fulana”. E assim segue até que todas as questões sejam “corrigidas”. Após o último parabéns noto que todos estão atentos e prontos para o próximo comando. O professor nunca experimentou escrever outro texto desses logo em seguida, mas acreditamos que, se o fizesse, o “ritual” se repetiria... Depois disso, o professor mudava de tom, buscava uma aproximação mais empática com a turma e perguntava “tá bom, agora me digam, quem entendeu o texto?”, na hora respondiam “eu não”, “não”, “não entendi nada!”, outros simplesmente riam, outros assumiam um tom grave, meio desesperado, meio confuso. E o professor comentava “pois é, nem eu entendi, aliás eu inventei ele enquanto o escrevia no quadro para vocês”. Reações de espanto, certa indignação respeitosa, mas também de risadas. Em seguida o professor lhes comentava que era comum, ao pedir para os alunos lerem alguma coisa, notar que muitos liam no “automático” e não procuravam compreender melhor o que o texto estava dizendo. Muitos se identificavam e muitos também reconheciam que em várias atividades e com vários professores, respondiam questionários “corretamente”, ganhando notas boas inclusive, mas não entendiam muito o que estavam fazendo. E aí a conversa de professor e estudantes seguia adiante, buscando problematizar as relações que estabelecemos com os textos, deixando claro

164

que a “estratégia” da “atividade” foi escrever um texto com palavras inventadas na hora, logo desconhecidas e sem significado social, mas que a estrutura da escrita era possível de ser lida e “decifrada” pois tinha um tipo de coerência e coesão característicos dos “livros didáticos” e etc. Fizemos esta “atividade” em várias turmas durante vários anos, sempre pressupondo todas as configurações disciplinares de nosso trabalho e, principalmente, a presença massiva da filosofia da representação nas práticas escolares, com a recognição sendo tomada como aprendizagem numa confusão entre obediência e pensamento... E este sexto e sétimo postulados da imagem dogmática do pensamento estão muito presentes nesta “atividade”. O sexto postulado é o ”privilégio da designação”, onde a função lógica ou da proposição vai colocar a designação como o lugar de verdade, sendo o seu sentido apenas o “duplo neutralizado” da proposição ou sua reduplicação indefinida. Ou seja, define-se o sentido como a condição do verdadeiro, que se funda tornando o erro possível: remetendo o verdadeiro e o falso à relação de designação na proposição os precedentes são recolhidos e encadeados, assim a “relação de designação é apenas a forma lógica da recognição” (DELEUZE, 1988, p.151): dentro do texto da “atividade” e especialmente no “questionário” já estava colocado o “sentido” como condição da verdade, bastando “responder corretamente” o “enunciado das questões” para estabelecer-se o “aprendizado” verdadeiro. Daí, retornando a nossas discussões sobre as configurações disciplinares da educação, o fato destas serem defendidas como algo “normal”, ou “verdadeiro” pois a designação do “trabalho do professor” é muito clara e normatizada e, obviamente, interiorizada no plano coletivo de forças restando ao professor operar o “certo” e conjurar o “errado”: todos os alunos responderam ao comando de realizar a “atividade” designada que iria gerar o “aprendizado”. Pois “o sentido é a gênese ou a produção do verdadeiro, e a verdade é tão somente o resultado empírico do sentido” (DELEUZE, 1988, p.151), o sentido é o território mesmo e a busca pela “verdade” é algo territorializado, colocado dentro de um espaço modelizado... No caso da “atividade”, os estudantes já estavam territorializados nos delineamentos do “sentido” e instrumentalizados a, partindo de suas designações, buscar a “verdade” e evitar o “erro”, pois esta é uma prática cotidiana da recognição entendida como aprendizagem. Coube ao professor apenas emular tal prática de maneira diferente no intuito de provocar-lhes o pensamento e desencadear novas percepções. O sétimo pressuposto, “a modalidade das soluções”, coloca os problemas como sendo “materialmente decalcados sobre as proposições”, ou “formalmente definidos pela possibilidade de serem resolvidos” (DELEUZE, 1988, p.163). É quando nos fazemos

165

acreditar que os problemas são dados já feitos e que eles desaparecem nas respostas, nas soluções. Estando colocado neste duplo aspecto a crença de que a atividade de pensar, assim como o verdadeiro e o falso em relação a esta atividade só diz respeito às soluções, a crença de que o pensar só começa com a procura de soluções (DELEUZE, 1988). Como se não continuássemos escravos enquanto não dispusermos dos próprios problemas, de uma participação nos problemas, de um direito aos problemas, de uma gestão dos problemas. É o destino da imagem dogmática do pensamento apoiarse sempre em exemplos psicologicamente pueris, socialmente reacionários (os casos de recognição, os casos de erro, os casos de posições simples, os casos de resposta ou de solução) para prejulgar o que deveria ser o mais elevado do pensamento, isto é, a gênese do pensar e o sentido do verdadeiro e do falso. (DELEUZE, 1988, p. 155).

No caso da “atividade” de “O decíbelo de Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres”, fica claro o jocoso decalque dos problemas sobre as proposições (“O que foi o decíbelo? Resposta: O decíbelo foi a primeira máquina capaz de forguilezar e belizerar automaticamente”) e o fato deles serem definidos pela possibilidade de serem resolvidos: os estudantes “acertavam” as questões mesmo não entendendo as palavras que liam e escreviam! É o mecanicismo do pensamento da representação, onde os problemas são colocados, muitas vezes separados de seus contextos, arbitrariamente erigidos como modelos e qualificados como verdadeiros ou falsos segunda uma autoridade poderosa. Quantas e quantas atividades são feitas diariamente nas configurações disciplinares da escola cujos “conteúdos das disciplinas” apresentam um sentido que já pressupõe a verdade ou o erro, fazendo o pensamento encadear-se na recognição, impedindo o aparecimento do pensamento da diferença. Quantas aulas e cursos inteiros implicam em efetuar respostas à problemas já dados, soluções que derivam “[...] necessariamente das condições completas sob as quais se determina o problema enquanto problema, dos meios e dos termos de que se dispõe para colocá-lo” (DELEUZE, 1988, p. 155). Em todos os exemplos vivenciados nas nossas práticas de professor e que permeamos o presente trabalho desde o início e em especial no “decíbelo de Florêncio Cautelos e Cefrázio Torres”, buscamos descrever um quanto de reprodução de modelos estão implicadas as práticas escolares. Pois reproduzir significa, para o pensamento modelizante, a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido, é o primado do modelo fixo da forma na necessidade de controlar o movimento das matérias (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 30). As segmentaridades duras da representação não cessam de erigir modelos a serem seguidos e que impedem o aparecimento da diferença... 8) Oitavo e último postulado dos obstáculos para uma filosofia da diferença, “o

166

resultado do saber ou da cultura do método”. Deleuze distingue o “aprender” do “saber”. O “saber”, sob o pensamento da representação, é aquele que “[...] designa apenas a generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das soluções” (DELEUZE, 1988, p. 160). Sob a imagem dogmática do pensamento, a aprendizagem é tida como recognição, e “(...) a relação entre problemas e saber se rege pelo uso de um método que determina a possibilidade de solução, já dada com o problema, o que inviabiliza qualquer intervenção do aprendiz” (FERRONATTO, 2010, p. 84). Este é um tipo de “saber” que é antes um “saber reproduzir” ao valer-se de um “método para pensar”, ou de aplicar-se determinada fórmula que soluciona um problema exterior e definido de antemão. É a recognição, um dispositivo de poder domesticador do pensamento para consagrar os valores estabelecidos, e é em oposição a isso que DELEUZE reclama para a filosofia a criação de “valores novos” (LINS, 2005, p. 1243). Descreve Deleuze: Um célebre experimento em Psicologia coloca em cena um macaco ao qual se propõe que encontre seu alimento em caixas de determinada cor entre outras cores diversas; advém um período paradoxal em que o número de 'erros' diminui, sem que, todavia o macaco possua o 'saber' ou a 'verdade' de uma solução para cada caso. Feliz é o momento em que o macaco-filósofo se abre à verdade e produz o verdadeiro, mas somente na medida em que ele começa a penetrar na espessura colorida de um problema. (DELEUZE, 1988, p. 160).

E, obviamente, se nossa sobrevivência, etc. depende de um saber de recognição ele é de fato útil, mas como já tratamos, o pensar pode muito mais. Pois este exemplo de resultado do saber se dá com a redundância da imagem dogmática do pensamento nela mesma: é um “saber” que é simplesmente uma recognição, pois o que ele “sabe” ou vai “saber” nada mais é do que a regra de solução de um problema que lhe é imposto exteriormente, é um tipo de saber que está engendrado e engendra a representação ao reproduzir categorias de “normatização”. Estão presentes aqui todos os impeditivos à diferença. O pensado como representação que se dá pressupondo uma boa vontade do pensador e boa natureza do pensamento, acionando a imagem dogmática que através do “método” do bem pensar produz uma “verdade” através da identidade do “sujeito” pensante que funda a concordância das faculdades e se dirige à um “objeto” também em identidade: o que submete a diversidade posta, que dissimula o campo coletivo de forças que forçou o pensamento a pensar o que pensa, “elevando” ao transcendental uma simples operação do empírico. Uma “verdade” de recognição de um modelo identitário que exclui o seu exterior, elimina a possibilidade de diferença. O “macaco-aluno” do exemplo opera sobre a superfície de um problema decalcado sobre as suas próprias proposições, formalmente definidos pela possibilidade de ser resolvido:

167

assim, a designação é tomada como o lugar da verdade, a verdade de achar a banana da “caixa correta”, ou na “resposta correta”, onde o acerto é acerto e o erro é o negativo, o impossibilitado. Novamente: o que ele “sabe” nada mais é do que a regra de solução de um problema que lhe é imposto exteriormente, é um saber normatizado e normatizante. A jaula do macaco é a imagem dogmática do pensamento: clausura na filosofia da representação. “[...] feliz é o momento em que o macaco-filósofo se abre à verdade e produz o verdadeiro, mas somente na medida em que ele começa a penetrar na espessura colorida de um problema” (DELEUZE, 1988, p. 160). “Aprender”, para Deleuze, está ligado antes de mais nada a criar o novo a partir da sensibilidade, estar aberto à algo além da representação. Dessa maneira existe, como escreve Guattari (1992, p. 42), uma “[...] escolha ética em favor da riqueza do possível”, uma ética e política que se abrem para novas potências e possibilidades ao descorporificarem, desterritorializarem a contingência da causalidade linear, do peso dos estados de coisas e das significações engendradas pelas imagens dogmáticas do pensamento agenciadas nas maquinarias modelizantes. Por um pensamento “sem imagem”, ou ainda, por um pensamento da diferença, pluralista, heterodoxo, imanente. Rizoma...

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.