Homicídios de Mulheres em Pernambuco, 2002-2004: Uma Caracterização a Partir de Notícias de Jornais

July 22, 2017 | Autor: Ana Paula Portella | Categoria: Homicide, Violence Against Women, Femicides
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Portella, Ana Paula. (2006) Homicídios de Mulheres em Pernambuco.

Homicídios de Mulheres em Pernambuco, 2002-2004: Uma Caracterização a Partir de Notícias de Jornais Ana Paula Portella1, Verônica Ferreira2 e Sheila Bezerra3 Recife, março de 2006 “Onde todos são culpados ninguém o é; as confissões de culpa coletiva são a melhor salvaguarda possível contra a descoberta dos culpados (...) e a melhor desculpa para nada fazer.” Hanna Arendt. Sobre a Violência.

Resumo Nos últimos 20 anos, o problema dos homicídios no Brasil atingiu as proporções de uma tragédia genocida. A cada ano, cerca de 50 mil pessoas, em sua maioria jovens, negras e pobres, são assassinadas em nosso país, a maior parte por armas de fogo, o que nos coloca no topo mundial deste ranking triste e indesejável, superando países em guerra ou em conflitos civis. São homens as principais vítimas desta guerra, mas, de 1980 a 2000, as taxas de homicídios de mulheres praticamente dobram no Brasil, passando de 2,37 para 4,32 por 100 mil mulheres. Porém, pouco sabemos a respeito destes homicídios, o que produz um profundo impacto negativo sobre as políticas públicas. Os esforços para a sua caracterização limitam-se ao campo da saúde através dos sistemas de vigilância em saúde, que, porém, está circunscrito às vítimas e deixa de lado as circunstâncias em que os crimes ocorrem, o que só poderia ser produzido através de um sistema nacional de informações de segurança e justiça. Os limites das informações oficiais nos leva a buscá-las em outras fontes. A imprensa é uma fonte diária de informações sobre os homicídios e oferece uma narrativa descritiva sobre os crimes que não se encontra em nenhum lugar e, por isso, podem nos ajudar a compor o quadro dos homicídios de mulheres em Pernambuco.

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Psicóloga, mestranda em Saúde Pública no CPQam/Fiocruz/UFPE, Coordenadora de Pesquisas do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. 2 Assistente Social, pesquisadora e educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. 3 Antropóloga, pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia.

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Com objetivo de compreender o fenômeno dos homicídios de mulheres em Pernambuco, de modo a subsidiar a elaboração de políticas públicas, construímos um banco de dados em Excell, alimentado diariamente, incluindo notícias desde 2002 e, sempre que possível, informações oficiais que identifiquem vítimas ou agressores. No momento, temos cerca de 700 casos de homicídios de mulheres incluídos no banco, que possui 107 variáveis -- como dados sobre vítimas e/as agressores/as, contexto dos crimes e dados sobre denúncias e prisão. A análise apresentada neste trabalho refere-se ao período de 2002 a 2004 e envolve 528 casos, a partir dos quais pode-se destacar: a Região Metropolitana do Recife concentra 66% dos homicídios, apenas cinco bairros de Recife concentram quase 50% de todos os homicídios da cidade; 25% dos casos aconteceram à luz do dia; 55% aconteceram em áreas públicas; armas de fogo são responsáveis por 68% dos casos; 95% dos agressores são homens; 61% são familiares e 22% são conhecidos da vítima; 13,4% dos casos foram chacinas e em 46,4% deles havia múltiplos agressores. Parte deste homicídios, portanto, distancia-se da caracterização histórica dos crimes contra mulheres, cometidos no ambiente doméstico, por agressor único e com vítima única, que relacionam-se amorosamente, o que traz importantes desafios para as políticas públicas nesta área, majoritariamente voltadas para a violência conjugal.

Introdução Este artigo tem por objetivo analisar a situação dos homicídios de mulheres em Pernambuco a partir de informações veiculadas pela imprensa associadas a dados oficiais da Secretaria de Defesa Social do Estado-SDS. Para isso, analisamos 528 casos ocorridos entre 2002 e 2004, como parte de um conjunto de ações desenvolvidas pelo SOS Corpo no âmbito do projeto Observatório da Violência contra as Mulheres em Pernambuco. O Observatório como propósito a produção de informações e a promoção de debates para subsidiar a ação dos movimentos de mulheres e de agentes públicos no enfrentamento do problema da violência contra as mulheres. Nos últimos dez anos, observamos um crescimento significativo do número de mulheres vítimas de homicídio e, considerando ser esta a forma mais grave de violência, verificar quais as

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características destes crimes e em que contextos acontecem nos pareceu uma etapa imprescindível para a compreensão do fenômeno e para a formulação, implantação e qualificação das políticas públicas e ações da sociedade civil. Considerando as mudanças ocorridas nas relações de gênero e na situação das mulheres nos últimos 30 anos4, pode parecer um paradoxo o crescimento deste tipo de violência – a não ser que seja entendida como uma reação conservadora e violenta a estas mesmas transformações. É possível que parte destes crimes possa ser assim analisada, mas, ao observar os homicídios de mulheres ocorridos em Pernambuco, verificamos que, tal como no caso dos homens, eles atingem majoritariamente mulheres pobres, jovens e negras5. Mas, diferentemente daqueles, grande parte dos agressores é constituída por homens que fazem parte das relações íntimas ou familiares da vítima – o que nos mantém no campo dos paradoxos. A análise que aqui apresentamos revela algumas das faces de uma situação desafiante, que pode ser expressa em algumas questões: que fatores ou circunstâncias impedem que uma parte das mulheres escapem da violência fatal perpetrada por seus parceiros? Se é verdade que parte dos homicídios não é cometido por parceiros e assume características de outros tipos de crimes – e foi isso o que verificamos em nossa análise, como se verá – o que tem levado esses criminosos a matarem mulheres? Porque as mulheres passaram a ser alvo também deste tipo de violência? De que maneira este tipo de violência se relaciona (ou não) com a violência perpetrada pelos parceiros? Historicamente, a violência contra as mulheres pode ser descrita como apresentando as seguintes características: i. os agressores são homens que convivem com a vítima; ii. a maioria dos agressores relaciona-se amorosamente com a vítima; iii. as agressões acontecem na esfera doméstica e familiar; iv. os homicídios são cometidos por um único agressor; v. em cada caso de homicídio há apenas uma única vítima mulher e adulta. Casos de múltiplos homicídios, em geral, envolvem crianças, do casal ou da mulher; vi. a violência masculina atinge mulheres de todas as classes sociais e, nesse caso, todas as mulheres correriam o mesmo risco de ser assassinadas por homens;

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São muitos -- e bem divulgados -- os trabalhos que inventariam e analisam estas mudanças, não sendo necessário citá-los aqui. Mas vale a pena referir a publicação O Progresso das Mulheres no Brasil: Um Balanço de Conquistas e Desafios, recentemente lançada pelo Unifem, que traz uma análise pormenorizada e atual sobre a questão e pode ser encontrada em www.mulheresnobrasil.org.br. 5 Só muito raramente a cor da pele pode ser identificada nas notícias de jornais. Tampouco é dado divulgado pela SDS. Por isso, baseamos as informações aqui utilizadas nos dados do Ministério da Saúde (MS/SVS, 2005) sobre mortalidade proporcional e taxas de homicídio segundo sexo e raça/cor.

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vii. as mulheres ricas estariam subrepresentadas nas estatísticas porque contariam com recursos pessoais e familiares para escaparem da situação violenta

(no caso dos

homicídios, esta última afirmação não se aplica, dada a obrigatoriedade de preenchimento da declaração de óbito (Soares, 1999). Parte importante dos homicídios de mulheres ocorridos em Pernambuco no período analisado foge desta caracterização, como veremos a seguir. Nos últimos 20 anos, o problema dos homicídios no Brasil atingiu as proporções de uma tragédia genocida. A cada ano, cerca de 50 mil pessoas, em sua maioria jovens, negras e pobres, são assassinadas em nosso país, o que nos coloca no topo mundial deste ranking triste e indesejável, superando países em guerra ou em conflitos civis (Souza, 1994; Adorno, 2002; Zaluar, 2004; IPEA, 2005; entre outros). A maior parte destas pessoas morre vitimada por armas de fogo. São homens as principais vítimas desta guerra, mas, de 1980 a 2000, as taxas de homicídios de mulheres praticamente dobram no Brasil, passando de 2,37 para 4,32 por 100 mil mulheres (Souza et. al, 2002). A Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994), único instrumento internacional voltado para a violência de gênero, define a violência contra as mulheres como “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado. A violência contra as mulheres inclui as violências física, sexual e psicológica: a) que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b) que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus-tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimento de saúde ou qualquer outro lugar e que seja perpetrada ou tolerada pelo Estados e seus agentes, onde quer que ocorra” (Convenção de Belém do Pará apud Barsted, 2006). No caso dos homicídios, a questão que se coloca é como distinguir, nos eventos concretos do mundo da vida, que condições teriam produzido um homicídio específico. Não restará dúvidas sobre os casos em que as mulheres são assassinadas dentro de casa e/ou há testemunhas que atestem ter sido o companheiro ou ex-companheiro o autor do crime. Porém, nos casos em que as mulheres são assassinadas na rua ou os corpos são

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transportados para áreas distantes de suas casas, e considerando a precariedade da investigação policial, como saber se aquele foi um crime baseado no gênero? Nestes casos, no momento em que tomamos conhecimento do homicídio não temos como saber. Ademais, é possível pensar que a articulação entre as condições de gênero, classe, raça em contextos de ação de grupos criminosos pode produzir um conjunto de situações nas quais o fato da vítima ser do sexo feminino poderá ser determinante para a ocorrência do homicídio. O exemplo mais simples seria o do companheiro que contrata alguém para matar a companheira na rua, mas há os casos das mulheres que são vitimadas por serem parentes de homens envolvidos em alguma ação criminosa ou em algum litígio pessoal, há aquelas que são mortas por ocuparem algum lugar mais destacado na comunidade e, com isso, disputarem o poder local com os homens, há as que morrem porque desafiaram a comunidade com seu comportamento pessoal ou sexual6, enfim, é possível pensar em várias situações, mas nenhuma delas virá à tona espontaneamente apenas com a descoberta dos corpos. Em Pernambuco, o cenário de crescimento destes crimes associa-se à alta prevalência de violência perpetrada por parceiros, estimada a partir de pesquisas como a realizada pela OMS na Zona da Mata (Schraiber, 2002), em que se encontrou que 37% das mulheres já teriam sofrido pelo menos um episódio de violência em suas vidas, e é bastante provável que seja também por ela determinado. A completa ausência de políticas capazes de combater o problema e a ação sistemática de grupos de extermínio integrados por policiais nos permite afirmar ainda que a violência contra as mulheres é perpetrada e tolerada pelo Estado. A despeito disso, pouco sabemos a respeito destes homicídios, o que produz um profundo impacto negativo sobre as políticas públicas e as ações da sociedade civil voltadas para a superação da violência. Os esforços para a sua caracterização praticamente limitam-se ao campo da saúde através dos sistemas de vigilância em saúde – especialmente através do Sistema de Informações de Mortalidade -- que, nos últimos 25 anos, vêm apresentando uma significativa melhora na captação de informações em todo o país (MS/SVS, 2005). Este sistema, porém, está circunscrito às vítimas e deixa de lado as circunstâncias em que os crimes ocorrem, o que só poderia ser produzido através de um sistema nacional que integrasse informações das áreas de segurança, 6

Em Pernambuco, ocorreram alguns casos de violência lesbofóbica, em que casais de mulheres foram assassinadas em decorrência de sua orientação sexual.

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justiça e saúde – neste último caso, incluindo informações sobre morbidade e não apenas sobre mortalidade. A ausência de informações oficiais – que, por si só, é indicativa do modo como o problema (não) é tratado no plano governamental – nos leva a buscá-las em outras fontes. São muitas as pesquisas que tratam sobre a questão mas, em geral, focam áreas geográficas determinadas ou aspectos específicos do problema. A imprensa, a despeito de suas limitações, é uma fonte diária de informações sobre os homicídios e, em geral, oferece uma narrativa descritiva sobre os crimes que não se encontra em nenhuma das fontes oficiais. Nesse sentido, nos pareceu que as notícias de jornais poderiam nos ajudar a compor o quadro dos homicídios de mulheres em Pernambuco e, por esta razão, entre as atividades do Observatório incluímos um banco de dados alimentado diariamente com notícias desde 2002. Até dezembro de 2004, temos 528 casos de homicídios de mulheres incluídos no banco, que possui 107 variáveis -- como, por exemplo, os discursos veiculados nas matérias, dados sobre vítimas e agressores/as, contexto dos crimes e informações sobre denúncias e prisão. Ainda que esteja longe de ser um registro completo de tudo que foi publicado e ainda mais distante de ser uma tradução fiel do que de fato vivem as mulheres em seu cotidiano, podemos identificar nessas matérias a natureza dos crimes cometidos contra as mulheres, as circunstâncias em que ocorreram, as iniciativas desencadeadas pelo poder público e o modo como são veiculadas pela mídia7. 1. Cultura Patriarcal e Racista: Uma Chave para Entender os Homicídios de Mulheres O crescimento das mortes por causas externas (que incluem todos os acidentes, suicídios, homicídios e outras violências) vem sendo observado no Brasil desde o final dos anos 70. A partir dos anos 80, os homicídios tornam-se, nas palavras de Souza (1994), “os grandes vilões e principais responsáveis pelo maior impacto da violência na mortalidade da população brasileira” (Souza, 1994). Apesar disso, segundo a mesma autora, apenas recentemente tornou-se um problema relevante para a saúde pública,

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A análise destas informações também está contida nos boletins Dados e Análises publicadas pelo SOS Corpo (disponíveis em www.soscorpo.org.br/observatorio) e são o conteúdo dos debates políticos realizados nas oficinas e fóruns de diálogo do Observatório.

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podendo-se dizer o mesmo para o campo das ciências sociais e humanas como um todo (cf. Zaluar, 2004). De uma maneira muito geral, pode-se dizer que a elevação das taxas de homicídios nos últimos 25 anos esteve relacionada à consolidação do crime organizado (Pinheiro, 1983; Zaluar, 1986; Batista, 1990 apud Souza, 1994); à consolidação dos grupos de extermínio e ao aumento da pobreza e da miséria urbanas (Saboia, 1993 apud Souza, 1994), e pela falência das instituições de assistência e recuperação de jovens. Para Souza (1994) e Minayo (1993), “esses três fatores se inter-relacionam sinergeticamente com a violência estrutural das extremas desigualdades e com as mudanças de valores e visão das novas gerações em relação às elites, à pobreza, à riqueza, aos bens de consumo e à própria felicidade”. No que se refere às mulheres, é provável que as mudanças nos arranjos familiares e a ampliação do seu acesso à esfera pública, em um contexto em que ainda persistem valores e práticas patriarcais, tenha colaborado para a produção de novas formas de violência e para o acirramento das “antigas”. Adorno (2002), nos dá um quadro mais detalhado e preciso desta situação, lembrando que, nas últimas quatro décadas, “os padrões de concentração de riqueza e de desigualdade social permaneceram os mesmos no Brasil, mas a desigualdade de direitos e de acesso à justiça agravou-se na proporção mesma em que a sociedade se tornou mais densa e mais complexa”. O crescimento das taxas de violência neste período se dá em suas mais distintas modalidades: crime comum, violência fatal conectada com o crime organizado, graves violações de direitos humanos, explosão de conflitos nas relações pessoais e intersubjetivas. E assim como os autores já citados, também ele dá relevância ao lugar do narcotráfico na configuração deste contexto, na medida em que este tipo de crime promove a desorganização das formas tradicionais de sociabilidade entre as classes populares urbanas, estimula o medo das classes médias e altas e enfraquece a capacidade do poder público em aplicar lei e ordem. Pernambuco, que convive com altíssimos índices de violência, é, não custa lembrar, o maior produtor mundial de maconha e se tornou, nos últimos 15 anos, uma rota importante para o tráfico de cocaína, de pessoas, de armas e de órgãos. A este quadro, Adorno (2002) acrescenta a “explosão de conflitos nas relações intersubjetivas, especialmente de vizinhança, com desfecho fatal” como um dos elementos que constituem o cenário da violência no Brasil nestes últimos anos. Não

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menciona, porém, manifestações de violência contra as mulheres. Diz ele: “Verificouse, no curso das duas últimas décadas, verdadeira explosão de litigiosidade no seio da sociedade civil, em particular nos bairros onde habitam majoritariamente classes trabalhadoras de baixa renda, resultando em desfechos fatais”. Sabendo-se que cerca de metade desta população é formada por mulheres e que a violência de gênero é constituinte das relações sociais no Brasil, podemos pensar que esta “explosão de litigiosidade” irá necessariamente afetar o plano das relações entre homens e mulheres8. Se, como diz Adorno, “o tecido social encontra-se sensível a tensões e confrontos que, no passado, não pareciam convergir tão abruptamente para um desfecho fatal”, estamos autorizadas a pensar que as tensões e confrontos conjugais e familiares entre mulheres e homens também apresentem a tendência de convergir para desfechos fatais. Cardia (2003), menciona que a associação entre a violência letal e a violação de direitos sociais e econômicos não é nova, nem exclusiva das áreas metropolitanas brasileiras. Em estudo realizado em São Paulo, esta autora verificou que as altas taxas de homicídio estavam correlacionadas com “elevado crescimento populacional; elevada porcentagem de pré-adolescentes e adolescentes (dez-catorze anos) na população local; menor taxa de idosos residentes; ausência de chefes do domicílio com renda alta; elevada concentração de chefes do domicílio com baixa escolaridade; elevada densidade populacional; elevada taxa de mortalidade infantil; menos acesso à rede de esgotamento e menor taxa de leitos em hospital por habitante” (Cárdia, 2003). De acordo com Minayo (1993), a principal vítima do crime organizado é a juventude, tanto como consumidora e força de trabalho quanto como alvo do extermínio. “Esta vitimização”, prossegue a autora, “não se distribui de forma homogênea. Estudos mais aprofundados dos dados de mortalidade por violência entre os jovens evidenciam um perfil em que predominam a baixa escolaridade, a baixa renda, a pouca qualificação profissional, o sexo masculino e a cor negra” (Souza, 1991b; Mello Jorge, 1988; Minayo, 1990b). Tudo nos leva a crer que esse perfil é semelhante para homens e mulheres, o que nos leva à questão: se a violência de gênero tem sua origem e fundamento nas relações desiguais de poder entre homens e mulheres é de se esperar que ela possa ocorrer para toda e qualquer mulher. No que se refere às agressões, muitos estudos (e a nossa própria experiência profissional e política) indicam que isso é verdadeiro. Considerando, porém, este perfil dos homicídios e, ainda, a sua distribuição 8

E, evidentemente, das relações étnicas e raciais, etárias e entre heterossexuais e homossexuais.

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geográfica – que aponta para uma concentração em bairros onde são precárias as condições sociais de existência coletiva e onde a qualidade de vida é acentuadamente degradada (Adorno, 2002) – devemos nos perguntar o que leva a que uma mesma situação de violência tenha o homicídio como desfecho nestas áreas e não em outras. Em outras palavras, é provável que as mulheres que aí residem estejam expostas a múltiplas vulnerabilidades, possivelmente encontrando inúmeras dificuldades para sair (ou não entrar) de uma situação de violência doméstica. Repete-se entre as mulheres, portanto, aquilo que Adorno (2002) denominou de “distribuição desigual do direito à vida”. Embora alguns estudos tratem do mortalidade por homicídios entre homens e mulheres, praticamente inexistem trabalhos que se dediquem a analisar esta forma de violência especificamente entre as mulheres. Destaque deve ser dado ao estudo coordenado por Eva Blay, intitulado Direitos Humanos e Homicídios de Mulheres, no qual ela analisa casos ocorridos em São Paulo, no período de 1995 a 20039 (Blay, 2003). Devido à importância desse estudo -- também descritivo e que também inclui a imprensa entre suas fontes --, para nosso trabalho, suas conclusões serão debatidas quando da apresentação de nossos resultados. Dada a magnitude e as características da violência perpetrada por parceiros ou familiares – com seu perfil de longa duração, intenso sofrimento físico e psíquico, ocorrência no ambiente da vida privada e forte legitimidade social graças à persistência da dominação patriarcal --, os homicídios, geralmente associados à violência urbana, têm despertado pouca atenção. Exceção deve ser feita aos (poucos) estudos sobre crimes passionais, boa parte deles voltados para o modo discriminatório como a justiça trata este tipo de crime. Com isso, deixa-se de perceber, pelo menos, duas questões importantes: a) o homicídio de mulheres pode ser – e frequentemente é – o desfecho de uma situação de violência vivida entre o casal; b) é bastante provável que no recente crescimento das taxas de homicídio para o sexo feminino estejam operando de modo articulado elementos da subordinação de gênero e raça e da situação de classe em contextos de atuação de grupos criminosos, o que cria uma nova condição de “vítima” para as mulheres – que não pode, ao menos a princípio, nem ser imediatamente identificada com a vítima de crimes passionais nem com os homens vítimas da violência criminosa. O entrecruzamento das condições de gênero, raça e classe em áreas onde 9

Os dados da pesquisa podem ser encontrados em www.usp.br/nemge

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atuam grupos criminosos pode criar uma nova situação de vulnerabilidade para as mulheres que requer novas compreensões e explicações para que possa ser adequadamente tratada no plano da política e da intervenção social. Nesta análise, é útil lembrar a formulação de Saffioti (1999), segundo a qual “gênero, raça/etnia e classe social são eixos estruturadores da sociedade brasileira, que operam conjuntamente, mas o próprio conjunto adquire propriedades distintas das pertencentes a cada hierarquia em particular”. Nesta mesma direção, Barsted (2006), em estudo recente sobre a violência contra as mulheres no Brasil, enfatiza o fato de que “as vulnerabilidades e os obstáculos à segurança humana são potencializados quando se considera o fenômeno da violência sob a perspectiva de gênero e de raça/etnia”, uma vez que as mulheres não podem ser pensadas como “um conjunto abstrato e indiferenciado de indivíduos do mesmo sexo”. Para ela, “a violência contra as mulheres não pode, portanto, ser pensada separadamente das outras manifestações, em especial das praticadas contra meninas e adolescentes e da racial, que atinge de forma específica negras e indígenas”. 1.1 Sexo e Raça: A Violência Revelada nos Números Já em 1985, o Brasil ocupava o terceiro lugar entre os países com as maiores taxas de mortalidade por homicídios, com 14,6 mortes por 100 mil habitantes, ficando atrás de El Salvador (40,4/100mil) e Colômbia (38,1/100mil) (Minayo, 1993)10. Em 1991, esta taxa passou para 21,04/100000 habitantes e, seis anos depois, já estava 25,33/100000. Em 1994, o Brasil foi incluído pelas Nações Unidas no grupo de países que apresentavam as mais altas taxas de homicídio entre a população de 0 a 24 anos, junto com a Armênia, Arzeibajão, Colômbia, Rússia e Venezuela (Butchart, 2002). Em 2003, foram assassinadas 45966 pessoas no Brasil, entre as quais 3842 ou 8% eram mulheres, e a taxa de homicídios foi de 28,16 para a população em geral. Para efeito de comparação, deve-se mencionar que, em 2002, os EUA apresentaram uma taxa de 5,6; o Japão e a Alemanha, de 1,1; a Espanha de 2,9; o México, 13 e a Colômbia, 63. Observando as taxas por sexo, percebe-se a dimensão do problema: a taxa para a população brasileira do sexo masculino é de 52,8 e para as mulheres é de 4,27. Em 25 anos, de 1980 a 2005, 794 mil pessoas foram assassinadas no Brasil (Cerqueira, 2005). Na década de 80 e 90, os homicídios por arma de fogo apresentaram crescimento mais intenso do que o crescimento da população, mas o risco de morrer por arma de 10

Vale lembrar, porém, que El Salvador vivia uma guerra civil e a Colômbia passava por um momento de intensos embates entre a guerrilha e o exército.

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fogo no Brasil, em 2002, era 2,6 mais alto do que no resto do mundo (Phebo, 2005). Enquanto a taxa de homicídio cresceu 209% no Brasil, nas doze regiões metropolitanas cresceu 262,8%. Nessas regiões, vivia, em 1998, 36,7% da população brasileira mas, no mesmo ano, concentrou 57,7% do total de mortes resultantes de homicídios voluntários ou agressões (cf. Mesquita Neto, 2001 apud Adorno, 2002). Em Recife, a taxa de homicídios sofreu uma variação de 181% entre 1980 e 2002 (Cerqueira, 2005). Porém, além da tendência constante de crescimento observada nas últimas décadas, há importantes diferenças regionais e, mais importante, quando consideramos a raça/cor da pele as taxas variam imensamente para ambos os sexos. Os homicídios de mulheres representaram na década de 80 9,1% de todos os homicídios (Souza, 1994), uma proporção que irá se manter com pequenas variações até os dias de hoje. (Souza, 1994). Dados do Ministério da Saúde referentes ao ano de 2002 (MS/SVS, 2005) indicam que as causas externas foram o principal grupo de causas de morte nas faixas etárias de 5 a 14 anos e de 15 a 24 anos, tanto para homens (com taxas de 18,6 e 177,1/100 mil habitantes, respectivamente) quanto para mulheres (com taxas de 9,3 e 20,4/100mil). Para os homens de 15 a 24 anos o risco de morrer por essas causas é 8,7 maior do que para as mulheres. No Brasil, as causas externas são a terceira causa de morte para a população em geral, mas se apresenta de modo diferenciado quando consideramos o sexo e a raça/cor da pele11: Quadro 1: Classificação das Causas Externas, segundo sexo e cor da pele, 2003 Categoria Homens Pardos Homens Homens Negros População Negra Homens Brancos População Branca Mulheres Mulheres Brancas Mulheres Pardas Mulheres Pretas

Classificação das Causas Externas 1ª causa de morte 2ª causa de morte 2ª causa de morte 3ª causa de morte 3ª causa de morte 4ª causa de morte 5ª causa de morte 6ª causa de morte 6ª causa de morte 8ª causa de morte

Fonte: MS/SVS, Saúde Brasil 2005

No que se refere especificamente à mortalidade por homicídio na população feminina, o diferencial por raça/cor é significativo, estando as mulheres pretas em pior 11

O Ministério da Saúde considerou, em sua análise, as categorias de raça/cor utilizadas pelo IBGE (branca, parda, preta, amarela e indígena). A população negra representa a junção das categorias preta e parda.

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situação do que as brancas: entre as primeiras a taxa de homicídios foi de 5,57/100 mil habitantes e entre as segundas, essa taxa foi de 3,45. Ao considerar a faixa etária, veremos que são as mulheres pretas na faixa etária de 20-29 anos que apresentam a maior taxa de homicídio de toda a população feminina: 10,7/100 mil (MS/SVS, 2005). Em Pernambuco, a taxa de homicídio se mantém elevadas há muito tempo, tendo sido, em 2003, a mais alta do Brasil (55,5/100 mil habitantes), 13% maior que a do Rio de Janeiro (44,8). Desde a década de 80, Recife apresenta as mais elevadas taxas de homicídio entre as capitais (Minayo, 1994). Já em 1989, em Recife, os homicídios representavam 45,6% de todos os óbitos por causas externas, a maior proporção de todo o país, apresentando na década um crescimento de 193,9% (Souza, 1994). No estado, é a população parda e negra que apresentam as piores taxas: 79,7 e 74,9, respectivamente. No quadro abaixo, pode-se observar melhor estas diferenças e o modo como evoluíram entre 2000 e 2003, com destaque para as mulheres de cor preta: Tabela 1: Evolução das Taxas Padronizadas de Homicídios, segundo sexo e cor da pele, 2003 Mulheres Homens Raça/Cor 2000 2003 2000 2003 2,93 3,45 36,4 37,1 Branca 4,22 5,56 59,1 68,3 Preta 4,32 4,55 54,5 63,6 Parda 4,31 4,68 55,1 64,2 Negra 5,2 9,1 --Mulheres Pretas 15-19 8,2 10,7 --Mulheres Pretas 20-29 Fonte: MS/SVS, Saúde Brasil 2005.

As taxas de homicídios cometidos com armas de fogo em Pernambuco é de 91,2 para os homens, a mais alta do Brasil, e de 4,3 entre as mulheres, a segunda mais elevada do país, igual aos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, só superadas por Rondônia, com 4,7 (MS/SVS, 2005). Ajustadas por sexo e faixa etária, as taxas de homicídio por armas de fogo em Pernambuco e no Brasil são as que seguem: Tabela 2: Taxas de Homicídios por Armas de Fogo, segundo sexo e faixa etária, 2003 Mulheres Homens Faixa Etária PE BR PE BR 9,0 4,7 225,1 84,5 15-29 anos 5,9 2,5 114,7 10,8 30-59 anos Fonte: MS/SVS, Saúde Brasil 2005.

Pode-se afirmar, portanto, que Pernambuco vive hoje uma situação de completa omissão do Estado com relação à segurança e a proteção da vida de sua população e, em

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muitos casos, é o próprio Estado o perpetrador desta violência através de atos de agressão de policiais que, em alguns casos, chegaram aos homicídios. Do ponto de vista da sociedade, coexistem as idéias de condenação ao estado de violência, baseada mais no temor de vir a ser vítima do que em um julgamento moral negativo dos atos violentos em si, e a defesa do uso da força e da repressão – pública ou privada -- para combater esta situação. O ato violento, para ser condenável, portanto, depende de quem o perpetra e em que circunstâncias, o que oferece um terreno fértil para a defesa da violência dos policiais, dos justiceiros ou dos agentes de segurança privada. Percebe-se aqui a persistência de preconceitos sociais, baseados na idéia de “classes perigosas”, na qual associa-se pobreza e marginalidade social e econômica à criminalidade (Paixão, 1982). De um lado, na posição de vítimas, estariam as classes mais abastadas e, de outro, como agressores, estaria a população pobre, notadamente masculina – mas, como veremos, abrindo espaços cada vez maiores para a penetração das mulheres na construção dessa representação do perigo. É evidente que tal formulação não possui qualquer fundamento na realidade, uma vez que a maior parte das vítimas da violência é pobre e, além disso, a imensa maioria dos pobres não tem qualquer vinculação com o crime. Para Bandeira (2002), “o preconceito pode ser uma "máquina de guerra" presente nas relações sociais cotidianas. O preconceito, usualmente incorporado e acreditado, é a mola central e o reprodutor mais eficaz da discriminação e de exclusão, portanto da violência. O preconceito discrimina e dá margem a práticas de violência, pois, seja pela sua onipotência ideológica, seja pela sua insolência mediática, acaba fomentando relações sociais hostis e violentas (Bandeira, 2002). Minayo (1992; 1993), chama a atenção para o mesmo fenômeno, afirmando que “no acirramento dos conflitos, legitima-se, e até se justifica, um modo de matar que, antes de ocorrer concretamente no ato do extermínio, já havia sido decretado social e politicamente”. No caso de Pernambuco, esta afirmação pode ser tomada de modo literal, na medida em que é utilizada pelos órgãos de segurança para justificar seus atos violentos e pela população para definir aqueles ou aquelas contra quem qualquer tipo de violência estaria legitimada. No caso das mulheres, essa lógica também opera através da idéia de que a violência masculina poderia ser justificada pela conduta feminina “indevida”, no campo da sexualidade ou na vida doméstica e familiar. Mais recentemente, observamos uma superposição dos preconceitos de gênero, cor e classe presentes nas declarações de alguns agentes públicos que tentam justificar o crescimento dos homicídios de mulheres

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pelo envolvimento destas com o tráfico de drogas, em uma recorrência de um discurso que vem sendo exaustivamente utilizado para justificar as altas taxas de homicídios de homens em vários estados do Brasil, como bem observou Soares (2000) ao tratar de sua experiência como secretário de segurança pública do Rio de Janeiro. Contra esse argumento, Blay (2003) apresenta o dado de que apenas 9% das mulheres vítimas de homicídio em São Paulo tinham antecedentes criminais. A correta tese feminista de que a violência contra as mulheres pode atingir indiferentemente mulheres de todos os grupos sociais parece perder força diante da distribuição desigual dos homicídios e da instituição das políticas de combate à violência e da disseminação de um ideário político igualitário que, aparentemente, têm encontrado dificuldades para alcançar as mulheres que vivem em contextos violentos. Potencialmente qualquer mulher pode sofrer a violência masculina, mas quais delas terão a possibilidade de sair desta situação antes que ela se agrave ou termine tragicamente em um homicídio? De acordo com a nossa experiência e com estudos e pesquisas diversos (Heise, 1999; Schraiber, 2002; Fundação Perseu Abramo, 2001), escapam da violência as mulheres com maior grau de escolaridade e residentes em áreas urbanizadas, com presença de serviços e equipamentos públicos – o que parece facilitar o acesso à ajuda e aos direitos. As outras parecem ter mais dificuldades para encontrar as vias de saída da violência, o que leva muitas delas à morte trágica. A questão aqui está no campo da compreensão do problema – entendendo que as situações de classe e raça fazem, sim, diferença quando falamos de violência contra as mulheres – e na formulação das políticas que devem, portanto, ser pensadas de modo diferenciado para grupos diferenciados de mulheres e áreas específicas do país. Isso nos leva à questão da impossibilidade de realização da democracia na vida social e nas relações pessoais – pressuposto de uma vida sem violência – em áreas onde predomina o uso da força e das armas. Quantas mulheres brasileiras vivem nestas áreas? Nos garimpos, nas estradas comandadas por redes de exploração sexual, nas áreas de periferia dominadas por grupos criminosos? O que sabemos sobre o cotidiano e as relações de gênero nestes contextos? Espancadas na madrugada, como pedir ajuda e gritar por socorro se à noite impera a lei do silêncio e as portas fechadas? Como ser socorrida se ambulâncias, e às vezes até mesmo a polícia, não entram em certas áreas? O homem armado, ainda que pobre, continua a ser a trágica personificação do

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patriarcado e, a despeito dos muitos esforços do movimento feminista, o que se vê é a proliferação sem controle dessa indesejável figura nas grandes cidades brasileiras. Não bastasse todos os seus terríveis efeitos, os contextos violentos ainda produzem novas sobrecargas de trabalho para as mulheres. São elas que socorrem e cuidam dos feridos e sustentam os incapacitados pelas balas e, na ausência daqueles que são assassinados, assumem para si mais uma parte da responsabilidade pelo sustento da família (Zaluar, 2004). A relação entre cultura patriarcal, machismo e criminalidade é analisada por MInayo (2005) a partir da presença dos valores da masculinidade hegemônica entre os jovens envolvidos com o crime. Para ela, “as mortes encomendadas e executadas como fato acabado, as ordens arbitrárias dadas às comunidades em que vivem e as instituições aí presentes por parte das gangues reafirmam a valorização do machismo de longa duração”, ganhando nova roupagem na figura dos chefes de bando que "humilham e tripudiam sem dó nem piedade". Citando Giddens (1991, 1995), afirma que o machismo pós-moderno é um fenômeno novo que vive da velha cultura patriarcal e a reafirma nos "vícios" e "compulsões" da sociedade pós-tradicional, tendo na arma de fogo, junto com o carro veloz, um de seus principais símbolos. 2. Questões Metodológicas Os problemas e as dificuldades na produção de informações sobre a mortalidade por causas externas e, particularmente, por homicídios vêm sendo analisados de modo sistemático por um conjunto importante de estudiosos do campo da saúde pública (Minayo, 1993; Mello-Jorge, 1988, 1990; Souza, 1991a, 1992; Swarcwald, 1986; Vicente, s.d.. Phebo, 2005) e das ciências sociais (Zaluar, 2004; Adorno, 2002; Cerqueira, 2005). A configuração do grupo das causas externas (E800-E999) da CID, no qual se incluem os homicídios, também tem sido objeto de discussão entre os estudiosos da violência, devido aos seus limites para a compreensão do problema. Minayo (1994), citando Mello-Jorge (1989), chama a atenção para o fato de que a operacionalização da categoria causas externas se faz “apenas através dos efeitos que se apresentam sobre as pessoas atingidas por lesões e mortes”, trazendo problemas, por exemplo, para se definir o caráter de acidentalidade ou direcionalidade dos atos, a legalidade ou a arbitrariedade das ações. Minayo conclui afirmando que “os dados sobre violência são por natureza

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problemáticos, provisórios e tentativos, não podendo os mesmos pretender traduzir a verdade”, havendo em relação aos mesmos um campo de controvérsias necessárias, embora reconheça a importância da colaboração dos estudos epidemiológicos para apontar a magnitude do fenômeno e suas tendências. Barros (2002) lembra que “as fontes oficiais dos dados de mortalidade por causas externas são as secretarias de segurança pública e as secretarias municipais e estaduais de saúde. Os objetivos distintos desses órgãos e o não-entendimento da importância de sua função social de informar são fatores que, entre outros, conduzem, já em sua geração, à considerável perda de dados, o que obriga a utilização de artifícios técnicos para minimizar as deficiências ou mesmo a não-utilização de alguns deles para caracterização da população atingida (Barros, 2002). O Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde tem sido a fonte mais utilizada pelos estudos sobre homicídios, mas são muitos os seus limites. As variáveis indispensáveis da declaração de óbito são apenas o ano e o tipo de óbito. São variáveis essenciais, com prioridade para crítica e correção dos dados, o sexo, idade, município de ocorrência e de residência, causa básica e tipo de violência. Todas as demais variáveis são consideradas secundárias (Barros, 2002). Em Pernambuco, até 2002, a Secretaria de Defesa Social divulgava regularmente, através de sua página eletrônica, os dados consolidados referentes aos crimes ocorridos no estado. Data deste período, porém, a divulgação de relatórios internacionais que denunciavam as altas taxas de homicídios como resultado da ausência de políticas públicas e da desresponsabilização do Estado. Os números apresentados por uma e outra fonte nem sempre coincidiam, o que gerou uma “guerra dos números”, envolvendo não apenas estes dois atores, como também o sindicato dos policiais civis, o IML e a imprensa. Desde então, os dados oficiais sobre a violência desapareceram e só reaparecem de forma parcial uma ou duas vezes por ano, sob a forma de números brutos, referentes ao total de homicídios ocorridos em um determinado período. No caso da violência contra as mulheres, os dados são divulgados pelas responsáveis pelas DEAMs, apenas quando solicitados, e são também parciais. A divulgação dos dados das secretarias de saúde e de diversos relatórios nacionais e internacionais apontando as taxas de homicídio de Pernambuco como as mais altas do país provocou na SDS uma reação defensiva, expressa na recusa em aceitar os dados como corretos, sem apresentar, porém, informações que pudessem

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corrigi-los. Diante de tal quadro, a imprensa assumiu uma atitude ativa de monitoramento do problema da segurança pública e, em particular, dos números da violência. É nesse contexto que surge o Observatório da Violência, construindo um processo próprio de obtenção de informações, que permitisse à sociedade civil continuar enfrentando o problema da violência contra as mulheres no estado. Este artigo toma como base os homicídios de mulheres noticiados pela imprensa de janeiro de 2002 a dezembro de 200412, incluindo ainda os homicídios divulgados oficialmente pela Secretaria de Defesa Social-SDS no ano de 2004 – e não descreve, portanto, o universo dos homicídios de mulheres de Pernambuco, que deve ser maior do que o que aqui apresentamos. Neste ano, a SDS divulgou uma lista nominal de pessoas assassinadas em Pernambuco informando ainda o município e a data do homicídio. Ainda que estas sejam informações mínimas, foram agregadas ao banco pelo fato de ser a primeira vez que o governo divulgou uma lista desta natureza e, mais importante, porque a lista da SDS diz respeito a todo o estado de Pernambuco e, portanto, apresenta os homicídios ocorridos em todas as regiões, suprindo, ainda que precariamente, a ausência de informações da imprensa quanto a essas áreas. Foram incluídas no banco de dados as notícias veiculadas nos três jornais diários de Pernambuco – Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco – a partir de clipagem diária, digitação em planilha do Excell e análise a partir do programa SPSS. A análise é descritiva dos homicídios de mulheres, sem proceder a comparação por sexo, a partir das seguintes variáveis: INCLUIR VARIÁVEIS Antes de prosseguir cabem algumas advertências, relacionadas à limitação das informações e, conseqüentemente, das análises: a)

Apesar de volumoso (528 homicídios em três anos!), é bastante provável

que o nosso universo de informações ainda esteja longe da realidade. A maior parte das notícias refere-se à área metropolitana e, considerando os dados do SIM e as listas da SDS, é possível afirmar que a imprensa provavelmente noticia cerca de 40% dos homicídios efetivamente ocorridos no estado, como se vê no quadro abaixo: Tabela 3: Homicídios de Mulheres em Pernambuco, segundo fonte de divulgação, 2002-2004 Ano

Nº de Homicídios de

Nº de Homicídios

% de Homicídios

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Nossas fontes da imprensa são os jornais Diário de Pernambuco, Folha de Pernambuco e Jornal do Comércio, em suas versões impressas e eletrônicas.

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2002 2003 2004 Total

Acordo com a SDS 369 263 269 901

Noticiados pela Imprensa 117 111 133 361

Noticiados 31,7 42,2 49,4 40,0

Fonte: FP, JC, DP, SDS

b)

As notícias são, obviamente, selecionadas pelos editores dos jornais e,

nesta seleção, ganham força os elementos dramáticos que se distanciam daquilo que é comum. Ou seja, a maior parte dos casos é noticiada justamente por sua natureza trágica e assustadora: assim, ganham relevo os múltiplos homicídios, as chacinas, os casos muito violentos e aqueles que atingem a elite local. Nossa análise, portanto, orienta-se na direção desses tipos de crimes, mas deve-se ter em mente que é provável que esteja fora deste universo aquele que é o crime mais comum e que, historicamente vem sendo cometido contra as mulheres envolto em um tal silêncio – e legitimidade social – que o impede de ser visto como fato jornalístico. Falamos, obviamente, do assassinato de mulheres pelos parceiros ocorrido no âmbito doméstico e familiar. c)

Além de selecionadas, as notícias são também limitadas pelo interesse de

editores e repórteres e pela possibilidade real de acesso a informações que lhes é dada. Assim, há notícias que apresentam muitos detalhes sobre o caso, há outras em que abundam matérias, coberturas especiais e análises e há outras, a grande maioria, que limitam-se a informar que morreu uma mulher em um determinado local. Nossos casos, portanto, são bastante desiguais em termos de informações, o que nos levou a trabalhar, como se verá, com diferentes universos para cada variável informada. Explicamos: para as variáveis data e local do crime, por exemplo, trabalhamos com o universo total de 528 casos, porque estas informações constam em todas as matérias e na lista da SDS. Daí derivamos as informações sobre região e dia da semana, também para os 528 casos. Outras variáveis, porém, aparecem de modo muito desigual como, por exemplo, relação com agressor, local do ferimento, arma utilizada etc e, por isso, em cada tabela ou gráfico será apresentado o número de casos a que se referem. 3. Caracterização dos Homicídios de Mulheres em Pernambuco De 2002 a 2004, os três jornais pernambucanos noticiaram 355 homicídios de mulheres e, em 2004, na lista divulgada pela SDS havia outros 167 casos que não foram

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noticiados pela imprensa. No total, foram 528 casos de assassinatos de mulheres, que serão a base da nossa análise. Gráfico 1: Homicídios de Mulheres por Região, PE 2002-2004 (%) (n=528) 11%

14%

9%

66% Agreste

RMR

Sertão

Mata

Cerca de 66% dos homicídios aconteceram na Região Metropolitana do RecifeRMR, dado que também revela o foco metropolitano da cobertura jornalística. Nos anos de 2002 e 2003, a RMR concentrou mais de 70% de todos os homicídios noticiados. Neste período, pertencem à RMR os cinco municípios que apresentam o maior número de mulheres assassinadas. Juntos, respondem por mais da metade de todos os homicídios do período. Lima (2002), em estudo realizado em Recife, já havia verificado a disseminação da violência da capital em direção aos demais municípios da região metropolitana durante os anos 1990. Tabela 4: Municípios com Maior Ocorrência de Homicídios de Mulheres, PE 20022004 (%) (n=528) Ano Município 2002 2003 2004 Total Recife 35,9 25,2 27,0 28,6 Jaboatão dos Guararapes 12,0 19,8 11,7 13,4 Olinda 12,0 10,8 4,3 6,1 Paulista 6,8 5,4 4,0 4,9 São Lourenço da Mata 3,4 4,5 3,3 3,2 70,1 65,8 50,3 56,3 Total Em todo o período, Recife é o município que apresenta o maior número de homicídios, com 151 casos noticiados. Porém, assim como no resto do estado, estes homicídios concentram-se em poucos bairros: em apenas 10 bairros, ocorreram 56% dos homicídios noticiados (Ibura, Nova Descoberta, Iputinga, Imbiribeira, Dois Unidos,

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Casa Amarela, Santo Amaro, Piedade, Boa Viagem e Afogados). A partir das informações do estudo já citado de Lima (2002), verificamos que apenas o bairro de Casa Amarela se mantém nesta lista desde 1991. Embora haja algumas variações ao longo dos anos, alguns bairros permanecem na lista em todo o período, o que chama a atenção para a gravidade do problema nessas áreas. Esse é o caso do Ibura, Nova Descoberta, Santo Amaro, Iputinga e Casa Amarela. Não por acaso, esses bairros também freqüentam o noticiário em razão das altas taxas de homicídios de homens e dos freqüentes conflitos entre polícia e grupos criminosos. O fato de também concentrarem o maior número de homicídios de mulheres na cidade sugere que a atuação de grupos criminosos pode tornar as mulheres mais vulneráveis à violência de gênero e à violência destes grupos. Boa parte dos homicídios de mulheres ocorridos em Pernambuco no período analisado foge da caracterização histórica apresentada anteriormente. Assim, 13,4% das mulheres foram vítimas de múltiplos homicídios, ou seja, foram assassinadas junto com outras pessoas. No período, esse tipo de homicídio apresentou um crescimento de 86,2%. Mais importante, em 46,4% dos casos as mulheres foram mortas por bandos de homens, sendo que na RMR metade dos homicídios enquadram-se nesta categoria: Gráfico 2: Homicídios de Mulheres em Pernambuco, 2002-2004 - Número de Agressores por Região (%) (n=318) 68,8

80 60

59,3

65

50,2 49,8

40,7 31,3

40

35

20 0 Agreste

Metropolitana Múltiplos

Sertão

Mata

Único

Em todo o período, foram noticiados 148 casos de homicídios de mulheres cometidos por bandos de criminosos, em 30 municípios do Estado, sendo que 81% do total aconteceram na RMR. Este tipo de homicídio cresceu 75,6% no período analisado, passando de 37 casos em 2002 para 65 em 2004. Os homicídios cometidos por um único agressor, por sua vez, apresentaram uma queda de 13,8%. Finalmente, ao

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comparar número de vítimas e agressores, chama a atenção o fato de que em 41,1% dos casos múltiplos agressores mataram apenas uma vítima.

Gráfico 3: Homicídios de Mulheres em PE, 2002-2004 - Número de Vítimas e Agressores (%) (n=306) 60,4

58,9 70 39,6

60

41,1

50 40 30 20 10 0 Único Agressor Uma Vítima

Vários Agressores Várias Vítimas

Ao longo dos anos, novembro foi o mês que apresentou o maior número de homicídios, seguido pelos meses de abril, dezembro e janeiro. É provável que esse destaque do mês de novembro deva-se às mobilizações do 25 de novembro, Dia Internacional de Luta pelo Fim da Violência contra as Mulheres, ocasião em que a imprensa dá mais atenção ao problema da violência. VERIFICAR POR TIPO DE FONTE Quanto ao dia da semana, assim como para os homicídios em geral, o final de semana, seguido da segunda-feira, é o período que apresenta o maior número de homicídios de mulheres, concentrando 59,8% de todos os casos. A maior parte dos homicídios acontece à noite e na madrugada, mas chama a atenção que 25% dos casos aconteçam à luz do dia, sem que os agressores se sintam coagidos pelas pessoas ou pela polícia nas ruas.

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Gráfico 4: Homidícios de Mulheres em PE, 2002-2004 - Horário de Ocorrência (%) (n=311)

32,8 41,5

12,5

13,2

Madrugada

Manhã

Tarde

Noite

Mais grave ainda, 55% dos homicídios aconteceram em áreas públicas e, destes, 22,5% ocorreram em plena luz do dia. Gráfico 5: Homicídios de Mulheres em PE, 2002-2004 - Local e Hora de Ocorrência (%) (n=251) 47,8 50,0 40,0

39,8 31,0

29,7

30,0 13,3 20,0

13,0

15,9 9,4

10,0 0,0 Madrugada

Manha Espaço Privado

T arde

Noite

Espaço Público

As armas de fogo, como era de se esperar, foram os principais meios utilizados pelos agressores, sendo responsáveis por 68% de todos os casos, percentual semelhante ao encontrado por Blay (70%) em São Paulo (2003), seguidas das armas brancas, que responderam por 13% dos homicídios13. Em 8% dos casos as mulheres foram asfixiadas e em outros 8% falecerem em decorrência de espancamento, o que demonstra que, no caso da violência contra as mulheres, nem sempre as armas são o fator indispensável para que ela ocorra. No período, pode-se também observar um aumento de 46% no uso das armas de fogo, que passam de 63 para 92 casos em três anos, e do estrangulamento e/ou asfixia, que passa de 6 para 15 casos.

13

Informação constante de 341 casos.

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A maior parte das mulheres é ferida no rosto ou na cabeça e em 13% dos casos foi relatada a ocorrência de violência sexual. Vale lembrar, porém, que a violência sexual é geralmente constatada no exame de corpo de delito feito no Instituto de Medicina Legal-IML e que, na maior parte das vezes, os repórteres não esperam a conclusão dos exames para divulgar a notícia. Esses 13%, portanto, devem referir-se aos casos em que a violência sexual foi explícita. Quanto ao perfil do agressor, cerca de 95% é do sexo masculino e, diferentemente das vítimas, concentram-se nas faixas etárias acima de 20 anos. Entre as vítimas, cerca de 38% tinham menos de 20 anos. Em São Paulo, nos casos estudados por Blay (2003), a maior parte das vítimas tinha de 22 a 30 anos. Gráfico 6: Homicídios de Mulheres em PE, 2002-2004 - Idade de Vítimas (n=333) e Agressores/as (n=137) (%) 40 35 30 25 20 15 10 5 0
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