Homem: Ser de Transcendência

July 25, 2017 | Autor: Márcio Cenati | Categoria: Filosofía, Transcendência
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Descrição do Produto

MÁRCIO JOSÉ CENATTI

Homem Ser de transcendência

São Paulo – 2013

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Copyright © Márcio José Cenatti Projeto gráfico: Editora Ixtlan Diagramação: Márcia Todeschini Revisão: Daniel Aço Capa: Editora Ixtlan

Cenatti, Márcio José Homem – Ser de Transcendência. Editora Ixtlan. - São Paulo - 2013 ISBN: 978-85-8197-176-6 1.Filosofia, causalidade e ser humano 2.Título CDD 120

Proibida a reprodução total ou parcial dos textos para qualquer fim, sem autorização prévia e por escrito do autor. Os infratores serão punidos na forma da lei.

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“Exilado em seu existente, o homem quer ultrapassar-se. Não se satisfaz com ser, numa quietude fechada em si mesma, o perpétuo retorno do existente. Não mais se reconheceria autenticamente como homem, se se contentasse com ser o homem que é hoje.” (Karl Jaspers)

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Dedico aos meus pais Sebastião e Luzia.

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Introdução

A

finalidade deste pequeno livro é apresentar algumas reflexões a respeito do homem ao tratar de uma dimensão específica de seu ser: a transcendência. Analisar o significado do homem enquanto ser que transcende a si mesmo, à História e ao outro, e entendê-lo nessa dimensão de transcendência, constitui o problema em que nos deteremos e a trilha pela qual caminharemos nessa reflexão filosófica. O tema da transcendência é muito abrangente dentro da Filosofia, por isso focaremos nossa reflexão a um conceito de transcendência próximo ao pensamento da corrente filosófica existencialista. Procuramos delimitar este pequeno livro em quatro capítulos. No primeiro, além de caracterizamos o homem enquanto ser constituído pela capacidade da transcendência, também explanamos a definição de qual conceito específico de transcendência trataremos. Entendemos a transcendência como sendo aquilo que projeta o homem para além de si mesmo e que o faz ultrapassar os limites da experiência possível. É nessa dimensão transcendente que ele procura a superação de si próprio, isto é, de seu mundo físico em direção a um objetivo. Dedicamos ao segundo capítulo o pensamento sobre a transcendência no próprio homem, sendo o homem o ser que vai além de si mesmo e que se projeta em direção a algo que está fora de si. Definimos o homem como ser que transcende a 5

si próprio em busca de completar-se, que transforma o limite alcançado em novo ponto de partida. No terceiro capítulo abordamos o homem como ser que transforma a História enquanto produz socialmente, sendo que nesse percurso produz-se a si mesmo. Esse processo no tempo faz dele um ser histórico que transcende a própria História. No quarto capítulo, intitulado “Transcendência como relação com o outro”, objetivamos desvelar o homem como ser que transcende a si mesmo para realizar-se à medida que convive com as outras pessoas. Para a reflexão e aprofundamento deste curioso tema filosófico, servimo-nos da leitura e análise de obras dos pensadores Adolfo Crippa, Battista Mondin, Emmanuel Mounier, Ernest Cassirer, Henrique de Lima Vaz, Jean-Paul Sartre, Karl Jaspers e Peter L. Berger. De forma nenhuma pretendemos esgotar o tema nesta pequena obra, haja vista a sua amplitude e as diversas significações compreendidas no decorrer da história da Filosofia e da Antropologia. Mas temos o objetivo de investigar, procurar e descobrir a natureza e o significado da transcendência. Procuramos identificar o que a constante tensão do homem para superar-se a si mesmo, e o seu estar continuamente fora de si e além de si, pode nos dizer em relação ao seu próprio ser.

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................ 5 1. Homem, ser que se define pela transcendência ............... 8 2. Homem, ser que transcende a si próprio ........................ 17 3. Homem, ser histórico que se transcende na própria História................................................................................... 29 4. Transcendência como relação com o outro..................... 37 Conclusão ............................................................................... 44 Bibliografia ............................................................................ 48

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1. Homem, ser que se define pela transcendência

P

or que afirmar que o homem é um ser que se define pela transcendência?

Embora a natureza aparente estar expressando alguma coisa com a forma que nos apresenta as suas constantes mudanças, quer seja pelo clima (chuvas, sol, vento, etc.), não conseguimos dialogar com ela uma vez que não há resposta de sua parte. Podemos interferir na natureza, porém não podemos estabelecer um diálogo com ela. Por sua vez, se considerarmos os animais que nos circundam (cachorros, gatos, cavalos, etc.) percebemos que eles agem de uma forma que parece ter sentido. Porém, são irracionais e não possuem a fala que poderia estabelecer diálogo conosco. Dessa forma, somente nos resta concluir que apenas entre os homens é possível o diálogo, aqui considerado como a troca entre o falar e responder e vice-versa. O homem foi definido como ser vivo dotado de palavra e pensamento (zoon logon echon); como ser vivo que agindo dá à sociedade a forma de cidade regida por leis (zoon politikon); como ser que produz utensílios (homo faber); que trabalha com esses utensílios (homo laborans), que assegura sua 8

subsistência por meio de planificação comunitária (homo oeconomicus). (JASPERS, 1973, p. 47)

Apesar dessas definições bem precisas acerca do homem, cabe a nós lançarmos um questionamento de importância relevante e indagar: O homem permanece imutável dentro de cada uma dessas definições? Com certeza não seria plausível afirmar categoricamente que o homem é um ser imutável, ainda mais se considerarmos que parte da sua essência (a de ser humano) engloba a transformação permanente. Nesse sentido se aplicam ao ser humano as ideias filosóficas de Heráclito, o qual preconizava que a única coisa que permanece é a mudança. O homem é também por excelência um ser que se relaciona com a exterioridade desde a sua concepção até o final da vida. Essa constatação nos permite afirmar que ele tem um espaço muito característico no mundo em relação aos outros animais, haja vista que tal característica de exteriorização manifesta-se na sua relação com o seu próprio corpo, com os objetos, com a História e, de forma especial, na sua relação com seus semelhantes. Vejamos que fato curioso há entre o existir humano no mundo e o existir dos outros animais no mundo: os animais irracionais, desde o nascimento, estão praticamente prontos do ponto de vista da completude funcional de seu organismo. É interessante que, ao contrário dos animais irracionais, o ser humano aparenta estar como que inacabado após o nascimento. 9

Podemos verificar que, somente nos primeiros anos após o nascimento, o homem leva a cabo seu processo de desenvolvimento. Assim, enquanto os animais irracionais nascem praticamente prontos, o homem leva mais do que uma década para ter uma razoável autonomia. Essa característica do organismo humano está relacionada com a falta de especialidade da estrutura de seus instintos. Os animais irracionais nascem com instintos muito especializados e dirigidos especificamente ao desempenho de tarefas básicas de sobrevivência como a de conseguir comida, água, defender o território e reproduzir-se. Desta forma, eles vivem em um mundo que é determinado pelos seus próprios instintos. Esse mundo tem como principal característica ser fechado em si mesmo, programado genética e biologicamente por sua própria constituição. Como consequência disso, cada animal vive num ambiente muito próprio de sua espécie. Assim, poderíamos concluir sobre a existência de um “mundo de cães”, um “mundo de aves”, um “mundo de peixes”, etc. Ao contrário dos animais não humanos, no que se refere aos instintos a estrutura do homem não é de forma suficientemente especializada e não é direcionada a um ambiente que lhe é específico. Portanto, podemos concluir que não existe um “mundo do homem” no mesmo sentido em que exemplificamos anteriormente. O mundo humano é programado de forma imperfeita por sua própria constituição, o que nos permite afirmar que o mundo do homem não é fechado como o mundo dos animais irracionais. É um mundo que vai tomando forma pela atividade 10

do homem no decorrer de sua existência. De forma contrária ao aos animais não humanos, esse “mundo aberto” do homem não é simplesmente dado a ele por conta de seu existir ou de seu nascer no mundo. Não é pré-programado biológica e geneticamente para ele. O homem tem em si a necessidade de estruturar um mundo para si. A condição do organismo humano no mundo se caracteriza por uma instabilidade que lhe é própria. O homem não tem uma relação preestabelecida com o mundo como os animais irracionais. Isso pode ser considerado como diferencial e algo positivo, porque é desta instabilidade que vem o estímulo a estabelecer continuamente uma relação com o mundo. De uma forma interessante, podemos dizer que o homem demonstra estar fora de equilíbrio com ele mesmo. Nessas condições a existência humana é um contínuo colocarse em equilíbrio: do homem com seu corpo, com os objetos, com a sua existência na História, com o seu semelhante, com o mundo. É nesse processo que ele procura construir o seu “mundo” e busca o acabamento ao seu próprio ser. O homem não só produz um “mundo” como também produz a si mesmo, ou melhor, produz a si mesmo no mundo. É nesse caminhar que o homem se ultrapassa, se transcende. Por isso, por esse desenvolver do ser humano no mundo, podemos fazer as primeiras constatações de que o homem é um ser que se define pela transcendência. Mas o que vem a ser a transcendência? Podemos encontrar várias definições para responder a essa indagação. 11

Para iniciarmos uma resposta, poderíamos analisar primeiro a etimologia da palavra transcendência. Sua origem vem do latim, transcendere, que significa: “subir sobre, cruzar por cima” (trans = “através”, + scandere = “subir, escalar”. Embora nos dê uma luz, apenas a definição etimológica é muito pobre no contexto reflexivo. Ainda mais, aliás, se considerarmos os variados significados que a palavra adquiriu no decorrer do tempo. O primeiro significado de transcendência, como parte de um exercício de reflexão, vem da Teologia. Neste caso a transcendência quer significar que Deus é transcendente, pois está completamente além dos limites do mundo físico e do mundo imaterial. A fenomenologia entende que a transcendência é aquilo que transpassa a nossa própria consciência, mas que é apenas um fenômeno inerente a ela. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, considera que o homem se transcende quando reprime o seu biológico, isto é, quando sufoca o que é próprio de seu instinto animal através do controle da sua vontade, consciente ou não. Freud entende que, quando o homem vai além de seu corpo, transcende o que nele é o puramente biológico. Outro conceito de transcendência vem do sociólogo austro-americano Peter Ludwig Berger, o qual considera que a transcendência do homem ocorre quando há a junção do universo cultural de sistemas e significações do homem com o seu instinto humano. O homem e a sociedade resultariam numa 12

cultura e, essa por sua vez, seria a forma de o homem transcender-se naquilo que é puramente biológico. Porém, a visão antropológica que Berger tem de cultura é estática. Ele identifica cultura, sociedade e humanidade como realidades dotadas da capacidade de fornecer estruturas de estabilidade ao mundo, que inevitavelmente é precário. Como observamos, o tema transcendência é muito abrangente dentro das mais variadas disciplinas e dentro da Filosofia. Poderíamos dedicar muitas páginas somente para descrever, dentro da história do pensamento, os mais variados conceitos e entendimentos sobre o tema, porém isso tornaria a leitura enfadonha. Desta maneira, optamos por apresentar os conceitos que estão mais ligados à proposta de reflexão deste livro. Outrossim, vamos definir um conceito que será o ponto de referência central durante o desenrolar de nossa reflexão filosófica. A partir de agora vamos delimitar a transcendência conceituando-a como o que projeta o homem para além de si mesmo1, que ultrapassa os limites da experiência possível. Consideremos que ela é uma dimensão do homem pela qual ele procura a superação de si próprio, de seu mundo físico em direção a um objetivo. A transcendência é o movimento de busca pelo sentido da vida humana, sendo marcada por uma realidade que se apresenta constantemente incompleta. De igual modo, também está marcada por uma constante procura 1

No quarto capítulo, este tema será melhor desenvolvido quando tratarmos da transcendência como relação ao outro.

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por plenitude que é experimentada pelo homem quando se depara com a angústia de sua existência. É pela relação com a transcendência que o homem pretende superar sua condição de ser inacabado, ultrapassando sua limitação física e sua própria racionalidade rumo à realização que está além dessas duas dimensões. Ainda podemos afirmar que a dimensão de transcendência é específica e peculiar apenas ao ser humano porque, dentre todos os animais, somente a raça humana pode ser mais do que lhe foi concedido ser quando de seu nascimento e do que é no presente. No processo de construção de seu mundo, o homem, pela sua atividade, especializa seus impulsos e fortifica-se de estabilidade uma vez que, do ponto de vista de sua estrutura animal, está privado de um mundo pré-programado. É o próprio homem que constrói o seu “mundo humano”, o qual nada mais é do que aquilo que chamamos de cultura. O objetivo desse mundo é fornecer ao homem o conforto das estruturas que lhe faltam do ponto de vista de sua constituição física. O curioso é que aquilo que o homem constrói, para proteger sua fragilidade biológica e para estender e amplificar suas capacidades físicas e mentais, jamais terá a perfeição das formas natas dos animais não humanos. Por exemplo, o homem não possui a capacidade de voar na sua própria constituição corporal, porém ele transcende esta limitação construindo uma máquina que vai fazê-lo voar (o avião). Contudo, por mais moderno que seja o avião e mais preparados sejam os pilotos, e 14

melhores os controladores de voo e os sistemas de radares e equipamentos altamente sofisticados, acredite: numa hora ou outra os aviões caem. Por outro lado, alguém já ouviu falar em queda de uma ave por falha mecânica? Alguém já deve ter ouvido falar na colizão entre duas aeronaves em pleno voo, porém é muito improvável ouvir algo sobre a colizão entre duas aves em pleno voo. Observe uma revoada de andorinhas, milhares ao mesmo tempo formando desenhos no céu. Elas não colidem porque isso é próprio de sua programação biológica, é de sua natureza voar. Mas não é da natureza do homem voar, ele só voa porque cria equipamentos que o fazem transcender essa limitação biológica. Ainda assim, esses equipamentos nunca terão a perfeição que é própria da constituição biológica de uma ave. O que define o homem como homem é justamente a sua “incompletude” biológica. É nela que se manifesta mais uma vez a característica que define o homem como ser de transcendência, isto é, o seu ser inacabado o impulsiona a criar um mundo próprio, a cultura. Quando o homem cria os meios que o permitem ir além de suas limitações, sejam os limites físicos ou não físicos, ele está indo além, está transcendendo. A “incompletude” do ser humano não se limita ao campo físico e material. Existe no homem um sentimento de realização que não fica apenas no plano das conquistas materiais. De forma diferente dos animais não humanos, somente o homem tem consciência de si. Por essa consciência que lhe é própria, ele percebe que não basta a si mesmo criar os 15

meios necessários à sua sobrevivência. A ele também é necessário sentir-se realizado. É na procura interior e subjetiva2 de um sentido para sua vida, com a intenção de chegar a uma realização “plenificadora” de seu ser, que o homem se transcende. Podemos ainda acrescentar outra particularidade que define o homem como ser de transcendência: a sua busca pela realização pessoal e por um sentido para a vida. Assim, temos as principais características que nos permitem afirmar e definir o homem como ser de transcendência: o constante procurar colocar-se em equilíbrio consigo e com o mundo; a construção dos meios para sua sobrevivência, isto é, a cultura; a realização pessoal e a busca de sentido para sua vida. Outrossim, devemos considerar que essas característica não existem separadas. Elas interagem no ser humano. Por ter consciência de suas limitações biológicas, físicas e não materiais, o homem transcende a si mesmo em busca de completar-se. Nesse caminhar ele transforma cada limite superado em uma nova plataforma de lançamento em busca da realização cada vez mais completa de si mesmo, problema esse que trataremos no capítulo seguinte.

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Falamos em subjetiva porque cada ser humano é único, não se repete de geração para geração como os animais não humanos. Cada homem realizase de acordo com aquilo que lhe é interior, próprio e peculiar, do que somente ele pode experimentar.

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2. Homem, ser que transcende a si próprio

O

ser humano sempre pode ser mais, nunca esgota plenamente as possibilidades de realização de sua vida. Por isso é que ele sempre pode transformar as metas alcançadas em novos pontos de partida para outros objetivos, tendo como principal finalidade dar maior “completude” a seu ser e assim realizar-se. Existe no ser humano uma coragem de ser e conhecer, uma espécie de necessidade, de desejo em aventurar-se, uma insatisfação com o estado em que se encontra e com os fins já alcançados. Essas características que lhe são próprias parecem obrigálo a avançar em relação a si mesmo, tanto nos aspectos materiais primários, e não menos necessários à sua sobrevivência, por exemplo, a criação de instrumentos como utensílios, vestimentas e outros, quanto nos aspectos mais complexos da sua evolução no decorrer de sua história, como, por exemplo, a evolução cultural, social, política e científica. (MONDIN, 1990, p. 251)

Diante dessa característica de inquietude do homem, podemos reafirmar que ele transcende a si mesmo impulsionado por uma inquietação de não se conformar com o objetivo alcançado. Dessa forma ele procura transformar as metas conquistadas em novos pontos de partida na direção de novos objetivos. 17

Mas o homem não se ultrapassa apenas avançando pelo mundo. Ele se projeta para o além do mundo, em direção a algo que está fora dele e em busca de um objetivo que é a sua realização. Esse projetar-se para fora de si, para além do que o tempo presente o permite ser, é um ato de transcender a si próprio. Enquanto o homem não experimentou e não sentiu-se preso, acorrentado, ou melhor, angustiado diante de sua existência e não decidiu por ir além em direção à transcendência, ele não passa do animal racional que está estático, parado. (SARTRE, 1973, p. 13)

É pela dimensão da transcendência que o homem se projeta preparando e construindo o futuro. Transcender a si mesmo é propor-se ideais e metas como que antecipando o hoje em forma de projeto futuro. É iniciar agora o caminho em busca dos objetivos de maneira que, a cada objetivo alcançado, se procure esboçar novos e outros ideais projetando-se novamente para adiante daquilo que se é hoje. Nesse movimento contínuo o homem vai dando mais perfeição a si próprio à medida que vai caminhando em sua vida, ele é o que vai fazendo de si mesmo e de sua existência.3

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Embora o homem seja resultado daquilo que vai fazendo de sua vida durante a sua existência, não podemos negar que ele é sempre e necessariamente uma construção social. Ele constrói em conjunto com os outros homens um ambiente humano com as suas potencialidades socioculturais, políticas, psicológicas, filosóficas e também religiosas.

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Transcender-se então é o colocar-se em equilíbrio com o seu corpo e com o mundo e encontrar, nesse processo, acabamento para o seu próprio ser. Contudo, pelo fato de o homem transformar o limite alcançado em novo ponto de partida para a sua realização cada vez mais perfeita e poder ser sempre mais em relação ao que é agora, ele não poderá atingir nunca, de forma plena, a realização de si mesmo, embora possa encontrar no processo um sentido para a sua vida. Outrossim, podemos afirmar que somente o homem pode perder a vontade de viver. Por isso existem vidas diferentes, em termos de qualidade, sendo umas mais intensamente vividas do que outras. Se o homem não se coloca como sujeito do processo de transcendência ele não realizará seu bem maior que é ser feliz, pois é pelo processo do transcender-se que ele é motivado a encontrar um sentido para a sua existência e uma realização que complete a sua condição inevitável de ser inacabado. Quando o homem cria determinados instrumentos como vestimentas, utensílios e calçados, ele está procurando dar uma sustentação, uma estabilidade à sua dimensão corpórea que é limitada e inacabada por natureza. A título de exemplo, imaginemos um homem desprovido de qualquer arma e sem vestuário e destituído de calçados. Ao entrar em confronto com um simples escorpião, quem venceria a luta? Nessas condições, as probabilidades estão totalmente a favor do escorpião. Sem calçados e objetos para se defender e com os quais pudesse esmagar o animal, e até mesmo sem um antídoto para o veneno do escorpião, o homem certamente morreria. 19

O homem não nasce pronto como os outros animais. Sem os meios que ele cria para defender-se e adaptar-se ao meio ambiente, certamente não conseguiria manter-se vivo por muito tempo. Afinal, como ele poderia resistir ao frio da Sibéria ou dos polos terrestres? Sem se valer de sua inteligência para fabricar roupas e agasalhos apropriados, o homem morreria em lugares de temperaturas muito baixas. Como ele sobreviveria em sua viagem à Lua ou ao espaço caso não houvesse a construção de máquinas complexas e naves de um aparato enorme de tecnologias? Ainda assim, o que diferencia o homem dos demais animais não é somente a sua racionalidade. Na verdade, é a característica de poder transcender-se. Por essa dimensão que lhe é própria ele consegue ser mais do que é agora. O homem transcende a si próprio quando cria os meios para complementar o seu ser inacabado para dar-lhe estabilidade4 e proteção, igualmente quando cria seu próprio mundo denominado de cultura. É na ação sobre si e sobre o mundo que o homem procura dominar a sua vida e ultrapassar-se. O homem constrói meios artificiais com a intenção de estender o alcance de seu ser físico. Desenvolve instrumentos dos mais simples aos mais sofisticados e, através desse processo criativo, ele está continuamente se ultrapassando, transcendendo o limite físico 4

Os meios artificiais criados pelo homem com a finalidade de dar estabilidade ao seu ser inacabado − como, por exemplo, vestuários, utensílios e até mesmo o mundo cultural − jamais terão a mesma estabilidade que por natureza possui o mundo dos animais não humanos.

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imposto pela natureza. Para que o homem produza meios que estendam e amplifiquem sua força e sua constituição física, o homem depende da sua inteligência e de sua racionalidade. Diante dessa realidade, poderia o homem transcender a sua própria racionalidade? Para tentar responder a essa problematização, devemos lembrar as principais características que definem o homem como ser de transcendência: primeira, o constante pôr-se em equilíbrio consigo mesmo e com o mundo; segunda, a construção dos meios para a sua sobrevivência; terceira, a busca de um sentido para a sua vida em vista da realização pessoal. Recordemos também o conceito de transcendência, isto é, aquilo que vai além do sujeito para algo fora dele, e ainda o processo em que o homem busca um sentido para sua vida. Assim, quando o homem se transcende com a finalidade de realizar a primeira e a segunda características, ele faz uso da inteligência, da racionalidade em direção a algo que está fora dele (por exemplo, o uso dos meios externos para confeccionar instrumento, objetos, vestuários e outros que possam completar seu ser inacabado enquanto corpóreo, físico). Por outro lado, quando o homem se transcende, no sentido da terceira característica, ele está ultrapassando a sua racionalidade, pois a realização pessoal não está ligada a uma operação essencialmente racional. Embora o homem necessite da racionalidade para atingir a primeira e a segunda características, que o definem como ser de transcendência, o sentido para a sua vida e a realização pessoal (a terceira 21

característica) estão além da explicação que a razão eventualmente pode dar. Não sabemos por quais motivos o homem se tornou o único animal racional, mas com certeza ele não se constitui somente de razão. Ele é também um ser de subjetividade, é um ser psicológico, por isso mesmo possui o sentimento e a emoção.5 Porém, um fato é certo: ele tem uma “incompletude” que é peculiar à sua natureza desde o nascimento até o seu presente, e isso lhe é tão próprio quanto a racionalidade. É esse caráter inacabado que o impulsiona para um caminho que deve desembocar o mais próximo possível de uma “completude” que lhe é sempre ausente, mesmo que tenha conseguido construir os meios materiais necessários para a sua sobrevivência e superado a maior parte dos limites de seu ser físico. O homem transcende a própria racionalidade na medida em que, servindo-se da transcendência como busca de um sentido para a sua vida, tenta completar o seu ser inacabado. É através dessa relação com a transcendência que o ser humano toma consciência de não estar preso ao seu próprio ser corpóreo, mas de ser livre. Todavia, o que significa profundamente essa afirmação anterior? Não é pelo desejo, pela vontade de aventurar-se ou simplesmente o querer

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Além da racionalidade, da emoção e do sentimento que fazem parte da complexa constituição humana, encontramos na obra Antropologia Filosófica, de Ernest Cassirer, a tese que aponta ser incorreto afirmar que o homem é apenas um animal racional dotado de emoções e sentimentos, uma vez que ele é também um animal simbólico.

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ultrapassar-se que caracterizam o homem como um ser de transcendência? Na verdade é pela consciência de si mesmo que o homem identifica, na sua vida presente, a condição limitada de sua existência. Percebe na atualidade de sua vida uma situação de deficiências, de precariedades, de ignorâncias. Diante de tais constatações o homem se depara com uma profunda angústia que o impulsiona a superar essa situação precária de sua existência. Enquanto o homem não tomou consciência de suas circunstâncias de ser incompleto, de que necessita ultrapassar suas limitações em busca de um sentido para a sua vida e uma realização pessoal, ele não transcendeu a si mesmo, continua preso a seu corpo e à sua razão. (JASPERS, 1973, p. 53)

É na relação com sua dimensão de transcendência que o homem realiza a sua liberdade para além de onde o seu ser físico consegue chegar e sua razão julga ter explicado. Embora o transcender-se do homem possa lhe permitir atingir uma condição superior de seu ser, de perfeição, de felicidade em relação à situação em que ele se encontra agora, não podemos afirmar ser possível a ele atingir a plena realização de si mesmo. O homem é esse constante projetar-se com a intenção de aperfeiçoar-se cada vez mais à medida que vive os anos de sua existência. Devemos lembrar que o processo de transcendência do homem em relação a si mesmo não significa uma fuga da 23

realidade com a qual ele se depara no cotidiano e nem mesmo um alienar-se em relação à sua situação de ser corpóreo e racional. Tampouco é a busca de algum ser diferente de si próprio quando ele se encontra com a angústia de sua existência e a certeza de sua morte. Ao contrário, é o reencontrar-se consigo mesmo naquilo que ele próprio é além de seu físico e de seu racional, tendo como objetivo a conquista de um ser mais realizado que deseja agir, de forma mais completa, dentro de suas próprias possibilidades em vista do melhor aperfeiçoamento de seu ser. Em outras palavras, o homem procura superar continuamente a si mesmo não para se desfazer da própria realidade, mas para realizá-la o mais plenamente possível. Ele quer adquirir novos níveis de conhecimento, de cultura e de realização sem desprezar o que já conhece e possui. A partir do momento em que o homem se conscientiza de sua “finitude” e “incompletude”, sua providência será tentar amenizar o efeito dessas limitações procurando chegar o mais próximo possível de uma “completude” que lhe falta, mesmo sabendo ser impossível tornar-se plenamente completo e realizado. Para tanto ele busca aperfeiçoar-se ao transcender-se continuamente sempre que se percebe diante da angústia de ser finito e incompleto, enquanto ser de dimensão corpórea. O sentir-se livre é consequência do transcender a si mesmo. O ato de transcender-se permite ao ser humano um “sair” de si no sentido de projetar-se adiante de sua atual situação corpórea e racional. Transcender-se não é somente o ato de criar o complemento material de seu corpo com instrumentos que o adaptem às condições exteriores impostas 24

pela natureza ou criar um mundo próprio, a cultura. É também a realização pessoal, mesmo não de forma plena, embora para o homem signifique poder ser livre. O sentir-se livre é inerente à consciência humana. Somente o homem tem consciência de que é livre, mais que todos os outros animais; só ele pode sentir-se mais livre do que é agora. Se é peculiar no homem a aspiração à liberdade, à felicidade e à tendência em ultrapassar o estado no qual se encontra no presente, ele então não pode se considerar realmente preso. (VAZ, 1992, p. 146)

Ainda podemos considerar que não são as limitações físicas ou temporais às quais o homem pode estar submetido que vão dizer quanto ele está ou não livre. Como afirma um dito popular, “há homens presos que são livres e homens livres que estão presos”. Por exemplo, mesmo estando preso o homem tem condições de ser livre pois a liberdade não está necessariamente ligada ao lugar ou ao tempo em que está o homem, mesmo que seu corpo esteja fisicamente preso. (MOUNIER, 1973, p. 115) Através da transcendência o homem procura um completar-se, um realizar-se, mas também realizar-se como liberdade. Tudo isso que o homem deseja se concretiza mas não de maneira plena, visto que o mesmo é um constante ultrapassar-se, somente ele pode ser mais do que aquilo que ele é. Além disso, as realizações que o homem pretende não são

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possíveis num estado material físico, porém metafísico, inatingível totalmente pelo homem enquanto é corpo e razão. Quando afirmamos que é em relação com o transcender-se que o homem se percebe como livre, queremos dizer que ele despertou para o fato de sua existência não ser completamente fechada em seu corpo como matéria. Pelo ato de transcender-se, o ser humano supera sua condição material de ser corpóreo e sua condição imaterial de ser racional. Ultrapassa a sua situação presente e projeta-se no futuro em vista do objetivo que pretende atingir. Quando o homem segue nessa direção ele passa adiante de seus limites corporais, de sua ignorância, de sua dor. Passa além da máxima liberdade que pensava ter atingido no limite das condições de suas forças do transcender-se anterior. A liberdade aqui em nossa reflexão não significa o simples poder estar livre no mundo para se deslocar de um lugar para outro, ou seja, poder ir e vir dentro do que consigo alcançar com o meu corpo. Liberdade aqui se refere ao ser livre pelo transcender do homem em relação àquilo que o seu ser corpóreo não o permite atingir. Não se pode negar a realidade concreta do corpo como matéria, mas é importante salientarmos que o homem não é só o que seu corpo o permite ser ou estar. Não é apenas o que a sua racionalidade o permite compreender. Ele é o conjunto dessas realidades mais o que vai além delas, isto é, uma realidade metafísica que podemos denominar de alma, de mente ou de espírito. (MONDIN, 1990, p. 265) 26

A liberdade não está ligada ao homem separadamente de suas dimensões de corporeidade, racionalidade. A liberdade é alcançada pelo homem tendo como caminho essas dimensões interligadas, quando o transcender-se é ultrapassar seus limites corporais e, em seguida, superar o seu racional para projetar-se para além de si. Com isso, pretende-se chegar o mais próximo a uma liberdade que deve tornar-se complemento para a realização de si mesmo. Esse desejo por realizar-se não é a busca de um ser que lhe seja estranho, mas é querer aperfeiçoar o seu próprio ser − que tem por fim a felicidade como realização pessoal. Portanto, transcender-se para ser mais perfeito ou realizado não quer significar ao homem buscar fora de si algo que seja perfeito para completar o seu ser imperfeito. Ao contrário, é caminhar em direção a algo que está em sua própria interioridade e não é palpável como a matéria nem sistemático e evidente como a racionalidade. É dirigir-se à sua dimensão imaterial que não é a razão, porém faz parte da constituição do homem como característica única dele em relação aos demais animais. Nessa dimensão imaterial o homem tenta encontrar sentido para a sua vida, um realizar-se, uma felicidade mais perfeita. Embora o homem se transcenda continuamente em busca de um sentido para a sua vida, ele jamais saberá se o que já atingiu é a plena perfeição. Saberá sim que está procurando aperfeiçoar-se o máximo possível de forma que cada objetivo alcançado seja por ele transformado em novo ponto de partida para novos objetivos. Nesse contínuo transcender-se é que o homem deseja encontrar um sentido para a sua vida e projetar27

se para além do que ele é hoje. O objetivo de todo esse processo de transcendência é tornar mais completo o seu ser à medida que se realiza na sua existência.

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3. Homem, ser histórico que se transcende na própria História

A

existência do homem o torna obrigatoriamente presente na história do mundo, independente de sua consciência de pertencer ou não à História, de estar consciente de sua inserção nela ou de sua opção em atuar ou não na História, de transformar ou não a mesma. Pode-se afirmar que o homem é um ser que atua e produz e que, por assim ser, pertence à história que ele próprio cria e ao mesmo tempo à história na qual ele se vê exposto. (JASPERS, 1973, p.45)

Mas estar presente na História não basta ao homem, pois ele se sente impulsionado a ser o agente que deve atuar e transformar a sua história pessoal e a História como o todo que o abrange. Refletimos anteriormente que o ser humano não se conforma com o seu limite físico nem, inclusive, com o seu limite racional. Ele sempre quer ir além do que ele é no presente momento. Na mesma proporção ele se comporta em relação à história na qual está inserido. O homem deseja ir além da sua própria história na intenção de mudá-la ou, pelo menos, sentir-se participante da mesma. Seja como for, esse pensar a história para mudá-la não é simplesmente modificá-la. É projetá-la adiante da sua atual circunstância; em outras palavras, transcender a própria História. 29

Mas qual é a importância de fazermos tal afirmação? A princípio, o não conformar-se do homem com a sua própria história o faz agir para transformá-la e ele vai exercer esse movimento, antes de tudo, projetando sua transformação para além do seu contexto histórico atual. Transformar a própria história pessoal já é um começo para o transcender-se. Encontramos aqui o primeiro passo para o homem transformar a história na qual ele está exposto. Nesse sentido, a importância do ser humano transcender a sua história está intimamente ligada à transcendência na história da humanidade, ou seja, o homem transcende a própria história para através desse projetar-se conseguir transformar a História na qual se insere. O fato de o ser humano não ter uma relação preestabelecida com o mundo lhe obriga a estabelecer continuamente uma relação com o mesmo6 e, na medida em que ocorre isso, ele transforma a História. Se considerarmos a sociedade como resultado do mundo cultural, ou seja, do mundo que o homem cria para dar estabilidade à sua vida e com o qual ele possa se relacionar a fim de completar seu ser inacabado, temos então que a evolução cultural acontece através do constante exercício do transcender-se do homem na atividade constante do pôr-se em equilíbrio com o mundo que ele cria. Assim, a evolução 6

A condição do organismo humano no mundo se caracteriza por uma instabilidade que lhe é peculiar. É no processo de manter continuamente uma relação com o mundo que o homem tenta superar esta instabilidade, na intenção de buscar um acabamento para o seu próprio ser e um sentido para a sua vida no mundo e na sua condição do existir histórico.

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cultural está ligada à transformação da História que ocorre de acordo com a atuação do homem na ânsia de superar o seu ser incompleto. Quando falamos em transcendência do homem na História devemos considerar as categorias de tempo e espaço, pois, da mesma forma que o ser humano não está preso no seu ser físico e racional, ele também não está plenamente limitado pelo tempo e pelo espaço. Na verdade, ele também procura transcender-se para além dessas duas categorias. Embora a existência do homem esteja inevitavelmente inserida no tempo cronológico e no espaço físico, não significa que ele esteja impedido de projetar-se à frente de seu tempo. Na realidade, as categorias de tempo e espaço são responsáveis para que ocorra o estímulo à transcendência do homem em relação à História. Quando ele se depara com a limitação do seu ser físico e com a sua impotência diante do contínuo fluxo do tempo, e ainda perante a brevidade de sua vida, logo lhe surge a ânsia de vencer o tempo cronológico e o espaço físico. É impossível ultrapassar essas categorias apenas com seu limitado corpo, por isso ele vai procurar transcender sua limitação física produzindo instrumentos que proporcionem tal feito. Nos primórdio da humanidade, por exemplo, quando o homem se deparava com grandes distâncias a serem percorridas, ele não tinha outra forma de transpô-las a não ser com o seu corpo, ou seja, utilizando suas estruturas físicas de locomoção. Com o tempo, porém, percebeu que podia 31

domesticar animais como o cavalo e dele se utilizar para deslocar-se de um lugar a outro desperdiçando menos tempo e fazendo menos esforço físico. Mesmo assim o homem procurava superar-se cada vez mais e, mais adiante, conseguiu desenvolver máquinas que o ajudassem a transpor mais ainda o tempo gasto no deslocamento de um lugar para outro. Conseguiu desenvolver os navios, os trens, os carros e, até mesmo, uma máquina que voasse como os pássaros, o avião. Dessa forma, com o decorrer da existência humana o homem conseguiu com os seus inventos e máquinas reduzir consideravelmente o tempo gasto de uma localidade para outra e até entre continentes. Se antes a viagem durava meses entre a Europa e a América, com a invenção do avião o tempo reduziuse a horas. Diante de todos esses inventos que amplificam as potencialidades humanas, podemos asseverar que o homem transcendeu a si mesmo projetando e produzindo externamente ao seu ser corpóreo os meios que o completassem e ampliassem o seu alcance restrito por contingência de seu corpo limitado. Mas o homem não transcendeu somente a si mesmo, de certa maneira ele também transcendeu o tempo à medida que conseguiu reduzir o período gasto para a locomoção entre dois pontos. Por fim, a distância também foi transcendida pelo homem se considerarmos que um avião voando em linha reta reduz a distância de um ponto a outro quando o mesmo trajeto é percorrido por um carro – pois a distância será maior porque o relevo possui estradas sinuosas com subidas e descidas, e curvas acentuadas e brandas, bem como muitos obstáculos naturais.

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Contudo, o homem nunca consegue atingir o pleno domínio do tempo. Ele sempre pode ir mais além daquilo que conseguiu até agora. No mais, porque os meios artificiais que ele produz para superar as deficiências do seu limite corpóreo nunca vão atingir a estabilidade que por natureza ele não tem, o homem nunca vai atingir a estabilidade que possui o mundo dos animais. Por essa razão é que a sociedade, resultado do mundo cultural do homem com seus sistemas econômicos e políticos, cedo ou tarde entra em crise. Por isso o homem, durante a sua existência, se vê obrigado a colocar-se continuamente em equilíbrio consigo mesmo e com o mundo que ele próprio cria. Qual é a ligação entre o transcender do homem no tempo, no espaço e na História? Não podemos admitir o transcender do homem como sendo um ato isolado de seu mundo cultural. Quando o homem se projeta além daquilo que ele é agora, não está desvinculado de sua inserção no processo histórico. A partir do momento em que o homem cria um instrumento ele transforma a sua história pessoal e, por consequência, a história da espécie humana. Ele está acrescentando um novo elemento no mundo cultural que implicará, certamente, o processo histórico. Por isso podemos considerar que, ao produzir os instrumentos no decorrer de sua evolução, o homem transforma a História. O grande problema que temos na transcendência do homem em relação ao processo de evolução histórica é a contradição. De um lado, há a produção de elementos exteriores ao homem para suprir suas limitações físicas e 33

atingir uma realização que lhe falta; por outro lado, os instrumentos criados pelo homem não possuem uma estabilidade plena e por isso as consequências, em algumas circunstâncias, podem contribuir para a destruição do próprio homem. Exemplificando: Na intenção de construir um aparelho que fosse mais pesado que o ar e ainda assim voasse, o homem criou o avião e o aperfeiçoou no decorrer da História. Uma grande conquista da humanidade: o homem transcendeu-se e pôde voar como os pássaros. Porém, o mesmo avião idealizado e construído pelo homem foi empregado em todas as guerras desde a Primeira Guerra Mundial até as mais atuais. Não estamos refletindo eticamente sobre o bom ou o mau uso do avião, mas apenas constatando nesse exemplo um ato de transcendência do homem que teve implicação direta na sua história pessoal e na história da raça humana. Essa reflexão não é uma justificativa para a barbárie com que o homem usa seus instrumentos para a deflagração de guerras que são um processo contrário à realização do homem como ser dotado de racionalidade. Apesar de toda contradição humana o homem ainda se apresenta como um ser que produz socialmente diferentemente dos animais, que não necessitam produzir os meios materiais para as suas vidas. Nesse ato de produzir socialmente é que o homem se transcende para além de si e em direção à sociedade para, através de sua atuação nela, transformar a História. Ao produzir seus meios de vida, o homem produz indiretamente sua própria vida material. Desde que ele começou a criar instrumentos para aperfeiçoar, complementar e realizar a sua 34

vida, ele sempre transformou a natureza, os seus meios cultural e social, e, desde que começou a produzir socialmente, ele constrói a História e nesse processo manifesta-se a atuação da sua dimensão de transcendência. A historicidade do homem somente se mostra na medida em que ele é um ser que produz socialmente e que, com sua produção social, produz suas próprias relações sociais, ou seja, se faz a si mesmo. O homem é um ser que produz socialmente, como já foi citado anteriormente nessa reflexão, porém é nesse processo de se produzir socialmente que ele produz a si mesmo. Produzir significa aqui a construção do ser do homem e o seu aperfeiçoamento progressivo durante a sua existência através do projetar-se contínuo para adiante do que ele se constitui hoje sendo um ser que busca um sentido para a sua vida. Esse movimento de produzir-se se funda na sua relação com a transcendência. O homem, na medida em que procura proverse dos meios necessários para a sua sobrevivência e para a realização de si próprio, atinge a História e a transforma. A cada produção de um elemento cultural novo, instrumentos, vestuários, máquinas e, até mesmo, novos pensamentos, ele está modificando a História. Esse produzir-se pela ação de transcender-se, como processo no tempo, faz do homem um ser histórico que se transcende na própria história. Contudo, precisamos salientar que o homem não se produz e se transforma, a si mesmo e nem à História, isoladamente. Não é possível que o homem se desenvolva

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como homem no isolamento, bem como não é possível que o homem isolado consiga produzir um ambiente humano. A humanidade específica do homem e sua socialidade estão inextrincavelmente entrelaçadas. O homo sapiens é sempre, e na mesma medida, homo socius. (BERGER, 1983, p. 75)

Refletindo sobre essa assertiva de Berger, vamos dedicar o próximo capítulo à análise sobre a transcendência do homem como relação com o outro.

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4. Transcendência como relação com o outro

A

vida humana compreendida como práxis, ou seja, a unidade entre a reflexão e a ação, nos revela que o homem é essencialmente um ser de relações. Essas relações constituem a própria vida do homem, aquilo que ele é. Por exemplo, alguém só pode ser pai na medida em que está em relação com o filho, pois sem filho ninguém pode ser pai. É a relação de paternidade que constitui alguém como pai. O homem é um sujeito de realizações, pois ele vive no mundo e precisa do mundo para realizar sua vida e caracterizar o que projeta ser, isto é, o homem sempre se encontra numa determinada circunstância, num contexto determinado que é seu mundo no qual e a partir do qual vai realizando-se e construindo sua vida. (JASPERS, 1973, p. 145)

O homem vai realizando sua vida à medida que estabelece relações. Podemos afirmar que existem dois níveis de relações: a relação do homem com o mundo das coisas, a natureza, e a relação do homem com os outros homens, isto é, com o outro, e nesta medida, também, a relação do homem consigo mesmo. A relação do homem com as coisas se caracteriza por ser uma relação de manipulação, de utilização, de apropriação, isto é, as coisas são úteis (utensílios com os quais o homem 37

conta para ir construindo a sua vida). Com certeza o homem é um ser de necessidades, de carências. A necessidade, a carência, é a falta do necessário para a vida. Por exemplo: moradia, alimentação, vestuário. O homem se abre ao mundo desejando aquilo de que necessita e, quando obtém, reproduz sua vida e a vai realizando. Dessa forma, as coisas são objetos de uso úteis que permitem ao homem, através de sua apropriação pela práxis cotidiana, ir realizando sua vida. Entretanto, nem tudo de que o homem necessita se encontra imediatamente ao alcance de suas mãos. Como a coisa útil precisa ser produzida, a abertura do homem ao mundo não deve ser apenas desejada. Ela deve ser também produtiva, isto é, o homem precisa produzir, através do trabalho, o necessário para ir sobrevivendo. Assim, podemos afirmar que o trabalho é a relação fundamental do homem com a natureza. É a atividade humana que produz, ou seja, dá existência à coisa útil, ao produto de que o homem necessita para ir realizando sua vida. Porém, mais fundamental do que a relação do homem com o mundo das coisas é a relação do homem com o outro. Esta relação é o ato pelo qual o sujeito humano se dirige diretamente a outra pessoa, como, por exemplo, pelo aperto de mãos, o beijo, uma agressão ou, indiretamente, por mediação do mundo das coisas. O específico dessa relação é ser uma relação de alguém com alguém, e não uma relação de alguém com algo. Devemos considerar o outro como alguém com quem se está em relação porque ele não é coisa, instrumento, por isso não pode ser manipulado, coisificado ou instrumentalizado. O outro é, na verdade, uma pessoa que exige ser reconhecida. É apelo constante ao diálogo, à 38

convivência. Isso exige uma atividade de respeito, o que aqui significa deixarmos o outro ser ele mesmo, sabermos ouvi-lo, termos confiança nele. Diante dessa realidade do homem como ser de relação, pode-se dizer que a transcendência em relação ao outro acontece na medida em que ela é um “sair de si”, ou seja, do indivíduo para um encontro com o outro. Por exemplo, se um homem salva o outro de um atropelamento arriscando a sua própria vida, mesmo sem ter conhecimento do outro nem qualquer relação de amizade nem nenhuma motivação religiosa, temos um bom exemplo da transcendência do homem em relação a si mesmo e ao outro do ponto de vista filosófico. Se um homem põe em risco a sua vida para salvar a do outro, independente de haver uma prévia relação de amizade, afeto ou motivação religiosa, segundo apenas uma atitude do próprio homem, tal atitude nos revela um aspecto da transcendência do homem em relação a si mesmo em direção ao outro, ou seja, a capacidade humana de sair de si mesmo, de superar o medo arriscando perder a sua própria vida para preservar a do outro.7 A atitude do homem no exemplo citado manifesta uma força que o impulsiona à preservação da própria espécie. Porém, será esse o único motivo que leva o ser humano a transcender-se indo ao encontro do outro? Poderíamos afirmar que não. Contudo, refletindo mais profundamente, não seria essa reação de ir em direção ao outro uma forma de encontro 7

O transcender-se como relação com o outro não está necessariamente vinculado a laços afetivos de uma pessoa por outra ou à concepção cristã de doar a vida pelo próximo.

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consigo mesmo? Segundo o exemplo, não seria o ver no outro a própria limitação humana? Não seria ver no outro ser humano a própria fragilidade diante da iminente destruição? Na verdade, podemos considerar o outro como uma porção do próprio eu. Ele é como cada um de nós, uma parte da totalidade da humanidade. Dessa forma, o encontro com o outro é um encontro consigo mesmo. A preocupação com o preservar a vida do outro é, antes de mais nada, a procura pela preservação, pela perpetuação de nós mesmos como seres humanos. Mas poderíamos, diante da realidade atual de nosso mundo, nos questionar o seguinte: Se há uma preocupação com a preservação da espécie humana por parte do homem, por que a humanidade se revela tão desumana? De fato, se estamos tão preocupados em manter a raça humana preservada, por qual razão observa-se tanta guerra, fome, desigualdade social? Por que tantas pessoas morrem em decorrência da ação de seus iguais? Podemos dizer que a resposta está no fato de o homem não ter tomado consciência da sua existência enquanto ser que pertence e compõe a humanidade e que somente se perpetuará à medida que a humanidade como um todo for preservada, e não somente um grupo dentro dela. Se somente um grupo de privilegiados (o mais economicamente favorecido) for preservado de toda sorte de contrariedades, de desastres naturais e artificiais, então a existência humana estará condenada. Isso ocorre porque dentro do próprio grupo 40

privilegiado se criará o desejo de estar mais protegido economicamente e disso decorrerá a destruição de uns sobre outros a fim de sempre se ter mais, pois, para quanto mais se ter, mais se sentirão protegidos. Além disso, a relação do homem com os seus iguais é encarada na maioria das vezes como uma relação de alguém com algo e não de alguém com alguém. O outro com quem se está em relação não é coisa que pode ser manipulada. A desumanização do outro por alguém demonstra que esse alguém já está desumanizado, e por isso quer desumanizar o outro. Talvez a principal razão pela qual os homens estão se matando uns aos outros através de assassinatos, roubos, guerras e violências é porque tentam estabelecer com os demais as mesmas relações que têm com as coisas. Falta ao homem realizar a passagem do transcender-se em relação ao outro, isto é, o sair de si mesmo para realizar-se na relação com o outro. Não há como fugir dessa passagem, visto que o homem não pode viver como humanidade sem relacionar-se com o outro que como ele participa da mesma humanidade. O homem é um ser de relações, quer por amor, quer por necessidade de preservação da humanidade, quer por ódio. O homem se realiza na medida em que ultrapassa seu próprio ser individual em direção à relação com o outro, pois é nessa relação que ele se encontra consigo mesmo e com a humanidade. Os seres humanos insistem em atitudes individualistas que causam autodestruição e promovem a sua própria 41

desumanização sem saber que alcançarão um efeito contrário a essas posturas destrutivas. Por exemplo, todas as armas e artefatos que o homem inventa para isolar-se dos demais acabam por obrigá-lo a estreitar as relações com o outro. Forçam-no a celebrar acordos com todos aqueles que cedo ou tarde possuirão as mesmas armas e artefatos. Um bom exemplo disso foi o período conhecido como Guerra Fria. Da mesma forma, todo o conforto e as técnicas que o homem cria para se avantajar sobre seus iguais se transformam rapidamente em objeto de reivindicação de todos os homens. Os inventos, seja qual for a sua origem, tornam-se patrimônio comum da humanidade e colocam os fracos no nível dos fortes e anulam as diferenças. O esforço de separação produz efeitos opostos porque se transforma em meio de maior relação com o outro. Por isso, transcender-se como relação com o outro independe do fato de existir alguma relação de amizade ou de alguma doutrina religiosa. A nossa relação humana com o outro, considerado como alguém e não como coisa, já nos torna dispostos a ir em direção contrária a qualquer tipo de separação ou isolamento, pois nos indica que o outro também participa de nossa vida enquanto pertencente à esfera do humano. O outro também é parte de nossa existência e comum participante de nossas limitações e dificuldades enquanto animais inacabados. A relação de um ser humano para com o outro como se ele fosse coisa é a causa da não realização do homem, pois nós somos seres de relações, completos, e que nos plenificamos como ser na abertura à alteridade. 42

Portanto, embora sejamos biologicamente inacabados, no que diz respeito às relações com o outro podemos nos considerar um ser completo, uma vez que cada homem é único e não se repete de geração para geração. Na verdade não somos parte de um quebra-cabeça de duas peças que se constituirá como um inteiro quando se encaixar com o outro, que seria a segunda peça. Não somos pedaços ou partes, ao contrário: cada homem é um inteiro e único. Nós não precisamos do outro para completar nosso ser ou as dimensões que ele encerra, porém nós nos plenificamos como ser na medida em que estamos abertos às diferenças, à alteridade. A transcendência como relação com o outro somente se dá na atitude de alteridade.

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Conclusão

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este pequeno exercício de reflexão procuramos apresentar um conceito de transcendência e, a partir dele, orientarmo-nos no decorrer da obra. Definimos a transcendência como sendo aquilo que projeta o homem para além de si mesmo e que ultrapassa os limites da experiência sensível. É uma dimensão peculiarmente humana pela qual ocorre a superação dos limites físicos e psicológicos em direção a um objetivo específico, o qual se tornará ponto de partida para novo processo de transcendência. Buscamos elucidar as principais características que definem o homem como ser de transcendência, quais sejam: o constante pôr-se em equilíbrio consigo mesmo e com o mundo; a construção dos meios para a sua sobrevivência (a sua cultura); a realização pessoal e procura de um sentido para a sua existência; a alteridade como caminho para o transcenderse em relação com o outro. Essas características não estão separadas e interagem no ser humano, sendo que a partir delas o homem se conscientiza de sua incompletude e se lança na superação de si mesmo, isto é, no ultrapassar-se para completar-se. A partir do raciocínio desenvolvido reafirmamos que o homem pode transformar o limite já alcançado em novo ponto de partida para a sua realização cada vez mais plena, sendo sempre mais em relação ao que é agora. Mas devido a esse mesmo processo nunca poderá atingir, de forma absolutamente 44

plena, a realização de si mesmo, visto que o homem sempre poderá ser mais do que ele é agora. Refletimos ainda sobre a condição do homem enquanto ser que produz socialmente, o que lhe diferencia dos animais que não necessitam produzir meios materiais para as suas vidas. No ato de produzir socialmente o homem se transcende para além de si em direção à sociedade para nela, através de sua atuação, transformar a História. Desde que o homem começou a criar os instrumentos para aperfeiçoar, complementar e realizar a sua vida, ele sempre transformou a natureza e os seus meios cultural e social. E desde que começou a produzir socialmente ele constrói a História, e nesse processo manifesta-se a atuação da sua dimensão de transcendência. Esse produzir-se pela ação de transcender-se, como processo no tempo, faz o homem um ser histórico que transcende a própria História. O homem é um sujeito de realização, pois ele vive no mundo e precisa do mundo para realizar a sua vida e caracterizar o que projeta ser, isto é, o homem sempre se encontra numa determinada circunstância e num contexto determinado que é seu mundo, no qual e a partir do qual vai se realizando e construindo sua vida. O homem precisa sair de si mesmo para realizar-se na relação com o outro e não há como fugir dessa realidade, uma vez que o homem não pode viver em sociedade sem se relacionar com o outro que com ele participa desse mesmo processo no tempo de sua existência.

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Entendemos que o homem transcende a si mesmo para realizar-se dando sentido à sua existência quando convive com as outras pessoas a partir de uma relação de alguém com alguém, e não a partir de uma relação de alguém com algo. O outro do homem é pessoa e merece ser tratado com a dignidade de ser humano e não como coisa manipulável, instrumento ou objeto. A causa da não realização do homem é sua atitude de relacionar-se com o outro como coisa e não como alguém. Todos nós precisamos do outro para constituir o sentido da nossa própria vida. Acreditamos ter alcançado o objetivo de apresentar algumas reflexões acerca da transcendência do homem buscando analisar o significado dessa dimensão humana em relação ao próprio homem, à História e de como a transcendência sucede na relação com o outro. Ao refletirmos, descobrimos que a dimensão da transcendência é um pulo para além dos parâmetros de tempo e espaço, da matéria, da natureza e da História. Percebemos que o homem supera sistematicamente a si mesmo em todas as suas ações, isto é, no pensar, no querer, no desejar, no fazer, no criar, no agir e no ser. A transcendência revelou-se uma dimensão que quer projetar o homem em direção ao horizonte do infinito, do imaterial e do espírito em busca do pôr-se em equilíbrio, pela busca de uma completude para o ser inacabado do homem e de um sentido para sua existência. A transcendência revela a presença de um componente ontológico no homem que difere do corpóreo, trata-se da alma ou mente ou espírito. 46

Não podemos negar que nos limitamos a explorar um conceito de transcendência apenas, que no caso é o mais próximo da filosofia existencialista. Entretanto, ainda sob o ponto de vista da nossa reflexão, alguns problemas a respeito da transcendência nos chamam para uma posterior discussão: − O que é essa realidade metafísica que junto da dimensão corpórea humana constitui o homem? − Em que nível de relação essa dimensão se encontra com o corpo? − Onde está a sua origem? − Teria algum destino após a falência do corpo?

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