Hoje, grafo no tempo: A produção cancional de Paulo Leminski

July 24, 2017 | Autor: Ricardo Santhiago | Categoria: Literature and Music
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“Hoje, grafo no tempo”: a produção cancional de Paulo Leminski Ricardo Santhiago

[*]

Universidade de São Paulo

Poeta - jornalista - publicitário - tradutor - ensaísta - romancista - contista - compositor. Na literatura, fez prosa - poesia - crítica tradução - letra de música. Tudo dessa maneira: hifenizado. Não apenas proclamou, como viveu, uma das tantas frases que lhe servem de epígrafe-epitáfio: “Para ser poeta, é preciso ser mais que poeta”. Por desejo de experimentação ou previsão de sustento, Paulo Leminski agregou à sua trajetória perfeita de misteres um destes “mais que” que, ainda à sombra da prosa experimental de Catatau ou da poesia altamente comunicativa de Caprichos & Relaxos, vem sendo serenamente iluminada por iniciativas esparsas que, talvez, se avolumem em um futuro breve, dado o esgotamento de produções inéditas no âmbito livresco: foi também cancionista. Teve, como única formação musical programada, os estudos de canto gregoriano no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, onde viveu dos 12 aos 14 anos. Só aos 26 aprendeu violão, começando a compor depois disso, já na década de 70, vitimado pelo impacto inescapável do Tropicalismo. Admirador inconteste desta geração, discípulo mais ou menos consciente de Torquato Neto, somou à sua invejável bagagem intelectual um saber específico sobre – justamente – a especificidade da canção. Ninguém duvida que a “poesia literária” e a “poesia de canção” de Leminski, embora comunicantes, sejam frutos peculiares de intenções diferentes. Por isso, aliás, tenta-se falar de uma “produção cancional”, e não “musical”. Nem mesmo pode-se descrever a canção como soma da linguagem da poesia com a da

[ 1 ] Tatit, 2007, p. 230

música, já que sua especificidade – como criação e produto – não propõe como referente um ou outro dos saberes. Luiz Tatit, por exemplo, já nos disse que “ser um bom músico ou um bom poeta não é requisito para ser bom cancionista. Há um ‘artesanato’ específico para se criarem boas relações entre melodia e letra” [1]. A consciência da especificidade da canção, entre poetas, não é prerrogativa deste curitibano nascido em 24 de agosto de 1944. José Miguel Wisnik, particularmente no ensaio A Gaia Ciência: Literatura e Música Popular no Brasil, já discorreu sobre a linhagem de poetas-cancionistas brasileiros que ganha visibilidade e potencialidade de prestígio a partir da adesão de Vinicius de Moraes, consagrado nos círculos literários, a uma movimentação emblematizada em sua parceria com o sofisticado Tom Jobim – que seria uma das marcas da Bossa Nova e afetaria estruturalmente a produção musical das décadas seguintes. Vinicius, aliás, já havia ensaiado aproximações com a canção na década de 1920, compondo com os irmãos Paulo e Haroldo Tapajoz, e mesmo em 1953, quando fez música para letra de Antonio Maria: Quando tu passas por mim. Para Wisnik, a partir desta migração “a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores e letristas leitores dos grandes poetas modernos” [2]. De fato, se antes de Vinicius nomes como o de Catulo da Paixão Cearense despontavam no entre-lugar da canção, viriam depois Herminio Bello de Carvalho, Cacaso, Antonio Cícero, Waly Salomão, Alice Ruiz, Ricardo Silvestrin – além do já citado Torquato Neto, entre tantos outros. Poetas do livro, como Adélia Prado, Cora Coralina, Hilda Hilst, José Paulo Paes e Manoel de Barros, teriam seus poemas musicados por outros compositores. Do outro lado, sem trincheiras, a letra de música se sofistica e alcança um grau de equivalência ou superação estética em relação à poesia. Os exemplos podem começar em Noel Rosa e Orestes Barbosa e chegar a Itamar Assumpção e Chico César, tendo como chave a geração iluminada de Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil. Um dos diferenciais de Paulo Leminski, nesse contexto, é que, além de ter se devotado à letra da canção popular, também se esforçou na busca por uma expressão integralmente autoral. Estudou violão o quanto achou suficiente – na medida das necessidades de composição de canções simples, com melodias quase elementares. Foi durante uma viagem ao Rio de Janeiro, em 1969, que iniciou o aprendizado. Embora já tocasse – graças à influência exercida pelo irmão Pedro, que era músico e se apresentava em bares de Curitiba –, teve suas primeiras aulas com o pernambucano Paulo Diniz (que ao longo de sua carreira, aliás, musicaria poemas de inúmeros autores, de Gregório de Matos e Carlos Drummond de Andrade). Depois, utilizaria o método de Paulinho Nogueira para acompanhar suas canções prediletas ou executar sozinho experiências musicais. Ainda que a dedicação do compositor de Verdura não ultrapassasse o domínio básico do instrumento, foi o que permitiu o arremate de músicas de própria lavra. Isso, aliás, encaminha a um primeiro fracionamento da obra cancional em questão: existem as canções para que fez letra e música; obras compostas em conjunto; poemas musicados em vida; e, por fim, as parcerias póstumas. O volume deste conjunto de canções – cuja lista perfaz um total de, pelo menos, 88 obras conhecidas – clama por um acercamento comprometido que prescinda de uma análise valorativa prévia. A robustez desta produção não dá a ver um cancionista diletante, que tem no exercício musical afazer secundário – menos ainda um hobby, uma produção residual. Também não deve ser coincidência o fato de que muitos músicos, ainda hoje, se dediquem a fazer cantar os versos de Paulo Leminski. Certamente há razões internas e externas à obra que o justifiquem. Este trabalho, visando se aproximar destas questões, trata primeiramente da centralidade da canção dentro do projeto artístico de Paulo Leminski; em seguida, parte para uma leitura exploratória de sua obra musical, sem pretensões verticalizantes. O foco será sobre seus aspectos mais conspícuos, dados os limites deste artigo e a escassa bibliografia sobre o tema, que se restringe a comentários marginais sobre a faceta musical do autor, quase sempre mencionada como algo insólito. Até onde sabemos, existem apenas três textos que lhe tocam, sendo mais inspiradores do que efetivamente analíticos.

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[ 2 ] Wisnik, 2004a, p. 216

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Marcelo Sandmann, em 1999, escreveu e publicou o ensaio Nalgum lugar entre o experimentalismo e a canção popular, em que identifica as menções à música popular nas cartas de Leminski a Régis Bonvicino. Em 2004, na coletânea A linha que nunca termina, Ricardo Aleixo publica artigo breve onde descreve o conjunto de canções do autor. No mesmo livro, o biógrafo Toninho Vaz, motivado pela preocupação com a preservação das letras de música, publica cinco delas, inéditas, e testemunha sobre o processo de composição do poeta: “Muitas letras de música nasceram assim, em atos solitários ou noitadas com os amigos – parceiros os mais díspares em se tratando de estilo. Do rock ao bolero, passando pelo samba-canção ou toadas caipiras, ele aceitava as diversas influências étnicas e culturais de Curitiba como estímulo, nunca como barreira. Suas músicas eram exercícios de linguagem, brincadeiras levadas a sério” [3] Como demonstraremos, as canções de Leminski eram mais que “brincadeiras levadas a sério”. São parte de um grupo de criações que revela um artista inquieto e com plena consciência das potencialidades de cada forma de expressão, fato que nos convida a pensar: que tipo de conteúdo Leminski recolhe para a canção-popular? Como ele situa, dentro de sua própria trajetória artística, a experiência de cancionista (já que não apenas faz música, mas fala dela)? Qual o lugar da canção dentro de seu projeto artístico?

Entre discos e livros

[ 3 ] VAZ, 2004, p.298

Caetano Veloso, Paulo Leminski e Moraes Moreira

Se o papel da Tropicália foi decisivo para a formação de Paulo Leminski – e de modo geral para toda uma geração que passou a transitar entre a canção e a poesia – é verdade também que ele devolveu, de certa forma, sua deglutição e contribuição aos tropicalistas. Lançado em 1975, o livro Catatau repercutiu nos círculos intelectuais brasileiros e chamou a atenção de pensadores como Jorge Mautner e Gláuber Rocha, além de músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Moraes Moreira, que passaram a visitar Paulo e Alice em Curitiba. Isso motivou uma guinada na produção cancional de Leminski, que até então compunha irregularmente, sozinho ou com amigos, para grupos locais. O primeiro registro dessa obra data de 1981, quando o grupo Blindagem gravou um LP com oito canções dele em parceria com Ivo Rodriguez. Bem antes disso, porém, Leminski havia concluído sua primeira canção, Flor de Cheiro, de que trataremos posteriormente. No entretempo que vai da estréia à profissionalização, a maior parte das canções criadas não resultava de disciplina ou de esforços dirigidos, mas de insights surgidos a partir de conversas, leituras, situações. Toninho, relata, por exemplo, que letra e música de Mãos ao alto foram feitas em um ônibus, após retornar da cobertura de um crime no subúrbio de Curitiba. Nóis fumo, música caipira feita em parceria com Alice Ruiz, também nasceu despretensiosamente, em uma excursão de trem feita ao pico do Marumbi. A exceção, nesse sentido, é o projeto “Em prol de um português elétrico”, que criou em 1972 a fim de aperfeiçoar a adequação do idioma à sonoridade do rock’n roll – façanha que, para ele, somente Rita Lee havia conseguido até então. O ponto de virada, efetivamente, foi uma visita feita por Caetano Veloso e Gal Costa, em meados da década de 1970. A partir daí Leminski e Alice passariam a freqüentar o círculo musical do país. Mais tarde, seria estabelecida a parceria com Moraes Moreira. Em 1979, o poeta entregaria duas fitas com 13 canções suas a Caetano, em mais uma visita ao Sul do país – presente que resultaria na gravação de Verdura, dois anos depois. [4] Na Carta 55, publicada no livro Envie meu dicionário, Leminski relata que Caetano havia anunciado que começaria a cantar Verdura nos shows de Cinema Transcendental e a gravaria em seu disco seguinte. Sobre isso, comentou, revitalizando o desejo de pertencimento à geração tropicalista, com quem havia se encontrado em 1968: “E um sonho paranóico de 10 anos come true”. A carta é encerrada de maneira ainda mais eufórica: “minha passagem para a MPB está para se completar: operação mass-media”. [5]. De certa forma, foi exatamente isso que ocorreu, tendo em conta os parâmetros de difusão a que Leminski estava acostumado. A primeira forma de divulgação de sua obra em nível nacional foi musical – a gravação de Verdura, que realmente aconteceria em 1981. Até então, os livros publicados por Leminski tinham sido editados por empresas locais, sem distribuição ou expressão para além de Curitiba. A edição de Caprichos & Relaxos pela Editora Brasiliense, unindo os poemas publicados a textos inéditos, só aconteceria em 1983. Decerto não era apenas a proximidade com os ídolos de outrora que estimulavam Leminski a continuar compondo. Fabrício Marques, em seu livro Aço em Flor, aponta “como toda a criação (...) desse autor está imbricada: pode-se notar poemas que surgiram de ensaios, poemas que nasceram de cartas, prosa desentranhada de textos poéticos, e vice-versa” [6]. A canção, nesse sentido, também interagiria com outros segmentos da obra, com quem compartilharia “vasos comunicantes”. Um dos caminhos naturais para o descerramento desses vasos será a atenção àqueles textos que tem a música como assunto. Antes, porém, pensemos na potencialidade da música como forma narrativa dentro da obra de Leminski em sua dupla articulação: motivada por uma vocação totalizante, interna à obra, no sentido da experimentação de formatos; e como meio para a ampliação de leitores, o que não se situaria inicialmente no plano estrutural das canções. No projeto artístico de Paulo Leminski, a palavra é motor e epicentro, desde que transmutada, por vezes impura, desacomodada ao espaço da página e lançada multidirecionamente. Deve chegar às artes plásticas, à música, às rádios, às televisões, conformando um “Leminski Multimídia” (nome do CD-Rom que vingou, post mortem, a gana do poeta). Não apenas na chegada a obra de Leminski é multifaceta – materializando-se em haicais ou em um longo romance –, como também de saída, o que autoriza excursões de seu legado em

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[ 4 ] cf. VAZ, 2001, p.122

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multifaceta – materializando-se em haicais ou em um longo romance –, como também de saída, o que autoriza excursões de seu legado em palcos, discos, telas. O poeta disse, algumas vezes, ter desejado utilizar a canção como forma de restituir à poesia escrita seu veículo originário: a voz. De fato, a preocupação com a vocalização – ou pelo menos com a sonoridade dos versos – fica patente em algumas de suas declarações. Como nos diz Marques [7], por diversas vezes Leminski afirmou que após realizar na poesia o trabalho com o espaço da página, materializado em Caprichos & Relaxos, passou, nos livros seguintes, a se interessar pela cadência, pelo tempo, pela música da poesia.

[ 5 ] LEMINSKI, 1999, p. 155-6

Rebuzzi [8], comentando a eliminação dos verbos em certos poemas, sugere que a relação das palavras em presença com o vazio insinuam aquilo que não se diz; é o espaço do ritmo, da cadência, da música. A canção, portanto, aparece como espaço de experimentação, de ousadia, de transgressão. Para Ricardo Aleixo, “Leminski busca na música o que a poesia, como primado da letra impressa, talvez já não possa dar a criadores de sua estirpe, entregues à missão de desierarquizar repertórios” [9]. Já que o autor tinha consciência da especificidade da linguagem cancional – que não emulava nem a música, nem a literatura –, queria instalar-se nela como se poemas, haicais, biografias, contos, crônicas, ensaios, romances e cartas fossem pouco ou como se a canção pudesse oferecer novos substratos para o revigoramento do restante da produção. Leminski, explorador das fronteiras da linguagem, não poderia deixar de visitar o ponto de encontro entre a palavra e a música, oportunidade

[ 6 ] 1999, p.20

“de se exercitar poeticamente numa forma de construção específica como é a letra de canção em que, além da presença de um parceiro, há a necessidade de justapor o código verbal ao musical, sem deixar que ocorram sobreposições. Leminski tinha a clara noção de que quando compunha uma letra estava criando uma partitura para o ouvido, enquanto que ao escrever um poema estava trabalhando com uma mancha gráfica e, portanto, com uma partitura para os olhos” [10] Colada à propositura estética que rejeita e ortodoxia e a esterilidade purista está a militância em favor de um aumento no número de consumidores de poesia, do alcance de uma faixa de consumo mais expressiva, de permeabilidade em um mercado acostumado à invenção no plano de poesia da canção. De certo modo, o alto grau de elaboração literária das letras da canção brasileira – radicalizado nos cancionistas prediletos de Leminski – o reanimava (e a outros artistas de sua geração) no sentido de encontrar na canção uma saída possível para sobrevida da poesia – e que a esta agregaria, ainda, componentes de novidade, permitindo uma experimentação no plano da linguagem forçada pela formalização do produto “canção popular-comercial”. Para ele, que dizia que “na nossa geração o centro da poesia se deslocou do livro pra música popular” [11], os três grandes poetas de seu tempo – Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil – estavam lançando discos, e não publicando livros. Sandmann (1999), comentando uma das cartas de Leminski, sugere que essa opção se dê por uma percepção de esgotamento do potencial do livro: “O trabalho com a publicidade (e a afirmação talvez se estenda também à própria canção popular) implica na elaboração de ‘mensagens que funcionam’, ou seja, mensagens que percorrem plenamente o circuito comunicativo. O que se lê, ao fundo do que fica explícito, é uma crítica às limitações comunicacionais da

[ 7 ] p. 97

literatura, sobretudo do hermetismo experimental, que vem sendo posto em causa durante toda a carta em questão. Lê-se também um confronto do livro com outros meios e tecnologias (jornal, televisão, rádio, disco, outdoor, etc. - “maximalização de linguagens industriais”).” Revertendo o paradigma da busca por prestígio, indo do livro cultuado à linguagem pop da canção de rádio, Leminski dessacraliza a poesia, imputando-lhe imbricações com outros universos artísticos e devolvendo-a como produto inserido num contexto que ultrapassa o

[ 8 ] p. 71

limite da palavra escrita – mas que, ao mesmo tempo, pode oferecer a ela maior visibilidade. Ser conhecido fora do âmbito extremamente restrito da produção intelectual poderia lançar luzes sobre o certame mais obscuro de sua obra. Desejando transitar entre o espaço de sagração do livro e a faixa de amplo consumo das canções, subverte o lastro de Pestana, personagem de Machado de Assis que fazia sucesso com polcas mas desejava ser conhecido como compositor erudito [12]. Como síntese desses dois pólos, a canção torna-se plano privilegiado de realização do projeto artístico de Paulo Leminski, ainda que

[ 9 ] Aleixo, 2004, p.290

convide à reflexão sobre a contradição entre a poesia como anti-produto (tendo seu caráter anti-utilitário radicalizado) e a adoção de uma forma mercadológica por excelência (a canção popular-comercial, que é valor de mercado sobretudo quando interpretada e gravada por um dos chamados “medalhões da MPB”). Emerge como alternativa à publicação em livro, favorece a experimentação em um espaço desconhecido e, assim, radicaliza tópicos presentes na poética do autor, como um todo, tais como a diluição de fronteiras entre tradição e vanguarda, oralidade e cultura letrada, belas artes e indústria cultural, trabalho de pensamento e linguagem pop.

[10] GÓES & MARTINS, p. 14

Falando em canção [11] LEMINSKI apud SANDMANN, 1999

Para além do que desponta em ensaios e entrevistas, a própria produção escrita de Paulo Leminski descortina um poeta fascinado com as possibilidades abertas pela canção popular – de ser, ao mesmo tempo, singela e comunicativa, exagerando os princípios de parte de sua produção poética, particularmente aquela registrada em Caprichos & Relaxos e transfigurada em haicais posteriores. Nesse livro de 1983 registra-se número expressivo de poemas que comentam, ladeando na forma, os recursos dos sons, dos silêncios, das vozes. Outros

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tratam a música, a canção e o ofício de compor de maneira divinizada. Leminski, que naquele momento acreditava fortemente em suas potencialidades como compositor, indica o caminho a percorrer: à pureza com que sonha o compositor popular um dia poder compor uma canção de ninar (CER) O poema não tem charadas. Trata da difícil tarefa de atingir a simplicidade na arte. Leminski aproxima “pureza” e “canção de ninar”, melodia de acalento despojada e singela, que por seu fim – acalmar e fazer dormir os bebês e crianças – deve ser simples e direta, se não rudimentar, encontrando a beleza em pequenas nuances. A receita evoca outra experiência, já vivida por Leminski, na busca por simplicidade. É na economia, na objetividade, no desprezo da retórica, no wabi (miséria), no kirei (limpidez), que o haicai se assenta. O texto a seguir, conciso e ponderado, parece seguir os mesmos princípios, mimetizando e condensando em sua forma exatamente aquilo que quer dizer sobre a canção: tudo que li me irrita quando ouço rita lee (CER) Primando pela simplicidade, o poema fala da canção como espaço de exagero das noções de finitude e concentração – obra de arte que deve reduzir todos os conteúdos desejados a uma forma mínima e comunicativa, com uma chance única de eficácia. Além de convencer o ouvinte daquilo que está sendo dito, o cancionista deve controlar suas formas expressivas e comunicar de imediato, explodindo seu discurso. Se o leitor costuma estar especialmente predisposto para o hábito e para a ação da leitura, isso não acontece com a canção, que lida com o instantâneo. Minimizando sua forma, deve maximizar conteúdos que invadam, preencham, que se abram como feixe de possibilidades para o ouvinte no momento da escuta. É um tipo de sagacidade que não tem lugar no âmbito livresco tradicional. Ademais, opondo escrita e oralidade, o texto evidencia o quanto a cultura acadêmica, erudita, repetitiva em formas e conteúdos, passa a perder espaço para o pop, representado por Rita Lee, muito mais certeiro. Tais constatações abrem espaço para a “inveja” do cancionista, focalizada em textos como o seguinte: dia dai-me a sabedoria de caetano nunca ler jornais a loucura de gláuber ter sempre uma cabeça cortada a mais a fúria de décio nunca fazer versinhos normais (CER) Nesse caso, é importante lembrar de uma versão preliminar do poema registrada no livro Envie meu dicionário [13]. Como carta, remetida a Régis Bonvicino e datada de 79, lê-se: dia dai-me a sabedoria de caetano nunca ler jornais a loucura de walter franco ter sempre uma cabeça a mais a fúria de décio nunca fazer versinhos normais nunca me sentir insultado com os golpes do acaso e do destino dai-me ou consigo sozinho (CER) Talvez a decepção com um dos discos de Walter Franco tenha levado o autor a suprimir seu nome do poema. De todo modo, o canteiro de obras que é a carta de Paulo Leminski descortina uma aproximação ainda maior da música, não apenas pela menção ao compositor, como pela citação de Cabeça, obra apresentada no VII Festival Internacional da Canção, de 1972. Da primeira à segunda versão conhecidas, ocorre ainda o acréscimo da palavra “cortada”, cunhando expressão e mote que aproveitaria em poema do ano seguinte, o primeiro inspirado em Alice Ruiz, publicado em Sangra Cio. Em 2007, Neuza Pinheiro gravaria em seu disco a versão musicada do texto:

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[12] ver Wisnik, 2004b

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minha cabeça cortada joguei na tua janela noite de lua janela aberta bate na parede perdendo dentes cai na cama pesada de pensamentos talvez te assustes talvez a contemples contra a lua buscando a cor de meus olhos talvez a uses como despertador sobre o criado mudo não quero assustar-te peço apenas um tratamento condigno para essa cabeça súbita de minha parte (Sangra Cio) A reincidência do tema na obra de Leminski recolhida em Caprichos & Relaxos, somada aos dados biográficos já apresentados, autoriza a especulação sobre um desejo e projeto de avizinhamento com a canção popular já em curso desde 1970 – que se robusteceu ao longo da década e chegaria ao início dos anos 80 revigorada pela expectativa da gravação de Caetano Veloso. Nesse meio tempo, as feições formais da obra cancional de Leminski se alterariam: ele passaria a compor com parceiros célebres, como Moraes Moreira, concentrando-se prioritariamente nas letras. O início de suas investidas, por sua vez, havia sido marcado por tentativas de criação de letra e música.

Palavras para serem cantadas

Por extensa, a obra cancional de Paulo Leminski impossibilita investigações no sentido do delineamento de uma “poética” – pelo menos para os limites deste trabalho. São obras variadas, sem padrões estruturais fixos, que metamorfoseiam significados dentro do contexto artístico dos eventuais parceiros, que perfazem gêneros musicais que vão da toada ao rock, que possuem letras de diferentes inspirações. Por ora nos concentraremos nas impressões gerais sobre cinco canções que podem fornecer algumas linhas possíveis para análises futuras. A primeira delas é Flor de cheiro, de 1970: você tem o cheiro de uma flor que eu não me lembro mais lilás jasmim incenso amor perfeito e sassafrás flores de muito tempo atrás vi você à sombra de uma flor com outra flor na mão flor em compensação você tem o cheiro de uma flor que eu não me lembro mais Já nesta sua primeira composição, Leminski demonstra a consciência do fazer específico da canção popular e imprime a ela suas marcas particulares. Adota como gênero o samba-canção abolerado, em declínio desde a eclosão da bossa nova. Soava, de certa forma, anacrônico em um momento musical que tinha o tropicalismo como palavra de ordem; por outro lado, era amplamente aceito como gênero convencional e estabelecido de canção. O autor lança mão, ainda, de uma das imagens mais tradicionais da poesia lírica – a flor – radicalizando a redundância e a função emotiva da poesia. Abusa das assonâncias (e; o), aliterações (s), rimas (mais / sassafrás / atrás; mão / compensação) e repetições (flor) e, mesmo em uma letra curta, propõe um refrão comunicativo: “você tem o cheiro de uma flor / que eu não me lembro mais”. A insistência com que o assunto é reiterado, quase como um mantra, mimetiza a própria dinâmica da presença do assunto na memória do eu-lírico. Ainda que seja passionalizada, apoiada que está sobre a repetição das palavras, a canção presentifica a imagem da flor e envolve o ouvinte na curiosidade sobre o aroma. De outro lado, mesmo que retome um símbolo muito visitado, Leminski acrescenta que o cheiro do interlocutor a que a metáfora alude pode ser de qualquer flor – o “eu-lírico” (ou o enunciador da canção) nem mesmo se lembra qual, ecoando uma ironia típica da geração dos anos 70, presente, por exemplo, no Problemas de nomenclatura de Cacaso: Rememoro com resignado e fervoroso amor a primeira namorada. Mas o nome dela dançou.

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[13] Carta 35, p. 94

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Mas o nome dela dançou. Na mesma época, entre 1970 e 1971, Leminski compõe sozinho Caixa Furada, samba tipicamente figurativizado, que concilia grande parte dos elementos apontados por Tatit (2002) como caracterizadores daquele tipo de canção que aproxima a voz que canta da voz que fala: a melodia se conforma às acentuações do texto; o texto reproduz um colóquio que tanto pode ser dirigido do cantor ao ouvinte como do personagem interlocutor ao interlocutário; a prosódia é respeitada. a caixa furada que me deste me trouxe um problema muito triste os homens quiseram saber o porquê dos furos que você fez eu disse eu não tenho mais nada com isso foi um amigo que tomou chá de sumiço eu tinha um cigarro apagado maldita caixa furada soubesse o quanto me custa uma lembrança guardada se essa caixa pudesse fazer o povo sorrir eu juro você torceria pro Jair eu só posso mentir Não se pode duvidar que a entoação seja, de fato, fulcro da obra em questão. Pode-se notar, aliás, que o texto guarda poucas semelhanças com a obra escrita de Leminski, em termos de métrica, rima e ritmo. Inúmeros índices na canção mostram como ela se filia à tradição de um samba urbano, tanto pela forma como pela temática: a caixa furada remete à “táubua furada” de Adoniran Barbosa; a menção a um terceiro personagem (Jair) e a existência de um entorno social (“os homens”, a explicação aos outros); o estribilho ainda mais próximo da fala (“eu só posso mentir”). Se Leminski experimentou sozinho um gênero passionalizado e outro figurativizado, foi com Alice Ruiz que criou letra e música da moda de viola Nóis fumo, em 1975. Toda paralelística, com estrofes metrificadas, com grafia que emula a fala popular (“cantá”, “treis”, “d’um”), gravada com violões e acordeom, a canção canta/conta o percurso de cantadores (“nóis”) que percorrem diversas festas: batizado, aniversário, casamento, velório. A narração de cada tentativa mal-sucedida é interpolada por um solo instrumental, abrindo caminho para a contação de um novo evento, estabelecendo um ciclo aparentemente interminável, mas lógico (vai do batizado ao velório). nóis fumo cantá numa festa na festa dum batizado o anjo não tinha nascido só tinha bebida eu não tinha jantado então fumo cantá noutra festa na festa d’aniversário o vento soprava as velinha e o dono da festa já tava apagado então fumo cantá noutra festa na festa d’um casamento os noivo já tinha treis filho e o mais crescidinho já era sargento então fumo acabá num velório dum cara chamado gregório o morto não tava bem duro e o vivo do padre cantava a comadre Ao longo da audição, o ouvinte é envolto no contexto da cena, já que, por repetida, sua imagem se presentifica. A gravação é finalizada com os últimos versos ralentados e sucedidos por uma típica saudação caipira. Ao contrário de Nóis fumo, o exemplo seguinte, de 1978, pende à categoria de “poema musicado”. Embora, provavelmente, feito em parceria com Mário Gallera, Fazia Poesia foi publicada três anos depois como texto em Não fosse isso e era menos. Não fosse tanto e era quase (com supressão do dístico “e cada tábua que caía / doía no coração” e acréscimo de “e a poesia que fazia / era outra filosofia”). O jogo de palavras, que desdobra os sons e sentidos dos versos, preenche o poema e é ainda mais relevado pela musicalização: fazia poesia e a maioria saía tal a poesia que fazia fazia poesia e a poesia que fazia

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e a poesia que fazia não é essa que nos faz alma vazia fazia poesia e a poesia que fazia tinha tamanho família fazia poesia e cada tábua que caía doía no coração fazia poesia e fez alto em nossa folia fazia tanta poesia que ainda vai ter poesia um dia

Leminski, que fez de muitos poemas suas supostas lápides e profissões de fé, contribui com este texto para a criação de um mito sobre o poeta. Metalingüística, em vez de desvelar o ofício, revela a melancolia pela saudade de um poeta naturalmente inspirado e profícuo, que além de fazer poesia quase compulsivamente, ainda viveu com intensidade (“e cada tábua que caía / doía no coração”), fazendo equivaler arte e vida. Sem preâmbulos, o poeta se introduz. Faz irromper sua poesia como se partisse de algo dado, já estabelecido, como para ressaltar a marca das inter-relações de sua obra ou como para mostrá-la como parte de algo maior, que a envolve e que ela compõe. Ainda que represente um avanço, em termos de conteúdo, em relação às outras canções, Fazia Poesia não explora as potencialidades comunicacionais da canção. É um dado que Leminski, talvez, percebesse mais tarde, e que se tornaria marca de produções como Verdura. Entre muitas de suas funções, a canção pode se apresentar como oportunidade de garantir visibilidade a temas urgentes, condensando e comunicando experiências particulares ou uma certa reserva de memória de seu tempo. Parece ser este o caso da canção gravada por Caetano Veloso: de repente me lembro do verde a cor verde a mais verde que existe a cor mais alegre a cor mais triste o verde que veste o verde que vestiste no dia em que te vi no dia em que me viste de repente, vendi meus filhos para uma família americana eles têm carro eles têm grana eles têm casa e a grama é bacana só assim eles podem voltar e tomar um sol em Copacabana A canção, aparentemente, comporta duas partes desconexas. A primeira estrofe trata da lembrança de um encontro; memória repentina explicitada logo no primeiro verso. Ele remete, aliás, a uma das feições reincidentes na poesia de Paulo Leminski: o acaso, a irrupção do assunto, a negação a preâmbulos. O “de repente” introduz o ouvinte, sem maiores explicações, a um universo essencialmente verde, que se identifica de cara com o Brasil tropical, descerrado e apresentado em todos os seus conflitos. A segunda parte, por sua vez, trata de uma ação no presente com conseqüências futuras; entre as duas, não aparecem elos e nem mesmo correspondências evidentes. A simbologia, de todo modo, é farta. O título, Verdura, já carrega em si o “ver”, a visão, principal sentido-estímulo da letra: os olhos que “vêem” o verde – predominante e já anunciado – da grama, mas que também enxergam o verde da grana (o jogo com as palavras, aliás, não propõe ingenuamente a passagem da natureza à cultura), denunciando o valor da imagem, da aparência, materializada no “carro”, na “grana” (cor do dólar), na “casa” com “grama bacana”, no “bronzeado”, no “sol em Copabacana” – bairro e ato de prestígio. Verde é a cor predominante da bandeira brasileira, mas também a cor do Brasil agrário, da mercadoria que cabe ao país subdesenvolvido exportar. E é a cor da esperança, talvez de alteração de uma situação inicial. “Dura”, por sua vez, lembra duração – permanência abandonada (o resultado de um encontro lembrado, no passado) em nome de outra permanência (a felicidade dos filhos vendidos, no futuro). Nega-se o presente; pelo menos o presente do personagem que fala. O que esconde a saída de cena do “eu” e a entrada do “eles” se não a negação do próprio sentimento? O verde, aí, aparece em seu duplo, como cor do viço e da esperança para o outro, e como cor da lembrança desejada – e do presente recalcado – para o “eu”. Pelo menos até o quinto verso da letra predomina a memória e mesmo a nostalgia: as lembranças que estão, sempre, no passado. Mas, em seguida, “o verde que veste” parece sugerir uma nova ordem, presentificando o discurso. A sugestão não é cumprida, pois os versos paralelos “o verde que veste / o verde que vestiste” denunciam a hesitação já insinuada anteriormente: “a cor mais alegre / a cor

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versos paralelos “o verde que veste / o verde que vestiste” denunciam a hesitação já insinuada anteriormente: “a cor mais alegre / a cor mais triste”. A querela só se resolve no final, quando o futuro dos filhos vendidos aparece sendo verde. Verde é também o fruto que não amadureceu; aquilo que não está pronto. Algo que pode ser o próprio país – mas que talvez represente, sintomaticamente, um movimento que começou a se acelerar a partir do final dos anos 70, época em que a canção foi composta: a emigração de brasileiros para os Estados Unidos. A canção, portanto – de forma festiva, quase celebrativa –, toca um assunto ainda frio, recalcado, e ao qual a poesia, por exemplo, não poderia dar a merecida visibilidade. O Brasil, que sempre se orgulhou de receber e acolher imigrantes de tantas origens, agora vê seus filhos indo embora. O que reaparece é outro país: deglutido, exótico, usado como colônia de férias. É a previsão mais desagradável que Paulo Leminski poderia fazer, utilizando como metáfora os filhos vendidos – como produto ao país de produtos encantadores – e a indecisão do “vestir”. O “verde que vestes”, que sugere a idéia de incorporação da brasilidade, é substituído pelo “verde que vestiste”, que corrige e atualiza o anterior, situando o nacionalismo e o amor à pátria no passado. O alegre é entristecido; o nacional dá lugar a um futuro no exterior. O “ame-o ou deixe-o” é recuperado em sua duplicidade: também deixam o país verde aqueles que querem o verde do dólar, convertidos que estão ao modelo americano instaurado pela ditadura. Os filhos vendidos são, agora, a segunda geração dos brasileiros que, como Iracema, voam para a América e depois voltam americanizados, para desfrutar o país que detém a maior parte da grande floresta do mundo.

Canção e destinação

Como já vimos, a gravação de Verdura marca uma guinada na produção musical de Leminski, que supera um estágio artesanal e atinge grau de profissionalismo. No livro La vie en close, o autor estampa em sua Sintonia para pressa e presságio a modificação mais evidente. Situa sua experiência de cancionista no tempo presente, não mais como expectativa futura. Evidencia a passagem da escrita no espaço para a escrita no tempo, mencionando inúmeros índices do universo da canção: o soar, o silêncio, o grito, a voz, a fala. Um caminho irreversível e desejado que, entretanto, não encontra lugar de realização. A luz não cabe na sala ou é a própria canção que não encontra o abrigo idealizado? Escrevia no espaço. Hoje, grafo no tempo, na pele, na palma, na pétala, luz do momento. Sôo na dúvida que separa o silêncio de quem grita do escândalo que cala, no tempo, distância, praça, que a pausa, asa, leva para ir do percalço ao espasmo. Eis a voz, eis o deus, eis a fala, eis que a luz se acendeu na casa e não cabe mais na sala. (LVEC)

Fato é que, embora tenha atingido relativa repercussão nos círculos artísticos, a produção cancional do autor não fez frente às suas expectativas – talvez porque a música não fosse solução para problemas biográficos; talvez porque a indústria fonográfica dos anos 80 oferecesse menos mobilidade que na década que a precedeu; talvez porque sua poesia de canção estivesse em nível inferior ao de sua produção escrita. Leminski deu passos importantes no sentido de contribuir para a consolidação do trânsito entre a oralidade e a escrita, mas de forma muito mais eficiente do que eficaz; isto é, desarticulou incompatibilidades, mas se não se compatibilizou com a linguagem e as feições específicas da canção, em todos os aspectos que a envolve. Deixou para uma geração seguinte, representada principalmente por Arnaldo Antunes, mas também por Chico César, o encargo de atuar com sucesso tanto no espaço do mercado quanto no plano da invenção, sem desprestigiar um ou outro. Trata-se aqui, principalmente, da recepção: a música não se realizou, como entorno, espaço de experimentação reconhecido por pares; nem iluminou o coração da obra de Leminski: a palavra. O resultado, além de seu provável desapontamento (e não há registros conhecidos disso em cartas ou entrevistas), é o registro de outra percepção sobre a música nos poemas posteriores ao início dos anos 80 – percepção que difere sensivelmente daquela registrada em Caprichos & Relaxos. Ainda que não se deva confundir autor e personagem, o poema a seguir comenta a falta de vocação para um saber específico no âmbito da música: Quem dera eu fosse um músico que só tocasse os clássicos, a platéia chorando e eu contando os compassos. Se eu soubesse agora, como eu soube antes, a dança alegórica entre as vogais e as consoantes! (LVEC) Em outro texto, apresenta-se como grego, herdeiro da sabedoria e da civilização, subitamente destronado pela intuição musical de um negro, como se a retomar a dicotomia entre cultura livresca e cultura popular já apresentado no poema que menciona Rita Lee. Neste, a associação com os ídolos que não tiveram formação musical e tornaram-se grandes compositores – falamos principalmente de Gilberto Gil

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associação com os ídolos que não tiveram formação musical e tornaram-se grandes compositores – falamos principalmente de Gilberto Gil e Itamar Assumpção, freqüentemente citados pelo autor – é inevitável: nu como um grego ouço um músico negro e me desagrego (LVEC) Fato é que Leminski não atingiu, em suas canções, o mesmo grau de refinamento presente na maior parte de suas produções. Em vez de alçar a música ao grau de invenção da poesia, fez o contrário. Por vezes, nivelou as letras em um patamar de invenção muito inferior ao da poesia ou da prosa experimental, talvez para se adequar aos padrões do que circulava regularmente em sua época; em outros casos, atuou com parceiros pouco inspirados que não encontraram a dicção eficaz para suas criações verbais; no mais, a aura mítica de marginal contribuiu para classificar como pitorescas suas intervenções como compositor/letrista. Além de algumas obras que levam somente sua assinatura, em que se nota grau maior de liberdade – é o caso de Luzes, por exemplo, gravada por Arnaldo Antunes e Suzana Salles –, é nos poemas musicados que a “obra cancional” de Leminski brilha. Talvez ele próprio tivesse consciência, a um tempo, de suas limitações e das possibilidades futuras a seus poemas musicados. Talvez o convite à musicalização de um dos textos de Distraídos Venceremos não seja apenas coincidência e convide a geração de seus leitores à ação. No final de [para que leda me leia], que tem como mote, precisamente, as estratégias do interlocutor de conseguir a atração do interlocutário, estampa-se: “Esse poema já foi musicado duas vezes. Uma por Moraes Moreira, outra por Itamar Assumpção. Que tal você?” (DV) O que se pode dizer, de fato, é que existia o entendimento de que as investiduras em uma trajetória de cancionista não tinham dado certo. Se havia evidências de resultados futuros para as musicalizações e parcerias post mortem, não se sabe. Leminski só conhecia mesmo seu presente. Em La Vie en Close – livro com textos amargos, lápides, epitáfios, onde a morte é assunto ainda mais recorrente – publica o haicai seguinte: acabo como começo canções de fracasso não fazem mais sucesso (LVEC) O tempo, porém, reverteu o paradigma. Como ponto de chegada de uma aproximação lenta com o mercado – que comportou as musicalizações e gravações feitas por figuras como Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro, em permanente trânsito entre o underground e o mainstream –, a poesia de Paulo Leminski chega à veiculação nacional alçada pelo reggae facilitado da gravação de Zélia Duncan. Radicalização do dolorido “se a obra é a soma das penas / pago mas quero meu troco em poemas”, de Alice Ruiz, a parceria com Itamar – que diz ter recebido Dor Elegante como missão – passa a emoldurar a trilha de um homem médio e fracassado da trama da novela das oito, vitimado pela paixão não-correspondida pela personagem de Camila Pitanga. Homem que em nada lembra a aura do “cachorro louco que deve ser morto a pau a pedra a fogo a pique” ou do “benedito joão dos santos silva beleléu, vulgo nego dito”, que musicou o texto: um homem com uma dor é muito mais elegante caminha assim de lado como se chegasse atrasado andasse mais adiante carrega o peso da dor como se portasse medalhas uma coroa um milhão de dólares ou coisa que os valha ópios édens analgésicos não me toquem nessa dor ela é tudo que me sobra sofrer vai ser a minha última obra Decisivamente, não há o que lamentar. É precisamente a irrelevância da forma e o esquecimento da autoria que vingam, por fim, o poeta que queria ouvir sua poesia tocando no rádio.

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Jornalista, pesquisador e produtor cultural. Graduado pela PUC-SP, pós-graduado em Jornalismo Científico pela Unicamp e mestrando em História

Social pela USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Música e Mídia (Musimid) e do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP). Editor de “Oralidades: Revista de História Oral”. Coordena e produz atividades culturais envolvendo literatura e música, entre as quais destaca-se a curadoria do projeto “Contornos Literários” e a direção do espetáculo “O Vício e a Virtude: Maria Alcina interpreta Gregório de Matos”.

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