Homens de preto

July 23, 2017 | Autor: Jorge Felix | Categoria: Sociología de la Cultura, Historia Cultural, História da Moda
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Homens de preto John Harvey Publicado no jornal Valor Econômico Ed. Unesp – 399 págs. Por Jorge Félix1 O primeiro dândi nunca foi chamado assim em vida. Ganhou o título muitos anos depois quando apareceu o termo - sem a conotação pejorativa de almofadinha que ganhou nos dias de hoje. O senhor Beau Brummell vivia para a elegância. Tinha um alfaiate para o casaco, outro para o colete e um terceiro para as calças. A busca do nó perfeito da gravata consumia boa parte de sua manhã. Um visitante encontraria várias delas, um pouco amassadas, pelo chão, onde a raiva as levava, e ouvia de um criado: “Estes, senhor, são os nossos fracassos”. Brummel ia às últimas conseqüências da máxima segundo a qual “o mais importante princípio do vestir é o apuro”. Suas roupas, porém, eram simples para aquele início do século 19. Seu estilo, sóbrio. Seu corte, perfeito. Sua cor predileta, o preto. Nas gravuras de época, Brummel aparece de sobrecasaca preta e calças pretas muito justas. Uma perfil com algo de satânico. Sua imagem influenciava seu amigo, o príncipe regente, e logo este também passou a sair à noite vestido de preto. O curioso é que as veias de Brummel nunca provaram uma gota de sangue azul. Seus pais e avós eram empregados ou comerciantes. Certa vez, ouviu de alguém um voto a favor da exclusão de todos os “vendedores e criados” da sociedade inglesa. A resposta: “Meu pai foi um empregado muito bem qualificado e manteve sua posição por toda a vida”. Elegante como seus trajes. A atitude demonstra que, a partir daquele momento, o bom gosto e a modernidade estavam à disposição tanto da não-aristocracia quanto da aristocracia. Este exemplo da preferência dos dândis pela roupa preta resume a tese do professor da Universidade de Cambridge John Harvey em seu ensaio “Homens de preto” (Editora Unesp, 339 págs. R$ 48,00), um livro tão delicioso quanto elegante e obrigatório para quem freqüenta o mundo da moda, do consumo de luxo, da história, da sociologia ou simplesmente da boa leitura. Harvey conquista pelo primor de sua pesquisa, erudição e linguagem – muito bem auxiliado pela tradução de Fernanda Veríssimo. O autor busca em Shakespeare, Dickens, Baudelaire, Delacroix, Degas, Bosch e muitos outros a explicação para a cor preta, sempre símbolo da morte e do mal assumir um significado de elegância, poder e sedução. É justamente neste capítulo que entra a “Seita dos dândis”. O dândi renuncia às plumas, mas ainda busca uma certa ostentação. Abdica daquela elegância tão excessiva a ponto de vulgarizar-se pela agressividade para exibir riqueza nas sutis evidências. Na boa qualidade do tecido ou no nó perfeito da gravata. O preto é alçado às páginas de moda dos antigos magazines com a revolução industrial. O uso da cor como forma de desfilar simplicidade tem origem na pequena nobreza inglesa obrigada a trocar a carruagem pelo cavalo e necessitada de algo mais descartável para vestir. A moda do simples evoluiu para a moda do negro ainda para demonstrar igualdade. O preto beneficiou1

Doutorando em Ciências Sociais (PUC-SP), mestre em Economia Política e professor da PUC-SP e da FESP-SP [email protected]

se dos ideais da Revolução Francesa como uma cor mais democrática, sem exigir dos criados o sacrifício ou desperdício usufruído pelos nobres nababescos. Quando a revolução indústrial entra em cena o preto atendia à necessidade de emprestar uma honra modesta e algum escrúpulo a quem conquistara sua posição pelo trabalho e nunca pelo sangue ou troca de favores com a realeza. Era uma forma de diferenciação - talvez a maior função da roupa preta nos seus primórdios fashion. O dândismo distanciou o significado de gentleman do dinheiro e da tradição e o aproximou ao da elegância e da moral. No mínimo, do constrangimento, já que a moda da roupa preta, embora tenha ganho espaço na origem do capitalismo, nasceu da necessidade socialista de impedir o esnobismo. Os primeiros capitalistas nasceram mais comedidos, mais sóbrios. Talvez tenham surgido do exato jeitinho como querem ser em nossos dias, ou seja, com um luxo invisível. O vestir-se de preto, explica Harvey, vem atender a uma burguesia democrática que, aspirava se igualar ao proletariado e distanciar-se da nobreza acintosa. Baudelaire foi o primeiro a associar o preto a um caráter mais democrático. E Dickens, em “A casa sombria”, cria um personagem sem nenhum traço de cor na roupa e na decoração do lar. Sua personalidade está na rigidez da postura. Dickens, também considerado dândi e adepto dos trajes pretos (assim como Baudelaire), relata muito do senso comum de suas épocas. Lembra Harvey que o romancista associava a adoração ao preto a uma aspiração de diálogo com os ícones industriais: a fumaça das chaminés e a fuligem negra que cobria as janelas londrinas. Ater-se apenas ao exemplo do dândismo seria empobrecer o trabalho de Harvey. O livro é uma ampla expedição à sociologia, sem deixar a narrativa cair na modorrice, para compreender o uso da roupa preta. O autor acredita que há um mistério particular com o que os homens fizeram com o preto. Por que as pessoas começaram a usar uma cor identificada com a morte ? Em sua incansável busca, Harvey traça um caminho para o preto similar aos de outros livros de sucesso que contam a história do vinho, do pão e da comida. A saga inicia-se no século 15, quando o preto era raríssimo e apenas usado em festas da corte polonesa. Harvey encontra um Hamlet: o príncipe Felipe, o Bom, duque de Borgonha. Felipe adotou o preto quando desejou vestir-se de ameaça diante do assassinato do pai pelos franceses em 1419. O preto incarna a vingança, mas o príncipe, ao aderir às Cruzadas, ganha o título de “O Bom”. Sinistro, elegante, perigoso e bem feitor, o preto de Felipe já aparece com todos os paradoxos dessa cor. O preto remetia a fatos terríveis. Fora da igreja – capítulo que pode parecer mais óbvio e mesmo assim o autor consegue atribuir-lhe curiosidade – poucos usavam preto. No século 14, ainda seguindo sua vocação de cor diferencial, os leprosos eram obrigados a usar roupas escuras. Pouco mais tarde, a Ordem dos dominicanos foi fundamental na difusão do hábito negro como forma de imposição visual de seu poder. Até o século 18, salvo alguns casos isolados e situações interessantíssimas contadas por Harvey, as cores ainda predominavam no guarda-roupa masculino. A partir da terceira metade do século 19, porém, verifica-se a morte das cores, peça por peça. Não bastava sequer o azul marinho. Quando o rei George IV abandona o branco e alça o preto à cor da gravata, surge o blacktie. Nunca mais o visual do homem foi o mesmo.

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