HISTÓRIAS ANTIGA E MEDIEVAL COMO CONTEÚDOS SUBSTANTIVOS PARA A ESCOLARIZAÇÃO BÁSICA NO BRASIL

June 6, 2017 | Autor: I. Oliveira | Categoria: Teaching History, Curriculum
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HISTÓRIAS ANTIGA E MEDIEVAL COMO CONTEÚDOS SUBSTANTIVOS PARA A ESCOLARIZAÇÃO BÁSICA NO BRASIL

Itamar Freitas UnB/UFS/UFRGS [email protected]

Uma das críticas à primeira versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), lançada em setembro de 2015, foi a suposta extinção dos conteúdos substantivos relativos à “história antiga” e à “história medieval”. Foi comum a denúncia de que o MEC optou pela retrógrada orientação nacionalista do currículo para a escolarização básica. As disputas entre uma proposta mais cosmopolita ou mais nacionalista são comuns na maioria das iniciativas de elaboração de bases, parâmetros ou similares em países democráticos de sistema educacional centralizado. Grossíssimo modo, os contendentes digladiam-se entre a formação de um patriota e de um cidadão do mundo – uma espécie de disputa entre ideias de humanidade/civilidade dominantes, respectivamente, nos séculos XIX e XX. Não é coisa tão simples como parece. A opção pelo cosmopolitismo pode resultar na ideia de continuidade histórica do homem (fundada em Deus, no progresso das organizações sócio-políticas ou na liberdade, por exemplo). Pode também dar abrigo a novas lógicas de vida (respeito à diversidade cultural, de orientação sexual, questões de gênero etc. aplicadas dentro de um mesmo país ou transnacionalmente). Do outro lado da moeda, a opção pelo nacionalismo pode fortalecer determinados mitos de origem que constrangem direitos recentemente adquiridos por minorias étnicas, por exemplo. Pode também produzir novos mitos, orientados por uma modificação do lugar de certo país no (ainda não extinto, para mim) concerto das nações. Em outros termos, um lugar como o Brasil, considerando sua autonomia política, as dimensões da sua economia e da sua população, pode instituir novos sujeitos e princípios daquilo que a maioria dos prescritores de currículo entende como identidade nacional. Em nossa experiência republicana, um marco significativo desse conflito foi a reforma curricular promovida no ministério de Francisco Campos (1931), com os 1

nacionalistas de um lado e os internacionalistas (de tons socialistas ou liberais) do outro. No debate sobre a BNCC, acompanhamos pelos jornais, redes sociais, blogs e Youtube, principalmente, as ácidas acusações de que o MEC quer introduzir uma “revolução cultural” chinesa, venezuelana etc. na consciência dos estudantes brasileiros. Lemos e ouvimos que o Partido dos Trabalhadores, já destituído de poder, deseja nos legar esse péssimo tributo no plano educacional. São posições inconsequentes. E são ainda mais nocivas à formação da opinião quando expressas por um professor doutor de uma universidade pública. Dizendo de outro modo, trata-se de um sujeito muito bem informado, inclusive, dos modos de construção e da natureza da legislação educacional, que se utiliza dos títulos acadêmicos para propagandear esse tipo de bravata. Tais declarações não comentarei, além dessas poucas linhas. Elas vão perdendo sentido ao longo do tempo, como perdeu sentido a acusação promovida por Ali Kamel (Rede Globo) ao MEC, nos tempos de Fernando Haddad: “Nossas crianças estão sendo enganadas, a cabeça delas vem sendo trabalhada, e o efeito disso será sentido em poucos anos” (Ali Kamel, 18, set. 2007).[1] A considerar os argumentos desse jornalista, parece que as centenas e milhares de livros didáticos que supostamente positivaram as figuras de Mao Tse-tung e de Fidel Castro, vendidos por Mário Schmidt (objeto da crítica de Kamel), não deram muito resultado ao imaginado projeto de venezuelanização do Brasil promovido pelo PT. As jornadas de junho e dos meses subsequentes não quiseram uma revolução bolivariana. Grandes contingentes de jovens, em diferentes protestos, nas ruas e nas redes, parecem mais próximos de ideias que oscilam entre a anomia ou o conservadorismo do tipo “pátria, família e propriedade”. Voltemo-nos, então aos comentários mais moderados e que podem ser objeto da atividade dessa semana (a ideia de finalidade da disciplina escolar história). Quando examinamos esse outro modo de tomar posição, constatamos que a maioria dos críticos desconsidera essa questão. Talvez por entendê-la resolvida. Talvez, ainda, por desconhecê-la como problema estrutural na efetivação de sistemas nacionais de ensino, relacionada, secularmente, ao jogo dicotômico do nacionalismo/cosmopolitismo. Os críticos, via de regra, põem o foco nos conteúdos ensináveis para 60 milhões de alunos brasileiros.

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Claro que há exemplos destoantes. Alguns poucos especialistas se esforçaram para indicar possibilidades de ensino fundadas na ideia de alteridade (a Grécia clássica auxiliando a compreensão de nós mesmos pela diferença e não por um suposto vínculo de raiz). O Fórum dos Profissionais de História Antiga e Medieval apresentou outra perspectiva. Denunciou como “empobrecedora [...] a exclusão da História Antiga e Medieval, baseada na falsa assunção de que só é possível pensar a Antiguidade e o Medievo sob o ponto de vista eurocêntrico”. Como antídoto, defendeu a necessidade de “colocar essas histórias em uma perspectiva mais ampla, que [incluísse] experiências anteriores aos séculos XVI, tais como a dos povos nativos das Américas, da África e de outras sociedades para desta maneira permitir a construção de narrativas que justamente questionem o eurocentrismo” (FPHAM, 26, nov. 2015).[2] A Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), por outro lado, apontou contradições entre as políticas públicas de fomento à pesquisa e de melhoria da qualidade no ensino básico: “É tão evidente o equívoco dessa amputação [das histórias antiga e medieval] que a própria Capes tem se inclinado ao fomento da História não nacional. Como fazer convergir a legitimidade e o reconhecimento da pesquisa nas áreas de Antiga e Medieval que a Capes e o CNPq têm dado a seus pesquisadores com a proposta do Ministério da Educação? ” (ABREM, nov. 2015).[3] Apesar de trafegarem no campo movediço (a ideia de medievo estendido e comparação ingênua entre política de pesquisa e política de ensino básico), temos que reconhecer que aí estão algumas iniciativas ponderadas. A maioria das críticas, porém, seguiu por caminhos, digamos, menos propositivos e mais simples de protestar a respeito de uma suposta exclusão das histórias antiga e medieval da primeira versão da BNCC. Como exemplos, selecionei excertos de testemunhos originados de situações bastante singulares produzidos por: um jornalista e blogueiro, uma mãe de aluno e, ao mesmo tempo, medievalista, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e uma dupla professores pesquisadores de história antiga, em atuação na Universidade Federal Fluminense (UFF). Acompanhemos: A Grécia está prestes a ser varrida da História [...] como entender a independência do nosso país sem entender que a Corte portuguesa só veio ao país fugindo das Guerras Napoleônicas? É como entendê-las sem compreender a formação do Estado francês, que por sua vez está ligado, em suas raízes, 3

ao fim do Império Romano. Esse, por sua vez, construído sobre a cultura de um país por eles dominado militarmente (mas não culturalmente) séculos antes: os mesmos gregos do início deste artigo. (Paulo Silvestre, 12 jan. 2016).[4] Carta de uma mãe (que por acaso é medievalista) ao Ministro da Educação, sobre a BNCC Como discutir Ciência e produção do conhecimento sem antes conhecerem o contexto de fundação das primeiras Universidades, dos ambientes de produção do conhecimento nos espaços árabes e gregos, discutir cidadania sem conhecer o conceito nos ambientes grego e romano, como saber de onde partiram as primeiras e fundamentais reflexões sobre o Direito desde a época dos romanos e boa parte das instituições que nos cercam até hoje? (Marcella Lopes Guimarães,[5] 20 nov. 2015).[6] Um manifesto pela história e pelas experiências das culturas da antiguidade Como podem os jovens brasileiros entender o que representou a entrada dos tanques americanos sobre os vestígios da antiga Babilônia (no atual Iraque) ou mesmo o saque e a destruição do museu do Iraque, se nada sabem a respeito da sociedade da antiga Mesopotâmia? Vale destacar que alguns dos primeiros selos de escrita da humanidade foram roubados durante esse saque. Como podem entender os embates das guerras étnicas da Europa contemporânea sem nenhum conhecimento do Medievo? Como podem entender os usos da Antiguidade e do Medievo nos discursos políticos contemporâneos, se nada conhecem desse passado? (Adriene Baron Tacla[7] & Alexandre Carneiro Cerqueira Lima,[8] 30, nov. 2015).[9]

Conhecidos os exemplos, proponho que você faça o caminho inverso: ao invés de apontar os conteúdos substantivos classificados como “de história antiga” ou “de história medieval” fundamentais na escolarização básica, sugiro que explicite a função formativa da disciplina escolar história. E pode ser qualquer uma (desde que você a justifique racionalmente), já que não há, como vimos na aula de ontem, “A” finalidade primordial atemporal e, portanto, absoluta. Observe que, nos trechos citados, os autores lançam mão do "ídolo das origens" ou do imediato antecedente como chave para a compreensão do que realmente aconteceu. O “como” é a expressão recorrente e indicadora do significado da causalidade e do contexto para um ensino de história mediado por uma grande narrativa, mas associado à necessidade da explicação. Estou plenamente de acordo com a ideia de que as causas (próximas ou distantes), consequências e circunstâncias são também operadores linguísticos básicos no estudo da experiência dos homens no tempo. Nem vou tomar o seu tempo com essa cantilena de que o exame das “causas” está ultrapassado, que é coisa de positivista 4

etc. Até hoje não sei como colegas de renome conseguem dissociar olimpicamente história problema da ideia de exame das causas (Mas isso é assunto para a aula 6). O que estou prescrevendo para você é a inversão. Antes de tratar da importância do antecedente (seja ele qual for) para dar sentido ao consequente, tente refletir sobre determinada situação (escola, aluno, cidade, status socioeconômico, interesses dos pais etc.) e construa uma finalidade para o ensino de história dos anos finais do fundamental (na aula de ontem apresentei uma dezena). Depois disso, recolha um dos exemplos de conteúdos substantivos apresentados nos três excertos para justificar a manutenção do selecionado exemplo em um plano de aula, programa de ensino ou em uma base nacional curricular comum. As mínimas dez linhas que acordamos como regra podem dar origem a um parágrafo com seguinte estrutura: No ensino de história partilhado por sujeitos do tipo..., alunos de uma escola que tem por objetivo a formação de..., em uma sociedade organizada politicamente sob..., penso que a disciplina história deveria ter como finalidade... Assim, proponho a prescrição do estudo da antiga Babilônia para que os alunos compreendam a razão de o saque e a destruição do museu do Iraque serem considerados um crime contra a memória dos povos da Ásia do Leste. Observe que eu tentei aproveitar integralmente a relação estabelecida pelos autores do terceiro excerto. Mas você pode empregar a informação anterior – “antiga Babilônia” – ou a informação posterior – “destruição do museu do Iraque” - de modo isolado. Pode usar o antecedente e criar um consequente (e vice-versa) ou pode usar um contexto e criar um texto (também, vice-versa). Espero que essa atividade o auxilie a experimentar e descobrir os conhecimentos, habilidades e valores a serem mobilizados na justificativa da manutenção da história como disciplina escolar. A meta do curso, nessa semana, é também fazê-lo compreender que a sobrevivência dos nossos empregos de professores de história não pode ser reivindicada apenas a partir da tese de que a história (disciplina) existe desde sempre e assim deverá permanecer. A defesa do conhecimento histórico como conteúdo substantivo nos processos formativos, em escala nacional, exige argumentos que convençam a diferentes atores sociais sobre o valor do estudo 5

de determinado passado para a vida prática daqueles milhões de alunos que, certamente, não desejam e não serão historiadores em idade adulta. Mãos à obra e até a próxima semana. [1] Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/interesse-publico/apolemica-sobre-a-nova-historia/. Consultado em 9, mar. 2016. [2] Disponível em: https://www.facebook.com/niepprek/posts/1660746290842806. Consultado em 9, mar. 2016. [3] Disponível em: http://www.abrem.org.br/index.php/noticias/246-carta-dadiretoria-da-abrem-sobre-a-bncc-nov-2015. Consultado em 9, mar. 2016. [4] Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/blogs/macaco-eletrico/a-greciaesta-prestes-a-ser-varrida-da-historia/.Consultado em 9, mar. 2016. [5] Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4761363P2.Consulta do em 9, mar. 2016. Consultado em 9, mar. 2016. Consultado em 9, mar. 2016. [6] Disponível em: http://literistorias.blogspot.com.br/2015/11/carta-de-umamae-que-por-acaso-e.html. Consultado em 9, mar. 2016. [7] Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4763403Z4. Consult ado em 9, mar. 2016. [8] Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4794990E1. Consult ado em 9, mar. 2016. [9] Disponível em: https://www.facebook.com/gtantigaemedievalanpuhsc/posts/412583232273541. C onsultado em 9, mar. 2016.

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Para citar este texto FREITAS, Itamar. Histórias antiga e medieval como conteúdos substantivos para a escolarização básica no Brasil. Brasília, 9 mar. 2016. Disponível em: http://didaticadahistoria.com/2016/03/09/historias-antiga-e-medieval-comoconteudos-substantivos-para-a-escolarizacao-basica-no-brasil/.

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