Histórias familiares, trajetórias e experiências de liberdade de afrodescendentes em Belo Horizonte, MG

July 3, 2017 | Autor: Josemeire Alves | Categoria: Historia Social, Belo Horizonte, Historias De Vida, Trajetória afrodescendente
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Histórias familiares, trajetórias e experiências de liberdade de afrodescendentes em Belo Horizonte, MG* JOSEMEIRE ALVES PEREIRA* Belo Horizonte era ainda considerada pelos contemporâneos um imenso “canteiro de obras”, em 1912, quando chegaram à recém-inaugurada capital de Minas Gerais, a ventrelivre Maria Pereira e seus filhos Bárbara Senhorinha, Eponina e Henrique. Pouco tempo antes – mais precisamente até 1894, quando tiveram início os trabalhos de construção da nova Capital que substituiria a antiga Ouro Preto –, aquelas terras abrigavam o Arraial do Curral Del-Rei, originada no início do século XVIII. A necessidade de transferência da sede administrativa do Estado de Minas Gerais para outra localidade, debatida mais intensamente pelas classes políticas, durante as últimas décadas do século XIX, corresponde às mudanças econômicas e políticas engendradas no país a partir do processo emancipacionista e da instauração do regime republicano. Para estudiosos da história de Belo Horizonte, como Maria Efigênia Lage de Rezende, a ideia de criação de uma nova capital “vincula-se à emergência de novas forças econômicas dentro do Estado que, com a República, de certo modo representativa destas novas forças, vão desencadear a luta para a obtenção do poder político correspondente à sua expansão econômica” (REZENDE apud DUTRA, 1988: 52).1 A nova Capital teria surgido, assim, sob o signo da modernidade e do progresso, representados pela própria República, em oposição à cidade colonial; e como estratégia de enfrentamento aos riscos de desagregação político-administrativa e estagnação econômica a que estava submetido o Estado, frente ao desenvolvimento testemunhado em outras regiões do país – em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo.2 Para a criação da nova cidade, foram desapropriados e devidamente remunerados os antigos proprietários de terra do Arraial, que se instalaram em regiões relativamente próximas ao futuro núcleo urbano da nova cidade. Quanto à população outrora ali escravizada e/ou liberta, a despeito de sua relevância sobre o total da população da região, como veremos 

Versão atualizada do texto apresentado no XXVIII Simpósio Nacional de História (27 a 31 de julho de 2015, Florianópolis/SC) ** Doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas. Bolsista Fapesp. 1 Ver também, a respeito da criação de Belo Horizonte, dentre outros: DUTRA, 1996; SILVA; SILVEIRA, 1994. 2 Segundo Tito Flávio Rodrigues de Aguiar (2006, p. 34), os debates políticos que precederam a mudança da capital do Estado, entre as décadas de 1880 e 1890, evidenciavam preocupações das elites políticas e econômicas quanto à necessidade de que o novo centro administrativo propiciasse a superação do sensível atraso no desenvolvimento em relação aos centros econômicos do país – Rio de Janeiro e São Paulo. A noção de “modernização mineira” remete, assim, especialmente à de progresso econômico. Ver também: DULCI, 1999.

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adiante, dela aparecem alguns raros indícios na narrativa do historiador Abílio Barreto (1996) sobre o Arraial, de onde emerge, em geral, através de personagens secundários, tais como um escravizado fugido que teria assassinado um major, ou como outros, descritos em atividades laborais. Estavam inseridos na ordem social vigente, como mulheres e homens sem instrução, mas agentes ou beneficiários de alforrias3, em geral concedidas após a morte do proprietário e, não raro, reclamadas por não serem cumpridas. No entanto, quase nada sabemos sobre o destino destas pessoas, depois de emancipadas por meio da lei n°3.353, de 13.5.1888 (“Lei Áurea”), ou mesmo antes, mediante outras formas legais de aquisição da liberdade de que se apropriaram ou foram beneficiárias4. Teriam continuado a trabalhar com os antigos senhores? Em que condições? Por quê? Migraram para outras localidades, como observamos ocorrer, em diversas regiões do país (FRAGA FILHO, 2006; 2009; RIOS; MATTOS, 2005; TELLES, 2013) e também em outros países (FONER, 1988a; 1988b; COOPER, 2005), após os processos abolicionistas? Teriam participado da construção da nova Capital? Teriam se integrado à população de trabalhadores migrantes e imigrantes pobres que constituíam aqueles que seriam considerados os primeiros núcleos de favelas que se formavam na futura cidade, antes mesmo de sua inauguração?5 Estas são questões que ainda demandam atenção nos estudos sobre a história de Belo Horizonte. Nestes, o que se ressalta, via de regra, é o esforço dos idealizadores da nova capital em associar à cidade uma imagem de progresso, vinculada à República – suplantava-se o velho Arraial e com ele o passado colonial e tudo aquilo que nele representava “atraso”6. De todo modo, a memória histórica7 que se construiu para a cidade, não guarda referência significativa à presença da população negra – afinal, poder-se-ia argumentar, Belo Horizonte, ao contrário das principais sedes administrativas do país, nascia

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No acervo do Arquivo Público Mineiro, é possível encontrar, por exemplo, registros de cartas de liberdade, do período entre 1834 e 1848. Cf. APM-Acervo da Câmara Municipal de Sabará. 1º.Livro de Notas do Distrito do Curral Del-Rei.CMS-240, rolo 34. 4 Ibid. 5 As favelas da Estação e da Fazenda do Leitão, segundo Barreto, já eram notadas desde 1895. A da Estação era um dos primeiros elementos da paisagem com que tinha contato quem chegavam à cidade. Cf. Barreto, 1996, op. cit. 6 É importante ressaltar, contudo, que este discurso não propunha um completo rompimento com a tradição colonial, aliando-se as concepções de modernidade e modernização, nas práticas e interesses políticos e econômicos em Minas Gerais, aos elementos de tradição que se apresentassem conciliáveis com tais interesses. Ver, a respeito: BOMENY (1994). 7 Referenciando-se nos trabalhos de Pierre Nora sobre a memória, o historiador Antônio Torres Montenegro entende a memória histórica como o “movimento de congelamento da memória”, relembrando que para Nora, “o próprio da história é a crítica, a desconstrução permanente de significados em razão de todo o conjunto de experiências e práticas do presente. Mas, quando esse movimento de ressignificação é interrompido, a história se torna Memória.” (FLORES; BEHAR, 2008, p. 197).

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sem a indelével marca da escravidão, que é, em geral, a via por meio da qual se faz referência à população negra. Não obstante, era justamente nesse momento em que se implementava o projeto de modernidade forjado pelas elites mineiras, que ali chegava a família de Maria Pereira, originária do município de Bonfim, na região de Paraopeba8. Após ficar viúva, Maria decidira “tentar a vida” em Belo Horizonte. Partia em “busca de trabalho” (LADISLAU, 2007)9, como outros migrantes que afluíam para a cidade, à mesma época. Para ali instalar-se, ela e seus filhos contaram com o apoio da família de Teodolindo Pires Fernandes, que já vivia em Belo Horizonte, desde antes de 1912, com os irmãos, sua mãe, Ana Maria, e seu pai, Nominato José Fernandes, oriundos de Piedade dos Gerais.10 As duas famílias já se conheciam e foi ainda por intermédio dos pais de Teodolindo que Maria e os filhos mais velhos – Bárbara e Henrique conseguiram emprego. Teodolindo e Bárbara casaram-se, depois, e passaram a viver no terreno onde vivia o pai dele, situado onde atualmente se encontra o Aglomerado Santa Lúcia, um dos mais conhecidos complexos de favela da cidade, na região Sul. Ali também viviam Antônio Pedro da Silva, que deixara a Serra do Cipó, sua esposa Maria Eulália dos Santos, que também partira da região de Paraopeba, e a pequena Santa, primeira filha do casal, nascida em 1910, já na capital. Integrantes de duas famílias formada por pessoas negras migrantes do interior do Estado, Nominato, Teodolindo e Antônio Pedro trabalhavam, à época, em fazendas da região da antiga Colônia Afonso Pena, núcleo agrícola que abastecia de gêneros alimentícios e artefatos para construção civil, a região central da cidade, onde viviam os funcionários da administração pública da capital, que mesmo após sua inauguração, em 12 de dezembro de 1897, continuava em construção. Belo Horizonte11 teve sua constituição iniciada, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX, por uma população de trabalhadores composta, majoritariamente, por migrantes. Contava-se, inicialmente, um grande número de imigrantes europeus, empregados nas obras de construção da cidade, mas também beneficiados no processo de constituição das colônias agrícolas que tiveram importante papel no projeto de

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Região central do Estado. Integram o mesmo relato de Dona Ione Pires Ladislau, em entrevista concedida à pesquisadora em 2007, as informações que aqui coligimos para fazer referência às famílias da ventre-livre Maria, avó da entrevistada, e de Antônio Pedro e Eulália. Para informações sobre a história de família destes últimos, contamos também com o depoimento de uma de suas filhas, Isaltina da Silva Ferreira. Cf. FERREIRA, 2007. 10 Piedade dos Gerais, à época, pertencia ao município de Bonfim do Paraopeba. 11 Em 1893, o Arraial do Curral del Rei passou a ser denominado “Cidade de Minas”. Em 1901, a nova cidade passou a se chamar “Belo Horizonte”, nome pelo qual já se tornara conhecido o antigo Arraial. 9

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modernização ensaiado pelo governo do Estado, entre os anos 1898 e 1914.12 Não obstante, a maior parte da população da cidade que se consolidava então, era composta por pessoas oriundas de outras regiões do estado e do país. Segundo o historiador Tarcísio Botelho (2007: 11-12), a cidade passou de 13 mil habitantes, em 1900, para mais de 17 mil, em 1905, cerca de 40 mil, em 1912 e 55 mil, em 1920. Duas décadas depois, contava com 211 mil habitantes e, em 1950, com 352 mil; com taxas de crescimento sempre acima de 4% ao ano. Concomitante ao elevado crescimento demográfico, ao longo das quatro primeiras décadas do século XX, observa-se o decréscimo do ingresso de imigrantes, em razão do fim da política de subvenção do Governo que atraía, desde os últimos anos o século XIX, o fluxo internacional de migração para o Estado. Portanto, como salienta Botelho, “será a migração de mineiros e de outros brasileiros que sustentará o rápido crescimento da cidade”, impulsionado pelo incremento da industrialização, a partir dos anos 192013, e pelo aprimoramento de infraestrutura urbana. Entretanto, os perfis e as trajetórias dos envolvidos nos processos de migração interna, durante as primeiras décadas do século XX, também são ainda pouco conhecidos. Nos estudos sobre a história da cidade, para o período em questão, as referências à população enfatizam, em geral, a participação de estrangeiros. (BOTELHO, 2007: 12-13; DUTRA, 1999; BELO HORIZONTE, 2004). Não obstante, alguns estudos dedicados às experiências de vida e trabalho da população afrodescendente, no Pós-Abolição, em regiões de Minas Gerais fortemente marcadas pela economia escravista – dentre os quais os trabalhos de Guimarães (2006; 2007), Bosi (2004) e Meyer e Nascimento (2011), que tratam, respectivamente das regiões da Zona da Mata, Mariana e São João Del Rei – nos oferecem um panorama importante para a compreensão do que ocorre em Belo Horizonte. Tais estudos indicam que, assim como em outras regiões do Brasil (RIOS; MATTOS, 2005; FRAGA FILHO, 2005) e em outros países (COOPER, 2005; FONER, 1988a), em seus respectivos períodos pósemancipação, o exercício da liberdade vivenciado pela população negra, nessas regiões do estado, implicava não raro, no recurso à migração, como estratégia de gestão de oportunidades de trabalho e condições de vida.

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Segundo Aguiar (2006: 285), em 1903, os estrangeiros correspondiam a 53% da população da zona colonial (agrícola), sendo preponderante a presença de italianos. Ex-escravizados e descendentes sofriam restrições à aquisição de terras nos núcleos coloniais. (AGUIAR, ibidem, p. 278 e seguintes). 13 Nos anos 1920, Belo Horizonte ocupava, no Estado, a terceira posição nos índices de valor de produção e pessoal ocupado na indústria; nos anos 1930, começa a consolidar-se como polo regional da indústria de ferro e aço e nos anos 1940, já constituía o principal polo industrial do Estado. Cf. Botelho, op. cit., p. 12-13.

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Com efeito, as análises de Tarcísio Botelho indicam que houve, no período entre 1890 e 1940, um aumento da população negra na região central de Minas Gerais, onde está localizada a capital. Segundo o historiador, durante esse período, a proporção de negros só aumentou em ritmo superior a esta região nos municípios do norte e leste, notando-se recuo desta população em todas as demais regiões do Estado. (BOTELHO, 2007: 21). Assim, a despeito da dificuldade de mensurar o percentual da população a partir do critério cor/raça14, na cidade, durante as primeiras décadas do século XX, o autor estima que a presença de descendentes de africanos na capital, embora reduzida nos primeiros anos, tendeu a aumentar, devido ao fluxo migratório interno. Botelho afirma que esta dinâmica se insere no processo mais amplo de deslocamento do campo para a cidade, no contexto de crescente urbanização em diversas regiões do país. Atento ao ainda sensível desconhecimento sobre o destino dos ex-escravizados e nascidos livres no advento da Abolição no país, Botelho admite a possibilidade de que boa parte deles possa ter migrado para os centros urbanos. Não havendo maior precisão quanto a informações sobre sua inserção no mercado de trabalho, afirma, é provável que tenham passado a ocupar postos de trabalho de menor qualificação e pior remunerados, já que eram pessoas oriundas, em sua grande maioria, do meio rural (BOTELHO, 2007; ADELMAN, 1974), onde as possibilidades de instrução e especialização eram, então, escassas. Considerando que a província de Minas Gerais foi detentora de grande plantel de escravos durante o século XIX e que esta abundância de mão-de-obra permitiu que a instituição paulatina do trabalho livre não dependesse tanto da imigração estrangeira, sendo favorecida a fixação do contingente existente de mão-de-obra no trabalho agrícola, Botelho acredita que a migração de negros para os grandes centros urbanos da região foi pouco significativa até a década de 1930. A participação de afrodescendentes na composição da população de Belo Horizonte, não obstante, teria se consolidado concomitantemente ao aumento populacional ocorrido ao longo das primeiras décadas do século XX, como já observado, devido ao desenvolvimento da cidade como o mais importante polo urbano e industrial do Estado. 14

A análise de Botelho considera o silêncio sobre a cor nas estatísticas e fontes produzidas no período, dificultando o conhecimento sobre os destinos da população de negros após a Abolição: após o Censo de 1890, o quesito raça só voltou a ser inserido na contagem da população a partir do de 1940. Mesmo fontes como os registros paroquiais e também os civis, deixaram de informar a cor. (BOTELHO, 2007: p. 20-21). Como observado por Hebe Mattos (1995) e outros pesquisadores do período Pós-Abolição, os registros judiciais – em especial os processos-crimes, são dos poucos em que se pode identificar informações sobre a cor dos sujeitos referenciados em tais fontes. Também identificamos o registro da cor na documentação policial produzida pela Chefia de Polícia em Minas Gerais – inclusive para Belo Horizonte – e nos Relatórios da Santa Casa de Misericórdia, como será abordado neste texto.

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Afrodescendentes na população de Belo Horizonte

Quando da decisão política de transferir a capital para a localidade do Arraial do Curral Del Rei, era provável que ali ainda se encontrassem trabalhadoras e trabalhadores negros, que até bem pouco tempo haviam vivido sob o regime escravista, como escravizados ou mesmo como libertos e seus descendentes; sobretudo se considerarmos que se tratava de região onde historicamente se registrava forte presença de “pretos” e “mestiços”.15 Na Comarca de Sabará, onde se localizava o Arraial, já em 1891, o articulista Lopes de Azeredo escrevendo para a Folha Sabarense, órgão que se intitulava de tendência liberal e abolicionista, defende a criação de um “estabelecimento comercial” para refinar açúcar e torrar café, como solução para o que, na interpretação dele e provavelmente de seus pares, seriam problemas advindos das mudanças ocorridas nas relações de trabalho após a Abolição, como deixa transparecer a queixa registrada no excerto: As cosinheiras andam vasqueiras, careiras e sem sujeição. De hora a outra estamos com nossas caras metades, ou filhas, a catarem arroz, picarem hervas e carnes, descascarem alhos e cebolas, e a fazerem tudo mais lá pela cosinha. Coitadinhas! Com que mimosas mãos, acostumadas apenas com serviços delicados, hão de ser obrigadas tambem a torrar café e a limpar assucar! Quatro cobres para a torradeira de café, meia pataca à Zefa que alimpou o assucar. Mas tudo isto é um horror, principalmente nos gostosos tempos de cambio a menos de 13. (Folha Sabarense, ANNO VII – No. 20, 15/11/1891, p. 01/02)

Embora não saibamos muito mais sobre a Zefa ou a torradeira de café, é plausível inferir que, em uma região ainda não profundamente afetada pela presença de imigrantes europeus, como nos lembra Botelho (2007), tais personagens representassem o perfil de trabalhadoras negras, recém-egressas da escravidão. Mas, ainda em 1891, já se nota um silêncio quase absoluto e, ao nosso olhar, inquietante da imprensa sobre a população negra – outrora presença constante nos periódicos, 15

De acordo com informações compiladas no Anuário Estatístico de Minas Gerais (1925), referente ao ano de 1921, o recenseamento de 1872 registrava a presença de 336 pessoas escravizadas, na população da Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem do Curral Del Rei, frente a 5.524 livres. Dentre os cativos, contavam-se 145 mulheres e 191 homens. Em edição de 1911 do mesmo Anuário, criado e dirigido por Nelson de Senna, o autor, preocupado em avaliar os números referentes à população branca do estado, faz menção a um primeiro recenseamento realizado na Capitania das Minas Gerais, em 1776, destacando a baixa proporção de brancos na Comarca do Rio das Velhas, à qual pertencia, então, a região de Sabará e o povoado do Curral Del Rei. Na comarca haviam sido registrados, então, apenas 14.394 brancos “contra 85.182 mestiços e pretos”. (MINAS GERAES, 1911: 255).

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em função da crescente onda de libertação de cativos, em face da eminente aprovação da Lei Áurea.16 Dentre as raríssimas referências, para aquele ano, encontramos além da notícia acima, esta, que descreve um homem provavelmente negro, classificado caricaturalmente como um “tipo popular”, na mesma edição da Folha Sabarense:

TYPOS POPULARES ___________________ Zé Grande É incapaz de offender a quem quer que seja, coitado. Muito prestativo, embora um pouco preguiçoso, occupa-se em toda sorte de serviços, carrega agua, vai a mandados, serve de camarada, etc, etc. É pequeno e magro, olhos grandes e avermelhados, muito agil e comprimentador “de Deus e de todo mundo.” No “reinado” da festa do Rosario comparece, infallivelmente, com sua casaca bordada, chapéo armado e calça branca, muito engommada, com dous frisos vermelhoes, satisfeito e risonho na sua qualidade de vassalo estimado do rei. O que o destaca muito de outro qualquer typo popular, é o habito de saudar a quem encontra, sem excepção alguma, fazendo enorme barretada e abaixando a cabeça em signal de submissão. É impossivel ver-se o Zé Grande pela rua sem o inalteravel e continuo: “Si, siôr, si siôr, si siôr!” Como hoje abusa-se do fin de siècle à vontade, direi ao leitor que ele é um “chuva” fin de siècle. Eu que o conheço ha muitos annos, não temo mentir dizendo que bem poucas vezes o tenho visto em bom estado, isto é, em estado natural. É também dos taes que eleva a agua ardente à altura de pão nosso de cada dia. (...). O trocista. (Folha Sabarense, ANNO VII – No. 20, 15/11/1891, p. 02/03).

A descrição do “tipo popular” em questão, construída por um sujeito que se diferencia socialmente dele, evoca possíveis elementos comportamentais da população de trabalhadores habitantes do lugar que remetem à uma situação socioeconômica precária. O Zé Grande, representação provável de um homem negro – a julgar pelos elementos culturais de matrizes africanas apontados por meio da referência às suas vestes e à participação na Festa do Rosário –, não é mais um sujeito escravizado; não obstante, sua nova condição de liberdade não lhe legou, de imediato, condições de uma vida segura e digna naquela sociedade. A embriaguez e o comportamento aparentemente submisso parecem sugerir o modo de vida possível – quem sabe forjado pelo Zé Grande, ante a cidadania inalcançada?...

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A exemplo da própria Folha Sabarense, que em suas edições publicadas no ano de 1888, noticiou, valorizandoas como exemplares, diversas iniciativas de alforria.

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De todo modo, em meio à grande lacuna de informações sobre a população negra habitante do lugar, o que começamos a vislumbrar, então, é a emergência paulatina da população de migrantes “pretos” e “mestiços” que passa a afluir para a região, a partir de fins do século XIX. Entretanto, em meio ao quase total silêncio sobre os destinos dos habitantes negros do próprio Arraial, um documento produzido pelo Delegado de Polícia de Belo Horizonte, Waldemar Loureiro, em 1916, oferece uma importante informação sobre um grupo de ex-escravizados residentes desde, pelo menos meados do século XIX, naquele território que passara a abrigar a capital. Trata-se de um relatório elaborado pelo Delegado e dirigido ao Juiz Municipal do termo, informando sobre as investigações procedidas sobre o assassinato de um certo Antonio Caramate, por Francisco Gomes da Rocha. Por este documento, nos é dado conhecer sobre a venda da “Fazenda Bom Sucesso”, em meados do século XIX a Joaquim Gomes da Rocha, “falecido chefe da família Gomes da Rocha”. Quanto à outra parte, o proprietário André Nogueira Villa Nova, “della dispôz, em testamento, declarando que a deixava em usofructo, aos seus escravos RITA, parda; JOAQUIM, creoulo; FELICIANO, pardo, etc” (APM-Fundo Chefia de Polícia. Ocorrências Policiais-Belo Horizonte, 1916), sendo o testamento datado, no momento da elaboração do relatório, em mais de 70 anos. Em 1916, os descendentes de Rita, Joaquim, Feliciano e dos demais herdeiros da Fazenda Bom Sucesso constituíam um grupo de 50 pessoas, aproximadamente. Segundo a documentação, havia um conflito entre eles e a família Gomes da Rocha, envolvendo disputa pelos limites das terras. O caso já havia chegado à Justiça, que, em geral favorecia aos Gomes da Rocha, quando se deu o assassinato de Caramate, representante dos herdeiros. Este registro é emblemático acerca da presença de trabalhadores negros e, especificamente, de uma extensa família negra de agricultores e possuidores de terra, que viveram o período Pós-Abolição no mesmo território onde se instalou a capital.17 A invisibilidade da presença de uma população constituída por pessoas negras em Belo Horizonte nesse período se altera, ainda mais, na medida em que encontramos, em alguns tipos de fonte, a menção à cor dos indivíduos atendidos pelas instituições que a produziram. É o caso dos registros de doentes atendidos pela Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte (1901-1935) e do Registro de Réus da Cadeia Pública de Belo Horizonte (1913). Não são claros, até o momento na pesquisa, quais são os critérios utilizados para

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Este mesmo perfil é comumente descrito nas narrativas de histórias familiares que registramos por meio de um conjunto de 15 entrevistas – dentre as quais está inclusa a de D. Ione Pires Ladislau, anteriormente referida. Trataremos deste aspecto abaixo.

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definir a classificação da população por cor entre “branca”, “preta” e “mestiça” por estas instituições, especialmente em um período em que a menção à cor está em desuso nos registros oficiais. Não obstante, cabe ressaltar que o dado é uma constante em todos os Relatórios da Santa Casa de Belo Horizonte, encontrados; bem como nas Listas de doentes das outras unidades da Santa Casa de Misericórdia em outros municípios no Estado, conforme documentação integrante dos registros da Secretaria do Interior, que compõem o acervo do Arquivo Público Mineiro.18 Mesmo ainda prescindindo de dados mais completos sobre doentes atendidos pela Santa Casa – tais como nome, idade, sexo, cidade de origem, profissão, dentre outros que constam possivelmente das listas de doentes ainda não acessadas, e que permitiriam distinguir a população de negros, mestiços e brancos, residente em Belo Horizonte, daquela residente em outros municípios19 –, por meio da comparação dos dados disponíveis, notamos, em consonância com os estudos de Tarcísio Botelho, a tendência de crescimento da população de pretos e mestiços, dentre os atendidos ao longo do período de 1908 a 1935, em especial. A mesma classificação de cor entre “brancos”, “pretos” e “mestiços” é utilizada pelos órgãos públicos de segurança, ao que indicam os dados fornecidos pela documentação do Fundo da Chefia de Polícia. Aqui, a manutenção do registro da cor, quando a tendência é omitir este tipo de informação, parece coerente com a prática de controle social (COSTA E SILVA, 2009) que se busca implementar na cidade. A própria documentação policial consultada atesta a vigência de um exercício de controle da polícia sobre a população visando a constituição de uma determinada ordem social; controle manifesto por meio da vigilância de práticas associativas e da repressão sobre qualquer atividade que ferisse à moral e aos “bons costumes”. A propósito, entre 1912 e 1913, dentre 371 detidos na Cadeia Pública de Belo Horizonte, 55 respondiam pelo crime de “ofensas físicas” e 275 foram “detidos correcionalmente”, conforme atestam os registros do movimento de prisões da Cadeia local, à época (APM – Fundo Chefia de Polícia, Ocorrências Policiais-Belo Horizonte, 1913). A cor enuncia-se ali como um elemento importante utilizado na identificação e classificação de

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O registro da cor também é observado nos recém-descobertos registros do Instituto Radium, instituição criada em 1921, na cidade, para o tratamento de doentes com câncer. A diferença é que, no Instituto Radium, instituição que atendia prioritariamente à população economicamente favorecida, a presença de pessoas negras é sensivelmente menor que na Santa Casa de Misericórdia. Cf. (CUPERSCHMID; MARTINS, 2014). 19 De acordo com os dados disponíveis nos referidos Relatórios da Santa Casa, sabemos que o total de atendidos residentes em Belo Horizonte e oriundos de outros municípios, foi, respectivamente, para os períodos seguintes: 1910-1916 – 10.338 e 4.441; 1917 – 1456 e 771; 1918 – 1437 e 1495; 1921 – 1659 e 1232; 1928 – 3110 e 1922; 1929 – 3281 e 1966; 1934 – 3267 e 2298; 1935 – 3504 e 2553.

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suspeitos ou criminosos. À época, já efetuadas a instalação de um Gabinete de Identificação e a adoção do sistema de identificação pelo método dactiloscópico20, considerado infalível, em comparação com o método até então empregado – o antropomórfico –, a cor continuava compondo uma das informações relevantes para identificação de criminosos, conforme atesta exemplar da ficha de identificação criminal constante de um relatório da Secretaria de Polícia, publicado em 1909. (APM – Relatório da Secretaria de Polícia de Minas Gerais, 1909). Há que se considerar, ainda, que o decreto n. 2.473, publicado em 20 de março do mesmo ano de 1909, pelo vice-Presidente Bueno Brandão e por meio do qual se criava o Gabinete de Identificação, estabelecia-se dentre as pessoas passíveis de serem identificadas criminalmente, os considerados vadios – muito embora, as próprias fontes policiais indiquem que a prisão, neste caso, era irregular.21 Dentre os considerados “vadios”, provavelmente encontrava-se grande parte do contingente de migrantes negros oriundos do interior do estado. As informações contidas nos Registros de Réus recolhidos à Cadeia Pública de Belo Horizonte, não obstante, nos permitem identificar alguns dados que não constam dos Relatórios da Santa Casa de Belo Horizonte analisados – nos primeiros, para além do histórico criminal, é possível estabelecer um breve perfil dos sujeitos de que trata a documentação. Assim, temos, por exemplo: A. A. C., 22 anos, casada, meretriz, mestiça, 1,48 de altura, alfabetizada (“sabe ler e escrever”); tendo sido pronunciada com base no artigo 303 do Código Penal, referente à prática de ofensas físicas, foi condenada em Belo Horizonte e solta por pagamento de fiança em 11 jan. 1913. Além dela, observamos, conforme dados da Tabela 5, a presença de outras 3 mulheres, sendo uma outra meretriz e as demais trabalhadoras (servidoras) domésticas. Dentre os demais presos, portanto, destaca-se a forte presença de homens não brancos correspondendo a 49,55% dos 111 detidos e detidas; neste percentual da população masculina de presos, 14,41% são classificados como “pretos” e 20

Esta mudança foi precedida de uma intensa discussão em voga no estado e no país, por ocasião da sistematização do método de identificação dactiloscópica por Juan de Vucetich, então responsável pela Chefatura de Polícia da Província de Buenos Aires, sediada em La Plata. O novo método contrapunha-se ao concebido por Alphonso Bertillon, que empregava medição antropomórfica e o detalhamento de caracteres físicos distintivos como a cor da pele, dos olhos e do cabelo, cicatrizes, etc, para identificação de indivíduos. Ao fim, a polícia de Minas Gerais parece ter adotado uma prática de identificação que conciliava elementos de ambos os métodos (Cf. APM – Relatório da Secretaria de Polícia de Minas Gerais, 1909). 21 Em ofício enviado ao Chefe de Polícia, em julho de 1916, por ocasião de uma contenda sobre a cobrança ilegal de carceragem, o Delegado Orlando Pimenta, posicionando-se contrário à cobrança, argumenta: “Demais, as chamadas prisões correccionaes, como as prisões para averiguações policiaes, que se impõem, muitas vezes, como medida de repressão ás irregularidades de conducta de indivíduos de baixa estofa social, não têm assento ou fundamento em lei alguma. Ora, assim, a taxa de sellos estipulada para os alvarás de soltura não póde referirse a taes prisões, pois acto não previsto em lei, ou melhor, não reconhecido pela lei não póde ser por ella tributado.” (Cf. APM-Fundo Chefia de Polícia. Ocorrências Policiais – POL8-CX.24-Pc. 02).

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35,14%, como “mestiços”. Os brancos somam 26,13%, e os sem informação para a cor, 24,32%. Dentre as várias profissões declaradas, a grande maioria é de jornaleiros, militares e lavradores, conforme dados da Tabela 3, nos Anexos, abaixo. Nota-se também a presença de estrangeiros e de brasileiros de outros estados, sendo que alguns poucos, dentre estes presos estavam ali, provisoriamente, enquanto aguardavam julgamento, tendo cometido os crimes respectivos, em outros municípios do Estado. Por meio das fontes aqui referidas, podemos vislumbrar a presença e alguns elementos do perfil e das experiências de sujeitos até então negligenciados nas narrativas sobre a história da cidade. São, contudo, as fontes orais que nos possibilitam uma melhor aproximação dessas e de outras experiências da população negra que afluía para Belo Horizonte, no período em tela, como observaremos, a seguir, a partir de uma das histórias familiares produzidas por migrantes negros/as e/ou descendentes que entrevistamos recentemente.22

Trajetórias e experiências de migrantes negras/os em Belo Horizonte: as histórias de vida de Dona Cotinha e Sr. Raimundo23 Em 1938, quando tinha 11 anos de idade, Dona Cotinha [Maria Ramos Monteiro] deixou a casa dos pais, em Volta Grande, próximo ao município de Ponte Nova (MG) e viajou para Belo Horizonte. Um tanto arrependida por deixar a mãe, especialmente, a menina tinha destino certo na nova cidade – uma “casa de família” situada próximo ao “Colégio Arnaldo”, na região do Bairro Funcionários. Ela passou a integrar o grupo de trabalhadoras e trabalhadores domésticos empregados na casa da família Nahas, chefiada, nas palavras da entrevistada, por um advogado – o “Doutor Nahas”. Ali ela exerceu a função de arrumadeira, desde então, até o casamento, nos anos 1950. Depois de um tempo, a mãe da entrevistada, Dona Rita Miranda também migrou para Belo Horizonte, estabelecendo-se no Bairro Santa Efigênia, onde recebia a visita da filha, quinzenalmente. Dona Rita, que também atuou como trabalhadora doméstica, chegou à cidade, em princípio, para acompanhar os filhos Vicente e Zezé, que haviam se mudado para Belo Horizonte, antes de Cotinha, e trabalhavam como serventes de pedreiro. A família reconfigurava-se, então, na capital, sem a presença do pai, Sr. Francisco Miranda. Este, descrito pela entrevistada como “boêmio”, permaneceu na cidade de

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Os depoimentos foram registrados em entrevistas realizadas pela pesquisadora, no âmbito da pesquisa em curso, e estão referenciados, ao final deste texto. 23 Os nomes foram mantidos, com anuência dos entrevistados, atestada no Termo de Cessão de Uso de Depoimento Oral estabelecido por meio de acordo entre os mesmos e a pesquisadora.

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origem, num primeiro momento, mas juntou-se à família tempos depois. “Chegou. É... Sem sanfona, nem nada.” Diz ela, sorrindo. “Só com a roupa do corpo.” Ao lembrar-se dele, D. Cotinha remete imediatamente à ideia que tinha, quando criança e jovem, sobre casamento: ...“Eu... casar, eu num vou casar. Porque eu casar pr’um homem querer [...] me bater e deixar eu passar [necessidade], eu num vou casar, não.” Quando os outros falava assim: “Eu vou casar com cê!” Eu até chorava de raiva. (MONTEIRO; MONTEIRO, 2013)

Esta impressão se diluiu, contudo, a partir de quando ela conheceu Raimundo, num passeio costumeiro na Avenida Amazonas, no Centro da cidade. Ali, nos anos 1940, segundo os relatos de ambos, era um dos espaços de lazer e sociabilidade para as/os jovens trabalhadores/as, que passeavam por lá, aos finais de semana à noite. Nas palavras dela, aliás, percebemos que era um espaço segregado: “É... Naquele tempo, tinha o lado... o lado direito era dos bacanas. O lado esquerdo era dos mais humildes.” Durante o dia, o lugar preferido para lazer era o Parque Municipal Américo René Giannetti, também na área central. Foi, portanto, num dos passeios pela Avenida Amazonas que ela conheceu aquele que se tornou seu companheiro e com quem construiu uma família de 5 filhos. A família constitui um grande valor para os Monteiro, assim como para a maioria dos grupos familiares integrados por outros de nossos entrevistados. Por meio dela, engendraram, em Belo Horizonte, projetos de vida que representam o esforço de superação das adversidades que tornavam cada vez mais inviável a vida nas cidades de origem. Com efeito, como já mencionado, o aumento do fluxo migratório observado em Minas Gerais, no período pós-Abolição, é decorrente do aumento constante da urbanização – fenômeno comum a diversas regiões do país, ao mesmo tempo em que a constitui. As narrativas das pessoas que entrevistamos, invariavelmente remetem, em algum momento, às lembranças familiares sobre os tempos da vida “no interior”. Esses “tempos” correspondem aos das gerações de avós e bisavós da maioria dos entrevistados, que viviam, em geral do trabalho como pequenos agricultores. Trabalhavam para terceiros – como no caso dos familiares de Dona Lia (OLIVEIRA, 2014), por exemplo –, mas em alguns relatos – como os de Sr. Raimundo e Dona Cotinha (2013), Edna e Maria do Carmo Costa (2014), da família Santos (2014) e de Levínia da Costa (2014) –, aparecem como proprietários de pequenas roças. O estatuto da posse dessas terras, nestes casos, quase nunca é descrito com precisão pelos depoentes. Mas é comum, nos relatos, a memória de que em função das dificuldades enfrentadas pelos pequenos agricultores, as pessoas precisaram buscar alternativas de trabalho

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em Belo Horizonte – em geral passando por municípios situados no entorno da capital, depois de abandonar ou vender a preço muito baixo as referidas terras. Sr. Raimundo, curiosamente, ao se lembrar da avó materna, que fora escrava “ou filha de escravos” – não soube precisar – e que ele conhecera quando criança, remete à precariedade da vida na roça, “naquela época”, no tempo da avó que, na narrativa dele, se mistura ao próprio tempo da infância. Esta memória da precariedade da vida, para Sr. Raimundo emerge de maneira forte, quando ele descreve as próprias experiências de trabalho infantil, com a enxada nas mãos calejadas; bem como a dificuldade de estudar: “Eu estudava numa lousazinha quebrada”, diz ele com um sorriso um tanto entristecido. “Comprava um caderno de duzentos réis... Era uma luta... [Pausa longa] Duzentos réis, naquela época!...” (MONTEIRO; MONTEIRO, 2013). Órfão de pai, aos 7 anos e filho de uma mulher que ele descreve como “guerreira”, que trabalhou arduamente “na roça” para sustentar os filhos, para ele, as oportunidades educacionais só puderam ser acessadas de maneira mais contínua na vida adulta, em uma escola pública em Belo Horizonte – o Grupo Escolar Olegário Maciel, à Rua Carijós, também no Centro da cidade. Ele conciliou, durante alguns anos, o tempo de estudo com o de trabalho. Oportunidade não possibilitada a Dona Cotinha, que abdicou da escola, em função da necessidade de cuidar dos filhos. Em Belo Horizonte, ainda criança, Raimundo tornou-se aprendiz e empregado em uma oficina de cromagem. Tornou-se sócio desta primeira oficina em que trabalhou e manteve-se no ofício até se aposentar. O projeto familiar de Sr. Raimundo e D. Cotinha foi construído, com dedicação, em condições de enfrentamento da precariedade da vida que tendia a se perpetuar mesmo na cidade – ali, onde a crescente população negra ocupava os postos de trabalho menos valorizados em termos de remuneração e status, onde as condições de habitação, educação e saúde da população pobre eram ainda bastante precárias, embora em geral melhores que nas áreas rurais. A maioria de seus filhos e netos ensaiam a continuidade deste projeto, por meio de carreiras profissionais consolidadas – como policiais civis ou militares, professor de Educação Física, administradores –, e da formação de novos núcleos familiares, referenciados na história e na presença dos avós.

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ANEXOS Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte Tabela 1 – Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte-Doentes admitidos entre 1908* e 1935 (Cor/Raça) Quadro comparativo - Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte Doentes admitidos, 1908-1935 (Cor/Raça)

Brancos Pretos Mestiços Totais

1908 90 39 79 208

1910 321 230 708 1259

1911 381 376 861 1618

1912 616 538 1165 2319

1913 896 636 1282 2814

1914 859 556 1068 2483

1915 764 615 819 2198

1916 774 640 825 2239

1917 1918 1921 756 1016 1087 848 621 771 603 1295 1405 2207 2932 3263

1923 1089 687 1557 3333

1928 1150 1287 2595 5032

1929 1444 1222 2781 5447

1930 2267 1123 2208 5598

1931 223 2530 1140 3893

1934 1450 1390 2725 5565

Fonte: APM – Relatórios da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte (1908-1935). (*)Foram analisados os Relatórios do período entre 1901 a 1935. Contudo, somente a partir de 1908, são registradas neles informações sobre cor.

Gráfico 1 – Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte-Doentes admitidos entre 1908 e 1935 (Cor/Raça)

Fonte: APM – Relatórios da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte (1908-1935).

1935 1999 1383 2675 6057

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Fundo Chefia de Polícia – Registro de réus recolhidos à cadeia de Belo Horizonte

Tabela 2 População Carcerária - Cadeia Pública de Belo Horizonte, 1913 (Cor/raça) Branca 29 26,13% Preta 16 14,41% Mestiça 39 35,14% Sem Informação 27 24,32% Total 111 100,00% Fonte: Registro de réus recolhidos à cadeia de Belo Horizonte, 1913 (ACPM – Fundo da Chefia de Polícia)

Tabela 3 População Carcerária - Cadeia Pública de Belo Horizonte, 1913 (Naturalidade/Nacionalidade) – A Espanha 1 0,90% EUA (Califórnia) 1 0,90% Itália 5 4,51% Minas 85 76,58% Pernambuco 1 0,90% Rio de Janeiro 1 0,90% Sem iformação 15 13,51% Síria 2 1,80% Total 111 100,00% Fonte: Registro de réus recolhidos à cadeia de Belo Horizonte, 1913 (ACPM – Fundo da Chefia de Polícia)

Tabela 4 População Carcerária - Cadeia Pública de Belo Horizonte, 1913 (Naturalidade/Nacionalidade) – B Brasileiros 102 91,89% Estrangeiros 9 8,11% Total 111 100% Dentre os brasileiros Mineiros 85 83,33% Outros Estados 2 1,96% Sem informação 15 14,71% Total 102 100% Fonte: Registro de réus recolhidos à cadeia de Belo Horizonte, 1913 (ACPM – Fundo da Chefia de Polícia)

Tabela 5 População Carcerária - Cadeia Pública de Belo Horizonte,1913 (Profissões/Ocupações) Agencia/Agenciador 2 Alfaiate 2 Cabouqueiro 4 Caixeiro 1 Carpinteiro 3 Carroceiro 1 Chapeleiro 2 Cocheiro 1 Colchoeiro 1 Comerciante 1 Copeiro 2 Engenheiro 1 Guarda Civil 1 Guarda-freio 1 Jornaleiro 17 Lavrador 16 Meretriz 2 Militar 17 Motorneiro 1 Negociante 5 Oleiro 1 Pedreiro 4 Pintor 1 Sapateiro 3 Servente de pedreiro 1 Servidora doméstica 4 Veterinário 1 Viajante 1 Sem informação 14 Total 111 Fonte: Registro de réus recolhidos à cadeia de Belo Horizonte, 1913 (ACPM – Fundo da Chefia de Polícia)

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Considerações Finais

Como esperamos ter demonstrado, por meio da breve referência às experiências da Família Monteiro, as fontes orais permitem acessar outras dimensões da experiência das famílias negras na cidade, em relação às demais fontes de que tratamos na primeira parte deste texto. Assim, no conjunto das entrevistas já realizadas, além dos temas abordados por Dona Cotinha e pelo Sr. Raimundo outros se destacam. Dentre eles, a reafirmação da experiência de migração para a capital, como marco das histórias das famílias negras entrevistadas: das 15 entrevistas de que dispomos, oito entrevistados nasceram em Belo Horizonte; contudo, as histórias de quase todas as famílias reportam à migração de algum município de Minas Gerais para Belo Horizonte, na primeira metade do século XX. A passagem por outros municípios que hoje integram a Região Metropolitana de Belo Horizonte, antes do estabelecimento das famílias migrantes em Belo Horizonte, é coerente com os apontamentos de Botelho acerca do aumento populacional na região central do estado e para Belo Horizonte, no período em foco. Além disso, é recorrente a referência à memória (ainda que remota) de algum antepassado liberto ou livre filho de escravizado. Nas narrativas sobre a migração, há ocorrência de memórias sobre alguns desses antepassados libertos ou filhos de libertos que teriam sido proprietários de terra. Quanto às memórias da vida nas cidades de origem, são referenciadas, em geral, no trabalho com a lavoura. Quanto às atividades laborais exercidas pelos que migraram para Belo Horizonte, encontram se, para os homens, as de policiais, operários de mineradora, agricultores (nas colônias agrícolas), trabalhadores da construção civil, técnicos em oficina mecânica (automóveis e cromagem); para as mulheres, as de trabalhadoras domésticas, funcionárias do serviço público de saúde, artesãs – o que nos oferece um quadro mais amplo de ocupações, em comparação com os dados das demais fontes anteriormente analisadas. Há uma constância, nas narrativas, quanto à relevância da educação e a escassez de possibilidades de acesso a esse direito pelas gerações mais antigas. Nota-se uma mudança explícita quanto a este aspecto, nos relatos sobre filhos e netos dessas gerações acessando, inclusive, o ensino superior. Para as gerações mais jovens, evidencia-se a expressão de valores como o afeto, a honestidade e o apreço pela qualidade no trabalho, como herança dos pais e avós e como fator de manutenção da unidade familiar e de resistência às dificuldades experienciadas socialmente, na condição de negros e negras. Observa-se, ainda, a

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preponderância das narrativas femininas sobre tais histórias, o que nos convida a tratar mais atentamente a condição das mulheres negras na cidade. Por fim, um dos principais potenciais destas fontes, é a possibilidade de atentar para os olhares, as percepções e leituras da cidade construídas a partir do exercício de memória das pessoas entrevistadas, que constituem um aspecto importante de análise, a ser posto em diálogo com as perspectivas vigentes sobre a história Belo Horizonte.

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