Historiografias em tempos de redemocratização

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Ao Fórum de Teoria da História e História da Historiografia, historiografias em tempos de redemocratização

Este texto foi originalmente apresentado no 2o Congresso da Rede Internacional de Teoria da História que ocorreu em Ouro Preto no ano de 2016. Sua parte central, assim, é uma tradução do que foi apresentado e, por isso, mantém seu caráter de apresentação oral. A bibliografia, acréscimo principal ao texto, tem a intenção de dizer ao leitor as referências que permitem dizer algumas palavras sobre a historiografia em tempos de redemocratização.

Francisco Gouvea de Sousa Professor Adjunto do Departamento de História UERJ-Maracanã

Entretanto, em meio a todas as tentações a que eu deveria resistir hoje, haveria a da memória: a de contar o que foi para mim – e para os da minha geração, que a têm compartilhado de toda uma vida, a experiência do marxismo, a figura quase paterna de Marx, sua luta em nós com outras filiações, a leitura dos textos e a interpretação de um mundo em que a herança marxista era – e ainda continua sendo, e, portanto, continuará sendo – absolutamente e de ponta a ponta determinante. Não é preciso ser marxista ou comunista para render-se a esta evidência. Todos nós habitamos um mundo, alguns diriam uma cultura, que conserva, de modo diretamente visível ou não, numa profundidade incalculável, a marca desta herança. Jacques Derrida. Espectros de Marx

2 Introdução Nesta apresentação pontuo observações sobre uma pesquisa em curso que tem por tema a historiografia brasileira no contexto da redemocratização, ou seja, da década de 1980. De início devo dizer que não sou especialista no assunto. Meu tema de pesquisa é a historiografia brasileira oitocentista. O que me fez ir aos anos 80, inicialmente, foi um interesse por debates que deslocaram conceitos, como ideologia, o que intensificou, inclusive, o interesse pela história da historiografia (ARAÚJO: 2012). Foi também o momento no qual a historiografia começou a se rearticular pela ampliação das pósgraduações e revistas especializadas (FICO: 1992). Não foi preciso muito tempo de pesquisa, porém, para que o passado cobrasse seu pedágio e outras questões começassem a surgir. Perguntas mais específicas se desdobraram em outras mais amplas: como a historiografia reagiu aos fins e permanências dos regimes militares? Como a historiografia e a democracia se redefiniram? Se este desdobramento já é amplo, existe ainda outra experiência que marcou esta década: a dissolução de diferentes expectativas de futuro, principalmente naqueles que se compreendiam como esquerda. Num contexto maior, podemos indagar a redemocratização na América como parte de uma “experiência abismal”. Este é o conceito mobilizado por Elias Paltí, em Verdades y saberes del marxismo, para se endereçar a uma “aparente perda de horizonte de inteligibilidade” vivida pela dissolução de expectativas revolucionárias. Parte do que segue, deve muito a este livro. A única diferença é que Paltí considera que esta perda de horizonte se dá sobretudo após o fim da URSS. Penso que este é um marco central, mas no caso americano a dissolução de expectativas revolucionárias já se dava ao longo dos regimes militares. Além disso, nenhum debate ou processo histórico imaginado até então previa a possibilidade de regimes daquela natureza e força. A experiência dos regimes militares fez com que debates importantes até então se tornassem apenas leituras equivocadas. Esta apresentação, assim, divide-se em três partes: 1) a experiência abismal e a redemocratização; 2) a dissolução da unidade do conceito de ideologia como índice de uma crise dupla: epistemológica e do lugar ocupado pelo intelectual/historiador; 3) algumas respostas dadas pela historiografia. Não pretendo assumir qualquer relação causal entre historiografia e contexto. A intenção é, sobretudo, estar com o horizonte pelo qual a historiografia se redefine nos anos 80. Antes, é inevitável falar sobre a diferença entre o que era a atmosfera política do

3 Brasil quando comecei a escrever este texto e o momento que poderia chamar de hoje. Quando pensava no texto, ano passado, já estava presente a necessidade de ter a democracia como uma pergunta em aberto. Hoje, esta necessidade é ainda mais urgente. A democracia no Brasil enfrenta problemas diretamente ligados a forma como estruturas autoritárias foram negligenciadas como temas centrais nos debates públicos. Neste sentido, o passado é presença. Nada disso quer dizer que o Brasil ou a América Latina se encontrem em algum tipo de estágio de desenvolvimento ou, ainda, que a ‘democracia é aqui muito jovem’. Algo que levaria a busca de um horizonte hierarquizante entre o que está dentro e fora destes territórios. Também não parece ser o caso de afirmar, com Boa Ventura de Sousa Santos, que não há mais chance de pensamento criativo no velho continente, indo a um extremo oposto. Pretendo apenas questionar se pensar sobre democracia ainda é algo a ser feito dentro dos seguros e confortáveis limites das fronteiras nacionais. Afinal, o que os países, que se percebem como democracia, fazem fora de seus territórios não é exatamente democrático. Mesmo que a intensidade da urgência possa variar, a pergunta vivida pelo Brasil e pela América Latina hoje é uma pergunta comum a muitos: por que a democracia estabelece limites que ela, como projeto, pretende superar? Assim, falando de Américas ou qualquer outro lugar não penso singularidades ou particularidades, mas urgências distintas. Esta pretensão de universalidade do conceito de democracia já é, na verdade, a tentativa de um historiador de ir aos anos 80. Recuperar um horizonte do passado implica este tipo de investimento. No caso, implica em falar de democracia como algo que nos recoloca de frente ao passado e ao futuro. Um ensaio como A democracia como valor universal ou o livro A democracia e os comunistas no Brasil – o primeiro de Carlos Nelson Coutinho, o segundo de Leandro Konder (a lista poderia crescer) – marcam justamente o quanto existe de uma experiência de perda de futuro sendo reconstituída pelo conceito de democracia nesta década. Ambos abandonam qualquer projeto revolucionário para investir no político, compreendendo este investimento, na prática, como defesa da democracia. No limite, era do próprio conceito moderno de revolução (KOSELLECK: 2006) que eles se afastavam. Um futuro se abria pelo conceito e, também, outras formas de ver o passado. Os erros do passado se tornavam um tema recorrente em escritas da história do PCB publicadas ao longo dos anos 80. Em sua Contribuição à história do PCB, Nelson

4 Werneck Sodré falava de uma volumosa produção sobre o tema. No geral, o que tenho visto é a necessidade de produzir sentido exemplar para o passado (RÜSEN:2010), como se a única forma de produzir sentido para ele fosse aprendendo com erros do PCB. A pretensão de um uso tático da democracia burguesa era algo criticado. A partir daí a democracia (como oposto de qualquer forma de autoritarismo) deveria ser um valor tão necessário quanto a busca pela igualdade. Mas a atenção às estruturas e modelos não dava espaço ao político. O mesmo se dizia sobre a aliança com a burguesia nacional, tema recorrente, por vezes defendido, outras duramente criticado. No mínimo, jogar com as contradições internas do capitalismo – supostamente a estratégia central do PCB – não era algo tão simples. Por entre as linhas e o sentido exemplar, porém, aparece uma experiência que não comportava sentido. A permanência dos regimes militares desestabilizava as narrativas. A ausência de resposta eficaz, como se quem sofre o golpe fosse responsável por ele, suspendia a confiança em toda decisão tomada até então. Seja dentro ou fora do PCB, quem se percebia como esquerda não tinha um passado para se sustentar. Qualquer futuro haveria de ser novidade, a democracia cumpria este papel. O debate pela democracia, porém, era bem mais amplo. Para Bolivar Lamounier, que não se percebia necessariamente como esquerda, algo semelhante se dava: a construção da democracia como futuro era possível na medida em que ela era uma diferença a alguma coisa, não mais o oposto do socialismo ou fascismo, mas o oposto de um passado até aquele momento insuperável. Isso quer dizer que, no debate público, não estava em jogo incidir sobre o passado recente, sobre a força que os herdeiros dos regimes militares visivelmente tinham na redemocratização, mas sobre um passado visto como unidade, como arcaico. A homogeneização do passado dava bases sólidas ao presente e ao futuro. Deixando o passado recente como um ponto menor, as permanências eram mais que possíveis, foram prováveis e há quem diga que estão aí (SAFATLE e TELLES: 2010). Antes de falar de permanências, porém, é necessário falar da perda do horizonte em sua fisionomia mais radical que marca o fim da década, o que será feito por um evento singular: a notícia na qual a foice e o martelo se tornaram “peça de museu”. Experiência e abismo O extraordinário se deu num dia qualquer. A rotina da telenovela foi

5 interrompida pela chamada de um Globo Repórter. A trilha sonora suspendia, por alguns segundos, a distância entre observação e mundo. O telespectador podia ter a impressão de que todo mundo estava ali, um espetáculo, um singular coletivo em movimento na tela a sua frente. Afinal, o repórter Pedro Bial anunciava o fim de uma era. Em suas palavras o socialismo virava isso: “uma peça de museu”. A imagem mais importante na reportagem, porém, era a bandeira vermelha descendo do mastro pela última vez, acompanhada por trilha sonora alguma, apenas pelo silêncio. Num acerto não premeditado, o silêncio como trilha sonora se manteria como contraponto de uma sociedade que não sabe mais viver fora do ruído. Entre outros acertos inesperados, futuros distópicos atribuídos ao comunismo se convertem em possíveis descrições do presente democrático. O que ao fim da Guerra Fria se imaginava como futuro vitorioso, também não se cumpriu. Com a permanência da barbárie, o silêncio da bandeira vermelha ecoa como lembrança de um outro futuro também perdido. Permanência que está, também, no silêncio e no assombro frente ao abismo, frente a aparente perda de horizonte de inteligibilidade. O fim da URSS talvez seja o ponto mais forte desta experiência; mas, pelo menos no caso americano, não foi sua primeira expressão. Seguindo a cronologia mais recorrente nas histórias do PCB publicadas nos anos 80, a primeira grande fratura de futuro entre comunistas se deu pela recepção dos “crimes de Stalin”. A unidade que o partido tinha, a própria possibilidade de imaginar um destino em comum que tinha a URSS como centro, tudo deixava de ser consensual. Porém, algo ainda mais intenso se dava pela permanência dos regimes militares. Existe uma recorrente dificuldade em dar sentido a esta experiência. Em Combates nas trevas, que além de seu relato biográfico compõe também uma história do PCB, Jacob Gorender deixava claro o quanto existe de suspensão de sentido na própria organização do livro. A prisão simplesmente irrompe em um capítulo, interrompendo de um golpe só uma narrativa que até então era sequencial e causal. Os erros, ou o erro central (a hierarquização interna competia com a aposta numa aliança com a burguesia nacional), falavam de uma falta de atenção com o ocaso do populismo, solo histórico dos regimes militares na compreensão de Gorender. Existia um processo histórico a ser percebido, mas não foi. A compreensão da história podia falhar, na década de 1980 esta sentença era recorrente. O que se dava até o abismo se confirmar, em 1991 com o fim da URSS, é o que

6 mais interessa: uma certa capacidade de “manter as coisas incertas” (GADAMER: 1997). Antes do fim das expectativas, mas já com o fim anunciado, a dúvida era uma constante. Em qualquer ponto que se olhe, era evidente para quem viveu os anos 80 que a Guerra Fria chegaria ao fim e mesmo uma improvável vitória da URSS não dava resposta alguma. É esta experiência que me interessa principalmente: como agir quando não se confia na resposta? Como falar para outras gerações desta capacidade que o fim da década, com a institucionalização da democracia, parece ter perdido? Crises do conceito de ideologia Um dos debates em jogo diziam respeito ao lugar do intelectual/historiador na sociedade. Este debate estava relacionado ao conceito de ideologia em, pelo menos, dois aspectos até então. No primeiro, pelo conceito era possível estabelecer uma divisão/hierarquia entre crítica e senso comum. Mais que isso, torna-se possível definir de forma direta os contornos do que é ou não consciência política. Nada que não se soubesse. Werneck Sodré falava algumas vezes do risco da crítica produzir uma sensação de afastamento/superioridade em relação ao entorno. Em segundo, a ideologia operava como uma ferramenta para resolver tensões e relações entre produção intelectual e contexto ou cultura e economia – populismo é um exemplo de desdobramento deste conceito como unidade, a forma como ISEB era lido até então é outro exemplo. Em ambos os casos, a crítica ideológica permitia um afastamento do mundo, como se o gesto crítico, ele mesmo, também não corresse o risco de, como sólido, se desfazer no ar (penso que Engels e Marx conheciam este risco). A recepção de autores como Michel Foucault ajudaria a dissolver o conceito. No caso específico da história, algo semelhante se daria na leitura cada vez mais intensa de E. P. Thompson. No mínimo, a compreensão de formas de dominação ou poder não se dariam mais por causalidades. Classe não seria mais compreensível pela presença de certas estruturas. Classe se daria, a partir daí, dentro da história como contingência. Também não deixariam mais de lado formas discursivas como as ciências. Toda produção de discurso foi posta em dúvida (a partir daqui, em muito a história da historiografia se renovou). A dissolução do conceito de ideologia como uma unidade pode, inclusive, ser vista na historiografia de forma mais direta. Ao longo da década de 80 a historiografia gira de uma “história dos vencidos” para uma “história dos novos sujeitos históricos”,

7 sendo que a diferença entre elas está, também, no uso ou não do conceito ou em sua definição. Marilena Chauí, neste ponto, é um índice importante. Além de ter escrito história tendo ideologia como conceito chave (CHAUÍ: 1978), sua definição do conceito é representativo, o que aparece inclusive em prefácios escritos pela autora para livros de história. Isso talvez explique o motivo de ter sido convidada para escrever o volume “O que é ideologia?” na coleção “Primeiros passos” editada pela Editora Brasiliense (chama atenção a presença desta editora na década). Esta coleção, aliás, tem servido como uma espécie de dicionário filosófico dos anos 80 para a pesquisa em curso. Produzida ao longo da redemocratização – ao lado de outras coleções (pelo menos a que se dedica aos presidentes é importante para saber como os historiadores se dirigiam à história pública) – a coleção “Primeiros Passos” operava como um dicionário, produzindo a tentativa de cristalizar conceitos que, naquele mesmo momento, estavam tendo sentidos deslocados1. No que diz respeito a “história dos vencidos”, para além de sua dimensão teleológica, a fisionomia mais específica deste interesse pelo passado é uma necessidade de expô-lo, como se a historiografia o tivesse ocultado. “Trata-se, antes de mais nada, de pôr em dúvida a historiografia existente, assinalando seus compromissos (voluntário ou involuntários) com o saber da classe dominante” (CHAUÍ: 1981; 11). A historiografia era suspensa por ser instrumento ideológico. Na escrita da história, isso se desdobra numa anulação de qualquer criatividade ou agenda autônoma por parte dos derrotados ou perdedores (DECCA: 1981). Para além de não serem sujeitos de sua própria história, não tinham também algo que se pudesse definir como consciência. Ou seja, as suas próprias vozes não eram necessárias para saber de seus passados. Não estou em absoluto dizendo que não existiam formas de dominação e controle, mas que a compreensão de suas 1

Neste sentido, Chauí definia o conceito na seguinte direção. Na escrita dirigida a públicos iniciados sua

definição é: “O campo da ideologia é o campo do imaginário (…), no sentido de irrealidade ou de fantasia, mas no sentido de conjunto coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser do social” (CHAUÍ: 1989, 19). Na escrita dirigida a um público amplo, depois de percorrer uma história do conceito, o conceito assume fisionomia por uma narrativa dos diferentes momentos da divisão social do trabalho, ou seja, a autora segue mais de perto a própria estrutura do texto de Marx e Engels. No fim, a questão central também é próxima: a potência de conceitos que, quando generalizados na sociedade, naturalizam a estruturação da mesma. Fazem do olhar da parte, algo comum a todos. O conceito de propriedade privada, aqui, é o conceito central.

8 estruturas como sendo autônomas e autorreferentes não é um acesso privilegiado ao passado, mas sim ao que um presente pretende superar como arcaico, como um passado que não finda. Nesta escrita, as personagens são as estruturas. A história dos “novos sujeitos”, apesar de também se interessar pelos “vencidos”, caminha por outras escolhas. Na abertura de O diabo na terra da Santa Cruz é dito: … acreditava que a feitiçaria exercida por esses homens pobres – livres, escravos e libertos – apresentava elementos predominantemente africanos. Sobre eles incidia a carga reprobatória dos poderosos e também a do homem comum, que na condenação de seus iguais buscava identificação com as camadas dominantes e introjetava sua ideologia (SOUZA: 1989, 15).

Porém, o livro segue outro caminho. Foi apenas por romper com o conceito de ideologia que aparecem os “níveis culturais múltiplos, agentes de um longo processo de sincretização” (SOUZA: 1989, 16). A ruptura da unidade, prefigurada no conceito de ideologia, é justamente o solo para o florescimento de conceitos como sincretismo, circularidade, troca, negociação… de diversidade interna, mas que carregam um mesmo código pelo qual se relaciona com seu meio: o par dentro e fora é constantemente agredido pela narrativa, implicando uma desestabilização do par em cima e em baixo. De forma que o popular, por não estar totalmente ausente do dominante subverte e afrouxa estruturas e padrões previamente apresentados. Como se a escrita se dispusesse a escrever tipos para depois constrangê-los. Toda a escrita do livro, dizia a autora na introdução, só era possível na medida em que se deixava de conhecer os sujeitos pelas formas de dominação; o que era o mesmo que não trabalhar com o conceito de ideologia como unidade. Este conceito, porém, não foi apenas suspenso, também foi reformulado. Por isso tenho falado em ideologia como unidade, como a expectativa de sempre encontrar um processo no qual “o aparecer social é tomado como o ser do social” (CHAUÍ: 1989, 19). Também numa tese defendida na USP, em O tempo saquarema ideologia não era apenas repensada. O livro falava internamente de outra dimensão: a perda na confiança da compreensão de processos históricos como um caminho para se orientar no presente. Não é o caso de marcar a diferença entre hegemonia e ideologia tal como Chauí (mas não só ela) a definia. Este livro mereceria um debate específico sobre como a recepção de Gramsci desestabiliza qualquer possibilidade de dimensão normativa no conceito de ideologia. Hegemonia não existe fora de uma realidade histórica contingencial. No limite, usando o par mobilizado por Paltí, uma das formas de permanência

9 do marxismo como saber se dá justamente quando se perde a certeza de sua verdade. A condição de verdade do marxismo como destino é posta em dúvida para transformar uma carência central em Marx, a ausência de uma teoria do político, em algo positivo e instigante. Aqui, é só pela vida política e histórica que é possível operar com conceitos como classe. Se o reconhecimento da história como contingência dizia que um futuro socialista não seria inevitável, simultaneamente a contingência permite des-normatizar qualquer conceituação, dando a chance dos conceitos terem sentido enquanto narrativa. Ou seja, não havia uma verdade a orientar diretamente a ação no mundo, mas um saber capaz de mostrar elementos dele até então subestimados. O mesmo pode ser dito pelo interior do texto. O tempo saquarema inicialmente dialoga com uma tradição que se desdobra numa teoria da dependência – provavelmente articulando algo que Ilmar Mattos já havia publicado na década de 70 – e progressivamente toma outros rumos ao longo do livro. O primeiro capítulo, investe numa descrição de estruturas de longa duração que aparecem pelas vozes do passado. Se o livro se afirma como aula na sua introdução, as fontes são no primeiro capítulo como exemplos. No segundo e no último capítulo, porém, algo diferente se dá. As vozes do passado se tornam, elas mesmas, como que coautoras das possibilidades de falar do passado. Existe uma mudança de estilo que mereceria ser discutida, por hora, interessa a amplitude que os argumentos alcançam. “A recunhagem da moeda colonial” - o 1 o capítulo – traça um panorama que alcança potencialmente inclusive o presente do texto; e, neste sentido, enquanto exposição de um processo histórico poderia orientar a ação nele. Afinal, o Brasil ainda era uma economia periférica e a estrutura conceitual do capítulo poderia ser mobilizada para falar disso. “A teia da penélope” - o terceiro capítulo – investe diretamente nas consequências de ver o conceito de classe por um caminho específico: por vozes do passado que se percebem historicamente. Não por estruturas, mas por se verem em risco, por se verem como contingências que Luzias e Saquaremas negociam a formação de uma classe senhorial, negociação assimétrica entre perdedores e vencedores. A direção saquarema se dá pela consciência dos sujeitos, por estes se verem como históricos e contingentes, por se verem numa transação. No limite, fora da experiência, não é possível saber apenas pela presença de um Estado se há ou não classe. A própria compreensão do conceito de Estado como histórico – argumento central da abertura do livro – suspende qualquer possibilidade de relação causal entre classe, Estado e

10 sociedade. Isso implica concordar parcialmente com Hans Ulrich Gumbrecht quando afirma que seja pela dissolução do topos história mestra da vida, seja pela perda na confiança da compreensão de processos históricos como orientadores da ação no presente, as possibilidades de aprender com a história diminuem (GUMBRECHT:1997). Porém, elas se dariam por outro caminho, pela dúvida e constrangimento. Este efeito só é possível pelo investimento no passado como diferença. A historiografia investia em mostrar a especificidade do passado, como era distante do presente. Porém, ao fim dos livros, tanto O tempo saquarema quanto O diabo na terra da santa cruz se surpreendem e confessam o quanto de passado ainda existe em nós. Não existe uma identidade imediata, mas uma semelhança não prevista. Nesta produção de sentido crítico, a história muda os limites do que se imagina como passados possíveis. Estes dois livros são apenas amostras de um debate amplo. Existem ainda outros – também decorrentes de teses de doutoramento - que incidem diretamente sobre o conceito de ideologia, como a crítica que Angela de Castro Gomes desenvolverá a partir de A invenção do trabalhismo ao conceito de populismo, mas que já está nele, é seu centro. No que diz respeito ao hoje, diria que o dilema permanece. O interesse pela história intelectual cresce e, por vezes, o afastamento do conceito de ideologia faz com que deixemos de falar de o quanto a linguagem, como ideologia, contém violência (RICOUER: 2011). Falar escravo era, e ainda é, algo que não nos deixa perder isso de vista. A sofisticação interna do campo – ou como se prefira chamar – cresceu muito com o afastamento do conceito, mas talvez também tenha perdido algo. Ao fim desta apresentação, porém, prefiro contrastar os usos públicos do passado em debates sobre a democracia com o que a historiografia fez nestes anos – e aqui alguns debates do CEDEC (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) tem sido centrais para a pesquisa na busca destes outros usos do passado. Uma resposta da historiografia Retomando o começo da discussão, é importante destacar que a expectativa de redemocratização não se deu diretamente contra um passado recente, contra os regimes militares, mas contra o passado. A experiência do passado recente se confundia com outros passados produzindo a imagem de uma história homogênea. É o que sempre foi.

11 O autoritarismo era uma constante. A ausência de sociedade civil era outra. A expectativa era de que tudo ainda estava por ser feito. Nestes usos públicos do passado Gumbrecht está certo, não há o que aprender com a história uma vez que o projeto era superá-la. A própria redemocratização parece ter dependido desta homogenização da história. Pelo menos nos debates públicos até então lidos. Historiadores se portaram de outra forma. Parece que tinham mais sensibilidade sobre o quanto é difícil de se desfazer do passado. Sendo esquemático, de um lado, o passado era homogeneizado. De outro, a historiografia ia no sentido contrário, como se o passado fosse diferente e absolutamente específico. Apenas em sua especificidade ainda falava de nós. Por isso o constrangimento. O mais importante, porém, era a relação com o auditório. As respostas dos historiadores ao presente não eram respostas diretas ou programáticas. Pelo contrário, eram indiretas e oblíquas, cabendo ao leitor/auditório enfrentar a herança. Mais do que respostas, a historiografia impunha perguntas. O passado arcaico, pelo contrário, já impunha por si um programa, uma direção e, principalmente, uma realidade. Não existe constrangimento algum com a presença do passado no presente, ele é a própria justificativa do projeto. Justo por isso, encaminhando para o fim, gostaria de falar de uma outra consequência de ter o passado como arcaico, como um bloco só. Em vez de produzir uma diferença com autoritarismos, o passado arcaico reafirma a necessidade de controles rígidos para a vida política no Brasil (e não só nele). A pergunta pela democracia deixava de ser uma pergunta em aberto para ser determinada pela '‘realidade’' ou pela compreensão local. O realismo, na política, parece depender desta leitura do passado como unidade, como um uníssono que reafirma insistentemente o que éramos e ainda somos e dificilmente deixaríamos de ser. Isso sem qualquer espanto, mas com muita naturalidade. É o que sempre foi. Os limites do passado se tornavam limites do presente. Viver numa sociedade arcaica implicava disputar formas de dominação mesmo quando o objetivo era a redemocratização. Um sinal amplo disso foi o ocaso dos debates sobre a democracia direta até o fim dos anos 80. (Estes anos, aliás, talvez tenham tido dois fins: 1) a institucionalização da democracia; 2) o abismo aberto pelo fim da URSS). É incrível como até o fim da década existe um amplo e criativo debate sobre democracia direta/participativa que ao seu fim é esquecido. Carlos Nelson Coutinho e Lamounier concordariam neste ponto (algo surpreendente) ao afirmar que para além de uma

12 alienação econômica há uma alienação política que só termina pela possibilidade de individual e coletivamente ser possível agir no Estado sem depender estritamente da representatividade. Ao fim da década, ao que tudo indica, a criatividade do debate se esvazia pela necessidade de disputar o Estado. Democracia deixava de ser debate para ser um meio (apesar de todo o esforço, parece que não aprendemos muito com a história do PCB). Por último, deixo a historiografia de lado para falar de um tema ainda difícil de enfrentar: uma possível proporção entre os limites da democracia e suas relações com usos públicos do passado. Ao que tudo indica, o que legitima e limita o horizonte da democracia são certos usos públicos do passado. Eles definem o que é ou não prescrito, como se o passado fosse o eixo central para definir o que se pode ter como possível. Porém, quem cobra essa limitação é o futuro. É literalmente o que Niklas Luhmann define como um tempo de ansiedade ou de necessidade de tomada de decisões. A necessidade de controlar o futuro impõe uma limitação do passado. A contingência é anulada no passado para que o futuro tenha contornos definidos. Não existe espaço para constrangimento, assombro ou dúvida. É a história quem diz que tipo de democracia é ou não possível. Se no passado todas as tentativas de sociedade civil são frágeis, se nada é completo, nem mesmo as elites ou classes dominantes tiveram vida própria, se está tudo fora do lugar como apostar na democracia? Como apostar no fim de estruturas autoritárias neste cenário? Como supor que o Estado não deve ser autônomo? Como a democracia poderia ser um valor e não um meio? A construção de um passado homogêneo ao longo dos anos 80 parece ter colocado fim na criatividade do debate que marcou a década. Por este caminho, a redemocratização mantém e reafirma o que, enquanto projeto, supõe superar: a desconfiança na participação direta na vida do governo e, por ele, no Estado.

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