Homossexualidade e direito brasileiro

June 3, 2017 | Autor: P. Pinhal de Carlos | Categoria: Queer Studies, Sexuality, Gender and Sexuality Studies, LGBT Studies
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REVISTA CRÍTICA DO DIREITO

v. 67

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Crítica do Direito nº 5, vol. 67 São Paulo, 2015 Quadrimestral ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

Fotos da capa: Lucas Trindade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Expediente e Conselho Editorial 1. Gerência Editorial Vinícius Magalhães Pinheiro 2. Conselho Editorial Alexandre Marinho Pimenta Alysson Leandro Barbate Mascaro Celso Naoto Kashiura Jr. Clarissa Machado de Azevedo Vaz Daniel Francisco Nagao Menezes Edemilson Paraná Elcemir Paço Cunha Gabriel Tupinambá Gilberto Bercovici Irene Patrícia Nohara Joelton Nascimento José Luiz Quadros de Magalhães Júlio da Silveira Moreira Luiz Eduardo Motta Márcio Bilharinho Naves Willians Menezes da Silva Vinicius Magalhães Pinheiro 3. Traduções Carolina Viana de Barros 4. Contato Geral [email protected]

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 SUMÁRIO EDITORIAL ..................................................................................................................................................................... 10 KISS: UM ENSAIO SOBRE A TRAGÉDIA DOS VIESES (Hermenêutica Cognitiva) ............................................................. 10 (PÓS)POSITIVISMO JURÍDICO E A TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN .......................... 24 MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL E EXPANSÃO DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL ............................................................ 38 DIREITOS HUMANOS E CINEMA: uma proposta pedagógica a partir do filme A Outra História Americana ................. 51 BREVES REFLEXÕES: A RESISTÊNCIA OFERECIDA PELO GARANTISMO AOS AVANÇOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO ...................................................................................................................................................................................... 67 120 DIAS DE DIREITO: SOCIOCRÍTICA JURÍDICA A PARTIR DA FILOSOFIA LIBERTINA DE MARQUÊS DE SADE ............... 79 O DIREITO À COMUNICAÇÃO À LUZ DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO DE PAULO FREIRE ............................................... 88 DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO, CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO PENAL ............................ 98 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E OS POSITIVISMOS JURÍDICOS: A APLICAÇÃO DA LEI COMO “UMA OUTRA LEGALIDADE” .............................................................................................................................................................. 113 DO HISTÓRICO ESTATAL BRASILEIRO À REFORMA DO ESTADO: A DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO EM QUESTÃO .... 130 A JURISDIÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................................ 146 ANOTAÇÕES SOBRE TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E CRISE NA AMÉRICA LATINA: A EXPERIÊNCIA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO ..................................................................................................................................................... 156 MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO: DIREITO FUNDAMENTAL E HUMANO JUDICIÁVEL ................... 172 A COMPREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO NA OBRA INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DE KARL MARX .......................................................................................................................................................................... 194 OS MOVIMENTOS GREVISTAS NA DITADURA MILITAR: UM ESTUDO SOBRE AS GREVES NO ABC PAULISTA ............. 209 HOMOSSEXUALIDADE E DIREITO BRASILEIRO ............................................................................................................ 220 ASSESSORIAS JURÍDICAS POPULARES UNIVERSITÁRIAS E O TRABALHO VIVO ............................................................ 230 O QUINTAL DE COMBATE DO DIREITO ESTATAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DO MOVIMENTO DAS FÁBRICAS OCUPADAS .................................................................................................................................................................................... 244 POSSIBILIDADE DE LIBERTAÇÃO PELOS CAMINHOS DA AUTOGESTÃO? UMA REFLEXÃO SOBRE O COOPERATIVISMO A PARTIR DA FILOSOFIA DESCOLONIAL .......................................................................................................................... 258 O PLURALISMO JURÍDICO E AS RELAÇÕES DE PODER: CONSTRUÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA DO DIREITO............... 278 A TEORIA CRÍTICA DO VALOR E O DIREITO – UMA BREVE REFLEXÃO ......................................................................... 294 MARX, DURKHEIM E A MUDANÇA SOCIAL NA SOCIEDADE PÓS-REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: ENTRE A REALIDADE INEXORAVEL DA DISPUTA PELA RIQUEZA SOCIAL E A UTOPIA DA SOLIDARIEDADE ................................................... 309 O “ESTADO SOCIAL”, SEUS AFAZERES DOMÉSTICOS E OS INSTRUMENTOS JUDICIAIS DE CONTROLE ............................ 0 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA APLICADA AOS GRUPOS ECONÔMICOS DE FATO À LUZ DO DIREITO TRIBUTÁRIO NACIONAL. ....................................................................................................................... 0 A MODERNIDADE COMO FATOR GERADOR DA EXCLUSÃO: UM DIÁLOGO COM ENRIQUE DUSSEL ............................... 1 VALIDADE DAS LICENÇAS AMBIENTAIS: NECESSÁRIO APRIMORAMENTO EM FACE DA DINÂMICA DA ECONOMIA ...... 0 A LEI GERAL DA COPA E A NEGAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – INTERESSES ECONÔMICOS COMO FUNDAMENTOS DA CRIMINALIZAÇÃO ........................................................................................................................... 0

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O ABSTRATO E O CONCRETO NA TEORIA DO DIREITO: A QUESTÃO DO MÉTODO EM KELSEN E PACHUKANIS .............. 0 O PRELÚDIO PARA A CRIMINALIZAÇÃO DAS CULTURAS PERIFÉRICAS .......................................................................... 14 AS INSUFICIÊNCIAS DEMOCRÁTICAS E A RESPONSABILIDADE POLÍTICA COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DO PODER........................................................................................................................................................................... 32

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 EDITORIAL O Brasil continua a viver um conturbado período. O acirramento das crises econômica e política, além de uma maior polarização ideológica na população, transformam os dias em anos e qualquer previsão do amanhã, frágil. As novas formas de Estado, nesse contexto, ainda se apresentam sem contornos definidos. Todavia, é visível e preocupante um alargamento do regime de exceção jurídica, em nível ainda experimental, mas já visando a construção de novos consensos, tanto nas reformas e propostas legislativas, como no caso da tipificação ampla de terrorismo, quanto nas práticas das instâncias jurídico-repressivas e seus corriqueiros e já conhecidos absurdos. Se no discurso midiático alcançamos enfim o status da independência do jurídico em relação ao poder econômico e político, como no caso das prisões da operação lava-jato, devemos observar com bastante cautela as consequências dessa disputa interna das classes dominantes do país e seus posteriores reflexos na repressão política contra as classes populares e seus movimentos - que tendem a se ampliar e radicalizar diante da imensa crise econômica, política e social, fora a virulência das disputas de projetos alternativos. No exato momento em que escrevemos, milhares de estudantes paulistas organizam um movimento de ocupação de escolas contra o projeto do governo do estado de São Paulo. Esse evento inesperado e de força e vitalidade impressionante apenas mostram que apesar de toda a arbitrariedade e violência cinicamente assumida pelos governantes ainda se é possível furar o bloqueio no sufocante cenário político e seu jogo de cartas marcadas. Nesse contexto delicado, a REVISTA CRÍTICA DO DIREITO busca oferecer mais um vez sua colaboração com artigos que apontem para horizontes mais progressivos para o país. Através de uma pluralidade teórica visamos oferecer um espaço de diálogo e reflexão sobre fundamentos e conjunturas que dizem respeito ao direito sob uma perspectiva crítica e na esperança de que o novo que está a surgir em nosso país não seja apenas um retrocesso.

Boa leitura! Brasil, 06 dezembro de 2015 Gerência Editorial

KISS: UM ENSAIO SOBRE A TRAGÉDIA DOS VIESES (Hermenêutica Cognitiva) Taís Hemann da Rosa1

1

Taís Hemann da Rosa / Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS / Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq / Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa de Direitos Fundamentais (GEDF) / Contato: [email protected].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Resumo: Com base na pesquisa desenvolvida pelo professor Juarez Freitas, que apresenta uma nova abordagem hermenêutica para o processo de tomada de decisões, apresentando a condição humana de predisposição à automatismos mentais, objetivou-se analisar quais desvios cognitivos estiveram presentes na tragédia da Boate Kiss, ocorrida em 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul. O estudo realizado por Juarez Freitas tem por base a obra Thinking, Fast and Slow do pesquisador Daniel Kahneman, que propõe no funcionamento cerebral dois sistemas ficcionais, um primitivo, responsável pelas decisões impulsivas, e outro reflexivo, responsável pelas decisões reflexivas. Foi utilizado como fonte para a pesquisa o Inquérito Policial do caso. Assim, utilizou-se dos chamados vieses cognitivos, para analisar algumas das decisões dos envolvidos nessa tragédia. Palavras-chave: hermenêutica cognitiva; sistema primitivo e reflexivo; automatismos mentais; desvios cognitivos; caso Kiss.

Abstract: Based on the research developed by professor Juarez Freitas, which presents a new hermeneutic approach to the processes of decision taking, presenting the human condition of predisposition to mental automatisms, the objective of this study is to examine which cognitive deviations were present at Kiss Disco tragedy, which occurred on January, 27, 2013, in Santa Maria, Rio Grande do Sul. The study performed by Juarez Freitas has as basis the work Thinking, Fast and Slow from the researcher Daniel Kahneman, who proposes in brain functioning two fictional systems, a primitive, responsible for impulsive decisions, and other reflective, responsible for reflective decisions. The Police Inquiry of the case was used as source of data for this research. Thus, it was used the so-called cognitive biases, to analyze some of the decisions involved in this tragedy. Keywords: cognitive hermeneutics; primitive and reflexive systems; mental automatisms; cognitive deviations; Kiss case.

Introdução Este paper tem por escopo analisar a influência dos desvios cognitivos no desfecho trágico do incêndio na Boate Kiss, ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no qual mais de 241 pessoas perderam a vida e centenas ficaram feridas. É trazido à baila o trabalho pioneiro do Professor Juarez Freitas sobre os vieses cognitivos, desenvolvido com base na obra Thinking, Fast and Slow do pesquisador Daniel Kahneman, para analisar sua aplicação nas decisões dos envolvidos na tragédia. A esse passo, em um primeiro momento busca-se introduzir a teoria dos enviesamentos, esclarecendo sobre a proposta de funcionamento cerebral desenvolvida por Daniel Kahneman, tocante ao sistema primitivo e sistema reflexivo. Bem como elencar os principais vieses cognitivos a serem considerados na tomada de decisão conforme proposta de Juarez Freitas. Em um segundo momento, com base no Inquérito Policial sobre o caso (inquérito nº. 94/2013/150501, da 1ª Delegacia de Polícia de Santa Maria-RS), constrói-se uma narrativa sobre o Caso da Boate Kiss, objetivando esclarecer os fatos ocorridos no incidente. Posteriormente, é realizada a análise dos enviesamentos possivelmente presentes nos nas deliberações dos envolvidos na tragédia. Assim, são analisados os vieses presentes nas deliberações dos Jovens e Vítimas, frequentadores da Boate, dos Poderes Públicos (Prefeitura e Corpo de Bombeiros), dos Sócios da Boate e dos Músicos da Banda Gurizada Fandangueira, que supostamente deu início ao incêndio. Esclarece-se, desse já, que a título metodológico, para preservação das identidades dos envolvidos na tragédia, serão utilizadas apenas as iniciais de seus nomes, de modo que possibilite a conferência posterior sobre as formulações realizadas

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 neste ensaio, sem, entretanto, expor suas identidades. Cabe ressaltar ainda, que não se pretende fazer qualquer juízo de valor sobre o caso, pretende-se apenas, por meio das informações elencadas no Inquérito Policial do caso, analisar os possíveis desvios cognitivos presentes nas deliberações dos envolvidos nesta tragédia. Por fim, destina-se um espaço para a realização de síntese conclusiva sobre a abordagem. Constatando que em razão da condição humana que se mostram os desvios cognitivos, o desafio é traçar alternativas que coloquem o sistema reflexivo em constante exercício, fazendo com que as deliberações iniciais sejam refletidas em busca da melhor e mais acertada decisão. O que, no caso Kiss, poderia ter conduzido a um desfecho menos trágico. 1 NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE ENVIESAMENTO O estudo desenvolvido por Daniel Khaneman sobre o comportamento financeiro e a ciência cognitiva, vencedor do Prêmio Nobel da Economia em 2012 2 (Prêmio do Banco da Suécia em Ciências Econômicas em memória de Alfred Nobel), aponta o funcionamento de dois sistemas cerebrais. Daniel Khaneman assinala a existência do que se pode denominar de sistema primitivo (sistema I), responsável pelo pensamento automático e imediato, e o sistema reflexivo (sistema II), sendo este o responsável pelo controle cerebral racional. A perspectiva é a seguinte: o sistema I “opera automática e rapidamente, tomando a maior parte das decisões por impulso sem maior senso de controle voluntário” (KHANEMAN apud FREITAS, 2013-b, p. 227), já o sistema II “diz respeito àquelas áreas do cérebro mais novas, responsáveis pelo esforço de calcular, pela concentração, pelo monitoramento e controle das sugestões formuladas pelo sistema I” (KHANEMAN apud FREITAS, 2013-b, p. 227). A esse passo, “o sistema II responde pela deliberada atenção regulatória, apesar de, com desafortunada assiduidade, revelar-se desidioso e confiado à lei do menor esforço (KHANEMAN apud FREITAS, 2013-b, p. 227). Com base na teoria de Khaneman, o pesquisador brasileiro Juarez Freitas (2013-b) traz para o cenário pátrio a discussão sobre os reflexos do funcionamento cerebral nas decisões jurídicas. Ou seja, propõe o debate sobre a influência do sistema primitivo na deliberação, bem como o necessário exercício consciente do sistema reflexivo no momento da tomada de decisão. Esclarece-se, desde já, que de acordo com Juarez Freitas (2013-b), a referência a existência de dois sistemas cerebrais não deve ser confundida com a existência de dois sistemas em sentido cartesiano (dois mecanismos distintos e separados no cérebro), mas apenas de forma ficcional para que se compreenda o funcionamento cerebral. Nas palavras do autor: “[...] ao adotar essa distinção didática [sistemas I e II], não retomo, nem de longe, o menor vestígio do dualismo cartesiano. Reconheço, sem hesitar, que os sistemas interagem o tempo todo, entre si e com o ambiente, descartando qualquer “localizacionismo” estrito” (FREITAS, 2013-b, p. 227). Neste contexto, desvios cognitivos ou pensamentos enviesados é como podem ser denominados os processos de predisposições automáticas do cérebro na compreensão do mundo, avaliação e sopesamento, o que Juarez Freitas (2013-b) denomina também de automatismos mentais. Em outras tintas, o sistema I, responsável pelos automatismos aponta soluções que demandam baixo gasto de energia cerebral, processos automáticos que demonstram fácil, e muitas vezes falsa, coerência, sem preocupar-se com possibilidades contrárias e/ou adversárias que deveriam ser levadas em consideração no momento da tomada de decisão. Esse processo de racionalização da decisão, confrontando-a com o mundo externo aos desvios cognitivos próprios do indivíduo é encargo do sistema II, realizado por meio de um processo reflexivo. Contudo, o processo reflexivo demanda maior gasto de energia cerebral, o que faz com que o sistema I rejeite até mesmo que este seja chamado ao exercício. Nesse sentido, “como acentua, de maneira precisa, Daniel Kahneman, o sistema primitivo confunde facilidade cognitiva com verdade, abusa das heurísticas e sucumbe ao automatismo, ao substituir as questões difíceis por fáceis, além de simplesmente inventar causas” (KAHNEMAN apud FREITAS, 2013-a, p. 282). Diante dessa sistemática cerebral Juarez Freitas (2013-b) 2

Obra vencedora do Prêmio Nobel: KHANEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. Londo: Pequin Books, 2012.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 aponta a “[...] relevância de arrolar os principais vieses (biases) que comprometem a isenção e o balanceamento da interpretação jurídica, selecionados entre os mais frequentes” (FREITAS, 2013-b, p. 234). Assim, o autor propõe a análise de pelo menos sete vieses no momento da tomada de decisão, quais sejam: o viés da confirmação, o viés da falsa coerência, o viés da aversão à perda, o viés do “status quo”, o viés do enquadramento, o viés do otimismo excessivo e o viés do presente (FREITAS, 2013-b). Resumidamente, tem-se como viés da confirmação “[...] a predisposição tendenciosa de optar por dados e informações que tão somente confirmem as crenças e impressões preliminares, sem passar pelo crivo apurado do sistema reflexivo” (FREITAS, 2013-a, p. 284). Segundo o autor, “[o] cérebro, ao pretender confirmar a qualquer custo, funciona rápido demais e se fecha a opções distintas. Nesse terreno, o melhor a fazer é rever assiduamente as inclinações e os precedentes, mantendo a mente o mais aberta possível” (FREITAS, 2013-b, p. 233). O viés da falsa coerência ou da certeza sem prova é “a predisposição de negar a (incômoda) dúvida e de suprimir artificialmente a ambigüidade moral (não menos incômoda), inventando narrativas coerentes, [...] suprimindo ambigüidades [...], com base em supostas vontades claras e peremptórias da lei ou do legislador original” (FREITAS, 2013-b, p. 233). O viés da aversão a perda, por sua vez, é aquele que faz co que o indivíduo valorize mais as perdas do que os ganhos, inviabilizando transformações positivas por aversão a possibilidade de perda (FREITAS, 2013-b). Se expressa pela propensão a valorização exagerada do que já se possui em detrimento de um possível risco. Já o viés do “status quo” é “a predisposição de manter as escolhas feitas, ainda que disfuncionais, anacrônicas e obsoletas” (FREITAS, 2013-b, p. 234). O viés do enquadramento é a predisposição do indivíduo de interpretar de acordo com o modo pelo qual a questão é enquadrada. Ou seja, o indivíduo deixa de levar em consideração se um enquadramento diverso sobre determinada questão conduziria a uma resposta mais plausível (FREITAS, 2013-b). O viés do otimismo excessivo ou da confiança extremada é aquele que “[...] guarda conexão com previsões exageradamente seguras (e negligentes), ligadas a erros nem sempre inocentes” (FREITAS, 2013-b, p. 236). Para Juarez Freitas a solução (2013-b), nesse caso, “é adotar apenas dose moderada de otimismo, porque o excesso de confiança distorce os julgamentos e afugenta os cuidados inerentes à prevenção e à precaução” (p. 236). Por fim, o viés do presente é aquele que tende a “[...] buscar recompensas imediatas, sem perguntar sobre os efeitos a longo prazo, causando prejuízos de toda ordem [...], por falhas nas escolhas intertemporais” (FREITAS, 2013b, p. 236). É a partir da existência de todos estes vieses que influenciam o individuo na tomada de decisão que se passará a análise sobre a possível influência de alguns destes vieses no caso trágico da Boate Kiss. Analisar-se-á os vieses que impossibilitaram o reconhecimento, tanto pelos Poderes Públicos e pelos Sócios, quanto pelos próprios Jovens (vítimas), de uma tragédia que se anunciava. 2 O CASO DA BOATE KISS Aguardar por horas e horas em uma fila que descia uma longa lomba na Rua dos Andradas, cujo desconforto passava despercebido, era comum na cidade de Santa Maria (RS) – já com as melhores roupas, o melhor penteado, o melhor sapato, maquiagem para as meninas e muito perfume para ambos os sexos. Sob a luz da lua e sob o breu da noite, incontáveis jovens esperaram ter como triunfo a entrada na Boate Kiss, sem dúvida, muito animada e que irradiava a alegria juvenil. Esse intróito lúdico esconde uma tragédia que, se anunciada, os pensamentos enviesados não os permitiram ouvir. Como em outros tantos bares e casas noturnas da cidade a preocupação foi sempre a diversão. O entusiasmo da juventude aparecia não permitir mensurar os possíveis riscos escondidos por detrás de uma estrutura aparentemente segura. A preocupação não se desviava da diversão para os riscos, para a segurança do local, para sua manutenção. Não havia um plano “B”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Foi, possivelmente, em um contexto como o acima narrado que a tragédia do dia 27 de janeiro de 2013 teve seu desenlace no cenário “Kiss”. Por volta das três horas da madrugada, iniciou-se um pequeno foco de incêndio na Boate que ao se propagar por material isolante acústico, altamente tóxico quando em contato com o fogo, resultou na morte de 241 (duzentas e quarenta e uma) pessoas por asfixia e deixou centenas de feridos 3. Narra o inquérito policial4 (p. 88), que havia, naquela noite, por volta de 1000 (mil) pessoas no interior da Boate, quando sua capacidade máxima era de 769 (setecentos e sessenta e nove) pessoas, fator que muito provavelmente colaborou para o desfecho trágico do ocorrido. A banda Gurizada Fandangueira se apresentava, era certamente o ponto alto da festa, tudo estava dando certo. Era chegada à hora do show com fogos de artifício da banda, prática relatada como corriqueira5 em seus shows. Porém, na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013, o resultado do show de fogos não foi o esperado. Ao que tudo indica um dos integrantes da banda 6, ao levantar o equipamento, já aceso, deu início à tragédia que marcou o “Coração do Rio Grande 7”. Uma faísca do artifício alcançou o teto da Boate que era revestido com uma espuma altamente tóxica e com alto potencial de propagação de fogo quando incendiada, o que provocou um foco de incêndio imediato8. A tentativa de conter o fogo, com o uso de extintores de incêndio foi em vão por dois motivos centrais. Primeiro, o extintor que havia no local não funcionou. Segundo, porque não havia extintores suficientes ao alcance 9. Assim, a multidão, já em pânico devido à escuridão provocada pela fumaça, começou a buscar a saída. Mais um problema. Aquela boate que antes despertava o interesse por parecer um “labirinto”, escuro e com luzes a piscar, que tanto agradava em seu estilo moderno, agora se convertia no “labirinto dos horrores”, no “labirinto do caminho infindável”. Naquele lugar, naquele 3

“A questão da espuma de poliuretano neste Inquérito Policial foi fator determinante no resultado, primeiro porque é combustível, altamente inflamável e tóxica. Segundo porque da sua queima foi produzido gás cianídrico ou cianeto, o qual agindo em sinergia com o monóxido de carbono, foi o responsável pela asfixia e morte de 241 pessoas, além de ter provocado lesões em centenas de outras” (Trecho retirado do Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 33) [grifos do autor]. 4 Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, da 1ª Delegacia de Polícia de Santa Maria-RS. 5 “[...] L. alegou que em todos os shows da banda Gurizada Fandangueira eram realizadas apresentações com fogos de artifício nos moldes do feito na Kiss e que nunca havia acontecido qualquer problema. Por isso, já tinha certas habilidades no manuseio, fato este efetivamente confirmado por diversas testemunhas que alegam que presenciaram shows desta banda com uso de fogos de artifício em diversos locais (Kiss, Absinto, Centro de Eventos da UFSM, Ballare, entre outros). Tal dado demonstra que a Banda GURIZADA FANDANGUEIRA, há muito tempo, vinha expondo seu público a um grave perigo iminente, pois poderia ter acontecido o incêndio em qualquer local que também não oferecesse segurança para os frequentadores, tendo em vista que em todos os shows eram utilizados fogos de artifício inadequados a ambientes internos” (Trecho retirado do Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 17). 6 “[...] há 98 testemunhas entre vítimas e funcionários da Boate KISS que presenciaram o exato momento em que o vocalista M. cantava e pulava com o objeto direcionado ao teto do palco, e que, neste momento, o fogo ou as faíscas produzidas pelo fogo de artifício tocaram a espuma do palco iniciando o incêndio [...] (Trecho retirado do Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 19). 7 Nome pelo qual é conhecida a cidade universitária de Santa Maria, que em razão de sua localização no centro do Estado do Rio Grande do Sul e de seu conhecido aconchego e calor juvenil, se expressa como o coração do Rio Grande. 8 “A investigação concluiu que o fogo iniciou-se por uma centelha de um fogo de artifício utilizado pela Banda Gurizada Fandangueira. O produtor da banda, L. A. B. L., responsável pelo fogo de artifício, colocou uma luva na mão no vocalista da banda, M. J. S., na qual estava acoplado o objeto. Posteriormente, L. acionou o referido fogo de artifício, mediante controle remoto. O vocalista da banda levantou a mão em direção ao teto e uma chama ou faísca tocou o forro, o qual possuía isolamento acústico de esponja, material altamente inflamável (poliuretano). Assim, poucos segundos depois a espuma pegou fogo, gerando uma fumaça preta e tóxica que se alastrou por toda a boate, circunstância comprovada pela prova testemunhal, pericial e por um vídeo de um minuto e vinte segundos, (referido no laudo pericial), extraído de um telefone celular pertencente a uma pessoa que se encontrava no interior da boate, fazendo com que muitas pessoas desmaiassem tão logo aspiraram o ar impregnado da fumaça originada da queima” (Trecho retirado do Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 02-03). 9 “E. confirmou que era responsável pelo funcionamento da boate como um todo, [...], pela retirada dos extintores de incêndio dos locais a eles destinados, sob a alegação de que estragavam o visual; pela falta de manutenção nesses mesmos extintores; pela permissão para que fossem utilizados fogos de artifício no ambiente fechado (o que, aliás, ele próprio utilizava quando sua banda, Projeto Pantana, fazia shows no local)”. [...]. (Trecho retirado do Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 24).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 momento de pânico, é muito provável que qualquer alternativa, qualquer porta, se convertesse no caminho desejado. Porém, a porta de saída era uma só, difícil de ser encontrada em meio ao pânico e a multidão10. Assim, muitos dos jovens foram encontrados mortos nos banheiros, amontoados, uma cena que parece não merecer ser narrada. Certamente, mas narrar esta cena é tornar esta narrativa “palpável”, imaginável e real. É também, dimensionar o tamanho e o alcance desta tragédia que deixou mais de 241 mortos 11 e centenas de feridos. Em 02 de abril de 2013, o Ministério Público Estadual de Santa Maria-RS fez a entrega da denúncia do caso Kiss. Foram denunciadas oito pessoas, dentre elas os sócios da boate E. S. e M. H., os músicos L. B. L. e M. J. S., todos por homicídio doloso qualificado. Os bombeiros G. R. P. e R. S. B., por fraude processual. E o contador V. A. P. e o ex-sócio da Kiss E. C. U., por falso testemunho. O caso ainda tramita na 1ª Vara Criminal do Foro de Santa Maria - RS. 3 ANÁLISE DOS ENVIESAMENTOS 3.1 Dos Jovens Pelo número expressivo de jovens presentes na Boate Kiss no dia 27 de janeiro de 2013, aproximadamente 1000 (mil) pessoas segundo o Inquérito Policial12, possivelmente, ninguém questionava a segurança do local. Arguições básicas como: Se existiam extintores? Se eles funcionavam? De qual o material era feito o revestimento acústico do local? Se haviam saídas de emergência e se elas eram suficientes? Se os corredores escuros seriam tão legais quanto pareciam inicialmente em caso de pânico? Ou ainda, diversos outros questionamentos que parecem triviais, como a existência de alvará de funcionamento, por exemplo. Provavelmente, nada disso pareceu importante aos jovens naquela noite, pois, nada iria dar errado! Esse é o reflexo do viés do otimismo excessivo, na tomada de decisão. Aquelas pessoas que se dirigiram a Boate Kiss na noite da tragédia, muito provavelmente não levantaram essas questões por ter a plena confiança de que nada iria acontecer além do que era previsto, apenas uma festa como tantas outras, não havia com o que se preocupar. Essa narrativa é evidenciada com a realização da análise dos depoimentos dos sobreviventes da tragédia, em que diversos deles13 afirmam que já haviam presenciado shows pirotécnicos, realizados em ambientes fechados, em outras apresentações da Banda. Esta situação, sem 10

“O pânico tomou conta dos indivíduos que estavam na boate, fazendo com que as pessoas se desesperassem e tentassem deixar o local, mas a Boate Kiss possuía apenas uma saída que dava acesso ao seu exterior. A referida saída foi absolutamente insuficiente para dar vazão à quantidade de pessoas que se amontoaram na tentativa desesperada de deixar o local, sendo que muitas delas morreram buscando a saída” (Trecho retirado do Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 03). 11 M. W. V., 24 anos, foi à vítima número 242 desta tragédia, faleceu quase quatro meses após a tragédia em decorrência de pneumonia consequente das queimaduras. 12 “O Anexo I, item I, do Relatório (I) retrata que 125 pessoas afirmam que certamente havia mais de 1000 pessoas no local e outras 17 dizem que havia entre 1000 e 2000 pessoas, conforme Anexo I, item II, do Relatório, fato que também pode ser verificado pelos documentos encontrados no interior da boate, depois do sinistro, conforme Arrecadação anexada aos autos, que apontam que havia mais de 1000 pessoas no locus delicti no momento do incêndio, fato corroborado pelos depoimentos dos funcionários da boate” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 90). 13 Depoimentos de sobreviventes da tragédia: “J. R. (19/02): p. 2410. Presenciou o show com artefatos pirotécnicos na Boate Kiss na data do sinistro e informou que já havia visto o mesmo show no Centro de Eventos da UFSM. R. L. A. (20/02): p. 2550. Aduziu que estava na Boate Kiss na data dos fatos e presenciou o show pirotécnico realizado pela Banda Gurizada Fandangueira. Informou que já foi em outros shows desta banda com a utilização de materiais pirotécnicos no Centro de Eventos da UFSM. M. S. A. (20/02): p. 2555. Asseverou que presenciou o show com artefatos pirotécnicos na Boate Kiss na data do sinistro e esclareceu que já havia visto o mesmo show no Centro de Eventos da UFSM. T. S. P. (20/02): p. 2578. Estava na Boate Kiss na data dos fatos e assistiu ao show pirotécnico realizado pela Banda Gurizada Fandangueira. Declinou que já foi em outras apresentações desta banda com a utilização de materiais pirotécnicos na Boate Ballare. M. A. F. (27/02): p. 3191. Presenciou o show com artefatos pirotécnicos na Boate Kiss na data do sinistro, e também informou que já havia visto o mesmo show no Centro de Eventos da UFSM” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 15).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 dúvida, demonstra o viés do otimismo excessivo atuando de forma negligente, ofuscando a preocupação necessária e indispensável com a segurança. É comum ver e ouvir os jovens inflarem o peito e usar a expressão: “a vida é breve!”, certamente a maioria das pessoas já ouviu tal expressão, e, se ainda não ouviu possivelmente um dia irá ouvir. O uso dessa expressão é reflexo do viés do presente, que notadamente nos indivíduos com menos idade é mais aguçado. A diversão, recompensa imediata, é o que se busca. Desse modo, plausível que nessa tragédia, o viés do presente tenha irradiado efeitos fazendo com que a busca pela recompensa imediata inibisse qualquer pensamento que conduzisse a uma decisão contrária a entrada na Boate. No estilo juvenil “não havia com o que esquentar”, “a noite seria ótima”. Não foram levadas em consideração alternativas contrárias que levassem ao adiamento da diversão em prol da segurança. É provável que o viés do enquadramento também tenha colaborado para o desfecho trágico do Caso Kiss. Ou seja, os casos de tragédias ocorridas em Boates, ou espaços de eventos fechados, em decorrência da falta de estratégias para momentos emergência (especialmente em casos de incêndio), de nada importaram. Pois, afinal, eram alguns poucos casos14 (enquadramento) em uma imensidão inumerável de Boates, Bares e Casas Noturnas que realizam festas todos os dias e nada de trágico ocorre. A interpretação com efetiva colaboração do sistema cerebral reflexivo, por sua vez, poderia conduzir a decisão absolutamente oposta. Ou seja, a deliberação seria a de não entrar em um local superlotado, em que se desconhecia a existência de saídas de emergência, levando em consideração as tantas tragédias que já ocorreram em contextos similares. Nesse contexto, infere-se que se o sistema cerebral reflexivo dessas pessoas, responsável pelas apreciações racionais na tomada de decisão tivesse sido acionado de forma consciente, possibilitaria uma reavaliação das decisões automáticas. Como consequência, possivelmente, o número de indivíduos presentes na Boate Kiss, naquela noite, seria bastante reduzido, o que provavelmente conduziria, no mínimo, a um número mais seguro de pessoas no interior da Casa noturna, número que poderia ser evacuado de forma mais rápida, reduzindo, assim, o número total de mortos e feridos nesse episódio trágico. Percebe-se que ignorar a presença dos automatismos mentais pode guiar por um caminho obscuro, que negligencia consequências de fácil constatação se posto em exercício o sistema cerebral reflexivo. A gravidade da falta de conscientização do indivíduo sobre a existência de pensamentos enviesados é evidente quando posta em prova em uma tragédia como a da Boate Kiss. A alternativa é, portanto, uma vigilância aos hábitos mentais (FREITAS, 2013-b), de modo a intensificar o exercício do sistema reflexivo no momento da tomada de decisões. 3.2 Do Poder Público Na atuação do Corpo de Bombeiros, responsável pela fiscalização e concessão de alvará de prevenção de incêndio, percebe-se a presença do tanto do viés do “status quoo”, quanto o viés do presente. Revela o Inquérito Policial que o Corpo de Bombeiros da cidade de Santa Maria, assim como todos dos demais Corpos de Bombeiros do Estado do Rio Grande do Sul, com 14

Em dezembro de 1993, um incêndio na discoteca Kheyvis, em Buenos Aires, matou 17 jovens; Em abril de 1997, incêndio em casa noturna em Portugal matou 12 pessoas; Em 1998, fogo em boate na Suécia matou 60 pessoas; Em 1999, incêndio destruiu a casa noturna Chaos, que ficava no Itaim-Bibi, São Paulo; Em outubro de 2000, no México, mais de 20 pessoas morreram em discoteca que não possuía saídas suficientes; Em dezembro de 2000, na China, 309 pessoas morreram em uma casa noturna; Em 2001, seis pessoas morreram e outras ficaram feridas em incêndio na boate Canecão Mineiro (antigo Trem Caipira), em Belo Horizonte, após show pirotécnico; Em novembro de 2001, fogos de artifício disparados durante um show de samba provocaram um incêndio que matou 6 pessoas na sala Caneco Mineiro, na cidade de Belo Horizonte - que não tinha saídas de emergência adequadas. Centenas de pessoas ficaram feridas; Em julho de 2002 um incêndio matou 24 pessoas em Casa noturna no Peru; Em julho de 2002, um incêndio matou 28 pessoas na discoteca Utopía, do centro comercial Jockey Plaza, em Lima; Em dezembro de 2002, na Venezuela, um incêndio matou cerca de 50 pessoas no clube La Goajira, em Caracas; Em dezembro de 2004, um incêndio matou 194 pessoas e deixou cerca de 1.400 feridos na discoteca República Cromañón, em Buenos Aires, Argentina; Em abril de 2008 em Quito, no Equador, 13 pessoas morreram na discoteca Factory.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 exceção ao da Cidade de Porto Alegre, adotava um Sistema Integrado de Prevenção a Incêndio simplificado15. Tal sistema vislumbra, aparentemente, a possibilidade da concessão de um maior número de alvarás aos estabelecimentos em detrimento de uma maior qualidade/segurança dos estabelecimentos que recebiam esses alvarás. Segundo o inquérito, o sistema simplificado facilitava até mesmo que esses alvarás fossem concedidos em desconformidade com a legislação vigente. Durante o inquérito do Caso Kiss foram ouvidos diversos especialistas na área de prevenção de incêndio, os quais na maioria afirmam que o sistema de prevenção de incêndios simplificado (SIG-PI) é deficiente no que se propõe, pois não privilegia a segurança, mas a facilitação na concessão do alvará16. A partir destas constatações é patente que o viés do “status quoo” conduziu a reiterada utilização de um sistema de prevenção de incêndios simplificado e nitidamente de menor qualidade, disfuncional, obsoleto. O viés do presente também se mostra evidente nessa avaliação, pois a preocupação com a arrecadação, que se traduz na recompensa imediata, em menor tempo, deixou de lado um compromisso com a segurança, que apresenta reflexos (recompensa traduzida na efetiva segurança da população) apenas em longo prazo. O viés do presente conduz a deliberações não sustentáveis, exatamente o que emerge na escolha pelo Corpo de Bombeiros de um sistema que não se preocupa com a segurança, com a preservação da própria vida humana. Tocante a Prefeitura Municipal de Santa Maria, responsável pela concessão do alvará de localização, é possível perceber a presença do viés da aversão à perda e o otimismo excessivo. O raciocínio é o seguinte: - uma Boate como a Kiss fechada deixaria de arrecadar uma quantia significativa para o Município, e, se forçada a adotar as medidas necessárias para a segurança poderia acabar por encerrar as atividades. Apurou-se no inquérito policial que o Poder Público Municipal concedeu alvará de localização mesmo sem o preenchimento dos requisitos necessários, permitindo o funcionamento da Boate mesmo sem segurança para o público. Ou seja, o viés da aversão à perda manifesta-se “[...] na inércia que deixa de tomar providências reformistas, na ânsia simplista de tudo preservar” (FREITAS, 2013-b, p. 234), o que se buscava preservar aqui era a fonte de arrecadação que representava a Boate. Assim, mais uma vez, é possível constatar que a influência dos vieses na tomada de decisão pode ofuscar os perigos e

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“Resta evidente que a adoção do SIG-PI pelos Corpos de Bombeiros de quase a totalidade do Estado do RS, excetuando-se apenas, Porto Alegre, deixou em segundo plano a questão que deveria ser a mais importante a ser considerada, ou seja, a efetiva segurança proporcionada ao público nos locais submetidos à análise e chancela do Poder Público. A concessão de alvará de proteção contra incêndio não poderia jamais ser um mero documento, obtido mediante o pagamento de taxas, sem representar, de fato, aquilo que dele se depreende. O SIG-PI privilegiou a possibilidade de se atingir um número maior de vistorias, em virtude de ser um sistema simplificado, em detrimento de um controle verdadeiro e seguro dos itens de segurança nos locais vistoriados. As falhas do referido sistema começam com a eliminação da necessidade de um responsável técnico, ou seja, pessoa com formação própria na área de engenharia ou arquitetura, com a consequente confecção de ART, desconsiderando locais onde há aglomeração de pessoas ou que contenham outras peculiaridades relativas à segurança da população. Ao contrário do pretendido por essa sistemática simplificada, o maior número de vistorias não significa locais mais seguros; muito pelo contrário, pois é nítida a opção pela quantidade de alvarás em detrimento de condições mínimas de efetiva segurança técnica” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 41-42) [grifos do autor]. 16 “C. A. T. (05/02 e 02/03): p. 1299/3454. Disse que foi bombeiro militar no RS de 1989 a 1999, ano em que pediu licença para tratar de interesse pessoal. [...]. Se existe legislação que embase a aplicação do SIG-PI, não é do seu conhecimento. Afirma que o sistema é totalmente falho. [...]; J. M. G. E. (21/02): p. 2750. Engenheira há 23 anos e há 20 anos proprietária da MARCA ENGENHARIA, empresa dedicada ao ramo de projetos de prevenção contra incêndios e também execução de projetos. [...]. Conforme seu relato, ‘embora o sistema SIG-PI esteja adequado à legislação, sob o ponto de vista da prevenção efetiva de incêndio, ele deixa a desejar, pois ele exige que o vistoriador tenha um grande conhecimento técnico especializado na legislação, deixando de lado a participação de um profissional especializado que no caso seria o engenheiro responsável por um Projeto’. [...] reafirma que o SIGPI é temerário, pois ele não visa a segurança, é um programa que desburocratizou em prol da arrecadação [...]; E. T. M. (06/03): p. 3614. Engenheira Civil, Secretária da Inspetoria do CREA-RS de Santa MariaRS e Secretária Adjunta da Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária de Santa Maria-RS. [...]. [Afirmou que] o SIG-PI é uma receita de bolo simplificada, pois é lacunoso e impreciso, já que os bombeiros primaram pela agilidade e não pela segurança nas edificações” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 39-40) [grifos do autor].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 consequências danosas da deliberação, fazendo com sejam valorados de forma desigual os ganhos que aparentemente a decisão traz. Dessa análise pode-se observar também a presença do viés do otimismo na ação do Poder Público Municipal. Tal observação se traduz na confiança de que, mesmo ausentes os requisitos de segurança obrigatórios para a concessão do alvará de localização, nenhum evento danoso aconteceria. A confiança mostra-se tamanha que os alvarás de localização foram concedidos, mesmo estando a Boate em desconformidade com a lei durante um período aproximado de três anos, conforme informações levantadas durante o Inquérito Policial 17. Ainda na análise dos vieses presentes nas decisões tomadas pelo Poder Público Municipal, com relação à falha na atividade fiscalizatória por parte da Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana, pode-se perceber a presença do viés do enquadramento e da falsa coerência. Ou seja, o Secretário de Controle e Mobilidade Urbana na época do ocorrido, afirmou em seu depoimento que ao realizar vistoria na Boate constatou que o alvará sanitário e dos bombeiros estavam vencidos. Contudo, não era sua função fiscalizar tais alvarás, portanto, apenas registrou no boletim de vistoria o fato, afirmando ainda, que não comunicou os órgãos emissores de tais alvarás, pois não era sua função 18. Nesse entrecho, o viés do enquadramento faz com que o interprete analise sua decisão do modo que lhe parece mais aceitável, mais acertado, distorcendo a realidade e negando a escolha contrária. O viés da falsa coerência, por sua vez, faz com que o interprete esteja predisposto a negar a incômoda dúvida, suprimindo a ambiguidade moral e inventando uma narrativa coerente (FREITAS, 2013-b). Infere-se, que a presença desses vieses, na situação narrada, possivelmente, impediram o Secretário Municipal de avaliar os possíveis danos decorrentes de suas deliberações. Conduzindo o mesmo a buscar narrativas que lhe tragam conforto para a consciência, que lhe confirmem suas predisposições mentais. Uma decisão baseada no sistema reflexivo poderia ter levado a análise prévia das possíveis consequências danosas de uma deliberação descomprometida, fazendo com que o interprete (Secretário Municipal) adotasse posição enérgica em relação o fato, avisando os órgãos competentes sobre as irregularidades que encontrou, visando a proteção da população em relação a um possível evento danoso. Nesse ínterim, verifica-se que a atuação impulsiva do sistema primitivo, que não sopesa os ganhos e perdas (a pequeno, médio e longo prazo) das escolhas feitas, conduz o humano por caminhos de aparente imprevisão. Contudo, o exercício do sistema reflexivo, proporciona o efeito contrário, fazendo com que decisões alternativas sejam examinadas de modo a avaliar qual decisão apresenta maiores ganhos (seja a pequeno, médio ou longo prazo), bem como menores perdas em caso de eventos não desejados, mas que se reflitam em consequências para a decisão escolhida. 3.3 Dos Sócios

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“No caso vertente verifica-se que o Poder Público Municipal concedeu indevidamente o alvará de localização, tendo em vista que, primeiramente, não havia alvará sanitário válido no momento da expedição do Alvará de Localização, conforme exigido pelo decreto referido; segundo, pois o projeto arquitetônico apresentava 29 irregularidades (p. 4008) e não havia sido aprovado, situação que perdurava até o dia do trágico evento, quando inadmissivelmente, após mais de três anos de funcionamento da boate, ainda não havia projeto arquitetônico aprovado. Dessa forma foi viabilizado o funcionamento indevido do estabelecimento, sem qualquer segurança para os freqüentadores” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 65) [grifos do autor]. 18 “M. C. P. (20/02): p. 2695. Secretário de Controle Mobilidade Urbana desde abril de 2012. Foi Secretário Adjunto da Pasta desde dezembro de 2011. Disse não competir aos fiscais da Secretaria de Controle e Mobilidade Urbana verificar a validade dos alvarás sanitário e de prevenção a incêndio, sendo que tais atribuições competem, respectivamente, à Secretaria de Saúde e aos Bombeiros. Em relação à boate KISS, durante sua gestão como Secretário, ocorreu somente uma fiscalização, no mês de abril de 2012, tendo conhecimento de que, naquela ocasião, o fiscal constatou que o tributo estava em dia. Naquela oportunidade, foi certificado pelo fiscal, no boletim de vistoria, que o alvará sanitário estava vencido e o alvará dos bombeiros estava por vencer em poucos meses. Reiterou que caso o fiscal constate que algum dos alvarás está vencido, não tem obrigação legal de comunicar os órgãos emissores dos alvarás” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 68) [grifos do autor].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Diversos são os vieses que possivelmente estiveram presentes nas deliberações dos sócios da Boate Kiss e que contribuíram para o desfecho trágico do incêndio do dia 27 de janeiro de 2013. Em um primeiro momento pode-se apontar o viés do otimismo excessivo, revelado na decisão dos sócios de optar por um material de revestimento acústico de menor preço sem se preocupar com a qualidade ou com os riscos que o material oferecia, bem como na opção pela colocação de barras de contenção no interior da Boate, mesmo sabendo que as mesmas seriam reprovadas pelos Bombeiros19. É provável que na visão enviesada dos sócios, esses jamais imaginassem que algum evento imprevisível e danoso pudesse ocorrer e que, desse modo, não consideravam necessário gastar com extintores, material de revestimento acústico mais adequado ou abster-se da inclusão de barras de contenção em razão de serem óbices à saída da Boate em caso de emergência. O que emerge nessa situação é mais uma vez a ausência do exercício do sistema reflexivo no processo de tomada de decisão, o que não permitiu a avaliação básica de que um evento inesperado, como foi o caso do incêndio, poderia trazer consequências irremediáveis. O viés do presente também é evidente na análise das decisões dos sócios. O provável raciocínio realizado foi de que gastos com um material de maior qualidade (não tóxico) para o revestimento acústico da Boate não compensavam, pois se perderia dinheiro em um primeiro momento, não haveria lucro imediato (recompensa imediata) decorrente de investimento em infraestrutura não visualizada pelo público. Assim, mesmo advertido sobre a inadequação da utilização da espuma de borracha (altamente tóxica) como isolante acústico, o sócio responsável pelas reformas na Boate insistiu na colocação da mesma 20. O que se percebe é o viés do presente fazendo com que a deliberação seja baseada apenas nos efeitos imediatos, impedindo uma escolha que vislumbre os ganhos à longo prazo. Nesse caso, o ganho à longo prazo se refletiria na própria viabilidade de funcionamento da Boate. Uma decisão reflexiva conduziria o interprete (sócio) a análise da sustentabilidade de sua escolha, dos possíveis reflexos produzidos pela decisão, sejam eles positivos ou negativos, fazendo com que um perigo iminente, como o que representa a utilização de um material altamente tóxico, jamais fosse ignorado. O viés do presente manifesta-se também na decisão dos sócios em trabalhar com superlotação da Casa 21, visando lucro (recompensa imediata), sem cogitar possível desfecho negativo dessa atitude. Constata-se que mais uma vez a inabilidade na utilização do sistema reflexivo conduziu a uma decisão pouco prudente, que no caso específico da tragédia da Boate Kiss, produziu consequências catastróficas.

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“R. C. P. (01/02): p. 1129-1333. Asseverou que era encarregado de pessoal, dava orientações para o devido andamento das festas, sendo o braço direito de KIKO. [...]. Afirmou que colocaram várias barras de ferro para organizar o pagamento nos caixas e, também, logo após as portas de entrada. Enfatizou que assim como E. e M., tinha convicção de que os bombeiros reprovariam as grades existentes na KISS. [...]. Anteriormente havia uma espuma preta na parede que fica a esquerda de quem entra no estabelecimento, a qual adquiriu em uma loja de colchões desta cidade, alegando que KIKO ordenou que comprasse a espuma por orientação do Engenheiro P.. Como o problema acústico persistiu, retiraram a espuma e construíram uma parede de pedra. Como a espuma estava sem uso resolveram colocá-la no teto localizado acima do palco, o que foi feito pelos próprios funcionários da KISS, com o fito de conter o problema acústico. Referiu acreditar que após isso a KISS não foi fiscalizada por autoridades competentes. Não existia contato via rádio entre os seguranças e os funcionários da KISS não tinham treinamento para incêndio” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 21-22) [grifos do autor]. 20 “M. A. T. P. (04/02): p. 1243. Asseverou que discutiu com E. quais as providências que deveriam ser tomadas para acabar com os ruídos sonoros. E. lhe comunicou que iria colocar espuma de borracha. Desaprovou tal pretensão de E., pois é engenheiro civil, porque a referida espuma de borracha é totalmente inadequada para isolamento acústico, ou seja, o material é indicado apenas para acondicionamento acústico e não para isolamento acústico. Nesse contexto, sugeriu a E. a construção de uma parede de alvenaria atrás do palco” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 31) [grifos do autor]. 21 “A superlotação ficou evidenciada pelo depoimento do próprio E. [sócio da Boate], o qual, ao ser interrogado, afirmou que a lotação máxima seria de 1000 pessoas e anteriormente, em entrevista a jornal, declarou que a casa comportava 1400 pessoas. Essa circunstância é ainda corroborada por farta prova testemunhal coligida aos autos” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 89) [grifos do autor].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Conforme o Inquérito Policial, os sócios admitiam shows pirotécnicos no interior da Casa Noturna22, sendo que, até mesmo, a banda de um dos sócios fazia uso de artifícios pirotécnicos em shows que realizava na Boate. Nesse contexto, verifica-se a presença viés do otimismo excessivo, que conduzia a falsa sensação de que não havia com o que se preocupar. Um dos efeitos do otimismo excessivo é que este torna nebulosos perigos iminentes, criando a falsa sensação de que nada dará errado, e, portanto, não precisam ser adotadas medidas de seguranças básicas. A falsa sensação de segurança traz imenso conforto ao ser humano, fazendo com que este desvie sua atenção de preocupações até mesmo óbvias. Ou seja, uma decisão com exercício do sistema reflexivo, não ignoraria a o perigo que representa o uso de um mecanismo que utiliza fogo em um ambiente superlotado e fechado. Contudo, essa análise, pelo menos aparentemente, não era realizada pelos sócios da Boate que permitiam constantemente a utilização de fogos de artifício para ambientes externos no interior da Boate Kiss. Dessa análise é possível concluir, de acordo com o que propõe o ilustre Professor Juarez Freitas, “que, seja por abuso, seja por omissão, entendo injustificável permitir, sem veto, a influência exacerbada do sistema impulsivo [primitivo], que se aproveita da eventual frouxidão do sistema reflexivo” (2013-b, p. 236-237). Em outras tintas, é vital ao ser humano que aprenda a exigir e fiscalizar o exercício do sistema reflexivo cerebral no momento da tomada de decisões, pois tal exercício contribui para a diminuição de reflexos negativos e inesperados de deliberações não refletidas. No caso Kiss, em especial, poderia evitar ou diminuir a dimensão dessa tragédia. 3.4 Dos Músicos Mais uma vez, o lucro. Optar por fogos de artifícios inadequados para ambientes fechados, que oferecem riscos iminentes. Porém, tendo a crença de que nada iria acontecer, de que tudo iria dar certo. Tal narrativa revela tanto o viés do otimismo excessivo, quanto o viés do presente e o da aversão à perda. A expressão do viés do otimismo excessivo torna-se evidente na alegação do músico da Banda Gurizada Fandangueira, acusado de erguer o fogo de artifício que originou o incêndio, L. B. L.. O músico afirmou que em todos os shows da banda eram realizadas apresentações com fogos de artifício nos moldes do feito na Kiss e que nunca havia acontecido qualquer problema (Inquérito Policial, p.17). O que se percebe aqui, é que se o sistema reflexivo de L. estivesse em exercício crítico de sua avaliação sobre a inexistência de perigo no uso de fogos de artifício impróprios para ambientes internos, a decisão poderia ser contrária. A reflexão conduziria ao reconhecimento do perigo iminente ao qual a Banda estava expondo seus fãs. Pois, não haveria conclusão mais lógica quanto àquela que constasse que o uso de um equipamento de forma contrária as normas de segurança expressas se converteria em potencial risco de que o resultado não fosse o esperado. Ou seja, quando se está sob o efeito do viés do otimismo excessivo conclusões óbvias são distorcidas/desconsideradas ou tornam-se nebulosas. Nas palavras de Juarez Freitas (2013-b), “[...] o excesso de confiança distorce os julgamentos e afugenta os cuidados inerentes à prevenção e à precaução” (p.236). Ainda em consonância com o alegado pelo músico L. B. L., por várias vezes esses fogos já haviam sido utilizados em shows da Banda, o que reforçava sua tese de que não havia o que temer. Nesse entrecho, constata-se o viés do enquadramento. No qual L. busca reforçar sua tese inicial, evidente e comprovadamente equivocada, de que não havia o que temer. A conclusão do 22

“E. confirmou que era responsável pelo funcionamento da boate como um todo, e, assim, foi o responsável pela instalação da espuma no palco; pela colocação de guarda-corpos e corrimãos que dificultaram a saída das pessoas daquele ambiente; pelo excesso de público, não somente naquela noite, como em grande parte dos eventos ali promovidos; pela retirada dos extintores de incêndio dos locais a eles destinados, sob a alegação de que estragavam o visual; pela falta de manutenção nesses mesmos extintores; pela permissão para que fossem utilizados fogos de artifício no ambiente fechado (o que, aliás, ele próprio utilizava quando sua banda, Projeto Pantana, fazia shows no local). Tais condutas demonstram total descaso com a segurança das pessoas que frequentavam a boate, tendo o agente mantido seu agir, mesmo diante de um resultado previsível, sem se importar com as graves consequências” (Inquérito Policial nº. 94/2013/150501, p. 24) [grifos do autor].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 músico é tão evidentemente distorcida que não leva em consideração o fato de que nunca ter ocorrido nenhum evento danoso deve ser considerado à exceção e não a regra. Em outras, utilizar um equipamento de forma contrária às normas de segurança e nenhum evento danoso ter ocorrido não pode ser tomado como referencial em uma decisão com um mínimo de reflexão. Pois, a potencialidade de que o sinistro ocorra é iminente e alertada no próprio equipamento. Em outras tintas, o enquadramento diverso da questão, tornando exceção os casos em que nenhum evento danoso ocorreu e a regra o potencial evento danoso, conduziria à resposta/decisão mais plausível, qual seja a deliberação pelo uso do equipamento adequado. Extrai-se dos depoimentos constantes no Inquérito Policial que o baixo valor dos fogos de artifício para locais abertos foi o que, muito provavelmente, determinou a sua escolha em detrimento dos equipamentos indicados 23. O lucro seria maior com esse tipo de fogos, mais econômicos. Essa narrativa evidencia o viés da aversão a perda. Tal viés não permite ao individuo que dimensione que por vezes um lucro (ou ganho) aparentemente menor, pode converter-se em um ganho pessoal e/ou psíquico imensamente maior que o valor desprendido. Ou seja, o lucro com o show já era considerável, mas, gastar um pouco mais com equipamentos pirotécnicos de qualidade e segurança era considerado perda que não compensava. O custo dos fogos de artifício para ambientes abertos era de R$ 2,50 (dois reais e cinqüenta centavos a unidade), já para ambientes fechados era de R$ 50,00 (cinquenta reais a unidade). De tal modo, os R$ 47,50 (quarenta e sete reais e cinquenta centavos), decisivos na tomada de decisão, representaram um valor tão elevado a se “perder” (investir) para uma mente sob o efeito do viés da aversão a perda, que acabou, possivelmente, por inibir a tomada de uma decisão mais adequada. Depreende-se que uma decisão tomada com o exercício do sistema reflexivo, conduziria a avaliação dos possíveis transtornos, danos em maior ou menor grau, potencialmente decorrentes do uso de um equipamento contrário as normas de segurança indicadas, direcionando a uma decisão mais acertada, que, neste caso em específico, poderia evitar essa tragédia. Por fim, cabe fazer referência a outro momento em que o viés do otimismo excessivo mostra-se evidente no desenlace trágico do Caso Kiss. Conforme o Inquérito Policial, os músicos foram os primeiros a sair do interior da boate após iniciado o incêndio. Ao constatarem o início do foco de incêndio, os músicos não buscaram avisar as pessoas que estavam na festa, eles, apesar de possuírem contato com microfone, possivelmente acreditaram que nada iria dar errado, abstendo-se de dar o anúncio do inicio de incêndio 24. Mais uma vez, a distorção na avaliação da melhor decisão é evidente. Possivelmente, em razão da atuação do viés do otimismo excessivo, a 23

“Ficou plenamente evidenciado que L. agia de forma totalmente amadora, pois não possuía qualquer treinamento quanto ao uso de materiais extremamente perigosos, sobretudo porque sabia que os fogos de artifício que adquiria na Loja Kaboom eram para uso externo, conforme se depreende do depoimento de D. R. S., gerente da Empresa Kaboom. Porém, mesmo assim, utilizava-os em locais fechados, pois o preço destes era muito inferior aos dos fogos de artifício para uso externo, os quais custavam cerca de R$ 2,50 (dois reais e cinquenta centavos), conforme Nota Fiscal acostada aos autos (p. 208), em detrimento dos externos, que custavam aproximadamente R$ 50,00 (cinquenta reais). Tal comportamento evidencia que o único desiderato levado em consideração por L. era o de obtenção de um maior lucro possível, mantendo sua conduta, ainda que isso pudesse colocar em risco a segurança das pessoas que estivessem presentes aos shows da banda” (Inquérito Poli cial, nº. 94/2013/150501, p. 16) [grifos do autor]. 24 Outro fato absolutamente reprovável cometido pelo vocalista da banda M. é que, apesar de ter visto que o incêndio tomaria maiores proporções (pois tentou apagar o primeiro foco com uma garrafinha de água, conforme relataram diversas testemunhas, e ainda tentou utilizar o extintor) não se preocupou em nenhum momento em pegar o microfone e anunciar que estava iniciando o fogo para que as demais pessoas pudessem ter a chance de sair do local, alegando que não o fez porque havia ocorrido uma queda de luz no palco, no que foi desmentido pela testemunha R. M. R. (p. 64 e p. 3590), que alegou ter feito uso do microfone para avisar as pessoas, bem como pelo vídeo submetido à perícia da Engenharia Legal do IGP (Laudo Pericial nº. 12.268/2013, fls. 67-73 do laudo), que demonstra que as luzes do palco permaneceram acesas durante o início do incêndio. Por outro lado, juntamente com os demais integrantes da banda, foi um dos primeiros a sair da Boate Kiss, demonstrando que poderia ter minimizado os efeitos, alertando as pessoas sobre o incêndio, já que muitas que estavam na boate não tinham visão do palco, onde ocorria o espetáculo musical, e não tiveram chances de sair do prédio (Inquérito Policial, nº. 94/2013/150501, p. 20) [grifos do autor].

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 decisão sem o crivo do sistema reflexivo foi um dos fatores que contribuiu para o aumento da proporção da tragédia. Uma decisão reflexiva levaria os músicos a avaliarem o perigo iminente em que se encontravam e também deixavam expostas as demais pessoas no local. Direcionando, desse modo, seus atos à diminuição dos potenciais danos de um incêndio, o que, obviamente, faria com que buscassem avisar de imediato a necessidade de evacuação da Boate. Percebe-se que o desconhecimento, ou cultura da “irreflexão25”, conduz o cérebro humano a decisões que, muitas vezes, deixam de sopesar os potenciais danos decorrentes de suas deliberações. O que, na maior parte dos casos, não guia a um resultado trágico, porém, como é possível observar nesta análise do Caso da Boate Kiss, decisões tomadas sem o exercício do sistema reflexivo podem esconder consequências danosas não mensuráveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como guisa conclusiva, constata-se que é inerente a condição humana o sistema primitivo, caracterizado pelo impulso, todos os seres humanos possuem pré-disposições mentais que conduzem a deliberações enviesadas. Contudo, é próprio do ser humano também o sistema reflexivo, é o que lhe confere racionalidade na toma de decisões. O pensamento enviesado é condição humana, porém, pode e deve ser constantemente colocado em xeque. Apenas reconhecendo a existência dos desvios cognitivos é possível traçar estratégias para diminuir as decisões tomadas de forma enviesada. Como consequência, é possível diminuir os reflexos desastrosos dessas decisões. No Caso da Boate Kiss, é possível perceber a atuação diversos automatismos mentais que não permitiram considerar as desvantagens ou equívocos das deliberações escolhidas ao longo do funcionamento da Boate, até o desfecho trágico do dia 27 de janeiro de 2013. Constatase que os desvios cognitivos ofuscam os perigos das decisões que aparentam facilidade e agilidade, fornecendo ao interprete uma falsa sensação de segurança e conforto com a decisão escolhida, bem como não dependem de maior gasto de energia cerebral, pois sua característica é a impulsividade. O exercício do sistema reflexivo, que por sua vez, permite ao interprete uma melhor avaliação da decisão inicial, sopesando os possíveis reflexos indesejados da mesma, porém, depende de um maior gasto de energia cerebral, pois exige reflexão. Depreende-se que o conhecimento dos automatismos mentais, bem como o desenvolvimento de técnicas para impulsionar o exercício do sistema reflexivo pode ajudar o interprete na construção de decisões mais acertadas, sustentáveis, coerentes e seguras. No caso Kiss, o autoconhecimento dos envolvidos na tragédia sobre essa condição humana inerente (desvios cognitivos) poderia ter evitado, ao menos, à proporção que essa tragédia alcançou. Não há como prever uma tragédia como esta, mas adotar deliberações reflexivas pode sem dúvida por em xeque alternativas que em um primeiro momento mostram-se lógicas e seguras. Por fim, cabe referir que, mais um desafio aos automatismos mentais será enfrentado no julgamento do caso Kiss, de um lado os vieses (bises), predisposições mentais dos jurados, de outro os desvios cognitivos do próprio juiz no momento da aplicação da pena. REFERÊNCIAS FREITAS, Juarez. Hermenêutica e Desvios Cognitivos. In: Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, n. 13, p. 277-308, jan./jun. 2013-a.

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A expressão é utilizada para referir a existência tanto de hábitos mentais não reflexivos, quais sejam aqueles que conduzem a decisões e avaliações sem a preocupação com a análise de alternativas contrárias as pré-disposições mentais individuais inerentes à que todos os seres humanos. Bem como, a utilização destes hábitos não reflexivos (sem o exercício consciente do sistema cerebral reflexivo) pela falta de autoconhecimento, que por sua vez, é reflexo do desconhecimento da própria existência destes hábitos mentais revelados pela neurociência.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 _____. A Hermenêutica Jurídica e a Ciência do Cérebro: como lidar com os automatismos mentais. In: Revista da AJURIS – v. 40 – n. 130 - junho 2013-b. FONTES INQUÉRITO POLICIAL nº. 94/2013/150501. Disponível em: . Acessado em 16 abr. 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 (PÓS)POSITIVISMO JURÍDICO E A TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN Alexandre de Castro Coura1 Bruno Taufner Zanotti2

RESUMO: É comum, na doutrina brasileira, uma preocupação com o que foi decidido nos tribunais, ou seja, com o próprio mérito da sentença ou acórdão. As teorias subjacentes ao que foi decidido não são levadas em consideração pela grande maioria dos manuais de Direito no Brasil. É nesse contexto que se insere a proposta do presente artigo e o estudo busca responder ao seguinte problema: Existe incompatibilidade teórica na aplicação do Direito por alguns magistrados brasileiros em face das premissas de um Estado Democrático de Direito? A resposta passa, necessariamente, pelos seguintes questionamentos secundários: Quais os fundamentos teóricos utilizados por alguns magistrados brasileiros ao aplicarem o Direito? Qual o papel da doutrina, da jurisprudência e da hermenêutica nesse complexo romance? Enfim, a partir desse contexto, o que é o Direito? Após a utilização do método dedutivo, concluiu-se que o positivismo jurídico, mesmo em pleno Estado Democrático de Direito, ainda se encontra enraizado no paradigma jurídico de alguns magistrados, motivo pelo qual se faz necessária a libertação dessa visão ultrapassada do que compõe o próprio conceito do Direito. Propôs-se, a partir de Dworkin, a utilização do Direito como integridade e o abandono de padrões extrajurídicos utilizados nos casos limítrofes. E mais, propôs-se a abertura do Direito a uma visão principiológica que se volta tanto para o passado quanto para o futuro, capaz de guardar coerência com o ordenamento jurídico vigente e mostrar o Direito sob uma melhor luz.

PALAVRAS-CHAVE: Positivismo jurídico. Convencionalismo. Direito como integridade. Estado Democrático de Direito.

SUMMARY: It is common in the Brazilian doctrine, a concern with what was decided in the courts, in other words, a concern with the own merit of the judgment. The underlying theories of what was decided are not taken into account by most books of law in Brazil. In this context, the proposal of this article and the study seeks to answer the following problem: Is there a theoretical inconsistency in the application of law by some Brazilian judges based on the assumptions of a democratic state? The answer necessarily involves the following secondary questions: What are the theoretical bases used by some Brazilian judges to apply the law? What is the role of the doctrine, jurisprudence and hermeneutics in this complex novel? Anyway, in that context, what is the Law? After using the deductive method, we concluded that legal positivism, even in a democratic state, is still rooted in the legal paradigm of some judges, and that is the reason why this outdated vision of the concept of Law needs to be renewed. It was proposed from Dworkin the 1

Promotor de Justiça no Estado do Espírito Santo. Professor adjunto (licenciado) da graduação em Direito na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor do programa de pós-graduação em sentido estrito (mestrado e doutorado) da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Doutor e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 2 Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Professor da pós-graduação lato sensu em Direito Público da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Professor da pós-graduação lato sensu em Direito Público da Associação Espírito Santense do Ministério Público. Professor da Academia da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Público pela FDV.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 use of law as integrity and the abandonment of “not legal” standards used in the hard cases. Furthermore, it was proposed the opening of Law to the world of principles that turns to the past and to the future and is able to gain consistence with the current legal system and show the Law in a better light.

KEYWORDS: Legal Positivism. Conventionalism. Law as integrity. Democratic State.

INTRODUÇÃO O constitucionalismo moderno vive um tempo de conflitos teóricos, na medida em que muitos magistrados, em pleno Estado Democrático de Direito, não são capazes de verificar a evolução paradigmática do Direito. De fato, o paradigma constitui e limita o ser humano, e não são todos que possuem a capacidade de aceitar a sua natureza finita e precária. É nesse contexto que o prólogo silencioso de cada veredicto deve ser estudado e analisado. A possibilidade de entender não o que está sendo julgado, mas as premissas teóricas que fundamentam o julgamento passa por uma análise do que constitui o próprio julgador e o seu entender do que é o Direito. O presente artigo tem justamente esta proposta: Quais os fundamentos teóricos utilizados por alguns magistrados brasileiros ao aplicarem o Direito? Qual o papel da doutrina, da jurisprudência e da hermenêutica nesse complexo romance? Enfim, a partir desse contexto, o que é o Direito? As respostas são complexas e demonstram um nítido confronto de paradigmas. A priori da retórica a ser exposta, cria-se um mito em torno da Teoria da “Doutrina nos Seguirá” (STRECK, 2012b). Com essa teoria e, basicamente, com essas palavras, alguns ministros dos Tribunais Superiores divulgam em inúmeros julgados a ideia de que são os legítimos – e os únicos – intérpretes constitucionais, qualificando a doutrina como uma mera repetidora dos julgados. A partir desse contexto, serão analisadas as teorias subjacentes aos discursos de autoridade de alguns ministros de modo a se expor as esferas de pré-compreensões nas quais esses discursos estão inseridos para, em um segundo momento, confrontá-las com o pensamento de teóricos que mais bem representam a ideia de democracia constitucional presente em um Estado Democrático de Direito. Assim, inicialmente, serão apresentados e expostos os pensamentos de alguns ministros dos Tribunais Superiores, bem como analisadas as teorias que fundamentam esses discursos. Em seguida, será examinada a (im)pertinência teórica com os pressupostos de um Estado Democrático de Direito para, ao final, verificar a necessidade de uma efetiva evolução paradigmática do Direito. 1 A PLENIPOTENCIARIEDADE DA REGRA E O DISCURSO DE AUTORIDADE O estudo de alguns julgados dos Tribunais Superiores e, em especial, dos votos dos magistrados que compõem esses tribunais, é capaz de desvelar visões paradigmáticas conflitantes que, ainda hoje, concorrem e condicionam a atuação dos magistrados no Brasil, mas que nem sempre se mostram adequadas à noção de um complexo e plural Estado Democrático de Direito.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Essa afirmativa é decorrente da visão do Direito por alguns magistrados que, presos ao positivismo jurídico, utilizam critérios quase estritamente linguísticos para analisar questões jurídicas, de modo a qualificar o Direito como um instrumento histórico de legitimidade da própria instituição que o constitui. De fato, numa certa ótica, alguns dispositivos das sentenças judiciais podem ser considerados interessantes – apesar do pressuposto teórico equivocado –, pois se analisa, nesse momento, o ponto de chegada e não o percurso feito. No entanto, não é porque um relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia que ele não necessite de ser consertado. Decorre daí a importante tarefa de desvelar os paradigmas nos quais os magistrados estão inseridos. O ministro Gilmar Mendes, durante o julgamento do MS 32.033, no qual os ministros debatiam a manutenção ou mudança da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em um ponto do controle preventivo de constitucionalidade das normas, resignou-se com a postura dos seus pares que votavam contra a jurisprudência pacífica da corte de modo a afirmar que “havia ignorância em relação aos precedentes do Supremo sobre a matéria”, como se não fosse possível uma mudança do paradigma jurisprudencial para futuras decisões. Observa-se, no caso narrado, uma nítida busca por uma proteção da jurisprudência, como se o julgado do Pretório Excelso, por si só, representasse o conteúdo da Constituição Federal. Essa visão teórica muito se aproxima do que Dworkin (2007, p. 141 e 142) qualifica como uma visão convencionalista do Direito. O conceito de Direito, a partir de tal prisma, institui que a força do precedente, por si só, incide no presente em razão da força das convenções do passado: A força coletiva só deve ser usada contra o indivíduo quando alguma decisão política do passado (a convenção) assim o autorizou explicitamente, de tal modo que advogados e juízes competentes estarão todos de acordo sobre qual foi a decisão, não importam quais sejam suas divergências em moral e política (DWORKIN, 2007, p. 141). Nessa mesma linha de pensamento, ao julgar a Reclamação nº 4.335, o ministro Gilmar Mendes sustentou a inaplicabilidade do art. 52, X, da Constituição Federal ao fundamento de que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional construíram, desde 1988, uma jurisprudência e uma legislação no sentido de fortalecer o controle concentrado de constitucionalidade. Ao apresentar um voto com inúmeros julgados e legislações para sustentar a sua tese, o ministro Gilmar Mendes tentou impor uma ideia convencionalista de que “[...] qualquer consenso alcançado pelos juristas sobre a legislação e o precedente deve ser visto como uma questão de convenção” (DWORKIN, 2007, p.164) e, portanto, como uma questão vinculante para os seus pares, mesmo que, na visão do ministro, levasse a inaplicabilidade de uma determinação constitucional relativa à atribuição dos Poderes da República. O ministro Eros Grau, ainda na Reclamação nº 4.335, não só seguiu o voto do ministro Gilmar Mendes, como também menosprezou o trabalho dos cientistas do Direito (que se convencionou denominar doutrina), ao argumento de que o Direito é uma questão estritamente histórica, decorrente das legítimas decisões tomadas pelos legítimos intérpretes ao longo dos anos: Não estamos aqui para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardamos a Constituição. O discurso da doutrina [discurso sobre o Direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do Direito. Ele nos seguirá; não o contrário. Vale citar, ainda, o voto do ministro Teori Albino Zavascki proferido no AI EREsp n° 64.4736: Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são. Tem-se, seja no voto do ministro Eros Grau, seja no voto do ministro Gilmar Mendes, seja no voto do ministro Teori Albino Zavascki, a nítida divulgação de duas ideias basilares: a) de que a doutrina deve se curvar ao que foi decido, ao simplório argumento de que os magistrados são os legítimos intérpretes; e b) de que os julgados dos Tribunais Superiores representam o próprio conteúdo legítimo da interpretação da Constituição Federal e das leis. Trata-se da qualificação do Direito como uma questão de fato, visão essa que decorre do que uma instância de poder decidiu no passado, motivo pelo qual a proteção dessas decisões é vista como a própria legitimidade de decisão tomada no presente. Sobre esse contexto teórico, Dworkin (2007, p. 10) pontua que O Direito nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais, decidiram no passado. [...] Portanto, as questões relativas ao direito sempre podem ser respondidas mediante o exame dos arquivos que guardam os registros da decisões institucionais. [...] Em outras palavras, o direito existe como simples fato, e o que o direito é não depende, de modo algum, daquilo que ele deveria ser (questões de moralidade e fidelidade, não de direito). Por fim, há de se lembrar outra posição do ministro Eros Grau exarada no julgamento da ADI n° 4.219, na qual explicitamente se posiciona a favor de um positivismo jurídico kelseniano, por ser o magistrado o autêntico intérprete do texto escrito na Constituição Federal: O direito é uma prudência, no âmbito da qual não se encontram respostas exatas, senão uma multiplicidade de respostas corretas. [...] A Constituição diz o que nós, juízes desta Corte, dizemos que ela diz. Nós transformamos em normas o texto escrito da Constituição[...] Nós, aqui neste Tribunal, nós produzimos as normas que compõem a Constituição do Brasil hoje, agora. Nós é que, em derradeira instância, damos vida à Constituição, vivificamos a Constituição. E ela será do tamanho que a ela atribuirmos na amplitude dos nossos juízos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Após essa exposição, foi possível observar a existência de um forte positivismo na jurisprudência dos Tribunais Superiores. O positivismo, como coloca Dworkin (2007, p. 46), é uma teoria semântica do Direito, uma vez que o verdadeiro argumento sobre o Direito é empírico (baseado na experiência das convenções pretéritas) e não teórico. O que se observa nas teorias subjacentes aos julgados analisados é um manifesto discurso de autoridade, fundamentado em um forte positivismo jurídico, seja ele kelseniano, seja ele convencionalista. A plenipotenciariedade da regra se mostra como fonte e pressuposto do sistema jurídico vigente, de modo a fechar o Direito para a amplitude normativa dos princípios (STRECK, 2012a, p. 59). A regra, portanto, é fonte única de legitimidade e imprescindível para a correta aplicação do Direito. Os casos difíceis, a partir de um viés positivista, são resolvidos com fundamento em um poder judicial discricionário. Ao utilizarem o poder discricionário, os juízes fazem uso de “[...] padrões extrajurídicos para fazer o que o convencionalismo considera ser um novo direito” (DWORKIN, 2007, p. 145), tal como também ocorre no positivismo kelseniano (KELSEN, 1987, p.394), em especial pela possibilidade de o magistrado decidir fora da moldura ao simples argumento de que é o legítimo intérprete. Com isso, o juiz passa a ter responsabilidade legislativa, atuando como se um legislador fosse (DWORKIN, 2007, p. 158). Quando um juiz cria um novo direito, “[...] ele escolhe a regra que, segundo acredita, escolheria a legislatura então no poder, ou, não sendo isso possível, a regra que em sua opinião, melhor representa a vontade do povo como um todo” (DWORKIN, 2007, p. 147). O positivismo kelseniano, agravado pelo giro decisionista, e o convencionalismo norte-americano diminuem o grau de segurança e coerência que se espera de um ordenamento jurídico. Nesse contexto, a decisão judicial passa a ser, como bem coloca Dworkin (2007, p. 187), “[...] apenas uma questão daquilo que os juízes tomaram no café da manhã”. Essas teorias, para utilizar o termo cunhado por Dworkin (2007, p. 55), consistem em verdadeiro “aguilhão semântico” por acreditarem que o conceito de Direito está fixado em regras semânticas previamente compartilhadas. Assim, o termo “aguilhão semântico” é uma crítica a essas teorias que se prendem a uma visão positivista do Direito, um verdadeiro ferrão capaz de envenenar aqueles que não são capazes de se inserirem numa visão paradigmática adequada à aplicação do Direito à luz do atual paradigma constitucional. Os ministros acima mencionados caem na armadilha do “aguilhão semântico” e são por ele envenenados. Com isso, os magistrados visualizam o Direito como uma imagem distorcida das discussões nos casos limítrofes, de modo a excluir o intérprete da norma e lhe outorgar o papel de investigador das decisões tomadas no passado. O “aguilhão semântico”, portanto, consiste em uma visão semântica do Direito. Ir além dessa limitação e reconhecer o caráter precário do ser humano é o desafio que se impõe àqueles que buscam uma visão plural e democrática do Direito. É nesse contexto que se impõe o seguinte questionamento: como é possível, então, retirar esse aguilhão semântico? 2 O POSITIVISMO JURÍDICO VIVE EM PLENO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO? A retirada do aguilhão semântico não é um procedimento que ocorre sem dor, sem rupturas paradigmáticas teóricas. Faz-se necessário ir além da Teoria da “Doutrina nos Seguirá”. Essa evolução importa, necessariamente, no reconhecimento do caráter aberto, plural, democrático e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 principiológico do Direito. É por isso que o Direito entra em crise quando verifica a sua limitação e a sua incapacidade de regular todas as situações sociais postas, em especial na certeza de que a vida é mais rica do que a tentativa de fechar em um ordenamento jurídico todas as questões previamente estabelecidas. É nesse contexto que a abertura principiológica do Direito se mostra como um caminho sem volta. Diferentemente do positivismo jurídico, que busca, nos casos limítrofes, um fundamento externo ao Direito, uma visão aberta e principiológica se torna o próprio fundamento jurídico desse “novo” sistema. Mesmo as regras supostamente claras possuem um viés principiológico, pois o caso concreto – único e irrepetível – pode trazer uma nova possibilidade para essa regra que não foi anteriormente imaginada (CARVALHO NETTO, 2003, p. 104): Ainda quando uma lei pretenda esgotar a sua situação de aplicação, não há situação de aplicação no mundo que não seja única, que não requeira do aplicador imenso trabalho para que uma injustiça não seja cometida. O ordenamento é necessariamente complexo, porque, se existe o princípio da publicidade, há o da privacidade. E tenho que estar sempre muito preocupado com o oposto daquilo com que estou trabalhando, porque é assim que a situação poderá me dizer o que vou regulamentar, como vou proceder. Nesse ponto, vale a pena analisar um famoso caso, de autoria de Immanuel Kant, por demonstrar os nítidos problemas decorrentes do aguilhão semântico e por consolidar a ideia de que essa abertura principiológica do Direito é uma via de mão única (CARVALHO NETTO, 2003, p. 103). A filosofia kantiana é regida por imperativos categóricos e um deles institui que o cidadão age de tal modo que a máxima da sua ação deve se tornar uma lei universal. Kant, professor de Könningsberg, localizada na autoritária Prússia, foi interrompido durante uma aula por um aluno ativista que repentinamente entrou na sala ao argumento de que estava sendo perseguido pela Santa Aliança da monarquia conservadora. Em seguida, o aluno pediu que Kant lhe oferecesse proteção. A Prússia vivia uma situação crítica e a prisão do aluno poderia resultar na sua morte. Assim, Kant ofereceu ao aluno a mesa da sala onde lecionava, embaixo da qual ele poderia se esconder. Logo após, a aula de Kant foi mais uma vez interrompida pela polícia, que procedeu a diligências no local com a finalidade de localizar o fugitivo. Sem conseguir localizá-lo, os policiais, antes de irem embora, perguntaram a Kant se sabia onde o cidadão que eles procuravam estava. Kant, após refletir, respondeu que o aluno estava embaixo de sua mesa. Ao final, os policiais prenderam o aluno e o levaram embora. O caso, sem dúvida, é emblemático. Kant possivelmente verificou que “não mentir” era uma máxima universal e válida para todas as pessoas, razão pela qual deveria entregar o aluno à polícia. Dentro de um regramento jurídico fechado, a existência de regras conflitantes importa na exclusão de uma delas. Nesse contexto, se “não mentir” é considerada a resposta válida, outra não poderia ser a conclusão e a conduta de Immanuel Kant. O exemplo mostra o problema de se acreditar em um ordenamento jurídico que se fecha aos princípios e à moral, como se o Direito positivado, por si só, fosse capaz de responder a todas as indagações dos irrepetíveis casos concretos. Ir além dessa limitação teórico-semântica é o desafio que se impõe àqueles que buscam uma visão plural e democrática do Direito. Agora, a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 partir do caso narrado, repete-se o questionamento anterior: como é possível, então, retirar esse “aguilhão semântico”? Dworkin (2007, p. 57), para responder ao questionamento, faz um paralelo com as regras de cortesia em determinada sociedade imaginária. Os membros dessa sociedade imaginária seguem um conjunto de regras. Uma delas exige que os camponeses tirem o chapéu diante dos nobres. Por um tempo, essa regra existe simplesmente por ser uma regra, sem qualquer tipo de questionamento, como se fosse algo imposto aos membros da sociedade. Agora, supõe-se que os membros dessa sociedade imaginária desenvolvam uma complexa atividade interpretativa em face das regras de cortesia. A interpretação, para Dworkin, é um instrumento que ocorre pela aplicação de uma técnica que envolve três momentos: etapa préinterpretativa, etapa interpretativa e etapa pós-interpretativa. Numa etapa pré-interpretativa, identificam-se as regras e os padrões capazes de fornecer a experiência da prática (DWORKIN, 2007, p. 81). Em outras palavras, trata-se da regra por si só, ou seja, exigir que os camponeses tirem o chapéu diante dos nobres. Numa etapa interpretativa, busca-se uma justificativa geral para as regras e padrões identificados na etapa anterior, cabendo ao intérprete a difícil tarefa de agir como alguém que interpreta a prática sem inventar uma nova prática (DWORKIN, 2007, p. 81). No caso narrado, a justificativa geral para a regra de cortesia é o respeito que os camponeses possuem em face dos nobres, uma vez que esses compõem uma casta social mais elevada. Isso ocorre porque qualquer regra, qualquer pressuposto, deve ter um valor, um interesse ou um princípio, ou seja, alguma finalidade. Numa etapa pós-interpretativa, o intérprete ajusta “[...] sua ideia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa” (DWORKIN, 2007, p. 81), ou seja, o intérprete analisa qual a pratica social que realiza a sociedade da melhor forma daquele momento em diante. Verifica-se, argumentativamente, se a prática analisada realmente potencializa a justificativa geral de modo a analisá-la sob a melhor luz. No caso narrado, na última etapa, os cidadãos podem concluir que a regra de cortesia não é exatamente o que se imaginou que fosse, de modo a se verificar que, em vez de demonstrar respeito, na verdade, se traduziria numa forma de os nobres imporem uma ideia de superioridade em face dos camponeses, de modo que os camponeses concluiriam pela abolição da prática narrada. Em outro sentido, é possível também que os camponeses concluam que a regra deva ser, na verdade, readequada dentro de um novo contexto social, de modo a ser dirigida, por exemplo, a pessoas idosas que serviram o País em eventual guerra. Mesmo nos casos em que a regra de cortesia se mantenha – apesar de argumentativamente alterada –, ela não mais decorre simplesmente de uma ordem estática e previamente determinada; mas, sim, baseia-se numa postura proativa dos cidadãos em imporem a ela um significado que foi construído racionalmente com base em uma finalidade, valor ou princípio. Retomando o caso acima narrado de Immanuel Kant, a regra supostamente universal de “não mentir” já não se mantém argumentativamente em face de outros princípios de igual envergadura. Em outras palavras, “não mentir” não serve à finalidade, valor ou princípio para o qual foi criado quando visto a partir do caso concreto, ocorrendo a inversão dos valores morais e principiológicos do sistema ao permitir a entrega do aluno à polícia.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Por isso, “não mentir” já não pode mais ser qualificado como uma regra fechada e absoluta, mas, sim, como um argumento ou princípio, motivo pelo qual Kant deveria considerar como princípios e argumentos igualmente válidos e universais “não delatar” e “não denunciar”, os quais, dentro de uma valoração no caso citado, mostrar-se-iam como determinantes para Kant mudar o resultado do caso narrado e evitar a prisão do aluno pelo Estado da Prússia. Tem-se, nos dois casos acima narrados, uma evolução paradigmática da interpretação que, num plano macro, também consiste na evolução do paradigma do Direito a uma ordem aberta, pluralista, complexa e democrática. Com isso, o “aguilhão semântico” é retirado, o que não acontece sem a dor de uma ruptura paradigmática. É por isso que essa evolução não ocorre sem um aprendizado crítico e reflexivo do próprio ser humano ao reconhecer a exaustão do paradigma no qual está inserido para, somente então, ser capaz de se reinventar para o novo mundo intersubjetivo da linguagem que, acima de tudo, é autorreflexivo, criativo, contestador, construtivo e fraterno (DWORKIN, 2007, p. 492). Mas nem todos são capazes de transpor essa hercúlea barreira teórica. A resistência à mudança é natural, mas também é um desafio imposto a todos. Requer estudo e, principalmente, o reconhecimento da necessidade de se abandonar o que até então era certo e natural, em especial por ser o paradigma constitutivo de nós mesmos. Essa autorreflexão é o que torna o ser humano possível de viver um novo horizonte de possibilidades, ao mesmo tempo em que também é limitado pelas sombras do novo paradigma. Toda nova luz, apesar de mudar o seu ângulo de incidência, projeta novas sombras. A partir dessas reflexões, no atual paradigma constitucional, não existe um campo fértil e propício ao florescimento do positivismo jurídico. Pelo contrário, em pleno Estado Democrático de Direito, o positivismo jurídico pode ser qualificado como uma espécie de erva daninha, por nascer espontaneamente em local e momento inoportuno em razão da utilização de técnicas inapropriadas para a aplicação do Direito. Pelo o que se verificou até o presente momento, a questão não gira em torno da existência do positivismo no Estado Democrático de Direito, até porque ele reaparece em razão das equivocadas premissas dos julgadores. Na verdade, essa visão do Direito não possui fundamento para se desenvolver em um campo de esferas de pré-compreensões distinto daquele para o qual foi projetado e a Teoria da “Doutrina nos Seguirá” deve, portanto, ser superada. 3 PARA ALÉM DO POSITIVISMO JURÍDICO O positivismo jurídico, longe de se consistir em um método aberto e plural de aplicação do Direito, não consegue se sensibilizar para os anseios sociais e transforma a aplicação do Direito em uma tarefa mecânica. Isso ocorre tanto no positivismo convencionalista como no kelseniano, com as devidas peculiaridades. O positivismo que decorre do convencionalismo necessita de um consenso de convenção para a aplicação do Direito, desvirtuando o debate em torno de eventual consenso de convicção. Aceitar algo como verdadeiro por consenso de convenção significa aceitar algo porque todos aceitam como verdadeiro, sem que haja um consistente fundamento substantivo para tanto. Esse é o problema do convencionalismo. Qualquer ataque substantivo à convenção fica deslocado e sem coerência, pois a base do convencionalismo não é uma base material (de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 conteúdo), mas de um consenso que se fundamenta na aceitação da maioria dos magistrados por um precedente. (DWORKIN, 2007, p. 166) No convencionalismo, o fundamento da decisão decorre exclusivamente de um consenso de convenção e a força dessa convenção incide a partir dessa lógica. Contudo, como coloca Dworkin (2007, p. 169), nada precisa ser estabelecido como convenção para um sistema jurídico funcionar: A atitude interpretativa necessita de paradigmas para funcionar efetivamente, mas estes não precisam ser questões de convenção. Será suficiente que o nível de acordo da convicção seja alto o bastante em qualquer momento dado, para permitir o debate sobre as práticas fundamentais como a legislação e o precedente. A convenção é formada pela força dos precedentes judiciais e legislativos tomados no passado; em determinado momento, essa convecção se esgotará. E, assim, o convencionalismo fracassa porque as fontes convencionais do Direito não possuem uma resposta adequada para casos difíceis e os juízes buscam uma resposta fora do Direito por meio do seu poder discricionário (DWORKIN, 2007, p. 159). Já no positivismo kelseniano, como expõe Carvalho Netto (1999, p. 481), os métodos hermenêuticos, como a interpretação sistêmica, teleológica e histórica, concedem ao juiz uma multiplicidade discricionária interpretativa, desde que todos estejam dentro da moldura proposta por Kelsen: Explica-se, assim, por exemplo, tanto a tentativa de Hans Kelsen de limitar a interpretação da lei através de uma ciência do Direito encarregada de delinear o quadro das leituras possíveis para a escolha discricionária da autoridade aplicadora, quanto o decisionismo em que o mesmo recai quando da segunda edição de sua Teoria Pura do Direito. Esse modelo fechado e hierarquizado de regras, idealizado por Kelsen, não permite que o Direito seja impregnado pelos princípios. De um lado, cabe aos cientistas do Direito lançar dentro da moldura as possíveis interpretações, e, do outro lado, cabe ao magistrado fixar a interpretação que mais entende adequada. A interpretação judicial, também chamada de interpretação autêntica, é uma escolha discricionária entre as interpretações possíveis. Essa noção da hermenêutica positivista sofreu grande alteração com a edição de 1960 da Teoria Pura do Direito (COURA, 2009, p. 61-62). Kelsen (1987, p. 394) reconheceu a possibilidade de o juiz fundamentar seu julgado fora da moldura criada pelos cientistas do Direito, desde que tal decisão tivesse sido proferida por um órgão jurisdicional competente. Tanto o positivismo kelseniano, como o convencionalismo americano fracassaram no exato momento em que deveriam ser mais fortes e coerentes: nos casos difíceis em que o “ordenamento jurídico” não apresenta, de forma evidente, uma resposta a priori para o caso concreto. Na mesma esteira, encontram-se as citadas decisões dos ministros Gilmar Mendes, Eros Grau e Teori Albino Zavascki, ao partirem de um conceito que não mostra o Direito por sua melhor luz.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 As regras de um ordenamento jurídico não abrangem todas as possíveis hipóteses de aplicação e, nos “casos difíceis”, incide uma forte arbitrariedade seletiva na interpretação para resolver o caso concreto, de modo a se qualificar essa decisão como um ato de vontade. A partir de um viés positivista, decidir importa em uma escolha, ou seja, na existência de um suposto poder judicante fundamentado no livre-arbítrio que se legitima no fato de a autoridade estar investida em um cargo. É por isso que positivismo e arbitrariedade caminham de mãos dadas. O positivismo, com isso, recai em um perigoso decisionismo judicial e sepulta qualquer possibilidade de uma teoria que dê um passo além da relação sujeito-objeto. A partir dessas – e outras – inúmeras críticas, Dworkin apresenta um novo conceito de Direito: o Direito como integridade. Para tanto, Dworkin (2007, p. 229) visualiza a comunidade a partir do ideal fraterno, de modo a buscar a legitimidade para o uso da força pelo Estado com base em fatores internos ao Direito, quais sejam, os princípios: Se as pessoas aceitam que são governadas não apenas por regras explícitas, estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer regras que decorrem de princípios que essas decisões pressupõem, então o conjunto de normas públicas pode expandir-se e contrair-se organicamente. Dworkin (2007, p. 204), então, propõe que a sociedade haja de modo que seja uma entidade distinta de seus cidadãos, ou seja, o autor fala de uma profunda personificação da sociedade, na qual o agir social não seja de um indivíduo, mas engajado de modo coletivo por todas as pessoas: A integridade pressupõe uma personificação particularmente profunda da comunidade ou do Estado. Pressupõe que a comunidade como um todo pode se engajar nos princípios de equidade, justiça ou devido processo legal adjetivo de algum modo semelhante àquele em que certas pessoas podem se engajar em convicções, ideais ou projetos. Assim, a integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres no ordenamento jurídico, a partir da ideia de que foram criados por um único autor, qual seja, a comunidade personificada. Busca-se expressar uma concepção coerente de justiça e equidade daquilo que compõe a história da sociedade e das instituições (DWORKIN, 2007, p. 271). Pela evolução da interpretação vista acima, em especial com base nas três etapas interpretativas, Dworkin constrói a noção de Direito como integridade a partir do que o autor chama de “romance em cadeia”, a ser arquitetado pelo mítico juiz Hércules. O romancista de Dworkin é, acima de tudo, preocupado não só com as regras e princípios atualmente presentes no ordenamento jurídico, mas também com a construção de uma complexa história da prática materialmente justificada por princípios voltados para um futuro que busca o Direito pela sua melhor luz: O direito como integridade, portanto, começa no presente só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais e os objetivos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 práticos dos políticos que o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado (DWORKIN, 2007, p. 274). O romancista não tem por finalidade reescrever o que cada integrante do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário considerava essencial para a tomada de determinada decisão. Esses argumentos podem até ser considerados pelo romancista, mas ele não se prende em eventos isolados ou votos vencidos, uma vez que a história a ser contada não é de um indivíduo, mas da comunidade personificada. Ademais, não se trata de um simples romance, mas de um romance em cadeia voltado para o futuro. Nesse momento, retoma-se de forma mais sensível e íntima o conceito de comunidade personificada para que esse romance seja sempre o melhor romance possível, isto é, um romance que traduza a ideia de que foi escrito por um único autor e não por diversas mãos, diferentes pensamentos e conflitantes pressupostos teóricos: Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade (DWORKIN, 2007, p. 276). Para tanto, o romancista deve buscar a adequação do novo capítulo, no sentido de que deve haver uma continuidade com o capítulo anterior, devendo considerar todas as possíveis interpretações para que exista integridade com os prévios capítulos. O texto, portanto, deve fluir naturalmente enquanto se busca o curso da história capaz de reconstruir com coerência o ordenamento jurídico vigente. Não obstante, pode o romancista abandonar essa complexa narrativa se considerar a tarefa impossível de ser cumprida? Sobre o tema, Dworkin (2007, p. 285) pondera que: É possível que nenhuma interpretação sobreviva [...] você terminará, então, por abandonar o projeto, rejeitando sua tarefa por considera-la impossível. Mas não pode saber de antemão que vai chegar a esse resultado cético. Primeiro, é preciso tentar. A sábia opinião de que nenhuma interpretação poderia ser melhor deve ser conquista e defendida como qualquer outro argumento interpretativo. Nesses casos, cabe ao romancista abandonar o projeto e reiniciar o romance a partir de outros pressupostos principiológicos igualmente presentes no ordenamento jurídico (DWORKIN, 2007, p. 278 - 285). Assim, o abandono dos pressupostos que consolidaram o romance inicial não significa o abandono de outro possível romance que tenha consistência substancial nas decisões legislativas e judiciais tomadas no passado. Em alguns casos, o romancista deve voltar ainda mais na história do Direito e das instituições. O abandono, portanto, não autoriza o magistrado a buscar e utilizar padrões extrajurídicos ao decidir um caso.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para essa difícil tarefa de reconstruir o ordenamento jurídico e buscar no horizonte de possibilidades o Direito sob a melhor luz, Dworkin (2007, p. 287) cria a mítica figura do juiz Hércules, um “[...] juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade”. Alguns críticos pontuam que nenhum juiz deve confiar em suas convicções pessoais sobre equidade ou justiça como Hércules faz. Concluem que o juiz deve ser neutro. Ora, qualquer método interpretativo – e não só o de Hércules – estará impregnado de moral política e pelo paradigma no qual o julgador está inserido. A pretensa neutralidade tão desejada por Kelsen foi, sem dúvida, um dos grandes problemas de sua obra, ao acreditar que o método, por si só, seria capaz de dar uma resposta (DWORKIN, 2007, p. 310). É importante salientar que o fato de Hércules ser uma figura mitológica não torna o Direito como integridade mais difícil de ser aplicado ao caso concreto. Tanto é assim que Dworkin confirma que Hércules é um mito, mas que isso não é um real problema, pois qualquer juiz que adotasse os mesmos pressupostos de Hércules necessitaria, na verdade, de eficiência e capacidade de administrar com prudência. Ademais, os juízes, ao adotarem a integridade, decidirão de forma menos metódica que Hércules, que somente expõe o seu modo de pensar e busca ajudar os magistrados a entenderem a estrutura oculta de suas sentenças (DWORKIN, 2007, p. 316). A estrutura oculta das sentenças de Hércules, portanto, é mais humana e menos metódica do que aparenta ser. O Direito como integridade vai além de uma mera atitude profissional do julgador ao ser visto como um modelo de conduta capaz de impregnar toda a extensão das decisões da pessoa do magistrado, mesmo em sua vida pessoal, por exigir uma postura contestadora, construtiva e fraterna da realidade. É nesse contexto que Dworkin conclui o seu livro afirmando que o Direito como integridade deve ser adotado como projeto “[...] para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter” (DWORKIN, 2007, p. 492). CONSIDERAÇÕES FINAIS Os tempos difíceis do constitucionalismo moderno demonstram a necessidade de levar o Direito a sério. Se as instituições existem e inúmeras decisões já foram tomadas no passado, elas devem ser utilizadas como base para a decisão judicial. Não de forma cega, mas com a sensibilidade de que o Direito, além de argumentativo, também é voltado para o futuro. Em breve síntese, ao propor o princípio da integridade, Dworkin entende que o magistrado não possui poder discricionário (conveniência e oportunidade ao decidir), mas poder vinculado, no sentido de que sua ação somente pode ter um resultado: o resultado que se mostre mais adequado ao caso concreto, construído a partir de um sistema aberto de regras e princípios, que tem como premissa a Constituição e os direitos fundamentais. Esse é o fundamento de legitimidade do magistrado, que deve ter a sensibilidade para perceber que nenhum dos seus atos é isolado no tempo, uma vez que deve analisar o passado e projetar a repercussão de cada ato no futuro. Essa visão do Direito é decorrente do paradigma do Estado Democrático do Direito, motivo pelo qual a Teoria da “Doutrina nos Seguirá”, destacada por alguns magistrados, isola e enfraquece a consistência da atividade jurisdicional, diminuindo o grau de certeza e coerência que se espera do aplicador da norma. Faz-se necessário ir além.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Mas esse hercúleo passo requer do ser humano a capacidade de reconhecer a limitação da realidade na qual está inserido e a necessidade de buscar uma nova luz para iluminar as futuras decisões. A Modernidade é um projeto inacabado, que continuará a se desenvolver no futuro; por isso, o caminhar natural do constitucionalismo e do Direito, em especial pela sociedade plural e complexa na qual os magistrados estão inseridos, necessita de uma teoria que não se esgote na plenipotenciaridade da regra, tão intrínseca ao positivismo jurídico. Ao adequar o pressuposto teórico subjacente às decisões, conserta-se, assim, a engrenagem do relógio e o ponteiro passa a mostrar em todos os momentos a hora certa. Somente dentro do contexto apresentado é que as decisões deixam de ser uma mera escolha arbitrária do magistrado para ganhar coerência e integridade com o ordenamento jurídico vigente, uma vez que o Direito deve ser, acima de tudo, uma atitude fraterna e construtiva do futuro. REFERÊNCIAS CARVALHO NETTO, Menelick de. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, n° 8, p. 81-108, dez. 2003. ______. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista Brasileira de Direito Comparado, Belo Horizonte: Mandamentos, v. 3, p. 573-586, 1999. COURA. Alexandre de Castro. Por uma jurisdição constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito – reflexões acerca da legitimidade das decisões judiciais e a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. In: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Homem de et al. Uma homenagem aos 20 anos da Constituição Brasileira. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 513 p. ______. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes: 2002. 568 p. GRAU, Eros. Voto proferido na Reclamação nº 4.335. . Acesso em: 10 jul. 2013.

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______. Voto proferido na ADI n° 4.219. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2013. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1987. MENDES, Gilmar Ferreira. Voto proferido na Reclamação nº 4.335. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2013. ______. Debate no Mandado de Segurança nº 32.033. Disponível . Acesso em 10 jul. 2013.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012a. 639 p. ______. O passado, o presente e o futuro do STF em três atos. 2012b. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2013. ZAVASCKI, Teori Albino. Voto proferido em sede de AI nos EREsp 644736. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL E EXPANSÃO DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

Adelino José de Carvalho Dias1

Resumo Partindo da compreensão da crise e da reestruturação do Estado capitalista, o artigo trata dos impactos destas transformações na definição das políticas públicas do Estado brasileiro para a educação e, em particular, nas políticas de gestão para os cursos de Direito nas duas últimas décadas. A partir de categorias que exploram as contradições presentes neste processo, o texto argumenta que a proposta de uma educação jurídica humanista e ética formalizada nos instrumentos que regulam a implantação, autorização, reconhecimento e convalidação dos cursos de Direito no país não se sustenta diante das exigências impostas pela mundialização do capital, em especial a instrumentalização do conhecimento em favor dos interesses do mercado.

Palavras-chave: Formação Humana, Políticas Públicas, Ensino Jurídico.

O tema deste artigo foi objeto de pesquisa para obtenção de doutoramento no Programa de PósGraduação em Educação na Universidade Federal de Uberlândia, sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto Lucena. Investimos no programa na reflexão acerca da chamada mundialização do capital e, por extensão, da crise e reestruturação do Estado capitalista, analisando esse processo e os seus impactos nas políticas públicas do Estado brasileiro anunciadas para a educação superior e, em particular, na definição de políticas de gestão para os cursos de Direito nas duas últimas décadas. Este artigo é resultado da pesquisa realizada e se amolda, portanto, à discussão teórica acerca da consolidação gradativa do capitalismo financeiro e de como suas sucessivas revoluções tecnológicas colocaram em destaque as mediações entre o Estado, as classes sociais e a ciência. Parte da premissa de que a produção científica não é neutra, mas, ao contrário, é responsável por manifestar conflitos e atender a pressupostos políticos de uma classe social, não por acaso aquela que detém a propriedade privada dos meios de produção de toda a sociedade. Deste ponto de partida, a compreensão possível é de que o Estado tem por função precípua servir a uma determinada classe, organizando-se de maneira eficaz e burocrática para oferecer as condições necessárias à manutenção das diferenças sociais existentes. Para atingir tal propósito, o Estado se concretiza por meio da defesa intransigente da propriedade privada e do

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Graduação em História - Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Uberlândia (1994) e em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (1995). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina, mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (2006) e doutor pelo mesmo Programa (2014), pesquisando as políticas públicas para os cursos de Direito nas últimas décadas. É professor da Universidade de Uberaba (UNIUBE), com ênfase na docência em Direito Constitucional.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 modo de produção capitalista, como demonstrado pelos teóricos que melhor compreenderam o modo de produção dominante na sociedade. Por esta senda, Marx e Engels foram incansáveis na revelação da real natureza do Estado na sociedade capitalista e de como esta instituição serve exclusivamente aos interesses da classe dominante2. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 1964, p. 135-6) Esta natureza, no entanto, apresenta-se de forma complexa e contraditória, já que também se caracteriza como função do Estado a regulação do conflito entre o capital e o trabalho, mantendoo sob o controle estratégico e necessário. Dentre as tarefas assumidas pelo Estado sob esta feição, há a necessidade de se legitimar as relações sociais construídas, apresentando-se aos desavisados como uma entidade de natureza política capaz de representar os diversos interesses da coletividade em geral, acima de suas diferenças particulares e à parte dos conflitos presentes na relação entre o capital e o trabalho, já que estes seriam, em tese, assuntos a serem resolvidos pelos agentes econômicos que atuam na sociedade. Sob esta perspectiva, a de se colocar acima dos antagonismos sociais, o Estado moderno estaria à margem da estrutura produtiva do capital, nela não intervindo por estar aparentemente neutro diante dos embates travados em um campo cujos fatores de explicação seriam apenas econômicos, o que levaria ao equívoco de que nas demais áreas, jurídica e cultural, por exemplo, não haveria o império da lógica do capital e, por extensão, seriam arenas imunes às exigências estruturais do modo de produção capitalista. No entanto, como o curso da história insiste em demonstrar, o Estado edificado a partir da modernidade nasceu com uma função bem definida a desempenhar. Desta ótica, historicamente se torna impossível desvincular o denominado Estado moderno da ordem burguesa e suas contradições subsequentes. Assim sendo, passa, então, a ser cada vez mais visível que o Estado é capitalista e, mais do que isso, é do capital. O controle do poder políticoeconômico é exercido pelos proprietários dos meios de produção, não importando aqui o modo como estes estejam aglutinados, cabendo ao Estado fundamentalmente garantir a propriedade privada, entendida com fundamento da liberdade individual. O Estado, portanto, é um partícipe intrínseco da lógica do capital. (SANFELICE, 2003, p.162)

2 Em A Ideologia Alemã os autores dedicam-se à análise histórica do Estado, demonstrando a constituição de seu caráter burguês. Mais tarde, em O Manifesto Comunista, Marx e Engels enfatizam a sua condição de gestor dos interesses do capital: “O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. (MARX e ENGELS, 1988, p. 23)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Distantes desta compreensão, alguns estudos e análises apontam a educação ao largo do processo histórico de disputa hegemônica do poder e negam condições que lhe são inerentes, quais sejam a de determinar e ser determinada pelas relações sociais nas quais se insere. Neste mesmo sentido, o uso do termo “educação pública” como tem sido corrente é, antes, a expressão de uma armadilha ideológica cuja presa é a ideia de que o Estado teria condições de construir um sistema de ensino que atenderia a todos, a despeito dos conflitos de classe existentes no cotidiano e expressos na materialidade das coisas. Adotar o conceito sem colocá-lo em crise seria aceitar que o Estado, por meio das chamadas Políticas Públicas Educacionais, teria condições de atender aos interesses coletivos dos agrupamentos humanos, satisfazendo suas mais diversas necessidades, esquecendo-se, porém, de sua condição de instrumento classista e estratégico para a satisfação de um projeto de sociedade apenas de um grupo determinado. É corrente no meio acadêmico e social alardear que incide sobre a educação uma crise que compromete sua qualidade em todo o país, condição que seria bastante aguda no ensino jurídico, já que esta área seria responsável pela formação acadêmica inadequada de dezenas de milhares de egressos das faculdades de Direito a cada ano, situação que passou a ser evidenciada pelo hábito recente da mídia em divulgar os baixos índices de aprovação no exame de aptidão realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), avaliação mais conhecida como Exame de Ordem. Nesta perspectiva, segundo representantes desta entidade, de associações de professores, do Ministério da Educação (MEC), dentre outras vozes que passaram a debater o tema, é por conta de uma formação precária e generalista, portanto pouca crítica e reflexiva, que os bacharelandos desses cursos não estariam aptos a enfrentar os desafios presentes na atualidade e, por deficiência de formação, faltariam aos novos profissionais do Direito a capacidade de análise e as condições de intervenção nos conflitos da sociedade moderna com vistas a solucioná-los. Para enfrentá-la, divulga-se no meio a necessidade urgente de uma reformulação substantiva neste campo do ensino superior que se pratica hoje no Brasil, aproximando-se os dois eixos de formação que moldam esse curso, o profissional e o teórico, o que sanaria, pelo menos em parte, as consequências da alegada crise. A partir desta perspectiva, as faculdades de Direito se dedicaram nos últimos anos à reformulação de seus projetos didático-pedagógicos, anunciando em seu teor o combate à formação tradicional e pouco crítica, movimento que ocorreu impulsionado, em parte, sob a orientação dos novos instrumentos de regulação elaborados pelo poder público para o setor. Não compartilhando desta reflexão, defendemos a tese de que a proposta de uma educação jurídica humanista e ética, aliada à efetiva preparação para o desempenho profissional, anunciadas com ênfase e devidamente formalizadas nos instrumentos que regulam a implantação, autorização, reconhecimento e convalidação dos cursos de Direito no país na última década e reproduzidas nos Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) dos cursos jurídicos do Brasil não se sustentam diante das exigências impostas pela mundialização do capital. Dentre outras exigências, destaca-se a instrumentalização do conhecimento em favor dos interesses do mercado e alheio a qualquer projeto concreto de transformação social, condição que estabelece uma contundente contradição no âmbito do ensino jurídico realizado no país: se por um lado a ampliação do acesso aos cursos de Direito traz a promessa de se promover a inserção social de parcela de alunos que até então estavam alijados do saber acadêmico próprio da área, por outro lado há o avanço de uma tendência de precarização formativa que incide sobre os estudantes do ensino superior no Brasil, na medida em estes cursos se limitam em oferecer uma formação generalista e inadequada à compreensão e intervenção nos complexos conflitos por que passa a sociedade atual, o que repercute, muitas vezes, no atendimento a interesses de classe, ou de frações de classe, e no adiamento da exclusão social desses sujeitos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A abordagem deste tema impôs perguntas ao articulista que mereceram enfrentamento no curso da pesquisa concluída no final do primeiro semestre deste ano. Em síntese: a) Pode-se dizer que há políticas públicas para o ensino jurídico brasileiro nas últimas décadas? Caso haja, qual o modelo de ensino jurídico que se depreende destas públicas educacionais? b) Há uma crise do ensino jurídico hoje no Brasil? A que crise se referem as entidades e os agentes envolvidos neste processo? e c) Há uma análise destas entidades e agentes acerca de uma crise estrutural por que passa o capital na contemporaneidade na qual se inserem a educação e, por extensão, a educação superior e o ensino jurídico brasileiros? Na busca por respostas aos questionamentos levantados, compreendemos que essas problemáticas são resultado do desdobramento de um processo mais amplo cujas transformações sociais situam o Brasil no universo da divisão internacional do trabalho (DIT), processo que o mantém na condição de consumidor de tecnologias no grande mercado instituído pela mundialização do capital. Fiando-se por este norte, de que a crise é do capital e não da educação jurídica, a pesquisa realizada teve por hipótese de que o discurso construído no entorno da propalada crise do ensino jurídico gira em torno de si mesmo e não agride as estruturas do sistema do capital, servindo antes para legitimar mudanças que não mudam e transformações que não acontecem. Esta hipótese ganhou força no curso no trabalho ao se constatar que apesar deste discurso repercutir em práticas bem intencionadas que podem modificar pontualmente as formas do ensino superior em Direito se realizar, reorganizando a contraposição de forças entre os sujeitos políticos que dialogam e/ou ocupam as estruturas do Estado, tal conduta se vincula, antes, a manifestações gestadas no campo de ideias que, muitas vezes, não possuem ressonância na materialidade das coisas, constituindo-se, em certa medida, à margem das condições objetivas pautadas pelo modo de produção dominante na sociedade. A pesquisa que realizamos teve acesso a diversas fontes de informação e nos permitiu trabalhar com diferentes documentos de análise, alguns bastante estratégicos e prenhes de informação a revelar. Desse modo, por exemplo, avaliamos os projetos pedagógicos dos oito cursos de Direito situados na cidade de Uberlândia/MG, investigando acerca do perfil de egresso de cada qual, problematizando a formação do profissional que tais faculdades anunciam ao MEC, no âmbito interno e à sociedade por meio de suas constantes campanhas de divulgação. As políticas públicas (ou a falta delas, como consideramos no final do estudo) presentes nos regulamentos, resoluções, decretos e portarias editados pela Câmara de Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE) mereceu análise e cotejo com o referencial teórico que sustentou o trabalho de pesquisa. Alguns documentos desta natureza foram elaborados também pela Comissão de Especialistas de Ensino de Direito (CEED) vinculada ao MEC e por sua Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES), destacandose as diretrizes que contém. Documentos produzidos no embate político pela Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi)3 e pelo Conselho Federal da OAB (CFOAB), por meio de sua Comissão Nacional de Educação Jurídica (CNEJ), também foram considerados, destacandose os informativos e textos públicos divulgados ao longo da década que se referem à propalada “crise do ensino jurídico”. Estes os sujeitos políticos mais atuantes nos embates envolvendo o ensino superior em direito no Brasil nas duas últimas décadas. As práticas políticas e os discursos produzidos pelo MEC, pela OAB, e pela ABEDi evidenciam, sobretudo, os conflitos e os diferentes projetos de sociedade que

3 A ABEDi é uma entidade criada em 2001 especificamente para congregar professores e instituições de ensino que declaram ter por objetivo melhorar a qualidade do ensino do direito no Brasil. Atuou diretamente na conformação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação. Seu histórico no ensino jurídico e o projeto de sociedade que defende foram considerados no primeiro capítulo deste estudo.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 cada qual possui, ora convergentes em determinado momento, ora revelando dissensos quanto à compreensão do que é ensino e/ou educação jurídica e a quem ele/ela devem servir. Neste sentido, a CEED foi criada no bojo da instalação das Comissões de Especialistas em Ensino criadas por meio da Portaria MEC nº 15, de 29 de janeiro de 2003, e passou a se manifestar nos processos de autorização e reconhecimento dos cursos de graduação após a extinção do Conselho Federal de Educação. Próxima da OAB e de outros sujeitos políticos nos anos 1990, a comissão promoveu importantes seminários em 1993 para tratar de temas vinculados especificamente à área do ensino superior em direito. Das discussões havidas em torno da elevação da qualidade dos cursos, da reforma do currículo e da necessidade de avaliação interna e externa, consolidaram-se propostas que repercutiram na criação da Portaria MEC Nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, documento de forte impacto na gestão e nas atividades acadêmicas dos cursos de Direito, na medida em que passou a disciplinar as novas diretrizes curriculares e o novo currículo mínimo a ser observado em todo o país. A partir desta portaria e, sobretudo, do início de sua vigência em 1997, parte mais atuante da comunidade acadêmica vinculada ao ensino jurídico passou a debater com mais ênfase a situação da área, elaborando propostas que foram sistematizadas pela comissão. A ênfase dada foi no sentido da flexibilização do ensino jurídico, pois os cursos de Direitos estariam tradicionalmente engessados e alheios às mudanças de seu tempo, tendo como consequência a não preparação dos estudantes para o domínio de habilidades e para a construção do conhecimento necessário à sociedade em que vivem. O discurso, portanto, caminhou em defesa da formação de um novo cidadão, capaz de intervir em uma realidade social refratária aos valores humanos mais dignos. O perfil desejado do formando de Direito repousa em uma sólida formação geral e humanística, com capacidade de análise e articulação de conceitos e argumentos, de interpretação e valoração dos fenômenos jurídico-sociais, aliada a uma postura reflexiva e visão crítica que fomente a capacidade de trabalho em equipe, favoreça a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, além da qualificação para a vida, o trabalho e o desenvolvimento da cidadania. Nesse sentido, o curso deve proporcionar condições para que o formando possa, ao menos, atingir as seguintes características em sua futura vida profissional: (a) permanente formação humanística, técnicojurídica e prática, indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais; (b) conduta ética associada à responsabilidade social e profissional; (c) domínio da gênese, dos fundamentos, da evolução e do conteúdo do ordenamento jurídico vigente; e (d) consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço. (BRASIL, 2000, p. 3) O investimento neste perfil de aluno se justificaria em face das “competências e habilidades desejadas” de um formando que almeja atuar como um profissional de Direito, com destaque para sua atuação na advocacia, na magistratura, no ministério público ou no magistério. Definem-se, desse modo, que habilidades são importantes para se alcançar determinadas capacidades. Já a OAB, por meio da Lei Federal n. 8.906/94 4 e pelo Decreto n. 1.303/94 que a regulamentou, foi autorizada pelo Estado a atuar em favor da qualidade no ensino jurídico em todo Brasil, 4 A referida lei define o Estatuto da Advocacia e da OAB, constituindo-se em um conjunto de normas estabelecendo os direitos e os deveres dos advogados, bem como os fins e a organização da OAB. A sua aprovação com status de lei federal em 04 de julho de 1994 representou uma vitória para entidade conquistada perante o Congresso Nacional, com a sanção do então presidente Itamar Franco, nele se destacando, com força cogente, as prerrogativas dos seus membros a serem observadas pelos agentes do Estado e pela sociedade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 manifestando-se obrigatoriamente nos processos de autorização e de reconhecimento dos cursos jurídicos, ainda que seus pareceres não sejam vinculantes, tornando-a, em certa medida, um órgão regulador com força para expedir instruções normativas que interferem na abertura e no desenvolvimento de cursos de Direito no país. Desse modo, a instituição passou a acompanhar os caminhos adotados pelas políticas educacionais e insiste na sua importância como entidade que supervisiona o ensino jurídico no país, manifestando-se, muitas vezes com alarde, sobre os processos de avaliação educacional implantados na área, como, por exemplo, o ENADE, o Índice Geral de Cursos (IGC) e os documentos internos do MEC. O que dispõe a entidade por meio de documentos elaborados por sua CNEJ não coincide com as exigências estabelecidas pelo MEC para autorizar a criação de novos cursos pelo país, já que a entidade valoriza, sobretudo, o critério da “necessidade social” na fundamentação dos seus pareceres, apurando se a localidade em que se pleiteia o curso tem condições estruturais para recebê-lo. São, no entendimento da entidade, atos administrativos de regulação do ensino jurídico vinculados às políticas educacionais que se implantam no ensino superior de direito. Com efeito, a relação entre ambos se estabelece com mais dissensos do que consensos, estando a OAB, por um lado, exigindo o cumprimento da determinação legal que a reconhece como agente regulador da área, identificando no MEC uma omissão quanto à avaliação de qualidade dos cursos jurídicos e sua responsabilidade pela política expansionista orientada pela privatização da educação superior e, de outro, o ministério argumentando que as práticas da entidade, aliadas ao discurso combativo que imprime ao debate, caracterizam uma interferência descabida em atividades que são exclusivas do Estado. (...) confirma-se o motivo pelo qual se estabelece um desencontro de políticas entre o MEC e a OAB. Enquanto o primeiro busca a expansão da educação superior (serviço não exclusivo do Estado) pela iniciativa privada, conforme advogava Bresser Pereira (2003), o segundo busca regular o ensino jurídico promovendo sua qualidade, mediante instruções normativas bem definidas que em tese seria um “freio” para a autorização de novos cursos jurídicos no Brasil, por meio do critério da necessidade social. (FEITOSA NETO, 2007, p. 103) Mais recentemente, no primeiro semestre de 2014, a entidade entregou ao Ministério da Educação uma série de propostas para a possível inclusão em um novo marco regulatório do ensino jurídico que se anuncia no país. A CNEJ realizou 32 audiências públicas durante o ano de 2013, patrocinadas pelo Conselho Federal e que indicam, ao menos, que o tema é presente na pauta nacional de reivindicações da entidade. Já a Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi) foi criada em 2001 com a finalidade de reunir os professores dos cursos jurídicos do Brasil para debater os problemas que atingem a educação superior em Direito no país, pensando na proposição de soluções à alardeada crise do ensino jurídico. Desde então divulga nos seus encontros o compromisso com a educação e com o ideal de justiça, acreditando na possibilidade de se garantir um Direito que emancipe as pessoas e que se vincule aos ideais republicanos e democráticos. A associação compartilha da concepção presente no MEC e na OAB de que faz mais de 30 (trinta) anos que o tema da crise do ensino jurídico ocupa os especialistas da área, com muita proposta de resolução apresentada sem efeito real sobre o ensino que se materializa no país. Reconhece que a situação se tornou mais complexa nos últimos anos em razão da acelerada expansão da oferta de vagas e da eventual ascensão social das classes populares, o que tem repercutido na continuidade dos índices de ingressantes em seus cursos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A ABEDi divulga que, apesar das dificuldades que o estado da arte demonstra, é possível investir na construção de uma identidade social, profissional e política dos professores da área. Elemento essencial de qualquer projeto educacional, a docência, no caso do ensino jurídico, tem dificuldades em se afirmar como alternativa profissional e estilo de vida exclusivos daqueles acadêmicos ligados ao Direito, sendo ainda predominante o perfil do profissional-docente — o advogado, promotor ou juiz que, com ou sem formação e titulação específica, dedica-se ao magistério como atividade importante, mas não exclusiva em sua subsistência e em seu projeto de vida. Construir uma identidade (ou melhor: diversas identidades) do docente em Direito passa necessariamente pelos debates sobre a formação para a docência — papel esperado dos mestrados e doutorados, em geral ineficientes nesse aspecto —, sobre suas condições objetivas de trabalho — debate que deve ir além dos aspectos estritamente trabalhistas, alcançando mesmo outros elementos relacionados ao desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da extensão — e sobre o posicionamento e a visibilidade do docente como um ator político capaz de influenciar os debates acadêmicos, legislativos e regulatórios sobre os rumos do ensino do Direito no Brasil. (ALMEIDA, 2011, texto digital) Para José Ribas Vieira, membro histórico e uma espécie de crítico autorizado da entidade, a ABEDi se destacou no seu início por traduzir “uma legitimidade de pertencimento associativo”, razão pela qual alcançou reconhecimento por parte comunidade acadêmica do Direito quando o tema versava sobre avaliação do ensino. Esta, também, a razão do seu limite, tendo ficada aprisionada à condição de grupo de pressão em relação ao MEC. A postura da ABEDi não pode estar afastada de um comprometimento critico e interdisciplinar do direito. A ABEDi tem de assumir o risco ser um espaço público do anti-poder no direito. A reformulação da educação do direito como foi delineada nos anos 80 do século passado traduzia um profundo comprometimento critico e emancipatório. Tal direcionamento tem de ser cada vez mais retomado em espaços associativos da comunidade acadêmica jurídica. O discurso da ABEDi, assim, volta-se para que o ensinoaprendizagem no campo do direito não é um mero “locus” para autoridades e obras “manualescas”. O “anti-discurso” pode levá-la como entidade associativa para um isolamento institucional. É um preço agregativo que merece ser enfrentado em razão de reforçar a sua identidade política. Identidade esta que sofre a concorrência de uma formação jurídica cada vez mais seduzida e deslumbrada pelo poder. (VIEIRA, 2011, texto digital) Menos prestigiada nos últimos anos, já que seus representantes não alcançaram a representatividade esperada junto aos órgãos de regulação, o grupo de professores mais atuante da associação continua divulgando em textos esparsos a necessidade de transformações no campo educacional como o caminho a ser seguido para a formação de uma nova elite intelectual no Brasil, diferente da condição que mantém a formação tradicional e conservadora sedimentada no setor. Na perspectiva apontada no período estudado, a atuação do Estado reservada para o campo educacional voltado para o nível superior se revelou bastante heterogênea, ora deflagrando práticas de evidente privatização servindo aos interesses de empresários do setor, ora se anunciando como medidas que levariam à sua democratização em razão dos incentivos de acesso.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A receita pressupôs o casamento entre democratização e mercantilização da educação superior. Neste sentido, divulgou-se aos quatro cantos do país a atuação do Estado em favor do aumento substancial das oportunidades educacionais, ocultando-se os questionamentos acerca das condições das instituições de ensino em relação à qualidade acadêmica de seus cursos. O recorte histórico eleito pela pesquisa evidenciou as mudanças que transformaram a face da educação superior no Brasil, adaptando-a ao rolo compressor da reforma do Estado brasileiro. Assim, no período, ocorreu significativo aumento do número de instituições e, nas já existentes, a ampliação ocorreu pela imposição de novos cursos e, do mesmo modo nos já existentes, pelo aumento considerável de vagas que ofertavam. Expandir era o mote e o campo da iniciativa privada se demonstrou vasto para servir à proposta. Segmentar e diferenciar o setor eram os caminhos para se atender às exigências de um mercado em ebulição. Novos serviços passaram a ser ofertados em nome da competitividade capitalista, alterando-se profundamente os modos de inserção acadêmica na vida social. Esse processo implicou alterações na concepção e organização da educação superior implementadas por mudanças na legislação educacional, ao mesmo tempo em que sinalizou para a diversificação institucional, secundarização do setor público, diversificação de fontes de financiamento voltadas para a educação superior privada, redução do escopo da autonomia universitária. Tais alterações implicaram, substantivamente, em um processo de expansão matizado por precarização da qualidade da educação e por viés nitidamente privado. (LEHER, 2003 apud ADRIÃO; PERONI, 2005, p. 61) A reorientação das políticas públicas modificou as formas de intervenção do Estado brasileiro. Como tratado, novas formas de gestão rapidamente ocuparam a cena, servindo-se do discurso da modernização da organização estatal em busca de qualidade e eficiência. Como pano de fundo, por meio de suas políticas educacionais, o Estado brasileiro atuava devidamente orientado pelos organismos multilaterais. Se havia crise, portanto, esta crise se justificava pela má gestão que o Estado imprimia à coisa pública e não pelas condições materiais e objetivas pautadas pela expansão do capital. Insistiu-se na tese de que a crise seria do Estado e não do sistema a que ele serve. O ensino superior, neste sentido, era ineficiente e gastador, pelo que os novos gestores concluíram que a contenção de recursos públicos destinados ao setor era medida que se impunha e que o mercado era a instância dotada dos atributos necessários para a superação das dificuldades econômicas. Inserir a lógica mercantil na administração do setor foi o enlace possível entre mercantilização e democratização da educação superior. Consoante com tais prescrições, a perspectiva neoliberal sugeria, basicamente, duas estratégias: a primeira buscava transferir a responsabilidade pela execução e pelo financiamento das políticas sociais diretamente para o mercado, por meio da privatização de setores da estrutura estatal; a segunda, no caso do que fosse mantido no âmbito do Estado, propunha a introdução da lógica mercantil em seu funcionamento. Neste último caso, vale lembrar o incentivo a processos concorrenciais entre setores da atividade pública ou entre estes e setores privados, tanto para angariar subsídios públicos para a oferta de seus serviços quanto para legitimar as mudanças organizacionais no interior da esfera estatal resultantes da introdução da lógica mercantil. (ADRIÃO; PERONI, 2005, p. 139)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Principalmente a partir da metade da década de 1990, medidas foram tomadas no interior do Estado que resultaram em programas que conduziram significativa parcela de alunos às instituições de ensino superior, sobretudo às de natureza privada, por meio de formas diferenciadas de financiamento e subsídios, com destaque para o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e para a concessão de bolsas universitárias justificadas pela autonomia de cada instituição. A par e passo, com fins de sustentar a lógica da intervenção governamental, surgiram instrumentos regulatórios que se amparam no argumento da necessidade de se avaliar e gerenciar um sistema tão complexo, sendo o Exame Nacional de Cursos, popularmente chamado de Provão, o mais saudado dentre eles no período. Autorizar, credenciar, recredenciar. É preciso etiquetar os cursos, já que, disponíveis no mercado, eles precisam ser classificados e ofertados de acordo com as possibilidades reais e desejos daqueles que os consomem. Esta condição se impôs de modo muito evidente na seara do ensino jurídico brasileiro. Ainda que haja hoje uma retração da demanda considerando a ampla oferta de vagas do sistema, os cursos de Direito continuam atraindo um grande contingente de estudantes para suas fileiras, o que muito se justifica pelo status social que as profissões da área jurídica ainda ostentam e também pelos investimentos em propaganda e marketing que as instituições se valem para divulgar os seus cursos. Os dados não são exatos, mas sabe-se que há hoje no país mais de 1.200 (mil e duzentos) cursos de Direito em funcionamento. Segundo informações apresentadas pelo INEP em diferentes momentos, a expansão foi bastante considerável durante a década de 1990 e continuou, ainda que em menor proporção, ao longo dos anos 2000. Eram 165 cursos em atividade em 1991, um pouco mais de 500 em 2001 e, dez anos depois, já somavam 1.174 cursos de Direito em todo o Brasil. Os documentos elaborados pelo Poder Público que incidem sobre os cursos de Direito nas duas últimas décadas tiveram a pretensão de se declararem como políticas públicas necessárias para debelar a crise que atinge o ensino jurídico brasileiro. Tais documentos ora foram produzidos pela relação mais próxima estabelecida em alguns períodos entre o MEC e a OAB, ora em razão dos dissensos existentes entre eles, ora foram resultados da participação mais assídua de membros da ABEDi que pressionavam integrantes das comissões existentes no ministério e na referida entidade que tratavam das condições do ensino superior em Direito no Brasil. Neste sentido, divulgar a intenção de formar “profissionais comprometidos com o Estado Democrático de Direito, com sólida formação geral, humanista”, capazes de se destacaram dos demais por conta do “domínio de conceitos e terminologia jurídica que os torne capazes de analisar, interpretar, valorizar os fenômenos jurídicos e sociais”, sem considerar as condições materiais sobre as quais se assentam esta área do saber, é desprezar a condição da educação como produto social, construída a partir das relações concretas que os homens estabelecem entre si à luz das diferentes concepções de mundo que possuem. Na perspectiva do referencial teórico que sustentou a pesquisa realizada, não há possibilidade de que os cursos de Direito se tornem em algo diferente do que são a partir, apenas, da redefinição de suas finalidades, como se o desejo de mudança fosse, a priori, a condição para a materialização das transformações que se deseja. Os PPPs se tornam “folhas de papel” porque elaborados de forma abstrata, sem referência à realidade sobre a qual pretendem interferir. Surgem do plano das ideias e anunciam o que não pode ser materializado a partir desta origem. Estou afirmando, portanto, que para o marxismo não faz o menor sentido analisar abstratamente a educação, pois está é uma dimensão da vida dos homens que, tal qual qualquer outro aspecto da vida e do mundo existente,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 se transforma historicamente, acompanhando e articulando-se às transformações do modo como os homens produzem a sua existência. A educação (e nela todo o aparato escolar) não pode ser entendida como uma dimensão estanque e separada da vida social. Como qualquer outro aspecto e dimensão da sociedade, a educação está profundamente inserida no contexto em que surge e se desenvolve, também vivenciando e expressando os movimentos contraditórios que emergem do processo das lutas entre classes e frações de classe. (LOMBARDI, 2010, p.13) Neste sentido, por não se reconhecer que o ensino jurídico também se apresenta como mais uma mercadoria elaborada pelo modo de produção capitalista, também não se reconhece que a crise que sobre ele se incide é a crise do capital e não uma própria, especial, gestada a partir de elementos que lhe sejam específicos. Para o marxismo a crise é entendida como o colapso dos princípios básicos que regem o funcionamento de uma determinada formação social ou de um determinado modo de produção, geralmente fazendo-se a distinção entre as crises parciais ou conjunturais, características dos ciclos de desenvolvimento econômico, daquelas que expressam depressões e colapsos mais profundos e que conduzem a uma transformação profunda, estrutural, das relações econômicas e sociais características de um determinado modo de produção. As crises gerais se expressam no enfraquecimento das relações societais organizativas das relações econômicas, sociais e políticas; sua manifestação se expressa no esgotamento de um determinado padrão de acumulação. É nesse sentido que os estudiosos dos ciclos econômicos apontam para dezenas de crises conjunturais e algumas poucas e profundas crises estruturais. (LOMBARDI, 2010, p. 66) Lombardi (2010) demonstra assim que o conceito de crise extraído da obra marxiana é resultado da análise das contradições que o capitalismo produziu no curso de seu desenvolvimento, advindo pelo “uso intensivo de capital e da incorporação das ciências aos processos produtivos”. Logo, o que ocorre é uma contínua concentração de matérias primas, meios de produção e capitais. Portanto, não há como analisar o particular sem considerar o que é determinante em termos gerais, mais amplos, de modo que o que ocorre nos processos educativos só pode ser compreendido se considerados efeitos cujas causas são de ordem bem mais complexa. Fortalecendo seu entendimento, o autor cita artigo de César Benjamim versando sobre a condição da sociedade atual. Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 e necessidades voltados à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria. (BENJAMIM apud LOMBARDI, 2010, p.78) Acreditar que a realidade que se observa no ensino jurídico brasileiro possa ser explicada a partir de si mesma poderia, antes, como indicado pela etimologia do termo, ser apenas uma crença. Antes de ser uma crença, no entanto, é uma armadilha ideológica que se apresenta para não se ver o que se é. Assim, divulgar que a crise pode ser contida quando se atinge a compreensão do fim a ser alcançado e não das causas que a determinam é recusar-se à análise do que é concreto, do que é real, não reconhecendo que a condição do ensino jurídico brasileiro se vincula à condição da educação no Brasil como um todo e que esta, por sua vez, possui uma relação de estreita dependência das práticas sociais sobre as quais se inserem. É exatamente essa discussão que a dimensão da atual crise recoloca. Recoloca que Marx tinha razão em prognosticar que o modo de produção capitalista seria compelido a revolucionar incessantemente a produção, a aumentar a massa de mercadorias, igualmente mercadorizando todas as coisas, todas as relações e, enfim tudo sendo transformado em mercadoria. O brutal desenvolvimento das forças produtivas, a constante transformação da produção, ampliará incessantemente a esfera de influência do capital, assim como do espaço geográfico do circuito mercantil e da acumulação de mais riquezas e mais populações participando do processo. O aumento da potência produtiva, a expansão do espaço da acumulação, a revolução técnica incessante, todo o planeta, todos os setores econômicos, todas as empresas, transformadas em monopólios e oligopólios, passam a ter seus destinos igualmente cada vez mais interrelacionados. (LOMBARDI, 2010, p. 83) Quando, por exemplo, os projetos políticos pedagógicos dos cursos de Direito enaltecem uma preocupação no sentido de assegurar ao aluno e futuro profissional do direito uma formação mais ampla diante da necessidade de uma “prática jurídica desenvolvida junto à comunidade, no sentido de propiciar condições para que o futuro jurista possa se inteirar da realidade sóciojurídica de seu meio circundante”, edifica-se um discurso sem amparo na realidade social, pois é retórica que parte do pressuposto de que as transformações sociais são fruto de uma vontade, de um pensamento, enfim, são resultado do plano das ideias. O projeto do capital necessita vender sonho para que continue se apresentando como um projeto. Ingressar em um curso com a tradição que as faculdades de Direito ostentam, envolver-se na retórica do sucesso profissional a partir do esforço próprio, apresentar um diploma de curso superior em um país que nega esta condição a maior parte de seus jovens, enfim, são condições que têm seu impacto no cotidiano das relações, mas que, se limitadas a si mesmas, não são suficientes para transformar a realidade social e tampouco para agredir os fundamentos de um sistema. Há, sim, políticas que incidiram sobre a educação superior brasileira no período estudado, elaboradas a reboque do modelo econômico vigente e, por esta razão, sobretudo, devem ser consideradas como práticas que opuseram os diferentes interesses dos representantes de grupos presentes no campo educacional como mais um local em que ocorre a luta de classes na sociedade em que vivemos, tanto assim que as estruturas do sistema não foram agredidas pelas

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 medidas tomadas e tampouco o setor privado sofreu retração em seu histórico de expansão, como foi possível se observar no período. Por isso insistimos que toda a retórica que envolve a publicação dos projetos políticos pedagógicos dos cursos de Direito observados na pesquisa realizada deve ser considerada à luz de sua subordinação ao universo da produção científica mundial, pois, mesmo que bem intencionados quando projetam sucesso e destaque na formação de seus egressos, estes documentos exaltam antes o discurso da empregabilidade e da condição individual como anátemas para a vida de cada um, como se estas prerrogativas fossem suficientes para suprir a precariedade das políticas públicas voltadas para o setor. Portanto, fiel ao mundo das aparências e, de tal modo, à logica do capitalismo, o que temos hoje como evidente é o tratamento midiático que envolve o ensino jurídico brasileiro, representado, por exemplo, de tempos em tempos, pelas manifestações públicas da OAB em favor de medidas restritivas em relação a novos cursos de Direito no país ou quando pleiteia uma maior atuação fiscalizatória por parte do Estado, ou, ainda, pelas declarações de representantes do MEC atendendo a reclamos localizados quando anuncia “medidas impactantes” para regular a área, publicando decretos e portarias que cuidam do particular e não consideram a complexidade do universo da educação e os desafios que enfrenta quando considerada sua submissão às condições definidas pelo modo de produção capitalista. Pelo mesmo raciocínio, também entendemos que os projetos políticos apresentados pelos cursos observados servem mais ao mundo das aparências do que às pessoas a que se dirigem, pois declaram o que não se sustenta quando apenas fazem coro ao discurso bem intencionado que defende modificações pontuais na organização do ensino superior em Direito, como se fosse possível reformar o que é tributário de uma totalidade sistêmica definida pelo modo de organização da sociedade, restando preservada sua essência diante de utópicas medidas de correção. Por esta razão, os sujeitos envolvidos nesse embate não reconhecem que a expansão do ensino superior em Direito ocorrida nas duas últimas décadas no Brasil pode ser explicada pelo próprio movimento do capital em se reproduzir, já que esta situação requer, por exemplo, novos mercados a serem explorados, estando os cursos de Direito habituados a declarar que a formação que oferecem é alternativa à presente crise do desemprego, desconsiderando, portanto, a proletarização de seus estudantes e a condição de subordinação que o país assumiu em termos de produção de ciência e tecnologia no mundo contemporâneo. Referências ADRIÃO, Theresa; PERONI, Vera. Público não-estatal: estratégias para o setor educacional brasileiro. In ADRIÃO, Theresa; PERONI, Vera (orgs.). O público e o privado na educação: interfaces entre Estado e sociedade. São Paulo: Xamã, 2005. ALMEIDA, Frederico de. Os cursos jurídicos e a educação republicana. In: Última Instância. 21 set. 2011. Disponível em:< http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/artigos/53201/os+cursos+juridicos+e+a+educacao+rep ublicana.shtml>. Acesso em: 05 fev 2012. BRASIL, MEC/SESu. Diretrizes curriculares do curso de direito. 2000. Disponível em: . Acesso em: 06 jun. 2013. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Vitória, 1964.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 FEITOSA NETO, Inácio José. O ensino jurídico brasileiro: uma análise dos discursos do MEC e da OAB. Recife: Ed. Do Autor, 2007. LOMBARDI, José Claudinei. Reflexões sobre educação e ensino na obra de Marx e Engels. Tese (livre docência) Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. – Campinas, SP: [s.n.], 2010. MARX, Karl; ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach) São Paulo: Hucitec, 1984. MARX, Karl; FRIEDRICH, Engels. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Editora Vozes, 1988. SANFELICE, José Luís. Estado e Política educacional. In: LOMBARDI, José Claudinei (Org.) Temas de pesquisa em educação. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. VIEIRA, José Ribas. O papel da ABEDI no Brasil. 14 maio 2011. In: @educa_jr. Disponível em: . Acesso em 25 de jul. de 2015. 11 Disponível em: . Acesso em 25 de jul. de 2015. 12 Informações retiradas do site: . Acesso em: 24 de jul 2015. 13 Interessante destacar que antes da Segunda Guerra Mundial, a suástica era associada com ritos de diversas religiões. Segundo Langer (2010, p.07), trata-se de “um dos mais antigos e difundidos símbolos do mundo euroasiático, existindo em culturas como as dos povos das estepes até as ilhas britânicas”. 10

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 narrar sua história – apresentada em flashback. Na cadeia, cercado de negros e latinos, Derek logo se junta a um grupo de neonazistas. Na prisão, é designado para trabalhar na lavanderia com um negro. Ao compreender que Derek era um neonazista, o negro lhe diz que na cadeia, o negro é ele. Tempos depois Derek começa a perceber que os neonazistas estão trocando favores com latinos e se enfurece. Um deles diz para ele pegar leve, pois é tudo política e eles estão cansados da pregação retórica do movimento. Além disso, seus companheiros o advertem que Derek ainda não foi morto graças ao grupo. É aí que Vinyard percebe que os neonazistas da cadeia não acreditavam no discurso que aparentemente propagavam e tenta se afastar deles. Depois de algum tempo de convivência, Derek começa a interagir com o negro com quem trabalha. Nesta cena, Derek lhe pergunta o motivo pelo qual foi preso. Ele não quer contar pois diz que é constrangedor. Após certa insistência, se abre. Ele roubou uma TV numa loja, os policiais o perseguiram, e ele acidentalmente deixou a TV cair no pé de um dos policiais. Resultado: pegou uma pena de seis anos por agressão policial. Derek mostra-se um pouco cético, e o questiona se realmente ele não jogou a TV de propósito. Seu colega afirma que não, que foi um acidente. Mas ainda assim irá cumprir uma pena maior que a de Derek, três anos, que assassinou dois negros. Observe-se que o neonazista é designado, contra a sua vontade, a trabalhar com um negro. Questão sobre a qual se poderia refletir é: será que uma convivência com o diferente, ainda que forçada, realmente é capaz de modificar crenças e ideologias pessoais? A fala do negro torna-se interessante para o ponto de vista do ensino em Direitos Humanos, quando pesquisas como a da socióloga Michelle Alexander apontam que existem mais negros nas prisões do que escravos nos EUA, em 185014. Para o Derek de outrora, trata-se de uma prédisposição genética da raça; mas quando os motivos de sua prisão são revelados, o antigo neonazista já não possui tanta certeza. A realidade brasileira não parece tão diferente: pesquisa da Secretaria-Geral da Presidência da República e a Secretaria Nacional de Juventude revela a existência de uma punitividade seletiva, segundo a qual a maioria da população carcerária no Brasil também é formada por negros (BRASIL, 2015). Longe de polemizar sobre as questões penais que envolvem etnia e população carcerária, o discurso do filme levanta um embate interessante, no intuito não de contar o real, mas de representá-lo: a pena para um negro que comete roubo é maior do que para um branco que comete assassinato. É interessante problematizar a existência – ou não – de tratamento diferenciado para negros e brancos na sociedade. Haveria de fato um tratamento desigual 15? Figura 03: Sistema carcerário seletivo.

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Disponível em: . Acesso em 27 de jul. de 2015. Inclusive casos contemporâneos podem ser abordados, como o do menino negro que mesmo em companhia do pai, foi expulso de uma loja luxuosa em São Paulo por ser confundido com vendedor. Mais detalhes sobre o caso em: . Acesso em 27 de jul. 2015. 15

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

Fonte: A Outra História Americana. Produção de John Morrissey, direção de Tom Kaye. New Line Cinema, 1998. IV – Quarta Cena: As ações afirmativas A última cena escolhida para análise é uma reflexão de Daniel sobre como o ódio de Derek pelas minorias teria começado. O garoto se lembra então de um almoço de família no qual o pai dos Vinyard faz um discurso preconceituoso contra as ações afirmativas. É que em seu trabalho de bombeiro existiam cotas para negros, motivo pelo qual o pai acredita que esses cotistas não estão ali por mérito, mas pelo simples fato de fazerem parte de uma minoria – e isso o enfurece. A partir deste discurso, ele diz para Derek tomar cuidado com o discurso sedutor então Professor Sweeney, um negro recém-contratado na escola, que passou literatura negra para seus alunos estudarem. Afinal, é tudo “besteira de negros”. Duas referências interessantes fazem parte deste cena: o livro que Sweeney manda seus alunos lerem, Filho Nativo, um clássico da literatura moderna do escritor Richard Wright sobre questões raciais e preconceitos nos Estados Unidos e a leitura preferida do Pai dos Vinyard, Tom Clancy – historiador e escritor americano de livros sobre ação militar. Figura 04: É “besteira de negro.”

Fonte: A Outra História Americana. Produção de John Morrissey, direção de Tom Kaye. New Line Cinema, 1998. Novamente o cenário é um almoço familiar. A tradicional família de classe média americana conversa, contente, sobre assuntos do cotidiano. A tranquilidade é quebrada quando Derek conta que estava lendo literatura negra na escola onde estuda. O pai até questiona se estão no mês da

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 cultura negra, ou algo assim – como se esse tipo específico de literatura não tivesse lugar no currículo regular do curso. A literatura que deve ser estudada, segundo o pai, é a literatura branca. Derek revela ainda que isto se deve ao fato de que há um novo professor negro na escola, detentor de dois P.H.D.’s, chamado Sweeney. O pai retruca: Derek não deve trocar os outros livros pelos livros negros apenas porque Sweeney mandou. Não se problematiza o porque de haver mais literatura branca disponível, ou o porque este tipo de literatura deve ser considerado superior. Apenas é. Estas questões aparecem como se naturais fossem; como se a literatura estivesse livre de regras 16, como pontuou Bourdieu (2002). Outro ponto de destaque é o descontentamento do pai para com as ações afirmativas. E então é relevado a razão de seu desgosto para com as minorias: dois negros entraram para o seu trabalho, corpo de bombeiros, graças às cotas. O pai dos Vinyard também enxerga a inclusão da literatura negra como um tipo de ação afirmativa, e parece paranoico ao ponto de afirmar a existência de uma conspiração sobre a inclusão do negro. Segundo ele, o papo sobre igualdade não é tão simples quanto querem fazer parecer. Em nenhum momento se problematiza as ações afirmativas como forma de amenizar desigualdades – a igualdade plena não é possível, porque não, e pronto. Assim como a literatura negra é inferior – são pensamentos naturalizados. A mãe, como sempre, tenta intervir e afirma que alguns livros não podem ser entendidos como ação afirmativa. Mas em seu lugar de inferioridade à figura do pai, logo é calada. E a doutrinação de Derek segue, sem que a mulher tente desconstruir ou impedir a proliferação das falácias – o que gerará, na frente, grandes problemas. Por fim, o pai apenas adverte o filho: estude os livros, tire a melhor nota, mas não acredite em tudo, porque não passa de “besteira de negros”. Duas referências são aqui citadas: o livro indicado por Sweeney, Filho Nativo, que também pode ser explorado como atividade complementar, por exemplo uma resenha do livro pode acompanhar a ficha prévia entregue aos alunos; e o tipo de literatura consumida pelo pai dos Vinyard, Tom Clancy, um Autor americano que escreve sobre histórias de guerra e militarismo. O gosto do pai dos Vinyard pode mostrar indícios de sua personalidade nacionalista. b) Roteiro de Análise: Segundo Napolitano (2009), um roteiro previamente elaborado pelo Professor não limita, mas estabelecer parâmetros de análise com base nos objetivos centrais da atividade. O Autor sugere que o roteiro seja dividido em duas partes: uma informativa e uma interpretativa. A parte informativa pode ser deixada a cargo dos alunos, em pesquisa prévia agendada para antes da exibição. A parte informativa deve conter, ao menos, a ficha técnica do filme. No caso de A Outra História Americana, tem-se como diretor Tom Kaye; sua nacionalidade é americana; o ano de produção é 1998; os principais atores são Edward Norton (Derek Vinyard), Edward Furlong (Daniel Vinyard), Stacy Keach (Cameron Alexander), Avery Brooks (Bob Sweeney), Elliot Gould (Murray), Guy Torry (o colega de trabalho na cadeia, Lamont); o gênero seria o drama; o tema central seria o preconceito étnico-racial; os personagens principais são Derek Vinyard. Uma sinopse também deve ser oferecida.

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Para Bourdieu (2002), a arte tem uma série de regras determinantes para o sucesso ou fracasso do artista. Se o indivíduo for bem relacionado, possuir amigos críticos, e gozar de certo status social, é muito provável que terá mais sucesso do que alguém que está fora das redes de sociabilidade e não possua vínculos de amizade significativos. Não é a qualidade da obra, em si, que a torna um marco, mas também o relacionamento social que o artista detem para com quem realmente interessa.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 As questões iniciais sugeridas após a exibição das cenas são: 1)O trabalho escolar de Daniel, exaltando Hitler como herói dos direitos civis, é inofensivo como acredita Sweeney? 2) Quais seriam os limites da liberdade de expressão do aluno, neste caso? 3) É possível que Daniel desaprenda a ideologia absorvida, ou ele realmente está perdido, como acredita Murray? 4) O discurso de Derek, contra as minorias, faz algum sentido – ou seja, possui base verossímel? 5) Ao indagar de quanto tempo os negros precisam para se recuperar, o que Derek aparenta saber sobre escravidão? 6) A história contada pelo colega de Derek, sobre como foi preso, é verossímel? 7) O que faz com que Derek modifique suas atitudes? 8) Você acredita que o discurso do pai dos Vinyard exerceu influência sobre sua conduta? c) Textos de Apoio Caso seja necessário, o professor pode trazer para a sala textos de apoio, como entrevistas com o diretor ou com o elenco, making-off e críticas de especialistas. No caso do filme selecionado, não foram encontradas muitas referências neste sentido. O que se encontrou foi a polêmica entre Tom Kaye e Edward Norton, visto que este último foi convidado a fazer uma nova edição do filme, o que enfureceu o diretor Kaye. Após requerer que seu nome fosse retirado da obra, uma ordem judicial obrigou que o diretor o mantivesse. Por causa disso, Tom Kaye ficou alguns anos afastados de Hollywood17. Textos sobre as referências que aparecem também são bem-vindos, caso o professor julgue interessante. A utilização do caso de Rodney King, de forma a ampliar o debate; o livro Filho Nativo, a diversidade do movimento Skinhead; as diferenças entre Ku Klux Klan e neonazistas; a preferência por leituras de Tom Clay, dentre outras possibilidades. d) Grupo de Discussão Uma vez debatidas as questões iniciais, seria interessante dividir a turma em grupos de forma que cada um escreveria e apresentaria um relatório sobre o que achou dos filmes e dos debates. Caso necessário, o professor pode exibir novamente as cenas em que hajam dúvidas ou obscuridades. Napolitano (2009) também sugere uma síntese da discussão grupal. Considerações Finais Se relegado ao plano legal, da escrita de tratados e convenções, o Ensino em Direitos Humanos torna-se incompleto. É preciso que o aluno, futuro operador destas leis, possua empatia e senso crítico para com elas lidar. Neste sentido, tendo em vista o processo de projeção e identificação apontado por Morin (1983), entende-se que o cinema pode ser uma ferramenta utilizada para despertar a sensibilidade dos alunos. Não se trata de oferecer uma fórmula mágica, capaz de salvar o ensino jurídico da crise na qual se encontra, mas antes de apontar alternativas pautadas em metodologias diferenciadas, no intuito de gerar novas possibilidades de aprendizado. A partir da proposta do historiador Marcos Napolitano, o presente artigo objetivou sugerir um roteiro de análise a ser explorado, alertando o docente para determinados cuidados e detalhes a serem melhor trabalhados. Com isso, se espera que o cinema deixe de ser utilizado como figura 17

Mais informações sobre o assunto em: e < http://migre.me/qWy7I >. Acesso em 24 de jul. 2015.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 ilustrativa, ou preenchedor de lacunas para ausência de docentes, e passe a ser visto como texto audiovisual que é, carregado de representações, significados, reflexões e sobretudo possibilidades de Ensino em Direitos Humanos. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, p. 57-79. 1947. Disponível em: < http://migre.me/qWxW9>. Acesso em 27 de jul. de 2015. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas – Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BRASIL. Presidência da República. Secretaria Geral. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília, Presidência da República, 2015. Disponível em: . Acesso em 27 jul. 2015. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Disponível em: . Acesso em 27. Jul. 2015. COURSEUIL, Anelise Reich; LISBOA, Fátima S.G.; OLIVEIRA, Henrique L.P.; COELHO, Maria Cecília M. N. Introdução. In: Cinema: lanterna mágica da história e da mitologia. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2009. P. 11-14. CRUZ, Rafael Rocha Paiva. Normativa da educação em direitos humanos nas nações unidas e no Brasil. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 115, ago 2013. Disponível em: . Acesso em 27 jul. 2015. FRANÇA, Carlos Eduardo. A violência dos grupos skinheads e a questão da segurança pública: a instituição policial e o combate aos crimes de intolerância 2001-2011. 2013. 133 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências. Marília. 2013. Disponível em: . Acesso em 27 jul. 2015. HIJAZ, Tailine Fátima. O Discurso do Ódio Racial como Limitação à Liberdade de Expressão no Brasil: o Caso das Bandas White Power. Revista Brasileira de Direito. Passo Fundo, v. 10, n. 1, p. 15-32. 2014. Disponível em: . Acesso em 27 jul. 2015. KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. LACERDA, Gabriel. O Direito no Cinema: relato de uma experiência didática no campo do direito. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 BREVES REFLEXÕES: A RESISTÊNCIA OFERECIDA PELO GARANTISMO AOS AVANÇOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO Juliana Gomes Silva1 Angela Araújo da Silveira Espindola2

Resumo O presente estudo tem por objetivo abordar em síntese o diálogo entre Ferrajoli, Streck e Trindade surgido no Simpósio de Direito Constitucional realizado em Curitiba no ano de 2010. Luigi Ferrajoli foi instado a debater com professores, sobre a “resistência oferecida pelo garantismo aos avanços do neoconstitucionalismo” e o espaço devidamente já alcançado. Dessa forma o autor traz argumentos e defende o constitucionalismo garantista, opondo-se ao constitucionalismo principialista. Analisando as diferentes teorias percebe-se que os autores acolhem o constitucionalismo garantista elaborado por Ferrajoli. Os diferentes posicionamentos adotados emergem segundo as linhas adotadas pelas escolas filosóficas seguidas. O diálogo foi posteriormente analisado em textos contidos na obra Garantismo, hermenêutica e (neo) constitucionalismo. Contudo, constatou-se que, é a defesa de uma constituição rígida, de normatividade forte que dá a necessária segurança jurídica que pode possibilitar uma convivência pacífica, democrática e sustentável entre os indivíduos de uma sociedade.

Palavras-chave: positivismo. constitucionalismo. Neoconstitucionalismo

Abstract The present article aims to briefly discuss the dialogue among Ferrajoli, Streck, and Trindade, arisen in the Symposium of Constitutional Law held in the city of Curitiba, in 2010. Luigi Ferrajoli was asked to debate with professors on the “resistance offered by the guarantee of right to trial to developments of neo-constitutionalism” and the place already duly established. Thus, the author argues and defends the constitutionalism of guarantism, opposing to the constitutionalism of principles. From the analysis of fundamentals that support the different theories, it was obtained the conclusion among the authors in analysis that affirm and agree with the constitutionalism of guarantism created by Ferrajoli. Different opinions emerge according to the lines adopted by the schools of thought followed. The dialogue was later analyzed in texts from the work Guarantee of right to trial, hermeneutics, and (neo) constitutionalism. However, it is the defense of a strict 1

Advogada, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Meridional (Imed-RS), Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional (Imed-RS), bolsista Capes. Endereço Eletrônico: [email protected]. 2 Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, Professora Adjunta do Departamento de Direito da UFSM. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED) e Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É Diretora Científica da Associação Brasileira do Ensino do Direito - ABEDI (2012-2014. Advogada, atua na área de Direito Público.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 constitution, of strong normativity that provides the required legal certainty to enable a peaceful, democratic, and sustainable interaction among individuals of a society

Keywords: positivism, constitutionalism, neo-constitutionalism.

1. Introdução

O presente estudo tem por objetivo abordar um diálogo que iniciou-se durante o Simpósio de Direito Constitucional realizado em Curitiba no ano de 2010. Neste diálogo Luigi Ferrajoli é convidado a fazer debate com professores, onde o tema que embasa a pretensa discussão seria a “resistência oferecida pelo garantismo aos avanços do neoconstitucionalismo”. Em um primeiro momento o autor traz argumentos sobre o positivismo jurídico, constitucionalismo garantista e principialista, opondo-se a este último. Neste contexto ao rejeitar o constitucionalismo principialista enfatiza teses centrais que norteiam o presente debate: a conexão entre direito e moral, a diferença qualitativa entre regras e princípios; e o ativismo judicial reforçado pelo uso da técnica da ponderação, no entanto limitar-se-á, nesta síntese, comentar criticamente somente os aspectos relativos a conexão entre direito e moral e ao ativismo judicial. A finalidade do trabalho é sustentar uma concepção de Constitucionalismo Juspositivista, que em conclusão é defendida pelos doutrinadores ora citados. Portanto, constatou-se, que é a defesa de uma constituição rígida, de normatividade forte que dá a necessária segurança jurídica que pode possibilitar uma convivência pacífica, democrática e sustentável entre os indivíduos de uma sociedade.

2. Constitucionalismo garantista: um novo paradigma juspostivista do direito e da democracia.

Ao iniciarmos a pesquisa, é de extrema relevância entender o significado do positivismo jurídico, pois é a mola propulsora do constitucionalismo no entendimento do jurista italiano, e que vem influenciando pensadores do direito em vários países, dentre eles o Brasil. O positivismo jurídico é interpretado, como o modelo que reconhece como direito qualquer conjunto de normas postas ou produzidas por quem está autorizado a produzi-las, independentemente dos seus conteúdos e, portanto, de sua eventual injustiça. (TRINDADE, 2012, p. 99) Para Streck, Ferrajoli explica que o positivismo é uma postura científica que se corporificou no século XIX, como sendo fatos concretos, reais, ou seja, “[...] correspondem a uma determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento”. Remetendo, assim, ao neopositivismo lógico também, o qual também foi denominado de “empirismo lógico”. (STRECK, 2010, p. 160)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Posteriormente é imprescindível conhecer o significado da expressão Constitucionalismo, uma vez que o debate cerca-se dessa discussão. Segundo o autor, constitucionalismo se equivale a sistema jurídico e/ou como teoria do direito. Constitucionalismo equivale a um sistema jurídico – conjunto de limites, rigidamente impostos a todas as fontes normativas pelas normas supraordenadas, e como teoria do direito a uma concepção de validade de leis que não está mais ancorada apenas na conformidade de suas formas de produção a normas procedimentais sobre a sua elaboração mas também na coerência de seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente estabelecidos. (FERRAJOLI, 2012, p.13). Importante a nota que remete o constitucionalismo não somente a positivação das normas, aparecendo já o traço distintivo que é a coerência nos conteúdos, ou seja, a adequação do conteúdo. A produção das normas não tem mais unicamente um caráter formal, relativamente aos procedimentos, mas tem também um interesse material, justamente no conteúdo das normas produzidas. Na concepção de Ferrajoli, o constitucionalismo pode ser concebido de duas maneiras distintas: pode ser entendido como “superação em sentido tendencialmente jusnaturalista ou éticoobjetivista do positivismo jurídico (Neoconstitucionalismo) e como Expansão e seu complemento”. (2012, p.13) Ainda, refere-se ao constitucionalismo garantista como contraposição ao neoconstitucionalismo, no seguinte sentido:

jus-positivismo

reforçado,

em

Oposta é a concepção que denominei “jus positivista” ou “garantista” do constitucionalismo. O constitucionalismo rígido, com escrevei inúmeras vezes, não é uma superação, mas sim um reforço do positivismo jurídico, por ele alargado em razão de suas próprias escolhas – os direitos fundamentais estipulados nas normas constitucionais – que devem orientar a produção do direito positivo. Ele é o resultado de uma mudança de paradigma do velho juspositivismo, que se deu com a submissão da própria produção normativa a normas não apenas formais, mas também substancias de direito positivo. Representa, portanto um completamento tanto do positivismo jurídico como do Estado de Direito: do positivismo jurídico por que positiva não apenas o “ser”, mas também o “dever ser” do direito; e do Estado de Direito” [...]. (FERRAJOLI, 2012, p.22-23) O autor aborda a distinção existente garantismo e principialismo, ao entender que, somente no garantismo ocorre uma estrita observância do positivismo jurídico, em postura adotada contra o que denominou de ativismo judicial. O autor define o constitucionalismo positivista ou garantista de três formas, como modelo ou tipo de sistema jurídico, como teoria do direito e como filosofia política. Nesse momento interessa tão somente para o estudo as duas primeiras formas. Como modelo de direito, o constitucionalismo garantista se caracteriza em relação ao modelo palio-juspositivista, pela positivação também dos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 princípios que devem subjazer toda a produção normativa, por isso, configura-se como sistema de limites e vínculos impostos pelas constituições rígidas a todos os poderes e que devem ser garantidos pelo controle jurisdicional de constitucionalidade sobre o seu exercício: de limites impostos para a garantia do princípio da igualdade e dos direitos de liberdade[...] Como teoria do direito o constitucionalismo positivista ou garantista é uma teoria que tematiza a divergência entre o dever ser (constitucional) e o ser (legislativo) do direito. Em relação a teoria à teoria paleo-positivista, o constitucionalismo garantista caracteriza-se pela distinção e virtual divergência entre validade e vigência, uma vez que admite a existência de normas vigentes porque em conformidade com as normas procedimentais sobre a sua formação e, todavia, inválidas porque incompatíveis com as normas substancias sobre a sua produção [...]. Em todos os três significados o constitucionalismo equivale a um projeto normativo que exige ser realizado através da construção, mediante políticas e leis de atuação, de idôneas e garantias e de instituições de garantia. Segundo o autor o garantismo é a outra face do constitucionalismo. ( FERRAJOLI, 2012, p. 24-25) Em cada uma de suas manifestações o autor insere traços que distinguem a sua teoria. Assim ocorre quando anota que diferentemente do palio-positivismo o garantismo trata de positivar princípios de direitos fundamentais que acabam por limitar o poder do Estado. Ferrajoli em todos os momentos refuta, a conexão entre direito e moral, e enfatiza que, no plano teórico “a separação é um corolário do princípio da legalidade”, enquanto que, no plano em sentido axiológico, “a separação é um corolário do liberalismo político”. De outro lado, em nenhum destes três significados, o constitucionalismo admite a conexão entre o direito e a moral. Ao contrário, a separação entre as duas esferas é por ele reforçada, seja pelo plano assertivo ou teórico, a separação é um corolário do princípio da legalidade que impede, para a garantia da submissão dos juízes somente à lei, a derivação do direito válido do direito (por eles suposto) justo e, para a garantia da autonomia crítica do ponto de vista da moral externo ao direito, a derivação do direito justo do direito válido, mesmo se conforme a constituição. No sentido prescritivo ou axiológico, a separação é um corolário do liberalismo político que rejeita para a garantia das liberdades fundamentais em relação a tudo que não lesiona os outros, a utilização do direito como instrumento de reforço da ( ou de uma determinada) moral. No primeiro sentido, a separação equivale a um limite ao poder dos juízes e ao seu arbítrio moral; no segundo, entretanto equivale a um limite ao poder dos legisladores e à sua invasão na vida moral das pessoas. (2012, p. 25-26) Ferrajoli reconhece a existência da moral, todavia não admite a sua positivação, sobretudo porque positivar a moral, seria, segundo ele, uma forma de negar a principal garantia do pluralismo moral e do multiculturalismo. Haveria uma limitação a convivência pacífica entre as diversas culturas que compõem uma sociedade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Dessa forma, o constitucionalismo garantista configura-se como um novo paradigma juspostivista do direito e da democracia.

3. Constitucionalismo principialista ou não positivista: neoconstitucionalismo

O constitucionalismo garantista (normativista), opõe-se ao constitucionalismo principialista (argumentativo), sendo que esse último é denominado neoconstitucionalismo. No entanto o autor traça um longo arrazoado para demonstrar em primeiro lugar que o termo constitucionalismo está impropriamente construído uma vez que pertence ao léxico político e não ao jurídico. O constitucionalismo então representa um sinônimo para Estado Liberal de Direito, onde encontram-se as raízes dos ideais jusnaturalista, diga-se então, os que guardam a aproximação entre direito e moral. Desta forma neoconstitucionalismo, se constitui numa negação ao positivismo jurídico – conforme defende o jurista italiano. O constitucionalismo que Ferrajoli vem defendendo será, assim, o constitucionalismo rígido das atuais democracias constitucionais, independentemente do tipo de controle de constitucionalidade assumido pelos diferentes países. Seu constitucionalismo juspositivista ou garantista não é uma superação do positivismo, mas, sim, um reforço do positivismo jurídico, “por ele alargado em razão de suas próprias escolhas – os direitos fundamentais estipulados nas normas constitucionais – que devem orientar a produção do direito positivo”. Trata-se de uma positivação do dever-ser-do direito, além de assumir claramente que a própria atividade legislativa está substancialmente sujeita ao controle de constitucionalidade. [...] trata-se de uma perspectiva garantista em que a democracia se faz pelo e através do direito, o que redunda em uma democracia substancial. Sua ácida crítica volta-se, a partir dessa posição juspositivista, ao neoconstitucionalismo, chamado por ele de constitucionalismo jusnaturalista ou não positivista, Esse tipo de constitucionalismo também será por ele denominado “principialista”, antítese da proposta ferrajoliana de “constitucionalismo normativo ou garantista”. Nesse contexto, critica o neoconstitucionalismo por este transformar os direitos (fundamentais) em valores ou princípios morais, abrindo caminho à ponderação, o que Ferrajoli considera o modo pelo qual ocorre a fragilização da normatividade do direito. ( FERRAJOLI, 2012, p.59-60) Traz assim, ao garantismo, o juspositivismo, inserindo nas normas constitucionais os direitos fundamentais, alterando o entendimento que bastava o formalismo da elaboração da norma o que não mais satisfaz ao direito, devendo estar presente a coerência dos conteúdos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Dessa forma, não é somente relevante a observância do postulado da democracia representativa, que procurava defender os interesses pela maioria, mas também a defesa dos interesses inclusive das minorias, justamente salvaguardando o princípio da igualdade. Os fundamentos que distinguem os postulados do garantismo e do principialismo vem organizados por Ferrajoli da seguinte forma: De um lado o constitucionalismo argumentativo ou principialista – considerado com a superação do positivismo jurídico, que não se mostra mais idôneo para explicar, teoricamente, as transformações levadas a cabo pelo modelo do Estado Constitucional de Direito e por isto deve ser superado – é caracterizado por três aspectos: 1)A tese da existência de uma relação conceitual entre direito e moral, restabelecida pela incorporação, nas Constituições, de princípios de justiça de caráter ético-político, resulta no conhecido constitucionalismo ético; 2) A idéia de que grande parte das normas constitucionais configura-se como princípios – e, portanto, são estruturalmente diferente das regras -, que implicam valores e se encontram em constante conflito, sobretudo nos chamados casos difíceis O papel central atribuído à argumentação jurídica, mais especificamente à ponderação, confiada à atividade desempenhada pelos juízes. De outro, entretanto, o constitucionalismo garantista – entendido como a extensão, reforço ou completamento tanto do positivismo jurídico quanto do Estado de Direito -, comporta três significados (da mesma maneira com o garantismo). (2012, p.101) Trata-se assim – o constitucionalismo principialista - de um modelo que constrói uma teoria fundada na superação do positivismo jurídico adotado pelo Estado, uma vez que entende que referido positivismo não tem mais o poder de dar as respostas necessárias ao ordenamento jurídico. Segundo o autor o garantismo firma entendimento diverso do constitucionalismo principialista, e pode ser entendido: 1)Como modelo ou sistema de jurídico, é a superação do paleojuspositivismo, em face da positivação dos princípios que também deve subjazer toda produção normativa, ampliando os limites e vínculos impostos pelas Constituições, que devem ser garantidos através do controle jurisdicional de constitucionalidade; 2)Como teoria do direito, aborda o problema do direito constitucionalmente ilegítimo, resultante de lacunas e antinomias -, levando em conta a tensão entre o dever ser (constitucional) e o ser (legislativo) do direito, a partir da distinção entre vigência e validade; 3) Como filosofia e teoria política, consiste em uma teoria da democracia – formal e, também, substancial -, ancorada empiricamente no paradigma do Estado Constitucional de Direito e articulada sobre quatro dimensões correspondentes aos direitos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 fundamentais (de liberdade, sociais, civis e políticos). (FERRAJOLI, 2012, p.102) A nenhum pretexto deixa o autor de considerar a hipótese que o garantismo representou um aperfeiçoamento do positivismo. O que denominou de paleojuspositivismo, e que teve sua evolução justamente quando inseriu no texto constitucional direitos fundamentais. Mas não é somente sob esse ângulo, ressalvou também que as lacunas havidas devem ser resolvidas com fundamento na Constituição, estabelecendo desta forma uma jurisdição constitucional. O autor entende que, há um filtro constitucional que deve ser submetida a produção legislativa, por meio do controle jurisdicional de constitucionalidade, conforme adotado no ordenamento jurídico de cada Estado. O autor rejeita as teses principialistas ou antipositivistas, e defende as teses do constitucionalismo garantista ou normativista. Entretanto, quanto ao segundo diz tratar-se de um novo paradigma do direito, com bases no positivismo e que culmina por reforçar o modelo que reconhece como direito o conjunto de normas produzidas por quem está autorizado a produzi-las. Neste sentido: Observa-se, assim, que Ferrajoli rejeita expressamente todas as teses do constitucionalismo principialista ou argumentativo ou antipositivista, na medida em que o constitucionalismo normativo ou garantista ou positivista sustenta, precisamente, que : (a) a tese da conexão entre direito e moral resulta no conhecido cognitivismo ético; (b) a diferença qualitativa entre regras e princípios enfraquece a normatividade da Constituição; (c) a ponderação favorece o ativismo judicial, relativizando a submissão dos juízes à lei e a certeza do direito. Em suma: o constitucionalismo garantista – defendido por Ferrajoli – configura-se como um novo paradigma do direito e da democracia, visto que designa um projeto normativo que exige ser realizado através da construção, mediante políticas e leis de atuação, de idôneas garantias e instituições de garantia. ( FERRAJOLI, 2012, p.102) Entre as principais barreiras construídas pelo garantismo a fim de evitar o predomínio do principialismo está a negação da conexão entre direito e moral, que a nenhum pretexto admite Ferrajoli. Dessa forma, o principialismo conforta a ideia de que os direitos constitucionalizados são princípios e não regras e que os conflitos são resolvidos através da ponderação, o que leva ao ativismo judicial, ou seja, o direito seria ditado pelos juízes e operadores do direito com uma criação descontrolada de princípios, o que, segundo os autores, já ocorre no Brasil. Quanto ao principialismo, anota o autor italiano: Este constitucionalismo, principialista e argumentativo de nítida matriz anglosaxônica, caracteriza-se, portanto, (a) pelo ataque ao positivismo jurídico, e a tese da separação entre direito e moral; (b) pelo papel central associado à argumentação a partir da tese de que os direitos constitucionalmente estabelecidos não são regras, mas sim princípios, entre eles em virtual conflito que são objetos de ponderação e não subsunção e (c) pela

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 consequente concepção de direito “como uma prática jurídica, confiada, sobretudo, à atividade dos juízes [...]. O direito segundo essas três orientações é aquilo que, na realidade, dizem os tribunais- e, de maneira mais ampla os operadores jurídicos -, consistindo, em última análise, nas suas práticas interpretativas e argumentativas. (FERRAJOLI, 2012, p.21) No diálogo traçado, encontramos sempre uma contraposição entre as teorias, estabelecendo-se uma antítese de uma a outra, e concluindo por defender a tese garantista. Quanto as distinções menciona o autor: O constitucionalismo positivista e garantista diferencia-se do constitucionalismo não positivista e principialista pela rejeição de todos aqueles que são os seus três elementos principais: (1) a conexão entre direito e moral; (2) a contraposição entre princípios e regras e a centralidade conferida à sua distinção qualitativa; (3) o papel da ponderação, em oposição à subsunção, na pratica jurisdicional. [...] riscos a eles conexos: (1) uma espécie de dogmatismo moral conexo ao constitucionalismo conhecido como cognitivismo ético; (2) o enfraquecimento do papel normativo das constituições e, portanto, da hierarquia das fontes; (3) o ativismo judicial e o enfraquecimento da submissão dos juízes à lei e da certeza do direito, que colocam em xeque, por sua vez, as fontes de legitimação da jurisdição. (FERRAJOLI, 2012, p.27) Surge outro problema na adoção impensada do principialismo, que é o enfraquecimento do papel normativo das constituições e, portanto, da hierarquia das fontes. É certo que a constituição é a norma principal, devendo a ela, todo o ordenamento infraconstitucional, obediência irrestrita. Há o risco de ser criado, pelo ativismo judicial, interpretações diversas fundamentadas em princípios criados pelo próprio operador do direito, podendo ocorrer uma inversão na hierarquia das fontes. Diante disso, é que surgem intangíveis as bases do constitucionalismo garantista em todos os seus termos. É preciso afirmar que são somente “fontes” são somente aqueles atos ou aqueles fatos cujo ordenamento conecta como efeito a produção de normas vigentes que inovam ou modificam o próprio ordenamento, de tal maneira que, nos sistemas da civil law, a produção legislativa é reservada às instituições políticas representativas, sejam elas legislativas ou de governo, através de cujo exercício vem criado novo direito, isto é, novas formas destinadas a aplicação judicial. Caso se ignore este princípio e se admita que as sentenças do poder judiciário também são fontes, resultarão abandonados todos os princípios do estado de direito: o princípio da legalidade, a separação dos poderes e submissão dos juízes somente à lei. (FERRAJOLI, 2012, p. 238- 239) Admitindo-se a adoção do constitucionalismo principialista haveria a criação de um poder ilimitado ao judiciário, que poderia criar leis e realizar julgamentos conforme sua própria legislação. Afirma Ferrajoli:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 É esta substância e o papel garantista do constitucionalismo juspositivista que a abordagem principialista arrisca tornar inútil: o caráter rigidamente normativo dos princípios formulados nas constituições não ponderáveis com princípios nela não expressos e supraordenados a todos os poderes dotados de potesta normativa, que prescrevem aquilo que é proibido e aquilo que é obrigatório decidir, a fim de garantir os direitos fundamentais nele estipulados. (2012, p.45) Neste contexto percebe-se que o constitucionalismo principialista acaba por fragilizar o caráter normativo dos princípios devidamente positivados e que ficariam a mercê do denominado princípio da ponderação. Neste sentido, argumenta Streck: Do mesmo modo, não apegar-se à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista. Por vezes, “trabalhar” com princípios (e aqui vai a denúncia do panprincipiologismo que tomou conta do “campo” jurídico de terrae brasilis) pode representar uma atitude (deveras) positivista. Utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais – sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) – é uma forma de prestigiar tanto a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen, quanto homenagear, tardiamente, o positivismo discricionarista de Herbert Hart. Não é desse modo, pois, que escapamos do positivismo. (2010, p. 171) A advertência contida na observação de Streck é pertinente no sentido que relegar a observância da norma constitucional, ou a mitigação dessa observância é um perigo ao progresso construído pelo positivismo jurídico. A ideia de poder construir princípios segundo a experiência de cada um dos julgadores cria a insegurança jurídica e a instabilidade nas relações e fere separação dos poderes. Nesse aspecto dos riscos conexos ao constitucionalismo principialista Trindade (2012, p.242) identifica as “origens do ativismo judicial brasileiro na dupla influência estadunidense e alemã, exercitada por um corpo de 14.000 juízes [...], pela previsão de um controle misto de controle de constitucionalidade [...] e pela intervenção do poder judiciário. O autor ainda afirma que: [...] tanto o princípio da proporcionalidade quanto o da razoabilidade vem funcionando como “muletas”, a todo gênero de argumentos, “para invocar o justo contra a lei” (p.121), e, portanto, como uma espécie de “máscara da subjetividade” judicial (p.118), dando vida a “uma justiça lotérica”, caracterizada pela imprevisibilidade (p.119), que coloca em perigo o “equilíbrio do sistema político” e os próprios “fundamentos da democracia constitucional”. (TRINDADE, 2012, p.243) Nestes termos é que se percebe a importância em sustentar a inviabilidade jurídica de uma tendência a adoção do neoconstituiciolismo ou constitucionalismo principialista, que tende a abrir um caminho ilimitado para a atuação sem freios do ativismo judicial, pondo em risco fundamentos ainda em consolidação da democracia constitucional.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Percebe-se que Streck e Trindade constitucionalismo principialista.

compartilham

a

crítica

de

Ferrajoli

quanto

ao

Trindade (2012, p. 95-96) acrescenta ao debate de Streck e Ferrajoli, que na última década, muito tem sido dito a respeito de um movimento, recente, denominado neoconstitucionalismo “voltado ao estudo dos fenômenos que caracterizam o Estado Constitucional de Direito e suas consequências -, que conta cada vez com mais seguidores tanto na Europa quanto na América Latina, especialmente no Brasil”. Trindade (2012, p. 98), ao tratar do debate Ferrajoli versus neoconstitucionalismo, propõe uma revisão terminológica acerca do chamado neoconstitucionalismo, para posteriormente defender uma “concepção estritamente juspositivista”. Isto porque, muito embora admita que existam características comuns entre as diversas concepções de constitucionalismo, dando ênfase a posição que assume os direitos fundamentais como exemplo, Ferrajoli entende que há duas maneiras opostas de se conceber tal fenômeno e que, nos últimos anos, estas vêm estabelecendo um relevante debate teórico, porém com importantes reflexos na prática jurídica: e um lado, o neoconstitucionalismo, sustentado por aqueles que veem o constitucionalismo como “a superação em sentido tendencialmente jusnaturalista ou ético-objetivista do positivismo jurídico”; b) de outro lado, o constitucionalismo garantista, defendidos por aqueles como Ferrajoli, consideram o constitucionalismo a expansão e completamento do positivismo jurídico. (2012, p. 98) Adotando postura frontalmente contrária ao neoconstitucionalismo, Ferrajoli não deixa de fundamentar o constitucionalismo garantista como um reforço do positivismo jurídico e a forma ainda existente de firmar as conquistas alcançadas pelo direito, com acréscimo de direitos fundamentais ao texto constitucional. a)

Ao final, Ferrajoli traça uma defesa acerca de seus estudos e giza pontos divergentes entre ele e Streck, no entanto refere que tais dissenções devem-se somente a inclinações filosóficas, quando seguem escolas diferentes. Nesse sentido, É, aqui, que emergem as divergências, assinaladas pelo próprio Streck, entre as suas teses e meu constitucionalismo garantista (p. 75 e segs.). Os dissensos dizem respeito essencialmente, a duas questões: a minha defesa de separação entre direito e moral, entendida como Streck como insustentável no estado constitucional de direito, e admissibilidade da discricionariedade judicial, por ele rejeitada como algo ilegítimo. Trata-se, como observa justamente Streck (p. 87), de dissensos decorrentes das nossas diferentes ascendências e abordagens filosóficas: a filosofia analítica, que está por detrás do meu constitucionalismo juspositivista, e a hermenêutica filosófica ou fenomenologia hermenêutica que está na base nas teses de Streck. (FERRAJOLI, 2012, p. 246) Ferrajoli não aceita a conexão entre direito e moral. Muito embora reconheça que alguns princípios morais fundamentais de caráter democrático foram constitucionalizados.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O autor entende que há certa distinção entre direito e moral por que, “juízo sobre a imoralidade de um comportamento não é uma condição suficiente para justificar sua proibição”. Assim em diferentes culturas há diferentes noções do que é imoral ou não. Portar armas, o voto feminino ainda podemos exemplificar países em que as mulheres são proibidas de dirigir, tais condutas têm diferentes valorações morais. (2012, p.251) Segundo esse entendimento, não é juridicamente aceitável positivar posicionamentos éticos ou morais, sobretudo pelo risco de restringir princípios fundamentais como o da igualdade, expressada na garantia do pluralismo moral e do multiculturalismo. De outro lado, ainda no dissenso Ferrajoli e Streck, quanto ao ativismo judicial admitido pelo primeiro e não pelo segundo, Ferrajoli admite a discricionariedade, no que diz respeito aos espaços fisiológicos, afirmando que não podem serem suprimidos pelo judiciário, no entanto, nega os espaços patológicos como ocorre no ativismo judicial produzindo princípios, no risco inverter as fontes do direito. Foi abordado no texto a flagrante distinção entre princípios (adotada pelos adeptos do constitucionalismo principialista) e normas (pelos adeptos do constitucionalismo garantista), bem como a forma de solução dos conflitos. Todavia, essa é uma discussão que de uma forma direta foi abordada quando tratado o ativismo judicial no decorrer do texto. A problemática geraria por certo mais um estudo, com toda a profundidade exigida pela importância do tema.

4. Conclusão

Da análise do texto do diálogo entre os autores, conclui-se que a maior segurança jurídica está nos postulados do constitucionalismo garantista (normativista). Que embora importante os estudos e as fundamentações feitas a fim de dar suporte teórico ao neoconstitucionalismo (constitucionalismo principialista), essa tendência fragiliza as conquistas obtidas ao longo da formação do Estado Democrático de Direito. O garantismo albergou na sua essência o positivismo jurídico, e o juspositivismo trouxe o elemento necessário da constitucionalização dos direitos fundamentais. O positivismo jurídico estabelece limites traçados por princípios constitucionais (legalidade, igualdade, entre outros), além dos próprios poderes estabelecidos (executivo, legislativo e judiciário), também limita a atuação dos operadores do direito, inibindo um excessivo ativismo judicial que tende a criação de um número ilimitado de princípios, possibilitando a inversão das “fontes” do direito. Está firmado o nexo entre democracia e positivismo jurídico. Cabe a academia reforçar o conceito que somente a defesa do constitucionalismo garantista, com sua forte matriz da rígida disciplina da produção jurídica poderá dar efetividade a democracia. Contudo, mesmo existindo questões que o direito positivado não consegue resolver, é a defesa de uma constituição rígida, de normatividade forte que dá a necessária segurança jurídica que pode possibilitar uma convivência pacífica, democrática e sustentável entre os indivíduos de uma sociedade.

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5. Referências FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In: ROSA, Alexandre de Morais et al. (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2012. ________, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: perspectivas e possibilidades de concretização dos direitos fundamentais- sociais no Brasil. Novos Estudos Jurídicos, v. 8, n. 2, p.257-301, maio/ago. 2003. ________, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. ________, Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In: ROSA, Alexandre de Morais et al. (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2012. ______, Teoria da constituição e estado democrático de direito: ainda é possível falar em constituição dirigente? In: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN, de Morais, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2 ed.. Porto Alegre, Livraria do Advogadp, 2001. ________, Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. TRINDADE, André Karam. Garantismo versus neoconstitucionalismo: os desafios do protagonismo judicial em terras brasilis. In: ROSA, Alexandre de Morais et al. (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2012. ________, André Karam; MORAIS, Fausto Santos de. Do provincialismo constitucional ao transconstitucionalismo: a proteção dos direitos humanos através da integração dos ordenamentos jurídicos. In: COSTA, Ana Paula; REIS, Mauricio Martins. Direitos Fundamentais e Espaço Público. Passo Fundo: Editora IMED, 2012.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 120 DIAS DE DIREITO: SOCIOCRÍTICA JURÍDICA A PARTIR DA FILOSOFIA LIBERTINA DE MARQUÊS DE SADE1 Bruno Gadelha Xavier2 Alosío Krohling3 INTRODUÇÃO Quando se trata acerca dos intentos que o possível diálogo entre Direito, Filosofia e Psicanálise podem concretizar, tem-se que ter uma enorme cautela e precisão no tratar das temáticas dispostas. Não pelo fato da cegueira que o campo jurídico possui quanto aos princípios psicanalíticos, mas devido a uma fragilidade epistemológica, uma ponte que ainda esta sendo construída. Paulo Becker já salientava que no observar das ligações – de certo perigosas e temerárias – que a psicanálise manteve com outros discursos os quais possuiu intento de interpretar – cita o autor o marxismo como exemplo – resultou-se num leque de mal-entendidos4. A cautela se dá pela impotência no utilizar dos conceitos fundamentais de cada campo de saber, uma vez a consequência plúrima discursiva dos significantes apresentados. A gama reflexiva do paradigma jurídico atual – em sua maioria – ignora a existência de um sujeito que seja mais que um sujeito plano de direito, mas também um sujeito de desejo. Gera-se um local de falta discursiva, negando os influxos e a presença do inconsciente frente o discurso jurídico, padronizando o pensamento normativo frente um retilíneo sujeito respeitoso aos comandos legais. Neste sentido, o presente artigo objetiva a discussão acerca da filosofia libertina de Marquês de Sade – autor querido ao campo psicanalítico e filosófico, todavia, ainda pouco estudado nas reflexões jurídicas –, a fim de demonstrar o modo pelo qual o autor confere contribuições valiosas para a reflexão do binômio Direito e Poder nas sociedades atuais. Crítico da modernidade, Marquês de Sade choca o leitor ao se colocar preso na lógica do desejo como forma de vida plena, podendo ser considerado um crítico do pensamento que permeava sua época, contrariando dogmas institucionais e prescrições normativas que talhavam o elemento erótico inerente ao indivíduo. Desta feita, pretende-se delinear bases para o estudo da filosofia libertina do autor, em especial quanto aos tópicos de crítica institucional e profanação estatal, que caracterizaram sua literatura e o eternizaram como um pioneiro da crítica às limitações e laços sociais impostos ao homem, impulsionando uma possibilidade de utilização de sua crítica e seus escritos na esfera jurídica. 1

Artigo produzido a partir das reflexões do Grupo de Pesquisa O Múltiplo retórico e dialético: ética, interculturalidade e direitos humanos fundamentais nas ideias jurídicas no Brasil, da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). 2 Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pós-graduado em Direito Processual no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Professor Universitário. 3 Ph. D em Filosofia e M.A. em Ciências Sociais. Professor de Filosofia do Direito no Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória. 4 BECKER, Paulo. A economia do gozo. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.p.9

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1 DIREITO E LITERATURA: A CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO NECESSÁRIO O espírito científico contemporâneo não deve ser colocado em continuidade com o que é conhecido como o simplório bom senso, no atual paradigma universitário e social é necessário a constante ruptura na construção do conhecimento 5. Todavia, o “novo” encontra uma resistência demasiadamente consolidada, principalmente em cursos com alto grau de tradição formalista, como é o caso do campo jurídico. A constante cíclica da construção do saber no campo normativo corresponde a gama de poder – microfísico – que ronda e embriaga a academia. Não se produz criticamente no Direito por uma razão de conformismo com o próprio sistema, de manutenção de um status quo classista que reforça sua condição de superestrutura. O conhecimento, assim, se torna algo que existe apenas em condições políticas, constituindo a subjetividade e os domínios do saber 6. Insta mencionar, neste sentido, que a academia se concretiza um local de reforço do binômio saber/poder, uma relação de simbiose mútua que constitui uma máscara ideológica que constitui e perpetua relações de poder7. A partir da constatação supramencionada, calha lembrar o magistério de Luiz Alberto Warat, que constantemente lembrava aos seus leitores a importância da modificação de paradigmas reflexivos na necessidade de se reconhecer da complexidade do pensamento jurídico. Lembra o autor que o conhecimento científico se insere na sociedade de modo crasso, como uma forma de poder, que, em inúmeras vezes, apareça como vigilância, silêncio e unidade. Fetichiza-se hábitos cotidianos, regularizando axiomaticamente as condutas e moralizando hábitos da vida 8. Tendo em observância o dito acima, Warat lança mão de um dos seus principais conceitos: “senso comum teórico dos juristas”. A opção pela conceituação em comento diz respeito ao que ele denominou de uma circulação de verdades decorrentes de condições implícitas produtivas, que escancara a dimensão ideológica das figuras normativas. Influenciam-se práticas cotidianas, e busca-se uma plúrima de pré-conceitos, noções ideologicamente viciadas, estereótipos, ficções, imagens, a partir de estipulações linguísticas que encontram respaldo em visões, fetiches e ideias reguladoras do campo discursivo. Este arsenal de pequenas condenações de saber, linguisticamente constituído mantém sua existência com as relações de poder na construção do saber 9.

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BACHELARD, Gaston de. Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro 28. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1972.p.27. 6 ROCHA, Leonel Severo; PÊPE, Albano Marcos Bastos. Genealogia da crítica jurídica: de Bachelard a Foucault. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p.207. 7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1977, p. 208. 8 WARAT, Luiz Alberto. Introdução ao estudo do Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Vol.II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p.347. 9 WARAT, Luiz Alberto. Introdução ao estudo do Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação. Vol.I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p.13-15.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Ao certo, esta postura dotada de condição secreta denuncia uma teia de costumes reflexivos, pretensiosas verdades, e sacralização de verdades imutáveis, dotadas de falso grau de cientificidade e observadas na ilusão epistêmica própria do campo jurídico atual, transformando o clamor social em constante invisibilidade, e mantendo o status quo da coletividade pósmoderna10. Neste sentido, o uso da literatura como forma de crítica aos dogmas do Direito brasileiro vigente se faz intento mais que louvável e necessário. A arte, enquanto produção dotada de potencialidade crítica e denúncia social, faz com que a reflexão acerca da realidade humana se torne elemento dotado de validade confrontadora e esteticamente precisa. Ora, a título de fundamentação teórica, calha mencionar que o movimento denominado Law and Literature – que teve seu início nos anos 70, nos Estados Unidos, encabeçado por J.Boyd White e Richard Weisberg, tomando corpo teórico somente a partir da década de 80 11 – se desenvolve como uma reação a ausência de utilização dos elementos próprios da literatura no campo jurídico12. O campo literário detém uma capacidade única, por intermédio de suas narrativas e pela presença de notáveis personagens, o leitor se coloca em uma vivência de outrem. O modus operandi grosseiro da ciência é contraposto pela sutileza da vida, sendo que seu saber jamais será dotado de completude infinita, derradeira, impondo a contínua subversão da língua 13. Insta mencionar um apontamento necessário na fusão explicitada, qual seja, não se manifesta uma ilação somente a partir de textos que explicitam tal junção – como ocorre com as lições de Richard Posner e François Ost-, a leitura a qual se adota no presente é da literatura como um âmbito que ecoa as mais diversas searas de pensamento, sendo a temática direcionada ou não ao campo jurídico, otimizando a linguagem em sua vertente crítica. Nesta esteira de pensamento, a afirmação de Barthes é primorosa. Este afirmava a supressão de todas as disciplinas do ensino, com exceção e uma única, a literatura, uma vez que todas as ciências estão presentes nela. Aqueles que não são cavaleiros da fé, ou super-homens, a trapaça com a língua se faz essencial, ouvindo-a fora do poder, dando voz ao recalcado, buscando a revolução permanente da própria linguagem: este é o local privilegiado da literatura 14.

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WARAT, Luiz Alberto. Introdução ao estudo do Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação. Vol.I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p.14-18. 11 “Conforme narra Godoy, o movimento Law and Literature surge a partir da publicação de The Legal Imagination, obra em que James Boyd-White discute o Direito com base em algumas peças literárias de autores tais como Henry Adams, Ésquilo, Jane Austen, William Blake, Geoffrey Chaucer, D.H. Lawrence, Marlowe, Helman Melville, Milton, Molière, George Orwell, Alexander Pope, Proust, Ruskin, Shakespeare, Shaw, Shelley, Thoreau, Tolstoy e Mark Twain”. (SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.51-52). 12 Idem, p.51-52. 13 TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti. Direito e literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008., p.15. 14 Na esteira de pensamento de STRECK, Lenio Luiz. Faltam grandes narrativas no e ao Direito. In: STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p.229.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Ora, em entrevista concedida para o “Diário Clarín” quando visitava a cidade de Buenos Aires, Edgar Morin disse que a própria ciência é um modo de conhecimento que tem seu valor, com seu modo de verificação e busca de objetividade, entretanto, também possui suas limitações, uma vez que as ciências sociais não podem revelar as vidas pessoais, os sujeitos em seus ambientes, suas paixões ou ódio, bem como o amor. Neste ponto que o filósofo afirma que a literatura é fundamental para compreender o mundo humano, a importância dos escritos literários, para entender temas como a ambição e o já mencionado tópico do amor, sendo a vida uma alternância de prosa e poesia, comunicando a qualidade poética da vida e trabalhando temas deveras complexos pela via de um conhecimento que possui grande carga valorativa15. Assim sendo, busca-se o uso da literatura de Marquês de Sade no presente trabalho. Todavia, além de sustentar a potencialidade crítica de seus escritos literários, almeja-se a defesa da construção, por parte do autor, de uma “Filosofia Libertina”, tópico que será sustentado abaixo.

2 SOBRE A PERVERSÃO CAÓTICA EM MARQUÊS DE SADE Donatien Alphonse François de Sade, ou, simplesmente, Marquês de Sade, nasceu em 2 de junho de 1740, em Paris, constituindo-se como um personagem histórico fundamental na percepção sobre corpo, poder, e sexualidade humana. Aristocrata francês, foi classificado como escritos libertino, tecendo grande parte de sua literatura na Prisão da Bastilha, sendo uma figura perseguida pelo Antigo Regime francês e pelo governo de Napoleão. A inquietude resultante da leitura de um texto do autor não é algo que passa despercebido não apenas no primeiro contato com suas obras, mas em todas as leituras que presenteiam o sujeito com uma forma peculiar de abordar temáticas inerentes à condição humana. A investigação de seus escritos, por sua vez, também é deveras inquietante, posto não somente a abordagem polêmica, mas a dificuldade em perceber a mescla de textos filosóficos e literários. Michel Delon, na introdução do compêndio de obras do Marquês de Sade lançado pela editora Gallimard na França defende que, seja qual for a legitimidade, em termos filosóficos, de toda a gama de interpretações em torno da obra de Sade que se valem das obras de Nietzsche, Hegel, Lacan, ou outros autores, o recurso a sistemas que imputam o pensamento em movimento, demonstrando o ultrapassar da simples reação de rejeição e denotando a seriedade das obras do Marquês, individualizando os libertinos – que não mantém um discurso unívoco16. Desde já, deve-se informar que o “sistema” de pensamento do filósofo libertino não encontra uma unicidade, uma totalidade precisa, muito menos uma coerência destituída de contradição interna. Ao certo, Sade mantém relação de dependência com os sistemas filosóficos de sua época, por meio dos quais seus personagens defendem seus posicionamentos. Assim, o uso do racionalismo de Voltaire, dos enciclopedistas, bem como da teoria materialista de d’Holbach e de La Mettrie demonstram tal afirmação 17. 15

CÁRCOVA, Carlos María. Derecho y Narración. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti. Direito e literatura: ensaios críticos. Porto Algre: Livraria do Advogado, 2008, p.15-16. 16 DELON, Michel. Introduction. In: SADE, Marquês de. Euvres I. Paris: Gallimard, 1990, p.XLV. 17 KLOSSOWSKI, Pierre. Sade mon prochain. Paris: Éditions du Seuil, 1967, p.91 e ss.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Sua liberdade literária faz com que os personagens caminhem por tais sistemas de pensamento conforme suas paixões, não conferindo espaço às preocupações de ordem lógica. Este ponto demonstra a preocupação de Sade ao demonstram que o temperamento inspira e informa escolha de uma filosofia, e que a razão datada dos filósofos de seu tempo é própria, traduzida de forma passional18. Outrossim, pontua Georges Bataille que os heróis inseridos nas obras do autor não compõem um conjunto coeso. Em que pese sustentarem o valor soberano do demasiado, do excesso, bem como do crime, demonstram ausência de coerência em relação às outras temáticas trabalhadas nos contos e escritos19. Todavia, não obstante o fator delineado por Bataille, Sade mantém uma posição de provocação em relação aos seus personagens, conferindo a ausência de razão aos atos, dotando com universalidade suas pretensões 20. Vale destacar que a sensação caótica – a desordem no autor é elemento fundamental 21 – do pensamento libertino de Sade é resultante da construção dual baseada na filosofia e na literatura. Assim, insta lembrar que os escritos do autor são textos literários, e não tratados ou livros próprios de filosofia, ademais, uma possível ordem lógica de um tratado não é vista nas narrativas ficcionais, o que faz afirmar que a última encontra-se em constante atividade móvel, uma vez ditada pelas leis da imaginação22. A obra do Marquês lança máximas aleatórias, não lhes concedendo obrigatoriamente, como visto acima, coerência. Esta hipótese, todavia, guarda respaldo com a forma de expressão selecionada pelo autor, que consubstancia sua dissertação em um coletivo de opções formais, como panfletos políticos, romances epistolares, diálogos filosóficos, roman noir, dentre outros. O contexto elencará a necessidade pela qual o autor relatará a história, alterando sua significação.23 Resta concluir que, não obstante o reconhecimento das obras do Marquês como elemento literário francês temporalmente contextualizado, a denominada “filosofia libertina” está presente. Formando uma contradição em termos, um “sistema caótico”, que insere a discussão do desejo e do gozo na potencialidade da vivência humana como forma fundamental de ser.

3 DONATIEN ALPHONSE FRANÇOIS DE SADE: (ANTI)TEÓRICO DO DIREITO Conforme já relatado, e devidamente defendido por autores como François Ost24, o Direito deve manter comunicação direta com a literatura. Todavia, in casu, reduzir a potencialidade verborrágica do autor e enquadrá-lo fora da categoria filosófica se torna um grave erro: a filosofia 18

Idem. BATAILLE, Georges. L’Érotisme. Paris: Minuit, 1957, p.210. 20 LE BRUN, Annie. Soudain un bloc d’abîme. Sade. Paris: Gallimard, 1986, p.93-94. 21 RIBEIRO, Renato Jeanine. Apresentação. In: MORAES, Eliane Robert. A felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.11. 22 MORAES, Eliane Robert. Apresentação. In: GIANNATTASIO, Gabriel. Sade: um anjo negro da modernidade. São Paulo: Imaginário, 2000, p.12. 23 Idem. 24 Vide OST, François. Sade et la loi. Paris: Odile Jacob, 2005. 19

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 libertina de Marquês de Sade, em que pese parcialmente esquecida pela tradição filosófica ocidental, jamais perdeu a sua potencialidade crítica, com seu consequente tom de ineditismo profano em face dos ditames de controle social. A percepção de inúmeros autores, que o coloca muitas vezes como um escritor perigoso, ou até mesmo um mau escritor, é um sintoma da atitude violenta que cada palavra empregada traz. Não há pontas soltas nos escritos de Sade, o elencar das situações, locais, e principalmente dos atores sociais é fruto de uma genialidade única, que mesclava, dentre outros, denuncia social com denuncia sexual.25 A percepção de Sade torna-se fundamental na crítica constante aos valores ainda presentes nas instituições pós-modernas, incluindo o Direito, advindas do paradigma absolutista (ideais de ilustração) pensamentos.26 Desconstruindo elementos morais do Ancien Régime, o filósofo libertino insere em discussão os valores de um prisma de pensamento próprio de seu tempo, a fim de subvertê-los, criticando os axiomas que conclamavam a Ilustração como figura necessária à total emancipação do homem, corroborando-se como contra-iluminista, ilustrando que a liberdade não era para todos, transportando a filosofia para alcova. 27 Conforme já mencionado, a obra de Marquês de Sade faz parte de um sistema de pensamento conceituado como “Filosofia Libertina”. Esta forma de observância filosófica indica uma pluralidade de ideias, pensamentos e valores que foram difundidos na França no período histórico que englobava os séculos XVII e XVIII. A partir da conceituação de Delpueche28 e Nagy29, o termo libertin tem a sua origem no latim libertinus, ou seja, um indivíduo que era livre de toda e qualquer escravidão, preconceitos, bem como convenções/ditames morais e sociais. Que seja dito, Sade pode ser encarado como um herdeiro do denominado pensamento iluminista, todavia, se movimenta de maneira contrária a tal via reflexiva, de maneira a fundamentar uma crítica a moral – o que incluía os segmentos cristãos30 – com consequente manobra pervertida, profana, subvertendo a sociedade e também o próprio ato de subversão31. A perspectiva filosófica libertina de Sade demonstra a incapacidade do agir humano puramente racional, com a ilação a uma adesão quase que sentimental, que proporciona uma maneira de escravidão/servidão inerente às sociedades nas quais não há o mote de exploração máxima e satisfação pulsional, ou melhor, gozo completo – desta feita não haveria contraposição entre lei e desejo. 25

BROCHIER, Jean-Jacques. Le marquis et La Conquête de L’Unique. Paris, Édition du Terrain Vague, 1966, p. 263. 26 ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. In O Desejo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 193. 27 Op.cit. 28 PINHAS-DELPUECH, Rosy. De l’affranchi au l, les avatars d’un mot. In Éros ibertin Philosophe : Discours Libertins des Lumières, Paris, Éditions Champion, 1984, p. 12. 29 NAGY, Péter. Libertinage et révolution. Trad. Christiane Grémillon, Paris, Gallimard, 1975, p. 2. 30 Vide obras como SADE, Marquês de. La Nouvelle Justine ou Les Malheurs de La Vertu. In: ______. Euvres II. Paris: Gallimard, 1995 ou SADE, Marquês. Philosophie dans le boudoir ou Les instituteurs immoraux. In: ______. Euvres III. Paris: Gallimard, 1998. 31 ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. In O Desejo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, 1ª edição, p. 168.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A escolha pelo caminhar na filosofia libertina pressupõe uma vida distinta das amarras sociais, em especial pelas formalidades e pelo controle descrito pelos contratualistas modernos. Preferese viver sozinho, com a conquista total da plenitude do gozo. Esta é a lógica presente em obras como Dialogue entre un Prêtre et un Moribond (1782), Les 120 Journées de Sodome ou L’École du Libertinage (1785), La Nouvelle Justine ou Les Malheurs de La Vertu (1797), La Philosophie dans le boudoir ou Les instituteurs immoraux (1795), Aline et Valcour (1795) e Histoire de Juliette ou Les Prospérités du Vice (1797), dentre outras. O campo jurídico mantém um diálogo constante com a perspectiva filosófica, todavia, poucos estudos na academia jurídica nacional se aproximaram da filosofia libertina. A razão para tal afastar não está apenas no caráter profano dos escrios de Sade, mas também pelo constante trabalho em torno do desejo e do gozo, elementos estranhos para a racionalidade jurídica. Por exemplo, a racionalidade pós-constitucional vigente se preocupa, em grande maioria, no estudo dos discursos jurídicos – em especial dos direitos e garantias fundamentais – tendo como objeto a posição do sujeito de direito. Não se considera o sujeito a partir de sua dimensão subjetiva, em especial a partir de uma necessária interface com a psicanálise. A moralidade inerente às construções jurídicas atuais também encontrariam nos escritos do Marquês uma forma de crítica severa. As formas jurídicas que controlam o indivíduo nos agrupamentos sociais pressupõem uma forma de reflexão em prol do interesse da vivência em coletivo, principalmente em uma República Democrática. Não há espaço para a dimensão inconsciente, do desejo, do gozo32. Para muito além dos preconceitos em torno do autor, bem como as qualificações que decorrem de sua obra presentes na cultura popular, sua violência verbal qualifica o leitor a buscar uma postura profana em torno da discussão social. Esta potencialidade crítica pode ser utilizada pelo campo jurídico, a fim de discutir elementos que aparecem constantemente em suas obras, como as relações de poder, o crime e o desejo. A investigação dos escritos libertinos possibilita não apenas a interface do Direito com a Filosofia, mas a inserção da Psicanálise, de maneira pela qual o discurso institucional do campo normativo encontrará forte crítica desconstrutivista, a fim de almejar uma discussão em torno dos dispositivos morais, sociais e, no caso, jurídicos de controle.

APORTES CONCLUSIVOS: O DIREITO SÓ SE MEDE DEPOIS DO GOZO? A percepção da ausência do debate em torno do desejo no Direito é nítida, e fundamenta a necessidade de discussão de aspectos filosóficos de autores como Marquês de Sade, bem como o estudo em campos como literatura e psicanálise. A perspectiva interdisciplinar/transdisciplinar

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Em que pese Sade não trabalhar com o inconsciente como categoria, sua percepção em torno do desejo e do gozo dialogam com o campo psicanalítico, razão pela qual em inúmeras passagens há remissão à atuação e as consequências do inconsciente na vida em sociedade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 corrobora o intento de Luiz Alberto Warat, em busca de uma pedagogia que ultrapasse o senso comum teórico dos juristas. A literatura de Sade possui elementos únicos. Em que pese não deter uma coerência dogmática, ao estilo de inúmeros tratados filosóficos, apresenta-se como uma forma caótica que reflete sua observação em torno dos impulsos, dos desejos e da busca pelo gozo. Esta marca registrada do autor pode ser encontrada em obras como Historie de Juliette, ou Les Prospérités du vice; Justine; La Philosophie dans le boudoir; Les Cent Vingt Journées de Sodome; Oxtiern ou Les Malheurs du libertinage; Aline et Valcour; Les crimes de l’amour; dentre outros. Desta feita, a filosofia libertina exsurge como resposta aos elementos sociais de controle, fixados a partir de uma gama iluminista que contraria os ditames do puro desejo, a energia fundamental que move a obra do autor. É de bom alvitre citar que Sade nunca escreveu algum tratado, muito menos sistematizou seu pensamento, suas dissertações e discursos não possuem metódica. A impaciência do homem, frente o martírio da vida controlada, informam as caracterizações de seus personagens na busca pela plenitude do desejo. A busca por uma dialética do abstrato e do concreto, na crítica às instituições de controle, fazem de sua visão pioneira em inúmeros aspectos. Conclui-se que diversas temáticas trabalhadas em seus textos – como críticas ao modo pelo qual a sociedade observa a sexualidade, o gênero, o desejo, o crime e as instituições de poder – podem ser utilizadas na concretização de uma sociocrítica jurídica, que tenha como base, justamente, a filosofia libertina. Almeja-se, com isto, o impulsionar de pesquisas desconstrutivistas que partam da lógica do desejo como forma de ruptura com a racionalidade jurídica presente nos sistemas normativos modernos e pós-modernos. Sade nunca esteve tão atual.

REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston de. Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro 28. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1972. BATAILLE, Georges. L’Érotisme. Paris: Minuit, 1957. BECKER, Paulo. A economia do gozo. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. BROCHIER, Jean-Jacques. Le marquis et La Conquête de L’Unique. Paris, Édition du Terrain Vague, 1966. CÁRCOVA, Carlos María. Derecho y Narración. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti. Direito e literatura: ensaios críticos. Porto Algre: Livraria do Advogado, 2008, p.11-20. DELON, Michel. Introduction. In: SADE, Marquês de. Euvres I. Paris: Gallimard, 1990. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1977. KLOSSOWSKI, Pierre. Sade mon prochain. Paris: Éditions du Seuil, 1967. LE BRUN, Annie. Soudain un bloc d’abîme. Sade. Paris: Gallimard, 1986. MORAES, Eliane Robert. Apresentação. In: GIANNATTASIO, Gabriel. Sade: um anjo negro da modernidade. São Paulo: Imaginário, 2000. NAGY, Péter. Libertinage et révolution. Trad. Christiane Grémillon, Paris, Gallimard, 1975

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 OST, François. Sade et la loi. Paris: Odile Jacob, 2005. PINHAS-DELPUECH, Rosy. De l’affranchi au l, les avatars d’un mot. In Éros ibertin Philosophe : Discours Libertins des Lumières, Paris, Éditions Champion, 1984. RIBEIRO, Renato Jeanine. Apresentação. In: MORAES, Eliane Robert. A felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago, 1994. ROCHA, Leonel Severo; PÊPE, Albano Marcos Bastos. Genealogia da crítica jurídica: de Bachelard a Foucault. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007 ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. In O Desejo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, STRECK, Lenio Luiz. Faltam grandes narrativas no e ao Direito. In: STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013, p.227-231. SADE, Marquês de. La Nouvelle Justine ou Les Malheurs de La Vertu. In: ______. Euvres II. Paris: Gallimard, 1995. ______. Philosophie dans le boudoir ou Les instituteurs immoraux. In: ______. Euvres III. Paris: Gallimard, 1998. TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; NETO, Alfredo Copetti. Direito e literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.11-68. WARAT, Luiz Alberto. Introdução ao estudo do Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Vol.II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. ______. WARAT, Luiz Alberto. Introdução ao estudo do Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação. Vol.I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O DIREITO À COMUNICAÇÃO À LUZ DA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO DE PAULO FREIRE Caroline Simon1

RESUMO A televisão brasileira apresenta uma estrutura antidemocrática e transmite um conteúdo predominantemente mercadológico, características que, combinadas, formatam uma relação opressora entre as emissoras televisivas e os telespectadores. Fundamentando tal relação com base na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, o presente artigo tem como objetivo analisar a potencialidade libertadora de uma normatividade hábil a reconfigurar tal realidade, o direito à comunicação. Palavras-chave: Serviço televisivo; Direito à comunicação; Pedagogia do Oprimido.

INTRODUÇÃO O direito à comunicação, cujo núcleo assegura a todos, individual e coletivamente, o acesso direto aos meios de comunicação na qualidade de produtor e difusor de conteúdo, inicia sua edificação a partir de meados do século XX, quando se reconhece a insuficiência das liberdades de opinião e de expressão presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, constatando-se que chegaria o tempo em que seria preciso reconhecer um direito mais adequado às novas demandas sociais e à própria tecnologia midiática: o direito de comunicar. O exercício deste direito possui forte caráter conscientizador. Isso se dá porque ele possibilita que segmentos sociais normalmente ocultados pela mídia hegemônica se tornem visíveis para o grande público. Com isso, óticas alternativas, visões de mundo não dominantes, perspectivas minoritárias chegam com mais facilidade à população, provocando fissuras no discurso hegemônico e homogeneizante emitido pelo oligopólio sobreposto aos meios de comunicação de massa. No Brasil, país em que há uma forte concentração empresarial sobre os veículos comunicacionais, este direito ainda não foi positivado. Inclusive, o anacronismo legislativo e a estrutura antidemocrática tomam conta de um dos mais populares e importantes instrumentos de mídia: a televisão. O serviço televisivo brasileiro é regulado por um diploma normativo anacrônico, oriundo da década de 1960 e, apesar de a atual Constituição da República proibir que o serviço televisivo seja objeto de monopólio ou oligopólio, tal situação impõe-se sobre a estrutura radiodifusora nacional. Como resultado, tem-se uma radiodifusão gestada por um seleto grupo de empresários, cujos interesses privados sobrepõem-se às funções públicas constitucionalmente atribuídas ao serviço televisivo. O ainda vigente Código Brasileiro de Telecomunicações, datado de 1962, atribui à União competência para explorar diretamente o serviço, ou indiretamente por meio de concessão, autorização ou permissão. No que tange às funções públicas do serviço televisivo, já àquela 1

Mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 época exigia-se que os programas de informação, lazer, propaganda e publicidade se subordinassem às finalidades educativas e culturais, entendidas como inerentes à radiodifusão. Publicada em 1988, a atual Constituição da República manteve o caráter público do serviço de radiodifusão de sons e imagens, estabelecendo, em seu artigo 21, XII, "a" que compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Estabeleceu também, à semelhança da legislação da década de 1960, alguns princípios a serem seguidos pela produção e programação televisivas, dentre os quais a preferência pelas finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. O serviço de radiodifusão de sons e imagens, por ser um serviço público, ainda que ofertado indiretamente pela União, deve se guiar pelos princípios que regem os serviços dessa natureza, dentre os quais encontra-se a primazia do interesse público sobre o privado. Assim, qualquer que seja a forma de execução, o serviço televisivo deve transmitir um conteúdo pautado pelo interesse coletivo, sendo de responsabilidade daquele que presta tal serviço fazê-lo de acordo com as diretrizes principiológicas previstas no texto constitucional, as quais atribuem à televisão a função de educar, entreter e informar o telespectador. No entanto, a Constituição da República não precisa as características que devem constar na educação, na arte, na cultural e na informação prestadas pelas emissoras televisivas. Inexiste, igualmente, legislação específica que regulamente os dispositivos constitucionais relativos à Comunicação Social. Desregulamentado o serviço radiodifusor, o modo pela qual atender suas funções fica à discricionariedade das próprias concessionárias de televisão. Considerando que as seis maiores emissoras nacionais pertencem ao sistema privado de televisão e são patrocinadas por empresas igualmente privadas, fácil concluir que sua programação se alinhará à lógica do capital. Portanto, os serviços de educação, arte, cultural e informação não serão prestados de forma a atender os anseios coletivos, mas sim com vistas a maximizar o lucro das emissoras e de seus patrocinadores. Prover ao telespectador apenas uma lente pela qual enxergar o mundo - a lente do capital -, tolhendo acesso a realidades, opiniões e pontos de vista diversos ou contrários à lógica hegemônica, revela uma postura opressora por parte das emissoras. Oprime porque nega aos cidadãos a possibilidade de enxergarem as diversas formas de manifestação da existência humana, os modos de vida alternativos à ótica capitalista, a dialética das relações sociais, impede, enfim, o desvelamento do mundo. Sob esses moldes, a televisão não contribui para a tomada de consciência coletiva, mas, pelo contrário, aliena o telespectador da própria realidade, em um contínuo processo de opressão. Por essa razão, o presente estudo objetiva compreender de que maneira o direito à comunicação pode servir como um instrumento de libertação das amarras opressoras que orientam a programação televisiva brasileira, e isso, sob à luz da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, cuja lógica, a nosso ver, equipara-se à relação opressiva construída entre emissoras e telespectadores.

1 O SERVIÇO TELEVISIVO E OS PRINCÍPIOS DIRETORES DA COMUNICAÇÃO SOCIAL Anteriormente à caracterização do serviço radiodifusor de sons e imagens como um serviço público e a exposição dos princípios constitucionais que guiam sua prestação, é importante demonstrar as razões que fazem da televisão o meio de comunicação eletrônico mais popular e, por conseguinte, influente da sociedade brasileira.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em primeiro lugar, é relevante frisar a relevância do serviço de radiodifusão de sons e imagens para o cotidiano do cidadão brasileiro. O veículo televisor alcança cerca de 94% dos brasileiros, dos quais 81% a utilizam como fonte diária de informação (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 2014, p. 8). Para fins comparativos, enquanto a televisão aberta possui um nível de penetração de 97% por total de pessoas, a publicidade exterior, segunda colocada, possui um nível de 86%, a internet de 53% e a televisão por assinatura uma média de apenas 35% (IBOPE, 2012, p. 25). A influência da mídia televisiva se impõe, de maneira particular, em países como o Brasil, cuja população é composta, em parte considerável, de analfabetos e semianalfabetos, sem possibilidade, ou com possibilidades muito escassas, de acesso a outros meios de difusão de conhecimentos e ideias (MOREIRA, 1995, p. 45). Assim, nos países cujos índices de analfabetismo, desinformação, pobreza e baixo grau de escolaridade são comumente encontrados, a comunicação televisiva desempenha um papel ainda mais determinante, sendo, normalmente, o único instrumento de informação e uma das fontes de entretenimento mais utilizadas pelo público em geral (OLIVEIRA, 2002, p. 214). Na atual conjuntura, a televisão é um dos mais bens sucedidos meios de comando e direcionamento das condutas humanas, representando verdadeiro cânone do controle social informal. Além dessas incumbências simbólicas, a televisão aberta também é responsável por satisfazer diversas necessidades dos cidadãos brasileiros, dos mais jovens aos mais idosos, dos mais abastados aos mais desfavorecidos, reunindo as funções de divertir, entreter, informar e incutir nas pessoas os valores, credos e códigos de comportamento que as integrarão às estruturas institucionais da sociedade (ISEPPI, 2007, p. 6). A esse serviço tão importante à sociedade a Constituição da República atribui a natureza de público, sendo de competência da União explorar direta ou indiretamente, mediante autorização, permissão ou concessão, os serviço de radiodifusão de sons e imagens (artigo 21, inciso XII, alínea "a"). Pelo fato de ser pública, tal atividade está submetida aos princípios gerais que regem os serviços públicos, dentre os quais o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que impõe aos prestadores da atividade o dever de nortear sua execução pela conveniência da coletividade, e jamais pelos interesses secundários do Estado ou dos que hajam sido investido no direito de prestá-los (MELLO, 2010, p. 678). Aplicada à televisão, tal orientação pressupõe que a atividade prestada pelas concessionárias, ou seja, o conteúdo televisivo transmitido aos telespectadores, atenda às necessidades, às conveniências e aos interesses desses últimos, e não dos prestadores do serviço televisivo, dentre os quais estão as emissoras privadas. Por se tratar de um serviço de alta relevância para a comunicação social, a Constituição da República não se furtou de prever alguns axiomas específicos à produção e aos próprios programas televisivos. Em seu artigo 221, a Carta Magna atribui princípios ao serviço de radiodifusão televisiva, quais sejam (I) preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; (II) promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; (III) regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; (IV) respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. São esses, portanto, os princípios constitucionais diretores da comunicação social televisiva, de observância imperativa pelos prestadores desta modalidade comunicacional. O presente artigo terá como foco de análise os axiomas previstos no inciso I do artigo 221, que atribui à televisão o papel de transmitir conteúdos com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, a fim de verificar que tipo de educação, arte, cultura e informação a mídia televisiva vem transmitindo ao público. Considerando o vazio normativo subsistente à regulamentação de tal dispositivo, cabe às emissoras decidir de que forma atender tais princípios,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 o que compreende qual modalidade educacional, artística, cultural e informativa transmitir, sob qual ótica, em qual horário e por quanto tempo realizar essa transmissão. Ericson Meister Scorsim (2009, p. 31) dispõe que o direito à educação deve ser analisado sob o contexto dos objetivos fundamentais da República, que são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a eliminação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem quaisquer discriminações (artigo 3º). Além disso, o texto magno prevê que a educação serve ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e a sua qualificação para o trabalho (artigo 205). Scorsim afirma (2009, p. 32) que a educação não é um processo privativo da escola, pois existem outras instituições sociais, como os meios de comunicação, que têm também a função de educar, embora em menor escala que o centro educacional em sentido formal. Mas, que tipo de "educação" as emissoras de televisão estariam transmitindo a seus telespectadores? No capítulo seguinte, veremos que o viés pedagógico televisivo não vai ao encontro dos objetivos da República, sendo que, das funções educacionais previstas pela Constituição, a televisão apenas prestigia a "qualificação para o trabalho", de nítido interesse capitalista, ignorando as demais. Com relação às artes e à cultural, o artigo 215, §1º da Carta Maior afirma o dever estatal a garantia de acesso integral ao exercício de direitos culturais e às fontes de cultura nacional, bem como o estímulo à valorização e à difusão das manifestações culturais representadas por culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. A televisão estaria, portanto, entre aqueles serviços hábeis a conferir ao telespectador acesso às diversas manifestações culturais presentes em nosso país, em especial pelo fato de ser um serviço público, gratuito e de largo alcance nacional. Há três principais formas de expressão cultural: a erudita, a popular e a de massa. A cultura erudita é aquela produzida e propagada pela elite dominante no país, designa a cultura acadêmica, sobretudo a cultura artística adquirida ou aperfeiçoada em escolas de Arte nacionais ou estrangeiras. A cultura popular, por sua vez, é caracterizada pelo fato de nascer espontaneamente do povo, constituindo-se por um conjunto de práticas populares que unem simbolicamente os grupos sociais, geralmente aqueles localizados na base da pirâmide social (SCORSIM, 2009, p. 35). Diferente das culturas erudita e popular, a cultura de massa não surge espontaneamente da sociedade, mas é tecnicamente elaborada e industrialmente produzida, tendo como principal objetivo estimular o desejo pelo consumo em seus espectadores. Visa a uniformidade e a planificação obrigatória das consciências, destruindo as características identificadoras dos grupos étnicos em razão da defesa da cultura homogênea (SCORSIM, 2009, p. 35). É, conforme se verá, a forma de expressão cultural mais transmitida pelas emissoras televisivas, exatamente por influenciar os telespectadores ao consumo. No que diz respeito à função informativa da televisão, o direito à informação encontra previsão genérica no artigo 5º, inciso XIV da Constituição, que assegura a todos o acesso à informação, resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício fundamental. Tal direito garante a livre recepção da informação pelo público, a liberdade de escolha pela busca da verdade, e a liberdade quanto ao recebimento da informação. O conteúdo da liberdade de informação é formado por dados, fatos e conhecimentos, diferente da liberdade de expressão, que transmite ideias e opiniões (SCORSIM, 2009, p. 22) São dois conteúdos que apresentam diferenças sutis, facilmente intercambiáveis e, muitas vezes, veiculados pela televisão de forma misturada (SCORSIM, 2009, p. 22). O que se verá é que, na

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 seara jornalística, as concessionárias têm a oportunidade de transmitir ao público, sob uma suposta imparcialidade, aquilo que consideram conveniente, relegando à invisibilidade notícias avessas aos seus próprios interesses. Por meio de sua função informativa, a televisão seleciona o que considera ser relevante para o telespectador (e, consequentemente, o que não é), abordando o assunto sob a ótica que preferir e por quanto tempo quiser. Exposta a natureza jurídica do serviço televisivo e os princípios constitucionais que incidem sobre sua produção e programação, importa, agora, verificar o porquê e de que forma as emissoras televisivas moldam o conteúdo televisivo aos seus próprios interesses e de seus patrocinadores, em detrimento dos anseios coletivos e populares a que os serviços públicos devem obediência.

2 O SERVIÇO TELEVISIVO SOB A DISCRICIONARIEDADE DO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO Dênis de Moraes (2013, p. 24) dispõe que, a partir da liberalização nas décadas de 1980 e 1990, houve uma interseção cada vez maior entre o capital financeiro e o capital midiático, cujas principais evidências são: garantia de suporte financeiro à aguda internacionalização da indústria de bens simbólicos; financiamentos bancários a compras, fusões e infraestrutura tecnológica; sociedades e participações cruzadas que asseguram aos bancos cotas acionárias e parcerias em projetos de entretenimento; e a interferência do setor financeiro em ações estratégicas dos conglomerados de comunicação. Diante desse cenário, ou seja, com a junção de lógicas que deveriam estar apartadas, a da financeirização e a da produção simbólica, eleva-se a dependência dos grupos de mídia a entidades de crédito, acentuando-se, também, a participação de corporações financeiras na estrutura de propriedade dos meios de comunicação. Em consequência, os interesses da mídia se mesclam aos interesses dos grupos financeiros, tornando-se indistinguíveis (MORAES, 2013, p. 25). Essa convergência de objetivos é refletida no conteúdo televisivo, submetida à direção e aos interesses dos grandes grupos econômicos. Como nas economias de mercado as empresas privadas são obrigadas por lei a maximizar os lucros de seus acionistas, esses grupos de comunicação não estão preocupados nem com a verdade, nem com a democracia: eles ficarão do lado dos bancos que despejam quem não paga hipoteca; das empresas que fazem demissões para melhorar seus lucros; das corporações que destroem o planeta, desde que continuem contratando publicidade (SERRANO, 2013, p. 74). Enquanto os noticiários são moldados à lógica do capital, ocultando as informações que condenam as grandes empresas, enaltecendo o que é oportuno e deformando o inconveniente, a doxa neoliberal procura neutralizar o pensamento crítico, reduzindo a visibilidade das ideias alternativas e contestadoras (MORAES, 2013, p. 46). Trata-se, pois, de uma função ideológica que consiste em "realizar a lógica do poder fazendo com que as divisões e as diferenças apareçam como simples diversidade das condições de vida de cada um", o que significa "escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular enquanto particular, dando-lhe a aparência do universal" (MORAES, 2013, p. 46). Por causa dessa relação de interdependência delineada entre os grupos de mídia e os atores da economia neoliberal, os aparelhos de TV converteram-se em vitrine propagandista do sistema capitalista, ignorando por completo as funções públicas do serviço de radiodifusão de sons e imagens. A educação, as artes, a cultura e os noticiários têm como foco não o cidadão, mas sim

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 as próprias emissoras e seus patrocinados, cujos interesses são facilitados por meio de uma programação voltada a expor a ideologia capitalista como a única a ser considerada. A educação não é um processo privativo da escola, pois existem outras instituições sociais, como os meios de comunicação, que têm também a função de educar, embora em menor escala que o centro educacional em sentido formal (SCORSIM, 2009, p. 32). Mas, que tipo de "educação" as emissoras de televisão estariam transmitindo a seus telespectadores? O viés pedagógico televisivo não vai ao encontro dos objetivos da República brasileira e, quando visa atendê-los, apenas incide foco sobre a "qualificação para o trabalho", de nítido interesse capitalista. Na Rede Globo de Televisão, por exemplo, programas como Globo Comunidade, Pequenas Empresas & Grandes Negócios e Como Será? são transmitidos, respectivamente, às 6h50min e às 7h20min dos domingos e às 6h nos sábados, fato que impossibilita sua assimilação por grande parte da população, haja vista a inconveniência do horário estabelecido para sua difusão. Até mesmo as atrações das redes de televisão que têm como intuito desenvolver os setores econômicos e sociais são transmitidas em horários de baixa audiência, o que torna insuficiente o atendimento da finalidade educativa da comunicação de massa (OLIVEIRA, 2002, p. 210). Da mesma forma, a arte e a cultura são aquelas produzidas pelo próprio capital, mais precisamente, pela indústria cultural. As manifestações artísticas transmitidas não são as que acusam e resistem ao sistema hegemônico, mas sim que o reafirmam e enaltecem. No mesmo sentido, a cultura não é a popular, tampouco a erudita, legítimas formas de manifestação social, mas sim a cultura de massa, estrategicamente elaborada e industrialmente produzida para o consumo massivo. O predomínio da cultura de massa, aliada a uma programação excessivamente recreativa, converte o tempo de lazer do espectador em uma entrada para o consumo, imediato e mediato, de objetos simbólicos e materiais (SCORSIM, 2009, p. 38). Como não poderia ser diferente, a função informativa também se curva ao capital. Notícias inconvenientes aos interesses mercadológicos (como a severa degradação ambiental resultante da irresponsável utilização dos recursos naturais e a exploração de trabalhadores submetidos a condições análogas a de escravos por multinacionais), principalmente quando vinculadas aos seus patrocinadores, são negligenciadas pelas emissoras de TV. Manifestações de resistência ou denúncias ao modelo imposto (como aquelas capitaneadas pelos movimentos sociais), quando não ignoradas, são deformadas pelos noticiários diários. No que diz respeito à função televisiva de informar, fácil perceber que esta também se encontra submetida aos anseios das emissoras e de seus patrocinadores. Na seara jornalística, as concessionárias têm a oportunidade de transmitir ao público, sob uma suposta imparcialidade, aquilo que consideram conveniente, relegando à invisibilidade fatos e notícias avessos aos seus próprios interesses. O interesse público, idealizado como vetor orientador das outorgatárias, é ignorado em prol de uma lógica neoliberal que prestigia os grupos proprietários e os anunciantes, cujos interesses são postos acima dos próprios anseios sociais. Não obstante o elevado número de telejornais diários que compõe a programação televisiva, o telespectador tem acesso a poucas facetas da realidade, pois apenas é transmitido o que interessa ao capital. Ademais, em muitos casos, o conteúdo selecionado é difundido junto à opinião da emissora sobre o assunto, de modo que veiculam-se misturadamente fatos e juízos de valor, sem que o telespectador saiba que está recebendo uma informação eivada pela ideologia imprimida pelo proprietário do meio de comunicação (SCORSIM, 2009, p. 24). Nas mãos das concessionárias privadas, a radiodifusão de sons e imagens se torna um instrumento a serviço do capital. O caráter público constitucionalmente atribuído à televisão sucumbe perante os interesses privados das emissoras de TV e de seus patrocinadores. Seu

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 papel educador, artístico, cultural e informativo é moldado não ao interesse coletivo, mas sim à lógica capitalista. Em consequência, nega-se ao cidadão a possibilidade de entrar em contato com visões plurais, óticas não hegemônicas, perspectivas desalinhadas à ordem estabelecida.

3 A RELAÇÃO OPRESSIVA MOLDADA ENTRE EMISSORAS E TELESPECTADORES A deformação dos princípios constitucionalmente atribuídos ao serviço televisivo pelas emissoras prestadoras da atividade auxiliam na construção de uma relação opressiva entre as concessionárias privadas e o telespectador, usuário final do serviço radiodifusor. Esse viés opressivo moldado entre emissoras (opressores) e telespectadores (oprimidos) pode ser analisado a partir dos ensinamentos e de conceitos extraídos de Paulo Freire. O educador (FREIRE, 1999, p. 44) dispõe que a vocação do homem é a humanização, o ser mais. Esta vocação é afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada. Para alcançar a liberdade, o oprimido precisa, primeiro, ganhar a consciência crítica da opressão, na práxis desta busca. A práxis, por sua vez, seria a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo, sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimido. Portanto, para se libertar das amarras opressoras, o homem precisa se inserir de forma crítica na realidade, desvelando a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual ele deve incidir sua ação transformadora. Segundo Freire, a opressão existe justamente quando se constitui em um ato proibitivo do ser mais dos homens. O serviço televisivo assume uma postura opressiva frente o telespectador na medida em que oculta do público uma série de fatos, informações e notícias do mundo que lhe rodeia, impedindo que ele tome consciência da realidade em que vive. Ignorante em relação a própria realidade opressora que o circunda, o homem não pode refletir sobre ela, tampouco transformá-la por meio da práxis. A TV, portanto, dificulta a luta pela libertação do oprimido da realidade opressora, contribuindo para sua permanência no estado de desumanização, de ser menos. A tarefa humana de transformação da realidade é perturbada por um veículo de comunicação que prefere encobrir as brutalidades capitaneadas pelos grupos econômicos a munir o público com informações passíveis de inseri-lo criticamente no mundo. O serviço de radiodifusão de sons e imagens, enquanto o meio de comunicação mais utilizados pelo povo brasileiro, poderia servir aos propósitos originalmente insculpidos na Constituição da República, contribuindo para a tomada de consciência dos cidadãos sobre o mundo a sua volta. Mas o opressor (no caso, os grupos midiáticos) sabe muito bem que esta inserção crítica das massas oprimidas na realidade opressora em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa é a permanência delas em seu estado de imersão em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como "situação limite" que lhes parece intransponível (FREIRE, 1999, p. 43). Não contribuem para a conscientização do telespectador, que significa a desmitologização da realidade opressora, o olhar mais crítico e o desvelamento do mundo, para conhecê-lo e conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante. Mas, realmente, não é papel do opressor provocar a conscientização do oprimido, afinal, como conscientizar, ao mesmo tempo em que se oprime? O processo de conscientização deve partir do próprio oprimido, são eles os responsáveis pela própria libertação (FREIRE, 2001, p. 33). Neste contexto, considerando que não são as emissoras, mas os próprios telespectadores, ou seja, os usuários do serviço televisivo, os responsáveis por sua própria conscientização, ganha destaque o direito à comunicação.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Tal normatividade será analisada enquanto um meio apto a desvelar o mundo encoberto e mitificado pela concessionárias televisivas, realizando, assim a primeira fase da libertação freireana do oprimido por si mesmo, qual seja, a tomada de consciência crítica sobre o mundo e a realidade que o cerca.

4 O DIREITO À COMUNICAÇÃO COMO UM INSTRUMENTO DE LIBERTAÇÃO Com a evolução dos veículos de comunicação social, os direitos às liberdades de expressão e de informação passaram a ser considerados insuficientes para regular a complexidade das relações na sociedade contemporânea, haja vista que, inexistindo garantia de uso dos meios de expressão em massa, as liberdades acima tornaram-se anacrônicas. A constatação dessa insuficiência gerou o que mais tarde seria chamado de direito à comunicação, que visa assegurar aos cidadãos comuns acesso direto e ativo aos meios de produção e de difusão da comunicação (BRITTOS; COLLAR, 2008, p. 72). Para Cicília Peruzzo (2004, p. 58), a nova concepção do direito à comunicação deve ser compreendida como o direito de acesso do cidadão e de suas organizações coletivas aos meios de comunicação social na condição de emissores, ou seja, de produtores e de difusores do conteúdo. Trata-se, pois, de democratizar o poder de comunicar. No atual contexto histórico, que conta com um largo desenvolvimento dos instrumentos de mídia, o direito à comunicação ergue os atores sociais a sujeitos da produção informativa, desvinculando-os daquele papel de meros receptores passivos da informação (LEON, apud PERUZZO, 2004, p. 58). Erigidos a uma função antes limitada às emissoras, os próprios telespectadores e os coletivos sociais, sob o amparo do direito à comunicação, poderiam veicular conteúdos alternativos àqueles habitualmente veiculados pelas emissoras televisivas, dando foco a informações, notícias e opiniões que não aquelas comprometidas com o capital. Receptiva a perspectivas contrahegemônicas, a TV democratizada teria o potencial de revelar nuances anteriormente invisibilizadas pelas concessionárias privadas, mormente no que diz respeito aos fatos inconvenientes ao sistema capitalista. Desse modo, seria possível iniciar a primeira fase de libertação freireana, que prima por expor ao oprimido a realidade opressora propagada pelo opressor. A democratização da mídia por meio do direito à comunicação, além de explicitar as diversas realidades normalmente relegadas ao anonimato e pluralizar o conteúdo televisivo, também oportunizaria a participação ativa do cidadão no processo de criação, produção e de transmissão programativa, conferindo ao próprio telespectador a possibilidade de transmitir aos seus semelhantes fatos, notícias e conhecimentos desveladores do mundo, contrariando a produção opressora habitualmente propagada pelas emissoras hegemônicas. A partir desse processo de conscientização coletiva, o homem consegue reagir ao mundo, transformá-lo, em um contínuo processo de ação-reflexão-ação, e, enfim, fazer a própria história.

CONCLUSÃO No presente estudo, analisamos a relação delineada entre os telespectadores brasileiros e as emissoras de televisão sob a ótica da Pedagogia do Oprimido, elaborada por Paulo Freire. Percebemos que, na atual situação em que se encontra, o serviço televisivo, no lugar de atender as expectativas da coletividade nacional, se curva aos interesses privados das concessionárias e de seus patrocinadores, transmitindo uma programação exclusivamente voltada aos anseios do capital.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Tal situação molda uma relação opressora entre as emissoras televisivas e os telespectadores, na medida em que estes são furtados da oportunidade de assistir, por meio de um serviço público que se baseia no princípio da preferência às finalidades educativa, artística, cultural e informativa, fatos e notícias que desvelem o mundo no qual se encontram, sendo-lhes negada a possibilidade de inserção crítica na realidade através das telas da TV. Em resposta a tal situação, emerge o direito à comunicação, normatividade voltada a conferir ao cidadão e às coletividades sociais o papel de protagonistas no exercício da atividade comunicativa, na qualidade de produtores e difusores de conteúdo. Por meio desse direito, seria possível, então, realizar a primeira fase da libertação freireana do oprimido por si mesmo, qual seja a tomada de consciência crítica sobre o mundo e a realidade que o cerca.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO, PENAL

CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO

Roger Raupp Rios1 Lawrence Estivalet de Mello2

RESUMO Este artigo objetiva analisar a proposta de criminalização da homofobia de modo crítico, mediante o exame dos argumentos abolicionistas e da necessidade de medidas antidiscriminatórias. Em um primeiro momento, apresenta a crítica abolicionista à criminalização da homofobia e propõe a defesa de uma política criminal alternativa. A seguir, arrola as consequências da nãocriminalização na perspectiva do direito da antidiscriminação. Conclui pela necessidade de criminalização da homofobia, em respeito ao princípio constitucional da liberdade e igualdade sexual, bem como ao avanço da consciência social a respeito da discriminação homofóbica. Palavras-chave: homofobia, criminalização, antidiscriminação.

INTRODUÇÃO Esta reflexão propõe uma abordagem jurídica crítica em face de um dos debates mais acirrados na sociedade brasileira contemporânea: a criminalização da homofobia. Crítica, ao menos, em duas frentes: tanto diante dos argumentos nutridos no abolicionismo penal, quanto frente à omissão legislativa decorrente da resistência parlamentar a medidas penais que enfrentem a violência homofóbica. Para tanto, são apresentadas crítica abolicionista e, a seguir, a política criminal alternativa e a criminologia queer (parte 1). Considerada a necessidade de enfrentamento da homofobia, procede-se à análise da criminalização da homofobia no horizonte do direito da antidiscriminação (parte 2). 1. CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO PENAL: contextualização e resposta antidiscriminatória Esta parte examina a crítica do abolicionismo penal à criminalização da homofobia, bem como suas limitações. A análise se subdivide em duas seções: a crítica abolicionista (1.1), a política criminal alternativa e a criminologia queer (1.2). 1.1.

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A crítica abolicionista à criminalização da homofobia

Mestre e Doutor em Direito/UFRGS. Juiz Federal e Professor do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter ([email protected]). 2 Mestre em Direito (PPGD/UFPR). Advogado inscrito na OAB/PR e Professor do curso de Direito da UNIGUAÇU (Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu). Pesquisador do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania, PPGD/UFPR ([email protected]).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Dois textos são tomados como paradigma da crítica abolicionista à criminalização da homofobia. Um primeiro, mais geral, é o clássico “A esquerda punitiva”, de Maria Lúcia Karam, de 1996. O segundo, recente e específico, é da lavra de Aline Passos Santana, denominado “Criminalização das opressões: a que estamos sendo levados a servir?”, lançado em janeiro de 2014. Karam afirma que o interesse da esquerda pela repressão é datado, com origem em meados da década de 1970. Localiza esse interesse no movimento feminista, que teria como objetivo “a busca de punições exemplares de atos violentos contra mulheres”, em “febre repressora” que a seguir se estenderia ao movimento ecológico3. Descreve o fundamento da criminalização como busca de “identificação exemplar” dos criminosos, para que “emprestem sua imagem à personificação da figura do mau, do inimigo, do perigoso”. A punição exemplar esconderia os perigos e males que sustentam a estrutura de dominação e poder4. Afirma que a lógica do sistema penal é a da pena pela seletividade. Individualiza-se e demonizase o criminoso, como característica inerente à chamada “reação punitiva”. Gera-se, assim, “satisfação e alívio”, com dispensa de investigação das razões ao fundo das “situações negativas”. Tornam-se invisíveis as fontes geradoras da criminalidade. Em seu lugar, toma assento a superficialidade da resolução falsa 5. O motivo principal da crítica à “esquerda punitiva” é seu “abandono da utopia da transformação social, cedendo lugar a desejos mais imediatos”. Por um lado, afirma-se o objetivo de reprodução do senso comum, para conquista de cargos políticos. Por outro, sugere-se “processo de envelhecimento e estabilização material”, que resultaria em ideais de “paz” e “tranquilidade” 6. Como exemplo dessa postura, vale-se do discurso da guerra às drogas em favelas do Rio de Janeiro. Em reprodução da ideologia repressora, setores da esquerda defenderiam maior intervenção do sistema penal. Para tanto, trabalhariam com o “fantasma da criminalidade organizada”, que seria o responsável pela desorganização de movimentos populares. Desse modo, forjar-se-ia uma espécie de complacência com a “violenta educação das classes subalternizadas para a submissão”, que incluiria revistas pessoais até mesmo contra crianças 7. Trata-se, segundo Karam, de quem não hesita em dar sua adesão a uma pretendida ‘paz’ classista e excludente, de quem, priorizando o combate à criminalidade, parece ter definitivamente relegado a segundo plano as medidas mais profundas e de longo prazo que, aptas a criar melhores condições de vida e maiores oportunidades sociais para as classes subalternizadas, simultaneamente contribuam para o rompimento com os mecanismos excludente (tão eficazmente reproduzidos pelo sistema penal) e conduzam a uma – não importa quão distante – transformação social (...)8. Para a autora, “a ideia de pena, de afastamento do convívio social, de punição, baseia-se no maniqueísmo simplista, que divide as pessoas entre boas e más” 9. A defesa da criminalização, desse modo, concerne à adesão à ideologia da repressão, da lei e da ordem. Compatibiliza-se 3

KARAM, 1996, p. 79. KARAM, 1996, p. 82. 5 KARAM, 1996, p. 82. 6 KARAM, 1996, p. 83. 7 KARAM, 1996, pp. 86 e 87. 8 KARAM, 1996, p. 87. 9 KARAM, 1996, p. 88. 4

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 com um tempo de “medo coletivo difuso”, “isolamento individual”, bem como “decepção enfraquecedora das utopias” e “necessidade de criação de novos inimigos” 10. Defende, em contraposição, uma “síntese que incorpore os ideais libertários, asseguradores da livre expressão e realização dos direitos da personalidade de cada indivíduo, (...) [com] indispensável garantia da liberdade individual e do direito à diferença” 11. Aline Passos, em texto mais recente, especifica a crítica abolicionista à criminalização das opressões, estas entendidas como racismo, machismo e homofobia. Sistematiza seis principais críticas à criminalização. A primeira crítica se refere à persistência das condutas, mesmo após a criminalização. Revela, portanto, a falsidade de um suposto caráter preventivo. O segundo motivo é o caráter de classe do sistema penal. Afirma-se que apenas “os de baixo” são atingidos pela criminalização de condutas; com nova criminalização, portanto, “é exatamente isso que ele [o sistema penal] continuará fazendo”12. O terceiro argumento informa que há opressões no interior das prisões, o que significa que “empurrar para dentro delas os opressores é autorizar que eles se multipliquem e se espalhem”13. A quarta crítica caracteriza criminalizações como “abrir mão da juventude pobre”. Relaciona crime com ato infracional e questiona o caráter “pedagógico” de internações em instituições destinadas ao aprisionamento de jovens em conflito com a lei. O quinto argumento afirma insensibilidade de umas opressões em relação a outras. Detalha-se que negros podem ser machistas e homofóbicos, gays podem ser machistas e racistas e mulheres podem ser homofóbicas e racistas. Por esse motivo, criminalizar opressões se caracteriza como um “fogo cruzado”, que pode levar à hierarquização entre as opressões, em “problemática reciprocidade”, que atesta a “sofisticação da estratégia punitiva”. Por fim, o sexto motivo contrário à criminalização das opressões é o de que criminalizar cria “empregos úteis”. Citam-se “secretarias especiais, ONGs, especialistas, parlamentares, institutos de pesquisa, departamentos de polícia especializados”, que forjariam “não só o criminoso, mas também, o policial e o carceireiro, mais ou menos intelectualizado, fardado ou não, cuja existência material depende da constante renovação dos processos de criminalização e aprisionamento” 14. Ambas as autoras, portanto, sustentam o caráter ideológico do combate à discriminação por meio da criminalização. Caracterizam a posição contrária à delas como classista, adaptada à paz e à ordem, rebaixada ao senso comum, insuficiente para o combate à discriminação, bem como passível de efeito reverso, isto é, de aumentar a discriminação. Sugerem, inclusive, má-fé por parte de quem defende a criminalização, com suposto interesse em cargos políticos, empregos e afins. São, portanto, duas ordens de argumentos. A primeira, a respeito do caráter de classe do sistema penal e sua impermeabilidade a apropriações contra-hegemônicas. A segunda, concernente à insuficiência da referida tática para o combate à discriminação. 1.2.

A política criminal alternativa e a criminologia queer

Há alternativas de pensamento à crítica desferida à criminalização da homofobia na seção anterior, como a possibilidade de uma política criminal das classes subalternas e a ideia de uma criminologia queer. Exemplos disso são as reflexões de Alessandro Baratta e a defesa de Salo de 10

KARAM, 1996, p. 90. KARAM, 1996, p. 92. 12 SANTANA, 2014, s/n. 13 SANTANA, 2014, s/n. 14 SANTANA, 2014, s/n. 11

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Carvalho sobre a possibilidade de uma criminologia queer. Ambos defendem a permeabilidade de contradições no caráter de classe do sistema penal, como se verá. Baratta, em “Criminologia crítica e crítica do direito penal”, sustenta a possibilidade de uma política criminal alternativa, baseada em “quatro indicações ‘estratégicas’ para uma ‘política criminal’ das classes subalternas”. São elas (a) a distinção entre comportamentos socialmente negativos que se encontram nas classes subalternas e aqueles que se encontram nas classes dominantes, (b) o uso alternativo do direito penal em favor dos interesses coletivos e uma obra radical e corajosa de despenalização, (c) o objetivo da abolição da instituição carcerária, com as múltiplas e diferenciadas etapas de aproximação deste objetivo; e (d) “uma batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade”15. A primeira indicação estratégica concerne à função do direito penal na estrutura da sociedade capitalista. Os comportamentos socialmente negativos das classes subalternas são "expressões específicas das contradições que caracterizam a dinâmica das relações de produção e de distribuição, (...) na maioria dos casos uma resposta individual e politicamente inadequada àquelas contradições”16. Os das classes dominantes, em outro sentido, referem-se a “processos legais e ilegais da acumulação e da circulação do capital e entre estes processos e a esfera política”17. Diferencia-se programaticamente, assim, política penal de política criminal. Esta é uma “política de transformação social e institucional”; aquela é uma resposta circunscrita ao âmbito do “exercício da função punitiva do Estado” 18. A adoção da perspectiva da política criminal, portanto, Não pode ser uma política de ‘substitutivos penais’, que permaneçam limitados a uma perspectiva vagamente reformista e humanitária, mas uma política de grandes reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanas (...)19. A segunda indicação estratégica se refere à crítica do direito penal como direito desigual, sob dois perfis. Primeiro, diz respeito “à ampliação e ao reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e da comunidade: a saúde, a segurança no trabalho, a integridade ecológica etc.” 20. Configura-se, assim, um uso alternativo do direito penal, com necessário cuidado para não-reprodução da ideologia da defesa social. O segundo perfil, por outro lado, tem como objetivo uma “obra radical e corajosa de despenalização” 21. Busca-se a contração ao máximo do sistema punitivo, com alívio da pressão negativa sobre as classes subalternas. Significa, também, a busca por meios alternativos de resolução de conflitos, com a substituição das sanções penais por formas de controle legal nãoestigmatizantes. Dentre estas, são citadas sanções administrativas ou civis, entre outras 22. A terceira indicação estratégica afirma o objetivo da abolição da instituição carcerária, com as múltiplas e diferenciadas etapas de aproximação deste objetivo. Ou seja, busca-se dar concretude à defesa da abolição, por meio de táticas adequadas para este fim. Entre elas, 15

BARATTA, 2002, p. 205. BARATTA, 2002, p. 201. 17 BARATTA, 2002, p. 201. 18 BARATTA, 2002, p. 201. 19 BARATTA, 2002, p. 201. 20 BARATTA, 2002, p. 202. 21 BARATTA, 2002, p. 202. 22 BARATTA, 2002, p. 202. 16

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 encontram-se o “alargamento do sistema de medidas alternativas”, a “ampliação das formas de suspensão condicional da pena e de liberdade condicional”, a “reavaliação do trabalho carcerário” e, em especial, “a abertura do cárcere para a sociedade, também mediante a colaboração das entidades locais e, mais ainda, mediante a cooperação dos presos e das suas associações com as organizações do movimento operário” 23. O objetivo é de constituir uma alternativa ao “mito burguês da reeducação e da reinserção do condenado”24. A quarta indicação estratégica, enfim, defende a necessidade de “máxima consideração na função da opinião pública e dos processos ideológicos e psicológicos que nela se desenvolvem”25. Opinião pública, para o autor, possui três sentidos: primeiro, o de construção de estereótipos de criminalidade; segundo, o de portar e legitimar a ideologia dominante; e terceiro, o de projetar “culpa” e “mal” a certas atitudes, em cumprimento às “funções simbólicas da pena” 26. Encontra importância, desse modo, “uma batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade” 27. Para reverter as relações de hegemonia cultural, é necessário um “decidido trabalho de crítica ideológica, de produção científica, de informação” 28. Somente assim a crítica pode atingir um patamar de “discussão de massa” e fugir à destinação de permanência como “utopia de intelectuais iluministas” 29. Salo de Carvalho, por outro lado, fundamenta a constituição de uma criminologia queer, cujo objeto é a violência homofóbica30. Identifica duas pautas do movimento LGBT no plano da política-criminal. Uma primeira é negativa, referente à limitação da intervenção penal nas esferas do direito e da psiquiatria. Uma segunda, positiva, direcionada à criminalização da violência homofóbica31. A pauta negativa se fundamenta na “repressão histórica da diversidade sexual”. Apresenta-se a necessidade de descriminalização de atos homossexuais, ainda presente em 40% dos países membros da ONU32 e no Código Penal Militar brasileiro33. Outrossim, sem ignorar avanços no processo de despatologização das sexualidades e identidades de gênero não-hegemônicas, ressalta-se que a transexualidade permanece tipificada como transtorno de identidade de gênero34. Acerca da pauta positiva, Carvalho releva aspectos penais e criminológicos. Do ponto de vista penal, o autor considera a demanda pela criminalização legítima, mas equivocada a estratégia político-criminal eleita (PL 122/2006)35. Defende que a mera especificação de condutas já

23

BARATTA, 2002, p. 203. Para o autor, “(...) a verdadeira ‘reeducação’ do condenado é a que transforma uma reação individual e egoísta em consciência e ação política dentro do movimento da classe. O desenvolvimento da consciência da própria condição de classe e das contradições da sociedade, por parte do condenado, é a alternativa posta à concepção individualista e ético-religiosa da expiação, do arrependimento, da Suhne” (BARATTA, 2002, p. 204). 25 BARATTA, 2002, p. 205. 26 BARATTA, 2002, p. 205. 27 BARATTA, 2002, p. 205. 28 BARATTA, 2002, p. 205. 29 BARATTA, 2002, p. 205. 30 A violência homofóbica, para Salo de Carvalho, possui três dimensões: interpessoal, institucional e simbólica (CARVALHO, 2012, p. 197). 31 CARVALHO, 2012, p. 194. 32 “(…) aproximadamente 60% dos membros da ONU (113 de 193) aboliram (e alguns nunca o fizeram) as legislações que criminalizavam atos homossexuais consentidos entre pessoas adultas do mesmo sexo, enquanto cerca de 40% (78 de 193) das nações ainda se agarram de forma equivocada – assim como criminosa – na tentativa de preservar suas ‘identidades culturais’ frente à globalização (...). As punições variam de um número de chibatadas (como o Irã), dois meses de prisão (por exemplo, Argélia), a sentença de prisão perpétua (e. g. Bangladesh) ou até mesmo a morte (Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iémen)” (ILGA apud CARVALHO, 2012, p. 194. 33 Ver RIOS, SCHAFER e BORBA, 2012. 34 CARVALHO, 2012, p. 195. 35 CARVALHO, 2012, p. 206. 24

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 criminalizadas não produz aumento de repressão penal 36. Sustenta presença de discriminação na tutela insuficiente contra a violência homofóbica, em comparação à tutela contra a violência racista e machista37. Ressalva, no entanto, que a mera especificação da violência homofóbica (nomen juris) não resolve o problema. É necessário debater “os instrumentos legais e os efeitos jurídico-penais decorrentes desta diferenciação” 38. Da escolha dos instrumentos legais decorre sua conclusão de equívoco na estratégia utilizada pelo movimento LGBT39. Do ponto de vista criminológico, refutam-se as posições que violam a Lei de Hume, isto é, retiram uma norma (plano do dever ser) de uma situação concreta (plano do ser). Os dados sobre o funcionamento do sistema prisional, no seu entendimento, não podem levar a uma conclusão normativa, senão em reprodução de argumentos típicos do positivismo científico 40. Critica o idealismo ingênuo, segundo o qual uma criminalização possa, por si mesma, diminuir violências. Em contraposição, sustenta que a possibilidade de redução de violências “implica em um processo complexo de análise de cada situação-problema em seu local de emergência”, na qual “a lei penal é apenas uma – e provavelmente a menos eficaz e mais falha – das estratégias”41. Destaca, entretanto, que a criminalização da homofobia pode possuir forte efeito simbólico, com capacidade de “desestabilizar a cultura homofóbica enraizada no tecido social” 42. Neste aspecto, lembra o processo desencadeado pela Lei Maria da Penha. Com base em dados IBOPE/THEMIS, sublinha que: o estatuto provocou importantes mudanças culturais (IBOPE/THEMIS, 2008), inclusive pelas reações que o movimento de mulheres e a própria lei sofreram. Pesquisas evidenciam que o nível de consciência do problema da violência doméstica na sociedade brasileira ganhou densidade, sofisticação (IBOPE/THEMIS, 2008). Sobretudo na forma pela qual os meios de comunicação e de entretenimento passaram a noticiar os atos de violência contra mulheres. E inegavelmente a Lei Maria da Penha desempenhou um papel estratégico central nesta mudança cultural 43. 36

CARVALHO, 2012, p. 200. CARVALHO, 2012, pp. 200 e 201. 38 O autor procede à descrição e diferenciação entre a Lei 7.716/1989 (preconceito racial) e a Lei 11.343 (violência doméstica). No seu entendimento, a primeira apenas nomina e insere condutas discriminatórias no tradicional sistema repressivo, isto é, realiza a inovação de tipos incriminadores no âmbito do direito penal. Já a segunda constrói um novo modelo de gestão de conflitos, tendo a criminalização como questão periférica em sua estrutura normativa, embora “transformada em tema central no debate político e acadêmico” (CARVALHO, 2012, p. 203). 39 “Assim, desde o meu ponto de vista, o problema da criminalização da homofobia no Brasil reside na estratégia utilizada pelo movimento LGBTs. (…) Neste sentido, acredito que a via eleita pelo movimento LGBTs, ao optar pela inclusão da homofobia na Lei 7.716/1989, foi extremamente inadequada. Primeiro porque dilui a ideia de preconceito e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero nas questões de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional. Por mais que a homofobia possa ser enquadrada teoricamente nos crimes de ódio (hate cases) e guarde uma significativa identificação com a xenofobia, o racismo e o antissemitismo, cada um destes fenômenos guarda uma complexidade própria que merece ser analisada individualmente. Segundo, porque as condutas tipificadas pela Lei 7.716/1989, acrescidas de outras propostas no PL 122/2006, referem, e sua maioria, obstaculizações ou impedimentos de acesso a oportunidades, bens, serviços ou locais, situações que, desde uma perspectiva garantista/minimalista, poderiam ser geridas de forma mais adequada fora do âmbito do direito penal, como, por exemplo, nas esferas civil, trabalhista, consumeirista ou administrativista. Em terceiro¸e de forma mais contundente, porque o PL 122/2006 não nomina, como crime homofóbico, as condutas violentas praticadas contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros motivadas por preconceito ou discriminação” (CARVALHO, 2012, p. 205). 40 CARVALHO, 2012, p. 207. 41 CARVALHO, 2012, p. 208. 42 CARVALHO, 2012, p. 208. 43 CARVALHO, 2012, p. 208. 37

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Embora os números de violência doméstica persistam, foram realizados avanços significativos. Em especial, no campo da consciência social das vítimas, que passam a denunciar os atos de violência, com algum acolhimento pelos serviços de atendimento especializados. Abre-se terreno, desse modo, “para que se possa mapear o problema e atuar positivamente, através de políticas públicas não punitivas, para a sua redução” 44. Nessa senda, torna-se inequívoca a possibilidade de construção de uma política criminal alternativa para o combate à discriminação homofóbica. O reconhecimento do caráter de classe do sistema penal não obstaculiza essas políticas. Em outro sentido, caracteriza suas limitações e sua função no interior de uma determinada totalidade social. Em cumprimento às quatro táticas indicadas por Baratta, não é incoerente que as classes subalternas: (a) compreendam que a discriminação homofóbica colabora para os “processos legais e ilegais de acumulação do capital”, ao precarizar as condições de vida de parte da população, com a costumeira retirada da proteção familiar e os diferentes dispositivos que a tornam força de trabalho mais vulnerável a todo tipo de ataque e retirada de direitos; (b) caracterizem como seus valores comunitários, que merecem a “tutela penal essencial”, o reajuste histórico de instituições e relações homofóbicas, na defesa de valores como igualdade e dignidade da pessoa humana; (c) identifiquem que, no interior das “diferentes etapas” da abolição do sistema penal, a criminalização da homofobia constitui um primeiro passo, que viabiliza a construção de políticas públicas e o supramencionado reajuste histórico da homofobia institucional, para sua posterior despenalização. Destaca-se, neste ponto, que sem esse passo permanece dificultada a construção de políticas públicas e, portanto, o combate à discriminação; e (d) utilizem o sistema penal para combater e reverter a opinião pública hoje predominante, que não apenas naturaliza, mas até mesmo difunde a ideologia homofóbica, em processo similar ao ocorrido em torno da criminalização do racismo e da violência doméstica, conforme já citado. A refutação sem ressalvas da possibilidade de adoção crítica da estratégia de criminalização alimenta uma série de simplismos e homofobias. Destacam-se cinco deles abaixo. Primeiro, subestima e invisibiliza a capacidade crítica do movimento LGBT, classificando-o como classista, elitista, punitivista, sem propor junto a ele políticas de combate à homofobia, isolando-o mesmo no interior do campo crítico. Segundo, distorce um movimento de defesa (contra a violência homofóbica), mistificando-o como um movimento de ataque (contra as classes subalternas, de que a população LGBT faz parte). Terceiro, afirma uma adesão à “paz e à ordem”, para uma população cuja realidade cotidiana é em tudo o contrário, de insegurança, conflito, medo, e invisibilidade. Quarto, sugere um “rebaixamento ao senso comum punitivista”, ignorando que a disputa presente no senso comum é entre homofóbicos e não-homofóbicos, e não entre punir ou não a homofobia. Quinto, por fim, sustenta que a criminalização não resolve a situação, reduzindo a política contra a discriminação ao debate do direito penal. É sobre este último ponto que segue a próximo parte. Nela, busca-se inverter o presente debate. Isto é: analisa-se a criminalização sob o ponto de vista do direito antidiscriminatório, e não o contrário.

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CARVALHO, 2012, p. 208.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 2. A NÃO-CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO A homofobia é uma modalidade de discriminação reprovada constitucionalmente, cuja persistência e enfrentamento requerem o cumprimento de deveres constitucionais de proteção, dada a intensidade da violação a direitos fundamentais que dela resulta. De modo particular, a homofobia qualifica-se, juridicamente, como ofensa ao princípio da igualdade, compreendido como mandamento antidiscriminatório. Com efeito, no âmbito do direito da antidiscriminação, entendido como conjunto de conteúdos e institutos jurídicos relativos ao princípio da igualdade enquanto proibição de discriminação e como mandamento de promoção e respeito da diversidade, pode-se indagar sobre a omissão na criminalização da homofobia. 2.1. Conceito jurídico de discriminação e a não-criminalização da homofobia O termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, originadas do preconceito, capazes de produzir violação de direitos contra indivíduos e grupos estigmatizados. A abordagem da discriminação por meio de uma perspectiva jurídica não implica desconhecer ou menosprezar o debate sociológico sobre o tema. Como indica Marshall (1998), os estudos sociológicos sobre discriminação, inicialmente vinculados à investigação do etnocentrismo, atualmente se concentram em padrões de dominação e opressão, como expressões de poder e privilégio. Nesta perspectiva, o conceito de discriminação aponta para a reprovação jurídica das violações ao princípio isonômico45, atentando para os prejuízos experimentados pelos destinatários de tratamentos desiguais. A discriminação aqui é visualizada através de uma perspectiva mais substantiva que formal46: importa enfrentar a instituição de tratamentos desiguais prejudiciais e injustos. Como demostra Fredman47, uma abordagem meramente formal poderia levar à rejeição de um pleito de proteção jurídica (fundado na proibição de discriminação sexual) diante de um empregador que praticasse assédio sexual contra homens e mulheres simultaneamente. Neste contexto, afirma-se o conceito de discriminação desenvolvido no direito internacional dos direitos humanos, cujos termos podem ser encontrados na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial 48 e na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher 49. Segundo estes dizeres, discriminação 45

A propósito, deve-se registrar que o termo “discriminação” tem sido amplamente utilizado numa acepção negativa, tanto no direito nacional quanto no direito comunitário e internacional, ao passo que o termo “diferenciação” tem sido empregado para distinções legítimas. Ver Marc Bossuyt (1976, p. 8) e Rhoodie (1984, p. 26). 46 Como refere Patmore (1999, p. 126), a discriminação substantiva se caracteriza pela referência a uma distinção prejudicial diante de uma pessoa ou grupo relacionada a um fator de diferenciação ilegítimo, ao passo que a discriminação formal pressupõe a ilegitimidade de toda e qualquer distinção. 47 FREDMAN, 2004, p. 95. 48 Aprovada pelas Nações Unidas em 21.12.1965 e ratificada pelo Brasil em 27.03.1968. Reza seu artigo 1º, I: “Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.” 49 Aprovada pelas Nações Unidas em 18.12.1979, ratificada pelo Brasil em 31.03.1981. Diz seu art. 1º, ao definir discriminação: “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 é “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública”. Colocado este conceito, importa agora perguntar-se sobre as consequências, para o direito da antidiscriminação, da não-criminalização da homofobia. Antes de demonstrar tais repercussões jurídicas, é preciso salientar as formas de violência pelas quais a homofobia se manifesta.

2.2. A discriminação homofóbica: contrariedade ao direito e formas de violência Dado que a indivíduos e grupos distantes dos padrões heterossexistas é destinado um tratamento diverso daquele experimentado por heterossexuais ajustados a tais parâmetros, a “homofobia” implica, sem sombra de dúvida, discriminação, uma vez que envolve distinção, exclusão ou restrição prejudicial ao reconhecimento, ao gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais. O pressuposto para a qualificação jurídica de uma relação social como discriminatória é a contrariedade ao direito. Com efeito, não haverá discriminação se a diferenciação de tratamento for considerada conforme o direito, como se dá, por exemplo, diante da proteção jurídica à mulher no mercado de trabalho. Sendo assim, a qualificação jurídica da homofobia como expressão discriminatória exige que se destaquem, ao menos, dois aspectos: (1) a contrariedade ao direito dos tratamentos homofóbicos e (2) as modalidades de violência pelas quais a discriminação homofóbica se manifesta. Quanto ao primeiro tópico, revela-se necessário salientar a injustiça dos tratamentos discriminatórios homofóbicos50. De fato, persistem posturas que pretendem legitimar tais discriminações, diversamente do que ocorre, em larga medida, diante do anti-semitismo, do racismo ou do sexismo. Com efeito, a teoria e a jurisprudência dos direitos humanos e dos direitos fundamentais afirmam, de modo cada vez mais claro e firme, a ilicitude da discriminação por orientação sexual. Tanto tribunais internacionais de direitos humanos, quanto tribunais constitucionais nacionais (inclusive o fez, de forma unânime, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento Fundamental n. 132), afirmam como ofensa a diversos direitos humanos e fundamentais a discriminação dirigida contra identidades, práticas e expressões divorciadas do heterossexismo. Nestes casos, direitos básicos como a privacidade, a liberdade individual, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade humana, a igualdade e a saúde são concretizados e juridicamente protegidos em demandas envolvendo homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais 51. A homofobia viola de modo intenso e permanente uma série de direitos básicos, reconhecidos tanto pelo direito internacional dos direitos humanos, quanto pelo direito constitucional. Ao lesionar uma gama tão ampla de bens jurídicos, a homofobia manifesta-se por meio de duas formas de violência: física e não-física. A violência física, mais vísivel e brutal, atinge diretamente a integridade corporal, quando não chega às raias do homicídio. A segunda forma de violência, não-física, mas não por isso menos grave e danosa, consiste no não-reconhecimento e na injúria. O não-reconhecimento, igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.” 50 Lopes (2003) analisa a injustiça da discriminação por orientação sexual no contexto dos debates atuais de filosofia moral, demonstrando as implicações para a prática do direito. 51 Um panorama desta evolução no direito internacional dos direitos humanos, ver Wintemute (1995) e Heinze (1995); no direito brasileiro, Rios (2001) e Golin (2003).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 configurando uma espécie de ostracismo social, nega valor a um modo de ser ou de viver, criando condições para modos de tratamento degradante e insultuoso. Já a injúria, relacionada a esta exclusão da esfera de direitos e impedimento da autonomia social e possibilidade de interação, é uma das manifestações mais difusas e cotidianas da homofobia 52. Nas palavras de Didier Eribon (apud Lopes, 2003), O que a injúria me diz é que sou alguém anormal ou inferior, alguém sobre quem o outro tem poder e, antes de tudo, o poder de me ofender. A injúria é, pois, o meio pelo qual se exprime a assimetria entre os indivíduos. [...]. Ela tem igualmente a força de um poder constituinte. Porque a personalidade, a identidade pessoal, a consciência mais íntima, é fabricada pela existência mesma desta hierarquia e pelo lugar que ocupamos nela e, pois, pelo olhar do outro, do ‘dominante’, e a faculdade que ele tem de inferiorizar-m insultando-me, fazendo-me saber que ele pode me insultar, que sou uma pessoa insultável e insultável ao infinito. A injúria homofóbica inscreve-se em um contínuo que vai desde a palavra dita na rua que cada gay ou lésbica pode ouvir (veado sem-vergonha, sapata sem-vergonha) até as palavras que estão implicitamente escritas na porta de entrada da sala de casamentos da prefeitura: ‘proibida a entrada de homossexuais’ e, portanto, até as práticas profissionais dos juristas que inscrevem essa proibição no direito, e até os discursos de todos aqueles e aquelas que justificam essas discriminações nos artigos que apresentam como elaborações intelectuais (filosóficas, teológicas, antropológicas, psicanalíticas etc.) e que não passam de discursos pseudocientíficos destinados a perpetuar a ordem desigual, a reinstituí-la, seja invocando a natureza ou a cultura, a lei divina ou as leis de uma ordem simbólica imemorial. Todos estes discursos são atos, e atos de violência. Estando manifesta a contrariedade ao direito da homofobia, bem como a violência de suas manifestações, deve-se atentar para o quanto a discriminação homofóbica está disseminada em nossa cultura heterossexista. De fato, ao lado de expressões intencionais de homofobia, convivem discriminações não-intencionais, mas nem por isso menos graves ou injustas. Uma análise destas modalidades de discriminação homofóbica pode ser desenvolvido a partir das modalidades direta e indireta do fenômeno discriminatório, elaboradas no seio do direito da antidiscriminação. Na presente reflexão, apresentadas essas modalidades, perguntamo-nos quanto aos efeitos da omissão na criminalização da homofobia. 2.3. Modalidades de discriminação: homofobia direta e indireta

A homofobia, como expressão discriminatória intensa e cotidiana, ocorre sempre que distinções, exclusões, restrições ou preferências anulam ou prejudicam o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública. Assim compreendida, a qualificação de um ato como homofóbico não depende da intencionalidade do ato ou da situação ocasionadora da lesão aos direitos humanos e liberdades fundamentais afetados. Deste modo, há discriminação homofóbica sempre que, de modo proposital ou não, 52

LOPES, 2003, p. 20.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 houver tal espécie de lesão a direitos, decorrente da concretização de preconceito diante de estilos de ser e de viver divorciados do heterossexismo. Daí a relevância da análise das formas intencionais (discriminação direta) e não-intencionais (discriminação indireta) de discriminação homofóbica, uma vez que ambas lesionam direitos de modo grave e disseminado, em cujo quadro será analisada a não-criminalização como manifestação discriminatória.

2.3.1. Discriminação direta e homofobia Na modalidade direta, cuida-se de evitar discriminação intencional. Três são as suas principais manifestações: a discriminação explícita, a discriminação na aplicação e a discriminação na elaboração da medida ou tratamento. Na primeira, tem-se a mais clara e manifesta hipótese: trata-se de diferenciação injusta explicitamente adotada. Uma manifestação homofóbica que ilustra a primeira situação são os cartazes espalhados por grupos neonazistas pregando o extermínio de homossexuais. Discriminação explícita também ocorre quando a diferenciação é imediatamente extraída da norma, ainda que esta não o tenha referido literalmente. É o que ocorre, por exemplo, na discriminação perpetrada contra homossexuais no regime legislativo da Previdência Social: neste caso, a redação da legislação de benefícios, ao arrolar os dependentes, almejou excluir companheiros homossexuais, como revelou de modo inconteste a Administração 53. A discriminação na aplicação ocorre quando, independentemente das intenções do instituidor da medida, a diferenciação ocorre, de modo proposital, na execução da medida. Isto ocorre quando a Administração Pública emprega, em concurso público, um critério constitucionalmente proibido através de um procedimento, em tese, neutro: o exame psicotécnico. Em litígios judiciais concretos, por exemplo, constata-se que a Administração Pública já se valeu, de forma deliberada e intencional, deste expediente para discriminar por orientação sexual na seleção de agentes policiais, em que pese inexistir qualquer determinação administrativa oficial neste sentido. Por fim, a discriminação pode ocorrer ainda na própria concepção da legislação ou da medida (discrimination by design), ainda que do seu texto não se possa inferir, literal e diretamente, a diferenciação. Isto ocorre quando a medida adota exigências que, aparentemente neutras, foram concebidas, de modo intencional, para causar prejuízo a certo indivíduo ou grupo. Podese citar, exemplificativamente, uma regra instituidora de uma exigência desnecessária de escolaridade superior num dado concurso público com o propósito de excluir pessoas negras, dado que os indicadores escolares variam substancialmente em prejuízo da população negra. Outro exemplo mais cotidiano da realidade brasileira foi a utilização, por largo tempo, da referência “boa aparência” em anúncios de emprego, objetivando, na concepção, a exclusão de negros. É importante ressaltar aqui que, não obstante a neutralidade aparente da regra, ela foi concebida com o propósito de excluir do certame ou do emprego pessoas negras, donde a sua classificação como hipótese de discriminação direta.

53

Ver, para um histórico do caso e peças processuais mais importantes, Leivas (2003).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 No quadro conceitual da discriminação direta, portanto, a não-criminalização da homofobia encontra previsão na proibição de discriminação proposital explícita. Resultante de decisões políticas que explicitamente objetivam deixar fora da proteção jurídico penal tal espécie de discriminação, estamos diante de discriminação direta, pela intencional exclusão do âmbito de proteção de determinado grupo de indivíduos. 2.3.2. Discriminação indireta e homofobia Independentemente da intenção, a discriminação é um fenômeno que lesiona direitos humanos de modo objetivo. Seu enfrentamento exige, além da censura às suas manifestações intencionais, o cuidado diante de sua reprodução involuntária. Mesmo onde e quando não há vontade de discriminar, distinções, exclusões, restrições e preferências injustas nascem, crescem e se reproduzem, insuflando força e vigor em estruturas sociais perpetuadoras de realidades discriminatórias. Diante destas realidades, o conceito de discriminação indireta ganha especial relevo e importância. De fato, muitas vezes a discriminação é fruto de medidas, decisões e práticas aparentemente neutras, desprovidas de justificação e de vontade de discriminar, cujos resultados, no entanto, têm impacto diferenciado perante diversos indivíduos e grupos, gerando e fomentando preconceitos e estereótipos inadmissíveis. Quando se examina a homofobia, fica ainda mais clara a pertinência e a relevância desta preocupação. De fato, em uma cultura heterossexista, condutas individuais e dinâmicas institucionais, formais e informais, reproduzem o tempo todo, freqüentemente de modo nãointencional e despercebido, o parâmetro da heterosssexualidade hegemônica como norma social e cultural. A naturalização da heterossexualidade acaba por distinguir, restringir, excluir ou preferir, com a conseqüente anulação ou lesão, o reconhecimento, o gozo ou o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais de tantos quantos não se amoldarem ao parâmetro heterossexista. Nesta linha, a discriminação indireta se relaciona com a chamada discriminação institucional. Enfatiza-se a importância do contexto social e organizacional como efetiva raiz dos preconceitos e comportamentos discriminatórios. Ao invés de acentuar a dimensão volitiva individual, ela se volta para a dinâmica social e a “normalidade” da discriminação por ela engendrada, buscando compreender a persistência da discriminação mesmo em indivíduos e instituições que rejeitam conscientemente sua prática intencional (Korn, 1995). Conforme a teoria institucional, as ações individuais e coletivas produzem efeitos discriminatórios precisamente por estarem inseridas numa sociedade cujas instituições (conceito que abarca desde as normas formais e as práticas informais das organizações burocráticas e dos sistemas regulatórios modernos, até as pré-compreensões mais amplas e difusas, presentes na cultura e não sujeitas a uma discussão prévia e sistemática) atuam em prejuízo de certos indivíduos e grupos, contra quem a discriminação é dirigida54. O estudo da discriminação indireta demonstra a relação entre homofobia e heterossexismo. Não só porque há instituições e práticas, formais e informais, em nossa cultura, que historicamente excluem ou restringem o acesso a certas posições e situações apenas a 54

Sobre as dinâmicas institucionais e seus efeitos concretos independente da vontade dos indivíduos que nelas atuam, ver Douglas (1998).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 heterossexuais (realidade cujos casos do casamento e do acesso às Forças Armadas ilustram), como também porque fica patente a supremacia heterossexista no convívio social. Com efeito, a percepção da discriminação indireta põe a nu a posição privilegiada ocupada pela heterossexualidade como fator decisivo na construção das instituições sociais, cuja dinâmica está na base do fenômeno discriminatório, nas suas facetas individual e coletiva. Este privilégio heterossexista faz com que a cosmovisão e as perspectivas próprias de um certo grupo sejam concebidos como “neutros do ponto de vista sexual”, constitutivos da “normalidade social”, considerada “natural”: tudo aquilo que é próprio e identificador da heterossexualidade enquanto expressão sexual específica é efetivamente percebido como neutro, genérico e imparcial. Esta pseudoneutralidade heterossexista, que encobre relações de dominação e sujeição, pode ser entendida, segundo Flagg (1998), por meio do “fenômeno da transparência”. Vale dizer, a tendência de heterossexuais desconsiderarem sua orientação sexual como fator conformador e normatizador da realidade, conduzindo-os a uma espécie de inconsciência de sua heterossexualidade. Este fenômeno só é possível pelo fato de heterossexuais serem socialmente dominantes e faz com que a heterossexualidade seja norma sexual e a homossexualidade transformada em diferença. No caso da omissão quanto à criminalização da homofobia, abstraídas as decisões políticas que objetivam de modo consciente deixar sem proteção indivíduos e grupos vítimas dessa modalidade de discriminação (que configuram hipótese de discriminação direta explícita), vislumbra-se, ao menos, situação de discriminação indireta. Com efeito, assumir, ainda que de forma inconsciente, a heterossexualidade como padrão e como norma inquestionada, sem qualquer atenção para a violência perpetrada pela homofobia, concretiza discriminação indireta, compreendida tanto como manifestação institucional, quanto como efeito do fenômeno da transparência. Trata-se de legitimar, por negligência, insensibilidade, ignorância ou quiçá assentimento, um estatuto privilegiado para a heterossexualidade cuja confirmação implica tolerar a discriminação homofóbica, seja qual for de suas manifestações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS É preciso combater a discriminação sem cair no risco do populismo penal, nem em uma postura punitivista, que deve ser rechaçada. A violência homofóbica perpassa múltiplas esferas da vida interpessoal, manifestando-se no seio familiar, institucional e trabalhista, entre outros. Nesse contexto, não se deve confundir punitivismo e proteção antidiscriminatória. Resguardandose do perigo de apenas reproduzir elementos e estruturas de opressão, deve-se postular meios de proteção, inclusive penais, no enfrentamento da homofobia. Daí não ser correta a mera adjetivação negativa das reivindicações por respostas penais diante da violência homofóbica, com a desconsideração da possibilidade de constituição de uma política criminal alternativa. Um sem-número de medidas podem ser tomadas no combate à homofobia. A criminalização da homofobia não se esgota em si mesma. Ela é apenas uma das medidas legítimas de combate à discriminação, considerando, inclusive, os resultados quando adotadas medidas penais contrárias a outras discriminações, tais como aquelas decorrentes do sexismo e do racismo. As vítimas avançaram em capacidade de denúncia e reação aos ataques sofridos. Dados foram gerados e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sistematizados, possibilitando maior clareza a respeito do problema e das políticas públicas necessárias para seu combate. Sem dúvida, o problema ganhou maior visibilidade e densidade. A homofobia, em suas modalidades direta e indireta, é ainda um grande desafio político e jurídico, que exige medidas concretas. Do ponto de vista jurídico, a criminalização é uma delas, cuja visibilidade, simbolismo e ganhos à consciência social não devem ser subestimados.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 RHOODIE, Eschel. Discrimination in the Constitutions of the World, Atlanta: Brentwood, 1984 SANTANA, A. P. J. . ‘Criminalização das opressões: a que estamos sendo levados a servir?’. Rever, Aracaju, 2014. RIOS, Roger Raupp. A Homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. RIOS, R. R.; SCHAFER, G.; BORBA, F. F. ‘O direito da antidiscriminação e a criminalização da pederastia pelo Código Penal Militar’. Revista da Ajuris, v. 127, p. 311, 2013. WINTEMUTE, Robert. Sexual Orientation and Human Rights: the United States Constitution, the European Convention and the Canadian Charter, Oxford: Oxford University Press, 1995.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E OS POSITIVISMOS JURÍDICOS: A APLICAÇÃO DA LEI COMO “UMA OUTRA LEGALIDADE” Lenio Luiz Streck1

RESUMO: A crise atravessada pela hermenêutica jurídica e pelo paradigma positivista tem relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, já que, durante todo o pensamento moderno, a hermenêutica foi entendida como arte ou técnica (método) estabelecida para a atividade interpretativa. Desse modo, para superar esta crise, a viragem ontológico-linguística foi capaz de suplantar o velho processo interpretativo da metafísica, superando as regras e os cânones interpretativos que ora faziam predominar a objetividade do texto, ora faziam predominar a subjetividade do intérprete. Nesse sentido, o presente artigo pretende demonstrar que o Direito, a partir do paradigma positivista, tem resistido duramente a viragem interpretativa ocorrida na filosofia (invasão da filosofia pela linguagem), procurando se esquivar dos limites ou anteparos democráticos oferecidos a atividade interpretativa. Palavras-chave: Hermenêutica – Positivismo – Interpretação

SUMMARY: The crisis experienced by the legal hermeneutics and the positivist paradigm is directly related to the discussion about the crisis of knowledge and the reasoning problem, since all modern thought, hermeneutics was understood as art or technique (method) established for interpretive activity. Thus, to overcome this crisis, the ontological-linguistic turn was able to supplant the old interpretation of the metaphysical process, surpassing the rules and interpretative canons that were now dominate the objectivity of the text, why did dominate the subjectivity of the interpreter. In this sense, this article will argue that the law, from the positivist paradigm, has harshly resisted interpretative turning occurred in philosophy (invasion of philosophy by language), trying to dodge the democratic limits or vessel offered the interpretive activity. Keywords: Hermeneutics - Positivism - Interpretation

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Endereço do currículo "Lattes": http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4723127H7. Formação Acadêmica: Bacharel em Direito pela UNISC. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Síntese de Qualificações: Professor titular do Programa de Pós-Graduação da UNISINOS; Professor permanente da UNESA-RJ; Professor colaborador de ROMA-TRE (Scuola Dottorale Tulio Scarelli), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra FDUC (Acordo Internacional Capes-Grices) e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional ABDConst; Presidente de Honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica IHJ (RS-MG); Membro da comissão permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB; Coordenador do DASEIN Núcleo de Estudos Hermenêuticos; Autor, entre outras obras, de Jurisdição Constitucional e Hermenêutica; Hermenêutica Jurídica e(m) Crise; Verdade e Consenso, além dos livros, em espanhol: Verdad y Consenso e Hermenéutica Jurídica: estudios de teoría del derecho. Assuntos de interesse: Hermenêutica jurídica, teoria geral do Direito e crítica da dogmática jurídica. Última publicação: STRECK, L. L. ; WERMUTH, M. A. D. . Da Epistemologia da Interpretação à Ontologia da Compreensão: Gadamer e a tradição como background para o engajamento no mundo (ou: uma crítica ao juiz solipsista tupiniquim). Revista Direito e Práxis, v. 1, p. 1-32, 2015.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 1.

HERMENÊUTICA JURÍDICA E INTERPRETAÇÃO

Embora a hermenêutica seja identificada e conhecida pela sua origem mitológica a partir de Hermes, o semi-deus que intermediava a relação dos deuses com os mortais, é apenas na modernidade que passamos a falar desse assunto de outro modo e por intermédio de outro olhar. É possível afirmar, assim, que a hermenêutica jurídica é produto da revolução provocada pelo nascimento do sujeito. Assim, na história moderna, tanto no plano da teologia como no do direito, a hermenêutica tem sido entendida como arte ou técnica (método), com efeito diretivo sobre a lei divina e a lei humana. O ponto comum entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na situação concreta, seja em um processo judicial ou em uma pregação religiosa. Essa tensão entre o texto e o sentido a ser atribuído ao texto coloca a hermenêutica diante de vários caminhos, todos ligados, no entanto, às condições de acesso do homem ao conhecimento acerca das coisas. Assim: a) ou se demonstra que é possível colocar regras que possam guiar o hermeneuta no ato interpretativo, mediante a criação, v.g., de uma teoria geral da interpretação; b) ou se reconhece que a pretensa cisão entre o ato do conhecimento do sentido de um texto e a sua aplicação a um determinado caso concreto não são, de fato, coisas separadas; c) ou se reconhece, finalmente, que as tentativas de colocar o problema hermenêutico a partir do predomínio da subjetividade do intérprete ou da objetividade do texto não passam de falsas contraposições. A crise que atravessa a hermenêutica jurídica possui uma relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, própria do início do século XX. Vejase que as várias tentativas de estabelecer regras ou cânones para o processo interpretativo a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete com a objetividade do texto, não resistiram às teses da viragem ontológico-lingüística (especialmente com Wittgenstein, Heidegger e Gadamer). Essa viragem – que, registre-se, supera o “primeiro” linguistic turn de viés analítico (neopositivista) nascido no Círculo de Viena – deve ser compreendida a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da desobjetificação provocada pelo círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel) e pela diferença ontológica (ontologische Differenz). Não devemos esquecer que a viragem provocada pela publicação de Sein und Zeit por Martin Heidegger, em 1927, 2 e a publicação, anos depois, de Wahrheit und Methode, por HansGeorg Gadamer, em 1960, 3 foram fundamentais para um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica. A partir desse giro ontológico (ontologische Wendung), inicia-se o processo de superação dos paradigmas metafísicos objetivista (aristotélico-tomista) e subjetivista (filosofia da consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm sustentado, de um lado, as teses exegético-subsuntivas e, de outro, um ingênuo “livre atribuir de sentidos”, produto das diversas teses voluntaristas surgidas a partir do segundo pós-guerra, especialmente da Jurisprudência dos

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Cf. HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 14 ed. Tübingen: Niemeyer, 1977. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke I, II. Wahrheit und Methode. Hermeneutik I, II. Tübingen, Mohr Siebeck, 1993. 3

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Valores (Wertungsjurisprudenz) e do positivismo normativista kelseniano, neste último caso a partir de uma equivocada compreensão do oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito. Parece não haver dúvida de que o positivismo – compreendido lato sensu (ou seja, as diversas facetas do positivismo) – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas conseqüências no plano da doutrina e da jurisprudência. Se isto é verdadeiro, a pergunta que cabe é: como é possível continuar a sustentar o positivismo nesta quadra da história? Como resistir ou obstaculizar o constitucionalismo que revolucionou o direito no século XX, especialmente na Europa e na América Latina? Entre tantas perplexidades, parece não restar dúvida de que uma resposta mínima pode e deve ser dada a essas indagações: o constitucionalismo – nesta sua versão social, pós-segunda guerra mundial – não pode repetir equívocos positivistas, proporcionando decisionismos ou discricionariedades4 interpretativas.

2. UM NECESSÁRIO RETORNO A KELSEN: DESMITIFICANDO OS POSITIVISMOS

Quando falamos em positivismos e pós-positivismos, torna-se necessário, já de início, deixar claro o “lugar da fala”, isto é, sobre “o quê” estamos falando. Com efeito, de há muito minhas críticas são dirigidas primordialmente ao positivismo normativista pós-kelseniano, isto é, ao positivismo que admite discricionariedades (ou decisionismos e protagonismos judiciais). Isso será melhor explicado na sequência. Considero superado o velho positivismo exegético. Ou seja, não é mais possível afirmar uma equiparação entre lei e direito. “Lei” não é igual a “direito”. A hermenêutica jurídica contemporânea, nas suas diversas matrizes, não mais acredita nesse positivismo do século XIX porque navega na dimensão do sentido que pressupõe a diferença que existe entre significante e significado. Entretanto, tal circunstância não pode implicar um império de decisões solipsistas, das quais são exemplos as posturas caudatárias da jurisprudência dos valores (Wertungsjurisprudenz), os diversos axiologismos, o realismo jurídico (que não passa de um “positivismo fático”) e a ponderação de valores proposta por Robert Alexy. 5 Para entendermos melhor essa questão: o positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que o neopositivismo lógico também teve a denominação de “empirismo lógico”). Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, num determinado tipo de lei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresenta notas distintas, na 4

Discricionariedade é entendida, aqui, no sentido da crítica feita por Ronald Dworkin ao positivismo de Herbert Hart. Ver, para tanto, a obra Taking rights seriously (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1978), na qual Dworkin faz um enfrentamento à proposta de Hart. 5 Cf. ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. 3. ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 medida em que se olha esse fenômeno numa determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos referir: ao positivismo inglês, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, onde predomina um exegetismo da legislação; e ao positivismo alemão, no interior do qual é possível perceber o florescimento do chamado formalismo conceitual que se encontra na raiz da chamada jurisprudência dos conceitos - Begriffjurisprudenz). No que tange às experiências francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influência que o direito romano exerceu na formação de seus respectivos direito privado. Não em virtude do que comumente se pensa – de que os romanos “criaram as leis escritas” – mas, sim, em virtude do modo como o direito romano era estudado e ensinado. Isso que se chama de exegetismo tem sua origem aí: havia um texto específico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito. Este texto era – no período pré-codificação – o Corpus Juris Civilis. A codificação efetua a seguinte “marcha”: antes dos códigos, havia uma espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. Ou seja, aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum, seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano – dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba “criando” um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804 e Alemanha, 1900).6 A partir de então, a função de complementariedade do direito romano desaparece completamente. Toda argumentação jurídica deve tributar seus méritos aos códigos, que passam a possuir, a partir de então, a estatura de verdadeiros “textos sagrados”. Isso porque eles são o dado positivo com o qual deverá lidar a Ciência do Direito. É claro que, já nesse período, apareceram problemas relativos à interpretação desse “texto sagrado”. 7 De algum modo se perceberá que aquilo que está escrito nos Códigos não cobre a realidade. Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do direito para que essa obra não seja “destruída”? E, ao mesmo tempo, como excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos que não eram bem quistos pelo modo positivista de interpretar a realidade? Num primeiro momento, a resposta será dada a partir de uma análise da própria codificação: a Escola da Exegese8, na França, e A Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha. 9

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Nesse sentido, Cf. CAENEGEM, R. C. Van. Uma Introdução Histórica do Direito Privado. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, em especial o capítulo III;______. European Law in the Past and the Future. Unity and Diversity over Two Millennia. Cambrige: Cambrige Press, 2002, pp. 22 e segs.; WIEACKER, Franz. Historia del Derecho Privado de la Edad Moderna. Madrid: Aguilar, 1957, pp. 89 e segs. tratando da questão desde uma perspective histórica ainda mais originária Cf. BERMAN, Harold. Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition. Massaschusetts: Harvard Universaty Press, 1983, pp. 120-151. 7 Essa “sacralização” dos textos dos Códigos que se apresenta como uma característica do movimento codificador é destacada também por Mário Losano: “No século XIX, a compilação de Justiniano foi substituída por uma codificação baseada em princípios racionais do iluminismo. (...) O debate sobre as codificações caracterizará todo o século XIX, remetendo-se a um novo texto sagrado: o Code Napoleón de 1804.” (LOSANO, Mario. Os Grandes Sistemas Jurídicos: Introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 59). 8 De se notar que a Escola da Exegese surge propriamente no ambiente contra-revolucionário, a partir dos atos políticos que se seguiram ao 18 de Brumário, com o golpe de estado promovido por Napoleão. A proibição de interpretar, típica dessa corrente metodológica, colocava-se contra os interesses do regime napoleônico e foi amplamente disseminada entre os principais juristas da época. No mais, deve-se registrar que tal proibição não se direcionava apenas aos juízes, mas, também, aos eruditos-doutrinadores. A nomeação desse movimento como sendo uma “escola da exegese” se deve a desenvolvimentos teóricos posteriores. No caso, Van Caenegam afirma que o nome teria sido sugerido por E. Glasson, por ocasião do centenário do Code Civil francês. Na ocasião Glasson

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Esse primeiro quadro pode ser nominado como positivismo primitivo, exegético ou legalista. A principal característica desse “primeiro momento” do positivismo jurídico, no que diz respeito ao problema da interpretação do direito, será a realização de uma análise que, nos termos propostos por Rudolf Carnap, poderíamos chamar de sintático. 10 Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a “obra sagrada” (Código) seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito. Assim, conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito devem ser encarados também nessa perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso que representariam as hipóteses – extremamente excepcionais – de inadequação dos casos às hipóteses legislativas. Num segundo momento, aparecem propostas de aperfeiçoamento desse “rigor” lógico do trabalho científico proposto pelo positivismo. É esse segundo momento que podemos chamar de positivismo normativista. Aqui há uma modificação significativa com relação ao modo de trabalhar e aos pontos de partida do “positivo”, do “fato”. Primeiramente, as primeiras décadas do século XX viram crescer, de um modo avassalador, o poder regulatório do Estado – que se intensificará nas décadas de 30 e 40 – e a falência dos modelos sintático-semânticos de interpretação da codificação se apresentaram completamente frouxos e desgastados. O problema da indeterminação do sentido do Direito aparece, então, em primeiro plano. É nesse ambiente que aparece Hans Kelsen. Por certo, Kelsen não quer destruir a tradição positivista que foi construída pela jurisprudência dos conceitos (Begriffjurisprudenz). Pelo contrário, é possível afirmar que seu principal objetivo era reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas de modo a responder ao crescente desfalecimento do rigor jurídico que estava sendo propagado pelo crescimento da Jurisprudência dos Interesses (Interessenjurisprudenz) e à Escola do Direito Livre – que favoreciam, sobremodo, o aparecimento de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpretação do direito. Isso é feito por Kelsen a partir de uma radical constatação: para ele, o problema da interpretação do direito é muito mais semântico do que sintático. Desse modo, temos aqui uma ênfase na semântica. Mas, em um ponto específico, Kelsen “se rende” aos seus adversários: a interpretação do direito é eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista. Para o autor austríaco, esse “desvio” é impossível de ser corrigido. No famoso capítulo VIII de sua Teoria Pura do Direito,11 Kelsen chega a falar que as normas jurídicas – entendendo norma no sentido da teria se referido “aos advogados civilistas que formaram uma espécie de escola que poderia ser chamada Escola da Exegese”. (Cf. CAENEGAM, R.C. Van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. op., cit., p. 208). 9 Importante registrar alguns pontos que traçam características distintas da Jurisprudência dos Conceitos com relação à Escola da Exegese, na França. A Jurisprudência dos Conceitos alemã é herdeira do método e da tradição da “Ciências das Pandectas” (Cf. WIEACKER, Franz. op., cit., p.325 e segs.) que pensava a formação do direito a partir de uma certa genealogia conceitual baseada em um processo histórico de formação dos institutos jurídicos. Já no caso da Escola da Exegese, o direito é um produto direto do parlamento, da vontade geral plasmada nos códigos dos oitocentos. Dessa forma, embora ambas as correntes identifiquem direito e lei e, ademais, conduzam sua metodologia na direção de uma proibição de interpretar, aquilo que se entende por lei é distinto em cada uma delas. Na escola da exegese a lei é fruto da vontade soberana do parlamento; na jurisprudência dos conceitos ela é fruto de um decantado processo histórico de formação conceitual que se opera com muito mais vigor no seio da erudição universitária do que no ambiente parlamentar. Sobre essa questão, Cf. CANEGEM, R. C. Van. Judges, Legislators and Professors. Chapters in European Legal History. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2002, passim. 10 Cf. CARMAP, Rudolf. The logical syntax of language. London: Routledge & Kegan Paul, 1971; ver também CARMAP, Rudolf. Der logische aufbau der welt. Hamburg: Felix Meiner, 1961. 11 Cf. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. Nachdruck: Österreichische, 1992.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 TPD, que não equivale, stricto sensu, à lei – são aplicadas no âmbito de sua “moldura semântica”. O único modo de corrigir essa inevitável indeterminação do sentido do direito somente poderia ser realizada a partir de uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que o Direito se movimentasse em um solo lógico rigoroso. Esse campo seria o lugar da Teoria do Direito ou, em termos kelsenianos, da Ciência do Direito. E isso possui uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena. Esse ponto é fundamental para podermos compreender o positivismo que se desenvolveu no século XX. Sendo mais claro: falo desse positivismo normativista e não de um exegetismo que, como pôde ser demonstrado, já havia dado sinais de exaustão no início do século passado. Numa palavra: Kelsen já havia superado o positivismo exegético, mas abandonou o principal problema do direito: a interpretação concreta, no nível da “aplicação”. E nisso reside a “maldição” de sua tese. Não foi bem entendido. Ainda hoje se pensa, de forma equivocada, que, para ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”. Dizendo de outro modo, a partir dessa autêntica viragem kelseniana (anos 60 do século XX), instaurou-se um verdadeiro “incentivo” às teses voluntaristas. No plano do direito constitucional, é possível detectar essa problemática em alguns ramos do neoconstitucionalismo.12 Com efeito, parcela significativa dos defensores do neoconstitucionalismo continua a professar – consciente ou inconscientemente - as teses da jurisprudência da valoração e acreditam que, com isso, estão no caminho correto para a concretização da Constituição. A grande questão, que sequer vem a tona nos debates neoconstitucionalistas, é a origem dessa corrente do pensamento jurídico chamada Jurisprudência dos valores (Wertungsjurisprudenz). Ora, sua antecedente imediata é a Jurisprudência do Interesses – de onde foi retirada a idéia de ponderação (Abwägung) – que, por sua vez, representa uma alternativa ao conceitualismo defendido e praticado pela Jurisprudência dos Conceitos. Todas essas teorias/metodologias do direito foram criadas e articuladas no âmbito do direito privado e de seu particular conceito de sistema. 13 A Jurisprudência dos valores, nesse sentido, apresenta-se como uma alternativa que mantêm as estruturas sistemáticas do direito privado, porém consentem e constroem aberturas nesse sistema para a entrada dos “valores” (sic) constitucionais. Esse é o grande “segredo” da Jurisprudência dos valores: ela não aceita plenamente o novum que o constitucionalismo Contemporâneo inaugura. O que essa corrente

12

O novo constitucionalismo tem sido abordado por cientistas políticos, principalmente estadunidenses, para se referir ao movimento de democratização de uma série de países que, historicamente, foram governados por ditaduras ou regimes de exceção. No caso, tais autores se referem à America Latina, à África do Sul e alguns países do leste europeu. Em suas análises, tais autores procuram apontar para fatores de expansão do poder judiciário e o papel desenvolvido por esse poder na estabilidade institucionais de tais países. (Por todos, Cf. HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy. The origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007, passim; ______. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. In Revista de Direito Administrativo, n. 251, maio/agosto de 2009, pp. 139-175). Todavia, no presente texto a referência que se faz ao neoconstitucionalismo aponta para o sentido assumido pelo termo nas obras de alguns autores europeus (mormente espanhóis e italianos) que procuram retratar tal fenômeno a partir da chamada “rematerialização da constituição”, com a inserção de valores que devem ser observados pelo juiz no momento de se decidir as questões que problematizam a concretização de direitos fundamentais. (Por todos, Cf. El Canon Neoconstitucional. Miguel Carbonell e Leonardo García Jaramillo (orgs.). Madrid: Trotta, 2010, passim.) Esse tipo de perspectiva teórica deve ser criticada, pois acarreta um excessivo “espaço de conformação” do poder judiciário, levando a possíveis arbitrariedades e decisionismos que são, evidentemente, antidemocráticos. 13 Sobre o conceito de sistema nesse ambiente teórico Cf. LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010, vol I e II, passim.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 teórica faz é apenas conceder uma abertura na idéia de sistema que, em suas grandes linhas, permanece com as mesmas máculas do privativismo novecentista. Não é a toa que Friedrich Müller, quando cria a metódica estruturante – em seu Juristische Methodik14 –, realça a dimensão pós-positivista e pós-privativista de sua teoria. No Brasil esse detalhe é pouco compreendido e no mais das vezes leva à mal-entendidos, como o de taxar a metódica estruturante como sendo um tipo de metodologia específica para o Direito Constitucional. Por certo que esse entendimento se mostra completamente equivocado, na medida em que, no pós-positivismo defendido por Müller, existe um tipo de metódica que não é tributária da concepção de sistema oriunda do privativismo, que está na base de todos os positivismos e que fundamenta, também, as teses da Jurisprudência da valoração. Daí que uma teoria pós-positivista e que dê efetiva contribuição para a concretização da Constituição deve estar em condições de superar esses elementos próprios do privativismo que, de alguma maneira, pode ser tido como uma característica do positivismo.

3. A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO: UM PROBLEMA PARADIGMÁTICO

A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do direito deita raízes na discussão que levou Hans-Georg Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi,15 isto é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar). A impossibilidade dessa cisão – tão bem denunciada por Gadamer – implica a impossibilidade de o intérprete realizar uma Auslegung, como se o texto tivesse um conteúdo “em si mesmo”. Ao contrário, para Gadamer, fundado na hermenêutica filosófica, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung). Mais ainda, essa impossibilidade da cisão – que não passa de um dualismo metafísico – afasta qualquer possibilidade de fazer “ponderações em etapas”, circunstância, aliás, que coloca a teoria argumentativa como refém do paradigma do qual tanto tentam fugir: a filosofia da consciência. Fundamentalmente, a hermenêutica filosófica vem para romper com a relação sujeito-objeto, representando, assim, uma verdadeira revolução copernicana. O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes (Horizontenverschmelzung), porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos. Em outras palavras, coloca em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento. E isso tem conseqüências. Sérias. E não pode ser ignorado pelos juristas preocupados com a democracia. Com efeito, em um universo que calca o conhecimento em um fundamento último e no qual a “epistemologia” é confundida com o próprio conhecimento (problemática presente nas diversas teorias do discurso e nas perspectivas analíticas em geral), não é difícil constatar as razões pelas quais a hermenêutica jurídica continua sendo entendida como um simples saber “operacional”. 14 15

Cf. MÜLLER, Friedrich. Juristische Methodik. 7 ed. Berlin, Duncker & Humblot, 1997, passim. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. 12. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2007. pp. 378-379.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Daí a minha insistência: trata-se de um problema paradigmático. Os juristas não conseguem alcançar o patamar da viragem lingüístico/hermenêutica, no interior da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da relação sujeito-objeto (problema transcendental), refratária à relação sujeito-sujeito (problema hermenêutico). Sua preocupação é de ordem metodológica e não ontológica (no sentido heideggeriano-gadameriano). A revolução copernicana provocada pela viragem lingüístico-hermenêutica tem o principal mérito de deslocar o locus da problemática relacionada à “fundamentação” do processo compreensivo-interpretativo do “procedimento” para o “modo de ser”. 4. (A nova) Hermenêutica no Estado Democrático de Direito: um novo paradigma fundado no elevado grau de autonomia do direito.

O direito que exsurge do paradigma do Estado Democrático de Direito (Estado Constitucional forjado a partir do segundo pós-guerra) deve ser compreendido no contexto de uma crescente autonomização do direito, alcançada diante dos fracassos da falta de controle da e sobre a política. A Constituição é, assim, a manifestação desse grau de autonomia do direito, isto é, deve ser entendida como possuidora de uma dimensão autônoma face às outras dimensões com ela intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral. Essa autonomização dá-se no contexto histórico do século XX. Trata-se de uma autonomia entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza outras dimensões com ele intercambiáveis, em outras palavras, sustentado no paradigma do Estado Democrático Constitucional, o direito, para não ser solapado pela economia, pela política e pela moral (para ficar nessas três dimensões), adquire uma autonomia que, antes de tudo, funciona como uma blindagem contra as próprias dimensões que o engendraram. Ou seja, a sua autonomia passa a ser a sua própria condição de possibilidade. Uma vez que, graças às Constituições compromissórias e analíticas, ocorreu a diminuição da liberdade de conformação do legislador, o que não pode acontecer, neste momento, é essa diminuição (da liberdade de conformação) vir a representar um enfraquecimento da democracia, questão central do próprio Estado Democrático de Direito. Dito de outro modo, se houve a diminuição do espaço de poder da vontade geral e se aumentou o espaço da jurisdição (contramajoritarismo), parece evidente que, para a preservação dessa autonomização do direito, torna-se necessário implementar mecanismos de controle daquilo que é o repositório do deslocamento do pólo de tensão da legislação para a jurisdição: as decisões judiciais. E isso implica discutir o cerne da teoria do direito, isto é, o problema da discricionariedade na interpretação, é dizer, das decisões dos juízes e tribunais. A autonomia do direito não pode implicar indeterminabilidade desse mesmo direito construído democraticamente. Se assim se pensar, a autonomia será substituída – e esse perigo ronda a democracia a todo tempo – exatamente por aquilo que a gerou: o pragmatismo político nos seus mais diversos aspectos, que vem colocando historicamente o direito em permanente “estado de exceção”. Tal circunstância, ao fim e ao cabo, representa o próprio declínio do “império do direito”. Nesse sentido, parece não haver dúvida de que essa questão é retroalimentada permanentemente,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 mormente em países de modernidade tardia como o Brasil, Argentina, Colombia, Peru, Venezuela, Equador e Bolívia, para citar apenas estes. Paradoxalmente, depois dessa revolução copernicana representada pelo acentuado grau de autonomia do direito conquistado no Estado Democrático de Direito, está-se diante de uma crescente perda da sua autonomia, que pode ser interpretada simbolicamente, nestes tempos duros de pós-positivismo, a partir das diversas teses que apostam na análise econômica do direito, no interior das quais as regras e os princípios jurídico-constitucionais só têm sentido funcionalmente (essa questão vem conquistando terreno no direito tributário, por exemplo). Ou seja, dentro de uma dimensão absolutamente pragmática, o direito não tem DNA. Para as diversas posturas pragmatistas, também não faz sentido ligar o direito à tradição. Por isso, no contexto de tais teorias, não se fala em perspectiva interna. Nelas, o direito, compreendido exogenamente, deve apenas servir para “satisfazer”, de forma utilitária, às necessidades “sociais”. É por isso que o direito é visto essencialmente indeterminado, no que tais posturas se aproximam, perigosamente, dos diversos matizes positivistas, que continuam a apostar em elevados graus de discricionariedade na interpretação do direito. O que os liga é uma espécie de grau zero de sentido. Trata-se de lidar com a maximização do poder: o princípio que gere as relações institucionais entre a política e o direito é o poder de o dizer em última ratio. Em síntese, a velha “vontade do poder” (Wille zur Macht) de Nietzsche. Assim, no âmbito da teoria do direito, em especial a partir do segundo pós-guerra, sob pretexto da morte do sujeito ou morte da subjetividade, passou-se a “assujeitar” os sentidos a partir das relações de poder, sob pretexto de que não podem ser controladas pelo direito. Por isso, a aposta no declínio do direito em face da política, da economia e da moral. Pensemos, neste último caso, nas teorias argumentativas, que apostam em discursos adjudicadores, que buscam “corrigir” as insuficiências do direito legislado. A luta das diversas posturas que apostam no pragmatismo, nos subjetivismos e na discricionariedade redunda inexoravelmente no contraponto do Estado Democrático de Direito: a autonomia do direito. Por isso, a evidente incompatibilidade entre os diversos positivismos e o constitucionalismo. Isso quer dizer que o direito do Estado Democrático de Direito está sob constante ameaça. Ou seja, de um lado, corre o risco de perder a autonomia (duramente conquistada) em virtude dos ataques dos predadores externos (da política, do discurso corretivo advindo da moral e da análise econômica do direito) e, de outro, torna-se cada vez mais da frágil em suas bases internas, em face da discricionariedade/arbitrariedade das decisões judiciais e do conseqüente decisionismo que disso exsurge inexoravelmente. É por isso que venho propondo, desde o livro Verdade e Consenso -16 uma resistência através da hermenêutica filosófica, apostando na Constituição (direito produzido democraticamente) como instância da autonomia do direito para limitar a transformação das relações jurídico-institucionais em um constante estado de exceção, evitando que a jurisdição substitua a legislação. Disso tudo é possível dizer que, tanto o discricionarismo positivista, quanto o pragmatismo fundado no declínio do direito, têm algo em comum: o déficit democrático. Isto porque, se a grande conquista do século XX foi o alcance de um direito transformador das relações sociais, é um retrocesso reforçar formas de exercício de poder fundados na possibilidade de atribuição de sentidos de forma discricionária, que leva, inexoravelmente, a 16

Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4a. Ed. São Paulo, Saraiva, 2011.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 arbitrariedades, soçobrando, com isso, a própria Constituição. Ou seja, se a autonomia do direito aposta na determinabilidade dos sentidos como uma das condições para a garantia da própria democracia e de seu futuro, as posturas pragmatistas em geral – assim como os diversos positivismos stricto sensu – apostam na indeterminabilidade. E por tais caminhos e condicionantes que passa a tese da resposta adequada a Constituição. Numa palavra, a superação do positivismo implica a incompatibilidade da hermenêutica com a tese das múltiplas ou variadas respostas. Afinal, a possibilidade da existência de mais de uma resposta coloca essa “escolha” no âmbito da discricionariedade judicial, o que contraria o Estado Democrático de Direito. A partir da hermenêutica filosófica e de uma crítica hermenêutica do direito, é perfeitamente possível alcançar uma resposta hermeneuticamente adequada à Constituição ou, se quisermos, uma resposta constitucionalmente adequada – espécie de resposta hermeneuticamente correta – a partir do exame de cada caso. Com efeito, entendo ser possível encontrar uma resposta constitucionalmente adequada para cada problema jurídico. Nas democracias, existe um direito fundamental a que a Constituição seja cumprida. Trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se quisermos, uma “resposta constitucionalmente adequada” (ou, ainda, uma resposta hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Essa resposta (decisão) ultrapassa o raciocínio causal-explicativo, porque busca no ethos principiológico a fusão de horizontes demandada pela situação que se apresenta. A decisão constitucionalmente adequada é applicatio (superada, portanto, a cisão do ato interpretativo em conhecimento, interpretação e aplicação – as btrês subtilitas de que fala Gadamer), logo, a Constituição só acontece enquanto “concretização”, como demonstrado por Friedrich Müller 17 a partir de Gadamer.

17

Ver, nesse sentido: MÜLLER, Friedrich op.cit.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Isto porque a interpretação do direito é um ato de “integração”, cuja base é o círculo hermenêutico (o todo deve ser entendido pela parte, e a parte só adquire sentido pelo todo), sendo que o sentido hermeneuticamente adequado se obtém das concretas decisões por essa integração coerente na prática jurídica, assumindo especial importância a autoridade da tradição, que não aprisiona, mas funciona como condição de possibilidade. Não esqueçamos que a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, como bem lembra Gadamer. Aqui não há outra “objetividade” além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido, assim, afirmar que o intérprete não vai diretamente ao “texto”, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, expressamente, coloca à prova a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, aquilo que significa, a sua origem e a sua validade. O direito fundamental a uma resposta correta (constitucionalmente adequada à Constituição) não implica a elaboração sistêmica de respostas definitivas. A hermenêutica filosófica não admite respostas definitivas, porque isso provocaria um congelamento de sentidos. Respostas definitivas pressupõem o sequestro da temporalidade. E a hermenêutica é fundamentalmente dependente da temporalidade. O tempo é o nome do ser. Ou seja, a pretensão a respostas definitivas (ou verdades apodíticas) sequer teria condições de ser garantida. Em outras palavras, a própria pretensão implica o risco de produzir uma resposta incorreta. Mas, veja-se, o fato de se obedecer à coerência e à integridade do direito, a partir de uma adequada suspensão da pré-compreensão que temos acerca do direito, enfim, dos fenômenos sociais, por si só, já representa o primeiro passo no cumprimento do direito fundamental que cada cidadão tem de obter uma resposta adequada à Constituição. Veja-se, nesse sentido, que Habermas, em seu Era das transições,18 embora a partir de uma perspectiva não propriamente próxima à hermenêutica, mas evidentemente antirrelativista – e esse ponto interessa sobremodo à hermenêutica jurídica aqui trabalhada –, afirma que a busca da resposta correta ou de um resultado correto somente pode advir de um processo de autocorreções reiteradas, que constituem um aprendizado prático e social ao longo da história institucional do direito. A decisão (resposta) estará adequada na medida em que for respeitada, em maior grau, a autonomia do direito (que se pressupõe produzido democraticamente), evitada a discricionariedade (além da abolição de qualquer atitude arbitrária) e respeitada a coerência e a integridade do direito, a partir de uma detalhada fundamentação. O direito fundamental a uma resposta correta, mais do que o assentamento de uma perspectiva democrática (portanto, de tratamento equânime, de respeito ao contraditório e à produção democrática legislativa), é um “produto” filosófico, porque caudatário de um novo paradigma que ultrapassa o esquema sujeitoobjeto predominante nas duas metafísicas. No campo jurídico, vários autores defendem a possibilidade/necessidade de respostas corretas e/ou adequadas (Habermas e Dworkin sustentam a única resposta correta; Gadamer, embora não tenha tratado diretamente dessa temática, vai dizer que das gilt der Sache nach auch dort, wo sich das Verständnis unmittelbar einstellt und gar keine ausdrückliche Auslegung vorgenommen wird,19 ou seja, que uma interpretação é correta quando ninguém se pergunta 18

Cf. HABERMAS. Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 224-225. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke I – Hermeneutik I. Wahrheit und Methode. Tübingen, Mohr Siebeck, 1993, p. 402. 19

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sobre o sentido atribuído a algo; que Alle rechte Auslegung muss sich gegen die Willkür von Einfällen und die Beschränktheit unmmerklich Denkgewohnheit abschirmen und den Blick auf die Sachen selber richten20 (toda a interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos chutes e do caráter limitado dos hábitos mentais inadvertidos, de maneira a voltar-se às coisas mesmas); e, mais ainda, que So ist die ständige Aufgabe des Verstehens, die rechten, sachangemessenen Entwürfe auszuarbeiten, das heisst Vorwegnahmen, die sich na den Sachen erst bestätigen sollen, zu wagen,21 isto é, a constante tarefa de compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, ou seja, ousar hipóteses que só devem ser confirmadas nas coisas mesmas. Assim, a resposta aqui buscada não é nem a única e nem a melhor: simplesmente se trata “da resposta adequada à Constituição”, isto é, uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição, na Constituição mesma. Hermenêutica é aplicação. O que defendo é que não há respostas “antes das perguntas”, ou seja, não existem respostas (decisões) a priori, que exsurjam de procedimentos (métodos ou fórmulas). Não percebemos primeiro o texto para depois acoplar-lhe o sentido (a norma). Ou seja, na medida em que o ato de interpretar – que é sempre compreensivo – é unitário, o texto não está – e não nos aparece – desnudo, à nossa disposição. A applicatio (categoria proposta por Gadamer) evita a arbitrariedade na atribuição de sentido, porque é decorrente da antecipação (de sentido) que é própria da hermenêutica filosófica. No confronto entre a hermenêutica (filosófica) e as diversas teorias da argumentação, fica patente a não preocupação destas com o problema do relativismo. Conseqüentemente, quem se preocupa com a possibilidade de respostas corretas é a hermenêutica, exatamente pelo seu caráter anti-relativista (veja-se, neste ponto, que Dworkin, embora não advogue claramente uma postura que o possa identificar com a hermenêutica filosófica, assume um viés não-relativista a partir de outros caminhos). Assim, negar a possibilidade de que possa existir uma resposta correta pode vir a se constituir – sob o ponto de vista da hermenêutica filosófica – em uma profissão de fé no positivismo e, portanto, na discricionariedade judicial, uma vez que o caráter marcadamente nãorelativista da hermenêutica é incompatível com a existência de múltiplas respostas. Corre-se o risco de conceder ao juiz uma excessiva discricionariedade (excesso de liberdade na atribuição dos sentidos), acreditando, ademais, que o direito é (apenas) um conjunto de normas (regras). Isto significa transformar a interpretação jurídica em filologia, forma refinada de negação da diferença ontológica (ontologische Differenz). Não esqueçamos que texto e norma, fato e direito, não estão separados e, tampouco, um “carrega” o outro; texto e norma, fato e direito, são (apenas e fundamentalmente) diferentes (no sentido filosófico da palavra). Por isto, o texto não existe sem a norma; o texto não existe em sua “textitude”; a norma não pode ser vista; ela apenas é (existe) no (sentido do) texto. Numa palavra, a resposta constitucionalmente adequada é o ponto de estofo em que exsurge o sentido do caso concerto (que, a partir da hermenêutica filosófica, podemos denominar de “a coisa mesma”). Na coisa mesma (Sache selbst), nessa síntese hermenêutica, está o que se

20 21

Cf. GADAMER, Hans-Georg, op.cit., p.251. Cf. GADAMER, Hans-Georg, Gesammelte Werke I – Hermeneutik II, p. 60.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 pode denominar de a resposta hermeneuticamente (mais) adequada, que é dada sempre e somente na situação concreta. Mas, atenção. Alguns autores – e cito por todos Matthias Jestaedt 22 - faz ataques à hermenêutica filosófica, acusando-a de desconsiderar o texto da lei. Segundo Jestaedt, por não existir, na hermenêutica filosófica, uma compreensão sem aplicação, aquilo que deve ser compreendido somente se materializa no processo de aplicação. Assim, a idéia de uma lex ante casum preexistente, que se possa expressar unicamente descobrindo o que foi “posto nela”, resultaria em uma quimera (sic) no plano da teoria do conhecimento, uma vez que a “interpretação significa sempre concretização”. Portanto, complementa o jusfilósofo alemão, a interpretação se explica como “produção de direito”, por meio da concretização criativa das normas.23 Com isso, conclui Jestaedt, a hermenêutica favoreceria o positivismo ou aquilo que ele chamou, ao se referir ao Tribunal Constitucional Alemão, de “jurisprudência da concretização”. Em síntese, a hermenêutica filosófica seria relativista. Ora, essa interpretação de Jestaedt é reducionista e injusta. Gadamer sempre foi um antirrelativista. A partir de Wahrheit und Methode, ficou claro que a verdade das ciências humanas, ou ciências do espírito, é um acontecimento que pode ser percebido através da arte, da história e da linguagem. Gadamer desfere, assim, um golpe certeiro contra o metodologismo que predominava na epistemologia dessas ciências, afirmando que a verdade é algo que, em última análise, se opõe ao método. Com efeito, ao invés que garantir a objetividade da interpretação, o método – enquanto momento supremo da subjetividade – acaba por levar a relativismos (v.g. no direito a questão da ponderação, por exemplo). Trata-se, assim, de um salto que a hermenêutica dá em relação às teorias da argumentação, que são procedimentais. A tese da resposta hermeneuticamente adequada é, assim, corolária da superação do positivismo pós-exegético. Esse positivismo é discricionário e abre espaço para várias respostas e a conseqüente livre escolha do juiz. Discricionariedade judicial e democracia, para a hermenêutica aqui desenvolvida, são coisas incompatíveis. Nesse sentido, e uma vez mais visando a evitar mal-entendidos, é preciso compreender – do mesmo modo que Gadamer, em seu Wahrheit und Methode – que Dworkin não defende qualquer forma de solipsismo (a resposta correta que defende não é produto de uma atitude de um Selbstsüchtiger): Dworkin superou – e de forma decisiva – a filosofia da consciência. Melhor dizendo, o juiz “Hércules” é apenas uma metáfora para demonstrar que a superação do paradigma representacional (morte do sujeito solipsista da modernidade) não significou a morte do sujeito que sempre está presente em qualquer relação de objeto. Uma leitura apressada de Dworkin - e isso também ocorre com quem lê Gadamer como um filólogo, fato que ocorre não raras vezes no direito - dá a falsa impressão de que Hércules é portador de uma “subjetividade assujeitadora”. Ora, como já referido, enquanto as múltiplas teorias que pretendem justificar o conhecimento buscam “superar” o sujeito do esquema sujeitoobjeto, eliminando-o ou substituindo-o por estruturas comunicacionais, redes ou sistemas e, algumas de forma mais radical, até mesmo por um pragmatismo fundado na Wille zur Macht (por todas, vale referir as teorias desconstrutivistas e o realismo dos Critical Legal Studies), Dworkin e 22

Cf. Verfassunsgerichtspositivismus: Die Ohnmacht des Verfassungsgesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat. Hommage na Josef Isensee, Editora: Duncker & Humblot, 2002, pp. 183-228. 23 Cf. JESTAEDT, Matthias. La ponderación en el derecho. Eduardo Montealegre (org). El derecho público: una ciencia (traducción de Irmgard Kleine). Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 2008, pp.11 e segs.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Gadamer, cada um ao seu modo, procuram controlar esse subjetivismo e essa subjetividade solipsista a partir da tradição, do não-relativismo, do círculo hermenêutico, da diferença ontológica, do respeito à integridade e da coerência do direito, de maneira que, fundamentalmente, ambas as teorias são antimetafísicas, porque rejeitam, peremptoriamente, os diversos dualismos que a tradição (metafísica) nos legou desde Platão (a principal delas é a incindibilidade entre interpretação e aplicação, pregadas tanto por Dworkin como por Gadamer). Por tudo isso, é preciso ter claro que o estabelecimento das bases para a construção de discursos críticos é uma tarefa extremamente complexa e que não se faz sem ranhuras.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como explicitado, as diversas formas de positivismo não podem ser colocadas no mesmo patamar e tampouco se deve pensar que o voluntarismo pós-exegético representa a superação da sua forma primitiva. O que sempre caracterizou o positivismo é o fato de que a postura metodológica por intermédio da qual se analisa o fenômeno jurídico é marcada pela restrição à análise das fontes sociais, a cisão/separação – epistemológica – entre direito e moral (o que faz com que alguns autores – p.ex., Robert Alexy – lancem mão da razão prática, eivada de solipsismo, para “corrigir” o direito) e a ausência de uma teoria da interpretação, que acarreta uma aposta na discricionariedade (ou seja, não se conseguiu superar a herança – ou maldição – kelseniana da cisão entre ciência do direito e direito ou entre observador e participante, no caso de Hart). Em linha diversa, é preciso dizer que, para a hermenêutica filosófica, isso não é bem assim. O elemento interpretativo que caracteriza mais propriamente a experiência jurídica pode, e deve, ser explorado fenomenologicamente. É possível oferecer limites ou anteparos à atividade interpretativa, na medida em que o direito não é concebido a partir de um reducionismo fático. Isso é uma questão de controle democrático das decisões. A partir de tais perspectivas, não faz mais sentido a discussão entre “vontade da lei” ou “vontade do legislador”. Do mesmo modo, perde importância a discussão acerca “da literalidade” da lei. A antiga desconfiança em relação ao legislador deve ser olhada, hoje, ela mesma, com muita desconfiança, em face do elevado grau de autonomia alcançado pelo direito no paradigma constitucional. Quero dizer: saltamos de um legalismo rasteiro, que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma (que se encontra plasmado na idéia de direito presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal – e recordo aqui de Elías Díaz24 –, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser evidente.

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Cfe. DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Sociedad Democrática. Madrid: Taurus, 1983.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Assim, por exemplo, obedecer stricto sensu “o texto da lei” democraticamente construído não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo). Portanto, hoje há que se falar de uma outra legalidade, uma legalidade constituída a partir dos princípios que são o marco da história institucional do direito; uma legalidade, enfim, que se forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido pelo texto constitucional. Mas, o que se quer mencionar quando se afirma a “literalidade da lei”? Ora, desde o início do século XX a filosofia da linguagem e o neopositivismo lógico do círculo de Viena (que está na origem de teóricos do direito como Hans Kelsen), já havia apontado para o problema da polissemia das palavras. Isso nos leva a outra questão: a literalidade é algo que está à disposição do intérprete? Se as palavras são polissêmicas; se não há a possibilidade de cobrir completamente o sentido das afirmações contidas em um texto, quando é que se pode dizer que estamos diante de uma interpretação literal? A literalidade, portanto, é muito mais uma questão da compreensão e da inserção do intérprete no mundo, do que uma característica, por assim dizer, “natural” dos textos jurídicos. Numa palavra final, não podemos admitir que, em pleno século XXI, sejamos induzidos (ou enganados) por argumentos que afastam o conteúdo de uma lei, democraticamente legitimada, com base numa suposta “superação” da literalidade do texto legal, como se defender a aplicação de uma lei por si só representansse uma atitude positivista. Insisto: literalidade e ambigüidade são conceitos intercambiáveis que não são esclarecidos numa dimensão simplesmente abstrata de análise dos signos que compõem um enunciado. Tais questões sempre remetem a um plano de profundidade que carrega consigo o contexto no qual a enunciação tem sua origem. Esse é o problema hermenêutico que devemos enfrentar! Sob pena de corrermos o risco, especialmente em países de democracias recentes, de macular o pacto democrático. Portanto, cumprir “a letra [sic] da lei” significa, sim, nos marcos de um regime democrático, um avanço considerável. A isso, deve-se agregar a seguinte conseqüência: é positivista tanto aquele jurista que diz que lei e direito, texto e norma (ou vigência e validade) são a mesma coisa, como aquele que diz que “o texto da lei e o seu sentido estão descolados”, como fazem as posturas axiologistas, realistas e pragmati(ci)stas. Para ser mais simples: Kelsen, Hart e Ross foram todos positivistas. E sabemos as conseqüências. Ou seja: apegar-se à “letra da lei” pode ser uma atitude positivista ou pode não ser. Do mesmo modo, ignorar a “letra da lei” pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista. Por tudo isso, é possível perceber que o positivismo é bem mais complexo do que a antiga discussão “lei versus direito”... Ou seja, nem tudo que parece, é...!

BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. 3. ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 BERMAN, Harold. Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition. Massaschusetts: Harvard Universaty Press, 1983, pp. 120-151. CAENEGEM, R. C. Van. Uma Introdução Histórica do Direito Privado. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. _____. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. op., cit., p. 208). _____.Judges, Legislators and Professors. Chapters in European Legal History. Cambrigde: Cambrigde University Press, 2002, passim. CARMAP, Rudolf. The logical syntax of language. London: Routledge & Kegan Paul, 1971; ver também CARMAP, Rudolf. Der logische aufbau der welt. Hamburg: Felix Meiner, 1961. DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Sociedad Democrática. Madrid: Taurus, 1983. European Law in the Past and the Future. Unity and Diversity over Two Millennia. Cambrige: Cambrige Press, 2002. GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke I, II. Wahrheit und Methode. Hermeneutik I, II. Tübingen, Mohr Siebeck, 1993. ____. Gesammelte Werke I – Hermeneutik I. Wahrheit und Methode. Tübingen, Mohr Siebeck, 1993, p. 402. ____. op.cit., p.251. _______.

Gesammelte Werke I – Hermeneutik II, p. 60.

____.Verdad y Método. 12. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2007. pp. 378-379. HABERMAS. Jürgen. Era das transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 224-225. HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 14 ed. Tübingen: Niemeyer, 1977. JESTAEDT, Matthias. La ponderación en el derecho. Eduardo Montealegre (org). El derecho público: una ciencia (traducción de Irmgard Kleine). Bogotá, Universidad Externado de Colombia, 2008. KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. 2. ed. Nachdruck: Österreichische, 1992. MÜLLER, Friedrich. Juristische Methodik. 7 ed. Berlin, Duncker & Humblot, 1997. ____. op.cit. Sobre o conceito de sistema nesse ambiente teórico Cf. LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010, vol I e II, passim. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4a. Ed. São Paulo, Saraiva, 2011. Verfassunsgerichtspositivismus: Die Ohnmacht des Verfassungsgesetzgebers im verfassungsgerichtlichen Jurisdiktionsstaat. Hommage na Josef Isensee, Editora: Duncker & Humblot, 2002, pp. 183-228.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 WIEACKER, Franz. Historia del Derecho Privado de la Edad Moderna. Madrid: Aguilar, 1957, pp. 89 e segs. tratando da questão desde uma perspective histórica ainda mais originária.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

DO HISTÓRICO ESTATAL BRASILEIRO PÚBLICO/PRIVADO EM QUESTÃO

À

REFORMA

DO

ESTADO:

A

DICOTOMIA

Emerson de Lima Pinto1 Bernardo Leandro Carvalho Costa2 Resumo: O presente artigo visa problematizar a dicotomia entre as esferas pública e privada e no contexto do Estado brasileiro. Inicialmente faz-se um apanhado histórico acerca da dicotomia público/privado e, em um momento posterior, busca-se uma análise acerca dos reflexos causados pela dificuldade de distinguir estas duas esferas. Para elucidar a problemática ofertada, buscarse-á no âmbito do direito administrativo a demonstração de algumas divergências, sobretudo nas agências reguladoras que passaram a figurar no Estado brasileiro a partir da década de 1990, oriundas da reforma do Estado. PALAVRAS CHAVE: Estado de direito, Público, Privado, Agências Reguladoras, Reforma do Estado.

Abstract: This article talks about the public/private dichotomy in the Brazilian rule of law context. Initially, it demonstrates some topics about the public/private relations during the history. After, search to analyze the effects from this in the Brazilian state. To look this, is does some searches in the administrative law, especially to compare some new institutes from this subject with the regulatory agencies that were implanted in Brazil on the nineties. KEY WORDS: Rule of law, Public, Private, Regulatory Agencies, State Reform, Introdução O histórico estatal brasileiro é caracterizado pela dificuldade em distinguir os interesses privados dos públicos. Observa-se, sobretudo na herança do período colonial e ao longo da república velha, a caracterização de um modelo patrimonialista, onde se confundindo o público e o privado, há forte presença de corrupção, clientelismo e nepotismo. Ainda na república velha, sobretudo na proclamação da república em 1889, e no estabelecimento da segunda Constituição, 1991, alguns “ismos” da cultura política brasileira dominaram a estrutura estatal. Já no século XX, observou-se a transição do modelo patrimonialista para o modelo burocrático, mormente a partir da Era Vargas com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público. Este modelo destaca-se pelas idéias de impessoalidade e racionalismo, contudo, é caracterizado por um Estado mais lento e ineficiente. Na década de 1990, executou-se uma reforma no aparelho estatal brasileiro com o intuito de torná-lo mais eficiente e organizado. Nos dizeres de Bresser 1

Professor da graduação e da Pós-Graduação em Direito da UNISINOS (RS). Professor da graduação e da PósGraduação em Direito da UNISINOS (RS). Doutorando em Filosofia – UNISINOS (RS). Possui Mestrado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Especialização em Ciências Penais pela PUC (RS). EMAIL: [email protected] EMAIL: [email protected] 2 Acadêmico do curso de Direito da UNISINOS (RS) e bolsista de iniciação científica da instituição CNPq. EMAIL: [email protected]

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Pereira: “A reforma de 1995 é a segunda do Estado moderno. A primeira possibilitou a transição de um Estado patrimonialista para um Estado burocrático e libera 3l”. Atenta-se para o fato de que no Brasil, a prevalência de regimes autoritários retardou a importação de alguns paradigmas implementados no período pós II guerra mundial, sobretudo no paradigma estatal do Estado democrático de direito, presente na Constituição brasileira de 1988. Sobre o Estado Democrático de Direito, pode-se afirmar que é composto por duas vertentes: a legalidade, indicada na expressão Direito, e legitimidade, qualificada na expressão Estado Democrático. A partir deste conceito, faz-se interessante limitar a legitimidade dos atos estatais, considerada a partir do princípio da legalidade, isto vai de encontro à definição Danilo Zolo “[...] pode ser definido como a versão do Estado moderno europeu que, com base em uma filosofia individualista (com o dúplice corolário do pessimismo potestativo e do otimismo normativo) e através de processos de difusão e de diferenciação do poder, atribui ao ordenamento jurídico a função primária de tutelar os direitos civis e políticos, contrastando, com essa finalidade, a inclinação do poder ao arbítrio e à prevaricação 4.” Apesar do reconhecimento deste paradigma por parte da doutrina administrativista, como Diogo De Figueiredo Moreira Neto 5, o ramo administrativo do direito vem apostando em novas caracterizações do próprio conceito de legitimidade e, consequentemente, no próprio conceito de democracia. Nesta senda, apresenta-se a legitimidade finalista “[...] não apenas como o mero resultado formal da observância de processos de tomada de decisão, mas, sobretudo, como uma expressão democrática, ou seja, formal e material 6”. Tal premissa vai de encontro à distinção já feita por Norberto Bobbio7 entre democracia formal e substancial. A partir destas premissas é que um direito administrativo pós-moderno, como bem descreve o próprio autor, abandona algumas premissas clássicas do direito administrativo para ir de encontro à valorização de alguns princípios mais “eficientes”. Essa eficiência, exigida das organizações dotadas de poder – políticas, econômicas ou sociais – passou a ser vital no processo de globalização, alçada a imperativo não só de desenvolvimento como da própria sobrevivência desses entes, inclusive dos próprios Estados, em um mundo em que as demandas não podem deixar de ser atendidas a contento: sejam pelas instituições públicas, sejam pelas instituições privadas 8. Neste diapasão, influenciado pelo surgimento de um direito global, como elucidado por Carlos Ari Sundfeld: “Os velhos serviços públicos, de regime jurídico afrancesado e explorados diretamente pelo Estado, estão desaparecendo, com as empresas estatais virando particulares e o regime de exploração de serviços sofrendo sucessivos choques de alta tensão 9.” No Estado brasileiro, a partir da década de 1990, com a reforma do Estado, observouse a adoção do referido paradigma. No campo teórico, isto vai de encontro à transição entre

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BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. “O Estado tem de ser capaz de recrutar jovens brilhantes”. Zero Hora, 5 de Janeiro de 2014, p.9. 4 ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In:_____; COSTA, P. Estado de Direito. História, teoria e crítica. Tradução de C.A. Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 48. 5 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados. Belo Horizonte: Fórum, 2008. 6 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, p.62. 7 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1987. 8 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados., 2008, p.61. 9 SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. (coordenadores). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999. P.161.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 administração piramidal e administração policêntrica elucidada por Gustavo Binenbojn 10. Com a adoção destes paradigmas e o surgimento das Agências Reguladoras, uma a linha tênue passou reger a distinção entre as esferas pública ou privada. Este fenômeno, caracterizado pelas influências da globalização sobre o Estado, acarretou, inclusive, em novas definições de direito administrativo, muito distantes das clássicas discussões tipológicas. A partir dos efeitos do fenômeno globalizante, “[...] o direito administrativo não é, em nenhum país, parte do Direito Público, consistindo, ao contrário, em uma combinação das normas e princípios publicistas e das normas e princípios privatísticos, sem uma (unitária) hierarquia entre as duas 11.” Neste contexto, o presente trabalho, traçando um breve histórico acerca da caracterização do Estado brasileiro, busca, para além desta discussão dogmático-conceitual, elencar a dificuldade em realizar a distinção entre as esferas pública e privada no âmbito do direito administrativo. Utilizando-se inicialmente de obras históricas que tratem da temática desenvolvimentista do Estado em terras brasileiras, buscar-se-á evidenciar a dificuldade entre o traço conceitual destes termos, o binômio público-privado, e a sua evidência na práxis. Isto vai de encontro ao que foi traçado para ilustrar a própria recepção do liberalismo no Brasil, o que elucida “[...] radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e o personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares12.” Através deste referencial teórico inicial, busca-se um paralelo entre o caráter antropológico brasileiro presente em alguns tipos criados pela literatura pátria, assim como os vários ismos presentes na história brasileira, e os seus possíveis reflexos no ramo administrativista do direito. Em um segundo momento, o presente artigo, já aproveitando a discussão feita acerca da distinção entre o público e o privado no primeiro item, focará em uma análise mais dogmática frente à caracterização das agências reguladoras em terras brasileiras, mormente no que concerne às discussões que envolvam a distinção entre as esferas pública e privada. Já em aportes conclusivos, o centro da discussão será um balanço entre o paralelo histórico do Estado brasileiro que será tratado no primeiro item e o caráter dogmático, realçado no segundo. Para além da costura, evidenciar-se-á a possível relação entre a discussão histórica envolvendo a administração pública e a subsequente discussão dogmático-doutrinária, demonstrando, assim, um debate necessário envolvendo a administração pública.

1. O Estado brasileiro e a dificuldade de distinguir o público do privado Embora o paradigma estatal do Estado democrático de direito pareça reger as relações na atual quadra do direito administrativo, a formação brasileira sofreu historicamente um processo de difícil distinção entre as esferas pública e privada. Ainda no império, quando a legislação da metrópole portuguesa regia as relações entre os elementos constitutivos da colônia, as relações de direito privado, do outro lado, na esfera do público, destacava-se o poder onímodo dos

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BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 11 CASSESE, 2000, p.120 apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados., 2008, p.102. 12 BUARQUE DE HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995. P.79. Devese atentar para as denominações terminadas em ismo no que tange à representação de efeitos que a Revolução Francesa lhes proporcionou, afinal, são conceitos que, desde o marco revolucionário francês, não apenas representam os feitos, mas também projetam o futuro e, assim, passam de um simples âmbito teórico para o âmbito experimental de reorganização das massas. Nos dizeres de Reinhart Kosselleck (1993, p.111): “[...] las numerosas denominaciones acabadas en ismo, que sirvieron como conceptos colectivos y de movimiento para activar y reorganizar a las masas, permanentemente desarticuladas”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 governadores proprietários que “[...] abria brechas no edifício legislativo da mãe-pátria13”. “Por toda a parte, em todas as atividades, as ordenanças administrativas, dissimuladas em leis, decretos, avisos, ordenam a vida do país e das províncias, confundindo o setor privado com o público14”. Neste período, destaca-se a interferência do setor privado nos assuntos entre a metrópole e a colônia, por sua vez, usurpando funções públicas. Privatismo e arbítrio se confundem numa conduta de burla à autoridade, perdida esta na ineficiência. Este descompasso cobrirá, por muitos séculos, o exercício privado de funções públicas e o exercício público de atribuições não legais. O déspota colonial e o potentado privado têm aí suas origens, origens que o tempo consolidará 15. No passar do tempo, com o estatuto processual advindo e o conseqüente estabelecimento da guarda nacional16, garante-se aos os chefes locas, responsáveis pela justiça e pelo policiamento, autoridade e autonomia 17. As câmaras municipais, frente às respectivas incapacidades financeiras, permitem a concentração do poder nas mãos de fazendeiros e latifundiários. Neste fenômeno denominado municipalismo é verificável a interferência do privado em atribuições públicas, para o que nos atenta Raymundo Faoro 18: “Não era, em conseqüência, o municipalismo o fruto das reformas, senão o poder privado, fora dos quadros legais, que se eleva sobre as câmaras, reconhecido juridicamente. A semente do caudilhismo, jugulada há um século e meio, brota e projeta seu tronco viçoso sobre o interior, sem lei, sem ordem e sem rei.” Com o instauro da guarda nacional, uma nova figura tomou o centro das discussões em terras brasileiras, o coronel19. A presença do coronel adicionando mais um dentre os vários ismos da cultura política brasileira, influenciaria a própria construção da democracia no Brasil. Além de ser um líder político, o coronel era um líder econômico com poder de mando em seus agregados, empregados e dependentes20. Em termos de Estado e administração isto se traduz em um “[...] vínculo que não obedece a linhas tão simples, que se traduziriam no mero prolongamento do poder privado na ordem pública.21” em conjunto com o governador, este constituindo a espinha dorsal da vida política, representam uma forma de “delegação do poder público no campo privado”. Afinal, há uma linha aparentemente indistinta entre as esferas do público e do privado, servindo, frequentemente, a utilização do poder estatal para o cumprimento de fins privados.

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FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001. P.156. 14 FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro, 2001. P.471. 15 FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro, 2001. P.214. 16 “Portanto, é lícito afirmar que com a criação da Guarda Nacional o governo adotou um procedimento de cooptação do poder local. A tese da total autonomia do Estado em relação ao poder privado, aos localismos, não se sustenta. É Fernando Uricoecha que salienta que “qualquer que tivesse sido o grau de centralização do governo... em nenhum momento foi o Estado capaz de governar efetivamente sem fazer acordos com grupos privados para contar com sua cooperação”. PICOLO, Helga Iracema Landgraf. A guerra dos farrapos e a construção do Estado nacional. In. PESAVENTO, Sandra J; DECANAL, José Hidelbrando. [et. al.]; (organizadores). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre, 1985. P.46. 17 “Poderosa a milícia estadual, fracos os coronéis; rala a força policial, ou integrada de contingentes privados, poderoso será o coronel”. FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro, 2001. P.748. 18 FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro, 2001. P.367. 19 Ver: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o municipalismo e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. 20 “O coronelismo, o compadrazgo latino-americano, a ‘clientela’ na Itália e na Sicília participam da estrutura patrimonial. Peças de uma ampla máquina, a visão do partido e do sistema estatal se perde no aproveitamento privado da coisa pública, privatização originada em poderes delegados e confundida pela incapacidade de apropriar o abstrato governo instrumental (Hobbes) das leis.” FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro, 2001. P.757. 21 FAORO, Raymundo. Os donos do poder no Brasil: formação do patronato político brasileiro, 2001. P.737.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 No Brasil, o modelo de administração implantado a reboque da colonização de exploração, somado ao patrimonialismo da Coroa portuguesa que se tornou nota característica da cultura política brasileira, encontrou no figurino francês do direito administrativo material farto para se institucionalizar e legitimar. [...] as peculiaridades da Administração Pública brasileira apenas aguçaram as contradições intrínsecas que o modelo jusadministrativista europeu continental trazia já desde a sua gênese. 22 Nestes estágios iniciais do Estado brasileiro, em que o domínio patrimonial apropria-se de concessões, cargos e desfrute de bens, gera-se uma confusão entre os setores público e privado. Em tal contexto, tenta-se eliminar ou, ao menos, aperfeiçoar a estrutura estatal através de competências fixas, divisão de poderes e separação dos setores fiscal e pessoal. Contudo, como tudo há de ser no Brasil, a recepção de teorias é sempre recebida de maneira controversa. Traçando um paralelo histórico, Sérgio Buarque de Holanda estabelece uma data marco para uma evolução nacional neste sentido, 1888. A contribuição da abolição da escravatura e o fervor da proclamar a república brasileira parecem ser destacadas pelo historiador que assinala a transição do seguinte modelo: “Na monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais, quem monopolizava a política, elegendoos ou fazendo eleger seus candidatos, dominando os parlamentos, os ministérios, em geral todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das instituições nesse incontestado domínio. 23” A partir deste marco, o constitucionalismo brasileiro encaminhou-se para um novo período com o advento da Constituição de 1891, instaurando, com o decreto n.1 do Governo Provisório, 1889, um período de tradição constitucional republicana que iria perdurar até a Revolução de 1930, com a subida ao poder de Getúlio Vargas ao poder. Dentre outros fatores, decretou-se a instalação da república, federação brasileira, além da forma presidencial de governo. Interessante faz-se observar que, neste período posterior, a partir da década de 1930, calcada nos paradigmas do New Deal, é que a administração pública estadunidense adotou o modelo das modernas agências reguladoras como seu elemento característico. Este fenômeno marca uma passagem de um desenho piramidal de administração pública para uma configuração policêntrica, como bem demonstra Gustavo Binenbojm24. Em terras brasileiras, o foco ainda estava na transição entre as formas patrimonialista e burocrática de organização administrativa. Apesar de esta discussão ter sido feita nos Estados Unidos a partir da década de 1930, mormente sobre os impulsos políticos do New Deal, no contexto latino-americano, dominado pelos regimes empresarial-militares que dominaram a cena política do século XX, a proposta de uma configuração policêntrica de administração pública passou a ter voz a partir da década de 1990, como consequência de um processo chamado reforma do Estado 25. Sobretudo, considerável período após a redemocratização de alguns países na América Latina,

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BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006, p.17. 23 BUARQUE DE HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil, 1995, p.74. 24 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006. Assim define Gustavo Binenbojm: “As autoridades ou agências independentes quebram o vínculo de unidade no interior da Administração Pública, pois a sua atividade passa a situar-se em esfera jurídica externa à da responsabilidade política do governo. Caracterizadas por um grau reforçado da autonomia política do governo. Caracterizadas por um grau reforçado da autonomia política de seus dirigentes em relação à chefia da Administração central, as autoridades independentes rompem o modelo tradicional de recondução direta de todas as ações administrativas ao governo (decorrente da unidade da Administração).” BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006, p.241) 25 “Entre nós, assim como na Argentina e no Chile, a criação de agências reguladoras pode-se afirmar consequência do processo re reforma do Estado, implementado a partir das últimas décadas do século XX.” BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006, p.248)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 especificamente no Brasil, com o estabelecimento de um Estado democrático de direito após a constituição de 1988, a reforma de Estado passou a ser proposta 26. A proposta de reforma de Estado vai de encontro a um fenômeno mundial denominado de globalização. Em termos conceituais, a “‘Reforma de Estado’ é feita sob pressão de modelos ou interesses estrangeiros, mas baseada na construção ou manutenção de uma ordem econômica nacional27”. Onde “Não só o Estado emergente dessa ‘reforma’, como também o novo mercado, têm de colocar-se, por direta coerência lógica, sob a égide do ‘direito global. 28’” Em consequências práticas, com a implementação da reforma do Estado nascem as Agências Reguladoras independentes, dentre estas se encontram em terras brasileiras, a partir da década de 1990: a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, Agência Nacional de Petróleo – ANP. A chamada Reforma do Estado, implementada no Brasil a partir de meados da última década do século passado, deixou como legado institucional para o país uma miríade de novas autoridades administrativas dotadas de elevado grau de autonomia em relação ao Poder Executivo, denominadas, à moda anglo-saxônica, agências reguladoras independentes. Tais estruturas, assumindo embora a roupagem autárquica, foram erigidas sobre um conjunto de mecanismos institucionais de garantia que lhes confere papel e posição inéditos na história da Administração Pública brasileira29. Encarregadas de disciplinar setores econômicos por inteiro, as Agências Reguladoras possuem características próprias, as quais serão elencadas no segundo capítulo do presente trabalho. A grande proposta, contudo, é gerar a discussão acerca das esferas pública e privada com a implementação dos paradigmas da reforma do Estado. Neste sentido, Gustavo Binenbojm: Assiste-se, assim, à emergência de filhotes híbridos da vetusta dicotomia entre gestão pública e privada: atividade de gestão pública privatizada (regime administrativo flexibilizado) e atividade de gestão privada publicizada ou administrativizada (regime privado altamente regulado). Essa hibridez de regimes jurídicos, caracterizada pela 26

Com todas as ressalvas que uma importação pode ter, Gustavo Binenbojm (2006, p.269) alerta para o fato de que “[...] enquanto nos Estados Unidos as agências foram concebidas para propulsionar a mudança, aqui foram concebidas para garantir a preservação do status quo; enquanto lá elas buscavam a relativização das liberdades econômicas básicas, como o direito de propriedade e a autonomia da vontade, aqui sua missão era a de assegurálas em sua plenitude contra eventuais tentativas de mitigação por governos futuros.” 27 Carlos Ari Sundfeld faz uma necessária distinção entre a reforma do Estado e o processo de criação das autarquias de regulação econômica corporativa como o Instituto Brasileiro do Café e o Instituto do Açucar e do Álcool, depois o que o autor chama de “[...] vulgarização das empresas estatais, muitas das quais prestando serviço de titularidade do Estado” SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. (coordenadores). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999., p.162), das quais cita como exemplos as empresas ferroviárias, de telecomunicação e de energia elétrica, “[...] muitas outras assumindo atividade ‘privada’, como a extração mineral (a Companhia Vale do Rio Doce, p.ex.), a produção industrial (as siderúrgicas reunidas na Siderbrás), a atividade financeira (os bancos estaduais), etc.”. Segue o autor para fazer se distinção, segundo o mesmo, “Nenhuma dessas mudanças, por significativas que fossem para o direito administrativo da época e por conectadas que estivessem com as modas internacionais, podiam ser associadas à emergência de um ‘direito global’”. Segundo Carlos Ari Sundfeld: “Não é difícil perceber as diferenças. Basta não confundir a ‘Reforma do Estado’ feita sob pressão de modelos ou de interesses estrangeiros, mas baseada na construção ou manutenção de uma ordem econômica nacional, com aquela promovida, sempre por influência externa, para justamente eliminar as diferenças específicas do mercado nacional, integrando-o sem mais em uma ordem econômica mundializada.” SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. (coordenadores). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999. , p.162-3) 28 SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. (coordenadores). Direito global, 1999, p.161-2. 29

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006, p.42.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 interpenetração entre as esferas pública e privada, representa um dos elementos da crise de identidade do direito administrativo30. Trata-se de novo paradigma estatal adotado, calcado nos moldes do fenômeno conhecido por globalização. Esta postura adotada por alguns países latino-americanos, a exemplo do que fora implantado no direito administrativo estadunidense na década de 1930, gera uma série de mudanças, tanto nos princípios e paradigmas regentes da administração pública, quanto no próprio conceito do ramo administrativista do direito. Quanto aos paradigmas, Diogo Figueiredo Moreira Neto elenca o princípio da eficiência como foco central da administração pública, como ele próprio denomina, pós-moderna: Essa eficiência, exigida das organizações dotadas de poder – políticas, econômicas ou sociais – passou a ser vital no processo de globalização, alçada a imperativo não só de desenvolvimento como da própria sobrevivência desses entes, inclusive dos próprios Estados, em um mundo em que as demandas não podem deixar de ser atendidas a contento: sejam pelas instituições públicas, sejam pelas instituições privadas 31. Através desta definição, interessante faz-se observar a preocupação direta com a eficiência da prestação, independentemente, como referido no último trecho, se por instituições públicas ou privadas. Através desta linha tênue, o próprio autor traz um conceito pós-moderno de direito administrativo, observando o efeito do fenômeno denominado globalização sobre o ramo administrativista, neste sentido: “[...] o direito administrativo não é, em nenhum país, parte do Direito Público, consistindo, ao contrário, em uma combinação das normas e princípios publicistas e das normas e princípios privatísticos, sem uma (unitária) hierarquia entre as duas.32” A partir deste conceito pós-moderno de administração pública, atenta-se para a reconsideração, calcada nos moldes da globalização, do próprio conceito de público. A era da globalização, considerada nesta quadra da história como era da informação gera efeitos imediatos no caráter de exigências do cidadão 33 frente ao Estado, no sentido de, reivindicando uma democracia material, “[...] as pessoas de todas as latitudes querem seus interesses satisfeitos, pouco importando quem o faça ou deles se ocupe: se uma entidade privada ou governamental e será uma entidade nacional, multinacional ou estrangeira. 34” Como resposta a ditas exigências imediatas do cidadão frente ao Estado, indo de encontro ao que Bauman35 descreveu como modernidade líquida, onde “O ‘curto prazo’ substituiu o ‘longo prazo’ e fez da instantaneidade seu ideal último.” é que a própria estrutura estatal busca adaptar-se às novas reivindicações. Neste contexto, uma nova consideração do que seja público surge na compreensão do direito administrativo: [...] cada vez menos como algo inerente e próprio, quando não exclusivo do Estado – que se havia erigido como o mito dominante do século XX, e disso nos dá conta Ernest 30

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006, p.20. 31 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados., 2008, p.61. 32 CASSESE, 2000, p.120 apud MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados., 2008, p.102.. 33 Faz-se interessante uma revisão conceitual sobre a própria característica do cidadão em uma modernidade líquida, como descrita por Zygmund Bauman. Segundo o autor, a transição de uma idéia de cidadão para a noção de indivíduo “[...] parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania.” a diferença faz-se em que O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar o próprio bem-estar através do bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, ao “bem comum”, à “boa sociedade” ou à “sociedade justa”. (BAUMAN, 2001, p.45-6) Neste sentido, atenta-se para a dificuldade de crença em um bem comum, na manutenção de um interesse público, em uma era onde os interesses individuais prevalecem. 34 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados., 2008, p.104. 35 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. P.145

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Cassier – mas como um espaço decisório de um conjunto de interesses metaindividuais da sociedade compartilhado com o Estado, o que rompe um presumido monopólio estatal sobre inúmeras funções de interesse transindividual, historicamente por ela absorvidos36. 2. Agências Reguladoras: Caracterização no âmbito da Reforma do Estado Em uma perspectiva dogmática, as agências reguladoras 37 são criadas por lei, com a roupagem de autarquias especiais, “Cuja principal característica é sua autonomia reforçada em relação aos poderes constituídos, especialmente face ao Poder Executivo38” possuem, dentre outras prerrogativas: autonomia administrativa e financeira, poder de regulamentação e estabilidade de seus dirigentes. Quanto à roupagem de autarquias especiais, afirma Gustavo Binenbojm39 que: “O regime diferenciado das agências reguladoras brasileiras, apresentado didaticamente, consiste no amálgama entre autonomia reforçada40 e concentração de funções públicas, normalmente distribuídas entre os poderes do Estado”. No tocante à autonomia administrativa, Diógenes Gasparini41 ressalta o fato de que as decisões das agências reguladoras, em tudo que diga com seus objetivos e finalidades, são definitivas; de modo que não caiba recurso para a sua criadora, a administração pública. Nesta senda, segue-se à autonomia financeira destas autarquias de regimes especiais frente a seus próprios recursos, assim como os advindos de outras fontes e, por fim, poder de regulamentação e estabilidade de seus dirigentes são algumas das características das agências reguladoras. Carlos Ari Sundfeld elenca algumas características que demonstram o caráter inovador das agências reguladoras, segundo o autor: “De uma parte, o exercício de um largo poder normativo,cumulado com o fiscalizatório, o sancionatório, o de solução de conflitos, etc.; de outra, o fato de desenvolverem uma 36

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno: legitimidade: finalidade: eficiência: resultados., 2008, p.113. 37 “A fonte constitucional de ditas agências com poder ‘regulador’ somente poderá ser estribada na Constituição, no art.21, inciso XI, e, também, no art. 177 §2º, inciso III, a tão decantada ‘flexibilização’ do monopólio do petróleo, do gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, o transporte marítimo do petróleo bruto ou de derivados básicos do petróleo.” (FIGUEIREDO, 2006, p.153-4) Diogenes Gasparini elenca algumas das agências reguladoras criadas, dentre elas: “Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, pela Lei federal n. 9.427/96, a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, pela Lei federal n. 9.472/96, a Agência Nacional de Petróleo – ANP, pela Lei federal n. 9.472/97, A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, pela Lei federal n. 9.782/99, que, antes da MP n. 2.190-34/2001, era denominada ANVS, a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANT e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTQ, criadas pela Lei deferal n. 10.233/2001, a Agência Nacional de Sáude Complementar – ANS, pela Lei federal n. 9.961/2000, e a Agência Nacional de Águas – ANA, pela Lei federal n. 9.984/2000.” (GASPARINI, 2010, p.397) 38 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.269. 39 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: Direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, 2006, p.250. 40 O autor segue explicando expondo quatro aspectos que caracterizam a autonomia reforçada das agências reguladoras. Segundo Gustavo Binenbojm (2006, p.250-1) são elas: “1º) independência política dos dirigentes, nomeados por indicação do Chefe do Poder Executivo após aprovação do Poder Legislativo, investidos em seus cargos a termo fixo, com estabilidade durante o mandato. Isto acarreta a impossibilidade de sua exoneração ad nutum pelo presidente. 2º) independência técnica decisional, predominando as motivações técnicas para seus atos, que não se sujeitam a recurso hierárquico impróprio. Isto gera como consequência a impossibilidade de revisão das decisões das agências pelos Ministérios e mesmo pelo Presidente; 3º) independência normativa, necessária à disciplina dos serviços públicos e atividades econômicas submetidos ao seu controle, e caracterizada, segundo parte da doutrina, pelo fenômeno da deslegalização. Para parte da doutrina brasileira (com a qual não se está de acordo), por meio da deslegalização as agências passam a gozar de amplo poder normativo, apto, inclusive, a revogar leis anteriores; 4º) independência gerencial, orçamentária e financeira ampliada, por força de rubricas orçamentárias próprias e de receitas atribuídas pela lei às agências.” 41 GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.396.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 tripla regulação: a ‘regulação dos monopólios’, a ‘regulação para a competição’ e a ‘regulação social’, esta última visando à universalização dos serviços; por fim, a circunstância de agirem sem subordinação ao Executivo (daí a ‘independência”) 42. Em relação aos servidores das agências reguladoras, estes são regidos pelo regime estatutário, ou seja, pelas normas impostas na Lei n. 8.112/90. Embora haja tentativas de regimento pela Consolidação das Leis do Trabalho neste liame de natureza institucional 43, Diógenes Gasparini afirma que “Quando muito se aceita um regime misto, onde as atividades mais simples, de natureza braçal, são desempenhadas por servidores sob o regime de empregos, por conseguinte, celetistas, enquanto as demais estarão sob a cura de servidores sob o regime de cargo, portanto estatutários 44.” Independente do regime pessoal, a admissão dos servidores faz-se mediante concurso público. Quanto à última característica supracitada no primeiro parágrafo, a questão da estabilidade45 de seus dirigentes, muito se discute na doutrina pátria, mormente a limitação imposta pelos princípios norteadores da administração pública, a exemplo dos enumerados no art. 37, caput da Constituição Federal. O ordenamento jurídico dispõe que os dirigentes das agências reguladoras serão escolhidos pelo presidente da república, após prévia aprovação pelo senado federal, conforme disposto no artigo 52, III, Constituição Federal, sendo apenas passíveis de perda do mandato apenas em casos de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar, como disposto no art. 9 da lei 9.986/2000. Neste liame, compreende-se, como afirma Lúcia Valle Figueiredo, que: “A Lei 9.986/2000 qualificou os cargos de diretoria das agências reguladoras como cargos comissionados de direção, porém com a característica de poderem ser providos por prazo determinado e a demissão subordina-se a motivação procedimental formal.46” Visto que se trata de cargos de livre nomeação e exoneração pelo presidente da república47, esta última, contudo, limitada por processo administrativo disciplinar, discute-se a questão da extensão dos mandatos, mormente aos casos em que referidos contratos venham a estender-se para além do período governamental do chefe do poder executivo que efetuou a nomeação. Quanto a esta discussão, seguem duas correntes: uma calcada nos dizeres do administrativista Celso Antônio Bandeira de Melo, que firma posicionamento no sentido de não admitir a extensão destes mandatos para além do período governamental. Neste sentido, aproveitando o gancho em que o referido jurista diferencia as 42

SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. (coordenadores). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999, p.162. 43 A tentativa veio com o advento da Lei federal n. 9.986, de julho de 2000. O artigo 1º dispunha que “As Agências Reguladoras terão suas relações de trabalho regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho, aprovadas pelo Decreto-Lei n.5.451, de 1.º de maio de 1943, e legislação trabalhista correlata em regime de emprego público”. Contudo, tal tentativa foi frustrada pelo Supremo Tribunal Federal que, em sede liminar, suspendeu a eficácia, dentre outros, de tal dispositivo, o art.1.º da referida lei, até o julgamento da ADIn 2.310-1/DF. 44 GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.396. 45

A título de curiosidade, nas agências norte-americanas, modelo das agências que foram instaladas no Brasil, há a distinção entre “[...] agências executivas (executive agencies), nas quais o Presidente pode destituir livremente seu pessoal, como, também, há as independent regulatory agency or comissions, nas quais o Presidente não tem poder de destituir seu pessoal, porque somente o Congresso tem tal possibilidade. A justificativa para a proibição é que a cessão, a uma agência, de poderes quase-legislativos e quase-judiciais necessita da permanência de seus membros, que não poderiam ficar na dependência presidencial.” FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.152. 46 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.156. 47 Quanto às restrições ao poder de livre nomeação e exoneração pelo presidente da república, estas foram consideradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal em face do julgamento de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. “A primeira em virtude de o art. 52, inciso III, “f”, da Constituição Federal admitir a prévia aprovação do Senado Federal da escolha de “titulares de outros cargos que a lei determinar”. Quanto à constitucionalidade da exoneração ad nutum dos dirigentes das agências reguladoras, o Supremo entendeu que não viola as competências do Chefe do Poder Executivo, admitindo a exoneração apenas por justo motivo ou se ocorrer mudança na lei criadora da agência.” FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.157.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 autarquias comuns das consideradas de regime especial, atenta-se para a referida opinião do mesmo frente à questão ora suscitada: [...] a única particularidade marcante do tal regime especial é a nomeação pelo Presidente da República, sob aprovação do Senado, dos dirigentes da autarquia, com garantia, em prol destes, de mandato a prazo certo. Cabe, entretanto, anotar desde já que tal garantia não pode ser entendida como capaz de ultrapassar o período de governo da autoridade que procedeu às nomeações, pois isto violaria prerrogativas constitucionais de seu sucessor. Os demais traços que são apontados nas leis disciplinadoras de algumas das agências reguladoras para caracterizar o regime especial nada lhes agregam de peculiar em relação a quaisquer outras autarquias. (MELO, 2008, p.169) Nesta mesma linha segue Leila Cuéllar, concluindo pela inconstitucionalidade de tal situação. Segundo a autora: “[...] afronta o princípio democrático ao possibilitar, em algumas das principais atividades público-privadas, a extensão do governo no tempo.48” Em outra perspectiva, Lúcia Valle de Figueiredo vem a afirmar: Acreditamos que, se não houver empeço constitucional, tal seja, a atribuição à agência de competências que não lhe possam ser outorgadas, não parece que seja atentatório à independência dos poderes limitar a atuação do Chefe do Executivo, obstando-lhe a possibilidade de fazer e desfazer a seu talante. Até seria muito salutar para que não houvesse troca de favores, mas, sim, total independência 49. Dentre as características elencadas no âmbito das agências reguladoras, outra questão que suscita controvérsias no ramo administrativista é a discussão em torno do poder regulamentas de ditas agências. Visto que no direito brasileiro, obrigações, proibições, constrangimentos aos administrados devem ser feitos mediante lei (art. 5.º, II, Constituição Federal), o “Presidente da República limita-se a fixar os parâmetros e os standards para a execução da lei, atribuição específica do Executivo. 50”. Contudo, há a possibilidade de delegação legislativa, do poder legislativo ao executivo, expresso no art.68 da Constituição Federal. No entanto, nos dizeres de Lúcia Valle Figueiredo, neste caso: “[...] há todo um regime jurídico a ser observado, que, certamente, não é a hipótese das agências reguladoras. A grande problemática gira em torno de uma possível invasão das competências do poder legislativo pelo poder regulador das agências. Esta questão foi suscitada do direito norte-americano, onde se permite que as agências poderes ‘quase-legislativos51’”. Tais discussões geraram nas últimas décadas, considerável aumento de interferência presidencial sobre as agências. Parte da doutrina brasileira defende a distinção entre poder normativo e poder normativo em sentido estrito52, este último acarretaria em invasão da esfera legislativa, a exemplo do ocorrido no direito norte-americano. Nesta senda, a autora Lúcia Valle de Figueiredo propõe uma distinção entre poderes de regulação e regulamentação, quanto a este última: “[...] somente os Chefes do Executivo poderiam regulamentar a lei nos mesmos termos em que o Presidente da República, em sintonia com o paralelismo das formas. 53”. A distinção: 48

Apud FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.158. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, 2006, p.158. 50 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.154. 51 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.154. 52 Neste sentido, distingue Lúcia Valle de Figueiredo “Entendemos que se deverá dar justo entendimento a ‘poder normativo’. Pensando-se em atividade subconstitucional e sub legem, poderão as agências, dentro das estritas balizas legais e constitucionais, estabelecer os parâmetros técnicos. Imagine-se, por exemplo, questões de saúde pública e a grande mutabilidade necessária de parâmetros técnicos:não nos parece, pois, haver proibição de que as agências editem normas administrativistas modificando, em face do interesse público, alguns standards técnicos, passíveis de grande mutabilidade.” FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.155. 53 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.156. 49

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Se regulação for diferente de regulamentação, não haveria qualquer impedimento constitucional, porque às agências reguladoras estaria reservada, dentro daquela margem de liberdade técnica da interpretação, a fixação das condições de atuação dos setores por ela fiscalizados. [...] Exemplo prático pode vir a clarear. À Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, mesmo sem poder de inovar primariamente na ordem jurídica, cabe, entretanto, papel significativo, uma vez que lhe compete, sem dúvida, atenta a importantes modificações do espectro de telefonia, fixar os pontos em que se hão de desenvolver as atividades concessionárias 54. Pegou-se o exemplo da Agência Nacional de Telecomunicações, para discutir acerca do poder regulador das agências. A ANATEL foi criada pela Lei 9.472/1997 (Lei Geral das Telecomunicações), vinculada ao Ministério sãs Comunicações, sob a roupagem de autarquia especial, com função de órgão regulador. Lúcia Valle de Figueiredo afirma que o regime especial que lhe foi conferido teve o intento de desfazer os laços com a administração pública. No entanto, como destaca a mesma autora, uma vez tratando-se a autarquia como pessoas de direito público com capacidade administrativa, “pouco vai importar que sejam batizadas de agências. 55” A autora justifica a exposição indo de encontro à lei que criou a Agência Nacional de Telecomunicações (Lei Nº 9.472, de 16 de Julho DE 1997) e apontando uma série de inconstitucionalidades, algumas, inclusive, afastando-a dos quadros de uma autarquia, como consoante expresso do artigo 59 56 da referida lei, a possibilidade de utilização, mediante contrato, de técnicos ou empresas especializadas, inclusive consultores independentes e auditores externos, para executar atividades de sua competência. Anteriormente, no artigo 1857, atribui-se ao poder executivo, “[...] por meio de decreto (portanto, por ato administrativo vai-se inovar no mundo jurídico), instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com o regime privado.58” a competência dada ao conselho diretor para aprovar normas próprias de licitação e contratação (competência não expressa no texto constitucional), disposta no artigo 2259 da referida lei. Seguindo a análise feita por Lúcia Valle Figueiredo60, no Título II, Capítulo I, onde se cuida dos “Serviços Prestados em Regime Público”, aos quais será atribuído regime de direito público para tal serviço. “Todavia, no tocante às tarifas, transcorridos três anos de celebração do contrato, a Agência poderá atribuir ao concessionário o regime de liberdade tarifária61” na sequência, alude-se para a possibilidade constante no (art.118 62) de permissão de 54

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FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.154.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.160. “Art. 59. A Agência poderá utilizar, mediante contrato, técnicos ou empresas especializadas, inclusive consultores independentes e auditores externos, para executar atividades de sua competência, vedada a contratação para as atividades de fiscalização, salvo para as correspondentes atividades de apoio.” (BRASIL, 1997) 57 “Art. 18. Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto: I - instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado; II - aprovar o plano geral de outorgas de serviço prestado no regime público; III - aprovar o plano geral de metas para a progressiva universalização de serviço prestado no regime público; IV - autorizar a participação de empresa brasileira em organizações ou consórcios intergovernamentais destinados ao provimento de meios ou à prestação de serviços de telecomunicações.Parágrafo único. O Poder Executivo, levando em conta os interesses do País no contexto de suas relações com os demais países, poderá estabelecer limites à participação estrangeira no capital de prestadora de serviços de telecomunicações.” BRASIL. Lei Nº 9.472, de 16 de Julho DE 1997. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao. Acesso em novembro de 2013. 58 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.160. 59 “Art. 22. Compete ao Conselho Diretor: I - submeter ao Presidente da República, por intermédio do Ministro de Estado das Comunicações, as modificações do regulamento da Agência; II - aprovar normas próprias de licitação e contratação [...]”BRASIL. Lei Nº 9.472, de 16 de Julho DE 1997. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao. Acesso em novembro de 2013. 60 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.161. 61 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.161. 56

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 serviço de telecomunicações em regime público, no entanto em caráter transitório, até que seja normalizada a situação excepcional, através do procedimento licitatório simplificado, regra do (art. 119)63. O Título III baseia-se nos princípios constitucionais da atividade econômica referindo-se aos serviços prestados em regime privado. Nestas hipóteses, trata-se de atividades que seriam livres ao exercício do particular, contudo, devido a sua importância, são fiscalizadas pelo ente público, neste caso específico, as agências: “E, nessas hipóteses, nenhuma autorização será negada, salvo por motivo relevante (portanto, teríamos, em tese, nova figura administrativa, autorização vinculada). Deve haver liberdade mais ampla possível a esses autorizados, exceto pelo art.135 (relevantes razões de caráter coletivo). 64” por fim, O Capítulo II, artigos 134 e 135 trazem a classificação de serviços de interesse coletivo e de interesse restrito, onde tais deverão ser prestados I-exclusivamente no regime público; II- exclusivamente no regime privado; ou III concomitantemente nos regimes público e privado. Neste ponto específico, observa-se a inclusão dos serviços de telefonia fixa dentre os serviços re regime público, portanto, havendo necessidade de continuidade a universalização. A partir deste fato é que se observa, desde a privatização, “[...] enorme alargamento da telefonia celular, quando os telefones celulares são oferecidos com toda sorte de vantagens, e, após todo esse tempo, a telefonia fixa, dever do Estado, também privatizada, teve apenas alguma melhora 65.”

Considerações finais Ao longo do histórico administrativo brasileiro, observou-se a dificuldade entre distinguir as esferas pública e privada, sobretudo no modelo patrimonialista de administração pública, herdeiro do período colonial e aprofundado na República Velha. A partir do Estado novo, o modelo burocrático, impondo os ideais de impessoalidade e racionalismo à gestão pública, tentou superar o nepotismo, a corrupção e o clientelismo do período anterior, contudo, caracterizou-se por uma gestão lenta e ineficiente do Estado. Em busca de eficiência e melhor organização, operou-se, a partir de 1995, um fenômeno que ficou conhecido como reforma do Estado. Importação do modelo estadunidense, implementado ainda sobre os paradigmas do new deal, a reforma do Estado fundamentou-se no Estado brasileiro, indo de encontro ao processo de globalização econômica, onde “[...] as demandas não podem deixar de ser atendidas a contento: sejam pelas instituições públicas, sejam pelas instituições privadas.” “[...] pouco importando quem

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“Art. 118. Será outorgada permissão, pela Agência, para prestação de serviço de telecomunicações em face de situação excepcional comprometedora do funcionamento do serviço que, em virtude de suas peculiaridades, não possa ser atendida, de forma conveniente ou em prazo adequado, mediante intervenção na empresa concessionária ou mediante outorga de nova concessão. Parágrafo único. Permissão de serviço de telecomunicações é o ato administrativo pelo qual se atribui a alguém o dever de prestar serviço de telecomunicações no regime público e em caráter transitório, até que seja normalizada a situação excepcional que a tenha ensejado. Art. 119. A permissão será precedida de procedimento licitatório simplificado, instaurado pela Agência, nos termos por ela regulados, ressalvados os casos de inexigibilidade previstos no art. 91, observado o disposto no art. 92, desta Lei.” (BRASIL, 1997) 63 Esta situação chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF, Pleno, ADIn/ Medida Liminar 1.668, rel. Min. Marco Aurélio, j. 20.9.1998, m.v., DJU 31.8.1998), o qual considerou, em liminar concedida em sede se ação direta de constitucionalidade: “[...] que a permissão para a prestação de serviço de telecomunicação deveria seguir a Lei 8.666/1993, suspendendo a eficácia da expressão ‘procedimento licitatório simplificado’” FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.61. 64 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.161. 65 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo, p.61.Quanto à previsão legislativa, Jacintho Arruda Câmara (1999, p. 183) dispõe que “Outro marco regulatório importante neste processo de abertura do setor de telecomunicações no Brasil foi e edição da chamada ‘Lei Mínima’ (Lei n.9.295, de 19/7/1996), já após a Emenda, que permitiu a outorga de concessão a particulares do direito de explorar o Serviço Móvel Celular, além de definir outras modalidades de serviços de telecomunicações, tais como o Serviço de Transporte de Sinais de Telecomunicações por Satélite.” CÂMARA, Jacintho de Arruda Câmara. Telecomunicações e globalização. In. SUNDFELD, Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. (coordenadores). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 1999. p.183.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 o faça ou deles se ocupe: se uma entidade privada ou governamental e será uma entidade nacional, multinacional ou estrangeira66”. O que deve ser observado a partir da adoção destes paradigmas é a mutação ocorrida, sobretudo na caracterização do que seja o público. Como bem observa Gustavo Binenbojm há a ocorrência de uma crise de identidade do direito administrativo, caracterizada pela “[...] interpenetração entre as esferas pública e privada”, onde “Assiste-se, assim, à emergência de filhotes híbridos da vetusta dicotomia entre gestão pública e privada: atividade de gestão pública privatizada (regime administrativo flexibilizado) e atividade de gestão privada publicizada ou administrativizada (regime privado altamente regulado). 67” Isto vai de encontro à afirmação de Moreira Neto, quando diz que “[...] o direito administrativo não é, em nenhum país, parte do Direito Público, consistindo, ao contrário, em uma combinação das normas e princípios publicistas e das normas e princípios privatísticos, sem uma (unitária) hierarquia entre as duas.68” No mesmo sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa a caracterização do público: [...] cada vez menos como algo inerente e próprio, quando não exclusivo do Estado – que se havia erigido como o mito dominante do século XX, e disso nos dá conta Ernest Cassier – mas como um espaço decisório de um conjunto de interesses metaindividuais da sociedade compartilhado com o Estado, o que rompe um presumido monopólio estatal sobre inúmeras funções de interesse transindividual, historicamente por ela absorvidos.69 A crise de identidade do direito administrativo, como bem observado por Gustavo Binenbojm70, fundamenta-se em uma nova idéia de legitimidade, abandonando as premissas da legitimidade formal e apostando em uma legitimidade formal e material da tomada de decisões, tudo com vistas ao paradigma da eficiência. Este problema avança com a configuração de um “público não-estatal”: O público não-estatal. Quanto ao fundamento político, com a recuperação de espaços privados para as decisões da sociedade, indevidamente absorvidos nos dois antigos modelos hegemônicos, criou-se, simultaneamente, um espaço compartilhado, do público não-estatal, de modo que nele, conforme o caso, as decisões ora caberiam prioritariamente à sociedade ora ao Estado, abrindo-se, ainda, e este é o dado mais importante, extensas áreas de coordenação da atuação conjunta de ambas as esferas, nelas se desenvolvendo várias modalidades contemporâneas de colaboração e parcerias.71 Na construção de uma teoria geral da política, Norberto Bobbio elucida a dicotomia público/privado em sua obra Estado, governo e sociedade. Para o autor, estes termos utilizados como antíteses, geralmente são dotados de um termo forte, o primeiro e um termo fraco, caracterizado por exclusão, o segundo. Na tradicional dicotomia público/privado, tudo o que não for público, é o não-público, ou seja, é privado. Bobbio elucida exemplos ao decorrer do histórico 66

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, 2008, p.104. 67 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: constitucionalização, 2006, p.20. 68 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, 2008, p.104. 69 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, p.113. 70 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: constitucionalização, 2006. 71 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, p.78.

direito administrativo pós-moderno: Direitos fundamentais, democracia e direito administrativo pós-moderno: direito administrativo pós-moderno: Direitos fundamentais, democracia e direito administrativo pós-moderno:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 estatal para demonstrar, ora a primazia do privado, ora a primazia do público ao longo da história. O primeiro é representado pelo direito de propriedade que “[...] opõe à ingerência do poder soberano, e, portanto, ao direito por parte do soberano de expropriar (por motivos de utilidade pública) os bens do súdito.72” Quanto à primazia do público sobre o privado, uma maior “[...] intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infraestatais, ou seja, o caminho inverso da emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, [...]73” elucida a primazia do público sobre o privado. O autor segue na mesma linha, apresentando em uma perspectiva da filosofia da história hegeliana, épocas de decadência em que há uma supremacia do direito privado “[...] tais como a idade imperial romana que se move entre dois pólos do despotismo público e da liberdade da propriedade privada, e a idade feudal na qual as relações políticas são relações de tipo contratual e não existe de fato um Estado.74”, bem como épocas de progresso, segundo as quais há uma revanche sobre o direito privado, bem caracterizadas pela idade moderna, com o surgimento do grande Estado territorial e burocrático. Interessante faz-se observar, ainda nos escritos bobbianos, as clássicas acepções acerca de democracia formal e democracia substancial. Segundo Bobbio, há uma distinção entre democracia formal, condizente com a forma de governo, e democracia substancial, que diz respeito ao conteúdo desta forma. A intenção destas observações teórico–políticas é observar o fenômeno presente na atual quadra do direito administrativo, tanto na revisão de seu conceito, “[...] consistindo, [...] em uma combinação das normas e princípios publicistas e das normas e princípios privatísticos, sem uma (unitária) hierarquia entre as duas.75” como exposto acima na concepção de Moreira Neto, bem como em uma mutação na noção do que seja o público, ainda pelo mesmo autor, indo de encontro, finalmente, à caracterização de um “público não-estatal”. No mais, a aposta em uma legitimidade finalista, “[...] não apenas como o mero resultado formal da observância de processos de tomada de decisão, mas, sobretudo, como uma expressão democrática, ou seja, formal e material76” parece querer sobrepor-se às perguntas fundamentais de um regime democrático: “Quem governa?” E “Como governa?” dando ênfase apenas à segunda. Afinal, a questão da legitimidade finalista, abandonando as premissas da clássica legitimidade parlamentar, ainda que aparentemente eficiente, pode cair em notáveis armadilhas. Basta lembrar, como destacado na introdução deste artigo, na perspectiva de Danilo Zolo, que o Estado democrático de direito é sustentado por dois pilares: a legalidade e a legitimidade. Vale observar os escritos de Norberto Bobbio quando afirmou que: “[...] pode ocorrer historicamente uma democracia formal que não consiga manter as principais promessas contidas num programa de democracia “substancial e, vice-versa, uma democracia substancial que se sustente e se desenvolva através do exercício não democrático do poder. 77” Por fim, observa-se que o ramo administrativista do direito vem apostando no princípio da eficiência “[...] em um mundo em que as demandas não podem deixar de ser atendidas a contento: sejam pelas instituições públicas, sejam pelas instituições privadas.78” (MOREIRA 72

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: Nogueira, 1987, p.23. 73 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: Nogueira, 1987, p.25. 74 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: Nogueira, 1987, p.25. 75 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, p.102. 76 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, p.62. 77 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: Nogueira, 1987, p.157-8. 78 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro legitimidade: finalidade: eficiência: resultados, p.61.

por uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio por uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio por uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio paradigmas do direito administrativo pós-moderno: paradigmas do direito administrativo pós-moderno: por uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio paradigmas do direito administrativo pós-moderno:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 NETO, 2008, p.61) a aposta na eficiência do direito administrativo é levada a cabo pelo processo conhecido como globalização econômica: “Essa eficiência, exigida das organizações dotadas de poder – políticas, econômicas ou sociais – passou a ser vital no processo de globalização, [...]” quando a este ponto, faz-se válida a observação de Bobbio quando diz que: “[...] a distinção público/privado se duplica na distinção política/economia, com a consequência de que o primado da política sobre a economia, ou seja, da ordem dirigida do alto sobre a ordem espontânea, da organização vertical da sociedade sobre a organização horizontal 79”. À guisa de conclusão e considerações finais, o presente artigo visou uma apresentação histórica da forma administrativa do Estado brasileiro, traçando um paralelo com as doutrinas adotadas ao longo do desenvolvimento estatal. A partir desta temática, deu-se ênfase ao fenômeno caracterizado como Reforma do Estado, realizado na máquina estatal brasileira a partir de 1995. A partir deste fenômeno, buscou-se uma análise da doutrina que a fundamenta, bem como a apresentação instituições características deste período, as agências reguladoras. A partir destes aportes doutrinários, deu-se ênfase à apresentação de novas perspectivas do direito administrativo como os quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno e a configuração de uma administração policêntrica, bem como alertou-se para possíveis armadilhas de algumas teorias que modificam o próprio conceito de direito administrativo, a noção do que seja o público, e até mesmo a configuração de um público não – estatal, além de apostar em uma legitimidade finalista e em uma democracia material, para além do formalismo. Por fim, o presente artigo teve como escopo, observar a dificuldade atual e, ainda, cada vez mais acentuada, em distinguir a clássica dicotomia público/privado.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A JURISDIÇÃO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Fabrício Fracaroli Pereira1

RESUMO – O presente artigo tem por finalidade analisar o papel da atividade jurisdicional na efetivação dos direitos fundamentais. Para tanto, em um primeiro momento, expõe, ainda que brevemente, algumas considerações a respeito de tais direitos, mediante a explanação de suas características. Na sequência, avalia a atuação do Estado como responsável pela sua proteção e promoção. A complementação de tal análise vem em destaque, ao final, quando do estudo do Poder Judiciário, órgão responsável pelo exercício da atividade jurisdicional. É nesse ponto que se concentram as razões que permitem afirmar a possibilidade de efetivação dos direitos fundamentais por meio da jurisdição.

RESÚMEN - Este artículo tiene como objetivo analizar el papel de la actividad judicial en la observancia de los derechos fundamentales. Por lo tanto, en un primer momento, expone, aunque sea brevemente, algunas consideraciones sobre tales derechos, sobre la explicación de sus características. Como resultado de ello, evalúa el desempeño del Estado como responsable de su protección y promoción. La conclusión de este análisis se pone de relieve al final, cuando el estudio de la Magistratura, el órgano responsable del ejercicio de la actividad judicial. Es aquí donde se centran las razones que nos permiten afirmar la posibilidad de aplicación de los derechos fundamentales por parte de la jurisdicción.

Palavras-chave: Jurisdição, direitos fundamentais, efetividade.

Palabras clave: Jurisdicción, los derechos fundamentales, la efectividad.

INTRODUÇÃO O presente trabalho teve por objetivo analisar a relação existente entre a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado, por intermédio do Poder Judiciário, e a efetivação dos direitos fundamentais. Para tanto, num primeiro momento, buscou-se explicitar, ainda que de maneira sucinta, algumas considerações acerca dos direitos fundamentais. Importa ressaltar que o trabalho intencionou abordar aludida temática com foco na realidade brasileira. Assim, sua análise procurou estabelecer uma constante relação com os direitos previstos na Constituição da República, de 05 de outubro de 1988, bem como os decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil, consoante prevê seu artigo 5º, §2º.

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Foi adotado o posicionamento de que os direitos fundamentais representam valores historicamente adquiridos mediante lutas e revoluções contra as incontáveis violações e desrespeitos ao ser humano pelos detentores do poder. Diante disso, procurou-se, atentado para os conceitos de fundamentalidade formal e material, explanar as perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, no sentido de que, a princípio, eles podem tanto ser considerados como direitos subjetivos individuais, mas também como elementos objetivos fundamentais que se irradiam por todo o ordenamento jurídico. Em seguida, foi discorrido sobre a classificação dos direitos fundamentais em direitos de defesa e direitos a prestações, e suas subdivisões. Num segundo momento, foi discorrido sobre o papel do Estado na proteção e promoção dos direitos fundamentais, no sentido de que deve direcionar seus esforços ao cumprimento dos preceitos constitucionais, pelos órgãos que exercem as funções legislativa, executiva e judiciária. Foi feita uma breve passagem pelas dimensões dos direitos fundamentais e sua relação com a evolução dos modelos de Estado, para então expor a superação do paradigma do direito pautado na sua validade meramente formal para um modelo em que se preza sua efetividade material. Por fim, destacou-se o novo paradigma que se estabeleceu, focado na efetividade material dos direitos fundamentais, para então relacionar a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais pela atuação do Poder Judiciário, por intermédio de sua função típica, a função jurisdicional. 1 Considerações acerca dos direitos fundamentais Ao adentrar na temática dos direitos fundamentais, diversas teorias e posições relativas ao seu conceito podem ser encontradas. Desde concepções jusnaturalistas, que defendem serem os direitos fundamentais valores inerentes ao ser humano ou pertencentes à natureza humana, até juspositivistas, para as quais os direitos fundamentais representam preceitos definidos como tal em um determinado ordenamento jurídico. Não obstante, pode-se afirmar que os direitos fundamentais consistem em valores historicamente adquiridos mediante lutas e revoluções contra o poder absoluto, e que representam o resultado da oposição contra inúmeras violações e desrespeitos ao ser humano, bem como à sua dignidade. A título de esclarecimento, importa mencionar que o presente trabalho tem por objetivo abordar os direitos fundamentais com vistas à realidade brasileira, de modo que, no decorrer do texto, procurar-se-á relacionar a temática estudada com os direitos previstos no corpo da Constituição da República, de 05 de outubro de 1988, bem como os decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais celebrados pela República Federativa do Brasil (art. 5º, §2º). Por se tratarem de valores considerados basilares, ou fundamentais, a um Estado e sua sociedade, os direitos fundamentais foram positivados no corpo constitucional, de modo a receber proteção tanto do legislador ordinário quanto do poder constituinte reformador. Eles compõe, pois, parte do núcleo intangível constitucional, ao qual se atribuiu a denominação de cláusulas pétreas. No Brasil, a Constituição da República prevê, no seu art. 60, §4º, que não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional destinada a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, bem como os direitos e garantias individuais. Ao lado do conceito de direitos fundamentais, importa ressaltar a ideia de fundamentalidade formal e material. Como leciona Sarlet (2001, p. 11), são fundamentais aquelas posições que, [...] do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Logo, pela adoção dessa sistemática, resulta o fato de que, sob o aspecto material, “se a Constituição enumera direitos fundamentais no seu Título II, isso não impede que direitos fundamentais – como o direito ao meio ambiente – não possam estar inseridos em outros dos seus Títulos, ou mesmo fora dela” (MARINONI, 2005, p. 34). Por conseguinte, somente pela análise do conteúdo dos direitos fundamentais é que se torna possível verificar sua fundamentalidade material, ou seja, a “circunstância de conterem, ou não, decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da sociedade, de modo especial, porém, no que diz com a posição nestes ocupada pela pessoa humana” (SARLET, 2012, p.75). Assim, uma definição meramente formal, no sentido de serem fundamentais aqueles direitos constantes do corpo normativo de uma Constituição, mostra-se insuficiente, pois, como já foi ressaltado, existe a possibilidade da presença de direitos fundamentais fora do catálogo constitucional, de modo que se possa identificar, na expressão de Sarlet (2012, p. 78), um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais no direito brasileiro. Além disso, é importante atentar para as denominadas perspectivas objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais, no sentido de que, a princípio, eles podem tanto ser considerados como direitos subjetivos individuais como também elementos objetivos fundamentais do ordenamento jurídico. Nos dizeres de Sarlet (2012, p. 145), Como uma das implicações diretamente associadas à dimensão axiológica da função objetiva dos direitos fundamentais, uma vez que decorrente da ideia de que estes incorporam e expressam determinados valores objetivos fundamentais da comunidade, está a constatação de que os direitos fundamentais (mesmo os clássicos direitos de defesa) devem ter sua eficácia valorada não só sob um ângulo individualista, isto é, com base no ponto de vista da pessoa individual e sua posição perante o Estado, mas também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade na sua totalidade, já que se cuida de valores e fins que esta deve respeitar e concretizar. Portanto, os direitos fundamentais não correspondem apenas a direitos individuais subjetivos, com perfil marcantemente individualista (característica do liberalismo): representam, igualmente, valores objetivos que se disseminam por todo o ordenamento jurídico, orientando sua atuação e permitindo sua compreensão, irradiando-se perante toda a sociedade. É nesse sentido que se torna possível compreender a necessidade da interpretação da legislação pátria, incluindo as demais normas constitucionais, sempre com foco nos direitos fundamentais. A esse respeito, Marinoni (2005, p. 37) nos lembra de que, “quando os direitos fundamentais são tomados como valores incidentes sobre o Poder Público, importa especialmente a atividade de aplicação e interpretação da lei, uma vez que ela não pode ser dissociada de tais direitos”. Desse modo, explanada a definição, embora de forma breve, do que se entende por direitos fundamentais, importa estabelecer critérios ainda mais delimitadores: a noção de direitos fundamentais de defesa e de prestação. Trata-se do que se costuma denominar de multifuncionalidade dos direitos fundamentais (SARLET, 2012, p. 155; MARINONI, 2005, p. 38). De acordo com a classificação proposta por Sarlet (2012, p. 155 e ss.), os direitos fundamentais subdividem-se em direitos de defesa e direitos a prestações. Os direitos a prestação, por sua vez, ramificam-se em direitos a prestações em sentido amplo (os quais se subdividem em direitos à proteção e em direitos à participação na organização e procedimento) e em direitos a prestações em sentido estrito. Os direitos de defesa correspondem aos direitos que os indivíduos possuem contra as ingerências advindas do Estado. Apesar de não corresponderem mais à realidade atual nos moldes de sua origem (eis que possuem matriz liberal-burguesa), ainda são de suma importância, tendo em vista a constante possibilidade de abuso de poder pelo Estado. Representarem a necessidade de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, pelo que são caracterizados em sua essência como direitos negativos e abrangem, além da liberdade e

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 igualdade perante a lei, o direito à vida e o direito de propriedade, notadamente ligados à primeira dimensão dos direitos fundamentais (SARLET, 2001, p.14). Por sua vez, os direitos a prestações presumem o cumprimento, pelo Estado, de obrigações de ordem material e jurídica. Sarlet (2012, p. 184) afirma que, Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não intervenção na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em ultima analise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o individuo, no que concerne à conquista e manutenção da sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. É justamente no tocante aos direitos fundamentais a prestações, cujas raízes se situam na evolução do Estado de Direito liberal-burguês para um estado Social e Democrático de Direito, que o problema quanto à efetividade torna-se mais visível, em especial à parcela da população que possui menores condições financeiras e que deles mais dependem, eis que existem limitações de ordem econômica e jurídica para sua efetivação. A garantia dos direitos a prestações geram dispêndios ao Estado, o que muitas vezes implica na sua retração perante demandas (sejam legislativas, executivas ou mesmo judiciárias) desta natureza e, consequentemente, na falta de efetividade destes direitos. O Estado, quando da implementação de direitos a prestação, depara-se com situações que estão diretamente ligadas a serviços e bens materiais, isto é, providências que possuem uma dimensão econômica. Assim, tendo em vista a frequente limitação dos recursos econômicos, surgem proposições no sentido de condicionar a eficácia dos direitos fundamentais sociais, a exemplo da “teoria da reserva do possível”. Nos próximos tópicos, analisar-se-á o dever do Estado na efetivação dos direitos fundamentais, tanto pelos Poderes Executivo e Legislativo como, também, por intermédio do Poder Judiciário. 2 O papel do Estado na proteção e promoção dos direitos fundamentais Sem o intuito de adentrar na discussão que permeia o conceito de Poder, tema que por si só exigiria extensa dissertação, a título de mera explanação pode-se defini-lo, sucintamente, como uma força capaz de coordenar e decidir, inclusive de forma coercitiva, a realização de determinados fins (SILVA, 2006, p. 107). Assim, o Poder político do Estado soberano destina-se à coordenação e imposição de regras aos cidadãos e ao próprio Estado, objetivando alcançar suas finalidades – no Brasil, expostas no art. 3º, da Constituição da República – com vistas ao bem comum (SILVA, 2006, p. 107). Para exercer aludida tarefa, o Poder político subdivide-se em funções, conforme previsão do art. 2º da Constituição da República, que estabelece como Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A harmonia e independência dos órgãos que exercem as funções legislativa, executiva e judiciária, todavia, é garantida para que possam direcionar seus esforços ao cumprimento dos preceitos constitucionais, dentre os quais, os direitos fundamentais. São todos, portanto, equivalentes e complementares, pois, como lembra CARVALHO FILHO (2006, p. 02): [...] não há exclusividade no exercício das funções pelos Poderes. Há, sim, preponderância. As linhas definidoras das funções exercidas pelos Poderes têm caráter politico e figuram na Constituição. Aliás, é nesse sentido que se já de entender a independência e a harmonia entre eles: se, de um lado, possuem sua própria estrutura, não se subordinando a qualquer outro, devem objetivar, ainda, os fins colimados pela Constituição.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Os direitos fundamentais devem, por isso, ser observados por todos os indivíduos e pelo próprio Estado, quando do exercício do Poder político. Como já mencionado no tópico anterior, os direitos fundamentais consistem em valores historicamente adquiridos mediante lutas e revoluções contra o poder absoluto, as quais exerceram influência e acompanharam a evolução do próprio conceito de Estado. As dimensões de direitos fundamentais bem representam esse desenvolvimento: Os direitos da denominada primeira dimensão, relacionados ao ideal de liberdade (direitos civis e políticos), foram os primeiros a constarem num documento constitucional (BONAVIDES, 2011, p. 563). Estão ligados intimamente ao Estado Liberal de Direito. 2 Já os direitos fundamentais da chamada segunda dimensão foram complementados por conquistas de cunho social e humanista, e estão ligados ao ideal de igualdade (direitos sociais, culturais, econômicos e coletivos). Assim, apresentam vínculo com o Estado Social de Direito. 3 Na sequência, em uma terceira dimensão, cujo valor central é a fraternidade, os direitos fundamentais aproximam-se intensamente do Estado Democrático de Direito, de modo que O Estado Democrático de Direito teria a característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao welfare state neocapitalista – impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. (STRECK; MORAIS, 2001, p. 93) Com a crescente superação do modelo jurídico tradicional, de cunho liberal, desenvolvido a partir das revoluções burguesas do século XVIII, focado na luta contra o absolutismo e pautado na legalidade como solução aos arbítrios do soberano, 4 sobretudo a partir do período que compreende o pós-guerra, em meados do século XX, um novo paradigma se estabeleceu, focado na efetividade material dos direitos fundamentais, com principal fundamento na dignidade da pessoa humana. Não obstante, o positivismo jurídico, doutrina intimamente ligada à concepção liberal do direito, no qual prepondera a forma da lei em detrimento de seu conteúdo,5 e relacionado a um conceito de constitucionalismo também formal, acabou superado pelo pós-positivismo. Desta forma, destaca-se o fenômeno do denominado neoconstitucionalismo, pelo qual “[...] se propõe a superar o paradigma da validade meramente formal do direito, no qual bastava ao Estado cumprir o processo legislativo para que a lei viesse a ser a expressão jurídica” (CAMBI, 2011, p. 37). Diante disso, pode-se afirmar que as normas definidoras de direitos fundamentais – as quais são passiveis de aplicação imediata, consoante previsão do art. 5º, §1º, da Constituição da República – incidem sobre todo o ordenamento jurídico, de modo a orientar as tarefas dos órgãos 2

Segundo Manuel Garcia-Pelayo (apud STRECK; MORAIS, 2001, p. 89), “o Estado Liberal de Direito pode ser definido como sendo “Um estado cuja função principal é estabelecer e manter o Direito cujos limites de ação estão rigorosamente definidos por este, bem entendido que Direito não se identifica com qualquer lei ou conjunto de leis com indiferença sobre seu conteúdo [...]. O estado de direito significa, assim, uma limitação do poder do Estado pelo Direito, porem não a possibilidade de legitimar qualquer critério concedendo-lhe forma de lei [...]” 3 Na definição de Manuel Garcia Pelayo, apresentada por Streck e Morais (2001, p. 92), “o Estado Social de Direito significa um estado sujeito à lei legitimamente estabelecida com respeito ao texto e às práticas constitucionais, indiferentemente de seu caráter formal ou material, abstrato ou concreto, constitutivo ou ativo, à qual, de qualquer maneira, não pode colidir com os preceitos sociais estabelecidos pela Constituição e reconhecidos pela práxis constitucional como normatização de valores por e para os quais se constitui o Estado Social e que, portanto, fundamentam a sua legalidade.” 4 Como lembra Marinoni (2011, p. 27), “O princípio da legalidade, assim, acabou por construir um critério de identificação do direito; o direito estaria apenas na norma jurídica, cuja validade não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa”. 5 “O positivismo jurídico não se preocupava com o conteúdo da norma, uma vez que a validade da lei estava apenas na dependência da observância do procedimento estabelecido para a sua criação” (MARINONI, 2011, p. 32).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Judiciários, Legislativos e Executivos (MARINONI, 2005, p. 37), com a finalidade de conferir efetividade material a esses direitos. Nas palavras de Cambi (2011, p. 33): [...] os direitos fundamentais são “princípios” que produzem efeitos sobre toda a ordem jurídica, sendo dotados de uma eficácia expansiva que inclui todos os âmbitos jurídicos. Podem ser analisados na dimensão vertical (Estado-cidadão), mas também na horizontal (isto é, na esfera jurídica privada, entre pessoas e entidades não estatais, as quais se encontram em posição de igualdade formal), toda vez que houver desequilíbrio de poderes entre os particulares. Neste contexto, os valores e fins do Estado, previstos no documento que o constituiu – a Constituição –, não fica condicionado ao exercício apenas das funções executiva e legislativa. Mais do que nunca, a jurisdição, “iluminada pelo dever de se prestar uma tutela adequada, tempestiva e efetiva, como corolário ao direito fundamental de ação, passa a ser vista como um meio de se realizar os fins do Estado” (PEREIRA FILHO; MORAES, 2012, p. 54). Como consequência, ressalta-se a atuação do Poder Judiciário, por intermédio de sua função típica – jurisdicional –, na efetivação dos direitos fundamentais, como será mais bem abordada no próximo tópico. 3 A jurisdição como instrumento de efetivação dos direitos fundamentais No Estado moderno, o conceito de jurisdição acompanha a ideia do próprio direito (SILVA, 2005, p. 11). O “crescimento avassalador do Estado moderno está intimamente ligado ao monopólio da produção e aplicação do direito, portanto à sua criação, seja em nível legislativo, seja em nível jurisdicional” (SILVA, 2005, p. 11). Outrora entendida como a função de dizer o direito no caso concreto 6 (juris dictio), pautada pelo entendimento liberal que equiparava o direito à lei, a concepção da função jurisdicional, assim como a do direito, sofreu intensas transformações. Na contemporaneidade, a lei não possui mais a supremacia de que antes se valia no Estado legislativo e que, sob o pretexto de corresponder à legítima vontade popular, não demonstrava qualquer preocupação com os princípios de justiça (MARINONI, 2011, p. 23). A evidente supremacia do parlamento daquela época foi bem demonstrada pelas palavras do jurista francês Raymond Carré de Malberg que, em nota sobre o debate de Hans Kelsen ocorrido na sessão de 1928 do Instituto Internacional de Direito Público, sintetizou o modelo francês então existente: O sistema francês de organização dos poderes constituídos tomou, desde o início, caminho bem diferente. Deixando de lado a excepcional medida em que o rei, sob alguns aspectos particulares, era qualificado de ‘representante’, a Constituição de 1791, na esteira da declaração dos direitos de 1789, estabeleceu entre o corpo legislativo e as outras autoridades uma espécie de desigualdade que tinha uma causa profunda e que excluía qualquer possibilidade de uma separação verdadeira e substancial entre poder legislativo e poder constituinte. Enquanto o executivo e a autoridade judiciária exerciam suas atribuições na forma e com os poderes de funcionários que agem a serviço da nação, a assembléia de deputados, concebida como o órgão que ‘quer pela nação’, se tornava a ‘representação’ mesma desta última e adquiria, a esse título, a posse da 6

Dentre as teorias que buscaram conceituar a atividade jurisdicional, destaca-se a concepção de Chiovenda, para quem seria a “[...] função dos juízes [...] afirmar e atuar a vontade abstrata da lei, tornando-a realidade no caso concreto” (SILVA, 2005, p. 15), e a doutrina de Carnelutti, que conceituou a jurisdição como a “[...] justa composição da lide, mediante sentença de natureza declarativa, por meio da qual o juiz dicit jus” (SILVA, 2005, p. 20).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 soberania nacional com os poderes daí decorrentes. E é isso que a declaração de 1789 formulava em termos penetrantes quando, no art. 6.°, a propósito da lei oriunda das decisões do legislador, dizia que é ‘expressão da vontade geral’ (Const. 1893, art. 4.° da Declaração dos Direitos; Const. do ano III, art. 6.° da Declaração dos Direitos); e na seqüência do texto precisava e reforçava o alcance dessa definição especificando que ‘através dos seus representantes todos os cidadãos’ exercem ‘o direito de participar da sua formação’. Era como dizer que, no corpo legislativo, no momento da elaboração das leis, está presente o próprio povo ou a totalidade dos cidadãos. O que o legislador decidiu é decisão legislativa do povo, mas do próprio povo soberano. Abria-se desse modo um abismo jurídico entre o poder legislativo da assembléia dos deputados, que representa a nação, e as competências das outras autoridades, que só ocupam cargos como funcionários. Compreende-se portanto facilmente, como, dadas essas premissas, a Constituição de 1791 (tít. III. Cap. II, seç. I, art. 3.°) tenha podido concluir que ‘na França, não há autoridade superior à da lei’. (KELSEN, 2003, p. 200). No modelo atual, tendo a Constituição se erigido ao ápice do ordenamento jurídico, deve a atuação de todos os Poderes – incluindo o legislativo, logo, a lei, como resultado do exercício de sua função típica – subordinar-se a ela e aos direitos fundamentais.7 Os direitos fundamentais, portanto, “[...] configuram o epicentro axiológico da ordem jurídica, condicionando o exercício da hermenêutica e da produção da norma (eficácia irradiante dos direitos fundamentais)” (CAMBI, 2011, p. 60). Assim, ante a insuficiência das percepções liberais, tem-se a necessidade de uma nova teoria sobre a jurisdição, que pressuponha um acréscimo ao seu conteúdo da observância e efetivação dos direitos fundamentais. São, desta feita, oportunas as palavras de Marinoni (2011, p. 46), quando afirma que [...] não há mais qualquer legitimidade na velha ideia de jurisdição voltada à atuação da lei; não é possível esquecer que o judiciário deve compreendê-la e interpretá-la a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais. Diante dessa conjuntura, destaca-se o fenômeno do neoconstitucionalismo, pelo qual se torna necessária uma mudança no papel do jurista, sendo que sua obrigação “[...] não é mais apenas a de revelar as palavras da lei, mas a de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais” (MARINONI, 2011, p. 47), por intermédio de uma “compreensão crítica da lei em face da Constituição, para ao final fazer surgir uma projeção ou cristalização da norma adequada, que também pode ser entendida como “conformação da lei”” (MARINONI, 2011, p. 48). O papel destinado ao Poder Judiciário, mais do que nunca, mostra-se de especial relevância. Enquanto em épocas pretéritas ocupava um posicionamento passivo, secundário, coadjuvante numa peça em que o protagonista era o Poder Legislativo, nos dias atuais ele ocupa destaque no cenário jurídico e político. Com isso, principalmente a partir a Constituição da República Brasileira, de 05 de outubro de 1988, marco histórico nacional da transição para o Estado Democrático de Direito (CAMBI, 2011, p. 38), “há um sensível deslocamento da esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder Judiciário” (STRECK; MORAIS, 2001, p. 98). A atividade jurisdicional finalmente passa a ocupar a posição que lhe incumbe, em pé de igualdade – guardadas as devidas proporções – com os demais Poderes do Estado. O que era de se esperar, até porque “[...] o poder é inerente à atividade jurisdicional. O juiz exerce parte da

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“Diante da transformação da concepção de direito, não há mais como sustentar as antigas teorias da jurisdição, que reservavam ao juiz a função de declarar o direito ou de criar a norma individual, submetidas que eram ao princípio da supremacia da lei e ao positivismo acrítico” (MARINONI, 2011, p. 138).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 soberania do Estado exatamente porque é membro e não mero representante dele. Por isso, a expressão Estado/juiz.” (PEREIRA FILHO; MORAES, 2012, p. 52). O papel do Judiciário, por intermédio da tutela jurisdicional, na efetivação dos direitos fundamentais é assente. Para tanto, a Constituição da República prevê a inafastabilidade da jurisdição quando da lesão, ou mesmo ameaça de lesão a direito (art. 5º, inc. XXXV, CR). Além do que, se necessário ao acesso à justiça, ao Estado incumbe prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, inc. LXXIV, CR). Ao Judiciário cabe, pois, mediante um devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, CR), o qual pressupõe a observância das garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, CR) e uma razoável duração de seu trâmite (art. 5º, inc. LXXVIII, CR), a prestação da tutela jurisdicional, em julgamentos públicos e com decisões devidamente motivadas (art. 93, inc. IX, CR), sob pena de nulidade do ato jurisdicional. Assim, são adequadas as palavras de Barroso (2008, p. 14): O Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos. A posição ora ocupada pelo Poder Judiciário, a quem incumbe o exercício da jurisdição, desde que de forma responsável e devidamente de acordo com os preceitos contidos na Constituição, deve ser bem aceita. Seu papel como garantidor dos direitos fundamentais representa grande conquista, e qualquer tentativa de extirpação deste poder deve ser vista com desconfiança. CONCLUSÃO A jurisdição, como função típica do Poder Judiciário, traduz-se em importante mecanismo de efetivação dos direitos, incluindo os direitos fundamentais. O novo papel reservado a esse Poder, que por muito tempo manteve-se reprimido, pautado numa ideologia liberal-burguesa, agora ocupa destaque no cenário jurídico. A tradicional concepção da necessidade de um juiz passivo, acrítico e neutro diante da realidade social que o cerca serviu bem para a manutenção do status quo daquele modelo de Estado; esse paradigma, todavia, não mais se adequa aos dias atuais. A prestação de uma tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e adequada à proteção do direito lesado ou ameaçado de lesão, constitui prioridade do Estado, por intermédio do Poder Judiciário, em atenção aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, dentre os quais se destaca a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Além disso, a concepção dos direitos fundamentais como princípios que produzem efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, atingindo o poder legislativo, executivo e judiciário, característica marcante do fenômeno que se designou neoconstitucionalismo, tem por finalidade conferir efetividade material aos direitos fundamentais. Diante disso, conclui-se que o Poder Judiciário corresponde a um importante instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, e que, sempre que atua de forma responsável mediante a observância dos preceitos constitucionais, caminha em direção à promoção do bem de todos, a fim de que se construa uma sociedade livre, justa e solidária.

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ANOTAÇÕES SOBRE TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E CRISE NA AMÉRICA LATINA: A EXPERIÊNCIA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO Fernando de Brito Alves Resumo: Este artigo apresenta uma breve reflexão sobre transição democrática e crise na América Latina, analisando especificamente o caso do Brasil contemporâneo. Para tanto vale-se da revisão bibliográfica articulando principalmente autores latino-americanos, já que a essa abordagem epistemológica autoreferencial pode contribuir para uma compreensão mais profunda da experiência latino-americana de transição democrática e crise. A partir de um conceito preliminar de democracia são apresentadas reflexões relacionadas à qualidade da democracia e à crise da democracia, democracia deliberativa e democracia representativa. Analisamos o caso brasileiro, afim de que ele possibilite a construção de um modelo teórico capaz da compreensão do macro contexto da América Latina. Concluímos sugerindo que a noção de crise da democracia não pode ser aplicada ao contexto latino-americano sem alguma problematização. Abstract: This article presents a brief reflection about democratic transition and crisis in Latin America, specifically analyzing the case of contemporary Brazil. For both makes use the literature review articulating mainly Latin American authors, since this self-referential epistemological approach can contribute to a deeper understanding of the Latin American experience of democratic transition and crisis. From a preliminary concept of democracy are presented reflections upon the quality of democracy and democratic crisis, deliberative democracy and representative democracy. We analyze the Brazilian case, so that it enables the construction of a theoretical model capable of understanding the macro context of Latin America. We conclude by suggesting that the notion of a crisis of democracy can not be applied to the Latin American context without any questioning.

Palavras-chave: Crise democrática; América Latina; Brasil

Keywords: Democratic crisis; Latin American; Brazil.

Introdução Neste breve ensaio pretendemos apresentar alguns apontamentos para a reflexão sobre crise e transição democrática no Brasil contemporâneo a partir de um conceito crítico de democracia substantiva. Para tanto nos disporemos a expor um conceitual preliminar, para na sequência refletir sobre qualidade em democracia.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Ao invés de abordar as métricas qualitativas conhecidas, que os autores trabalham em outras obras1, preferiu-se nesse texto preferimos apresentar sucintamente algumas reflexões de Mikel Barreda sobre a questão. Seguimos discutimos algumas das condições estruturais para a ocorrência da democracia e relatando algumas boas experiências, para ao final tecer breves reflexões sobre crise e transição democrática. Diferentemente dos textos que se popularizaram na década de 1980 sobre a crise do modelo democrático, e consequentemente das constituições democráticas, haja vista que as democracias reconheciam muito mais direitos do que sua capacidade instalada de satisfazê-los, acreditamos que o modelo democrático e, da mesma forma as constituições substantivamente democráticas, estão muito distantes de qualquer esgotamento. A democracia enquanto aporia política não possui qualquer patamar seguro de realização, por isso não pode ser esgotada. Ela se apresenta como um horizonte axiológico-político na direção do qual a humanidade ocidental seguramente caminha de forma perene. Importante ressaltar que procuramos, antes de tudo, não ter o conceito de crise como um “datus”, mas como uma “quaestio disputata”, seja pensada como crise da democracia ou crise como crise constitucional. Dito de outra forma “crise” não é um pressuposto, ou uma categoria estrutural de análise, mas um problema cuja reposta não cabe nesse texto. Da mesma forma, democracia não é uma economia de nossas discordâncias morais, ou um procedimento objetivo para a obtenção de consenso. A democracia genuína é aquela que embora se preste a obtenção de decisões sobre programas normativos ou políticos, convive com o dissenso e não o nega, e por isso não apresentamos conclusões.

1.

Alguns apontamentos sobre o conceito de democracia

A democracia não é uma dieta ideal, não existe um conceito definido, claro, distinto e unitário, nem tampouco consenso sobre os procedimentos e técnicas que caracterizariam tout court os regimes democráticos. Além dos desafios de ordem epistemológica, a democracia sugere limites pragmáticos bastante consistentes, já que suas aplicações decorrem de correntes filosóficas contrárias (liberalismo e comunitarismo), e também que não é possível estabelecer uma estrita transitividade entre a vontade de governantes e governados, nem sequer existe a possibilidade da ocorrência de um diálogo honesto, tendo em vista que os grupos de interesse (entre os quais se inclui a imprensa), sempre tratará a informação da maneira mais adequada para atingir o seus propósitos2. O conceito de democracia e a disposição de seus elementos característicos vêm passando por diversas mudanças, não apenas nas instituições internacionais, mas principalmente nas instituições internas. Por essa razão dificilmente se consegue alcançar uma unanimidade entre os doutrinadores a respeito de sua definição. 3 No entanto a antiga ponderação de que a qualidade 1

ALVES, Fernando de Brito. Constituição e Participação popular. Curitiba: Juruá, 2013. _____. Democracia à Portuguesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014 2 MARGRAF, Alencar Frederico; ALVES, Fernando de Brito. Manifestação de protesto no Brasil: do Occupy Wall Street à primavera Árabe. 2013. No prelo. 3 Para isso basta verificar os comentários realizados por Geraldo Munck (La política democrática en América Latina: contribuiciones de una perspectiva institucional, Política y Gobierno [online], vol. 11, n.º 2. 2004. p. 315-346. Disponível em: http://www.politicaygobierno.cide.edu/num_anteriores/Vol_XI_N2_2004/Munck.pdf. Acessado em: 24/04/2014) e de Frances Hagopian (Derechos, representación y la creciente calidad de la democracia em Brasil y

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 de uma democracia depende diretamente da maneira pela qual a sociedades busca cumprir seus requisitos elementares está praticamente pacificada 4. Diante de tais circunstâncias percebe-se que a discussão quanto à qualidade da democracia pode seguir dois caminhos distintos: i) analisar e estudar a democracia aplicada dentro de um regime político, isso porque a democracia não pode ser vista apenas como um mero regime político, mas também como um modo particular de relação entre Estado e cidadão, bem como entre os próprios cidadãos, formando realmente um Estado de Direito 5; ii) ou analisar, estudar e aperfeiçoar o processo democrático e seus elementos 6 (apresentados a seguir). Mikel Barreda defende que a qualidade da democracia será verificada com a dupla análise, tanto dos mecanismos de acesso ao poder político quanto dos mecanismos de controle do poder, pois individualizar seria insuficiente para compreender as variantes da democracia 7. No entanto há quem diga8 que tal intenção, além de dificultosa, modifica o sentido original da democracia e, principalmente, da qualidade da democracia, tendo em vista que os elementos poderiam ser melhores estudados se o forem separadamente, até mesmo porque seria impossível observar alguns aspectos como corrupção, arbitrariedade e impunidade (que afetam a democracia) conjuntamente com os demais elementos democráticos. Por sua vez, Scott Mainwaring e Timothy R. Scully destacam que o maior problema verificado na América Latina (e porque não da política brasileira?) está na debilidade dos mecanismos de controle do poder político já existentes e institucionalizados9. Importante também destacar o pensamento de Adolfo Garcé e Mauricio Armellini que afirmam que não é possível conceber uma idéia fixa de democracia aplicável à todos os países. Isso porque, defender uma democracia universal, além de ser uma teoria incompleta, seria prejudicial para o próprio desenvolvimento democrático interno. Sendo assim, cada instituição deverá, por meio da análise da sua própria evolução histórica, realizar a evolução do seu sistema político. Os autores vão além da simples divisão democrática institucional e defendem ainda a necessidade da variação política entre governos de esquerda e direita 10, o que permitiria a realização do accountability entre as atuações governamentais e corrigir os erros políticos dos antecessores. Chile. Política y Gobierno [online], vol. 12, I semestre 2005, p. 41-90. Disponível em: http://www.politicaygobierno.cide.edu/num_anteriores/Vol_XII_N1_2005/03HAGOPIAN.pdf. Acessado em: 24/04/2014), que apresentam dois posicionamentos dispares quanto a democracia na América Latina quando observam o nível de democracia dentro de dois regimes políticos específicos, o brasileiro e o chileno. 4 BARREDA, Mikel. La calidade de la democracia: um análisis comparado de América Latina. In: Política y Gobierno. Vol. XVIII. n.º 2. II Semestre de 2011. p. 266. 5 O’DONNELL, Guilhermo. La irrenunciabilidad del estado de derecho. Instituciones y Desarrollo. Vol. 8. n.º 9. Ano 2002. p. 43-82. 6 Cfr Robert Dahl apresenta em um dos seus trabalhos 5 elementos básicos do processo democrático descrito ao longo deste trabalho (Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press. 1989. p. 109-116), bem como oito garantias institucionais, tais como: liberdade de associação, liberdade de expressão, liberdade de voto, elegibilidade para o serviço público, direito dos lideres de buscar apoio popular, diversidade das fontes de informações, eleições livres e imparciais e, por fim, que as instituições garantam uma politica de governa que dependam exclusivamente do voto popular (La poliarquia: participación y oposición. Madrid: Tecnos. 2002). 7 BARREDA, Mikel. La calidade de... Op. cit. p. 268. 8 MAZZUCA. Sebastián L. Reconceptualizing Democratization: acess to power versus exercise of power. In Geraldo Munck (ed.) Regimes and Democracy in Latin America: theories and methods. Nueva York. Oxford University Press. 2003. p. 39-49 9 MAINWARING, Scott; SCULLY, Timothy R. Party systems in Latin America. In: Scott Mainwaring y Timothy R. Scully (eds.). Muilding Democratic Institutions: party systems in Latin America. Stanford: Stanford University Press. p. 1-34. 10 GARCÉ, Adolfo; ARMELLINI, Maurcicio. Democracia y desarrollo: un enfoque “partidista”. In: Revista Uruguaya de Ciencia Política [online]. vol. 17. n.º 1. 2008. p. 71-86. Disponível em: http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0797-97892008000100003&lng=es&nrm=iso. Acessado em: 24/04/2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 No mesmo sentido Federico Traversa defende que é necessário construir o conceito de democracia (para cada país individualmente), mas por meio da abstrativização de seus elementos, separando-se os elementos gerais dos elementos específicos (v.g. das instituições políticas aos eleitores), dessa maneira, toda decisão política de uma sociedade terá valor, pois, ao analisar todas as variáveis da questão (desde os gerais até os interesses dos indivíduos) evitar-se-ia que algo importante para a evolução da sociedade seja excluída da pauta apenas por conter um elemento inapropriado, assim, no processo da decisão política, tal equívoco poderia ser corrigido e, consequentemente, seria tomada a melhor decisão para o Estado e para a sociedade11. A necessidade de variação do poder entre governos de direita e de esquerda estaria justamente na possibilidade de equilibrar o (neo)liberalismo e o (neo)igualitarismo (respectivamente), uma vez que, percebe-se claramente que a atuação de cada qual, ou está na preocupação das questões econômicas (interna e externa) ou na preocupação em reduzir a desigualdade social, mas nunca “trabalhando” conjuntamente. Mikel Barreda demonstra que Chile, Uruguai e Costa Rica possuem os melhores índices sobre qualidade democrática, sendo esta verificada mediante pesquisa popular a qual respondem diversas perguntas, dentre elas se o cidadão está satisfeito com a política implantada em seu país; se está satisfeito com o desempenho da administração pública; se concorda com o sistema partidário existente; e se está contente com os mecanismos de inclusão da população para participarem da política nacional. Por meio de uma pesquisa empírica, Barreda aponta três fatores primordiais para se medir a qualidade democrática: os fatores estruturais, as experiências democráticas e os fatores socioculturais.12 Também por meio de uma pesquisa empírica, Federico Traversa relata que não existem “sólidos argumentos teóricos ni empíricos para creer que el desarrollo económico es una verdadera precondición para la democracia”, porém reconhece que a democracia13 está associada à maneira de “distribución del ingreso de baja polarización en la distribución de los recursos económicos”14, ou seja, não há como defender que a democracia será mais evoluída se o Estado for desenvolvido economicamente. No entanto, pode-se afirmar que, se neste mesmo país houver uma desigualdade dispare em relação à distribuição dos recursos, a democracia também sofrerá limitações em seu desenvolvimento15. Portanto, para se entender a situação democrática que o Brasil está inserido, deve-se realizar uma análise dos três principais indicadores democráticos, quais sejam: fatores estruturais da democracia interna; experiências democráticas vivenciadas pelo Estado e os fatores socioculturais da população. 11

TRAVERSA, Federico. Nuevo análisis de las precondiciones económicas de la democracia. Revista Uruguaya de Ciencia Política [online]. vol. 16. n.º 1. 2007. p. 103-129. Disponível em: http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0797-97892007000100007&lng=es&nrm=iso. Acessado em: 24/04/2014. p. 108. 12 BARREDA, Mikel. La calidade... Op. cit. p. 270-278. 13 Cfr. Federico Traversa: “Definimos a la democracia como un modo de adopción de decisiones políticas, donde nadie es excluido de la participación del processo decisorio, que por definición puede afectar la distribución de los recursos económicos en una sociedad.” (TRAVERSA, Federico. Nuevo análisis de las... Op. cit. p. 108) 14 TRAVERSA, Federico. Nuevo análisis de las... Op. cit. p. 105. 15 Cfr. Federico Traversa: “Primero, porque en condiciones de gran desigualdad la democracia se volvería particularmente inestable, ya que grupos de individuos poderosos se volverían en contra de las consecuencias redistributivas que se derivan de la democracia en tal contexto. Y segundo, porque aún si la democracia resiste, entonces los más pobres tendrán fuertes incentivos para redistribuir los recursos, por lo cual es baja la probabilidad de encontrar a la democracia asociada con una situación de gran desigualdad económica.” (TRAVERSA, Federico. Nuevo análisis de las... Op. cit. p. 108)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 2.

Fatores de qualidade da Democracia Interna

Dentre os inúmeros fatores estruturais existentes 16 que alteram a qualidade da democracia interna, foi selecionado apenas um deles, também apresentado por Mikel Barreda, que é a debilidade do sistema partidário no que tange seu papel na sociedade. Um sistema de partido político mal institucionalizado cria problemas no momento de realizar a representação eleitoral 17, uma vez que dão margem para o surgimento dos “políticos outsiders”, ou seja, aqueles que se sobressaem aos partidos políticos a qual fazem parte e que buscam, após obter acesso ao poder, ampliar sua governança, modificar mecanismos de controles, bem como realizar a troca de partidos políticos ou simplesmente criar uma nova legenda. O exercício do controle político por meio das eleições poderia providenciar o avanço da democracia se os partidos políticos colaborassem na educação popular sobre a importância da participação dos cidadãos nas deliberações públicas, no entanto, para evitar maiores críticas sobre a gerência do poder, as agremiações políticas reduzem as informações sobre as posturas do governo, obscurecem as ideologias partidárias e raramente justificam à população sobre as decisões tomadas. Por essa razão que Diego Abente-Brun relata que é importantíssimo para a evolução da democracia, em qualquer país da América Latina, que sejam realizadas reformas em relação à transparência e controle do financiamento partidarista, como forma de combate ao clientelismo e à corrupção18. 3.

Experiências Democráticas

Quando se fala de experiência democrática leva-se em conta a origem e a manutenção da democracia de determinado país, bem como o seu desenvolvimento. Para Mikel Barreda “la tesis es que la probabilidad de que la democracia emerja o perdure es mayor si un país goza de una destacada tradición democrática”19. No entanto, o passado não é determinante para caracterizar se um país possuirá ou não uma democracia evoluída, mas contribui significativamente para elevar o nível da qualidade democrática, pois além de existir uma extensão dos conceitos democráticos em todas as áreas do governo (legislativo, executivo e judiciário), a permanência da democracia representa um papel importante para a formação dos cidadãos, que passarão a formar uma sociedade de democratas, consequentemente poderão participar de maneira mais efetiva das deliberações

16

Dentre eles: modificação da atuação dos partidos políticos para auxiliar na educação popular sobre política; corrupção nas esferas administrativas; descentralização dos poderes; fortalecimento dos Parlamentos Municipai s e dos Conselhos Municipais Deliberativos e Participativos; fim dos cargos comissionados que se transformam em evidente meio de obtenção de votos; redefinição das competências das três funções do Estado, principalmente do STF (talvez com a criação de uma Corte Constitucional Democrática); reforma do Sistema Eleitoral; incrementação de institutos que possibilitem a participação popular das deliberações políticas, por meio do orçamento participativo; quem sabe a criação do Ombudsman municipal e o fortalecimento da comunicação e divulgação das propostas da administração pública; e por fim, acabar com as cláusulas de barreira, financiamento privado das campanhas e, por fim, providenciar a regulamentação e o cumprimento da fidelidade partidária. 17 BARREDA, Mikel. La calidade de la democracia... Op. cit. p. 280. 18 ABENTE-BRUN, Diego . The Quality of Democracy in Small South American Countries: The Case of Paraguay. The Helen Kellogg Institute for International Studies. 2007. Disponível em: https://kellogg.nd.edu/publications/workingpapers/WPS/343.pdf. Acessado em: 24/04/2014. 19 BARREDA, Mikel. La calidade de la democracia... Op. cit. p. 279.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 políticas internas. Contudo, tal participação somente será possível se os governantes, da situação, assim o permitirem. 3.1.

Despolitização das decisões econômicas

Um dos problemas verificado nas democracias latinas foi/é a “despolitização das decisões econômicas” com a impossibilidade da população participar das tomadas de decisões sobre as questões financeiras dos Estados a qual pertencem. O discurso político se inicia com a “busca” dos culpados pela crise interna, ou se faz por meio da ocultação dos problemas, e em seguida realiza-se o populismo (com atendimento das demandas populares de maneira superficial) com fornecimento de bens e serviços sem “considerar as recomendações teóricos-técnicas dos manuais de macroeconomia” causando desequilíbrio social e inflação 20. É de se ressaltar, contudo, que os apelos de naturalização das análises econômicas surgidos a partir da nova gestão pública acirraram o déficit democrático na deliberação sobre programas, normas e políticas, que transferiu a reponsabilidade da gestão pública à técnicos e burocratas. Ainda que a nova gestão pública favoreça em linhas gerais a proteção dos direitos fundamentais21, ela deve ser aliada a outro conjunto de técnicas de democracia deliberativa para que possibilite o empoderamento dos povos.

3.2.

Democracia Deliberativa

Javier Gallardo, principal defensor da Democracia Deliberativa no Uruguai, defende a necessidade das pessoas justificarem suas posturas deliberativas por meio de discussões públicas. Por meio da democracia deliberativa seria verificadas as fundamentações das pessoas no momento de deliberarem sobre assuntos de extrema relevância estatal. Assim evitar-se-ia os “cálculos estratégicos”, tanto dos governantes, dos partidos e dos eleitores, sagrando-se vencedor aquele que melhor justifica-se suas posturas e não apenas uma afirmação expressiva de uma simples, superficial e infundada preferência promovida por uma maioria desinteressada na política22. Diante desse novo modelo de deliberação política, Gallardo acredita que é possível constituir “un poderoso instrumento de mejora de la democracia”23. Tendo em vista que, ao ser indispensável a prévia explicação das tomadas das decisões, evitariam diversos males políticos entre eles: “la conciliación acrítica de intereses”; “la mera administración de contradicciones”; “las agregaciones políticas indiscriminadas” e “las estrategias de éxito más depredadoras”24. Apesar de serem pontos interessantes a serem estudados, o modelo deliberativo demonstrado por Gallardo sofre críticas, pois pode criar uma democracia meramente competitiva e impossibilita 20

CARMO, Corival Alves do. O limite da participação popular na América do Sul: democracia e política econômica. Universidade Federal de Sergipe. Trabalho apresentado no quarto Congresso Uruguaio de Ciência Política. Associação Uruguaia de Ciência Política. Novembro de 2012. Disponível em: http://www.aucip.org.uy/docs/cuarto_congreso/12142514%20-%20Carmo,%20Corival.pdf. Acessado em: 25/04/2014. 21 ALVES, F. B., Democracia à portuguesa... op. cit. 22 GALLARDO, Javier. Elogio modesto a la deliberación política. Revista Uruguaya da Ciencia Política [online]. vol. 18. n.º 1. 2009. p. 85-115. Disponível em: http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S079797892009000100008&lng=es&nrm=iso. Acessado em: 24/04/2014. p. 110-111. 23 GALLARDO, Javier. Elogio modesto a la deliberación política... Op. cit. p. 88. 24 GALLARDO, Javier. Elogio modesto a la deliberación política... Op. cit. p. 113.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 corrigir os problemas políticos já relatados, pois não determina se as obrigações das fundamentações das decisões sejam determinadas em lei geral aplicável para todos os cidadãos ou se somente se aplicaria àqueles que realizam as deliberações políticas, além do que, não esclarece quais são os momentos de obrigatoriedade das motivações das escolhas, ressaltandose que, se fosse exigido tais condutas em todas e quaisquer situações, a governabilidade, além de morosa, seria imensamente onerosa. Cristian Pérez Muñoz critica o modelo neo-aristotélico de democracia deliberativa apresentado por Javier Gallardo em face deste não ter demonstrado detalhadamente qual o alcance de sua proposta. Dentre as críticas, apontaram-se as seguintes: quem seriam os sujeitos legitimados a realizar esta deliberação democrática e, principalmente, em quais circunstâncias esses legitimados poderiam deliberar. Segundo Muñoz, o modelo de Gallardo é insuficientemente inclusivo.25 A concepção de democracia apresentada por Muñoz seria a maneira de distribuir as funções e os benefícios entre os membros de uma comunidade, que deve ser realizada da seguinte maneira: i) por um processo democrático que todos os cidadãos devem possuir as mesmas oportunidades (igual e real) de poder participar deste processo; ii) cada cidadão deve ter assegurado a possibilidade de expressar seu voto com o mesmo valor que outro cidadão; iii) se faz necessário o esclarecimento das posturas governamentais a serem tomadas pelos candidatos se eleitos forem; iv) deve haver um controle exclusivo dos gastos públicos; v) e, esse processo democrático deve ser inclusivo. 26 Diante de tais pontos, percebe-se que o posicionamento de Gallardo27 quanto ao modelo de democracia deliberativa se concentra no primeiro e no terceiro requisito da democracia apresentada por Muñoz28. Se analisar somente tais apontamentos percebe-se que é importante a terceira fase do processo democrático, uma vez que, com a realização da deliberação das tomadas das decisões é possível que cada um apresentem “sus razones más sinceras sobre qué opción tomar” evitando-se assim os cálculos estratégicos29, pois as democracia deliberativa permitiria uma compreensão esclarecida sobre os assuntos discutidos, não ficando limitada apenas ao ato de votar. Podendo então esse processo democrático alcançar a perfeição democrática com as transformações das preferências. No entanto, para Muñoz, “el ejercicio deliberativo puede ser costoso e ineficiente”, bem como, a decisão pode vir a ser tomada em um momento que não terá mais utilidade em face da sua morosidade30. Ao analisar os apontamentos realizados pelos defensores da democracia deliberativa, ou seja, aquela que busca a transformação das preferências dos interlocutores verifica-se uma ideologia 25

MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo. Revista Uruguaya de Ciencia Política [online]. Vol. 19, n.º 1. 2010. p. 207-218. Disponível em: http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0797-97892010000100009&lng=es&nrm=iso. Acessado em: 24/04/2014. p. 207- 218. 26 MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 209. 27

Gallardo realiza uma “defensa modesta de la deliberación política, sensible al pluralismo, al disenso público y a la decisión mayoritaria” (p. 113). Apresenta também que “la visión deliberativa de la política debe compatibilizarse con el disenso público y la democracia mayoritaria, asegurando una verdadera equidad y neutralidad en el habla pública, por un lado, y por otro, una praxis deliberativa que funcione como una instancia crítica de la calidad sustantiva de las justificaciones políticas, de su aceptabilidad racional y no meramente consensual o pragmática, en base a firmes estándares epistémicos o normativos” (p. 88-89). (GALLARDO, Javier. Elogio modesto a la deliberación política... Op. cit.) 28

Os itens apresentados por Muñoz foram extraídos da obra de Robert Dahl (Democracy and its Critics. New Haven: Yale University Press. 1989. p. 109-116 ) que narra estes cincos critérios básicos para se construir um processo democrático, em tese, contemporâneo. 29 MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 210. 30 MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 210.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 certamente inteligente e interessante a ser aplicada, no entanto, tal análise deve se abstrair dos pontos ideológicos e alcançar a efetivação de tais teorias, e, é justamente neste quesito que surgem as principais críticas à democracia deliberativa. Assim sendo, surge a pergunta: qual o mecanismo que irá garantir que os interlocutores vão deixar de lado os cálculos estratégicos no momento de defender seu ponto de vista ou de tomar uma decisão? Sem uma resposta consistente para esta pergunta, ter-se-á “novamente” uma democracia competitiva. Esta é a principal crítica apresentada por Muñoz 31, mas não a única, pois ele ainda questiona sobre a impossibilidade de realizar as discussões (deliberações públicas) em âmbito nacional, sendo importante e “crucial identificar a los agentes deliberantes y los espacios de deliberación a la hora de evaluar la viabilidad normativa y política de cualquier MDD”32 – modelo de democracia deliberativa. Para isso, Gallardo relata que não possui a intenção de maximizar a participação da população nas deliberações governamentais 33, pois a validade e viabilidade da deliberação não depende da adesão total dos cidadãos, mas tão somente do “acondicionamiento apropiado de escenarios deliberativos en diversos foros o espacios públicos”34. Com isso sofre outras críticas quanto à superficialidade das alegações no que tange a maneira de instituir estes espaços públicos, que podem ser inutilizados, inapropriados e demasiadamente caros 35. Para ser possível colocar em prática o modelo apresentado por Gallardo, diz Muñoz, que deverá ocorrer uma complementação à teoria, isso porque ela deverá responder, de maneira convincente, a forma pela qual irá selecionar os interlocutores que participarão das deliberações36. Como a teoria não prevê a maximização da participação de todos os cidadãos, dever-se-á explicar a maneira que os membros serão selecionados sem que permita proporcionar a segregação humana entre incluídos e excluídos do processo democrático. Até então poder-se-ia dizer que as principais críticas ao modelo de deliberação democrática de Javier Gallardo seriam: a elaboração de um elitismo cognitivo dos prós-deliberalistas; a 31

Cfr Cristian P. Muñoz: “Si no hay instituciones específicas que determinen cómo y cuando los agentes tienen que deliberar, no existen garantías de que las razones y argumentos presentados por cada interlocutor no estén viciadas de cálculos estratégicos, intereses privados y demás. Gallardo apenas discute qué tipo de condiciones endógenas y exógenas facilitan los procesos de deliberación.” (...) Cada uno de los interlocutores debería dejar de lado toda racionalidad estratégica y aportar las mejores razones para justificar sus preferencias, aún cuando al final las decisiones se pueden saldar mediante el voto. Pero, ¿cómo podemos asegurarnos de que los interlocutores van a actuar de esa forma? (MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 210.) 32 MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 213. 33 Cfr Gallardo: “la maximización participativa no es una exigencia intrínseca de la deliberación, aunque sí lo

sea de la democracia, pues las instituciones deliberativas privilegian la equidad en el acceso al habla pública y la calidad de los argumentos, más que una regla de inclusión cuantitativa o numérica”. (GALLARDO, Javier. Elogio modesto a la deliberación política... Op. cit. p. 99) 34 35

GALLARDO, Javier. Elogio modesto a la deliberación política... Op. cit. p. 99. Cfr Muñoz: “En pocas palabras, la decisión sobre cuáles deben ser los espacios de deliberación y sobre

quiénes deben ser los sujetos deliberantes supone al menos tres tipo de dilemas. Primero, institucionalizar instancias deliberativas a gran escala puede ser un proceso extremadamente difícil y costoso (en todo sentido). Ese tipo de estrategia puede reducir las garantías de que las decisiones vinculantes sean un producto de la deliberación tal y como la describe Gallardo. En segundo lugar, si, en cambio, las instancias deliberativas tienen un menor alcance y son más acotadas a ciertas organizaciones e instituciones (partidos, sindicatos, etc.) se corre el riesgo de que los efectos no deseados de la democracia competitiva sigan imperando a gran escala. De poco servirá que más instancias de deliberación a menor escala sean institucionalizadas, si al final las decisiones vinculantes con fines gubernativos o legislativos son producidas mediante procesos no deliberativos.” MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 214. 36 MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op.cit. p. 216.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 subestimação da racionalidade discursiva; incompatibilidade entre deliberações e democracia; insuficiências políticas e/ou institucionais para superar as atuais práticas democráticas; e a existência dos atuais modelos de agregação política. No entanto Javier Gallardo responde a todos esses questionamentos, separando a teoria da realidade, ou seja, a ideologia da praticidade 37. Para isso ele demonstra que o pensamento dualista clássico, entre razão deliberativa e a decisão majoritária (que nem sempre possui um tratamento justificado) necessitam de um consenso racional e uma decisão confiada ao voto, mas que não permitam um acomodamento recíproco entre deliberação e votação. Isso porque, o voto majoritário jamais significará que se trata de um utilitarismo político, bem como que o voto trata-se de um fracasso da deliberação política38 (posto que a população vota sem saber os ideais dos candidatos). Assim sendo, a defesa de que a democracia deliberativa está mais para uma democracia agregativa elitizada é desconhecer as relações intrínsecas entre deliberação, desacordo e voto, ou seja, ignoram os efeitos “de los intercambios deliberativos en la decisión de los votantes y, a la inversa, las implicâncias democráticas de la votación en la deliberación política”39. Por essa razão que, falar do voto na perspectiva do igualitarismo, desconexa de uma justificativa pela qual se fez uma escolha dentre várias possíveis, independente de uma análise crítica, afeta a integridade e a verdadeira essência do direito ao voto40. Tais ocorrências são verificadas nas democracias agregativas, pois defendem que a democracia se faz com a maximização da participação dos cidadãos no processo democrático e levam apenas em consideração a quantidade de votos atribuídos ao candidato sem levar em consideração os interesses dos eleitores. Em contra partida, a democracia deliberativa exige igual oportunidade de influência na formação das preferências dos cidadãos, bem como, necessita de uma exposição dos juízos de valores atribuídos pelos cidadãos que exercem o direito ao voto, mas principalmente em relação às suas próprias escolhas no que tange as decisões políticas 41. A crítica de que a democracia deliberativa se tornaria numa democracia competitiva não se sustenta justamente porque a verdadeira democracia não estaria firmada tão somente no sentido aritmético, pois a legitimidade política depende da imparcialidade da agregação dos cidadãos e de suas preferências firmadas no processo político, ficando em evidência que o modelo apresentado por Gallardo atribui ao voto uma interpretação mais rica, completa e satisfatória do que a democracia agregativa. O voto deixa de ter um significado simplesmente quantitativo como realizado na democracia agregativa (majoritária) e se firma na qualidade dos votos e nas justificativas para realização do voto, ou seja, não importa mais para uma verdadeira democracia a quantidade de cidadãos que

37

GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz. Revista Uruguaya de Ciencia Política [online]. vol. 20. n.º 1. 2011. p. 165-177. Disponível em http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0797-97892011000100008&lng=es&nrm=iso. Acessado em: 24/04/2014. p. 166 38 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 167 39 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 168 40 Cfr Javier Gallardo: “en un sentido deliberativo, la democracia sería un modelo de escrutinio y determinación del contenido legítimo de las opciones de los participantes en la decisión colectiva, tendiente a que sus preferencias y opiniones tengan alguna conexión interna y formal con las razones y objeciones adecuadas al significado vinculante de la decisión colectiva.” Gallardo, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 169 41 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 171

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 exercem o direito ao voto, mas sim, os interesses pelos quais eles são movidos para realizarem suas decisões. Portanto, não interessaria mais a quantidade dos votos, mas sim a sua qualidade. Isso não significa dizer que será realizada uma diferenciação entre os cidadãos para determinar quem poderá deliberar ou não; nem tampouco que será realizada uma limitação dos cidadãos para participarem da política, o que se pretende é reconhecer que o voto, no sentido de que o simples comparecimento às urnas, não pode mais ser apresentado como o principal fator da democracia. A democracia deliberativa em momento algum busca limitar e restringir os cidadãos de participarem da política, porém, reconhece que a simples defesa da “maximização” dos votos sustentaria uma democracia ultrapassada, e já estaria ultrapassada desde a crucificação de Jesus Cristo42. O voto, para a democracia deliberativa está diretamente ligada à deliberação política, pois mantém uma íntima conexão com os acordos firmados no momento da deliberação. É por meio do voto que se questiona as irredutibilidades dos dissensos políticos e as atuações não justificadas, que são constantemente fundamentadas, errônea e tendenciosamente, com base no reconhecimento mútuo de que a eleição majoritária justifica e valida a decisão coletiva tomada pelos governantes. Destaca-se ainda que o voto deve ser algo mais valorizado e estudado, pois ele é “algo intrínseco a la deliberación política porque su intencionalidad es la toma de decisiones legítimamente coercitivas”43. Pois bem, a problemática da questão está justamente na maneira de efetivar a justificação e a realização do voto, ou melhor, se é possível conjugar estas duas características da democracia nos dias atuais, caso contrário, toda teoria defendida por Javier Gallardo seria inútil e utópica, pois impossível de ser concretizada, sendo apenas interessante para discussões acadêmicas em que as questões teóricas passam a ser importantes apenas para acalorar os debates em salas de aula, mas que de nada auxiliam na evolução do Direito. A primeira impressão que se tem em relação à junção de justificativas deliberativas e o voto é pela impossibilidade prática em face das variações dos interesses pessoais e pelas diferentes fontes constitutivas de suas preferências em relação à política. Porém, como salienta Gallardo, “estos datos no deberían homologarse como libertades o autonomias soberanas de los individuos, como si sus preferencias no vinieran inducidas endógenamente por contextos restrictivos”44. Percebe-se que a democracia deliberativa possui um compromisso normativo com o princípio de justificação (motivação) pública e que possui maiores condições para desafiar as crenças ou preferências individuais, para então, favorecer as razões públicas e não privadas dos governantes. De qualquer forma, o juízo de valores dos votantes é um aspecto fundamental para a deliberação democrática, mas sua realização ainda não está totalmente garantida, livre das impurezas e imperfeições dos procedimentos democráticos 45. O certo é que a democracia deliberativa implica uma maior exigência de interação discursiva ou de exposição das justificativas dos atos praticados pelos atores do que qualquer outro modelo de 42

Cfr. Hans Kelsen demonstrou em sua obra que a Democracia realizada pelo sistema majoritário nem sempre é a melhor, pois inúmeras vezes a maioria está incorreta em suas escolhas, pois são movidos por manifestações sem justificativas ou por ideais falsos, e para isso apontou o episódio em que a população, de forma majoritária, escolheu a crucificação de Jesus Cristo ao invés do Barrabás. (KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 203/204.) 43 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 172. 44 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 172 45 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 173

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 democracia, evitando-se, assim que, partidos políticos, grupos de interesses e meios de comunicação continuem a utilizar uma racionalidade meramente estratégica ou cálculos de utilidades para ludibriarem os cidadãos, fatos corriqueiros nas democracias competitivas. Sendo que, na maioria das vezes, estes são totalmente indiferentes se a decisão tomada vem com respaldo em princípios constitucionais ou em face de interesses devidamente reconhecidos pela sociedade, pois as retóricas, as preferências e as estratégias de jogo veem disfarçadas de moralidade política, de justiça e de reconhecimento mútuo de que se buscam o bem estar social. Ao reconhecer que as justificativas são importantes para formar a crença dos eleitores, surge outra barreira, pois se espera que a deliberação política realizada entre candidatos e eleitores seja reduzida à informações relevantes para uma decisão crítica e construtiva, capaz de formar um juízo de valor apropriado e adequado à decisão que será tomada, quer pelos governantes, quer pelos cidadãos46. Um exemplo de democracia deliberativa realizada por meio de auditoria entre os cidadãos pode ser verificada na Costa Rica, a qual utilizada os espaços públicos para consulta e debates entre cidadãos para realizar o accountability político47. Destaca-se também a atuação de Hugo Chávez, que realizou a mudança da constituição venezuelana com a convocação de uma Assembléia Constituinte a qual ampliou o espaço da participação popular nas decisões estatais sobre as políticas públicas aumentando a responsabilidade dos cidadãos sobre as decisões tomadas na gestão do Estado. Apesar da Constituição da Venezuela ser paradigmática em relação à participação popular nas deliberações estatais, ainda sofre para implementar e concretizar tal ideologia, contudo contribui para a educação política da população venezuelana48. Os setores populares passaram a ter contato com questões referentes à política interna e com isso aumentaram suas capacidades interpretativas e críticas referentes às posturas dos governantes, permitindo um accountability consistente e produtivo. Logicamente que a democracia deliberativa, bem como a democracia participativa, não possuem uma construção e conceituação finalizada, mas “se trata de avances importantes aunque todavia inconcluyentes”. Há inúmeros questionamentos a serem levantados, pois trata de uma evolução, necessária, da democracia contemporânea. Isso porque todos os modelos democráticos carecem de estudos aprofundados no que tange as conexões entre: teoria e prática da democracia; participação social e representação política; máxima inclusão social participativa e a eficiência das decisões; representação social ou de grupos de interesses; a decisão experta e de interesse em face do juízo valorativo do cidadão49. Quanto à critica formada a respeito da dificuldade e onerosidade para realizar os debates públicos, bem como a viabilidade institucional de realizar as discussões entre candidatos e cidadãos em face da tendência de maximizar a participação popular nas deliberações do governo, 46

GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 174 PROYECTO ESTADO DE LA NACIÓN EM DESARROLLO HUMANO SOSTENIBLE (PENDHS). Auditoría ciudadana sobre la calidade de la democracia. San José: Editorama. 2001. Disponível em: http://www.estadonacion.or.cr/otras-publicaciones-pen/investigaciones-especiales-pen/auditoria-ciudadanapublicaciones. Acessado em 24/04/2014. 48 Cfr. Corival Alves do Carmo: (...) constata-se que desde de 2006 com a primeira legislação sobre os conselhos comunais, o governo Hugo Chávez intenta construir um sistema através do qual o cidadão possa exercer diretamente o poder, participar das decisões de Estado, e mesmo executar algumas políticas públicas localizadas. O fortalecimento dos conselhos comunais como unidade básica de organização dos cidadãos avançou no sentido que os conselhos poderiam ser não apenas unidades de organização política, mas também socioeconômica”. (CARMO, Corival Alves do. O limite da participação popular na América do Sul... Op. cit. p. 9.) 49 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 173. 47

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 destaca Cillian McBride50 que a grande maioria dos cidadãos podem (e devem) participar deste diálogo, ainda que imaginário, geográfico e temporalmente disperso, sempre que estivem efetivamente comprometidos com a deliberação a ser tomada. Pois bem, como então realizar essa “seleção” dos efetivamente comprometidos? Para Muñoz tal individualização não passa de uma maneira de realizar a exclusão de parcela da população dos processos democráticos da sua comunidade, da mesma maneira que já fora realizada nos anos 90 com a “despolitização das questões econômicas”. Muñoz relata que “difícilmente podamos alcanzar un régimen democrático más inclusivo si quienes participan voluntariamente en los ámbitos deliberativos son aquellos ciudadanos con mayores recursos u oportunidades” 51. Para Gallardo essa é a fundamentação mais superficial e improdutiva existente em relação às democracias e, principalmente, em relação à democracia deliberativa. Primeiramente porque a democracia deliberativa “es rotundamente crítica respecto a las desigualdades (de clase, de etnia, de gênero, culturales, etcétera)” que impedem o exercício das oportunidades públicas e que comprometem as discussões e o entendimento das justificativas dos governantes. E segundo, que a discussão deveria focalizar na possibilidade de como se efetivar as oportunidades, os recursos e os meios de igualar ou de reconhecer as diversas capacidades comunicativas dos agentes públicos e dos cidadãos52. É nessa perspectiva que surgem duas vertentes, ou dois caminhos a serem percorridos: aqueles que buscam teorias e atividades comprometidas ao desenvolvimento da teoria da democracia deliberativa (“deliberative polling”, “choice dialogues”, “jurados ciudadanos”); ou manter-se estagnado ao modelo atual e continuar aceitando a realização dos debates estratégicos, decisionistas e conflitantes entre candidatos e partidos políticos 53, que não transmitem informações importantes para formar a ideologia do cidadão. Sendo assim, uma das necessidades verificadas para a evolução da democracia é garantir o acesso às deliberações políticas, e isso pode ser feito por meio da Democracia Participativa.

4.

Desconfiança e representação

Para Diego Abente-Brun54 o primeiro ponto a ser observado em relação ao fator estrutural de uma democracia é o seu desenvolvimento interno, isso porque o nexo entre democracia e desenvolvimento está relacionada a diversos problemas de endogenia, ou seja, por questões de desigualdade interna, surgindo assim posturas altamente tendenciosas e segregadoras. Frances Hagopian atribuiu o fracasso da democracia brasileira à incompetência e incapacidade de efetivar os direitos dos cidadãos e de concretizar o Estado de Direito, porém ressalta que tais ocorrências se devem à “herencia de desigualdad brutal”55. Portanto, é necessário conhecer os elementos integradores da sociedade brasileira, para então compreender e reconhecer do porquê que a desigualdade social, criada desde o período escravocrata, ainda persiste em tempos modernos e sua interferência na estrutura política atual.

50

MCBRIDE, Cillian. “Consensus, Legitimacy, and the Exercise of Judgement in Political Deliberation”. Critical Review of International Social and Political Philosophy. 2003. Vol. 6. n.º 3. p. 104-128. 51 MUÑOZ, Cristian Pérez. Deliberación y Democracia: uma respuesta a Gallardo... Op. cit. p. 215. 52 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 180. 53 GALLARDO, Javier. Deliberación Democrática: respuesta a Cristian Pérez Muñoz... Op. cit. p. 181. 54 ABENTE-BRUN, Diego. The Quality of Democracy in Small South American Countries:... Op. cit. 55 HAGOPIAN, Frances. Derechos, representación y la creciente calidad de la... Op. cit. p. 62.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para tanto torna-se oportuno apontar a utilização da teoria apresentada por John Rawls sobre a origem da sociedade e sua teoria da justiça, principalmente no que tange a suposta utilização do “véu da ignorância” no momento em que se firmou-se o contrato primitivo para organização do Estado. Rawls, dentre outras colocações, afirmou que jamais haveria justiça se uma ou algumas pessoas forem prejudicadas ou terem seus direitos violados para beneficiar a maioria da população, mas que algumas agressões poderiam serem praticadas para evitar danos maiores 56. No entanto, tal proteção já era defendida em terrae brasilis por Máximo Nogueira Penido quando este defendia o fim da escravidão alegando que não era legítimo o sacrifício sequer de uma pessoa para proporcionar o bem estar dos demais 57. No mesmo sentido, Rui Barbosa defendia a liberdade dos escravos mesmo com a ocorrência de supostas violações aos direitos de propriedades dos fazendeiros, pois “In duobus malis minus malum est elegendum – entre dois prejuízos opte-se pelo menor”58. A respeito da organização local e proteção aos princípios da liberdade e igualdade, destaca Máximo Nogueira Penido que somente existiria uma boa legislação se ela consultasse as necessidades existentes para a época, e que ela fosse modelada conforme as circunstâncias e conveniência da sociedade, sem que existissem violações de direitos de terceiros 59. Além do que “a igualdade de fato depende da aceitação de desigualdades jurídicas; por isso, é necessário haver ações positivas por parte do Estado.” 60 Nesse momento surge o posicionamento de John Rawls com a suposta realização do contrato primitivo, em que as pessoas da comunidade passariam a organizar a sociedade que estaria inserida. Para a elaboração de um contrato justo, aqueles que elaborariam as normas do contrato, ignorariam suas situações econômicas e seu status dentro do grupo, e passariam a elaborar o regimento de maneira neutra e justa. Para evitar posicionamentos tendenciosos essas mesmas pessoas deveriam ignorar suas qualidades e seus interesses para melhor estabelecerem as regras locais, portanto, faziam uso de um véu da ignorância, ou conforme Junger Habermas, “véu da insciência” 61, no momento de elaborar a regulamentação local. Na formação do Estado brasileiro, do período colonial até a república, percebe-se que as bases apresentadas pela Teoria da Justiça de John Rawls em momento algum estiveram presentes, pois tal período foi marcado pela soberania dos costumes europeus em detrimento de qualquer outro povo que existisse no Brasil, prevalecendo a força e a violações de direitos, posto aqui, a população maciçamente escrava, era vista apenas como meros produtores de matérias primas para sustentar a metrópole. Para Habermas os detentores do poder “sempre tomarão suas decisões a partir do ponto de vista de suas próprias orientações de valor (ou seja, a partir da perspectiva dos cidadãos por eles representados)” 62. Percebe-se então que, na construção do Estado brasileiro em momento algum 56

RAWLS, John. Uma teoria da justiça / John Rawls; tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes. 1997. p. 4-6. 57 PENIDO, Máximo Nogueira. O elemento servil: folheto abolicionista. Rio de Janeiro:Typ. Camoes. 1882. p. 4. 58 BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: questão militar, abolicionismo, trabalhos jurídicos, swift. Tomo I. vol. XIV. 1887. Rio de Janeiro: Ministério da educação e cultura. 1955. p. 55. 59 PENIDO, Máximo Nogueira. O elemento servil: folheto abolicionista. Rio de Janeiro:Typ. Camoes. 1882. p. 5-6. 60 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário/ Eduardo Cambi. – 2 ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 177. 61 HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola. 2002. p. 72. 62 HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro:... Op. cit. p. 64.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 prevaleceu a igualdade entre os membros da sociedade, até mesmo porque havia claramente a existência de menosprezo e repulsa aos negros trazidos para o Brasil, bem como em relação aos demais povos, visto que o Brasil era uma mera colônia, que sustentava o luxo dos dominantes. É nesse momento que aparece mais uma vez a figura de Habermas para afirma que a “imparcialidade é imposta por uma situação que deita um véu de insciência por sobre as partes reciprocamente desinteressadas uma pelas outras”63, ou seja, não há a intenção das pessoas tomarem as decisões sem serem tendenciosas, mas apenas de tomar as decisões que lhes forem mais úteis, não importando o que o próximo entende por justo e correto. Portanto, acreditar que pessoas que vão, de livre e espontânea vontade, utilizar o véu da insciência, ou da ignorância, para tomar as decisões mais sábias, justas e corretas para todos os membros da sociedade é utópico. A problematização apresentada por Habermas da utilização do véu da insciência não se encerra com a elaboração do contrato. Continua a existir. Isso porque, para que seja possível a evolução da sociedade, torna-se indispensável que seus membros continuem a utilizar o famoso “véu”, o que na verdade não ocorre, pois “a imparcialidade do juízo só estaria garantida na condição primitiva”64 e não na elaboração das leis. Por essa razão Habermas afirma que a privação das informações dos representantes 65 do povo é o motivo da continuidade dos problemas políticos, pois mais justa seria a sociedade se todos soubessem quais as verdadeiras intenções e interesses das pessoas ao tomarem um determinado posicionamento. É neste ponto que torna-se importante os apontamentos já realizados sobre a democracia deliberativa. Nas palavras de Habermas, geralmente as normas reguladoras da sociedade são firmadas “sem contar sua autocompreensão ou compreensão de mundos divergentes” 66, sendo inacreditável a ocorrência de um tratamento isonômico entre os diversos grupos ou povos existentes dentro de um Estado. Referências bibliográficas e outras fontes: ABENTE-BRUN, Diego. The Quality of Democracy in Small South American Countries: The Case of Paraguay. The Helen Kellogg Institute for International Studies. 2007. ALVES, Fernando de Brito. Constituição e participação popular. Curitiba: Juruá. 2013. ______. Democracia à portuguesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: questão militar, abolicionismo, trabalhos jurídicos, swift. Tomo I. vol. XIV. 1887. Rio de Janeiro: Ministério da educação e cultura. 1955. BARREDA, Mikel. La calidade de la democracia: um análisis comparado de América Latina. In: Política y Gobierno. vol.18. n.º 2. 2011. p. 265-295. BUNKER, Kenneth; NAVIA, Patricio. Democracia comunal en Chile, 1992-2008. In: Política y Gobierno [online]. vol. 17; n.º 2. 2010. p. 243-278. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário/ Eduardo Cambi. – 2 ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

63

HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro:... Op. cit. p. 64. HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro:... Op. cit. p. 72. 65 HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro:... Op. cit. p. 70. 66 HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro:... Op. cit. p. 72. 64

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO: DIREITO FUNDAMENTAL E HUMANO JUDICIÁVEL

Graziella Ferreira Giostri1

Resumo O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano e fundamental do Estado Democrático Constitucional de Direito Ambiental passível de judicialização pelo fato de ser considerado um verdadeiro direito subjetivo e não meras normas programáticas, e por ser um bem revestido de valor jurídico deverá ser implementado judicialmente diante da inércia do Poder Executivo. O ativismo judicial como mecanismo de efetivação de direitos fundamentais, inclusive na seara ambiental, não viola a teoria da separação dos poderes por ser a própria realização da função jurisdicional, qual seja, de dizer o direito no caso concreto, não podendo se afastar da jurisdição por expressa determinação constitucional. Desse modo, o equilíbrio ecológico do meio ambiente é judiciável na medida em que passa a ser uma das maneiras de se garantir a efetivação de direitos fundamentais, inclusive na esfera ambiental, na sociedade real afastandose da concepção utópica e fictícia de efetividade formal. Palavras-Chave: Meio Ambiente; Equilíbrio Ecológico; Direito Humano; Direito Fundamental; Judicialização.

Abstract The ecologically balanced environment is a fundamental human right and the Democratic Constitutional State of liable to judicialization because it is considered a true subjective right and not mere Environmental Law program standards, and being a well coated legal value should be implemented before court the inertia of the Executive Branch. The judicial activism as the enforcement of fundamental rights mechanism, including environmental harvest, does not violate the theory of separation of powers by being the very fulfillment of the judicial function, which is, to say the right in this case and can not move away from the jurisdiction by express constitutional provision. Thus, the ecological balance of the environment is judiciável in that it becomes one of the ways to ensure the enforcement of fundamental rights, inclsuive in the environmental sphere, in real society away from the utopian and fictitious conception of formal effectiveness. Keywords: Environment; Ecological Balance; Human Right; Fundamental Right; Judicialization.

Introdução

1

Mestranda em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Hélder Câmara – ESDHC; Pós Graduanda em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-Uniderp; Especialização em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp; Especialização em Direito Civil e Processual Civil: Teoria e Prática pelo Centro Universitário UNISEB; Especialização em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp; Bacharel em Direito pela Pontifícia Unversidade Católica de Minas Gerais - PUC-BH

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O presente artigo científico consiste, essencialmente, na análise do ativismo judicial como meio de judicialização de políticas públicas, com o intuito de efetivar o direito fundamental e humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no plano concreto, posto que são direitos subjetivos e não meras normas programáticas, diante da omissão do Poder Executivo na proteção e no cuidado com o meio ambiente. Esta judicialização de políticas públicas ambientais não fere o princípio da separação de poderes porque o Judiciário pauta-se pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, o que implica a necessidade de atuação diante de provocação. Neste caso, o direito previsto quando não implementado pelo Poder Executivo não pode servir de obstáculo para a atuação jurisdicional no caso concreto, pois o cidadão não pode ficar dependendo da atuação do administrador público para ter os seus direitos historicamente reconhecidos implementados. A Constituição da República de 1988 revelou ser um marco no amparo do meio ambiente no Brasil, ao tutelar a dignidade do ser humano também na sua dimensão ambiental, garantindo o direito à sadia qualidade de vida para as gerações presentes e futuras, diversamente do positivado pelas Constituições anteriores, que na verdade tutelavam o meio ambiente de forma indireta legitimando objetivamente a exploração econômica. Esta revolução democrática ambiental trazida pela Carta Política de 1988 sofreu influência das diversas questões ambientais levantadas pela humanidade devido a explorações constantes do meio ambiente, que acarretou no advento da Declaração de Estocolomo de 1972. A presente pesquisa irá demonstrar que, com a evolução dos modelos estatais e consequentemente a mudança no enfoque institucional do órgão garantidor dos direitos fundamentais, a implementação de políticas públicas pelo Judiciário, no atual modelo estatal, qual seja, Estado Democrático Constitucional de Direito, na sua vertente ambiental, não desrespeita o princípio da separação dos poderes visto que direitos fundamentais, direitos humanos positivados internamente, não são meras normas programáticas e sim autênticos direitos subjetivos e como tais devem ser implementados no caso concreto. Portanto, o cidadão, grande protagonista da democracia atual, com viés participativo, não pode simplesmente ficar à espera da realização do mérito do administrador para desfrutar os seus direitos positivados implementados, posto que direitos subjetivos, surgindo aí a legitimidade constitucional para o ativismo judicial na esfera dos direitos fundamentais ambientais, afirmando a possibilidade de judicialização de políticas públicas para a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as populações contemporâneas e vindouras.

1 Evolução Constitucional Brasileira da Proteção ao Meio Ambiente

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O meio ambiente teve proteção constitucional no Brasil a partir da Constituição da República de 1891, sendo este o primeiro documento constitucional responsável pela tutela ambiental. A preocupação em salvaguardar juridicamente o bem ambiental estava restrito a a recursos naturais específicos relacionados à tutela dos interesses da burguesia. Assim, em virtude dessa salvaguarda estritamente econômica dos recursos naturais, teve uma singela proteção às terras e às minas como forma de regulamentar a exploração do solo com o assentimento do Estado. Por estar vivendo sob a égide do liberalismo econômico tradicional 2, esta Carta Constitucional de 1891, nos moldes do Texto de 1824, não fez nenhuma proteção expressiva ao meio ambiente por entender que o Estado não deveria intervir na atividade econômica e nas consequências que a exploração desta atividade poderia acarretar. Nos dizeres de Américo Luís Martins da Silva3

(...) a Constituição Republicana de 1891, tanto quanto a Constituição Imperial de 1824, adotou a fórumula laissez-faire, laissez-passer. De maneira que o pensamento predominante na sua elaboração foi aquele segundo o qual o Estado não deveria intervir nas atividades econômicas nem nas agressões por elas causadas ao meio ambiente e as recursos naturais renováveis. Constata-se que a regulamentação constitucional no período supramencionado não objetivava amparar o meio ambiente como valor fundamental e sim atender a finalidades utilitaristas de uma classe dominante onde o resguardo dos recursos naturais estava estritamente relacionado com o valor econômico advindo da atividade exploratória dos mesmos. A (des) proteção era uma forma de permitir a exploração dos recursos ambientais para aqueles que faziam da natureza uma atividade meramente lucrativa. Nesse sentido de preponderância da desproteção ambiental no Brasil, afirma José Afonso da Silva4 que a “concepção privatista do direito de propriedade constituía forte barreira à atuação do Poder Público na proteção do meio ambiente, que necessariamente haveria e haverá de importar em limitar aquele direito e a iniciativa privada”. A Constituição de 1934, por sofrer forte influência da social democracia surgida pós primeira guerra mundial, afasta-se um pouco do modelo liberal clássico inicial passando a intervir na atividade econômica para atender os interesses finalísticos do Estado. As primeiras Constituições 2

O principal teórico do liberalismo econômico foi Adam Smith. O liberalismo esteve intrinsicamente relacionado com o sistema econômico capitalista, sendo o alicerce do desenvolvimento econômico industrial do século XIX. A prosperidade econômica e a acumulação de riquezas, ideias principais do liberalismo econômico, são alcançadas através do trabalho livre, sem nenhuma atuação de agentes regulador ou interventor. A lei da oferta e da procura e a livre concorrência permitem ao mercado dispor de mecanismos próprios de regulação, a chamada mão invisível, sem a utilização de intervenções na economia. (SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Uma Investigação sobre a Natureza. São Paulo: Madras Editora, 2009). 3 SILVA, Américo Luís Martins da Silva. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 491. 4 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 35.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 a elencarem em seu texto valores sociais democráticos foram as Constituições do México de 1917 e a de Weimar de 1919, servindo de parâmetros normativos para a Constituição de Portugal de 1976 e a Constituição da Espanha de 1978. O Texto Constitucional de 1934, seguindo essa vertente positiva de atuação e proteção, passa a exercer o domínio sobre a atividade exploratória dos recursos naturais existentes abaixo da linha do solo. Conforme entendimento manifestado por Américo Luís Martins da Silva 5

(...) o art. 118 da Constituição Federal de 1934 determinou a separação da propriedade do solo e do subsolo; as minas e demais riquezas do subsolo, deixando de ser dos particulares para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial, passando a se desenvolverem sob o controle do Estado. A Constituição de 1934, nos mesmos moldes da anterior, conservava características de proteção utilitarista, o que prevaleceu na Carta de 1946 e 1967. Entretanto, embora essas Constituições não apresentassem uma defesa efetiva do meio ambiente, elas foram documentos importantes pelo fato de terem ampliado significativamente as regulamentações acerca do subsolo, mineração, e até mesmo acerca da fauna e água. 6 As

transformações

econômicas

e

sociais

ocorridas

no

mundo

devido

ao

modelo

desenvolvimentista e industrial adotados pelos países, onde o argumento do avanço justificava a degradação do nosso lar ambiental, acarretaram diversos problemas ambientais. Assim, percebese no cenário internacional, em virtude da sequência de atos exploratórios dos seres humamos na natureza, uma preocupação em torno da questão ambiental por perceberem que o meio ambiente começava a dar sinais de que havia algo errado. Essa preocupação com os danos causados ao meio ambiente, que refletiam diretamente nos próprios seres humanos degradadores, aumentou as discussões no âmbito internacional em relação a crise ecológica instaurada no planeta terra. Esses questionamentos culminaram na Conferência de Estocolomo, realizada em 1972 na Suécia, que foi considerada o grande marco do movimento ecológico mundial por tratar dos problemas ambientais como obstáculos de toda a humanidade. É através desta Conferência que a proteção ao meio ambiente passa a ser considerada direito humano por ser imprescindível o

5

SILVA, Américo Luís Martins da Silva. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 491, p. 495. 6 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 62.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 resguardo ambiental para se vivenciar no presente e no futuro um vida sadia e com qualidade. Nas palavras de Eduardo Biacchi Gomes e Bettina Augusta Amorim Bulzico 7

Tendo em vista a necessidade de reverter a previsão de um planeta com escassez de recursos naturais, em 1968, por indicação do Conselho Econômico-Social das Nações Unidas, surgiu a ideia de organizar um encontro de países para debater a proteção ao meio ambiente. A proposta foi uma iniciativa da representação sueca junto ao referido Conselho, devido aos problemas que enfrentava com a incidência de chuvas ácidas sobre seu território, causadas por emissões poluentes nas instalações industriais localizadas na Alemanha e na Inglaterra. A professora Beatriz Souza Costa 8, no mesmo sentido assevera que

A Organização das Nações Unidas (ONU), ao visualizar os graves problemas do mundo, como poluição hídrica e poluição atmosférica, poluição por agrotóxicos, além de outros impactos, como o de desmatamento, decidiu realizar a primeira grande conferência sobre o meio ambiente e desenvolvimento humano, em Estocolmo, Suécia, em 1972, quando essas e outras questões foram discutidas, sem muito consenso. Após vinte anos, realizaou-se a reunião no Rio de Janeiro, a “ECO-92”, e, e 2002, a Cúpula Mundial, realizada em Johannesburgo, África do Sul. Os questionamentos acerca do meio ambiente

após a década de 1970 e a realização da

Conferência de Estocolmo influenciaram a constitucionalização da tutela ambiental no Brasil com o advento da Constituição da República de 1988. A promulgação da Carta Fundamental de 1988, em harmonia com as predisposições internacionais acerca da proteção ambiental, acabou por dedicar um capítulo específico intitulado “Do Meio Ambiente”, passando a tutelar de forma efetiva o bem ambiental afastando-se de uma normatização puramente econômica para uma palpável proteção jurídica ambiental. Assim, nos dizeres de Luís Paulo Sirvinskas, a Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, “foi a primeira a inserir a expressão “meio ambiente”, colocando-a em destaque em capítulo póprio e dentro da ordem social.” 9 Neste sentido acrescenta Benjamim10

Como se vê pela sucinta análise das constituições anteriores, foi possível sair “do estágio da miserabilidade ecológica constitucional, própria das 7

GOMES, Eduardo Biacchi, BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Soberania, Cooperação e o Direito Humano ao Meio Ambiente. In: GOMES, Eduardo Biacchi, BULZICO, Bettina Augusta Amorim (orgs) Sustentabilidade, Desenvolvimento e Democracia. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 53. 8 COSTA, Beatriz Souza. O Gerenciamento Econômico do Minério de Ferro Como Bem Ambiental no Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora Fiuza, 2009, p. 32. 9 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Constitucional do Meio Ambiente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 57. 10 BENJAMIN, Antônio Herman V. O meio ambiente na Constituição Federal de 1988. In: KISHI, Sandra Akemi Shimada, e OUTRAS (coord.). Desafios do direito ambiental no século XXI. São Paulo: Maalheiros, 2005, p. 366.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Constituições liberais anteriores, para outro, que, de modo adequado, pode ser apelidado de opulência ecológica constitucional, pois o capítulo do mei ambiente nada mais é do que o ápice ou a face mais visível de um regime constitucional que, em vários pontos, dedica-se, direta ou indiretamente, à gestão dos recursos ambientais. Constatando a relevância da proteção ambiental a partir do marco normativo histórico constitucional, Norma Sueli Padilha11 reconhece que

A Constituição Federal de 1988 representa o marco regulatório da normatividade ambiental brasileira que permitiu a regulação dos inúmeros fenômenos que atentam contra o equilíbrio do meio ambiente e a qualidade de vida, assentando os alicerces sobre os quais se eleva a construção do Direito Constitucional Ambiental, por meio de uma abordagem holítica do meio ambiente, que propicia o alargamento da proteção jurídica para todo o conjunto de condições que possibilitam a sadia qualidade de vida e em todas as suas formas. Dessarte, o surgimento do nosso Texto Maior em 1988 representou um marco na proteção ambiental no Brasil, pois passou a garantir efetivamente a tutela do bem ambiental como forma de agasalhar a dignidade da pessoa humana em mais uma de suas formas, a ambiental, garantindo uma existência digna para as presentes e futuras gerações.

2 Meio Ambiente A denominação “meio ambiente”, conforme manifestado por Luís Paulo Sirvinskas12 “surgiu, pela primeira vez, na obra Études progressives d’um naturaliste, datada de 1835, pelo francês Geoffroy de Saint-Hilaire, e foi utilizada por Augusto Comte em sua obra Curso de filosofia positiva.” O conceito de meio ambiente, segundo José Afonso da Silva 13, é “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.” Também em relação à definição de meio ambiente Américo Luís Martins da Silva14 acrescenta

11

PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos Constitucionais do Direito Ambiental Brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 116. 12 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Constitucional do Meio Ambiente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 20. 13 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.2. 14 SILVA, Américo Luís Martins da Silva. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 52/53.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Quanto ao que se convencionou denominar “meio ambiente” (environment, em inglês; environment, em francês; ou medio ambiente, em italiano), pode significar várias coisas: 1. As circunvizinhanças de um organismo, incluindo as plantas, os animais e os microorganismos com os quais ele interage; 2. O mundo biótico (de seres vivos e abiótico (de coisas sem vida); 3. O meio físico, químico e biológico de qualquer organismo vivo; 4. O conjunto de todas as condições e influências externas que afetam a vida e o desenvolvimento de um organismo. Celso Antonio Pacheco Fiorillo15 afirma que “meio ambiente é conceito jurídico indeterminado, mas compreende como um conceito unitário, em que é regido por vários princípios, diretrizes e objetivos compostos pela Política Nacional do Meio Ambiente.” A lei ordinária federal 6938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, no âmbito brasileiro, no inciso I do art. 3º define legalmente o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” 16. Esta definição legal é incompleta visto que retira o homem do conceito de meio ambiente, restringindo-se apenas ao caráter natural ao elevar o conceito apenas como sinônimo da natureza. Nos dizeres de Américo Luís Martins da Silva17

Tal definição não tem o componente humano, como se o homem fosse deslocado do meio ambiente. Portanto, segundo a concepção adotada pela Lei federal 6.938, de 31.08.1981, fazem parte do meio ambiente tãosomente as florestas, as matas, os animais, os rios, o solo e o ar. Todavia, vem se pacificando que o homem não pode ficar de fora do conceito de meio ambiente, já que este último tem sido vítima das mais variadas ações humanas (ações antrópicas sobre a natureza e sobre o próprio homem), de uma forma catástrofica, provocando uma degradação dos recursos naturais e dos ecossistemas, por outro lado, o próprio homem tem adotado uma gestão ambiental relativa. Daí tal definição legal vir sendo considerada incmpleta já que se restringe ao caráter biológico do meio ambiente. A definição constitucional de meio ambiente está inserida no artigo 225, Caput da CR/198818 ao expressar que

15

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 20. 16 BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 02 de setembro de 1981. 17 SILVA, Américo Luís Martins da Silva. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 56/57. 18 BRASIL. Constituição da República de 1988. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Art. 225- todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O conceito trazido pela Constituição de 1988 sofreu influências de diversos textos constitucionais, entre eles a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Espanhola de 1978, além das inspirações oriundas da Conferência da ONU em Estocolmo na Suíça em 1972. Helita Barreira Custódio19, sob influência constitucional, descreve o meio ambiente como sendo (...) o conjunto tanto de circunstâncias e de relações recíprocas reguladas pelas leis naturais de ordem física, química e biológica como de fatores sócio-econômico-culturais disciplinados pelas leis humanas integrantes do Direito Positivo, que, de forma vinculada e interdependente, assegura condições favoráveis de existência, desde a concepção, a germinação ou qualquer outra circunstância originária, ao nascimento, ao desenvolvimento, à preservação e à continuidade da vida, em seus diversos ciclos normais evolutivos, da pessoa humana e dos demais seres vivos (animais, vegetais e microorganismos em geral). Muitos são os conceitos de meio ambiente trazidos pela doutrina e pela legislação, tendo em vista a infinidade de significados abarcada pelo termo. Trata-se de tarefa difícil encontrar um conceito completo, que consiga abarcar o significado jurídico previsto no Texto Constitucional. A definição que parece ser a mais completa e que consegue abranger a significação jurídica da Constituição foi a trazida pela professora Beatriz Souza Costa, ao introduzir a harmonia e a solidariedade na acepção ambiental. Reproduzindo os seus pensamentos considera-se “meio ambiente o conjunto de elementos naturais e artificiais partilhados com todos os seres humanos e não humanos, necessários ao desenvolvimento equilibrado dessas espécies da forma mais harmônica e solidária possível.”20 O alcance dado a harmonia e a solidariedade na compreensão acerca do meio ambiente, conforme os ensinamentos da professora Beatriz Souza Costa 21, se revela da seguinte maneira

A harmonia é considerada como um fenômeno da natureza que se autoregula quando alguns de seus elementos saem do parâmetro da normalidade. A solidariedade, a qual sempre se pensou ser uma qualidade somente dos humanos, também é um adjetivo dos animais irracionais. Esse “sentimento” de solidariedade animal pode ser percebido quando um animal de uma raça 19

CUSTÓDIO, Helita Barreira. Direito Ambiental e Questões Jurídicas Relevantes. Campinas, SP: Millennium Editora, 2005, p. 82. 20 COSTA, Beatriz Souza. Meio ambiente como direito à vida no direito comparado. 2003. 191 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003, p. 91. 21 COSTA, Beatriz Souza. Meio ambiente como direito à vida - Brasil Portugal Espanha. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2010, p. 57/58.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 adota, como seu, filhote de outra raça. Fica-se surpreendido com o que se pode aprender com o mundo animal. A Constituição de 1988 inaugura a proteção de forma efetiva do meio ambiente ao protegê-lo como um direito fundamental, indispensável a existência humana de forma digna e sadia, afastando de forma expressiva o caráter utilitarista e de inesgotabilidade dos recursos naturais. Esta tutela eficaz do meio ambiente surge para combater a exploração ambiental desenfreada que compromente a vida saudável dos seres humanos atuais e ulteriores. Desse modo, a nossa Carta Magna de 1988 cobre-se com o manto verde da natureza para resguardar o meio ambiente das explorações predatórias, totalmente desprovidas de responsabilidade ambiental, que acarretaria o desaparecimento das matas, mares, animais e consequentemente dos seres humanos.

3-Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: Direito Fundamental e Humano

A Constituição da República de 1988, ao tratar do meio ambiente ecologicamente equilibrado, introduz a proteção ambiental de forma expressa e efetiva ao elevá-lo a categoria de direito fundamental no plano normativo brasileiro, passo este muito importante para o viver com uma sadia qualidade de vida. Esta escolta constitucional do meio ambiente como direito fundamental teve origem na sua ascensão como direito humano pela Declaração de Direitos do Homem de 1948, de forma implícita, e pela Declaração de Estocolmo de 1972, de forma expressa. Assim, o direito ao meio ambiente sadio é um direito fundamental e humano das coletividades sociais planetárias. Para avançar no tema, faz-se necessário diferenciar direitos humanos de direitos fundamentais. Muitos doutrinadores tratam os termos como sinônimos, mas apesar de serem semelhantes há uma diferença conceitual entre os mesmos. Coadunando com este entendimento da diferença das expressões Ingo Wolfgang Sarlet22 declara que

direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independente de sua vinculação com deterkinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). 22

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 31.

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No mesmo sentido da distinção assevera Canotilho

(...) a positivação de direitos fundamentais significa a inserção no ordenamento jurídico positivo dos direitos considerados naturais e inalienáveis do indivíduo. Não meramente uma qualquer positivação. É imperioso assinar-lhes a dimensão de direito fundamental, colocada no patamar superior das fontes do direito: as normas constitucionais. Sem essa positivação jurídica, os direitos humanos são apenas esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou ainda, retórica política, mas não direitos garantidos sob o escudo de normas (regras e princípios) de direito constitucional.23 Assim, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como uma das diversas facetas dos direitos humanos foi insculpido de forma expressa pela Declaração de Estocolmo de 1972, em seu Princípio 1, nos seguintes termos:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade, e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio cuja qualidade lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras. Acompanhando o caráter de contigência dos direitos humanos, na sua dimensão ambiental, a Declaração do Rio de 199224 afirma em seu Princípio 1 que “os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.” Na verdade, a Conferência das Nações Unidas sobre meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO92) acompanha as diretrizes ambientais desenvolvidas em Estocolomo ao tratar o direito ambiental como direito humano fundamental à existência digna e sadia de todos os seres humanos, validando o conceito de desenvolvimento sustentável. Edson Ferreira de Carvalho 25 entende que “o direito humano à proteção ambiental abrange uma síntese de direitos construídos no esforço para proteger o meio ambiente, bem com a vida humana e sua dignidade.” 23

BARBOSA, Erivaldo Moreira. Água doce: Direito Fundamental da Pessoa Humana. In: FARIAS, Talden, COUTINHO, Franciso Seráphico da Nóbrega (coords). Direito Ambiental: O Meio Ambiente e os Desafios da Contemporaneidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 39. 24 “A “Eco-92” veio consagrar a noção de desenvolvimento sustentável. Essa expressão apareceu pela primeira vez em 1980, em um documento denominado World Conservation Strategy, produzido pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e World Wildlife Fund. O desenvolvimento desse trabalho foi requerido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Seu fundamento era descobrir uma forma de preservação do meio natural sem, no entanto, restringir o desenvolvimento econômico. Surge, assim, o conceito de desenvolvimento sustentável, que é entendido como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades.” COSTA, Beatriz Souza. O Gerenciamento Econômico do Minério de Ferro Como Bem Ambiental No Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora Fiuza, 2009, p. 34. 25 CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio Ambiente & Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 181.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Ademais, essa proteção internacional do meio ambiente enquanto direito humano, antes tema afeto apenas aos Estados soberanos, passou a ser tratado sobre uma perspectiva global, para além das fronteiras geográficas dos Estados, com o intuito de demonstrar o caráter universal do meio ambiente. Esse atributo da universalidade propaga-se na seguinte medida: para que os seres humanos tenham uma existência digna, sadia e com qualidade, necessitam que a sua casa, planeta terra, possa ser preservado assegurando o seu equilíbrio ecológico. Ratificando a natureza universal do meio ambiente Carla Simone Beuter 26 declara

Nesse sentido, ao lado do desenvolvimento e da globalização, uma nova cidadania carece surgir, em que pese o direito à vida, à igualdade de condições, a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, enfim, passa a englobar todo o ser humano e as futuras gerações que busca na equidade ações transformadoras e humanitárias. A dimensão planetária requer uma consciência ecológica que é a formação da consciência espiritual da pessoa humana como único ponto de apoio que devemos observar, convertendo-se a uma nova visão. A meta a ser atingida é de que possamos pensar num futuro que ofereça possibilidades e condições para todas as pessoas do planeta. No entanto, esse processo requer ação, e isso importa dizer que devemos nos desprender de uma concepção mecanicista para uma visão holística e ecológica, que há de contribuir para encontrarmos um ponto comum com a igualdade, ou seja, a solidariedade. Eduardo Biacchi Gomes e Bettina Augusta Amorim Bulzico 27 estabelece a conexão entre proteção ambiental e direitos humanos da seguinte maneira:

A primeira característica do meio ambiente enquanto direito humano diz respeito ao objeto a ser tutelado por suas normas. Sendo o meio ambiente ecologicamente equilibrado um objeto de ampla conceituação, é importante que seja envolto de proteçõ em todas as suas vertentes, principalmente no que tange à sua dimensão natural e sociocultural, com o intuito de assegurar a dignidade da pessoa humana. (...) Quando se fala em coletividade é possível compreender a segunda característica do meio ambiente enquanto direito humano: aspecto difuso de sua tutela. A proteção dos interesses difusos destina-se, em última análise, a um grupo de pessoas indeterminadas. Em outras palavras, tendo em vista sua vocação comunitária, é irrelavante a determinação subjetiva dos sujeitos que integram a coletividade.

26

BEUTER, Carla Simone. Cidadania Planetária: uma nova percepção socioambiental que contempla o meio ambiente como um direito humano fundamental, p. 116. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes, PAVIANI, Jayme. Um Olhar para a Cidadania e Sustentabilidade Planetária. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006, p. 115/132. 27 GOMES, Eduardo Biacchi, BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Soberania, Cooperação e o Direito Humano ao Meio Ambiente. In: GOMES, Eduardo Biacchi, BULZICO, Bettina Augusta Amorim (orgs) Sustentabilidade, Desenvolvimento e Democracia. Ijuí: Editora Unijuí, 2010, p. 60/61.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O direito humano e fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilbrado está estritamente relacionado à noção de desenvolvimento sustentável, posto que o desenvolvimento econômico deve ser pautado pela conservação do meio ambiente para as gerações presentes e futuras com vistas a salvaguardar a existência sadia e com qualidade da pessoa humana. Destarte, surge a necessidade mundial de discutir metas para se alcançar um ecodesenvolvimento onde há a harmonia entre o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente, abarcando, desta forma, o conceito de desenvolvimento sustentável. A consagração do direito fundamental e humano ao meio ambiente, equilibrado ecologicamente, na Carta Fundamental de 1988 em seu artigo 225, Caput, tem um duplo significado no entendimento de Solange Teles da Silva28, qual seja,

a) em primeiro lugar afirma o valor do meio ambiente para assegurar a dignidade humana. O fundamento da constitucionalização do direito ao meio ambiente é a própria dignidade da pessoa humana, das gerações presentes e futuras. De maneira mais abrangente é possível afirmar que o fundamento da consagração de um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é a dignidade da vida em todas as suas formas. Trata-se de assegurar a continuidade da vida no planeta, fundada na solidariedade humana no tempo e no espaço; b) em segundo lugar, o direito ao meio ambiente é transformado em norma constitutiva fundamental da ordem jurídica, meio necessário para que o indivíduo e a coletividade, ambos possam desenvolver todas as suas potencialidades e enfim, para que a vida social possa ser conduzida para alcançar o desenvolvimento sustentável. O direito ao meio ambiente sadio tem assim uma natureza multifacetada, com dupla dimensão: individual e coletiva, podendo-se evidenciar uma ampla gama de titulares – indivíduos e grupos – e sua concretização se manifesta sobretudo em sua dimensão “social”. Aliás, o texto constitucional é revolucionário ao garantir não apenas direitos individuais, mas a todas as gerações presentes e futuras. A expressão “meio ambiente ecologicamente equilibrado” significa ter o propósito de assegurar, para todo os seres humanos do planeta, presentes e futuros, a sadia qualidade de vida. Mas como garantir sadia qualidade de vida às pessoas humanas? Uma das formas de proporcionar qualidade de vida as pessoas humanas é oportunizar políticas públicas de desenvolvimento econômico e social que garantam o acesso a direitos fundamentais individuais, sociais, econômicos, culturais e solidários dentro de um meio ambiente sadio com a preservação da qualidade de vida através do equilibrio ecológico ambiental. Por conseguinte, toda a humanidade tem direito de usufruir de condições adequadas de vida, ou seja, vida com dignidade, e isto só será alcançado a partir de um meio ambiente ecologicamente 28

SILVA, Solange Teles da. Direito Fundamental ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: avanços e desafios. In: Revista de Direito Ambiental, 48, 2007, p. 229/230.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 preservado e equilibrado. Assim, a Carta Fundamental de 1988 outorgou sinal de essencialidade ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ao transformá-lo em direito fundamental do homem com a positivação expressa alicerçada enquanto direito humano, pois o equilíbrio ecológico é imprescindível para garantir a sadia qualidade de vida da humanidade, traduzindo uma nova irradiação do direito à vida, na medida em que este direito abrange a manutenção das condições ambientais em equilíbrio para acautelar e propriciar a própria vida da humanidade.

4-Estado

Democrático Constitucional de Direito Ambiental: modelo implementador de

políticas públicas ambientais definidas pelos direitos fundamentais

A Constituição da República de 1988 estabelece um modelo de Estado federal e democracia semidireta onde os mecanismos de participação direta da sociedade nas decisões políticas do Estado se tornam cada vez mais necessárias para o aperfeiçoamento da democracia constiucional brasileira. Neste sentido, o Poder Judiciário vem sendo a ponte entre a sociedade e os direitos fundamentais expressos no Texto Constitucional, tornando-se a voz das coletividades humanas ao dizer o direito no caso concreto, transformando a norma estática em dinâmica, onde a inércia jurídica é ressucitada. No modelo atual de Estado Democrático Constitucional de Direito Ambiental o Poder Judiciário passa a ser o responsável primordial pela efetivação dos direitos fundamentais através da implementação de políticas públicas sem ocorrer o desrespeito a teoria da separação dos poderes. Para conseguir visualizar este modelo ativista, compartilhado, coordenado e atual de Estado e democracia faz-se imprescindível a análise da evolução histórica dos modelos de Estado para identificar o papel de cada um dos Poderes estatais na ótica da realização dos direitos fundamentais, igualmente na sua inclinação ambiental. Sob esta perspectiva, tem-se os paradigmas de Estado Liberal Clássico, Social e Democrático Constitucional, sendo que cada modelo sobrevaloriza uma função específica estatal. O Estado Liberal clássico, desenvolvido no século XIX, representou a ruptura do modelo absolutista através da positivação dos direitos individuais relacionados a liberdade e a propriedade. O pefil estatal se caracterizava pela não intervenção, pois acreditava que a sociedade, nos mesmos moldes da economia, se autoregulava por si só. Neste período havia uma sobrevalorização das funções legislativas, na figura do Poder Legislativo,

pelo fato do

exemplo absolutista anterior ter sido construído à margem da legalidade. Nos dizeres de Hermes Zaneti Jr.29 29

ZENETI JR., Hermes. A Teoria da Separação de Poderes e o Estado Democrático Constitucional: Funções de Governo e Funções de Garantia. In: GRINOVER, Ada Pellegrini, WATANABE, Kazuo (coords). O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013, p. 38.

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As declarações de direitos eram apenas nominativas, e a Constituição tinha por principal função ordenar os diversos ramos do Poder. O Estado Legalista era reativo e deixava ao Poder Judiciário uma esfera muito fraca de intervenção – ao Judiciário era imputada apenas a fatia corretiva, ou seja, a justiça retributiva e a defesa dos direitos individuais dos cidadãos. O Direito era dominado pelas codificações (Era dos Códigos), adotando-se o modelo do sistema fechado e completo, com pouco ou nenhum espaço para a tividade interpretativa. Marcava-se rigidamente a summa divisio: direito público/direito privado. Este modelo identifica-se, dessarte, como uma justiça para a manutenção do status quo. O Estado Social, também conhecido como Welfare State, surgiu como resposta ao modelo liberal clássico não intervencionista que não conseguia satisfazer aos reclames sociais advindos, principalmente, dos impactos da revolução industrial no início do século XX. O “Bem Estar Social” estatal se caracterizou como um modelo positivador de direitos sociais, econômicos e culturais e pela atuação positiva do Estado na busca de regular de forma igualitária as relações sociais e econômicas.30 Nos dizeres de Carlos Miguel Herrera31

Os desenvolvimentos constitucionais na segunda metade do século XX debilitarão a relação entre constitucionalização de direitos sociais e mudança social. Com efeito, esta segunda onda de constitucionalismo social, que surge em países liberados de ditaduras totalitárias, vai constitucionalizar os direitos sociais em uma direção particular, a da integração social. É também o momento em que se opera uma coincidência entre o reconhecimento dos direitos sociais e o desenvolvimento de um Estado intervencionista de novo tipo, o Estado de Bem Estar. Nesta constelação concreta e complexa fixam-se os fundamentos jurídicos dados aos direitos sociais até nossos dias. No protótipo social estatal há a valorização do Poder Executivo como sendo o principal ator determinado a efetivar as promessas acerca dos direitos fundamentais positivados feitas pelo Legislador. Ao contrário do modelo liberal clássico, onde a figura do juiz era não ativista, o modelo do bem estar social estatal inicia a postura do ativismo judicial, mas de forma moderada. 32 30

“A história constitucional tem oficialmente a sua certidão de nascimento com a Constituição alemã de 11 de agosto de 1919. Mas, para dizer a verdade, esta já tem um precedente fundamental na Constituição mexicana de 5 de fevereiro de 1917, elaborada em Querétaro. Se este antecedente não pode ser evitado, não se trata de um simples (e inúltil) gesto de reudição: encontramos ali, estabelecida pela primeira vez em um texto constitucional que alcanaçará vigência, a relação específica entre direitos sociais e revolução inconclusa.” HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. In: SOUSA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (orgs). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 13. 31 HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. In: SOUSA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (orgs). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 18. 32 “(...) a função jurisdicional começa a migrar da tradicional postura passiva para uma postura mais ativa. Além disto, a migração para o controle pelo Judiciário não se deu por completo. Na doutrina existiu grande controvérsia à época, e também nos dias atuais, sobre a postura do juiz, ativista (judical activism) ou autocontido (judicial restraint).”

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O modelo estatal atual se caracteriza por agregar elementos de participação popular nas questões públicas e consequentemente garantir ao destinatário 33 da lei e das decisões estatais participar do processo de formação dessas vontades públicas. Tem como peculiaridade a positivação de direitos relacionados a solidariedade e fraternidade, denominado de direitos difusos e coletivos, como por exemplo o meio ambiente e os direitos dos consumidores, que são conquistados ao longo da história pela sociedade nos mesmos moldes da contigência dos direitos fundamentais/humanos. Outra particularidade é a valorização do Poder Judiciário como o responsável principal pela implementação de políticas públicas judicialmente, inclusive na seara ambiental, no caso da ineficiência do Poder Executivo. Segundo os ensinamentos de Vicente Bellver Capella34

O Estado de Direito Ambiental é definido como a forma de Estado que se propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável, orientado a buscar a igualdade substancial entre os cidadãos, medinte o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural. Isso posto, na falta ou ineficiência do Poder Legislativo, em fazer leis em consonância com a evolução social, e do Executivo, em aplicar políticas públicas para atender os reclames sociais concernentes a positivação e efetivação dos direitos fundamentais, deve o Poder Judiciário não se olvidar de sua atribuição constitucional lastreada no princípio da inafastabilidade da jurisdição, e, consequentemente implementar políticas públicas estatais garantindo a eficácia dos direitos positivados no caso concreto. Assim, o Estado Democrático Constitucional de Direito Ambiental é o permitidor constitucional da atuação ativista do Poder Judiciário frente a efetivação de direitos fundamentais, em todas as suas dimesões, pela inércia do Poder Executivo, pois direito estático é direito morto enquanto direito dinâmico é direito vivo. Portanto, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano fundamental judiciável.

ZENETI JR., Hermes. A Teoria da Separação de Poderes e o Estado Democrático Constitucional: Funções de Governo e Funções de Garantia. In: GRINOVER, Ada Pellegrini, WATANABE, Kazuo (coords). O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013, p. 39. 33 “”Os destinatários do direito ambiental brasileiro são os destinatários da norma constitucional, com base nos princípios fundamentais que organizam todo o sistema jurídico em nosso país. Daí estar absolutamente evidenciado que, em decorrência dos fundamentos do estado Democrático de Direito brasileiro (art. 1º), os destinatários do direito ambiental brasileiro são as pessoas humanas apontadas em face de sua condição de cidadania, abrcadas que são pela soberania no plano de nossa Constituição Federal, revelando os brasileiro e estrangeiros residentes no País (art. 5º, Caput) como so principais personagens, os verdadeiros protagonistas em torno dos quais veio ser construído o direito constitucional ambiental brasileiro. (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Princípios do Direito Processual Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53.) 34 CAPELLA, Vicente Bellver. Ecología: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994, p. 248. In: FARIAS, Talden, COUTINHO, Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho (coords). Direito Ambiental- O meio Ambiente E Os Desafios Da Contemporaneidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 119.

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5-O Modelo Democrático Estatal Ativista e a Separação de Poderes

O Estado Democrático Constitucional tem a característica de ser um modelo de envolvimento ativista, compartilhado e coordenado na implementação de políticas públicas, principalmente as relacionadas a preservação do meio ambiente, embasadas nos direitos fundamentais positivados. Este ativismo estatal concentrado na esfera do Poder Judiciário não pode ser visto como desrespeito a teoria da separação dos poderes, pois os cidadãos, que são os verdadeiros destinatários das normas jurídicas, não podem ficar à espera da atuação simbólica do Poder Legislativo e da realização do mérito do Poder Executivo, devendo ter o seu direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado garantido efetivamente no caso concreto. E, para isso acontecer, não importa se o direito fundamental foi concretizado pela atuação jurisdicional ou executiva, pois o que na verdade importa é a implementação deste direito, o que não desrespeita a teoria da separação dos poderes visto que as divisões das funções estatais não ocorrem em caráter de exclusividade e sim de preponderância. A Corte Constitucional coaduna com o entendimento supramencionado de permitir o ativismo judicial, de forma excepcional, enquanto instrumento implementador de políticas públicas como verdadeiras medidas assecuratórias dos direitos fundamentais, principalmente na sua dimensão histórico ambiental: 29/04/2014 SEGUNDA TURMA AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 834.937 MINAS GERAIS RELATOR :MIN. GILMAR MENDES AGTE.(S): MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE AGDO.(A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS INTDO.(A/S) :COMPANHIA DE SANEAMENTO DE MINAS GERAIS COPASA/MG ADV.(A/S): SOLANGE ALVES DO NASCIMENTO E OUTRO(A/S) INTDO.(A/S): DER/MG - DEPARTAMENTO DE ESTRADAS DE RODAGEM DO ESTADO DE MINAS GERAIS ADV.(A/S): ADVOGADO-GERAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS 1. Agravo regimental no agravo de instrumento. 2. Direito à moradia e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ocupação irregular de margens de rodovia estadual. Comprovação de omissão de fiscalização por parte da municipalidade. 3. Necessidade de revolvimento do conjunto fáticoprobatório dos autos. Incidência da Súmula 279 do STF. 4. Obrigação de fazer. Medidas assecuratórias. Alegada ofensa ao princípio da separação

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 dos poderes. Improcedência. Precedentes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.35 (Grifo Nosso) Reiterando esse entendimento de manutenção da independência dos poderes quando da atuação positiva do Poder Judiciário na resolução dos problemas reais da sociedade, garantindo aos cidadãos a dimensão concreta dos direitos fundamentais, pricipalmente na dimensão ambiental, o STF também se manifestou no mesmo sentido retromencionado em outro julgado 20/03/2012 PRIMEIRA TURMA AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 417.408 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI AGTE.(S): COMPANHIA ESTADUAL DE ÁGUAS E ESGOTOS - CEDAE ADV.(A/S): ISAAC ZVEITER E OUTRO(A/S) AGDO.(A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA INTDO.(A/S): ESTADO DO RIO DE JANEIRO PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Ação civil pública. Defesa do meio ambiente. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. Esta Corte já firmou a orientação de que é dever do Poder Público e da sociedade a defesa de um meio ambiente ecologicamente equilibrado para a presente e as futuras gerações, sendo esse um direito transindividual garantido pela Constituição Federal, a qual comete ao Ministério Público a sua proteção. 2. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes.36 (Grifo Nosso) 3. Agravo regimental não provido. Além do mais, demonstra-se que com o advento da Constituição Cidadã a proteção ambiental passa a ser dever tanto do Poder Público quanto da própria sociedade, e sendo esta uma das grandes protagonistas do Texto Fundamental para a defesa e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, poderá se valer da via judicial como mecanismo de garantia do seu direito de cuidar do meio ambiente.

35

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 834.937 /MG, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 29.04.2014. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 07.09.2014. 36

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 417.408 /RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 20.03.2012. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 07.09.2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Se o Poder Público faz valer os seus direitos de defesa e proteção do meio ambiente pela escolha da política pública para ser aplicada no caso concreto, a sociedade, grande mola propulsora das democracias participativas, também poderá utilizar-se do seu direito de proteção ambiental batendo às portas do Poder Judiciário para exigir a efetivação dos direitos cobertos de verde positivados juridicamente. Boaventura Souza Santos 37

O protagonismo dos tribunais emerge da mudança política por duas vias: por uma lado, o novo modelo de desenvolvimento assenta nas regras de emrcado e nos contratos privados e, para que estes sejam cumpridos e os negócios tenham estabilidade, é necessário um judiciário eficaz, rápido e independente; por outro lado, a precarização dos direitos econômicos e sociais passa a ser um motivo de procura do judiciário. Muita da litigação que hoje chega aos tribunais deve-se ao desmatelamento do Estado social (direito laboral, previdência social, educação, saúde etc.). (...) E acrescenta que

No caso do Brasil, mesmo descontando a debilidade crônica dos mecanismos de implementação, aquela exaltante construção jurídicoinstitucional tende a aumentar as expectativas dos cidadãos de verem cumpridos os direitos e as garantias consiganadas na Constituição, de tal forma que a execução deficiente ou inexistente de muitas políticas sociais pode transformar-se num motivo de procura dos tribunais. Acresce o fato de, também a partir da Constituição de 1988, se terem ampliado as estratégias e instituições das quais se pode lançar mão para invocar os tribunais, como, por exemplo, a ampliação da legitimidade para a propositura de ações diretas de inconstitucionalidade, a possibilidade de as associações intrporem ações em nome dos seus associados, a consagração da autonomia do ministperio público e a opção por um modelo público de assistência jurídica e promoção do acesso à justiça. A redemocratização e o novo marco constitucional deram maior credibilidade ao uso da via judicial como alternativa para alcançar direitos. Outrossim, o Estado Democrático Constitucional de Direito Ambiental, por possuir diversos instrumentos38 que garantem a participação das pessoas na formação e no processo de tomadas de decisões públicas, eleva o cidadão como autor e destinatário do seu próprio direito 39, passando a traçar as diretrizes dos seus caminhos rumo ao futuro. Assim, quando a sociedade 37

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática de justiça. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 13/14. 38 “No âmbito das políticas públicas, o Ministério Público intervém em diversos segmentos, cobrando dos órgaõs governamentais a implantação de direitos garantidos pela Carta Constitucional de 1988.” FERRARESI, Eurico. A Responsabilidade do Ministério Público no Controle das Políticas Públicas, p. 494. In: GRINOVER, Ada Pellegrini, WATANABE, Kazuo (coords). O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, p. 489/503. 39 A participação popular na seara ambiental é muito bem tratado no Capítulo 1 do livro da Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira (FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. Direito Ambiental Brasileiro: Princípio da Participação. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 27/40.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 socorre ao Poder Judiciário para alcançar a implementação de políticas públicas, está, na verdade, valendo-se do seu direito constitucional de zelar do meio ambiente assegurando uma sadia qualidade de vida para toda a humanidade. 40 Portanto, em virtude dessa atuação jurisdicional em prol dos reclames da sociedade na vertente evolutiva democrática estatal não estar-se-á desrespeitando a teoria da separação de poderes em virtude da possibilidade de judicialização de políticas públicas ser uma deterrminação constitucional, conforme diretriz do princípio da inafastabilidade da jurisdição, e por ser um dos mecanismos de controle da sociedade da coisa pública, neste caso, da coisa pública ambiental. Por isso, judicializar polticas públicas na seara humana ambiental, nada mais é do que permitir a efetividade dos direitos positivados no caso concreto na falta de atuação do Poder Executivo. E os direitos fundamentais de dimensão solidária, englobados a extensão fraterna de caráter ambiental, não podem ser vistos apenas como normas programáticas, dependentes da atuação do Executivo para a sua implementação, e sim como verdadeiros direitos subjetivos reafirmando o caráter jurídico dos mesmos.

Considerações Finais

Diante do exposto é notório o avanço produzido pela Constituição de 1988 na esfera da proteção ambiental e na legitimação de mecanismos que promovem a tutela do meio ambiente pela sociedade e pelo Poder Público, quando impõe aos mesmos o dever ambiental de amparo e conservação para as presentes e futuras gerações, em estrito cumprimento ao desenvolvimento sustentável. Para que todos os seres humanos tenham uma existência digna no planeta é imprescindível que o meio ambiente seja resguardado para assegurar e alcançar a sadia qualidade de vida. O desenvolvimento não é proibido pela Carta Fundamental, e sim o desenvolimento que não seja sustentável, o que desrespeita o direito humano fundamental do equilíbrio ecológico ambiental. Embora o desequilíbrio ecológico provocado pelos modelos desenvolvimentistas do passado e atuais subvertam os valores ambientais preconizados nos mais diversos documentos internacionais e nacionais, não pode ser esta a conduta aceita pelos Estados Soberanos visto que a existência da pessoa humana depende diretamente do agasalho do planeta verde. Com a evolução dos modelos estatais, observa-se a característica do acúmulo material de significados aos direitos humanos, devido ao seu traço de historicidade, o que resvala no surgimento da

40

“(...) sem direitos de cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática de justiça. 3. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 84.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 dimensão

ambiental

enquanto

direitos

humanos

e

fundamentais

relacionados

à

solidariedade/fraternidade. Assim sendo, ser portador de dignidade é ter garantido o direito à vida na sua forma mais ampla, abarcando a dimensão ambiental, o que significa garantir no caso concreto, na falta de atuação do Poder Executivo, a implementação judicial da política pública ambiental que visa ao equilíbrio ecológico do meio ambiente como forma de materializar os direitos previstos no Estado Democrático Constitucional de Direito Ambiental. Pois, direitos no papel são meras expectativas que só se tornarão efetivas quando materializadas no caso concreto. Dessa forma, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano fundamental que deve ser protegido formalmente e materialmente, não importando de onde venha a custódia do verde, se do Poder Executivo ou do Judiciário, já que não há violação da independência das funções estatais. Referências BARBOSA, Erivaldo Moreira. Água doce: Direito Fundamental da Pessoa Humana. In: FARIAS, Talden, COUTINHO, Franciso Seráphico da Nóbrega (coords). Direito Ambiental: O Meio Ambiente e os Desafios da Contemporaneidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. BENJAMIN, Antônio Herman V. O meio ambiente na Constituição Federal de 1988. In: KISHI, Sandra Akemi Shimada, e OUTRAS (coord.). Desafios do direito ambiental no século XXI. São Paulo: Maalheiros, 2005. BEUTER, Carla Simone. Cidadania Planetária: uma nova percepção socioambiental que contempla o meio ambiente como um direito humano fundamental. In: SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes, PAVIANI, Jayme. Um Olhar para a Cidadania e Sustentabilidade Planetária. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006, p. 115/132. BRASIL. Constituição da República de 1988. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013 BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 02 de setembro de 1981. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 834.937 /MG, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 29.04.2014. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 07.09.2014. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 417.408 /RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 20.03.2012. Disponível em: www.stf.gov.br. Acesso em: 07.09.2014. CAPELLA, Vicente Bellver. Ecología: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994. In: FARIAS, Talden, COUTINHO, Francisco Seráphico da Nóbrega Coutinho (coords). Direito

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Ambiental- O meio Ambiente E Os Desafios Da Contemporaneidade. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio Ambiente & Direitos Humanos. Curitiba: Juruá Editora, 2006. COSTA, Beatriz Souza. Meio ambiente como direito à vida - Brasil Portugal Espanha. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2010. COSTA, Beatriz Souza. Meio ambiente como direito à vida no direito comparado. 2003. 191 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003. COSTA, Beatriz Souza. O Gerenciamento Econômico do Minério de Ferro Como Bem Ambiental no Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora Fiuza, 2009. CUSTÓDIO, Helita Barreira. Direito Ambiental e Questões Jurídicas Relevantes. Campinas, SP: Millennium Editora, 2005. FERRARESI, Eurico. A Responsabilidade do Ministério Público no Controle das Políticas Públicas. In: GRINOVER, Ada Pellegrini, WATANABE, Kazuo (coords). O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. Direito Ambiental Brasileiro: Princípio da Participação. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Princípios do Direito Processual Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2010. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. GOMES, Eduardo Biacchi, BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Soberania, Cooperação e o Direito Humano ao Meio Ambiente. In: GOMES, Eduardo Biacchi, BULZICO, Bettina Augusta Amorim (orgs) Sustentabilidade, Desenvolvimento e Democracia. Ijuí: Editora Unijuí, 2010. HERRERA, Carlos Miguel. Estado, Constituição e Direitos Sociais. In: SOUSA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel (orgs). Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010. PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos Constitucionais do Direito Ambiental Brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática de justiça. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. SILVA, Américo Luís Martins da Silva. Direito do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais. Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Constitucional do Meio Ambiente. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. SILVA, Solange Teles da. Direito Fundamental ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado: avanços e desafios. In: Revista de Direito Ambiental, 48, 2007. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Uma Investigação sobre a Natureza. São Paulo: Madras Editora, 2009. MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. ZENETI JR., Hermes. A Teoria da Separação de Poderes e o Estado Democrático Constitucional: Funções de Governo e Funções de Garantia. In: GRINOVER, Ada Pellegrini, WATANABE, Kazuo (coords). O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

A COMPREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO NA OBRA INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA DE KARL MARX

Guilherme Henrique Barbosa1

Resumo: O trabalho em questão busca analisar e teorizar sobre o fenômeno jurídico, tendo como referenciais teóricos as obras “O Capital” e “Introdução à Crítica da Economia Política” de Karl Marx. Porém o estudo não se restringirá somente a estas obras, serão abordados também outros autores que possuem como premissas metodológicas o método materialista dialético histórico. Para tanto irá se abordar considerações sobre as relações sociais no modo de produção no mundo mercantil, o fenômeno da reificação e por fim uma minuciosa e detida análise da obra Introdução à Crítica a Economia Política. Palavras chave: Direito; Marxismo; Reificação Abstract: The work in question seeks to understand and theorize about the legal phenomenon, whose theoretical works “Capital” and “ Introduction to the Critique of Political Economy” of Karl Marx, but not be restricted only to these works, authors will be addressed as well as assumptions that have methodological dialectial materialist history method. To do so will address considerations of social relations in production mode in the world market, the phenomenon of reification, and finally a thorough and detailed analysis of the work Introduction to the Critique of Political Economy. Keywords: Law; Marxism; Reification INTRODUÇÃO

O presente plano de trabalho compõe o projeto de pesquisa Marxismo & Direito: o fenômeno jurídico na obra de Marx e Engels e situa-se no campo dos fundamentos do direito, pois pretende localizar nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels uma teorização sobre o direito. Destaca-se, então, como tema central da pesquisa a concepção marxiana do fenômeno jurídico desenvolvida por Marx e Engels. Desse modo, com a realização da pesquisa pretende-se responder à seguinte indagação: Qual a noção de direito esboçada por Marx e Engels no período pós-1848? Trata-se, pois, de pesquisa exploratória, quanto aos objetivos, e de pesquisa bibliográfica, quanto às fontes e aos procedimentos de coleta de dados. Como fontes de pesquisa serão utilizados os textos produzidos por Marx e Engels após 1848. A análise das fontes consistirá em revisão teórica centrada na categoria “direito”. O objetivo geral deste trabalho é identificar a concepção do fenômeno jurídico na obra “Introdução à Crítica da Economia Política”. Desse modo, espera-se, com a realização da pesquisa, a produção de conhecimento novo quanto à teoria sociológica do direito que servirá de embasamento para futuras pesquisas, sobretudo na sub-área da Sociologia Jurídica.

1

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A realização da pesquisa pode ser justificada quanto à sua relevância para o direito, para a comunidade, para a ciência e para as profissões jurídicas. A relevância para o direito diz respeito à possibilidade de apresentação de resultados positivos decorrentes de uma práxis profissional alternativa à concepção positivista, o que pode auxiliar o processo de reconstrução da educação e do ensino jurídico superior e, por conseguinte do trabalho profissional na seara do direito. Quanto à comunidade, a realização da pesquisa poderá explicitar “a importância da concepção marxista do direito para o enfrentamento das questões do cotidiano, assim como para a formação de uma nova cultura jurídica, a partir da crítica da realidade social, uma vez que os direitos estão pré-figurados nas demandas sociais” 2. Quanto à ciência, será construído conhecimento novo, isto é, “fidedigno e relevante teórica e socialmente” 3, já que o objeto deste estudo não constitui tema sobre o qual se concentram os esforços da ciência jurídica. Por fim, quanto às profissões jurídicas, os resultados da pesquisa podem servir de incentivo à construção/desconstrução/reconstrução cotidiana dos processos de trabalho, visando à sedimentação de um projeto coletivo de trabalho compromissado com a construção de uma cultura jurídica de práxis e, consequentemente, de transformação social. RELAÇÕES SOCIAIS NO MODO DE PRODUÇÃO MERCANTIL “... por várias vezes se realçou a essência da estrutura do capital, que assenta no fato de que a relação entre as pessoas toma o caráter de ‘coisa’, e ser, por isso, de uma ‘pseudoconcreticidade’, que dissimula todo e qualquer traço de sua essência fundamental: a relação entre o ser social”. André Luiz Monteiro Mayer 4

A reificação é um fenômeno específico da nossa época, a época do capitalismo moderno. O fenômeno da reificação foi considerado por Lukács “o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais”5. Constitui, pois, categoria essencial em uma análise marxiana, quer da sociedade, das relações sociais ou mesmo do direito. Nesse mesmo sentido, Mayer afirma que “a idéia central do sistema de Marx é sua crítica da reificação capitalista das relações sociais de produção, a alienação do trabalho através das mediações reificadas do trabalho assalariado, propriedade privada e troca” 6. Isso porque, na sociedade burguesa, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma-valor da mercadoria, é a forma celular econômica, ou seja, “a mercadoria na sociedade capitalista constitui a célula econômica fundamental” .7 Que a sociedade burguesa constituída se funda sobre a produção mercantil, 2

COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. In Revista Ágora. Políticas Públicas e Serviço Social, Ano 2, n° 3. Rio de Janeiro, 2005, s/p. 3

LUNA, Sérgio Vasconcelos de. Planejamento de pesquisa: uma introdução. São Paulo. EDUC, 2002. p.21 MAYER, André Luiz Monteiro. Reificação e barbárie: críticas às relações sociais capitalistas. Rio de Janeiro. UFRJ, 2006. p.68 5 LUCAKS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo. Martins Fontes, 2003. p.193-5 4

6

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MAYER. Reificação e barbárie: criticas às relações sociais capitalistas, p.74 MARX, Karl. O capital: crítica a economia política. São Paulo. Abril Cultural,1983. p.23

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 eis o óbvio; mas não é igualmente óbvio que, inseridas as relações mercantis no âmbito de uma sociedade onde a universalização total da forma mercadoria vai muito além da sua materialidade palpável, muito além do circuito das trocas, envolvendo todos os “serviços” e todas as relações homem/homem no seu contexto vital, transforma-se estruturalmente o modo de emergência das relações sociais. 8 Portanto, “compreender a reificação é descobrir na estrutura da relação mercantil o protótipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa”.9 É imprescindível, pois, para o estudo da reificação das normas constitucionais, conhecer a estrutura da relação mercantil na sociedade burguesa a partir de sua unidade celular econômica fundamental: a mercadoria. A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidagde humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção. 10 A mercadoria é, assim, um objeto externo ao homem e que, por suas propriedades, satisfaz uma necessidade humana. “Sua utilidade, determinada por suas propriedades, faz dela um valor de uso”.11 O valor de uso da mercadoria é sua utilidade para o usuário, que é o que lhe permite ser objeto de uma troca. Desse modo, por exemplo, o valor de uso da força de trabalho é sua capacidade de produzir valor novo ao ser transformada em trabalho aplicado à produção. Assim, “o valor de uso da força de trabalho vem do desenvolvimento das relações de produção e troca de mercadorias, de valor e de dinheiro”12. Os valores de uso são, portanto, bens resultantes do intercâmbio entre a sociedade e a natureza, isto é, resultam da atividade humana sobre matérias naturais, transformando-as em produtos que atendam às suas necessidades. Essa atividade humana transformadora da natureza denominase trabalho e constitui a base da atividade econômica, vez que torna possível a produção de qualquer bem. A respeito, escreveu Marx: O trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. [...] Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais de trabalho. [...] Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes à do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu 8

PAULO NETTO, José. Capitalismo e Reificação. São Paulo. Cortez,1984. p.84

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LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p.193

10

MARX, Karl. O capital. Livro I. São Paulo. Civilização Brasileira, 2002. p.57

11

PAULO NETTO,José; BRAZ, Marcelo. Economia política. São Paulo.Cortez,2006. p. 79

12

BOTTMORE,Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro. Zahar,2001. p.401-2

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, o seu objetivo. [...] Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. [...] O processo de trabalho [...] é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, [...] comum a todas as suas formas sociais.13 Então, o que diferencia o trabalho humano das atividades naturais é a intencionalidade do sujeito, é o fato de o trabalho ser uma atividade teleologicamente direcionada, isto é, o homem antes de iniciar sua atividade prefigura o resultado de sua ação, o que caracteriza o trabalho como uma objetivação do sujeito que o efetua. “Lukacs assevera no sentido de que a realização do trabalho só se dá quando essa prefiguração ideal se objetiva, isto é, quando a matéria natural, pela ação material do sujeito, é transformada” 14 . O trabalho é, pois, a atividade humana intencionada a um fim (teleológica) que transforma matéria natural em um produto apto a satisfazer uma necessidade, ou seja, em um valor de uso; e ao transformar a natureza, o homem se transforma. Através do trabalho, diz Lukacs, “tem lugar uma dupla transformação. Por um lado, o próprio homem que trabalha é transformado pelo seu trabalho; ele atua sobre a natureza; ‘desenvolve as potências nela ocultas’ e subordina as forças da natureza ‘ao seu próprio poder’. Por outro lado, os objetos e as forças da natureza são transformados em meios, em objetos de trabalho, em matérias-primas etc. O homem que trabalha ‘utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas das coisas, a fim de fazê-las atuar como meios para poder exercer seu poder sobre outras coisas, de acordo com sua finalidade’’15 Essa dupla transformação de que fala Lukacs é que atribui ao trabalho um caráter central na teoria marxiana, ou seja: O trabalho mostra-se como momento fundante de realização do ser social, condição para sua existência; é ponto de partida para a humanização do ser social e o “motor decisivo do processo de humanização do homem”. Não foi outro o significado dado por Marx ao enfatizar que: “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, vida humana”. Essa formulação permite entender o trabalho como “a única lei objetiva e ultra-universal do ser social, que é tão ‘eterna’ quanto o próprio ser social ; ou seja, trata-se também de uma lei histórica, à medida que nasce simultaneamente com o ser social, mas que

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MARX. O capital: crítica a economia política. p.149-150,153

14

PAULO NETTO; BRAZ. Economia política. p. 32. ANTUNES, Ricardo. Trabalho e estranhamento. São Paulo. Cortez, 2003. p. 125

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 permanece ativa apenas enquanto esse existir”.16 Logo, o trabalho deve ser compreendido como atividade essencialmente humana, ‘responsável’ pela humanização do homem e que constitui condição sine quan non da existência desse homem, já que tem a função de mediação da relação homem e natureza na produção de sua existência material, caracterizada pela produção de valores de uso. Como relacionar, então, mercadoria e valor de uso? As mercadorias são valores de uso e os valores de uso são mercadorias? Estas são as questões que se colocam quando se pretende esclarecer o que são mercadorias. As mercadorias são valores de uso que derivam do trabalho humano e que podem ser reproduzidos. Essa assertiva indica que existem valores de uso que não derivam do trabalho humano, como certos bens naturais que são indispensáveis à vida do homem (a água e o ar, por exemplo.). Também fica claro que existem valores de uso que não são mercadorias, quais sejam, os que são insuscetíveis de serem produzidos mais de uma vez, repetidamente (uma importante obra de arte constitui exemplo disso, lembrando que suas réplicas são mercadorias por serem reprodutíveis). A mercadoria é um valor de uso que se produz para a troca, para a venda; os valores de uso produzidos para o autoconsumo do produtor (...) não são mercadorias – somente valores de uso que satisfaçam necessidades sociais (humanas) de outrem e, portanto, sejam requisitados por outrem, constituem mercadoria; esta pois, dispõe de uma dimensão que sempre vem vinculada ao seu valor de uso: a sua faculdade de ser trocada, vendida (o seu valor de troca). Assim, portanto, a mercadoria é uma unidade que sintetiza valor de uso e valor de troca.17 (grifo do autor). Disso decorre que para haver produção de mercadorias duas condições devem ser obedecidas: existência (1) da divisão social do trabalho e (2) da propriedade privada dos meios de produção. A divisão social do trabalho é necessária para que haja a produção de diferentes mercadorias, como móveis, roupas, utensílios etc; pressupõe, então, que o trabalho está repartido para diferentes grupos humanos e que o acesso aos diferentes tipos de mercadorias depende da troca entre produtores. Mas a divisão social do trabalho não garante, por si só, a produção de mercadorias uma vez que se a propriedade dos meios de produção for coletiva, não haverá troca (compra/venda) pois o produto do trabalho pertence a todos. A produção mercantil necessita, então, da propriedade privada dos meios de produção já que somente troca (compra e vende) aquele que é proprietário; e para que alguém o seja deve ser dono dos meios com os quais se produziu o bem. “Isso significa que a produção de mercadorias tem como condições indispensáveis a divisão social do trabalho e a propriedade privada dos meios de produção – sem ambas, produzem-se bens, valores de uso, mas não há a produção mercantil.”18 As bases da produção mercantil capitalista, além de pressupor uma divisão social do trabalho e a propriedade dos meios de produção, agregam um fator agravante: que a propriedade dos meios de produção não caiba ao produtor direto, mas ao capitalista. Aqui desaparece o trabalho pessoal do proprietário: o capitalista é proprietário dos meios de produção, mas não é ele quem trabalha – ele compra a força de trabalho que, com os meios de produção que lhe pertencem, vai produzir mercadorias. Desse modo, a força de trabalho pode ser comprada e vendida, isto é, a força de trabalho torna-se uma mercadoria. A produção mercantil capitalista baseia-se, então, na exploração da força de trabalho comprada 16

ANTUNES, Ricardo. Trabalho e estranhamento. p. 125 PAULO NETTO; BRAZ. Economia política. p. 80 18 PAULO NETTO; BRAZ. Economia política. p. 92 17

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 pelo capitalista por meio do salário. Os ganhos (lucros) do capitalista não provêm da circulação, mas sim da exploração do trabalho, isto é, sua origem está no interior do processo de produção das mercadorias, o qual está sob controle do capitalista. Por isso é próprio da produção mercantil que o trabalho tenha ocultada sua característica elementar: o trabalho é sempre trabalho social. Já foi dito que a produção mercantil, para produzir as mercadorias, necessita de uma ampla divisão do trabalho: há vários ramos de produção e, na composição de uma só mercadoria, entram muitas outras – sintetizando, surge uma grande interdependência entre todos os produtores, o que implica que o trabalho de cada um deles (trabalho privado) é parte do conjunto total do trabalho da sociedade (trabalho social) e só é possível no seu interior. No entanto, como se trata de um produtor privado (ou seja, que tem a propriedade privada dos meios de produção), ele administra isoladamente, privadamente, a sua produção; o produtor atua independentemente dos outros produtores e, por isso, o seu trabalho, parte do trabalho social, aparece-lhe essencialmente como trabalho privado. O produtor só se confronta com o caráter social do seu trabalho no mercado: sua interdependência em face dos outros produtores lhe aparece no momento da compra-venda das mercadorias; em poucas palavras: as relações sociais dos produtores aparecem como se fossem relações entre mercadorias, como se fossem relações entre coisas. A mercadoria passa a ser, então, a portadora e a expressão das relações entre homens. Na medida em que a troca mercantil é regulada por uma lei que não resulta do controle consciente dos homens sobre a produção (a lei do valor), na medida em que o movimento das mercadorias se apresenta independentemente da vontade de cada produtor, opera-se uma inversão: a mercadoria, criada pelos homens, aparece como algo que lhes é alheio e os domina; a criatura (mercadoria) revela um poder que passa a subordinar o criador (os homens). 19 Esse poder autônomo que as mercadorias parecem ter e que de fato exercem sobre seus produtores foi chamado por Marx de fetichismo da mercadoria, isto é, “quando determinada relação social entre os próprios homens assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”20. Daí que no modo de produção capitalista seja universalizada a lógica mercantil, isto é, o fetichismo alcança sua máxima gradação que consiste na aparência aos homens de que suas relações sociais são relações entre coisas. Por isso mesmo, “o fenômeno da reificação é peculiar ás sociedades capitalistas; é mesmo possível afirmar que a reificação é a forma típica de alienação engendrada no modo de produção capitalista” 21

O FENÔMENO DA REIFICAÇÃO “... a reificação é uma forma superior, isto é, a forma mais alta de alienação, não sendo apenas um conceito, mas um requisito metodológico para o estudo crítico e para a transformação prática, ou melhor, a destruição de toda a estrutura reificada”. 19

20 21

PAULO NETTO; BRAZ. Economia política. p. 92 MARX. O capital: crítica a economia política. p.71 PAULO NETTO; BRAZ, Marcelo. Economia política. p. 93

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Tom Bottomore22 Já foi mencionado como a relação mercantil condiciona todas as demais relações sociais no capitalismo. Claro está, então, que a mercadoria apenas pode ser compreendida em sua essência autêntica como categoria universal de todo o ser social. E é justamente nesse sentido que a reificação originada pela e na relação mercantil ganha sublinhado relevo, quer no que tange ao desenvolvimento objetivo da sociedade, quer no que diz respeito à atitude dos homens a seu respeito, ou nas palavras de Lukacs, “para a submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo” 23. A esse respeito, Marx escreveu o seguinte: O caráter misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres objetivos do produto do trabalho, como qualidades sociais naturais dessas coisas e, conseqüentemente, também a relação social dos produtores com o conjunto do trabalho como uma relação social de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse qüiproquó, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou serem coisas sociais [...] É apenas a relação social determinada dos próprios homens que assume para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. 24 Por assim ser, Lukacs, conclui que, “por meio desse fato básico e estrutural, ao homem sua própria atividade, seu próprio trabalho são colocados como algo objetivo, e que, portanto, independe dele e o domina por leis próprias, que lhes são estranhas” 25. Tal fenômeno interfere tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o subjetivo:  Objetivamente: quando surge um mundo de coisas acabadas e de relações entre coisas (o mundo das mercadorias e de sua circulação no mercado), cujas leis, embora se tornem gradualmente conhecidas pelos homens, mesmo nesse caso se lhes opõem como poderes intransponíveis, que se exercem a partir de si mesmos. O indivíduo pode, portanto, utilizar seu conhecimento sobre essas leis a seu favor, sem que lhe seja dado exercer, mesmo nesse caso, uma influência transformadora sobre o processo real por meio de sua atividade.  Subjetivamente: numa economia mercantil desenvolvida, quando e atividade do homem se objetiva em relação a ele, torna-se uma mercadoria que é submetida à objetividade estranha aos homens, de leis sócias naturais, e deve executar seus movimentos de maneira tão independente dos homens como qualquer bem destinado à satisfação de necessidades que se tornou artigo de consumo.26 22

BOTTMORE,Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. p. 372

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LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p. 198-9

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MARX. O capital: crítica a economia política. p. 71 LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p. 199

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LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p.198

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Por isso, Marx afirma que o capitalismo caracteriza-se pelo fato de que a força de trabalho apresenta-se ao próprio trabalhador como uma mercadoria que lhe pertence. Desse modo, é justamente nesse momento que a forma mercantil dos produtos do trabalho se generaliza. A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o aspecto subjetivo, uma abstração do trabalho humano que se objetiva nas mercadorias. [...] Desse modo, o princípio de sua igualdade formal só pode ser fundado em sua essência como produto do trabalho humano abstrato (portanto, formalmente igual). [...] igualdade formal do trabalho humano abstrato não é somente denominador comum ao qual os diferentes objetos são reduzidos na relação mercantil, mas torna-se também o princípio real do processo efetivo de produção de mercadorias. [...] o trabalho abstrato, igual, mensurável com uma precisão crescente em relação ao tempo de trabalho socialmente necessário, o trabalho da divisão capitalista do trabalho, que existe ao mesmo tempo como produto e condição da produção capitalista, surge apenas no curso do desenvolvimento desta e, portanto, somente no curso dessa evolução ele se torna uma categoria social que influencia de maneira decisiva a forma de objetivação tanto dos objetos como dos sujeitos da sociedade emergente, de sua relação com a natureza, das relações dos homens entre si que nela são possíveis. 27 As modificações decisivas que assim são operadas sobre o sujeito e o objeto do processo econômico são as seguintes: 1ª) O produto que forma uma unidade, como objeto do processo de trabalho, desaparece. O processo torna-se a reunião objetiva de sistemas parciais racionalizados, cuja unidade é determinada pelo puro cálculo, que por sua vez devem aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros. [...] A unidade do produto como mercadoria não coincide mais com sua unidade como valor de uso; 2ª) Essa fragmentação do objeto da produção implica necessariamente a fragmentação do seu sujeito [...], ele é incorporado como parte mecanizada num sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis deve se submeter. 28 Ocorre, pois, um apassivamento do sujeito, uma vez que, como o processo de trabalho é progressivamente racionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforçada pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa. Opera, assim, uma redução do espaço e do tempo a um mesmo denominador e do tempo ao nível do espaço. Com a subordinação do homem à máquina os homens acabam sendo apagados pelo trabalho, o pêndulo do relógio torna-se a medida exata da atividade relativa de dois operários, tal como a medida da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, não se pode dizer que uma hora [de 27

LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p.200-1

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LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p.203-4

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 trabalho] de um homem vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma hora, um homem vale tanto quanto outro. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo. A qualidade não está mais em questão. Somente a quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jornada. O tempo perde, assim, o seu caráter qualitativo, mutável e fluido: ele se fixa num continuum delimitado com precisão, quantitativamente mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente mensuráveis (...); torna-se um espaço.29 Por um lado, o trabalho mecanizado e fragmentado leva a personalidade a tornar-se um espectador impotente de tudo o que ocorre com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho. Por outro lado, a desintegração mecânica do processo de produção também rompe os elos que, na produção ‘orgânica’, religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho. O afastamento entre o produtor e os seus meios de produção, a extinção e a fragmentação de todas as unidades originais de produção, entre outros, isto é, todas as condições econômicas e sociais do surgimento do capitalismo moderno convergem ao mesmo ponto: substituir por relações racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas. Nesse mesmo sentido, Marx afirmou que as relações sociais dos homens no seu trabalho não se apresentam disfarçadas em relações sociais entre coisas, mas como se fossem suas próprias relações pessoais. [...] O isolamento e a atomização assim nascentes são uma mera aparência. O movimento das mercadorias no mercado, o surgimento do seu valor, numa mente é submetida a leis rigorosas, mas pressupõe, como fundamento do cálculo, uma legalidade rigorosa de todo acontecimento. [...] pela primeira vez na história – toda a sociedade está submetida, ou pelo menos tende, a um processo econômico uniforme, e de que o destino de todos os membros da sociedade é movido por leis também uniformes. [...] Mas essa aparência é necessária enquanto aparência. [...] a confrontação imediata, tanto prática quanto intelectual, do indivíduo com a sociedade, a produção e a reprodução imediatas da vida (...), só poderiam desenrolar-se sob essa forma de atos isolados e racionais de troca entre proprietários isolados de mercadorias.” O trabalhador apresenta-se, pois, como proprietário de uma mercadoria: sua força de trabalho. “Sua posição específica reside no fato de essa força de trabalho ser sua única propriedade. Em seu destino, é típico da estrutura de toda a sociedade que essa auto-objetivação, esse tornar-se mercadoria de uma função do homem revelem com vigor extremo o caráter desumanizado e desumanizante da relação mercantil.30(grifo do autor) Há, pois, uma separação entre os fenômenos da reificação e o fundamento econômico de sua existência (a base que permite compreendê-los). Tal separação é facilitada pelo fato de que esse processo de transformação deve necessariamente englobar o conjunto das formas de manifestação da vida social, para que sejam preenchidas as condições de uma produção capitalista com pleno rendimento. Assim, o desenvolvimento capitalista encarregou-se de criar um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse a sua estrutura, um Estado correspondente e, por conseguinte, um direito também correspondente, entre outras coisas. 29

LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p. 204-5

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LUCAKS. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. p.208-9

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O DIREITO NA ECONOMIA MERCANTIL: INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA O pensamento da economia política do século XV ao século XVIII foi desenvolvido por meio de concretudes. Ao seguir esta linha as correntes clássicas colocam a sociedade burguesa como algo natural e indestrutível. Ocultando o fato de que as sociedades são produtos de fatores materiais e históricos, e não um simples dado natural. Ao desenvolverem o pensamento da economia política tendo como ponto de partida algo concreto, é algo puramente tautológico, uma vez que se considera algo que alguns fatores de produção da sociedade burguesa são naturais para que se tenha produção. Pretendem prioritariamente (cf. Mill) apresentar a produção -contrariamente à distribuição, etc. - como sujeita a leis eternas da natureza, independentes da história; o que é uma boa ocasião para insinuar que as relações burguesas são leis naturais e indestrutíveis da sociedade in abstracto. esta a finalidade, mais ou menos consciente, de toda a manobra 31 É necessário observar o desenvolvimento histórico da humanidade para determinar quais são os fatores necessários para que haja produção. E estes fatores são o meio ambiente e o trabalho social que transforma esse ambiente. Esses fatores vão se reestruturando de acordo com cada período histórico. Portanto é uma afirmação classista dizer que a produção só é possível se há propriedade privada e os meios para garantir essa propriedade “[...] não é apenas isto que os economistas visam nessa parte introdutória geral.” 32. Mas é uma pura tautologia afirmar que não pode haver produção, nem tão pouco sociedade, quando não existe nenhuma forma de propriedade. Uma apropriação que não se apropria de nada é uma contradictio in subjecto (contradição nos termos).33 O pensamento da economia política tradicional coloca a produção, a distribuição, a troca e o consumo como um silogismo e não como relações interdependentes. A relação entre consumo e produção é uma relação recíproca, pois para produzir é necessário consumir a produção é realizada para suprir o consumo da sociedade. O consumo representa um momento da produção, uma que o indivíduo produz um objeto e ao consumir o seu produto, volta ao ponto de partida. Além disto, é observável nas sociedades modernas que há casos que o consumo é saciado de acordo com a produção, e não o contrário. “A fome é a fome, mas a fome que é saciada com carne cozida e consumida com faca e garfo é diferente da fome do que devora carne crua e a come com a mão, com unhas e dente.”..34 Quanto à distribuição e a produção nota-se que nos tratados de economia política o capital sempre é encarado como um agente de produção. Essa premissa é responsável por criar uma ilusão.

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MARX, Karl. Introdução à Crítica da Economia Política. s/l.: 1859. s/p.

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MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p.

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MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p.

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MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para o indivíduo isolado, a distribuição aparece naturalmente como uma lei social que determina a sua posição no seio da produção, isto é: no quadro em que produz e que, portanto, precede a produção. Ao nascer, o indivíduo não tem capital nem propriedade agrária; logo que nasce é condenado, pela distribuição social, ao trabalho assalariado. Na realidade, o próprio fato de a tal ser condenado, resulta do fato de o capital e a propriedade agrária serem agentes autônomos da produção. 35 Essa ilusão criada cria o sentimento de que a sociedade burguesa é algo natural e indestrutível, além de representar e manifestar os anseios das classes detentoras dos meios de produção, pois isso permite a homogenia dessa classe na sociedade. A perpetuação e consolidação dessa ilusão ocorrem de forma velada e os meios que contribuem para que esse objetivo seja alcançado são os tratados de economia política e principalmente o ordenamento jurídico, pois o ordenamento jurídico surge na sociedade burguesa como um instrumento que iguala os indivíduos na sociedade, mas isto ocorre apenas no universo do pressuposto, o que realmente ocorre é: As leis podem perpetuar nas mãos de algumas famílias a propriedade de um instrumento de produção, por exemplo, a terra. Estas leis só adquirem significado econômico quando a grande propriedade agrária se encontra em harmonia com a produção social, como na Inglaterra, por exemplo. Em França praticava-se a pequena agricultura; apesar da existência da grande propriedade: por isso, esta última fase foi destruída pela Revolução. Mas - e a perpetuação, por meio de leis, do parcelamento das terras, por exemplo? A propriedade concentra-se de novo, apesar das leis. Determinar mais em particular a influência das leis na manutenção das relações de distribuição, e a sua influência, por conseguinte, na produção. 36 No que tange a relação entre troca e produção observa-se que a troca é um ato incluído na produção, portanto a troca representa uma atividade produtiva e a produção determina a troca em todas as suas formas. Assim, Marx, conclui que a distribuição não é o único objeto da economia. Observando que a produção, a distribuição, a troca e o consumo não são idênticos, e sim elementos que compõe um todo orgânico. Além do mais, encarar a sociedade como um sujeito único é encará-la de forma falsa, especulativa; para um dado sujeito, produção e consumo surgem como momentos de um mesmo ato. Importa realçar sobretudo que, se se considerar a produção e o consumo como atividades quer dum indivíduo, quer de um grande número de indivíduos [isolados], tanto uma como outro seguem, em qualquer caso, como elementos de um processo no qual a produção é o verdadeiro ponto de partida, sendo, por conseguinte, o fator preponderante. 37 Os estudos de economia política clássicos tomam como ponto de partida o real e o concreto, mas uma análise cuidadosa demonstra que este método apesar de ser majoritário é errôneo. 35

MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p. 36

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MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para se definir uma categoria, devemos tomar como ponto de partida as categorias mais simples, para depois se alcançar as categorias mais complexas e concretas, seguindo essa premissa “não teríamos uma idéia caótica de todo, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações” 38. Por tanto: Uma vez fixados e mais ou menos elaborados estes fatores começam a surgir os sistemas econômicos que, partindo de noções simples - trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca - se elevam até ao Estado, à troca entre nações, ao mercado universal. Eis, manifestamente, o método científico correto. 39 Este método não é aplicável somente a economia política, mas também para todas as ciências. Para as ciências sociais a abstração exerce um papel fundamental. Hegel ao desenvolver sua Filosofia do Direito agiu corretamente ao tomar como ponto de partida a posse, a mais simples das relações jurídicas, apesar de que a fundamentação de posse como uma relação jurídica surge na sociedade burguesa, portanto: Podemos imaginar um selvagem isolado que seja possuidor, mas, neste caso, a posse não é uma relação jurídica. Não é exato que, historicamente, a posse evolua até à família; pelo contrário, a posse pressupõe sempre a existência dessa ‘categoria jurídica mais concreta’. 40 No pensamento filosófico, Hegel acredita que o real, concreto é produto do pensamento, mas ao afirmar isso: [...] Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo; ao passo que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é, para o pensamento, apenas a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir na forma de concreto pensado; porém, não é este de modo nenhum o processo de gênese do concreto em si.41 Observando o desenvolvimento histórico das sociedades é possível perceber que as categorias abstratas podem exercer a função de categorias concretas e isto ocorre em determinadas sociedades. Tal fato é observável, por exemplo, nas nações comercias, onde o dinheiro assume o papel de fator dominante . O dinheiro pode existir, e de fato existiu historicamente, antes do capital, dos bancos, do trabalho assalariado, etc.; deste ponto de vista pode afirmar-se que a categoria mais simples pode exprimir relações dominantes de um todo não desenvolvido, ou relações secundárias de um todo mais desenvolvido, relações essas que já existiam historicamente antes de o todo se ter desenvolvido no sentido expresso por uma categoria _mais concreta. Só 38

MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p.

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MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p.

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MARX. Introdução à Crítica da Economia Política. s/p.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 então o percurso do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real. 42 Na sociedade burguesa, em que o capital é uma potência concreta e também: [...] é a potência econômica da sociedade burguesa, potência que domina tudo; constitui necessariamente o ponto de partida e o ponto de chegada, e deve, portanto, ser analisado antes da propriedade agrária; uma vez analisado cada um em particular devem ser estudadas as suas relações recíprocas. [É possível notar que o] [...] trabalho transformou-se – não só como categoria, mas na própria realidade – num meio de produzir riqueza em geral e, como determinação já não está adstrito ao individuo como sua particularidade. Este estado de coisas atingiu o seu maior desenvolvimento na forma mais moderna das sociedades burguesas - os Estados Unidos; consequentemente, só nos Estados Unidos a categoria abstrata ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sans phrase – ponto de partida da economia moderna – se tornou uma verdade prática. Deste modo, a abstração mais simples - que a economia moderna põe em primeiro plano, como expressão de uma relação antiqüíssima e válida para todas as formas de sociedade – só vem a aparecer como verdade prática – e com este grau de abstração – enquanto categoria da sociedade moderna. 43 Utilizando a abstração não apenas atingimos o concreto, mas também seguimos o caminho inverso e seguindo este caminho é possível desvendar como certas categorias são predominantes em cada sociedade. A sociedade burguesa é a mais complexa e desenvolvida organização histórica da produção. As categorias que exprimem as relações desta sociedade, e que permitem compreender a sua estrutura, permitem-nos ao mesmo tempo entender a estrutura e as relações de produção das sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se ergueu, cujos vestígios ainda não superados continua a arrastar consigo, ao mesmo tempo que desenvolve em si a significação plena de alguns indícios prévios, etc. A anatomia do homem dá-nos uma chave para compreender a anatomia do macaco.44 A sociedade burguesa renega esse método, pois ele permite demonstrar que as categorias que regulamentam a opressão de uma classe sobre a outra não são naturais e, portanto são passíveis de transformações, mudanças. Isto é observável, por exemplo, na relação entre os conceitos de Estado e riqueza nacional. Esses conceitos são relacionados para se desenvolver a teoria de que a sociedade é um meio de se obter a satisfação e realização individual. O próprio conceito da século XVII - e subsiste que a riqueza aparece poder é proporcional

riqueza nacional insinua-se nos economistas do em parte nos do século XVIII - sob um aspecto tal como criada exclusivamente para o Estado, cujo a essa riqueza. Esta era uma forma, ainda

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 inconscientemente hipócrita, sob a qual se anunciava a riqueza e a sua produção como o objetivo dos Estados modernos, considerados unicamente como meios de produzir riqueza. 45 Entretanto, as relações econômicas sejam elas relações de produção, ou relações de circulação são explicadas pelo materialismo das concepções adotas por cada sociedade. E essas concepções são determinadas por cada momento histórico. Portanto salienta-se que o caráter de cada época, a sua verdade natural, está ligado ao desenvolvimento de cada sociedade, mas o fato de termos ciência sobre como são fundamentados os fatores determinantes que fomentam cada sociedade, não significa que é uma tarefa simplória determinar as relações, principalmente as relações de produção e as relações jurídicas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A opção pelo estudo das obras de Marx no âmbito do direito refere-se ao fato de que, não obstante sua monumental contribuição, “Marx é tomado por muitos como um anátema, sem se dar conta da profundidade e da genialidade de sua interpretação a respeito de nossos tempos, quiçá de um modo como nenhum outro pensador da contemporaneidade tenha alcançado” 46. Seja por “uma série de preconceitos forjados por desconhecimento ou por uma espécie de repulsa intrínseca às implicações de seu modo de entender o mundo”47, é fato que Marx vem sendo reiterada e sistematicamente ignorado e vilipendiado pelo senso comum e pela academia, sobretudo nos âmbitos da filosofia e do direito. O fenômeno jurídico é uma determinação da base material do modo de produção capitalista, sendo diretamente condicionado pela circulação mercantil. Isto é, para que haja troca mercantil, é preciso estabelecer a igualdade e a liberdade entre os proprietários de mercadorias para que a troca se apresente como isenta de dominação. Assim, o direito engendra a necessária mediação entre os sujeitos na troca de mercadorias sob a aparência de liberdade e igualdade entre partes que celebram um contrato.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 OS MOVIMENTOS GREVISTAS NA DITADURA MILITAR: UM ESTUDO SOBRE AS GREVES NO ABC PAULISTA Gustavo Henrique Chaves Messias1

RESUMO O artigo apresenta uma pesquisa bibliográfica do instituto da greve. Primeiramente é abordado o conceito de greve e a constante modificação deste conceito em razão da evolução dos movimentos grevistas na história ocidental, demonstrando os diferentes patamares de proteção jurídica alcançados pelos trabalhadores. Por fim, traz uma análise da influência que as greves na Região do ABC Paulista, durante a Ditadura Militar, causaram nos movimentos sociais em prol da redemocratização do país. Palavras-chave: Greve. Ditadura Militar. ABC Paulista. Redemocratização.

ABSTRACT The article presents a literature review of the strike's institute. First is analyzed the concept of strike and the constant change of this concept by reason of the evolution of the strike movements in Western history, showing the different levels of legal protection achieved by workers. Finally, presents an analysis of the influence that the strikes of the ABC Paulista Region, during the Military Dictatorship, have caused in the social movements in defense of the redemocratization of the country. Keywords: Strike. Military Dictatorship. ABC Paulista. Redemocratization.

1. INTRODUÇÃO A palavra greve se origina do termo fracês grève, oriundo do nome da Place de Grève2, em Paris, um terreno plano e arenoso situado à margem do Rio Sena, onde se localizava também o port de La Grève3, próximo à atual prefeitura da capital francesa. No Brasil, o termo parede foi utilizado até meados de 1930, sendo inaugurado o termo greve pela Constituição de 1937, que influenciou todas as demais normas jurídicas, exceto o Código Penal vigente, datado de 1940, que ainda expressa o termo parede (art. 197, II). Durante o período da Ditadura Militar no Brasil (1964 – 1985), o país passou a ser governado pelos terríveis Atos Institucionais, conhecidos como “AI´s”. Com a edição do AI 2, recriou-se a Justiça Federal de 1º grau, que acumulou a competência para julgar os delitos referentes ao 1

Graduando do 9º período do curso de Bacharel em Direitoda UFMA. A referida praça, desde 1803, foi rebatizada como Place de l´Hotel-de-Ville, hoje um aprazível espaço de pedestres. 3 Grève deriva do pré-latim grava, significando areia, cascalho. Movidos pela água do Rio Sena, areia e cascalho acumulavam-se na praça, formando uma praia que facilitava o descarregamento de mercadorias transportadas pelo rio. 2

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 exercício do direito de greve, que passou a ser regulada pela nova lei de greve (Lei 4.330/64), mais conhecida como lei antigreve, pois na prática negava o direito de greve dos trabalhadores. A temática do período ditatorial brasileiro alcança grande repercussão no país com a instalação da Comissão Nacional da Verdade em 16 de maio de 2012, que tem como função investigar as graves violações cometidas contra os direitos humanos entre o ano de 1946 até a promulgação da Constituição Federal de 1988, com o objetivo de garantir o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Muito embora, a Ditadura Militar tenha exercido forte repressão aos direitos dos trabalhadores em geral, viu-se surgirem os mais importantes movimentos sociais em defesa dos direitos trabalhistas nesse período, que usaram a greve como instrumento para lutar em prol de seus direitos mitigados. Passadas mais de duas décadas após a instalação do regime militar, finalmente foi alcançada a consolidação da democracia nacional e do reconhecimento do direito de greve através da promulgação da Constituição de 1988. Ademais, a eleição de um líder sindical grevista, Luís Inácio Lula da Silva, ao cargo de Presidente da República, representou um marco do renascimento dos direitos dos trabalhadores, representando um símbolo da consagração dos direitos sociais no seio da sociedade. O presente artigo tem o escopo de abordar o avanço do direito de greve no mundo ocidental após a instauração do modo de produção capitalista, com foco nas principais greves do período ditatorial brasileiro: as greves dos metalúrgicos do ABC paulista. Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica, com pesquisa em artigos, leis e livros, incluindo a obra inusitada de Christiano Fragoso, “Repressão penal da greve: uma experiência antidemocrática”, com o desígnio de conciliar um objeto de estudo tanto das ciências jurídicas quanto das ciências humanas. Busca-se com o corrente trabalho instigar o debate e a pesquisa sobre um período conturbado da história do Brasil, a Ditadura Militar, focando nas contribuições que os sindicatos e movimentos trabalhistas da época deram a formação política e democrática nacional.

2. UM OLHAR SOBRE O DIREITO DE GREVE

Ao formular um conceito de greve é comum na literatura a confusão entre o fenômeno social da greve e o conceito jurídico de greve. A doutrina jurídica, principalmente, costuma relacionar as normas jurídicas que disciplinam a greve ao seu conceito enquanto fenômeno social. Um equívoco que não pode prosperar, como apontaram os Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio no julgamento do MI-20/DF no Supremo Tribunal Federal, ao referirem-se que a greve “é antes de tudo um fato, que historicamente não esperou pela lei para tornar-se uma realidade inextirpável da sociedade moderna”. A norma jurídica é uma valoração, de determinado fato social, realizada pelo poder legislativo de uma sociedade, quer seja ele desmembrado ou concentrado nas mãos de um soberano. Dessa forma, o conceito normativo não é fator essencial ao entendimento e caracterização do fenômeno

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 social da greve, mas apenas uma vinculação à ordem jurídica constituída, como elucida Fragoso: A greve, como fenômeno social, deve ser conceituada independente dos preceitos legais vigentes em determinado país e em determinada época. Um conceito aproximado seria o seguinte: a greve é a abstenção coletiva e temporária do trabalho (ou uma alteração sensível de seu ritmo normal), deliberada por uma pluralidade de trabalhadores, para a obtenção de determinado fim comum. (FRAGOSO, 2009, p. 52, grifo do autor) Entretanto, o autor ressalva que essa definição “não tem maior pretensão, pois o conceito de greve é dinâmico, encontrando-se em um estado de revisão permanente” (FRAGOSO, 2009, p. 52). Na definição do instituto da greve, consoante Carrion: A greve é um fato social de origem antijurídica (pelo inadimplemento do deve de prestar serviço), mas de tal pujança que se tornou incontenível; guarda, entretanto, em seu interior, indisfarçáveis substratos daquela injuricidade, como acontece com o homicídio em legitima defesa, ou outras formas de autocomposição; por isso se diz que “escapa parcialmente ao direito”. O conceito jurídico mais puro e pacífico é o que entende que a greve é a suspensão concertada e coletiva de trabalho, com a finalidade de obter do empregador certa vantagem; geralmente, novas condições de trabalho. (CARRION, 2007, p. 275, grifo nosso). A greve é a mais significativa reivindicação do trabalhador, sua maior ferramenta em conflitos coletivos e caracteriza-se basicamente por uma alteração do ritmo do trabalho esperado pelo contratante, particular ou público. Essa “alteração” pode se dar desde a conhecida greve tartaruga ou greve de braços caídos, situação em que os operários trabalham vagarosamente, até a greve geral, quando trabalhadores de numerosos setores econômicos paralisam toda a cadeia de produção. A greve é sempre um fenômeno coletivo, não existindo a prática individual e, embora declarada por tempo indeterminado, a alteração do ritmo de trabalho é sempre uma medida temporária, com o objetivo comum de ter as reivindicações trabalhistas dos grevistas atendidas.

2.1. A Revolução Industrial e o Modo de Produção Capitalista

Em meados do século XVII, a Revolução Industrial inglesa proporcionou o surgimento de duas classes sociais opostas: a burguesia e o proletariado. A fábrica era o local onde as relações sociais de produção dessa emergente sociedade capitalista eram nítidas: a burguesia, detentora dos meios de produção, participava do processo de trabalho como gestora e, os operários, operavam as máquinas e produziam as mercadorias com sua força de trabalho. Nesse período, a exploração da classe dominante burguesa sobre a classe trabalhadora alcançou níveis exorbitantes. Assim descrevem Marx e Engels:

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A burguesia, historicamente, teve um papel extremamente revolucionário. Em todas as vezes que chegou ao poder, pôs termo a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Desapiedadamente, rompeu os laços feudais heterogêneos que ligavam o homem aos seus “superiores naturais” e não deixou restar vínculo algum entre um homem e outro, além do interesse pessoal estéril, além do “pagamento em dinheiro”, desprovido de qualquer sentimento. Afogou os êxtases mais celestiais do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo filisteu, nas águas geladas do calculismo egoísta. Converteu mérito pessoal em valor de troca. E no lugar das incontáveis liberdades reconhecidas e adquiridas, implantou a liberdade única e sem caráter do mercado. Em uma palavra, substitui a exploração velada por ilusões religiosas e políticas, pela exploração aberta, imprudente, direta e brutal. (MARX, ENGELS, 2008, p. 13) Citando O Capital, de Karl Marx, Wayne Morrison descreve como surgiu o capitalismo após os enclosures4 na Inglaterra e aponta a influência do direito nesse processo de transição da ordem social: O capitalismo nasce “vertendo sangue e imundices por todos os poros, da cabeça aos pés” (ibid.: 760); o acúmulo de capital ocorre por meio de “conquista, escravização, roubo, assassinato; numa palavra, pela força” (ibid.: 714); e tudo isso é conquistado e legitimado através da promulgação de leis (MORRISON, 2006, p. 317). Continua o autor:

Na Inglaterra, o direito era “o instrumento do roubo das terras do povo”; “a legislação sanguinária contra os expropriados” havia penalizado o nomadismo, forçando os despossuídos a lançar-se no estreito caminho do mercado de trabalho (ibid.: 724) (MORRISON, 2006, p. 317). Relegados a condições sub-humanas, os trabalhadores passaram a reivindicar melhores condições de trabalho e aumento salarial em todas as partes do mundo capitalista, surgindo as primeiras greves da história

2.2. O Direito de Greve no Ocidente

No início do século XIX, nenhum observador sensato poderia negar que a situação dos trabalhadores pobres era assustadora, não restando alternativa aos operários senão a rebelião, como ressalta Hobsbawm:

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Conhecido também como a “política dos cercamentos”, foi o primeiro passo para o desenvolvimento industrial inglês, que consistiu no cercamento das terras usadas pelos camponeses. Expulsos da terra, os camponeses foram obrigados a trabalhar nas nascentes fábricas têxteis em troca de pagamentos módicos.

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A situação dos trabalhadores pobres, e especialmente do proletariado industrial que formava seu núcleo, era tal que a rebelião era não somente possível mas virtualmente compulsória. Nada foi mais inevitável na primeira metade do século XIX do que o aparecimento dos movimentos trabalhista e socialista, assim como a intranquilidade revolucionária das massas. (HOBSBAWM, 2006, p. 285) Num primeiro momento, temos a fase greve-delito, onde a greve é considerada um delito penal. Posteriormente, a greve passou por um processo de descriminalização, ocorrido primeiramente na Inglaterra, que, em 1824, iniciou a tendência à admissão de uma liberdade de greve, influenciando vários países da Europa. Dessa forma, a greve passa a ser considerada um ilícito civil, tolerada pelos Estados capitalistas, mas passível de punição extrapenal por parte do empregador: é a fase greve ilícito-civil. Na França, a greve pacífica é descriminalizada em 1864, na Itália, a greve e o lock-out foram descriminalizados com o Código Zanardelli de 1889, nos países ibéricos, os delitos de greve pacífica foram revogados no final da primeira década do século XX e na Alemanha, com a Constituição de Weimar de 1917, consagra-se a liberdade de associação com o intuito de garantir a melhoria das condições de trabalho. A fase greve-direito foi inaugurada com a famosa Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos, de 05 de fevereiro de 1917, que garantia o direito de greve constitucionalmente.

3. GREVE NO BRASIL

Primariamente, a Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824, sequer citava sobre a greve. Isso ocorreu em razão de o país estruturar-se economicamente sobre a mão-de-obra escrava, e qualquer rebelião destes, que eram tratados como coisas, não era tolerável, sendo obrigação dos próprios senhores dos escravos punirem os transgressores. No entanto, mesmo diante de um cenário repressor, várias greves foram deflagradas na época. A greve dos tipógrafos, em 08 de janeiro de 1858, no Rio de Janeiro, capital do Império, é considerada a primeira greve de trabalhadores livres do país e, em 1881, operários de diversas cidades protestaram contra o novo censo eleitoral de caráter censitário, consumando a primeira greve política do Brasil. Para Saes, esses protestos: (...) ainda constituíam movimentos isolados, esporádicos, curtos. Essas características indicam que a luta econômica das classes proletárias urbanas ainda não era dirigida por organizações voltadas para a defesa do trabalhador no mercado de trabalho e no lugar da produção: os sindicatos (SAES, 1985, p. 329). Na República velha as greves no Brasil foram proibidas, com a tipificação como crime no Código Penal de 1890 dos atos de ameaça, constrangimento e violência durante o movimento (FARIAS, 2010, p. 174).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A realidade social do período republicano brasileiro é descrita por Fragoso: O operariado lutava pelas mais elementares condições de trabalho, pois não havia nenhuma legislação trabalhista, reinando absoluto, portanto, o regulamento da empresa. Grande parte da elite e do empresariado tinha a escravidão como parâmetro de trabalho, vigorando nas fábricas um modelo escravista. No início, essa mão-de-obra era composta por homens, mas com o desenvolvimento do setor manufatureiro, logo passaram a contratar mulheres e crianças, que chegaram a constituir número significativo (FRAGOSO, 2009, p. 147). O golpe de Estado e a tomada do poder por Getúlio Vargas em 1930 representava uma ruptura com as velhas políticas brasileiras. O Estado Novo foi um símbolo de avanço no campo dos direitos trabalhistas. A partir do ano de 1932, Vargas, através de decretos do Governo Provisório, instituiu limitação na jornada de trabalho, descanso semanal, férias anuais, carteira profissional e normas sobre o trabalho feminino e trabalho infantil. Somado a isso, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, sob influencia da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, da Alemanha, foi a primeira Carta Política brasileira a defender os direitos sociais do trabalho em seu título “Da Ordem Econômica e Social”. No entanto, com uma política governamental de fortíssimo controle dos sindicatos e uma monopolização estatal na solução dos conflitos coletivos, acabou por reprimir, inclusive com força policial, os focos de greve durante o período. Cedendo a pressão das elites nacionais, Vargas renúncia em 1945 e o país vive um breve período “democrático”, assim descrito por Alencar e Ramalho: Uma democratização efetiva do regime requeria a criação de certas condições até então inexistentes na história política brasileira. Entre elas, algumas eram essenciais: o direito de todas as correntes ideológicas à participação política; a ação real da forças políticas no sentido de extinguir as desigualdades e injustiças sociais. (ALENCAR; RAMALHO, 1996, p. 349). As reivindicações trabalhistas reprimidas na Ditadura Varguista começam a reaparecer no cenário nacional. No primeiro ano do governo do Presidente Dutra são registradas várias greves, em várias categorias. Os anos de 1950 foram marcados por um período de grande avanço organizativo e mobilizatório nos movimentos dos trabalhadores, resultando em uma grande participação dos mesmos na vida política da sociedade.

4. A DITADURA MILITAR NO BRASIL

Após um golpe orquestrado pela elite burguesa nacional e pelos militares, aliados aos interesses do capital internacional, representado por agentes da Central Intelligency Agency (CIA), dos Estados Unidos, é estabelecido, em 1º de abril de 1964, a Ditadura Militar no Brasil, um período

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sombrio da história nacional que se estenderia por 21 anos. A implantação do regime militarista abalou seriamente o movimento sindicalista dos trabalhadores da época: Após mais de uma década desse intenso crescimento e atividade, toda a estrutura organizacional dos trabalhadores brasileiros, na base e na cúpula, foi duramente atingida pelo golpe civil-mitar de 1964, o qual tinha como uma das suas justificativas exatamente impedir a implantação de uma “república sindicalista” no país. A prisão de lideranças, a perseguição de militantes, bem como a desestruturação do trabalho nos sindicatos e nas fábricas, desbarataram atividades que levariam bastante tempo para serem recompostas. Em termos do movimento operário, o que restou, como tradicionalmente restava em períodos como esse, foi o trabalho pequeno e silencioso no chão de fábrica. Era preciso recompor forças e somar esforços para enfrentar a ditadura. (SANTANA, 2008, p. 279) Caracterizada por decretos-lei repressores e pela política de “arrocho salarial”, o período conhecido como “Anos de Chumbo” foi marcado por prisões, torturas e assassinatos cometidos pela força policial do regime. Centenas de intelectuais, professores, jornalistas, artistas e políticos são exilados por discordarem do governo da época. O jornalista e ex-deputado federal, Márcio Moreira Alves, em 02 de setembro de 1968, realizou discurso na Câmara dos Deputados, condenando uma invasão policial que acontecera na Universidade de Brasília e sugeriu que houvesse um boicote à parada militar de 07 de setembro daquele ano, recomendando as mulheres que se recusassem a se relacionar com oficiais das forças armadas (GASPARI, 2002, p. 315-316). Os militares, indignados, exigiram que o deputado fosse processado criminalmente. O Congresso negou o pedido. No dia seguinte, em 13 de dezembro de 1968, os militares utilizaram como pretexto o acontecimento narrado e assinaram o Ato Institucional nº 5, o terrível AI-5, que, na prática, atribuía poder máximo ao Chefe do Executivo, em detrimento dos representantes do povo que compunham o Poder Legislativo, fechava o Congresso nacional, reduzia qualquer direito político e de cidadania, e suprimia todas as liberdades democráticas ao longo desse período (GASPARI, 2002, p. 339-341).

5. O CASO DO ABC PAULISTA E SUA INFLUÊNCIA NA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL

Com os sindicatos silenciados, resumindo-se a medidas assistencialistas, as greves só retornariam, gradualmente, a partir dos anos de 1972 e 1973, insufladas pela inflação proporcionada pela crise do petróleo da década de 70 e pela continuação da política de arrocho salarial do governo militar. Em seu discurso de posse da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo dos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Campos, região do ABC Paulista5, em 21 de abril de 1978, Luis Inácio da Silva conclama os trabalhadores a iniciarem uma greve por melhores condições de vida e de trabalho. Em visto disto, ainda no primeiro semestre daquele ano, os trabalhadores da Saab-Scania, em São Bernardo, entraram na fábrica e prostram-se inertes defronte as maquinas, iniciando uma greve que se estenderia a todo o Estado de São Paulo e seria conhecia como “braços cruzados, máquinas paradas”. Os trabalhadores reivindicavam maiores índices de reajuste salarial, um claro questionamento à política salarial e trabalhista do governo ditatorial. Mesmo com a revogação do AI-5 em 13 de outubro de 1978, a repressão à greve ainda continuava muito forte no Governo de Figueiredo (1979 – 1985), com assassinatos, pela polícia, de muitos operários em manifestações. Como resposta, os movimentos sindicais começaram a enfrentar a ditadura militar. Representando um marco nos movimentos trabalhistas do Brasil, em 13 de abril de 1979, diante da renúncia do governo militar em dialogar com os sindicatos dos trabalhadores, os metalúrgicos do ABC entraram em greve.

Esta greve foi o primeiro grande movimento de massas da classe operária depois de 1964, na forma de uma greve fora da fábrica, com piquetes, por tempo indeterminado e com a realização de grandes assembleias (MELO apud FRAGOSO, 2009, p. 252). No entanto, em resposta: A ditadura tinha de provocar uma derrota nos metalúrgicos do ABC. Para alcançar seu objetivo, não poupou nada e ninguém. Decretaram a intervenção no sindicato, encheram o ABC de espiões, tropa de choque, helicópteros do Exército, brucutus, e espancaram milhares de trabalhadores. Censuraram a imprenssa, e a poderosa Rede Globo abriu o espaço para Mário Garnero, diretor da Volks, no Jornal Nacional, para que só ele falasse. Contra a sua vontade, a repórter que foi entrevistá-lo negou-se a aparecer na tela e foi mais longe, tirou de seus dedos os anéis para “nunca” ser identificada com aquela trapaça. (MELO apud FRAGOSO, 2009, p. 252). Não intimidados, após a experiência das greves dos dois anos anteriores, os metalúrgicos do ABC entraram novamente em greve em 1º de abril de 1980, bem organizados e com altíssima adesão dos trabalhadores. Porém, a repressão foi violenta, culminando na prisão de vários líderes sindicais, entre eles, Luís Inácio Lula da Silva, o Lula, que embora preso, continuava a passar instruções. Passados 41 dias desde o início da greve, os trabalhadores, cansados da opressão estatal, decidiram por terminar a greve em assembleia geral celebrada na Igreja Matriz de São Bernardo do Campo. Todavia, o processo criminal instaurado contra os grevistas continuou, sendo os réus acusados com fundamento na Lei de Segurança Nacional. 5

ABC, ABC Paulista ou Região do Grande ABC, é uma região tradicionalmente industrial do Estado de São Paulo. A sigla origina-se das três cidades que compõem a região metropolitana: Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Após um conturbado trâmite processual, o Superior Tribunal Militar proferiu uma decisão de extrema importância, declarando incompetência da Justiça Militar para o caso, pois os réus deveriam ser julgados com vistas da lei anti-greve (Lei 4.330/64). Ulteriormente, com os autos remetidos ao Procurador da República, foi requerido o arquivamento do feito, acolhido pelo juiz da causa. Fragoso assim avalia essa histórica decisão: O acórdão constituiu pronunciamento que se destina a barrar novas perseguições odiosas a trabalhadores com base na lei de segurança nacional. (...) Creio que essa decisão da Justiça Militar constituiu um fato histórico importante nas lutas sindicais em nosso país. De agora em diante, não é mais possível acionar a lei de segurança para perseguir os trabalhadores em greve que não tenha caráter subversivo (FRAGOSO apud FRAGOSO, 2009, p. 257). A coação sobre essa greve e seu resultado teve grande impacto sobre o movimento sindical nacional e suas perspectivas na década de 80. Isto se refletia no decadente regime militar, que ia mostrando seus limites. Porém, essa greve, somada as anteriores, marcaria a história política e sindical recente do país e seria a porta de entrada de uma década de numerosas paralisações de trabalhadores, tornando-se um ponto de orientação para os movimentos sociais futuros que, agregados ou não ao movimento sindical, dariam contribuição importante para a entrada de novos personagens na luta para a redemocratização do país. A importância da influência crescente dos trabalhadores no cenário político nacional pode ser constatada, principalmente, com a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, que participaria ativamente no movimento das Diretas Já do país. Desta forma, os trabalhadores passaram a protagonizar na luta pelo retorno do regime democrático no Brasil. Apesar do fim da ditadura ter sido marcada pela ascensão de um presidente civil vinculado à ARENA, partido dos militares, e eleito indiretamente, a redemocratização do país carregou consigo mudanças no país. Assim demonstra Fragoso: A nomeação de Almir Pazzinato Pinto, um dos mais atuantes advogados de defesa de trabalhadores nas greves, para o Ministério do Trabalho, foi importante, pois um dos primeiros atos foi a anistia de trabalhadores punidos em razão de participação em movimentos trabalhistas e a suspensão das intervenções em sindicatos, contribuindo para a normalidade das relações trabalhistas. Os bons ventos da redemocratização impunham que a Assembleia Constituinte, reunida a partir de 1986, reconhecesse o direito de greve (FRAGOSO, 2009, p. 258 – 259). Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o direito de greve ficou assegurado, cabendo os trabalhadores decidirem sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender (MARTINS, 2008, p. 823).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta sucessão de greves no ABC Paulista demonstrava a capacidade dos trabalhadores de organização, mobilização e disposição de luta, ainda que frequente a opressão do regime militar, influenciando toda a classe dos trabalhadores, em particular, e para a sociedade. Com a greve do ABC de 1978, outras mobilizações foram impulsionadas, em um processo que se consolida e amplia-se com as greves de outras categorias de trabalhadores (bancários, petroleiros, professores etc.) em todo o país. Sem dúvida, as greves fazem parte da trajetória brasileira de redemocratização e de amadurecimento da sociedade brasileira. À medida que os operários se tornaram capazes de reivindicar seus direitos perante a burguesia industrial, o choque de interesses entre capital e trabalho cresceu cada vez mais na arena política. Nessa esteira, as greves acabaram se transformando num elemento de contribuição para a democratização do país e foram as paralisações que estimularam a transição política e viceversa. A sociedade brasileira mobilizada nas ruas, reivindicando seus direitos nas “Diretas Já” ou mais tarde no impeachment de Collor, nasceu com as greves do ABC Paulista. As greves foram uma escola de como mobilizar as massas, bem como introduziram os trabalhadores e suas lideranças no cenário político nacional.

REFERÊNCIAS

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 32. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2007. CHRISTIANO, Fragoso. Repressão penal da greve: uma experiência anti-democrática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. FARIAS, James Magno Araújo. Direitos sociais no Brasil: o trabalho como valor constitucional. São Luis: Azulejo Editora, 2010. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. HOBSBAWM, Erick. A era das revoluções. Europa 1789 – 1848. 20ª ed. Trad. Maria Tereza Lopes e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do trabalho. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Tradução: Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MELO, Raimundo Simão de. A greve no direito brasileiro. São Paulo: Ltr, 2006. MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução: Jefferson Luiz Camargo; revisão-técnica: Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil (1888 – 1891). 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. SANTANA, Marco Aurélio. Ditadura Militar e resistência operária: o movimento sindical brasileiro do golpe à transição democrática. Out. 2008. In: Política & Sociedade: Revista de sociologia política, v. 7, nº 13. Disponível em: < http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/9321 > Acesso em: 18 abril. 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 HOMOSSEXUALIDADE E DIREITO BRASILEIRO Paula Pinhal de Carlos1 Resumo Este artigo realiza uma conexão entre Direito brasileiro e homossexualidade. Parte da concepção da sexualidade com construção social, compreendendo-se, a partir daí, porque a heterossexualidade é tida como naturalizada, o que coloca necessariamente formas diversas de exercício da sexualidade, como a homossexualidade, como desviantes. Busca-se, com isso, compreender a forma com que a sociedade compreende a homossexualidade, o que gera também o não reconhecimento ou o não exercício de direitos dos homossexuais. Relaciona, também, a conquista de direitos com o movimento LGBT e, por fim, realiza uma análise dos dispositivos constitucionais básicos para a garantia dos direitos dos homossexuais no país, passando, especialmente, pela dignidade da pessoa humana e pelo direito fundamental à liberdade. Palavras-chave: homossexualidade; Direito brasileiro; Constituição Federal. 1 Introdução Para compreender por que determinados direitos são negados a homossexuais é preciso ter um olhar externo ao fenômeno jurídico, olhar esse conferido, aqui, pelas Ciências Sociais e pelos Estudos de Sexualidade. É a partir deles que é possível compreender por que as normas jurídicas, ainda que contemplem de forma indireta a questão da garantia do exercício da livre orientação sexual, não são efetivadas. Para tanto, é preciso olhar para a sociedade, e não apenas para o Direito, e compreender a sexualidade como construção social. A partir desse viés, torna-se possível também a compreensão da homossexualidade como padrão desviante e a imposição de uma matriz heterossexual. 2 Sexualidade como construção social Neste trabalho, a sexualidade será concebida como uma construção social, portanto determinada histórica e culturalmente. Nesse sentido, considera-se, com Vance (1995), que aquilo que é aceitável, ou seja, aquilo que é considerado normal ou natural, é variável conforme a época, o local e a cultura. Para Foucault (1988, p. 100), a sexualidade deve ser vista como um dispositivo histórico: Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que o poder é tentado a pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos 1

Profissão: professora permanente do Mestrado em Direito e Sociedade, professora colaboradora do Mestrado em Memória Social e Bens Culturais e professora da graduação em Direito do Centro Universitário La Salle Canoas/RS. Professora da graduação em Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis/RS. Líder do grupo de pesquisa do CNPq Efetividade dos direitos e Poder Judiciário e vice-líder do grupo de pesquisa do CNPq Mariposas: gênero, sexualidades e feminismos. Formação acadêmica: graduada em Ciências Jurídicas e Sociais e mestra em Direito (área de concentração Direito Público) pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/RS. Doutora em Ciências Humanas (área de concentração Estudos de Gênero) pela Universidade Federal de Santa Catarina, com período sanduíche realizado junto ao Institut National d'Études Démographiques de Paris. Última publicação: O julgamento da ADI nº 4277 pelo STF e o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como união estável: interseções entre Direito e sexualidade. In: SCHWARTZ, Germano André Doederlein; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de (orgs.). O direito da sociedade: anuário, v. 1. Canoas: Unilasalle, 2014, p. 149-164. Assuntos de interesse: Direito e gênero, Direito e sexualidade, Direitos humanos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação do discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e poder. No mesmo sentido são os dizeres de Weeks (2001), para quem a sexualidade só pode ser compreendida num contexto histórico específico, sendo preciso, ainda, compreender as relações de poder que interferem nos comportamentos considerados normais ou aceitáveis. Também Louro (1997) entende que a sexualidade é uma invenção social, constituída historicamente e a partir de discursos reguladores sobre o sexo. Logo, segundo a autora, é a partir dos processos culturais que é definido o que é ou não natural em determinada sociedade e em determinada época. Esses autores, baseados em Foucault, tratam da sexualidade como uma construção e como circunscrita às relações de poder, conforme enumera Giddens (1993, p. 33): “a sexualidade é uma elaboração social que opera dentro dos campos do poder, e não simplesmente um conjunto de estímulos biológicos que encontram ou não uma liberação direta”. Rubin também rejeita o que chama de “essencialismo sexual” (2010, p. 10), compreendendo que a sexualidade é histórica e socialmente construída, e não biologicamente determinada: “isso não significa que as capacidades biológicas não são pré-requisito para a sexualidade humana. Significa que a sexualidade humana não é compreensível em termos puramente biológicos” (RUBIN, 2010, p. 11). A esse conjunto de autores também se une Ferrand (2004), que entende a sexualidade como aquilo que compreende as práticas sexuais físicas e corporais e também as significados da sexualidade, bem como as relações e interações sociais provocadas por ela. Nesses significados da sexualidade estariam inseridas as representações e os afetos, dentre outros. Bozon (2009) entende que é a sociedade que produz a sexualidade humana, a qual, diferentemente da dos animais, não é instintiva, mas culturalmente construída. A sexualidade é compreendida ainda como sendo relacionada aos atos, às relações e às significações. 3 Homossexualidade e imposição da matriz heterossexual Sendo a sexualidade construída socialmente e, por esse motivo, tida como mutável de acordo com a época e o local também é possível compreender como construída socialmente a sexualidade homossexual. Nessa construção da sexualidade homossexual, poder-se-á perceber, ainda, a imposição cultural de uma matriz heterossexual, entendendo-se que as formas “desviantes”, dentre as quais encontra-se a homossexualidade, são imprescindíveis para a construção daquele padrão. Para Welzer-Lang (2001), foi no momento em que se passou a definir os indivíduos não mais por meio do aparelho genital, mas a partir de uma categoria psicológica que é o desejo sexual que se contribuiu para a imposição do paradigma da heterossexualidade como uma forma natural de sexualidade. O autor salienta também que é essa naturalização da heterossexualidade que fundamenta o heterossexismo, o qual pode ser conceituado como “a discriminação e a opressão baseada em uma distinção feita a propósito da orientação sexual” (WELZER-LANG, 2001, p. 468). Ele seria a promoção da superioridade do padrão heterossexual e, ao mesmo tempo, da subordinação da homossexualidade. Também Butler relaciona à existência de um padrão heterossexual a necessidade de invisibilidade da homossexualidade. Ela assinala que, “para que a heterossexualidade permaneça intacta como forma social distinta, ela exige uma concepção inteligível da homossexualidade e também a proibição dessa concepção, tornando-a culturalmente ininteligível” (BUTLER, 2003, p. 116). A autora aduz que o “impensável” está assim plenamente dentro da cultura, mas é plenamente excluído da cultura dominante. A teoria que presume a [...] homossexualidade como o ‘antes’ da cultura, e que situa essa ‘prioridade’ como fonte de uma subversão pré-discursiva, proíbe efetivamente, a partir de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 dentro dos termos da cultura, a própria subversão que ela ambivalentemente defende e à qual se opõe (BUTLER, 2003, p. 116). Segundo Louro, esse paradigma heterossexual traz consigo um paradoxo: ao mesmo tempo em que delimita os padrões a serem seguidos, fornece a base para as transgressões. Os desviantes, que ficariam à deriva, também paradoxalmente ao seu afastamento, fazem-se mais presentes: Suas escolhas, suas formas e seus destinos passam a marcar a fronteira e o limite, indicam o espaço que não deve ser atravessado. Mais do que isso, ao ousarem se construir como sujeitos (...) de sexualidade precisamente nesses espaços, na resistência e na subversão das “normas regulatórias”, eles e elas parecem expor, com maior clareza e evidência, como essas normas são feitas e mantidas (2004, p. 17 e 18). A autora ainda coloca-nos que o viajante interrompe a comodidade, abala a segurança, sugere o desconhecido, aponta para o estranho, o estrangeiro. Seus modos talvez sejam irreconhecíveis, transgressivos, distintos do padrão que se conhece. Seu lugar transitório nem sempre é confortável. Mas esse pode ser também, em alguma medida, um lugar privilegiado que lhe permite ver (e incita outros a ver), de modo inédito, arranjos, práticas e destinos sociais aparentemente universais, estáveis e indiscutíveis (LOURO, 2004, p. 24). De acordo com Louro, devido à concepção binária do sexo (feminino e masculino) o desenvolvimento da sexualidade também é concebido de forma binária, sendo direcionado ao sexo oposto. Por conta disso, a heterossexualidade torna-se “o destino inexorável, a forma compulsória da sexualidade” (2004, p. 81), passando as transgressões a ser vistas como incompreensíveis ou patológicas. As normas regulatórias servem, aqui, como forma de garantia de que tal característica é desviante, pois, para Louro, (2004, p. 82), são elas que indicam os limites, dentre outros, da legitimidade e da moralidade (LOURO, 2004, p. 82). Essas normas regulatórias, que garantem que características relativas à sexualidade são desviantes, também operam, conforme Bourdieu, na forma de dominação simbólica, uma vez que impõem a invisibilidade de que os homossexuais são vítimas. A partir do conceito de “dominação simbólica”, ele procura explicitar que “o dominado tende a assumir a respeito de si mesmo o ponto de vista dominante”. Assim, isso levaria homossexuais a invisibilizar sua experiência sexual, vivenciando-a envergonhadamente ou “no armário” (SEDGWICK, 1998) 2: A opressão como forma de “invisibilização” traduz uma recusa à existência legítima, pública, isto é, conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por uma estigmatização que só aparece de forma realmente declarada quando o movimento reivindica a visibilidade. Alega-se, então, explicitamente a “discrição” ou a dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se impor (BOURDIEU, 2003, p. 143 e 144). A partir do exposto, percebe-se que a sexualidade é construída social e culturalmente, ou seja, os padrões sociais relativos a ela são produzidos e reproduzidos também simbolicamente e são mutáveis. Assim, eleva-se a discussão acerca da sexualidade a um outro patamar: passa-se do reducionismo biológico, da naturalização, à mutabilidade dos padrões instituídos, a partir do processo de “dar-se conta” de como eles são instituídos. Revela-se, ainda, que, na nossa sociedade, há uma matriz heterossexual imposta e legitimada, a qual necessita da subordinação da homossexualidade. Essa subordinação faz com que 2

Eve Sedgwick (1998), trata, em seu texto “A epistemologia do armário”, sobre o assumir-se, demonstrando que, mesmo os homossexuais que assumem sua orientação vêem-se, em diversos momentos de suas vidas, saindo e entrando nesse armário, ou seja: esse assumir-se não ocorre em todos os espaços e para todas as pessoas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sexualidade homossexual deva ser invisibilizada, posta no armário, pois tal padrão só serviria como um exemplo ao contrário, que não é legitimado (embora seja também produzido, ainda que com esse propósito). Trata-se de um código binário que influenciará, inclusive, o não reconhecimento de direitos de homossexuais no Brasil. 4 Reconhecimento dos direitos dos homossexuais Movimento LGBT brasileiro Pensando na relação entre homossexualidade e Direito brasileiro, é preciso referir as reivindicações do movimento homossexual no Brasil, responsável pelas demandas jurídicas que se relacionam com a homossexualidade. Os movimentos sociais tratam de questões antes relativas à esfera privada, englobando diferenças que passam a ser significadas, como as de gênero e relacionadas à sexualidade (GOSS; PRUDENCIO, 2004). O movimento hoje denominado de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) brasileiro insere-se no que Ernesto Laclau (1986) denomina de novos movimentos sociais, pois é centrado em uma questão identitária, ou seja, relaciona-se a questões relativas à orientação sexual (no caso de lésbicas, gays e bissexuais) e a questões relativas à chamada identidade de gênero (no que se refere a transgêneros). Ressalta-se aqui que orientação sexual e identidade de gênero são dois conceitos diferentes. Neste trabalho, ficar-se-á restrito à questão da orientação sexual, uma vez que se trata, aqui, de Direito e homossexuailidade. A orientação sexual diz respeito ao desejo afetivo e sexual, que pode ocorrer direcionado a pessoas do gênero oposto (heterossexualidade), a pessoas do mesmo gênero (homossexualidade) ou a pessoas de ambos os gêneros (bissexualidade). No que tange à identidade de gênero, situam-se aqui as demandas relacionadas a transgêneros, tais como o direito ao nome social, ao tratamento público e gratuito de readequação sexual etc. Para Regina Facchini (2005), o movimento homossexual brasileiro divide-se em duas ondas. Uma primeira onda está localizada no final dos anos 1970, com a abertura política que anunciava o final da ditadura militar. Nesse momento, o movimento era centrado em propostas de transformação para o conjunto da sociedade e na luta contra a repressão sexual. Já a segunda onda, localizada na década de 1980, é gerada a partir de um aumento da visibilidade pública da homossexualidade e refere-se à soma da expansão do mercado destinado a homossexuais e da chegada da epidemia da AIDS. Aqui estão alocadas reivindicações jurídicas mais específicas, tais como a inclusão da expressão orientação sexual no artigo que proíbe discriminações em nossa Constituição Federal. 5 Direitos dos homossexuais e Constituição Federal Compreendida a relação existente entre direitos dos homossexuais e movimento LGBT, cabe agora tratar dos dispositivos legais constitucionais que possuem relevância e que são aplicáveis à temática. A ênfase aqui é dada na lei, uma vez que ela possui especial valor nos países da família romano-germânica, o que faz com que os juristas tenham nela a melhor maneira de chegar a soluções de justiça (DAVID, 1996). Por isso, especialmente em países como o Brasil, o Direito positivo possui uma função legitimadora (WARAT, 1983). A lei pode ser caracterizada, ainda, como “um campo de forças que incessantemente se recompõem, uma batalha onde se medem os grupos em presença, a profundidade dos obstáculos, a natureza das alianças, as mudanças de opinião” (PERROT, 1994). Diante do exposto, percebe-se que a análise de dispositivos legais é imprescindível para o estudo de uma questão jurídica, ainda que ela não esteja explicitamente contemplada em outros dispositivos legais, motivo pelo qual proceder-se-á a uma análise dogmática crítica. No que se refere à Constituição, tem-se que ela pode ser conceituada como sendo um “acordo de vontades (pacto fundante) políticas desenvolvido em um espaço democrático que permite a consolidação histórica das pretensões sociais de um grupo” (MORAIS, 2002, p. 67). É esse pacto fundante que confere força normativa à Constituição. Assim, todas as normas constitucionais possuem uma eficácia normativa, sendo que as que consagram direitos fundamentais consistem

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 num “direito actual directamente regulador de relações jurídicas” (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 43). Segundo Hesse, o desenvolvimento da força normativa da Constituição depende da incorporação do “estado espiritual de seu tempo”, ou seja, a sua correspondência à “natureza singular do presente”. Por isso, uma mudança das relações fáticas deve mudar a interpretação da Constituição, já que ela está condicionada pela realidade histórica (1991, p. 23). Demonstra-se, então, que a Constituição de um país possui um valor extremamente importante, seja ele relativo ao ordenamento jurídico ou à própria consolidação da democracia. Dessa forma, estariam contemplados nela, as pretensões populares referentes a um determinado local e a uma determinada época. Quanto à sua interpretação, tem-se, de acordo com Streck, que a Constituição é o “topos hermenêutico”, o que faz com que a interpretação de todo o restante do ordenamento jurídico deva estar com ela conforme. Ela coloca à disposição de uma comunidade mecanismos que permitem a concretização do “conjunto de objetivos traçados no seu texto normativo deontológico” (2001, p. 237). O fato de a Constituição ser tida, dentro do ordenamento jurídico, como lei hierarquicamente superior faz com que ela não possa ser subordinada a qualquer outro parâmetro normativo, bem como que todas as outras normas devam com ela estar conformes, compreendem Canotilho e Moreira (1991). Ou seja, essa “preeminência normativa da Constituição” faz com que toda a ordem jurídica deva ser lida de acordo com suas normas e princípios, tornando-se inválidas as normas infraconstitucionais desconformes (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 45 e 46). Por isso, a partir da hermenêutica constitucional contemporânea, é possível a realização de uma nova leitura da dogmática jurídica, a qual transcende, dessa forma, uma concepção exclusivamente dogmática do direito (BARRETTO, 1999, p. 378). Logo, os princípios e regras constitucionais servem ainda como norteadores da interpretação de todo o restante do ordenamento jurídico. Assim, não se torna necessária a expressa revogação de um dispositivo infraconstitucional se ele viola ou está em desacordo com a Constituição. Para o intérprete e aplicador do Direito, portanto, qualquer leitura do ordenamento jurídico necessita, paralelamente, de uma leitura constitucional. Cabe salientar, por fim, o papel exercido pela atual Constituição em nosso país. A Constituição de 1988 foi elaborada após a saída de um regime ditatorial, motivo pelo qual foi vista como um “instrumento de reconquista da liberdade e lugar propício para a definição de uma nova ordem jurídica, democrática e justa” (DALLARI, 1999, p. 33). Logo, o valor simbólico da Constituição de 1988 assenta-se no fato de ela ter sido a principal forma de restauração do Estado democrático de Direito, com a superação de uma perspectiva autoritária e não pluralista de exercício do poder político (BARROSO, 1999, p. 43). Logo, o momento de elaboração da atual Constituição foi aquele em que todos os grupos tentavam concretizar seus interesses, sob a forma de direitos constitucionais. Como vários desses interesses pode ser opostos, a redação do texto constitucional constituiu-se num verdadeiro embate de forças, o que é verificado, por exemplo, no que se refere à tutela da vida, contemplada adiante. Expostas essas linhas gerais sobre a Constituição, passar-se-á à análise de alguns dos seus dispositivos. 5.1 O princípio da dignidade da pessoa humana Em primeiro lugar, é preciso mencionar o princípio da dignidade da pessoa humana, que consiste em um princípio constitucional fundamental. Segundo Canotilho, os princípios exigem “a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas”. Assim, não se verifica a proibição, permissão ou exigência de algo, impondo, ao contrário, a otimização de um direito ou bem jurídico (2000, p. 1215). Os princípios consistem, ao contrário, em “ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas” (SILVA, 2004, p. 92). Enquanto as normas contêm uma regra, uma instrução ou uma imposição vinculante, os princípios, que são a base das normas jurídicas, são “núcleos de condensação nos quais confluem bens e valores constitucionais” (CANOTILHO; MOREIRA, 1991, p. 49).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Se a dignidade da pessoa humana consiste no fundamento não jurídico da ordem jurídica (BORELLA, 1999), é preciso, para compreender sua influência no ordenamento brasileiro, a análise do seu conteúdo ético. Neste trabalho, privilegiaremos o conceito de dignidade humana de Kant. Sendo assim, torna-se imprescindível o estudo do imperativo categórico ou do princípio da moralidade. Para Kant, o imperativo é uma fórmula da determinação da ação necessária de acordo com o princípio da boa vontade. O imperativo será categórico se a ação for representada como boa em si mesma. O imperativo categórico, também denominado de imperativo da moralidade, determina imediatamente um comportamento, sem se basear em nenhum propósito para chegar a esse comportamento (2004, p. 45 e 47). Kant descreve o imperativo categórico da seguinte forma: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. O autor acrescenta que, se desse imperativo é possível derivar todos os imperativos do dever, o imperativo universal do dever exprimir-se-ia assim: “age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza” (2004, p. 51 e 52). Ao tratar da dignidade, Kant alega que o ser humano existe como um fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário de alguma vontade. Logo, ele deve ser sempre considerado como fim. O filósofo salienta que somente os seres racionais são pessoas, pois a natureza os distingue como fins em si mesmos e, por isso, eles são objeto de respeito. Assim, tem-se que “a natureza racional existe como fim em si”. Portanto, conclui o autor com a formulação do seguinte imperativo: “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (2004, p. 58 e 59). Assim, segundo o autor, tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode ser substituído por algo equivalente. Já algo que está acima de qualquer preço, não admitindo equivalência, possui dignidade. Coloca-nos o filósofo, ainda, a condição da moralidade para tornar um ser racional um fim em si mesmo. Portanto, somente “a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade” (2004, p. 65). Exposta a concepção de dignidade de Kant, é possível agora verificar seu conteúdo jurídico e a importância exercida por esse princípio no sistema constitucional. A dignidade da pessoa humana é um “valor supremo”, atraindo o conteúdo de todos os direitos fundamentais, sejam eles os direitos pessoais tradicionais ou os direitos sociais (SILVA, 2004, p. 105). Nesse sentido, ela constitui-se como fonte ética de todos os direitos humanos (MIRANDA, 2000, p. 181). O princípio da dignidade da pessoa humana exerce o papel de “núcleo filosófico do constitucionalismo pós-moderno”, consistindo num norteador na interpretação e aplicação das normas jurídicas (CASTRO, 1999, p. 113 e 114). A consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como o fundamento da unidade do sistema constitucional dos direitos fundamentais elucida que a pessoa humana possui um valor em si mesma (G. MORAES, 1997). É porque a dignidade da pessoa humana ocupa um lugar central nos pensamentos filosófico, político e jurídico que ela é qualificada como valor fundamental, sobretudo para as ordens constitucionais que buscam a constituição de um Estado democrático de Direito, entende Sarlet (2004). Por isso, o constituinte de 1988 elevou-a à condição de princípio fundamental. O autor conceitua a dignidade da pessoa humana como: [...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2004, p. 59 e 60).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para Castro, diante da menção constitucional à dignidade da pessoa humana como fundamento da organização nacional, nosso Estado possui uma abertura constitucional radicada nesse princípio. Portanto, seria uma instituição tendente a absorver de forma ilimitada aspirações e conquistas sociais, pacificando os diversos projetos de dignificação humana (1999, p. 106 e 107). Segundo A. Moraes, a dignidade é um valor moral inerente à pessoa, manifesto na autodeterminação relativa à própria vida e incluindo o respeito por parte das demais pessoas. Esse princípio fundamental possui uma dupla concepção: prevê um direito individual protetivo ao mesmo tempo em que estabelece um dever de tratamento igualitário dos semelhantes (1997, p. 60 e 61). Por meio da positivação do princípio da dignidade da pessoa humana, o Direito Constitucional brasileiro reconhece que a pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesma, o qual não pode ser sacrificado em prol de interesses coletivos (FERREIRA FILHO, 2000). De acordo com Bastos e Martins (1988, p. 425), a partir da previsão posta pelo constituinte, “o Estado se erige sob a noção da dignidade da pessoa humana”, ou seja, uma das finalidades do Estado é a de propiciar condições para que as pessoas se tornem dignas. Assim, embora o sentido da vida humana seja algo conferido pelos indivíduos, o Estado pode facilitar essa tarefa com a ampliação das “possibilidades existenciais do exercício da liberdade” (BASTOS; MARTINS, 1988, p. 425). Então, percebe-se que a noção de dignidade da pessoa humana ocupa um papel central no ordenamento jurídico constitucional brasileiro. Por meio desse princípio, coloca-se a pessoa como o cerne das preocupações do Estado democrático de Direito. Disso, decorre a garantia de todos os direitos fundamentais, sejam eles individuais ou coletivos. Ela possui, ainda, uma função hermenêutica, já que toda a legislação constitucional ou infraconstitucional deve ser de acordo com tal princípio interpretada. 5.2 Direito à liberdade E, ao mencionar os direitos fundamentais, cabe aqui tratar do direito à liberdade, central para a discussão relacionada a direitos dos homossexuais, eis que consiste também numa das reivindicações do movimento LGBT. Para Kant, a liberdade não é aquela atribuível à nossa vontade, mas a que é passível de atribuição a todos os seres racionais. Portanto, “a liberdade tem de ser demonstrada como propriedade da vontade de todos os seres racionais”, deve pertencer à atividade dos seres racionais dotados de uma vontade (2004, p. 80 e 81). A vontade, portanto, só é livre se é universalizável. Na filosofia moral kantiana, a dignidade humana é identificada com uma liberdade autônoma (GONZÁLEZ, 2004). A liberdade pode ser conceituada, com Silva, como a “possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal”. Portanto, com o exercício da liberdade busca-se a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, ou seja, a liberdade deve estar em harmonia com a consciência pessoal, com o interesse do seu agente (2004, p. 232). Também Sánchez Vázquez (2005) entende que a liberdade de escolha, ou seja, de decisão e ação, acarreta primeiramente a consciências das diferentes possibilidades de ação. Por isso, nos casos envolvendo direitos dos homossexuais, é preciso primeiramente ter em mente as diferentes configurações possíveis no que se refere à orientação sexual. Segundo Canotilho e Moreira, a liberdade garantida constitucionalmente, no âmbito dos direitos fundamentais, é “a liberdade em si e para si, expressão da própria autonomia individual” (1991, p. 101). O direito à liberdade não é somente baseado numa teoria liberal, possuindo ainda uma concepção social, segundo a qual seria também um direito positivo a prestações da coletividade e do Estado, o que garantiria a sua efetividade. Ou seja, não se trata, apenas, de um direito que exige a não intervenção estatal ou de terceiros, necessitando, para a sua concretização, de prestações positivas, que assegurem o exercício dessa liberdade. A liberdade necessita para sua efetivação de um domínio de autodeterminação pessoal (FRIED, 1988). Logo, trata-se aqui não apenas da liberdade de exercício de orientações sexuais diversas da heterossexualidade, mas também do reconhecimento do Estado de formas diversas de família,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 pautadas na união entre pessoas do mesmo sexo, na possibilidade de adoção por indivíduos e/ou casais homossexuais e do concepção da homofobia como uma discriminação possível e verificável em nosso sistema jurídico. 6 Considerações finais Com este artigo, buscou-se, a partir da visão construcionista da sexualidade e da homossexualidade, compreender a necessidade de reivindicação de direitos dos homossexuais, o que se dá a partir de pautas centrais do movimento LGBT. Tais reivindicações tornam-se necessárias na medida em que, embora nossa Constituição Federal, especialmente nos dispositivos atinentes à dignidade da pessoa humana e à liberdade, garanta o direito à vivência e livre expressão da orientação sexual, direitos como o casamento, a adoção e a uma vida livre de violência não são efetivados. A resposta não está aqui especificamente no Direito, mas sim na sociedade e na construção social e cultural da sexualidade, que gera a concepção da homossexualidade como padrão desviante, a partir da imposição de uma matriz heterossexual. Referências BARRETTO, Vicente de Paulo. Da interpretação à hermenêutica constitucional. In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 369-394. BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1988. BORELLA, François. Le concept de dignité de la personne humaine. In: PEDROT, Philippe (dir.). Ethique, droit et dignité de la personne. Paris: Economica, 1999, p. 29-38. BOZON, Michel. Sociologie de la sexualité. 2.ed. Paris: Armand Colin, 2009. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O princípio da dignidade da pessoa humana nas Constituições abertas e democráticas. In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 19881998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 103-114. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição: 10 anos de resistência. In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 3336. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: movimento homossexual e produção de identidades coletivas na década de 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. FERRAND, Michèle. Féminin masculin. Paris: La Découverte, 2004. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à constituição brasileira de 1988. São Paulo: Saraiva, 2000. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. V.1. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

ASSESSORIAS JURÍDICAS POPULARES UNIVERSITÁRIAS E O TRABALHO VIVO Erika Juliana Dmitruk1 Resumo: investiga os trabalhos desenvolvidos pelas assessorias jurídicas populares universitárias e o seu impacto na formação de bacharéis em Direito. Realiza revisão bibliográfica presente na formação dos integrantes de Assessorias Jurídicas Universitárias Populares - AJUPs. Perscruta as influências da educação popular freiriana e do marxismo na construção da identidade deste profissional socialmente engajado com as causas populares. Identifica a predominância de textos da Teoria Crítica do Direito e Direito Alternativo, bem como educação popular freiriana e crítica marxista ao Estado e ao modo de produção. Relaciona o substrato teórico com a extensão universitária. A hipótese de trabalho consiste em relacionar o trabalho do advogado militante com a descoberta (o que pode ocorrer na universidade ou fora dela) da possibilidade de realização de uma advocacia viva, ou seja, aquela capaz de criar valores por si mesma, livre da pretensão fetichista do capital e atrelada ao processo de emancipação de si e do próximo. Uma prática advocatícia liberta do trabalho como capital. A pesquisa é fruto do desenvolvimento do trabalho com alunos universitários em um grupo de extensão na Unidade de Ensino Dom Bosco - de São Luís do Maranhão, um grupo de pesquisa em ensino e outro de ensino/pesquisa e extensão na Universidade Estadual de Londrina – de Londrina/Paraná, bem como as intervenções promovidas por estes a partir do estudo das obras levantadas e já foi anteriormente apresentado em congresso científico em forma menos completa. Palavras chave: advocacia popular, educação popular, direito vivo.

1. Introdução A presente pesquisa tem como objetivo investigar o trabalho das assessorias jurídicas populares universitárias e seus impactos na atuação de bacharéis engajados na militância em prol dos Direitos Humanos. A partir de uma revisão bibliográfica presente na formação de Assessorias Jurídicas Universitárias Populares, perscrutar-se-ão as influências da educação popular freiriana e do marxismo na construção da identidade deste profissional socialmente engajado com as causas populares. O ponto de partida da pesquisa dá-se com a experiência em assessoria jurídica popular e universitária, na cidade de São Luís/MA e Londrina/PR. O interesse apresenta-se na medida em que certas leituras são capazes de sensibilizar e despertar em estudantes universitários e profissionais formados uma consciência mais crítica sobre os acontecimentos, bem como uma necessidade de ação. A hipótese de trabalho consiste em que a escolha profissional militante ocorre com a descoberta da possibilidade de realização de uma advocacia viva, ou seja, aquela capaz de criar valores por si mesma, livre da pretensão fetichista do capital e atrelada ao processo de emancipação de si e do próximo. Uma prática advocatícia liberta do trabalho como capital. Para isso, em um primeiro momento, será exposto o conceito de trabalho vivo, retirado de trabalhos de Marx e também da Filosofia da Libertação, em trabalhos de Enrique Dussel.

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Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela UFSC, professora assistente do Departamento de Direito Público – Universidade Estadual de Londrina. Email: [email protected]

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em seguida, identificar-se-ão os principais textos utilizados nos processos de formação de assessorias jurídicas populares universitárias, a partir da pesquisa em sites e pela experiência realizada na UEL - Universidade Estadual de Londrina e UNDB – Unidade de Ensino Dom Bosco. Por fim, a partir do aporte teórico da Filosofia da Libertação e o conceito de trabalho vivo, chegarse-á ao conceito forjado a partir da prática jurídica popular: o Direito Vivo. 2. A Filosofia da Libertação e o conceito de trabalho vivo Começaremos o presente item com um texto de Marx, Maquinaria e Trabalho Vivo (2012). Neste texto Marx assevera que a característica do modo de produção capitalista é a substituição do trabalho humano pela máquina. Nessa substituição, que não busca a diminuição da jornada individual de trabalho, mas a redução da quantidade de trabalhadores empregados, o trabalho vivo – produzido pelo homem -, é substituído pelo trabalho morto – da máquina. Assim, conforme avança a tecnologia, o corpo humano, o homem e seu trabalho, passam a ser supérfluos ante a maquinaria. O trabalhador eliminado, desnecessário na fábrica, resta submetido ao despotismo do capital. Ou então, deve adaptar-se ao trabalho colonizado desta forma. Em seus Manuscritos Econômicos Filosóficos (MARX, 1978), Marx reflete sobre a propriedade privada e o trabalho. Muitas de suas conclusões neste texto também nos auxiliarão a entender o trabalho, inserido e absorvido pelo sistema capitalista, como trabalho morto. Identifica a propriedade privada – perceptível, sensível – como expressão da vida humana alienada no capitalismo; e a religião, a família, Estado, direito, moral e ciência como modos particulares de produção submetidos à mesma lei geral (1978, p. 09). Essa forma de vida, submetida ao modo de produção capitalista, apenas se manifesta como reprodução de valores necessários para a própria manutenção do sistema. E isto não ocorre apenas com relação à maneira que se associa com o trabalho, mas em todas as esferas da vida, conforme parágrafo anterior. Essa vida, então, é apenas aquela esperada ou autorizada pelo modo de produção capitalista. Ela é subsumida ao sistema, perde-se na unidade do sistema. Assim, o homem, entendido como ser social, é capaz de produzir a si e ao outro em sociedade – sempre em confronto e relação ao modo de produção material. Para Marx (1978, p. 09): A essência humana da natureza não existe senão para o homem social, pois apenas assim existe para ele como vínculo com o homem, como modo de existência sua para o outro e modo de existência do outro para ele, como elemento vital da efetividade humana; só assim existe como fundamento de seu próprio modo de existência humano, e a natureza torna-se para ele o homem. A sociedade é, pois, a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza.

Entendendo o indivíduo como ser social e a consciência como “figura teórica cuja figura viva é a comunidade real” (MARX, 1978, p. 10) transformar a consciência é transformar a sociedade, e vice-versa.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Assim, quando o modo de produção capitalista e a propriedade privada são superados (transformação da sociedade), é possível ao homem apropriar-se de seu ser global, reinventando suas relações com o mundo e com outros homens. Redescobrindo as funções mais humanas – “ver, ouvir, cheirar, saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar “ – (1978, p. 11) deixamos a estupidez de tudo querer ter e transcenderemos o desejo de possuir e consumir tudo e todos. Transformando a consciência também é possível transformar o mundo real. É neste sentido que analisaremos a formação teórica dos atores da assessoria jurídica popular como fator determinante na criação de nova forma de relacionar-se com o outro e com o mundo, refletindo na maneira de entender o Direito e de atuar como profissional. Na filosofia da libertação este olhar de fora, olhar a partir da vida ainda não domesticada pelo sistema, fora da unidade capitalista, recebe o nome de uma nova categoria – a exterioridade. Enrique Dussel defende a tese de que a categoria fundamental em Marx seja a exterioridade, no lugar da totalidade. Na totalidade o capital figura o valor como seu momento essencial e o trabalho objetivado – pago, absorvido, domesticado, subsumido - é o trabalho como capital. (LUOWIG, 2006, passin). No sentido negativo, o trabalho não objetivado é considerado nada de capital. Em sua existência objetiva, é trabalho como existência e não como objeto. É o outro do capital. (LUOWIG, 2006, passin) Analisando a capacidade do sujeito vivo, seu trabalho é atividade e não capital. É fonte criadora do valor, é anterior e exterior ao capital. Resgatando a categoria trabalho vivo de Marx, afirma-se que este não é valor, não é dinheiro, não é capital – é o não-ser do capital. (LUOWIG, 2006, passin) Assim, o trabalho vivo enquanto ponto de partida se encontra fora, além, na exterioridade do capital. E não se confunde com capacidade de trabalho ou força de trabalho – categorias que existem apenas em relação ao capital. O trabalho vivo é o trabalho em si. Aceitando a exterioridade como categoria da filosofia da libertação, partimos da investigação desta como exterioridade essencial abstrata, entendendo que a mesma trata da classe trabalhadora como outra em relação à classe capitalista, assim como a periferia é outra em relação ao mundo de centro. Isso só é possível enquanto o trabalhador não vende sua capacidade de trabalho, pois neste momento submerge no capital e funda-se nele, aliena-se. (LUOWIG, 2006, passin) A exterioridade, e o trabalho vivo, por outro lado, afirmam-se como novo lugar de sentido determinante, categoria capaz de denunciar o capital como totalidade a partir da alteridade (o pobre, concebido como trabalho vivo, despojado da riqueza, que se define e adquire sentido, no interior da lógica do capital) – fundado no ser. (LUOWIG, 2006, passin). Após levantarmos a formação teórica dos assessores jurídicos populares universitários, resgataremos esta categoria para entender o Direito exteriorizado por eles como o Direito Vivo – não objetivado e fundado no capital, mas sim criador de valores - o não-ser do capital.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 3. Principais universitários

textos

utilizados na

formação

de

assessores

jurídicos

populares

Essa investigação inicia-se com a pesquisa em sítios de assessoria jurídica universitária popular. A partir de uma leitura dos mesmos, é possível verificar os principais interesses de trabalho das assessorias e também os eixos de formação. A pesquisa ocorreu nos seguintes sítios: RENAJU – Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária; Centro de Assessoria Popular Maria Criola/RJ; Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária –NAJUC/UFC; Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS; Serviço de Apoio Jurídico – SAJU da UFBA; Núcleo de Assessoria Jurídica Popular da UFMA – NAJUP Negro Cosme; Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular da UNDB/MA – PAJUP; Núcleo de Assessoria Jurídica Popular da UNDB; LUTAS: São Luís – projeto de Extensão UNDA; Assessoria Jurídica Popular Aldeia Kaiapó – UFPA; Serviço de Assessoria Jurídica Universitária Popular – SAJU UFPR; LUTAS: Formação e Assessoria em Direitos Humanos – UEL/PR. O blogue ao qual todos os demais fazem referência é o da RENAJU – Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária2. Neste sítio encontramos as referências mais gerais, quando se trata do tema formação de assessores jurídicos populares. São identificados como principais autores indicados: Paulo Freire, Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Sousa Junior, Miguel Pressburger, Relatórios do Instituto Apoio Jurídico Popular. Os textos dos juristas indicados são fortemente marcados por uma análise marxista do Direito, principalmente tendo como marco teórico Pashukanis. A poesia engajada também é bastante levada a sério (como se verá, a arte é muito levada a sério pelo assessores jurídicos populares). O SAJU-Bahia foi o primeiro projeto de extensão da Universidade Federal da Bahia e continua em andamento. Hoje conta com 50 anos. Da leitura do site 3 depreende-se que o mesmo atua em duas frentes: assistência judiciária individualizada e assessoria popular. Realiza anualmente um curso de capacitação, sendo que a ausência no mesmo gera a eliminação do interessado em ingressar no serviço. Apesar das obras utilizadas no curso de capacitação não estarem disponíveis no sitio, foi possível identificar, a partir dos artigos escritos e temas de interesse, forte influência da reflexão crítica a partir da bibliografia básica identificada nas assessorias (teoria crítica do Direito, marxismo, método Paulo Freire) No Centro de Assessoria Popular Mariana Criola4, criado em 2007 na cidade do Rio de Janeiro, o foco de atuação se dá na prestação de serviços jurídicos às populações tradicionais quilombolas e movimentos de luta pela moradia, terra e trabalho. O nome do centro deve-se à rainha quilombola Marianna Crioula, que liderou em 1838 uma revolta (Revolta das Vassouras) na qual participaram mais de 500 (quinhentos negros). Este Centro não está ligado a nenhuma universidade, mas atua em conjunto com várias, e também com estudantes universitários. Conta, inclusive, com apoio da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares. Seus eixos de atuação são três: acesso à terra, proteção do território quilombola e proteção ao meio ambiente; direito à moradia e aos serviços essenciais e criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. O SAJU-UFRGS foi fundado em 1950 e constitui-se em um programa de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Segundo o sítio da universidade 5 este programa conta, inclusive, com uma revista – Revista do SAJU – Por uma visão crítica e interdisciplinar do Direito, a qual teve seu primeiro número lançado em 1992. Nos primeiros números encontramos muitos artigos sobre Direito Alternativo, democratização do judiciário, assessoria jurídica popular, pluralismo jurídico, ensino jurídico. Nos números mais recentes o direito à moradia ganha os 2 3

4 5

http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.br/ http://sajubahia.blogspot.com.br/ http://www.marianacriola.org.br/ http://www.ufrgs.br/saju/

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 títulos de artigos descritivos de ações, e o ensino jurídico e a assessoria jurídica popular continuam sendo temas de reflexão. O NAJUP Negro Cosme é o serviço de assessoria jurídica popular da UFMA – Universidade Federal do Maranhão6. Suas principais ações e reflexões tem sido sobre a questão urbana, principalmente por conta de processos de transformação acelerada da cidade de São Luís do Maranhão. Pedagogia do Oprimido e O que é Direito aparecem como livros indicados para leitura. Na Unidade de Ensino Dom Bosco – também em São Luís, encontra-se o PAJUP7, que se constitui em um projeto de extensão que autorrefere sua prática como alicerçada na educação popular, com a proposição de uma atuação dialética e dialógica (apresentando as influências de Freire e Marx) na construção de um conhecimento em conjunto com a comunidade. O NAJUPAK – Belém encontra-se albergado na Universidade Federal do Pará – UFPA.8 Entre suas temáticas encontram-se: direito à moradia, violência prisional, sexismo, educação popular e estudo crítico do Direito. Mais um autor merece ser citado (e os outros já citados são reafirmados), é Luís Alberto Warat. O NAJUC-UFC9 também se apresenta como grupo que possui a práxis da Educação Popular e Assessoria Jurídica Popular. Pelos títulos de seus projetos (Projeto Comunas, Rodas de Discussão, entre outros) é possível notar a influência da teoria marxista na formação do núcleo. Coloca, entre seus objetivos, além do trabalho com a comunidade e movimentos populares, a produção científica, para a exposição dos referenciais teóricos e práticos da Assessoria Jurídica Popular. Na UFPR encontra-se o SAJUP, do qual não encontramos um blog, mas apenas uma lista de discussão do yahoo. 10 Na descrição do grupo temos que este formou-se em 2001, é integrante da RENAJU e tem atuado em diversas comunidades desde então. Na UNB o programa Direito Achado11 na Rua completa 25 anos, com vasta produção em sede de teorização da teoria crítica do Direito, especializando-se em áreas como direito à saúde, moradia, trabalho e da mulher. Na UEL/PR encontra-se o recém iniciado Lutas: formação e assessoria em direitos humanos12. Os textos específicos de sua formação serão analisados no próximo tópico, e a escolha destes deu-se a partir de pesquisa sobre temas relacionados à teoria crítica do Direito, teoria do política, assessoria jurídica e marxismo, educação popular. Verificou-se, com esta pesquisa, unanimemente, a presença da metodologia de educação popular de Paulo Freire, sendo que a obra mais citada é a Pedagogia do Oprimido – texto de cabeceira de assessores jurídicos populares. Os temas de interesse das assessorias também são bastante similares, valendo a pena sistematiza-los. O quadro abaixo apresenta os temais mais citados nos blogues pesquisados:

TEMAS IDENTIFICADOS COMO DE INTERESSE NOS SITES: ASSESSO CIDADE/ PRESÍDIO VIOLÊNC EDUCARIA URBANIZ VIOLÊNCI IA/ ÇÃO A A PENAL DIVERSI POPULA

ESTUDO CRÍTICO DO

CONFLIT OS RURAIS/

6

http://najupnegrocosme.blogspot.com.br/ http://pajup-undb.blogspot.com.br/ 8 http://najupak-belem.blogspot.com.br/ 7

9

http://najuc.jimdo.com/

10 11 12

http://br.dir.groups.yahoo.com/group/SAJUP_UFPR/?v=1&t=directory&ch=web&pub=groups&sec=dir&slk=35

http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/ http://lutas-londrina.blogspot.com.br/

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 ÇÃO REMOÇ ÕES SAJU - BA RENAJU Mariana Criola SAJU - RS NAJUP – UFMA PAJUP UNDB NAJUPAK UFPA NAJUC UFC SAJUP – UFPR UNB LUTAS UEL

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DADE SEXUAL

R

DIREITO

COM. TRAD.

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Assim, é possível identificar uma raiz comum na formação de assessores jurídicos populares, bem como relacioná-la com as causas escolhidas para engajamento dos grupos de assessoria. Para a realização da formação do grupo LUTAS, da Universidade Estadual de Londrina, foi realizada uma pesquisa para investigar os textos utilizados em outras assessorias jurídicas populares, levando-se em conta o perfil dos integrantes e as necessidades locais. O substrato teórico do grupo consiste numa visão crítica do Direito, forjada na perspectiva marxista da análise deste e do Estado, a partir de trabalhos realizados na Universidade de Brasília - UnB com as obras que formam a coleção Direito Achado na Rua e em textos do professor Roberto Lyra Filho, bem como na metodologia de educação popular de Paulo Freire. O grupo é formado por uma professora orientadora e alunos matriculados do primeiro ao quinto ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Em reuniões semanais, com duração de uma utilizamos as seguintes obras, algumas completas e outras apenas alguns capítulos: Pedagogia do Oprimido – Paulo Freire; Comunicação e cultura populares – Cicília Peruzzao; O que é Direito – Roberto Lyra Filho; A Ciência do Direito: conceito, objeto e método – Agostinho Ramalho; A Prática da Assessoria Jurídica na Faculdade de Direito da UnB – José Geraldo de Sousa Junior; Assessoria Jurídica Popular no Brasil: paradigmas, formação histórica e perspectivas – Vladimir de Carvalho Luz e Assessoria jurídica universitária popular: da utopia estudantil à ação política – Ivan Furmann. Um cronograma com as datas de discussão de cada texto foi entregue na primeira reunião e os alunos que iriam conduzir as reuniões também foram escolhidos neste momento. Assim, a dinâmica das reuniões conta sempre com um facilitador, que é o aluno responsável pela motivação e desenvolvimento dos debates. O facilitador deve ler o texto indicado e também procurar mais informações sobre o autor, o contexto no qual a obra foi escrita, discussões similares em outras obras – abrangendo músicas,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 poesias, textos literários em prosa. Cabe a ele não fazer um resumo do texto, uma vez que todos os participantes da reunião já leram. A intenção é enriquecer o texto, ir além do texto, ruminar o texto. A obra de Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, foi nosso ponto de partida, considerando que os movimentos de assessoria jurídica popular utilizam a metodologia do autor. A partir de Freire questionou-se o modelo de educação bancária (1987, passin) – e o mais interessante foi a reflexão dos alunos sobre este modelo dentro da Universidade. Identificaram-se com as limitações das aulas expositivas, e como produtos desta forma de educar. Passaram a, inclusive, esmerar-se mais na construção do próprio conhecimento, aprofundando as investigações nos textos subsequentes e enriquecendo-as com dados do seu cotidiano e da realidade que os cerca. Com Freire também refletimos sobre opressores e oprimidos, e a necessidade de libertação de ambos. Abriu-se um mundo novo, trazido pela percepção de que o homem é um ser inacabado, e que ninguém pode libertar-se sozinho. A humildade e a capacidade de dialogar (verdadeiramente) foram identificadas como qualidades importantes no processo de construção da própria cidadania e da cidadania dos que iríamos encontrar – o processo foi se desmistificando. A leitura de Paulo Freire com as novas gerações revelou-se uma experiência muito gratificante. As palavras do professor tocaram profundamente os alunos, e sua forma de apresentar os conflitos e as relações entre oprimidos e opressores nos tiraram do lugar comum. Também houve, já de partida, um interesse em intervir na realidade. Não ficar apenas com as reflexões teóricas. Sentimo-nos instigados a procurar meios de ação e não apenas de reflexão. Procuramos, a partir daí, realizar reuniões cada vez mais participativas e invocativas das experiências pessoais para a reflexão dos textos que se sucediam. A ideia sempre foi aplicar a metodologia primeiro para nós, para depois, ao sair no trabalho de campo, buscarmos fazer isso de modo cada vez mais natural. A partir da motivação, fruto da leitura de Paulo Freire, começamos a estudar, ainda com textos bastante iniciais neste primeiro semestre, a teoria crítica do Direito. A partir da obra O que é o Direito (LYRA FILHO, 1995, passin) refletimos sobre a diferença entre Direito e lei. Descolaram-se os dois conceitos. Passamos a questionar a existência de direitos não previstos na lei, e como isso se apresenta nas reivindicações dos movimentos sociais. Também se aprofundou o entendimento das ideologias jurídicas, e como, na origem, positivismo e jusnaturalismo se parecem. A partir do conceito de Roberto Lyra Filho identificou-se o fator realidade social como o verdadeiro substrato da norma. É a práxis jurídica que molda o Direito – conclusão de uma das reuniões do grupo. Com a reflexão da dialética social do Direito passamos a perceber que atuar de maneira diferenciada é necessário e importante. Que o papel do advogado na transformação da realidade concreta é imenso e que existem espaços não explorados e cuja ocupação é essencial. Com o discurso jurídico compartilhado, podemos investir as populações insurgentes e marginalizadas de discurso e ferramentas de ação, empoderando-as. Refletimos que, mesmo

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sem uma revolução de Estado, o Direito pode modificar a sociedade, e este papel cabe ao advogado comprometido com a transformação social – um advogado emancipado e comprometido com a emancipação. Desde esse ponto as questões concretas passaram a incomodar os alunos. Fomos procurados no fim de agosto de 2011 por uma liderança comunitária, que, conhecendo nossos estudos, solicitou ajuda para a resolução de uma situação envolvendo a urbanização em Londrina. As reformas em uma praça, em um bairro que hoje é de classe média, mas que antes era um bairro popular, estavam gerando conflitos com diversas complexidades. Após as leituras que fizemos até aqui os alunos não se quedaram inertes. Quiseram intervir efetivamente, e esta experiência será narrada no próximo tópico. Estes dois parágrafos servem apenas para ilustrar o momento em que o chamado e a resposta ocorreram, e, principalmente, a inexorabilidade da resposta positiva ao chamado, demonstrando a coerência entre o que é estudado e o que é vivido. A partir do texto de Agostinho Ramalho Marques Neto (s/d, passin) questionamos a forma como se dá o ensino jurídico na universidade, de maneira mais específica. Partindo também do conceito freiriano de educação, o autor critica a concepção autoritária do processo educacional que tem servido para conservar o dogmatismo predominante no pensamento jurídico. Ao deixar ao aluno o papel de mero expectador passivo, este passa a desinteressar-se pelo conhecimento, aprendendo apenas a repetir o que está posto, a partir de fórmulas decoradas, memorização de jurisprudências, teses e artigos. Questionou-se, inclusive, a proliferação dos cursinhos preparatórios para concurso - que repetem esta fórmula e privilegiam o aluno que consegue memorizar a maior quantidade de conteúdo possível. Repita-se – memorizar! Quais profissionais têm sido selecionados para ocupar os cargos públicos então? O autor reforça os questionamentos dos textos anteriores, sobre educação, diferença entre Direito e Lei, necessidade de uma formação crítica, e de desamarrar-se do preconceito positivista e idealista de ciência. Com isso os alunos se sentiram mais contemplados nas suas indagações e indignações. Sentiram-se aprofundar nos estudos já que à medida que os textos sucediam-se, mais eles entendiam. Uma nova ciência jurídica descortinava-se. É importante ressaltar essa qualidade da escolha dos textos, o fato deles interrelacionarem-se e a cada um a questão do ensino, dogmática jurídica e formação crítica ser aprofundada. Para os alunos, quanto mais vão entendendo, mais vão se motivando. Trabalhando com autores como LYRA FILHO, SANTIAGO DANTAS e FREIRE, Agostinho Ramalho aprofunda as discussões sobre ensino jurídico e a função do ensino bancário e dogmático na universidade. Já na reunião onde foi discutido o texto de Boaventura Sousa Santos (SANTOS, s/d)o ponto alto foi a desmistificação do saber científico e as implicações do poder econômico nas pesquisas realizadas na universidade. Aqui os alunos foram provocados a questionar a parcialidade das pesquisas e dos seus resultados e como a inserção do interesse econômico neste campo da universidade pode mudar o perfil e a resposta das mesmas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Discutiu-se a crise da universidade, em especial a universidade pública. Isso de forma contextualizada com o capitalismo organizado. A autonomia universitária foi identificada como uma conquista contraditória – analisada pelo prisma da utilização desta como uma forma de diminuição de transferência de recursos. Percebemos que a diminuição dos recursos nas universidades públicas pode gerar uma maior dependência desta ao capital industrial – um pacto faustino, como diz Boaventura, uma vez que ele pode levar os investigadores mais capazes a desviarem suas pesquisas para aquelas rentáveis, gerar sigilo dos procedimentos e etapas de investigação científica (porque esta deixa de ser pública a partir do momento que é financiada com capital privado), alteração degenerativa das prioridades científicas, acentuação das diferenças de salários entre docentes, conforme estes investiguem temas economicamente exploráveis. Enfim, a lógica produtivista tomando conta dos centros universitários. (SANTOS, s/d, passin) Neste texto foi bastante destacada a experiência da UnB sob o reitorado de Cristovam Buarque (e seria até interessante acrescentarmos mais textos sobre isso para os próximos grupos de formação), pois naquela oportunidade procurou-se “articular a tradição elitista da universidade com seu compromisso social” (SANTOS, s/d, s/p). Deu-se ênfase aos projetos do Decanato de Extensão e entre eles o Direito Achado na Rua o qual tem por objetivo valorizar todos os direitos comunitários, locais e populares, mobilizando-se em favor das classes populares. Os facilitadores desta reunião trouxeram vídeos produzidos pelos alunos da UnB sobre a experiência do Direito Achado na Rua. Visualizar esses relatos trouxe incentivo e motivação para os alunos do grupo da UEL, que também sentiram necessidade de ter experiências como aquelas. Do texto de Vladmir Luz (2008, p. 193-229) discutimos a proposição do autor que consiste em:

(...) As Assessorias Jurídicas Populares, no Brasil, cumpriram, em seus campos distintos de atuação, a função histórica de serem um dos principais fronts de articulação de saberes e de concretização prática de várias premissas do pluralismo jurídico como projeto emancipatório.

Segundo o autor as assessorias jurídicas populares são fundamentais para o reconhecimento e exercício de direitos marginalizados, informais – o pluralismo jurídico em si. Com a proximidade da assessoria aos movimentos sociais são criados vínculos que permitem aos movimentos reconhecerem-se como legítimos produtores de Direito e aos alunos extensionistas e advogados populares tomarem conhecimento de outras concepções de Direito e Justiça, muito mais amplas do que aquelas apreendidas nos bancos escolares. Este texto é fundamental pois completa os demais, repetindo-o em algumas partes (ideia de justiça, concepção crítica do ensino jurídico, necessidade de aproximação entre jurista e movimentos sociais) e ao mesmo tempo aprofunda sobremaneira os conceitos de extensão e emancipação.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Extensão e emancipação, conforme visão de Vladimir Luz (compartilhada pelo grupo), estão diretamente ligadas ao reconhecimento e exercício das juridicidades insurgentes e de práticas jurídicas informais. Aprendemos que os serviços legais populares possuem visível proximidade aos movimentos sociais – o que não é repetido nos núcleos de prática jurídica, onde o atendimento da população carente se dá, em regra, de forma individualizada, conforme o direito posto e segundo uma interpretação tradicional e jurisprudencial do mesmo. A curiosidade por experiências concretas foi aumentada no grupo, que também estava ansioso por tomar contato com formas alternativas de solução de conflito e rotinas de serviços legais populares. Neste momento surge, de maneira mais concreta, o desejo de criar uma AJUP – Assessoria Jurídica Popular na Universidade Estadual de Londrina (onde nunca foi criada uma). A descrição das atividades desenvolvidas nas universidades onde existem esses núcleos, bem como a menção novamente da experiência do Direito Achado na Rua, animou os alunos. O texto de Vladimir Luz levou, ainda, a refletimos sobre as diferenças entre o movimento de direito alternativo na Europa e na América Latina e também sobre o papel da assessoria jurídica popular como estratégia relevante de extensão universitária, reformadora do perfil do ensino tradicional, cujas características básicas são citadas por LUZ: centralidade da aula-conferência, dogmatismo, currículos fechados, alheamento dos problemas sociais candentes, tecnicismo, publico de alunos acomodados, professores sem aprimoramento. O texto de José Geraldo de Sousa Junior (2007, passin) contempla e aprofunda a Assessoria Jurídica Comunitária, identificando a importância desta na formação dos alunos do curso de Direito. Os debates do encontro anterior aprofundaram-se e tivemos, a partir do texto, uma reconstrução histórica do fenômeno. O professor também levanta vários trabalhos acadêmicos que relatam experiências com assessoria jurídica popular. A esta altura o grupo já estava em campo, realizando entrevistas com moradores do Jardim Igapó, investigando documentos oficiais da prefeitura de Londrina e pesquisando temas jurídicos que pudessem auxiliar na resolução do impasse na praça. Com o texto de Furmann (2006, passin) o debate foi retomado, e acrescentou-se a distinção entre assistência jurídica e assessoria jurídica popular. Apesar de atualmente alguns autores criticarem esta separação, a intenção do autor foi compreendida pelo grupo, a partir da ideia de que na assessoria jurídica se busca o empoderamento e emancipação das comunidades atendidas e não a criação de um vínculo de dependência. Na assessoria jurídica popular formamos e nos formamos cidadãos – foi a conclusão do grupo. Trata-se de trabalho muito diferente do realizado no estágio curricular – EAJ (Escritório de Aplicação). Lá os atendimentos são individuais, baseados no direito positivo e jurisprudência dominante. Existe um movimento de manutenção do status quo. Sobre comunicação popular (PERUZZO, 1995, p. 143-162) distinguimos as diversas formas de comunicação. Refletimos sobre o modo de atingir os grupos populares, principalmente no que diz respeito a como gerar a abertura e criar um espaço onde todos possam sentir-se a vontade para contribuir. Foram estudadas regras e técnicas de fala, bem como refletimos sobre o nosso próprio

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 modo de falar e percepção do que precisamos melhorar. Evitar a participação limitada e a participação não participativa também foi um dos focos. Neste ano de 2012 trabalhamos sobre uma programação pronta, retirada de um curso de formação crítica ao Direito Crítico ministrada pela OAB/MA na cidade de São Luís do Maranhão. 13 Os textos foram o estruturados em três eixos: Crítica Transmoderna, 1ªinsurgência – América Latina e Brasil: quilombo, missões, farroupilha, canudos, coluna prestes e guerrilha urbana. Os textos que compõe este eixo tem como fio comum a filosofia da libertação com forte base teórica na obra de Enrique Dussel. Como são textos mais densos, contamos com a colaboração de professores de outras áreas (Sociologia e Filosofia) para entendermos os mesmos. No texto de Enrique Dussel abordamos o eurocentrismo e a dificuldade, extremamente atual, de vivenciar a alteridade (DUSSEL, 1993, p. 15-26). Discussão extremamente relevante em nossa sociedade que insiste em negar a existência de povos indígenas e aposta em sua assimilação como uma ferramenta de guerra. No texto de Euclides André Mance tivemos oportunidade de conhecer um pouco a história da filosofia latino americana e aos conceitos da filosofia da libertação (MANCE, 2000, p. 25-80). Lemos ainda, Para uma Filosofia Jurídica da Libertação: paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo (LUDWIG, 2006, p. 154-277); PACHUKANIS (2009, p. 137-152), MARX (s/d), LYRA FILHO (1988, p. 26-31) e PRESSBURGER (1995, p. 21-35). Por fim, encerramos a formação de 2012 discutindo os Movimentos Sociais e suas formas de atuação, educação popular, assessoria jurídica popular e pesquisa-ação, a partir dos textos de FALS BORDA (1984, p. 42-62), PRESSBURGUER (1992, p. 44-52), GOUVEIDA DA SILVA (2007, p. 1-26) e INSTITUTO DE APOIO JURÍDICO POPULAR (1987, p. 1-10). Toda essa atividade teórica, como não poderia deixar de ser, permeada pela prática. Continuamos participando de atividades na comunidade da Praça do Jardim Igapó e oferecemos um curso sobre Como Fundar uma Associação de Bairros para seus moradores, a fim de que as lutas tenham continuidade e êxito. 4. Considerações Finais A partir da análise das categorias exterioridade e trabalho vivo foi possível identificar formas de manifestação do ser não colonizadas pelo capital. A prática jurídica diária tem sido cada vez mais alvo de ataques uniformizantes, com o aparecimento de escritórios que lidam com contencioso de massa (ações de bancos, financiamentos, consórcios, impactos ambientais e econômicos), advogados contratados para cumprir jornadas de trabalho intensas e ausentes de criatividade, onde as peças processuais e audiências são meras formalidades copiadas e coladas fazendo a engrenagem do sistema continuar funcionando. Assistimos ao crescimento de uma advocacia de atacado que, como no início da revolução industrial, cria tecnologias para necessitar do menor número possível de advogados

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http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.br/2012/03/minicurso-da-critica-ao-direito-no.html

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 (trabalhadores) para resolução de contendas repetitivas (oriundas das discrepâncias das relações capitalistas), fundando linhas de produção de “resoluções” padrões dos conflitos. Muitos estudantes universitários do curso de Direito já convivem com essa realidade como estagiários e entram na engrenagem como mais um operário facilmente substituível, descartável. O que se tem percebido em relação aos alunos que participam das assessorias jurídicas universitárias populares é que a percepção do Direito é alterada. Com a leitura dos textos, a reflexão sobre as origens das leis e suas funções, uma ampla gama de questionamentos é despertada. Ao discutir-se, e conscientizar-se acerca das relações entre o modo de produção capitalista e as mazelas modernas, a busca de sentido inicia-se. E a partir daí a curiosidade acadêmica vai a campo (práxis). Nos textos de formação das AJUPs a crítica ao ensino do Direito tem lugar especial – pois é necessário problematizarmos quem e para que as nossas faculdades têm formado. Quem é beneficiado com essa visão do Direito reduzido à lei e ao ensino que incentiva a reprodução de manuais aos quais o adjetivo superficiais seria um elogio? Com os textos sobre educação popular encontra-se uma nova forma de ensinar e aprender, e esta passa a fazer parte do próprio crescimento do grupo, que aplica a si próprio o método, ansiando por sua libertação em conjunto com a comunidade. As análises econômicas dos problemas sociais incentivam formas de luta que antes não chamavam a atenção. E foi possível constatar que, às semelhanças teóricas na formação das AJUPs correlacionam-se semelhanças nas escolhas das causas. Podemos inferir daí que a reflexão teórica crítica, fundada na educação popular, teoria crítica do Direito, teoria marxista leva, necessariamente, à busca por respostas a problemas identificados como típicos do capitalismo, e com abrangência em nosso território nacional. As lutas por temas relacionados às cidades – moradia, processos de urbanização excludentes; ao sistema prisional – criminalização de movimentos sociais, seletividade do controle punitivo; diversidade sexual – preconceito, biopoder, violência; campo – reforma agrária, comunidades tradicionais; educação popular e educação jurídica; estão presentes em todas as assessorias levantadas. A presente pesquisa teve por escopo relacionar as instigações teóricas às frentes de trabalho escolhidas. Mas, além disso, em identificar às frentes de atuação como exterioridades do sistema, como o não-ser do capital. Por isso, consciente da necessidade de investigações posteriores, tem-se a ousadia de apontar esse direito surgido da militância nos movimentos de assessoria jurídica popular como um direito vivo, o uma forma específica de trabalho vivo, constituindo-se como novo lugar de sentido determinante, categoria capaz de denunciar o capital como totalidade a partir da alteridade. Referências CAMACHO, Daniel. Movimentos sociais: algumas discussões conceituais. Em: SCHERERWARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. Uma revolução no cotidiano?: os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 214-245. DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do mito da modernidade. Conferências de Frankfurt. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis. RF: Vozes, 1993. p.15-26. FALS BORDA, Orlando. Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações sobre o significado e o papel da ciência na participação popular. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1984, 42-62. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 11ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O QUINTAL DE COMBATE DO DIREITO ESTATAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DO MOVIMENTO DAS FÁBRICAS OCUPADAS 1

GUILHERME CAVICCHIOLI UCHIMURA

Resumo: O Movimento das Fábricas Ocupadas e a Flaskô apresentam uma experiência de controle operário real no contexto da realidade brasileira atual. O presente trabalho introduz a noção de quintal de combate do direito estatal, indicando que é possível valer-se das ferramentas jurídicas institucionalizadas para, em vez de abafar as lutas sociais, elevá-las a condições reais de experimentação social. Garantir e dar visibilidade a sociabilidades alternativas, ao contrário do que o discurso hegemônico sustenta, é uma estratégia concreta e materializável. A partir da análise do MFO, o trabalho conclui que trazer as sociabilidades alternativas da periferia para o centro do sistema pode ser o começo capaz de carnavalizar a pulsão ordem-desordem, realizando dialeticamente novas formas jurídicas no processo histórico e, quem sabe, antecipando o mapa utópico-concreto capaz de alimentar a esperança social daqueles que dela tanto necessitam. Palavras-chave: Emancipação social. Direito estatal. Quintal de combate. Movimento das Fábricas Ocupadas. Flaskô. INTRODUÇÃO

Entre a conservação e transformação da sociedade, a conjuntura atual nos faz pensar sobre qual é, e qual será, o papel do direito estatal daqui para frente quanto às possibilidades de emancipação social. A linha de pensamento mais fiel à metodologia do materialismo histórico tende a conceber o direito estatal como uma forma intrinsecamente burguesa e mercantil, incapaz de acompanhar o movimento de superação do capitalismo: extinguindo-se o estado burguês, feneceria junto a forma jurídica. Por outro lado, existe uma corrente mais recente que sugere, a partir da dialeticidade do fenômeno jurídico, ver o direito como um permanente processo de libertação. Sob essa antinomia teórica, a luta de classes, de forma concreta, se perfaz diariamente no Poder Judiciário. Quando, nesse contexto, os movimentos sociais estão envolvidos em litígios, o direito estatal possui tanto a capacidade de abafar os anseios populares, quanto a de assegurar espaços de experimentação social voltados à construção de novos horizontes emancipatórios. A essa segunda opção, pode-se dar o nome de “quintal de combate do direito estatal”.

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Oficial de Justiça Discente do 5º ano do Curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina Participante do Projeto Integrado de Extensão Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos (http://lutaslondrina.blogspot.com.br/) Contato: [email protected]

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para explorar melhor essa ideia, o presente trabalho vale-se dos aspectos sociais e jurídicos do Movimento das Fábricas Ocupadas, mais especificamente do caso da fábrica Flaskô. Pesquisando esse substrato concreto, a pesquisa avaliará em que medida a relação entre o fenômeno jurídico e a experiência narrada permite a projeção de transformações sociais em um sentido emancipatório no plano concreto e, a parir disso, qual poderia ser o papel do direito estatal nesse processo.

O MOVIMENTO DAS FÁBRICAS OCUPADAS Reivindicações do Movimento e a Experiência da Flaskô Muito se tem produzido em relação ao Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO), com publicações em revistas especializadas e defesas de teses e dissertações, especialmente sobre o caso da ocupação da Flaskô (Flaskô Industrial de Embalagens Ltda.), transbordando, no âmbito acadêmico, o debate acerca do MFO em diversos aspectos. Alexandre Tortorella Mandl, o próprio advogado da Flaskô, é quem pode melhor explicar as origens do Movimento das Fábricas Ocupadas. Transcrevendo abaixo trecho de artigo por ele publicado na Revista do Centro de Memória Operária: Diante dos fechamentos das fábricas, demissões em massa e outros ataques contra a classe trabalhadora, com o intuito da defesa dos postos de trabalho e da manutenção da atividade industrial, o Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO) reivindica que as empresas passem a ser administradas pelos trabalhadores. [...] No Brasil, o MFO surge em 2002, com as experiências das fábricas Cipla e Interfibra, em Joinville/SC, e com a Flaskô, em junho de 2003, em Sumaré/SP, que fazem parte do grupo HB, cisão do grupo Tigre, o qual chegou a ter 47 empresas em todo o país. Com a abertura econômica do governo Collor, e depois com FHC, somando-se a má gestão e diversas fraudes e sonegações, houve grande liquidação de patrimônio, demissões em massa, fechamento de plantas industriais, sendo que somente resistiram três fábricas, justamente em razão da ação dos trabalhadores. Como movimento, atuou em mais de 35 fábricas em todo Brasil, sempre com esta pauta, realizando bons combates pela classe trabalhadora. Em alguns casos, a resistência durou meses, como na Flakepet, em Itapevi/SP, na JB da Costa em Pernambuco, e na Ellen Metal, em Caieiras/SP, entre outras. Todavia, por diferentes motivos, essas fábricas não estão mais ocupadas. Houve reintegrações de posse, disputas com administradores judiciais e às vezes com os próprios sindicatos. (MANDL, 2011, p.7-8) A narrativa que conta a história das fábricas Cipla, Intelfibra e Flaskô demonstra, de forma muito cristalina, a forma como ocorre a luta de classes no Judiciário. Um dos eventos mais marcantes foi a intervenção sobre a Cipla em 2007, realizada judicialmente. O magistrado responsável pela execução de uma dívida previdenciária, a pedido do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), visando à obtenção do pagamento dessa obrigação, nomeou um interventor judicial para a administração da fábrica, destituindo a gestão operária até então vigente.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Segundo Mandl (2011, p.7-8), um dos argumentos utilizados pelo juiz para fundamentar a decisão foi o seguinte: Quinto, e talvez o mais importante reflexo negativo do custo social da atitude da executada: a acolher-se o argumento de que tudo pode ser feito para a manutenção de mil postos de trabalho, estar-se-á legitimando o desrespeito odioso das leis e jogando por terra o Estado Democrático de Direito. Imagine se a moda pega? Alexandre (2011, p. 26) comenta tal argumento da seguinte forma: [...] nota-se que a preocupação do Magistrado, que por sua vez, reflete a posição do Judiciário Brasileiro, com raras exceções, é clara: não é possível admitir que trabalhadores transcendam seu processo de consciência e passem a entender que não precisam de patrões para gerir uma fábrica. Impossível aceitar que empregados se insurjam contra empregadores brandindo por um novo modo de relação de trabalho, e por fim, como conseqüência, é inaceitável que a classe trabalhadora passe a pensar em um novo tipo de gestão da sociedade - sem patrões, sem excluídos, sem desigualdade. Ou seja, a centralidade da medida é evitar que “a moda pegue”, reafirmando que experiências como a do MFO supostamente ofendem o Estado Democrático de Direito Depois do incidente, como resultado de uma infeliz vicissitude de decisões judiciais, das três fábricas ocupadas no início dos anos 2000, hoje apenas a Flaskô ainda se mantém sobre controle operário, resistindo como a única fábrica ocupada no Brasil atualmente. Por isso, para se aprofundar o estudo sobre a realidade do MFO hoje, não há outra maneira senão a partir da experiência dessa fábrica em específico. Completando recentemente 10 anos em junho de 2013, foi lançado um manifesto pelos trabalhadores da Flaskô descrevendo a sua história e indicando os desafios a serem enfrentados hoje e amanhã. Tendo em vista a importância de se reproduzir o texto subscrito pelos próprios trabalhadores, apesar da extensão, cabe transcrever os trechos mais relevantes do manifesto: Em 12 de junho de 2003, nós, trabalhadores da Flaskô, decidimos tomar nosso presente em nossas mãos, decidimos alterar o destino que o capitalismo e os patrões nos empunham. Nós decidimos tomar a fábrica e colocá-la sob o controle dos próprios trabalhadores. [...] A força que nos moveu foi a mesma que nos fez suar de sol a sol, durante nossa vida, vendendo nossa energia para rodar as máquinas do capitalismo e com isso receber um salário para comer, morar e criar nossas crianças. Mais do que isso, a força que nos moveu foi a necessidade de acabar com o horror que vivíamos e também o conjunto de nossa classe. Porém, em 12 de junho de 2003, nossa força estava animada também com a certeza de que um período havia que se esgotar. [...] Éramos mais de trezentos que participavam da assembleia que realizamos naquele dia. Éramos uma força que havia tirado os trilhos da história do seu caminho. E por isso decidimos reconstruir tudo. Assim, ocupamos a fábrica e nos articulamos para garantir o direito ao trabalho, nossa principal forma de dignidade. Para tanto, só havia um caminho, avançar para tomar as fábricas dos patrões, reorganizálas de acordo com os interesses de nossa classe, de acordo com os interesses mais gerais da humanidade - a vida e a solidariedade entre os

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 próprios trabalhadores, uma vida sem exploração. Organizamos, a partir daí, uma nova fábrica para se trabalhar. Nos unimos aos sem terra para lutar por reforma agrária e o pelo fim do latifúndio. Gritamos: "Quando o campo e a cidade se unir a burguesia não vai resistir". Da mesma forma, nos solidarizamos com todo o povo trabalhador explorado, impulsionando a luta pela moradia. Decidimos começar a unir convicção e ação a partir do terreno do patrão que durante décadas sugou nossa vida. Tomamos o terreno, e construímos a Vila Operária, onde vivem hoje 564 famílias. Assim como impulsionamos o projeto Fábrica de Cultura e Esporte, com centenas de atividades realizadas, envolvendo o conjunto da comunidade, com crianças, jovens e adultos, garantindo acesso à cultura, lazer, etc. [...] Sabemos que não há socialismo num só país, muito menos sobreviverá somente uma fábrica ocupada, isoladamente. Por isso, como demonstramos nesses 10 anos, somente a unidade de classe, inclusive para além das fronteiras nacionais, poderá dar uma saída real para a luta da classe trabalhadora em direção à transformação dessa sociedade. Assim, a luta continuará, e precisamos de toda a solidariedade de classe que fez com que a Flaskô ficasse aberta até hoje. Nesse sentido, convocamos todos aqueles comprometidos com a luta da classe trabalhadora por sua emancipação, para que se junte conosco nas lutas e batalhas que serão travadas no próximo período [...]. Viva os 10 anos da Fábrica Ocupada Flaskô! Viva a solidariedade internacional da classe trabalhadora! Sumaré/SP, Brasil, 15 de junho de 2013. Assinam essa carta, todos os trabalhadores da Flaskô e todas as entidades e organizações presentes neste encontro, aprovada por unanimidade.2 Como foi mencionado no texto, a maior bandeira que os trabalhadores da Flaskô levantam hoje é a da luta pela estatização da fábrica, é claro, abrangendo um processo de institucionalização sob o controle dos trabalhadores. Inclusive, é a matéria de que tratam dois Projetos de Lei, em tramitação do Senado, elaborados pelo coletivo dos trabalhadores da fábrica. Como se indica no Manifesto: O governo Dilma até o momento trabalha para impedir que os projetos de leis que apresentamos no Senado prosperem. Como já demos publicidade e conhecimento, ressalta-se que são dois projetos: um desapropria a fábrica transformando em propriedade social controlada pelos trabalhadores e outro projeto permite que toda fábrica abandonada ou falida seja desapropriada e repassada aos trabalhadores para uma gestão democrática. Por isso, nestes dez anos decidimos, mais uma vez, ir à ofensiva. Decidimos retomar com força a pressão sobre o governo Dilma/PT, e sobre o Senado Federal, para que aprovem imediatamente a declaração de interesse social para fins de desapropriação da Flaskô. Trata-se de uma decisão política, proporcionando um instrumento efetivo para a luta operária. A importância é ainda maior diante de uma conjuntura bastante interessante, de crise do capitalismo, ascenso das massas, rearticulação dos movimentos sociais em todo o mundo, inclusive, agora, chegando mais diretamente no Brasil. A burguesia precisará reprimir, criminalizar, mas as contradições ficarão cada vez mais 2

Texto completo em: FLASKÔ. Manifesto 10 Anos de Fábrica Ocupada Flaskô. Disponível em: . Acesso em 23 dez 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 evidentes, e somente deixará mais evidente a necessidade de construção de outra sociedade, não mais fundada na exploração da força de trabalho. O primeiro deles é o Projeto de Lei do Senado nº 257 de 2012, resultado da iniciativa dos próprios trabalhadores da fábrica com a elaboração da Sugestão 2/2012, que prevê a declaração de interesse social, para fins de desapropriação, da planta industrial da empresa 3. Em fevereiro de 2010, o MFO também entregou na Prefeitura e na Câmara Municipal de Sumaré Projeto de Lei com o mesmo teor, onde, contudo, não houve avanços desde então. Já de maneira mais geral, foi elaborada também pelos trabalhadores da Flaskô a Sugestão 1/2012, convertendo-se no Projeto de Lei 469/2012, cuja ementa é a seguinte: Altera o art. 2º da Lei nº 4.132/62 (Define os casos de desapropriação por interesse social e dispõe sobre sua aplicação), acrescentando-lhe inciso IX, para considerar como de interesse social o aproveitamento produtivo de bens de empresas abandonadas ou falidas que tenham passado a ser administradas por seus funcionários, sob qualquer modalidade de autogestão. Estipula a entrada em vigor da lei que resultar do projeto em noventa dias após sua publicação. 4 Ainda que em fase inicial, (apesar de ingressar no Senado há mais de um ano), é importante ficar atento não só à tramitação dos projetos de lei acima mencionados, mas também às campanhas realizadas pelos trabalhadores da Flaskô em prol de sua aprovação. A relação entre a pressão popular e a resposta social do grupo hegemônico, como sempre, pode ser muito reveladora em relação a vários aspectos. Relações de Trabalho e Controle Operário A existência do controle operário na gestão da Flaskô, talvez sua principal característica, indica, de forma concreta, a possibilidade de ruptura com o paradigma capitalista de sujeição da mão-deobra aos interesses do proprietário, resistindo enquanto experiência contra-hegemônica há mais de dez anos em meio à realidade capitalista. Uma das táticas do MFO é utilizar as vias legais, combatendo os preceitos burgueses no campo judicial. Citando Márcio Bilharinho Naves, Mandl (2011, p.29) indica uma das diretrizes do movimento: “o conhecimento dos mecanismos de funcionamento da ideologia jurídica é condição essencial para que as massas trabalhadoras possam formular uma estratégia que permita a ultrapassagem do domínio do capital”. Desta forma, é importante compreender a forma como os trabalhadores se organizaram quanto à produção após a ocupação da fábrica. Em relação ao controle operário exercido na Flaskô, a democracia operária é exercida através da organização de um conselho de fábrica, sendo que os trabalhadores optaram deliberadamente por não adotar a forma cooperativista de produção. Segundo as explicações de Mandl (2011,. p.9), “os membros do conselho de fábrica são eleitos 3

Tramitação disponível no Portal Atividade Legislativa do Senado Federal. Disponível em: . Acesso em: 23 dez 2013. 4 Transcrito de consulta realizada junto ao Portal Atividade Legislativa do Senado Federal. Disponível em: < http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=109935>. Acesso em: 23 dez 2013. Acrescente-se que a íntegra dos textos elaborados pelos trabalhadores da Flaskô, bem como a campanha pela aprovação de ambos os Projetos de Lei, encontram-se disponíveis em http://www.fabricasocupadas.org.br/estatizar/.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 anualmente, com representantes de todos os setores e turnos, reunindo-se semanalmente para tomada de decisões”. Como indica Flávio Chedid Henriques (2013, p.260) , pesquisador com uma minuciosa tese de doutorado sobre as empresas recuperadas por trabalhadores, A instância máxima de tomada de decisão na Flaskô é a assembleia, em que todos trabalhadores participam. Abaixo dela há o Conselho de Fábrica, eleito anualmente e composto por 13 pessoas. [...] Um entrevistado avaliou que há uma boa rotação no conselho, havendo uma troca, em geral de metade dos membros. Segundo ele, cerca de 40 dos 70 trabalhadores da fábrica já passaram pelo conselho. Como Mandl comenta, a partir da autogestão exercida sob essa forma, a solidariedade entre os trabalhadores foi o sentimento que passou a prevalecer na produção, condição que passou a eliminar os acidentes e evitar a alienação do trabalho, tendo em vista que todos conhecem a totalidade do processo produtivo. Além disso, os trabalhadores decidiram por reduzir a jornada para 30 horas semanais, diminuindo a exaustão e aumentando os postos de trabalho. E, por fim, ressalta: Mesmo com todas essas medidas, ressalta-se que houve um aumento no faturamento e na produtividade, o que demonstra a viabilidade da aplicação das reivindicações históricas da classe trabalhadora. [...] Todas essas medidas somente foram possíveis por não existir apropriação privada da riqueza. A gestão operária permite que a prioridade não seja o lucro, mas sim que a produção seja destinada ao fim social. (MANDL, 2011, p.9) A conclusão é que a organização das relações de trabalho exercida diretamente pelos próprios trabalhadores, de fato, implica a priorização dos interesses da própria classe, entre os quais a vida e a solidariedade no âmbito produtivo, assim como a conquista de uma vida sem exploração. Além disso, é importante ressaltar as ações da Flaskô para além do âmbito produtivo. Não apenas os aspectos cultural e habitacional, já mencionados no Manifesto, encontram-se abrangidos pela ação política dos trabalhadores da Flaskô: Além da relação estabelecida com a vizinhança, uma das características mais marcantes da fábrica é a relação intrínseca que possui com os movimentos sociais. A começar pelo fato de ser a Flaskô hoje a única empresa em funcionamento entre as que na década de 2000 se reuniram em torno da bandeira da estatização sob o controle operário e formaram o Movimento de Fábricas Ocupadas. Soma-se a isso, a identificação que possui a fábrica com a luta de outros movimentos, como o MST e o MTST, que têm a ocupação como principal ferramenta. (HENRIQUES, 2013, p.254) Para complementar, Henriques (2013, p.255) cita as palavras de um dos trabalhadores da Flaskô, em entrevista concedida a ele em pesquisa de campo: O setor de mobilização existe pelo caráter político que ele tem dentro de uma fábrica como a Flaskô, (...) ela se entende como um movimento social e dentro do movimento social é necessário esse caráter de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 difundir a luta através do seu exemplo e também estar junto dos movimentos sociais das ações que eles fazem (Trabalhador da Flaskô, Entrevista Concedida em 19.03.2012). Em relação a esse tema, Henriques (2013, p.255) concluiu ainda que, conforme ele nota, ocorre a institucionalização do caráter militante dentro do setor produtivo na Flaskô, o que se comprova, por exemplo, com a seguinte declaração: Nas fichas de produção a gente anota as ocorrências hora em hora, por exemplo: 7 horas, produção normal, código 40; 8 horas a máquina quebrou, código 30; tá regulando, código 15. E tem um código que foi inventado depois da ocupação, que é o código 10, que significa que o operador está em atividade ou em reunião política. Se o cara tá no conselho e não tem ninguém pra substituir, coloca 10 lá pra justificar a ausência. (...) Ontem quando a gente foi no ato tiveram três fichas de máquinas que não funcionaram e estavam no código 10. (...) É uma interseção da produção com o setor de mobilização (Trabalhador da Flaskô, Entrevista Concedida em 20.03.2012) Interessante mudança importante notada pelo pesquisador foi a alteração no espaço de trabalho realizada a partir do controle operário. Segundo ele, antes, a administração ficava no segundo andar e a área produtiva no primeiro, de forma que os diretores poderiam ver os empregados, enquanto os operários não poderiam ver a administração. Mas, logo após a ocupação, os trabalhadores logo aproximaram os dois setores: “Ficou bem melhor porque não tem a separação dos trabalhadores com os dirigentes da empresa, que no nosso caso é o Conselho de Fábrica” (Trabalhador da Flaskô, Entrevista Concedida em 20.03.2012). Como analisou outro trabalhador, trata-se agora de um controle invertido, pois em uma fábrica sem patrões, é importante que os trabalhadores possam observar o trabalho do setor administrativo. (HENRIQUES, 2013, p.256) Outro depoimento que chama a atenção é o de uma trabalhadora que, com a liberdade de poder circular por todos os setores produtivos, incluindo o administrativo, passou a perceber o espaço de produção de maneira diferente: “A diferença é que quando você trabalha em fábrica de patrão você senta e só vai até onde é seu local de trabalho. Teu espaço é um quadrado e você fica ali, dali sai pra ir no banheiro, ir almoçar e voltar. Aqui eu conheço a fábrica inteira” (Trabalhadora da Flaskô, Entrevista Concedida em 20.03.2012). (HENRIQUES, 2013, p.256) Por outro lado, fazendo agora uma abordagem objetiva do modelo atualmente adotado pela Flaskô, não se pode dizer que houve de fato a superação do modelo de extração da mais-valia na fábrica ocupada em questão. Pois tal processo não se extingue enquanto houver o presente o processo de assalariamento, o que ainda ocorre na fábrica (sob o ponto de vista formal, ainda se trata de uma empresa que conta com sócios e proprietários). (MANDL, 2011, p.20)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Ainda assim, percebe-se claramente que, com o afastamento da relação de subordinação inerente à exploração capitalista, os trabalhadores de fato conquistaram autonomia, tanto em relação à dimensão técnica quanto em relação à dimensão da ação política. Retomando os escritos de Flávio Chedid Henriques (2013, p.281), o autor, referindo-se às empresas recuperadas por trabalhadores por ele pesquisadas, conclui sua tese com as belas palavras: Há, por enquanto, uma flor que rompeu o asfalto, o tejo, o nojo e o ódio, simbolizando a construção de novas relações sociais de produção, materializada por iniciativas de luta de mais de 20 anos da classe trabalhadora. Suas práticas representam o que Ana Clara Torres Ribeiro (2005) chamava de “arte de resolver a vida”. E, sim, é a explosão franzina de uma vida severina, que nem por isso deixa de ser. De fato, a beleza de se presenciar a existência do controle da produção pelos próprios trabalhadores está em enxergar a possibilidade concreta de se transformar a realidade capitalista, de se romper com a exploração da classe trabalhadora. Assim como o Pedro Pedreiro da letra de Chico Buarque, a classe trabalhadora, sob a sujeição à ordem capitalista, situa-se entre o desejo e a reificação (UCHIMURA, 2014). Nesse sentido, experiências como a da Flaskô demonstram que a vida viva, expressão de uma sociedade em permanente tensão entre interesses antagônicos, não é de forma alguma algo intangível. Está aí, sufocada nos chãos das fábricas e emudecida pelas forças hegemônicas. Se às vezes podemos ver nela sinais de resistência e afloramento, isso significa que a luta pela emancipação dos trabalhadores não é mero devaneio. É possibilidade concreta e real, e constatar isso, no mínimo, permite à classe trabalhadora a sobrevivência do mais importante de seus desejos: o de superar a condição submissa. Em outras palavras, o desejo de romper com a fastidiosa condição de Pedro Pedreiro, de transgredir essa eterna espera do apito de um trem. Enfim, de lutar pela construção de uma coisa mais linda que o mundo e maior do que o mar, como diz a música de Chico. ARQUITETURA JURÍDICA DA EMANCIPAÇÃO A partir dos aspectos do Movimento das Fábricas Ocupadas abordados na primeira parte, uma das perguntas que podemos fazer é: como utilizar essa experiência para compreender o posicionamento do direito estatal em uma perspectiva de transformações sociais? Evidentemente, a inerente função conservadora do direito estatal fica em primeiro plano. Concretamente, andando nos corredores dos fóruns ou entre as salas das faculdades de direito, a impressão que dá é que o ar do juridiquês está ficando cada vez mais velho e ranzinza. Falta no âmbito do direito estatal a oxigenação que mantém o direito vivo dentro dele próprio. Não é por outro motivo que, cada vez mais, a percepção do pluralismo jurídico torna-se mais evidente: a organização de sistemas normativos alternativos é a resposta social ao engessamento e à castração que o direito estatal proporciona, sendo muitas vezes a opção pelo direito comunitário algo mais humano do que crer no monopólio da regulação estatal, que, afinal, nunca passou de uma ficção moderna.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Boaventura de Souza Santos (2001) leva esse cenário ao extremo da teoria social ao indicar que já não existe mais espaço para as energias emancipatórias dentro do paradigma dominante. A canibalização total da emancipação pela regulação, que levou à crise do projeto da modernidade, dá agora início à emersão de um novo paradigma. Nesta etapa de transição que surge, é fundamental que observemos com atenção as experimentações sociais nos diversos espaços da sociedade, as quais, no sucesso ou no fracasso, podem indicar como poderíamos construir um paradigma emancipatório daqui para frente. Com isso, surge da própria implosão do conservadorismo do direito estatal a possibilidade de utilizá-lo como ferramenta de transformação social. Os órgãos do Poder Judiciário têm em suas mãos o poder de abrir as janelas do estado para essas mudanças anunciadas, rompendo com o dogmatismo que tranca as entradas da pirâmide normativa esculpida pelo juspositivismo. Em defesa de uma “arquitetura libertadora” do direito, o pensamento jurídico crítico é ferramenta fundamental na construção de entendimentos transformadores e não coniventes com as opressões capitalistas. As Novas Correntes de Ar Como se percebe no cotidiano do Poder Judiciário, é comum que, sem arriscar novos passos, a interpretação do direito sirva apenas à legitimação do que já existe. Essa justiça cega, em vez de servir como processo de libertação, castra os anseios da liberdade humana. Contudo, de janela em janela, pode-se abrir cada vez mais espaço para o diálogo com os anseios populares; de pouco em pouco, interpretações que parecem hoje audaciosas poderão tornar-se caminhos recorrentes no Judiciário. A questão gira em torno do senso comum teórico dos juristas. Para Luis Alberto Warat (1994, p.15), essa categoria é o resultado de uma “linguagem eletrificada e invisível” que se produz no interior do direito positivo, vagando indefinidamente a serviço do poder. Em suas palavras: Existe um certo consenso nas reflexões em torno das práticas interpretativas do Direito. Poucas ousadias e muitas fantasias perfeitas recobrem as teorias sobre a interpretação da lei. Métodos ilusórios, enobrecidas crenças, desapercebidos silêncios envolvem as práticas interpretativas dos juristas de ofício. Teorias e práticas encarregadas de garantir a institucionalização da produção judicial da normatividade e seus efeitos de poder na comunidade. Práticas, mitos e teorias refinadas que se ligam estreitamente aos processos de produção heterônoma da ordem simbólica da sociedade. Usos complacentes da lei que guardam, como em cofres de sete chaves, os princípios de controle da produção dos discursos jurídicos. Uma discursividade enganosamente cristalina que escamoteia, em nome da verdade, da segurança e da justiça, a presença subterrânea de uma “tecnologia da opressão” e de uma microfísica conflitiva de ocultamento que vão configurando as relações de poder inscritas no discurso da lei. (WARAT, 1994, p.19) Isso lembra a célebre frase atribuída a Nietzsche: “e aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”. Ora, tomando coragem para enfrentar esse mundo de ficções que é o direito e rompendo com esse estado de alienação

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 mútua, poderemos encontrar sentido para transgredir, modificar e transformar as dimensões jurídicas que servem apenas à opressão social. Se, em síntese, a remodelação do direito é essencialmente uma tarefa ideológica, a entrada de novas correntes de ar representa a opção pelo compromisso com a libertação humana, e não mais com a legitimação da ordem posta. Essa é a luta por transformações sociais com a qual podemos nos engajar e nos comprometer, sempre procurando avançar na diretiva da emancipação humana, por mais “insano” que isso possa parecer àqueles que não podem, ou não querem, escutar a música que nunca deixou de tocar. O Quintal da Experimentação Social Por outro lado, no contexto de transição paradigmática em que estamos, a emancipação social chega a ser algo inverossímil de certa forma. Isso porque, quando se consideram formas de emancipação aceitas dentro do paradigma dominante, as energias emancipatórias são imediatamente absorvidas pela regulação social, ocultando a própria ineficácia e incoerência do sistema ou, ainda, atribuindo-as às alternativas e resistências fracassadas que se permitem. (SANTOS, 2001, p.329) Diante disso, nas palavras de Boaventura (2001, p.329), “não resta outra saída senão a utopia”. Não basta que se conquiste dentro do direito estatal um terreno onde, bondosamente, “permitamse” herméticas transformações sociais. Seria como se a classe hegemônica lançasse bombas experimentais dentro de um bunker à prova de som. Mais do que isso, a ruptura com o paradigma dominante em uma direção emancipatória exige que sempre se imaginem as direções desse horizonte almejado, analisando as experimentações sociais da margem para o centro através do exercício da utopia. Isso implica dizer que a luta pela emancipação é uma luta política, em que se pretende constituir dentro do estado condições reais para a experimentação social, ou seja, “condições para que as sociabilidades alternativas possam ser credivelmente experimentadas” (SANTOS, 2001, p.335), adquirindo certo grau de visibilidade e sendo interpretadas como real alternativa ao sistema dominante. O desejado respaldo judicial da legítima ocupação de fábricas, por exemplo, constituiria instrumental para, principalmente, dar voz a uma alternativa ao sistema de produção hegemônico. Com isso, o resultado que se pode obter é a garantia de um novo quintal para a ordem social, onde se poderiam exibir experimentações sociais de sistemas produtivos alternativos, fazendo ecoar a emancipação social “de fora para dentro” como movimento que contribui com a construção de um paradigma emergente emancipatório. Pois, de fato, os caminhos da emancipação não são facilmente determinados e, tampouco, nada certos. Para tentar segui-los, apenas podemos nos propor a fazer parte desse jogo dialético de imaginação e experimentação, em que se deve acreditar que a síntese pode vir a ser a radicalização totalizante de novas sociabilidades. E parte dessa tarefa consiste em utilizar as experimentações sociais que tenham sucesso como parâmetro para, concretamente, engendrar remodelações da arquitetura jurídica na direção emancipatória no futuro.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Aderindo ao pensamento jurídico crítico, observando as possibilidades jurídicas de transformação social e as colocando em prática, ou, ainda, lutando pela emancipação material dos trabalhadores e contra as formas de opressão legitimadas pelo sistema, com todas essas ações, faz-se parte desse grande jogo político. Já que somos obrigados a jogá-lo, fiquemos sempre do lado da luta pela libertação humana, seja na construção de mapas utópicos, seja na realidade que queremos transformar a cada dia. O QUINTAL DE COMBATE E A UTOPIA DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL Concretamente, o que a experiência da Flaskô demonstra é uma explosiva tensão social entre o velho e o novo. E, como se viu, essa tensão ocorre também dentro do Poder Judiciário, o que nos permite estabelecer uma aproximação empírica em relação aos conceitos tratados no item anterior deste trabalho. Quando um movimento social como o MFO chega às mesas do Judiciário, cria-se uma comunicação com o estado da qual surgem incontáveis possibilidades. A expectativa dos jurisdicionados pelos discursos que o Judiciário irá emitir, por certo, cinde-se em um misto de angústia e esperança. Do outro lado da mesa, um ser humano, de carne e osso, de certa forma irá decidir qual será o futuro daquele caso, materializando o que o Estado tem a dizer sobre a situação concreta. É entre um Judiciário hermético, cujo conservadorismo legitima a dominação vigente, e a entrada de novas correntes de ar, que a caneta do juiz se move ao sentenciar em casos como esse. No caso do MFO e da Flaskô, como se viu, até hoje ocorreu uma série de decisões que, escancaradamente, foram subservientes à reprodução do capital. Ainda assim, o movimento persiste. E mais: resiste com classe, como expressa o jogo de palavras que dá titulo à dissertação de Filipe Raslan (2007). Contudo, o que se percebe com uma análise mais ampla é que a ideia de que o direito estatal possa abarcar um “quintal de combate” é comprovada pela experiência concreta, apreendida pelo papel que a Flaskô desempenha atualmente. Não existem barreiras jurídicas para que se reconheça a legitimidade do MFO. O que pode existir é talvez um comodismo ideológico e, inegavelmente, um apego à defesa da propriedade privada. Mas o direito estatal pode, sim, tecer uma roupagem jurídica que assegure, hoje, a Flaskô como um espaço de experimentação social. Juridicamente, é o que indica uma interpretação sistemática dos direitos fundamentais dos trabalhadores, bem como a aplicação dos princípios também previstos na Constituição Federal, entre os quais o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III), a função social da propriedade (art. 5º, XXIII) e a busca do pleno emprego (art. 170, VIII). Utilizar esses institutos jurídicos e abrir as janelas do direito estatal para a busca de novos horizontes implica o reconhecimento da dialeticidade do processo histórico e, mais do que isso, a possibilidade de ecoar a emancipação social “de fora para dentro” na relação entre direito e sociedade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Como sustenta Lyra Filho (1986, p.265): [...] a soma vetorial das forças sociais reprimidas gera a resultante desordenadora do status quo, para o qual então se abre a alternativa de forçar a ruptura ou antecipar, com reformas, não de superfície, mas de alicerce, o que subterraneamente se realiza e que constitui a legítima e verdadeira revolução, isto é, o parto da nova ordem histórica a consumar-se, em consequência do atual processo desordenador. No desenrolar entre ordem e desordem – a música que nunca deixa de tocar no ser do direito –, a fábrica ocupada Flaskô pode se tornar um elemento central no contexto das transformações sociais. Ocupando um lugar no quintal do direito estatal, ganharia visibilidade, como se fosse parte de uma “vitrine de alternatividade”, exibindo novas formas de sociabilidade possíveis. Como reflexo na correlação de forças da luta de classes, esse caminho levaria à perturbação do jogo entre desejo e reificação jogado pela classe trabalhadora. Com isso, da periferia para o centro do sistema, há a possibilidade de se construir e manter um projeto contra-hegemônico, afastando-se um possível pacto entre o capital e o trabalho para, em seu lugar, permitir que a classe trabalhadora ocupe um locus politicamente estratégico no contexto da luta de classes. Se, nos casos concretos como o da Flaskô, os trabalhadores do direito começarem a abrir as janelas e elevar a noção de quintal de combate, de passo em passo a utopia da emancipação social ficará mais próxima da realidade consumada. Elevando essa perspectiva à análise da totalidade social, retomam-se, por fim, os seguintes escritos de Marx (1996, p.145): [...] pela transformação de sua atividade em atividade universal, os indivíduos foram cada vez mais submetidos a um poder que lhes é estranho [...], poder que se tornou cada vez mais maciço e que se revela, em última instância, como mercado mundial. Mas também está igualmente demonstrado, empiricamente, que este poder [...] é dissolvido pela abolição do estado social existente, pela revolução comunista [...] e pela supressão da propriedade privada, e que, então, a emancipação de todo indivíduo, em particular, é realizada, exatamente, na medida em que a História se transforma, completamente, em História Universal. [...] A dependência universal, esta forma natural de cooperação universal dos indivíduos, é transformada, por essa revolução comunista, em controle e dominação consciente exercida sobre esses poderes que, gerados pela ação recíproca dos homens, uns sobre os outros, se lhes foram impostas até aqui, e os dominaram como poderes absolutamente estranhos. CONCLUSÃO O Movimento das Fábricas Ocupadas e a Flaskô apresentam uma experiência de controle operário real no contexto da realidade brasileira atual. A resistência da Flaskô ao longo dos anos demonstra que a possibilidade de se construir algo novo e alternativo não é mero devaneio. É uma possibilidade verdadeira. Mais do que isso, agrega-se a um legítimo movimento social, que,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 como foi demonstrado, possui uma pauta bem definida e uma articulação efetiva voltada à conquista de suas reivindicações sociais. Em relação ao direito estatal, a noção apresentada de quintal de combate indica que é possível valer-se das ferramentas jurídicas institucionalizadas para, em vez de abafar as lutas sociais, elevá-las a condições reais de experimentação social. Com isso, sem entrar na questão ontológica do desaparecimento do direito indicada na introdução deste trabalho, por enquanto podemos nos limitar à constatação de que, concretamente, é fundamental e urgente procurarmos formas de utilizá-lo na construção de novos horizontes emancipatórios. Como se viu, garantir e dar visibilidade a sociabilidades alternativas, ao contrário do que o discurso hegemônico sustenta, é uma estratégia concreta e materializável. É uma estratégia que está, sim, no cardápio da conjuntura atual. Para materializá-la, romper com a estagnação e dimensão dominadora do direito estatal, como se defende neste trabalho, pode ser um começo capaz de carnavalizar a pulsão ordem-desordem, realizando dialeticamente novas formas jurídicas no processo histórico e, quem sabe, antecipando o mapa utópico-concreto capaz de alimentar a esperança social daqueles que dela tanto necessitam. REFERÊNCIAS

FLASKÔ. Manifesto 10 Anos de Fábrica Ocupada Flaskô. Disponível em: . Acesso em 23 dez. 2013. HENRIQUES, Flávio Chedid. Empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil e na Argentina. 2013. 334 f. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2013. LYRA FILHO, Roberto. Desordem e processo: um posfácio explicativo. In: LYRA, Doreodó Araújo (Org.). Desordem e processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho na ocasião do seu 60º aniversário. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. p.263-329. MANDL, Alexandre Tortorella. O movimento das fábricas ocupadas e o direito. Revista do CEMOP, Sumaré, n.2, p.7-34, out.2011. MARX, Karl. L’idéologie allemande. In: IANNI, Octavio (Org.). Marx. Coleção Grandes Cientistas Sociais. 8. ed. São Paulo, 1996. RASLAN, Filipe Oliveira. Resistindo com classe: o caso da ocupação da Flaskô. 2007. 170 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007. RIQUE, Mônica. Os princípios de Rochdale e os Princípios do Cooperativismo. Disponível em: . Acesso em 09 ago. 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência e a política na transição paradigmática. v.1. A crítica da razão indolente: para um novo senso comum. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. UCHIMURA, Guilherme Cavicchioli.. Pedro Pedreiro e a ontologia jurídica da utopia. Revista Crítica do Direito. São Paulo, SP, n.3, v.57, fev., 2014. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2014. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. v.1. Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 POSSIBILIDADE DE LIBERTAÇÃO PELOS CAMINHOS DA AUTOGESTÃO? UMA REFLEXÃO SOBRE O COOPERATIVISMO A PARTIR DA FILOSOFIA DESCOLONIAL

Luciana Souza de Araujo1 RESUMO O presente trabalho busca estabelecer relação entre o tema do cooperativismo e questões articuladas pela Filosofia Descolonial. Discorre sobre a autogestão, como elemento caracterizador do cooperativismo, considerando a diversidade de vertentes congregadas sob tal insígnia. Desde a filosofia latino-americana, ressalta as contribuições quanto ao método analético, proposto notadamente por Dussel. Considerando que transformação social é objeto da reflexão tanto de determinada vertente do cooperativismo, como também de filosofia específica na América Latina, a conexão entre analética e autogestão tem por objetivo questionar sobre as possibilidades de emergência do novo. Articulados os referenciais teóricos do cooperativismo e da filosofia descolonial, pretende-se refletir sobre o aspecto político da autogestão como fio condutor de uma prática à libertação. Palavras-chave: cooperativismo; autogestão; libertação. 1 Introdução O presente trabalho é um convite à reflexão quanto a práticas e valores contemporâneos. Nossa atual cultura, assentada em premissas neoliberais, prioriza o econômico em detrimento da pessoa humana, bem como promove o individualismo, como fundamento único e natural de sociabilização produtiva. As consequências de tais primados, a exemplo da radicalização das desigualdades sociais, têm gerado mazelas, especialmente em países de periferia mundial, como é o caso brasileiro. Buscando questionar a possibilidade de formar alternativas de produção, que ressaltem a primazia do humano e o desafio de uma práxis coletiva, propomos a reflexão crítica quanto ao cooperativismo brasileiro. Para tanto, lançaremos mão de instrumentais teóricos fornecidos pela reflexão filosófica latino-americana, conectando o econômico e o político, como fio condutor a uma prática organizativa que nos permita um produzir voltado ao viver. Centrada na valorização do humano, o ponto de partida da presente reflexão está atrelada à produção, reprodução e desenvolvimento da vida concreta de cada sujeito. Ou seja, trata-se de uma reflexão que não parte da vida humana como um conceito, uma ideia ou um horizonte abstrato. Trata-se da consideração do modo de realidade de cada ser humano concreto (DUSSEL, 2002, p. 11). Desde este aporte filosófico, ressaltamos a necessidade de reflexão e crítica da atual realidade de exclusão e exploração engendradas pelo modo de produzir hegemônico. Muitos autores (não sem pesadas críticas, como adiante veremos) apontam a experiência cooperativa como possibilidade de transformação dessa realidade social. Aliando a necessidade de produção econômica a uma forma de interação social que valorize o coletivo, buscamos verificar a existência de virtualidades a serem afirmadas no cooperativismo, caracterizado por sua matriz autogestionária. A conexão entre a filosofia descolonial e a autogestão cooperativa, busca aliar teoria e prática na busca por pistas para a transformação social. Desde a filosofia, explorando-se o método 1

Advogada. Professora de Teoria do Direito no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 específico por ela proposto (analético), ressalta-se a necessidade da libertação. questiona-se, de outro lado, se a prática autogestionária, ao exigir a reflexão/ação de cada um dos envolvidos quanto às questões cotidianas envolvidas no processo produtivo, levaria à compreensão das situações concretas em que estão inseridos os cooperados. Desde a micro realidade cotidiana, localizada e circunscrita aos afazeres produtivos diários, complexificada pela consideração do outro, do diálogo e da busca pelo consenso, o agir cooperativo, por seu aspecto político interno, poderia mostrar-se como mecanismo (micro) de conscientização e transformação de cada sujeito e do coletivo? Ainda que a prática do cooperativismo não desencadeie, natural e necessariamente, o desenvolvimento de um novo modo de produção, a presente provocação questiona se poderia, aliada ao instrumental metódica fornecido pela filosofia, revelar-se como mecanismo à prática de valores diferenciados, que, embora não hegemônicos, mostram-se válidos e salutares em direção à libertação. 2 Tateando o real concreto do cooperativismo brasileiro Para tecer considerações iniciais sobre o cooperativismo, é necessário pontuar que, no Brasil, sua promoção ocorreu por elites políticas e econômicas voltadas à economia agroexportadora. Longe de ser um movimento contestatório, como historicamente caracterizado, na realidade europeia do capitalismo incipiente da era moderna, no Brasil, efetivou-se como ação governamental de controle e intervenção social (RIOS, 2007, p. 26-27). Inicialmente localizado no meio rural, o cooperativismo foi implantado como meio para a ‘modernização conservadora’ agrícola, que consistiu em um processo de transformações nas estruturas rurais, com a introdução de tecnologias (tais como maquinário, insumos, adubos), gerando a subordinação da agricultura à indústria, através da introdução de novos modelos de consumo (LOUREIRO, 1981, p.136). Como resultado da chamada ‘Revolução Verde’, deu-se a “formação ou consolidação de uma burguesia agrária e a proletarização de camponeses” (SANTOS, 2003, p. 31). Essa orientação teórica engendrou a edição da Lei 5.764/71, chamada Lei do Cooperativismo, que define a política nacional do cooperativismo e, embora seja reconhecidamente obsoleta, ainda hoje se constitui no principal marco legal de referência às experiências cooperativas, pois além de não ter sido revogada pela Lei 12.690/12, este novo documento legal ressalta e complementa determinações contidas na Lei de 1971. Da análise jurídica do cooperativismo brasileiro, pode-se perceber que uma determinada forma de cooperativismo possui suporte e promoção pelo sistema jurídico-formal-burocrático. Trata-se de uma vertente do cooperativismo, que, embora institucionalizada, não é única. A partir da década de 90, diante da crise do desemprego estrutural, surgiram no cenário urbano brasileiro experiências populares que, buscando por geração de renda, utilizam-se do ideário cooperativista, porém em bases teóricas diferenciadas da acima exposta. Trata-se da retomada do cooperativismo em seus fundamentos históricos, como reação às condições socioculturais engendradas pela sociedade moderna europeia que remontam ao final do século XVIII. Historicamente, o movimento cooperativista tinha a característica de questionar os efeitos danosos das estruturas existentes, em um momento de instituição do modo de produção capitalista. Com influências do associativismo e dos socialistas utópicos, buscavam alternativas ao empobrecimento dos artesãos, camponeses e pequenos produtores, às condições desumanas de trabalho, à exploração do trabalho, questionando o trabalho assalariado, a propriedade dos meios de produção e a gestão autoritária e heterogestionária dos empreendimentos capitalistas. Ainda que se ressalte o momento histórico de surgimento do cooperativismo, apontando ser a prática cooperativa tão antiga quanto o capitalismo industrial (cujas causas estão imbricadas), o que se pretende neste texto não é a retomada anacrônica de valores situados em contextos específicos. Sem dúvidas o atual cooperativismo (ou cooperativismos) tem marcas próprias, alteradas e adquiridas pela interação de múltiplos fatores e contextos ao longo da história.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Entretanto o recurso à história, clamando por seu peso legitimador, é bastante corriqueiro e também se revela nos estudos sobre o cooperativismo. Notadamente no que se refere ao que se pode chamar de ‘mito de origem’ do cooperativismo: a cooperativa de consumidores de Rochdale2, fundada na Inglaterra em 1844. No período histórico europeu em que surgiu o cooperativismo, pode-se identificar a existência de cooperativas de produção e de consumo. Entretanto, este último modelo foi a natureza que acabou se difundindo, a exemplo da eleição de Rochdale como modelo que seria implementado mundo a fora. A escolha pela promoção do cooperativismo de serviços é verifica também no Brasil, traduzida na legislação nacional, como se pode verificar na dicção do artigo 4º da Lei 5.764/71: “As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características [...]”. Também no artigo 7º: “Art. 7º As cooperativas singulares se caracterizam pela prestação direta de serviços aos associados”. (BRASIL, 1971, sem grifos no original). Para além da experiência de cooperativas de consumo e para além de Rochdale – que sem dúvida teve importância no seu contexto e por sua história – existiram outras formas e experiências cooperativas. Porém, tal modelo é o propagado, nacional e internacionalmente, por organizações que avocam pra si a legitimidade de representação do cooperativismo. Em âmbito nacional, temos a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e, em âmbito internacional, a Aliança Cooperativa Internacional (ACI). No cenário de reestruturação produtiva da década de 90, momento de surgimento do cooperativismo popular brasileiro, também se viu surgir a absoluta precarização do trabalho, sob a forma fraudulenta de cooperativas de trabalho. Trata-se de dois modelos distintos, embora congregados sob a mesma designação. De um lado a associação engendrada pelos próprios trabalhadores, excluídos do mercado de trabalho, objetivando criar possibilidades de geração de renda em razão do desemprego estrutural. De outro lado, a organização dos trabalhadores feita pelo capitalista, com o objetivo de diminuir os custos sociais do trabalho. O segundo modelo, por burlar regulamentações trabalhistas, foi combatido no âmbito judiciário e acadêmico. Em âmbito legal, foi aprovada a Lei 12.690/12, que pretende definir o cooperativismo de trabalho e estabelecer sua organização e funcionamento. A mencionada lei, bastante recente, foi vista positivamente pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), no sentido que “Ela lança luz sobre os conflitos no mundo do trabalho brasileiro nas últimas décadas.” (SINGER, 2012). Por parte do sistema OCB, a nova lei foi recebida com elogios. Comentando sobre a aprovação da Lei 12.690/12, o presidente da OCB, Márcio Lopes de Freitas, declara: Esta é uma importante conquista para o movimento cooperativista. Esta lei será o instrumento jurídico preponderante para o funcionamento das cooperativas de trabalho, resgatando a legitimidade, o relacionamento de confiança, com um salto de qualidade e perenidade do negócio cooperativo. (SANCIONADA lei que regulamenta o cooperativismo de trabalho, 2012.) Pontuando a complexidade do tema, é importante frisar que a edição dessa mesma lei foi, ao mesmo tempo, recebida – paradoxalmente – de forma positiva por seguimentos muito distintos (de um lado a SENAES e de outro a organização ruralista – OCB), mas também gerou manifestações contrárias de setores que lutam por bandeiras muito similares. A exemplo, citamos a nota de repúdio emitida pela CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e as declarações do MNCR (Movimento Nacional dos Catadores de Materiais

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Inicialmente designada Sociedade Cooperativa dos Amigos de Rochdale, depois Sociedade dos Equitáveis Pioneiros de Rochdale até firmar-se como Cooperativa dos Pioneiros Eqüitativos de Rochdale. Contemporaneamente conhecida apenas como Cooperativa de Rochdale. (CARNEIRO, 1981, p. 33).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Recicláveis). Embora as duas manifestações sejam desfavorável à promulgação da lei, as razão que cada qual são bastante diversas, até opostas. Enquanto a CONTAG repudia a aprovação da lei por entendê-la como ato de flexibilização dos direitos trabalhistas, o MNCR a acusa de exigir pesadas providências e encargos aos trabalhadores organizados de forma associativa. Tratam-se de realidades muito distintas, ainda que ambas organizações apresentem-se como contestatórias do sistema hegemônico. No campo, a luta é pela assunção dos trabalhadores assalariados. Luta-se pela responsabilização dos empregadores pelas conquistas trabalhistas que a cooperativa de trabalho não alcança, tais como: aviso prévio, FGTS, multa de 40% sobre o FGTS, 13° salário, hora in itinere, Férias, PIS, seguro desemprego, salário família, horas extraordinárias. Considerando as complexas relações no campo, os trabalhadores seriam reféns da obrigatoriedade de constituírem cooperativas (embora um de seus princípios seja a livre adesão). Na interpretação da CONTAG, a lei transfere aos próprios trabalhadores rurais as responsabilidades trabalhistas, bem como a responsabilidade pelo risco do empreendimento: [...] os trabalhadores e trabalhadoras serão obrigados a constituírem cooperativas, tendo em vista ser esta a única forma de garantir emprego [...] já que não há dúvidas que o patronato jamais contratará um empregado se tem a opção de contratar um coopergato, que lhe retira a obrigação de respeitar os direitos trabalhistas destes empregados. (NOTA de repúdio da CONTAG..., 2012). De outro lado, as razões do repúdio do MNCR não partem do caráter fraudulento ou flexibilizante ao cooperativismo de trabalho. Os catadores de materiais recicláveis entendem a cooperativa como forma legítima de geração de trabalho e renda (em oposição à CONTAG). Porém, seu descontentamento com a aprovação da lei recai no grande impacto que a nova regulamentação terá sobre suas organizações, impondo altos custos às associações que, muitas vezes, não possuem sequer sustentabilidade financeira. Referindo-se ao artigo 7º da Lei 12.690/12 (que determina como direito do sócio: a retirada no valor do piso da categoria profissional; a jornada de trabalho nos patamares da legislação trabalhista; repouso semanal e anual remunerado; adicionais de insalubridade e periculosidade e seguro acidente), manifesta-se o MNCR: “[...] artigo 7º incisos de I a VII e de seus parágrafos de 1º a 6º, não são de competência natural dos empreendimentos cooperativos, e sim dos empreendimentos empresariais mercantis” (DECLARAÇÃO..., 2012). Ressaltam que: [...] os empreendimentos populares solidários e da economia solidária, não podem ser transformados em empreendimentos meramente mercantis, conforme o entendimento prático desta lei. Pois garante aos cooperados direitos obrigatórios da relação empregatícia, tradicionalmente as mesmas do trabalhador subordinado ao capital, submetendo os cooperados a um pretenso dono do capital que deverá pagar as obrigações. (DECLARAÇÃO..., 2012) As discussões promovidas pela edição na nova lei, que não revoga, mas adiciona determinações à lei geral do cooperativismo (Lei 5.764/71), demonstra o cenário complexo em que está inserido o tema do cooperativismo. Diante do quadro apontado, é evidente a pluralidade de cooperativismos. De modo geral e considerando a forma de regulação jurídica, o cooperativismo pode ser sistematizado em dois grandes grupos: de um lado o cooperativismo tido como oficial-legal-hegemônico, cujos empreendimentos se enquadram facilmente nas exigências legais (que são, inclusive, convenientes e resultantes desse tipo de cooperativismo). Tal vertente será designada de ora adiante apenas como ‘cooperativismo empresarial’. De outro lado, estão experiências plurais,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 complexas e com caráter contestatório. São comumente designadas como ‘cooperativismo popular’. Dada a variedade de organizações que utilizam a designação de cooperativa, é de fundamental importância apontar elementos capazes diferenciá-las, indicando o que chamaremos de genuína experiência cooperativa. Dentre outros caminhos possíveis, seguimos pelo elemento autogestionário como caracterizador do que é o cooperativismo. A partir deste critério, o presente trabalho estabelece seu recorte temático: tem por objeto o acima designado cooperativismo popular, que a partir de agora será chamado unicamente de cooperativismo. Insistindo na questão terminológica, embora a substantivação do cooperativismo como popular seja de extrema importância por situar, de maneira clara, o lugar de onde se fala, mesmo diante da necessidade de marcar as bases sobre as quais se trabalha, acreditamos importante seguir afirmando ‘o’ cooperativismo, como único, evidenciado como o movimento genuinamente contestatório. Manter-se no embate, requerendo a essa vertente a exclusividade da designação, é importante no sentido de combater o desvirtuamento da palavra ‘cooperativismo’. Marcando o contraponto à ideia unitária do cooperativismo empresarial, porque reconhecido formalmente, ressalta-se a pluralidade de experiências cooperativas, por isso nos referimos a ‘movimento cooperativista’ ou ‘movimento cooperativo’. Com essa visão ampla no que se refere ao conceito de cooperativismo, é possível identificar pontos de conexão com a chamada Economia Solidária. 2.1 A utopia militante e o cooperativismo: aproximações com a Economia Solidária A discussão em torno da Economia Solidária ocorreu no Brasil concomitantemente à retomada das formulações da Economia Social na França, com ênfases semelhantes. (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004. p. 15). Trata-se do movimento surgido a partir da década de 90, que congrega vários tipos de experiências apoiadas por igrejas, sindicatos, Organizações Não Governamentais e órgãos do governo, especialmente a partir de 2003, com a criação da Secretaria Nacional da Economia Solidária (SENAES), quando lhe é atribuído o estatuto de política pública. Em razão da multiplicidade de empreendimentos reunidos sob a designação de Economia Solidária, uma definição precisa e única é de extremamente difícil. Ainda assim, é possível identificá-la, de modo geral, como o conjunto de experiências solidárias têm a pretensão de estabelecer e fomentar relações econômicas e sociais fulcradas na coletividade e solidariedade, propondo a substituição da lógica competitiva pela solidária. A lógica econômica-solidária questiona a forma de apropriação do lucro efetivado pelo capitalismo, propõe, em seu lugar, que seja coletivo. Nas palavras de Paul Singer, principal referencial teórico da Economia Solidária: A solidariedade na economia só pode se realizar se ela for organizada igualitariamente pelos que se associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais em vez do contrato entre desiguais. (SINGER, 2002, p. 09). Além do questionamento quanto à distribuição dos recursos, os empreendimentos de Economia Solidária se distinguem daqueles sob a lógica capitalista em razão da forma específica como são geridos. Enquanto na administração capitalista prevalece a heterogestão, hierarquizada, com níveis diferenciados de autoridade, que geram decisões de cima para baixo e fomentam a competição, os empreendimentos solidários são administrados de forma autogestionária, com a participação dos trabalhadores no processo de decisão, planejamento e produção. Considerando que os teóricos da Economia Solidária explicitam a defesa da democracia interna em suas experiências, fomento à cultura democrática e ao espírito coletivo, bem como a geração de renda que favoreça a conscientização quanto à exploração capitalista do trabalho, pode-se encontrar conexão com os aportes teóricos do cooperativismo, em sua vertente popular. Neste

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sentido, Singer é enfático ao afirmar que a cooperativa de produção é o protótipo de empresa solidária, pois “todos os sócios têm a mesma parcela do capital e, por decorrência, o mesmo direito de voto em todas as decisões.” (SINGER, 2002, p. 09). Também é preciso registrar que a Economia Solidária é objeto de controvérsias: imprecisões terminológicas; contradições em sua fundamentação teórica, considerando autores diferentes; a prática política por vezes distanciada das reflexões teóricas. Os questionamentos surgem até mesmo quanto à própria designação dessa corrente: a conjugação das locuções ‘economia’ e ‘solidariedade’ apresenta-se como um desafio, por serem noções opostas. Para alguns teóricos não há na economia espaço à solidariedade (CARLEIAL; LIANA, 2008, p. 77). Nas lições de Coraggio: [...] lembremos que para autores inclusive anti-utilitaristas como Alain Caillé, a possibilidade que a economia seja ela mesma solidária é um sinsentido, porque a solidariedade social se alcança pela política democrática e por uma sociedade de associações livres que limitam, regulam, encastram a essa economia que não poderia deixar de ser um aspecto da vida, o relativo ao economizar, ao calcular, ao intercambiar buscando vantagens e soluções para as próprias necessidades. (CORAGGIO, 2010). Algumas anotações críticas à Economia Solidária recaem na forma pouco analítica de apresentação dos seus fundamentos teóricos, ou mesmo quanto ao conteúdo de tais formulações. A exemplo: a questão se a Economia Solidária seria um novo modo de produção ou forma de amenizar as mazelas do sistema atual. Autores que defendem a Economia Solidária divergem quanto a tais considerações. Para Singer, “A economia solidária é outro modo de produção...” (SINGER, 2002, p. 10). O autor defende: A economia solidária é ou poderá ser mais do que uma resposta à capacidade do capitalismo de integrar em sua economia todos os membros da sociedade desejosos e necessitados de trabalhar. Ela poderá ser o que em seus primórdios foi concebida para ser: uma alternativa superior ao capitalismo. Superior não em termos econômicos estritos, ou seja, que as empresas solidárias regularmente superariam suas congêneres capitalistas, oferecendo aos mercados produtos ou serviços melhores em termos de preço e/ou qualidade. A economia solidária foi concebida para ser uma alternativa superior por proporcionar às pessoas que a adotam, enquanto produtoras, poupadoras, consumidoras etc., uma vida melhor. (SINGER, 2002, p. 114, grifos no original). Outros autores, também defensores da economia solidária, sustentam posicionamentos diferenciados, referindo-se à alternativa para geração de renda diante da crise do emprego, estando, portanto, sob os moldes capitalistas. Pensamos [...] que a economia solidária constitui muito mais uma tentativa de articulação inédita entre economias mercantil, não-mercantil e não monetária, ao invés de uma nova forma de economia que viria a se acrescentar às formas dominantes de economia, no sentido de uma eventual substituição. (FRANÇA FILHO; LAVILLE, 2004, p. 187). A contradição exemplificada demonstra a dificuldade em trabalhar com o tema e abre espaço a críticas como “precariedade conceitual e analítica” (WELLEN, 2012, p. 24), ou quanto à ausência de sustentação teórica (GERMER, 2007, p. 59). A par da falta de consenso entre autores da economia solidária, no que se refere ao conteúdo dos fundamentos, questiona-se ainda a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 capacidade dos empreendimentos solidários em organizar os trabalhadores visando a superação do capitalismo. Também é necessário perpassar o tema da autonomia das experiências de economia solidária – crítica se que estende também ao cooperativismo – frente à lógica do capital. Questiona-se a possibilidade de serem espaços paralelos onde se possa exercer experiências institucionais alheias às leis gerais da reprodução capitalista. Para tanto, devem ser considerados os apontamentos feitos por Rosa Luxemburgo, que se dirige diretamente ao cooperativismo, porém também atinge a base teórica da Economia Solidária: As cooperativas e sobretudo as cooperativas de produção são instituições de natureza híbrida dentro do capitalismo: constituem uma produção socializada em miniatura que é acompanhada por uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força do trabalho, quer dizer a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. (LUXEMBURGO, 2002, p. 82). O caráter híbrido analisado pela autora marca a contradição em que a cooperativa está inserida. Desde a lógica interna diferenciada, autogestionária, de valorização do humano e do trabalho, à inafastável lógica capitalista do atual modo de produção. Ao analisar o âmbito econômico da cooperativa, tem lugar o questionamento quanto à invasão da lógica neoliberal na estrutura interna, enfrentando os dilemas anteriormente apontados quanto à precarização do trabalho. Também é preciso refletir se tal incidência é nefasta ao ponto de inviabilizar toda experiência cooperativa. Sem dúvida (adiante referido no item 2.2), a cultura hegemônica neoliberal, que propaga os valores do individualismo, da concorrência e da valorização do capital acima do ser humano, está disseminada de forma radical, introjetada na cultura social. Desta forma é, inevitavelmente, levada ao interior da cooperativa, dificultando a promoção de valores diferentes, tais como o coletivismo, a consideração pelo outro, a busca do consenso, entre outros. Ao final deste trabalho, reunidos a esse debate os aportes filosóficos, pretende-se verificar se a questão é uma dificuldade a ser considerada e ultrapassada ou se representa um obstáculo intransponível, esvaziando a experiência cooperativa de elementos emancipatório. Nessa mesma discussão, cabe também o questionamento quanto a posicionamentos desde um ponto de vista determinista, que impõe uma consequência última como necessária. Diretamente relacionado ao efeito de precarização do trabalho e intimamente ligado à questão da autonomia, está a análise quanto à viabilidade econômica da cooperativa e, de um modo geral, das experiências de economia solidária, pois são organizações que congregam, em grande parte, pessoas de baixa renda, que não dispõem de recursos para constituir capital inicial do empreendimento e, muitas vezes, recorrem a tais alternativas quando já estão em situação de endividamento. A viabilidade econômica envolve aspectos administrativos, jurídicos e de qualificação profissional, considerando-se também a capacitação para o uso de tecnologias informacional e comunicacional. Os desafios econômicos envolvem, portanto, equacionar a necessidade de produzir para o mercado, portanto submetido a essa lógica, enquanto se pretende propagar uma logica interna diferenciada; bem como exercer atividades comerciais, partindo-se ‘do vermelho’; muitas vezes sob a dinâmica de pessoas de baixa instrução formal e idade avançada. Tais elementos têm levado à necessidade do apoio de organizações externas (tais como igrejas, ongs e, principalmente, o Estado).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O posicionamento3 adotado pela SENAES, decorrente destes fatores, é de que a economia solidária trata-se de política social. Necessita do aporte estatal, seja com injeção direta de recursos, seja com a disponibilização técnica e funcional a amparar a instituição e manutenção dos empreendimentos, considerando seu financiamento e gestão. A partir dessa realidade e, retomando as lições de Rosa Luxemburgo, a cooperativa definitivamente não tem se apresentado, na atual conjuntura, como um fim em si, mas antes como meio, instrumento alternativo de amparo a excluídos do sistema produtivo, meio legítimo a amenizar as desigualdades sociais. Para além da questão econômica, ainda que ressaltada sua importância, o presente estudos por objetivo ressaltar a possibilidade cooperativa – como meio – em outro âmbito: o político, pois o cooperativismo se apresenta como um movimento econômico, mas também social. Encontra-se outro ponto de aproximação entre o cooperativismo e a Economia Solidária: a crítica ao reducionismo econômico. Nesse ponto a pesquisa se apropria dos referenciais teóricos da Economia Solidária, mormente Paul Singer e Euclides Mance, ainda que anteriormente tenha lhes dedicado críticas determinadas. A consideração quanto à viabilidade política da cooperativa está circunscrita ao seu ambiente interno, porém não desconsidera os desafios inerentes à sua inserção externa, subsumida ao modo de produção capitalista e às complexas relações dele decorrente. A viabilidade externa da cooperativa é de extrema relevância, pois sem sustentabilidade, o cooperativismo não se mantém e é, sem dúvida, a razão pela qual essa forma associativa é buscada por quem dele necessita, para geração de renda, ou seja, para questões concretas da vida. A virtualidade cooperativa está em aliar à busca por trabalho e renda a possibilidade de reflexão crítica, e, portanto, política. Trata-se do combate à alienação causada pelo trabalho subordinado à estrutura hierarquizada capitalista. A virtualidade do cooperativismo está no âmbito democrático, quando plenamente exercido, na figura da autogestão. Quando este caráter não se efetiva, os empreendimentos cooperativos estão fadados à cooptação, não oferecendo qualquer benefício à causa contestatória dos efeitos excludentes e exploratórios do capitalismo. 2.2 A autogestão como elemento caracterizador da genuína experiência cooperativa Diante da multiplicidade de ‘cooperativismos’, é necessário questionar-se por pistas a indicar o que é ‘o’ cooperativismo. Os elementos históricos (com inspiração nas formulações idealizadas pelos socialistas utópicos e associativistas, tais como Proudhon e Owen) e contemporâneos apontam para a estrutura interna da cooperativa. O que há de diferenciador nessa estrutura é: a substituição da competição pela cooperação específica do cooperativismo (que não se confunde com a cooperação efetivada pelo capitalismo); no lugar da acumulação tem espaço a distribuição; e, essencialmente, a valorização do humano sobre o capital, atribuindo-se especial relevância à democracia. A autogestão e a heterogestão marcam, de forma inconteste, a diferença entre organizações cooperativas (ainda que em âmbito teórico e não jurídico ou hegemônico) e empresas capitalistas. Enquanto na heterogestão a administração é hierarquizada, possuindo níveis diferenciados de autoridade, caracterizando as decisões que vem “de cima para baixo”, na autogestão as relações são horizontalizadas. A autogestão, para que se efetive, exige a participação dos trabalhadores – sócios do empreendimento – de forma concreta, desde o processo de planejamento e decisão, passando – necessariamente – pela execução e repartição dos resultados obtidos pelo trabalho.

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Posicionamento que se revela na atuação prática, nem sempre assumido teoricamente. Como acima visto, teoricamente, para Singer, a economia solidária seria um modo de produção. Nessa dicotomia, é revelador o fato da SENAES estar vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego e não ao da Fazenda, cuja atribuição é elaborar e executar a política econômica brasileira.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A ideia de autogestão já estava contida nas experiências socialistas de Proudhon, que, muito embora não tenha utilizado tal designação, empregou seu conteúdo, segundo Motta (1981, p. 133): [Proudhon] deu, pela primeira vez, [...] o significado de um conjunto social de grupos autônomos, associados tanto nas funções econômicas de produção quanto nas funções políticas. A sociedade autogestionária, em Proudhon, é a sociedade organicamente autônoma, constituída de um feixe de autonomias de grupos se auto-administrando, cuja vida exige coordenação, mas não hierarquização (MOTTA, 1981, p. 133). A autogestão, contraposta à heterogestão da empresa capitalista, é uma marca indelével às organizações cooperativas. Nas cooperativas de produção, a autogestão manifesta-se em toda extensão da organização: na gestão, no efetivo controle do processo de produção pelos trabalhadores, bem como na distribuição do resultado proporcional ao trabalho realizado (FARIA, 2005, p. 122). E apenas quando simultânea nesses três âmbitos se pode identificar a concretização da autogestão. É sua ocorrência em conjunto que garante uma organização autogestionária. Ao discorrer sobre os princípios da autogestão para unidades produtivas (na gestão; no processo produtivo; e da distribuição), José Ricardo salienta que tais princípios “não são independentes, o que significa dizer que o desenvolvimento pleno de um somente é possível com o desenvolvimento dos outros.” (FARIA, 2005, p. 52). A cooperativa tem uma existência paradoxal: sua lógica interna é conflitante (e contrária) à lógica externa em que está inserida. Se, de um lado, procura-se propiciar uma forma diferenciada de convivência produtiva entre os cooperados (operadores em conjunto), em colaboração (laborando em conjunto), de outro lado, essas organizações, externamente, entram em relações inevitáveis de competição com outras organizações (capitalistas ou não). Nesse sentido, são válidos os apontamentos de Coraggio: Para dar um exemplo: a cooperativa posta a competir pela sua sobrevivência no mercado atua competitivamente, motivada pelo egoísmo particular não já de ganhar sem limite, mas sim de assegurar a melhor qualidade de vida para seus membros. E ao fazê-lo, luta contra as forças do mercado: a de outros produtores, capitalistas ou não, nacionais ou do estrangeiro, pugnando por vender seus produtos, competindo por preços ou tratando de ganhar a fidelidade dos consumidores; a do sistema financeiro que usualmente os discrimina; a dos regulamentos e normas que aplica o Estado, usualmente pensadas para a empresa de capital; ou as rígidas instituições do cooperativismo tradicional. (CORAGGIO, 2010). Além da contradição interna/externa, outros elementos desafiam a efetiva vivência da autogestão, tais como: a cultura individualista exacerbada e hegemônica, que contraria as orientações coletivistas da autogestão; a questão do poder nas relações internas, mesmo em cooperativas genuinamente formadas pelos próprios trabalhadores; a questão da ingerência de órgãos apoiadores da organização, que muitas vezes atuam no sentido de viabilizar a cooperativa, porém tais direcionamentos são negativos, ainda que a prática cotidiana da autogestão seja difícil e morosa; a questão da viabilidade da autogestão em cooperativas com elevado número de participantes; a diferenciação da autogestão e da participação democrática. Pelas características delineadas, conclui-se que a autogestão vai além da participação democrática meramente formalista. Não se restringe à participação – com voto – em assembleias, prática percebida nas cooperativas do modelo agroexportador (referência e endereço certo da atividade legislativa brasileira), cujas assembleias anuais (que deveriam congregar todos os cooperados) são reuniões que objetivam ratificar atos e decisões já tomadas por uma cúpula que se reveza na administração da empresa.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Autogestão não se trata de representação e sim da efetiva atuação, em todos os níveis da organização, de maneira responsável e decorrente do amplo acesso à informação (que pressupõe sua compreensão). Na lição de Rose Maria Inojosa (1999, p. 166) “a autogestão é a negação da burocracia que separa uma categoria de dirigentes de uma categoria de dirigidos”. A noção equivocada quanto à autogestão se limitar à participação democrática é amplamente difundida e modelo executado pelo cooperativismo empresarial, pois, reproduzindo em seu interior a lógica capitalista, precisa de decisões rápidas, a serem tomadas por pessoas com característica de líderes. Tal noção foi eleita pela recente definição legal (Lei 12.690/12) de autogestão: Art. 2º [...] § 2º Considera-se autogestão o processo democrático no qual a Assembleia Geral define as diretrizes para o funcionamento e as operações da cooperativa, e os sócios decidem sobre a forma de execução dos trabalhos, nos termos da lei. (BRASIL, 2012). A exigência legal, longe de conferir mecanismos efetivos à prática autogestionária, limita-se a garanti-la em sua formalidade. Reduz e, consequentemente, deturpa a noção, restringindo-a à participação democrática, que em muitos momentos da gestão, é meramente ratificadora. Contrariando a noção mercadológica, que domina o cooperativismo empresarial, o processo autogestionário é complexo e não imediato. Demanda empenho e persistência. Porém, como uma construção orgânica e coletiva, revela-se “um processo pedagógico de democracia” (MAURO, 2003, p. 95). O processo engendrado pela autogestão, ao promover a discussão, a participação e a responsabilidade pelas decisões tomadas coletivamente, constitui um espaço que é, em última análise, político. Pretende-se ressaltar a importância desse elemento político do cooperativismo, para além da possibilidade da criação de condições de inclusão material de famílias à margem dos processos econômicos. Sem dúvidas, o elemento econômico não pode ser relegado, pois a motivação que – em geral – leva as pessoas a constituir ou ingressar em uma cooperativa é, majoritariamente, a questão econômica. Ainda assim, a virtualidade da cooperativa está na possibilidade de ser o lugar em que se possibilite a transformação de subjetividades. Se a cooperativa pode ser esse lugar é tão somente em razão do procedimento que congrega: a autogestão. 3 A reflexão filosófica sobre a utopia Sem dúvida, a filosofia tradicional (historicamente europeia e, hoje, também norte-americana) tem muito para nos auxiliar. Entretanto, considerando-a, é preciso ir além. A reflexão sobre a questão latino-americana, brasileira, exige a reflexão de elementos e traços próprios, nossa história e nossa realidade, que são particularmente nossas. Não se pode olvidar a posição de periferia ocupada por nossa sociedade diante do sistemamundo. Sem qualquer referência a elementos de inferioridade, esse é um fato que se impõe. Portanto, a reflexão filosófica deve partir de tal consideração, pois apenas a repetição ou aprofundamento de construções erigidas em marcos que não são nossa realidade, tornam-se amarras e reproduzem tal estrutura. As palavras de Dussel (1977) são bastante claras a ressaltar a insuficiência da filosofia tradicional europeia à realidade latino-americana: A filosofia clássica de todos os tempos é o acabamento e a realização teórica da opressão prática das periferias. Por isso a filosofia, como o centro da hegemonia ideológica das classes dominantes, quando é filosofia da dominação, desempenha um papel essencial na história europeia. Pelo contrário, dificilmente se poderia encontrar em toda essa história o

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 pensamento crítico que seja, de alguma forma, filosofia da libertação, enquanto se articula à formação ideológica das classes dominadas. (...) Os filósofos modernos europeus pensam a realidade que se lhes apresenta: a partir do centro interpretam a periferia. Mas os filósofos coloniais da periferia repetem uma visão que lhes é estranha, que não lhes é própria (...). (DUSSEL, 1977, p. 11-12; 18) Mesmo sem desconsiderar o pensamento produzido pelo ‘centro’, este artigo se propõe a utilizar o referencial latino-americano como aporte a refletir a realidade latino-americana. 3.1 A colonialidade das reflexões cooperativistas A filosofia própria da América Latina é aquela que considera, desde esse lugar, a sua própria constituição, no processo colonial moderno. A América Latina, criada como tal, foi integrada em um padrão de poder histórico-estrutural, que, de um lado a colocou em posição de dependência e, no mesmo movimento, constituiu a Europa ocidental como centro mundo do controle de tal poder (QUIJANO, 2006, p. 49). Esse padrão de poder, que define elementos materiais e subjetivos, é a colonialidade, herança histórica que permanece internalizada, mantendo-se para tempos muito além do período colonial. Essa continuidade, velada e explícita, é possibilitada por relações de poder que reproduzem a colonialidade no saber e na subjetividade. A colonialidade também se explicita nas relações de poder. A colonialidade do poder consiste em um sistema de dominação e exploração social, gestado no momento em que a América Latina se constituía na forma como hoje é conhecida. Esse momento foi o da modernidade. Os principais elementos desse sistema de dominação e exploração, segundo Quijano (2006, p. 62; 68; 73; 2005, p. 120), são: a ideia de raça (como um sistema de classificação social, que racionaliza as relações entre colonizadores e colonizados); o capitalismo mundial (como o sistema de exploração social, com divisão do trabalho, seu controle e exploração dos seus recursos e produtos); o eurocentrismo (como um modo de produção e controle de subjetividade); e o EstadoNação (como sistema de controle da autoridade coletiva). Especialmente interessa ao presente artigo as formulações quanto ao eurocentrismo, racionalidade específica moderna, que consiste em um sistema de dominação pelo controle da subjetividade. O que se pretende evidenciar com tal aporte não é um ressentimento histórico pelos episódios gerados no período de conquista, mas sim o elemento de distorção na compreensão da realidade, que se mostrou mais duradouro e estável que o próprio processo de colonização (QUIJANO, 2005, p. 107). A questão trazida refere-se a uma perspectiva já assumida pela forma de pensar latino-americana, que em realidade, é fulcrada em elementos e valores eurocêntricos. Justifica-se, portanto, a necessidade de uma crítica genuinamente latinoamericana, para que a percepção dos nossos problemas não seja obstada por tal bloqueio de visão. Por sua natureza, a perspectiva eurocentrista distorce, quando não bloqueia, a percepção de nossa experiência histórico-social, enquanto leva, ao mesmo tempo, a admiti-la como verdadeira. (...) Em consequência, nossos problemas também não podem ser percebidos senão desse modo distorcido [...]. (QUIJANO, 2006, p. 57-58). Além de pontuar a importância das reflexões filosóficas que considere integralmente a realidade latino-americana, busca-se utilizar tal referência para voltar a análise às formulações teóricas do cooperativismo e da Economia Solidária, no esforço por identificar em que medida tal visão não se apresenta distorcida pelo padrão de poder originado pela força da colonialidade. Nossa herança colonial revela toda uma legitimação de poder, justificada econômica e culturalmente. Colonialidade que também se reproduz no espaço interno do nosso país, seja por

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sua reprodução a partir de elites culturais e econômicas, ou mesmo pela internalização de valores, tidos como naturais, que assumem o sistema econômico como inevitável ou os discursos culturais como verdadeiros, produzindo desigualdades de todas as ordens. Com esses fundamentos, voltamos os olhos à ‘doutrina cooperativista’, considerada como um corpo de conhecimentos, pretensamente neutros, caracterizados pelo formalismo (descolado da multiplicidade da realidade social) e legalmente legitimado, assumido e divulgado por órgãos que se apresentam como representantes unitários do cooperativismo, em âmbito internacional (a ACI) e em âmbito nacional (o ‘sistema’ da OCB). Para o tema, seguimos a orientação de Gilvando Rios (2007, p. 51), para quem: A ‘doutrina cooperativa’ é habitualmente apresentada como ‘teoria’. [entretanto] A teoria deriva da prática, dela se enriquece, com ela se modifica e se transforma. [enquanto que] uma ‘doutrina’ é exatamente o oposto disso, pois, não deriva da observação sistemática da prática, se impõe a ela. [...] Apensar disso é conveniente apresentar-se a ‘doutrina cooperativa’ como ‘teoria’, pois isso justifica e enobrece a prática ou as práticas do cooperativismo. Trata-se apenas de uma perspectiva falsamente teórica [para] justificar uma perspectiva pragmática do cooperativismo, isto é, o cooperativismo politicamente ‘fácil’ e ‘seguro’ para os interesses das classes dominantes. A ‘doutrina cooperativa’ é uma falsa teoria, na medida em que consiste num corpo de princípios abstratos, sem referencia a situações históricas concretas e de classe. Não interfere, pois, com a ‘prática’, não a enriquece, nem a contesta. (RIOS, 2007, p. 51). A ‘doutrina cooperativista’ se revela em uma forma de propagação da colonialidade, tanto de forma exógena (colonialidade externa), através das orientações propagadas principalmente pela ACI, quanto de forma endógena (colonialidade interna), nas determinações do cooperativismo empresarial, legal e hegemônico no interior da realidade brasileira. O que se tem produzido nessa doutrina, deixa de considerar o específico contexto históricocultural diferenciado da realidade brasileira, para fazer a transposição de um modelo europeu. Nas palavras de Givanildo Rios (2007), é uma caricatura: O cooperativismo “decalcado”, copiado do figurino formal europeu, não é exatamente uma cópia, como toda imitação, é uma caricatura. Este cooperativismo de “macaqueação” compreende um aspecto aparentemente inofensivo e inócuo, folclórico mesmo: a chamada “doutrina” (RIOS, 2007, p. 47) A colonialidade dessa vertente se revela na reprodução de valores cooperativistas, categorizado em princípios, que deturpam as origens históricas de onde são extraídos. Também, e principalmente, as formulações teóricas e práticas do cooperativismo empresarial revelam seu vício performativo na crença do progresso capitalista, revelando a colonialidade engendrada pelo eurocentrismo e capitalismo mundial. A visão distorcida deixa de revelar as verdadeiras características desses dois produtos da colonialidade: de um lado o sistema de controle da subjetividade e do conhecimento e, de outro, o sistema de exploração social. Também nessa linha de análise, tem lugar as considerações de Fals Borda (1970), que, analisando o cooperativismo de estilo europeu, implementado com mais êxito na Argentina e sul do Brasil, constata a reprodução dos moldes do cooperativismo de consumo de Rochdale, restando o cooperativismo instaurado atrelado a um processo de colonialismo. Ao assumir fundamentos construídos e adequados à noção eurocêntrica, a subjetividade passa a ser bloqueada, quando não passa a criar como verdadeiros sentidos que são, na realidade, apenas hegemônicos.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Conjugada com a noção de colonialidade do poder está a discussão sobre a colonialidade do saber, pois a separação entre saber e poder é didática e tem o objetivo de permitir uma melhor apreensão dos fenômenos. Porém, são noções que mutuamente se condicionam, já que um projeto de poder é legitimado em determinadas bases de saber. A colonialidade do saber revela o legado epistemológico que condiciona a compreensão do mundo no qual se está inserido. Trata-se da subalternização de conhecimentos próprios frente a uma epistemologia hegemônica. Walter Mignolo (2003, p. 41) é enfático ao afirmar que, apesar de os gregos terem gestado determinado pensamento filosófico, o pensamento não fica a isso adstrito. Pensamento, conhecimento está em todos os lugares e em diferentes povos. Há tantas epistemes quanto tantos povos diferenciados existirem. A postura crítica quanto à construção dos saberes surge diante do limite imposto por essa colonialidade. Para descolonializar o saber é necessário uma aprendizagem que considere os valores e saberes próprios, ainda que destoem do formato tradicional epistêmico. Saberes próprios a exemplo daqueles que são produzidos pelos trabalhadores, quando inseridos em processos marcados pela autogestão. Habilidades, informações e conhecimentos originados do trabalho vivo, construído pelo acumulo da experiência histórica. Considerar esses saberes epistemologicamente é romper com a dicotomia tradicional entre o ‘mundo do trabalho’ e o ‘mundo da cultura’, fruto da racionalidade capitalista (FISCHER; TIRIBA, 2009, p. 293; 294). A sociedade de classes situa o conhecimento (apto à produção da ciência) ao lado dos possuidores dos meios de produção, enquanto desconsidera – ou subalterniza – os conhecimentos daqueles que vendem sua força de trabalho, sob a etiqueta de senso comum ou desvalorizado como conhecimento iminentemente prático. Romper com a colonialidade do saber é conferir validade aos conhecimentos produzidos desde a prática, que são plurais. Saberes constituídos nos debates entre cooperados, ou seja, nas difíceis, morosas e reformuladas decisões da gestão compartilhada. Toma-se a possibilidade autogestionária como meio a gerar, considerar e valorizar outros conhecimentos, vindos da experiência, pois: O que se vivencia deixa marcas éticas, políticas, culturais e existenciais, além de inúmeros saberes. Coletivamente também se vivenciam modos de ser, produzir e de se reproduzir material, social e culturalmente. Nessas vivências, vão se criando saberes e tradições de um grupo, instituição, povo ou classe social. (FISCHER; TIRIBA, 2009, p. 295). Romper com a colonialidade é, portanto, considerar a produção do conhecimento para além das estruturas institucionais e formais de ensino e aprendizagem. Os atores que, em geral, estão envolvidos em experiências da economia solidária e também do cooperativismo, são privados do ensino formal ou, de modo insatisfatório, o ‘recebem’ (no sentido dado por Paulo Freire à educação bancária, que considera os alunos como depósitos, inicialmente vazios, a serem preenchidos pelo conhecimento formal e hegemônico detido pelo professor). São, por isso, considerados – a partir de uma noção colonializada – destituídos de conhecimentos. Entretanto, por suas vivências, produzem saberes e valores, que são, inclusive, indispensáveis – a partir da metodologia assumida por Dussel –, pois é desse lugar (do depósito vazio; do nada; do que não existe; do que não é considerado) que há possibilidades criativas. É de onde pode vir algo novo. 3.2 A metodologia do novo: autogestão e libertação Também apontando para as deformações da colonialidade, Erique Dussel, denuncia a divisão do sistema-mundo em centro e periferia: aquele reprodutor de uma totalidade, que se anuncia como única realidade existente, desconsiderando toda uma exterioridade, composta por vítimas.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 ‘Vítimas’ são seres humanos privados da possibilidade de produzir, reproduzir ou desenvolver sua vida, são excluídos, afetados por alguma situação de morte. (DUSSEL, 2002, p. 303). A totalidade se implantou a partir do século XVI tendo a modernidade europeia com centro. Para a consideração da modernidade a partir da periferia, não apenas a origem desse mito é problematizada, como também o são seus fundamentos e possibilidades. A filosofia da libertação construída por Dussel nega tal dominação e exclusão no sistema-mundo. É necessário destruir tal pensamento europeu totalizante, apontando seus limites, e, a partir da exterioridade latinoamericana, abrir lugar para o novo (LUDWIG, 2006, p. 127). A impossibilidade da plena realização da Modernidade exige a superação do atual sistemamundo, em um projeto denominado “Trans-Moderno”. Neste projeto há a afirmação da alteridade negada, partindo-se do reconhecimento do outro, encoberto pelo sistema vigente. Entretanto, para que se possa valorar e dignificar outras culturas, é necessário negar a centralização europeia. Romper com o ideário de ser essa a única possibilidade e que observa as demais experiências como repetição do seu ‘mesmo’. Para tanto, Dussel (1986) apresenta um método filosófico próprio: o método analético. Essa metodologia específica ultrapassa a dialética aristotélica e moderna. Ultrapassa a noção do pensar como condição para o existir. Correndo o risco de cair em uma simplificação do pensamento dusseliano, que pressupõe o domínio de filosofias complexas, poderíamos apontar três noções que o método analético congrega: (1) a superação da dialética ontológica; (2) o irromper do outro (a exterioridade); (3) a possibilidade de criação do novo, surgido desde o cara-a-cara. A reflexão sobre o método proposto se inicia com a consideração das análises filosóficas quanto à dialética. Dussel apropria do pensamento de Heidegger importantes contribuições quanto à crítica ao cotidiano e reflexões sobre o ‘pensar essencial’ do ‘ser a partir de si mesmo’ (DUSSEL, 1986, p. 190), partindo-se do cotidiano, busca-se acesso ao fundamento do mundo. Para Heidegger, o pensar só pode acontecer a partir do mundo cotidiano e, especificamente, na crítica a ser feita a esse mundo das coisas. Assim, a existência pode ser concebida de duas maneiras: numa posição existencial, cujo modo de existir é óbvio, sem crises (mera reprodução de atos, práticas e rotinas); ou numa posição existenciária, cujo modo de ser é refletido e crítico (DUSSEL, 1995, p. 88). Este primeiro momento do método proposto por Dussel, cujas bases estão na filosofia tradicional, ou seja, ainda dentro da totalidade, é dialético: horizontes são avançados sucessivamente, alterando a percepção do sujeito, em uma atitude que ganha dimensões críticas. Entretanto, a dialética chega ao seu limite: o desvelar do fundamento; a compreensão do ser. Nesse momento, as noções heideggerianas, embora subsumidas, são superadas, pois para além da totalidade está a exterioridade, concreta expressada na face da vítima, o outro, aquele que está excluído do sistema totalitário. O fundamento da totalidade é opressor e causa negatividades. Por essa razão e por se tratar de uma reflexão que parte da realidade concreta de periferia mundial, composta por vítimas do sistema-mundo hegemônico e totalizante, o método dusseliano inclui outros momentos ao método. Subsume a dialética, que, por estar no âmbito da totalidade, é chamada por Dussel de dialética totalitária ou dialética ontológica (DUSSEL, 1986, p. 189). Além de subsumi-la a supera, pois o método dialético, lido e relido ao longo da tradição filosófica europeia, é sinônimo de dominação, por não romper com a ontologia (DUSSEL, 1986, p. 196). É dominação porque, apesar de acessar e conhecer o fundamento do mundo, continua a reproduzilo. A superação da totalidade ontológica é feita a partir da constatação de que a totalidade não é tudo. Além dela existe a exterioridade, composta por vítimas desse sistema ontológico. Na exterioridade está o outro, que não é como o eu: “O Outro é o rosto de alguém que eu [...] experimento como outro; e quando o experimento como outro já não é coisa, não é momento de meu mundo, mas meu mundo se evapora e fico sem mundo diante do rosto do Outro” (DUSSEL, 2008, p. 68). Esse momento do método é construído a partir das formulações de Levinás.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A descoberta do outro, o seu desvelar, impõe uma atitude ética: a alteridade, que percebe a existência do outro, porém não o transforma em ente da totalidade. No lugar, empreende-se na incansável tarefa de interpretá-lo, unicamente possível por analogia. A interpretação do outro por analogia assume a limitação do conhecer o. Conhece-se algo diferente apenas pela referência ao que já faz parte da própria compreensão. É apenas a partir daquilo que já integra o universo de significado do sujeito e este consegue assimilar algo que lhe é estranho. Portanto, a compreensão vem desde a própria experiência e desta forma busca-se, analogicamente, compreender ao outro, ciente da impossibilidade completa dessa compreensão, pois o outro é ‘mistério insondável’. Tal mistério se revela pela palavra. A dialogicidade é fundamental na filosofia de Dussel e, também, para o método de que se utiliza. No encontro com o outro, no cara-a-cara, é quando surge a verdadeira originalidade. O sentido fundante (o fundamento), que é o limite da ontologia, é transportado para a exterioridade. A partir de uma nova fundamentação, o que era não-ser se torna real. Configura-se a libertação, que institui uma consciência crítica (ao subsumir a dialética ontológica, desvelando o fundamento do mundo) e – superando a ontologia totalitária – também ética (de alteridade; de reconhecimento), ao escutar a voz do outro. A partir da exposição do método, feita de forma bastante sintética, propomos a conexão entre a filosofia e o cooperativismo, mais propriamente a autogestão. Retomando os momentos do movimento metódico proposto por Dussel e analisando cada um deles a partir da prática augestionária, podemos perceber que se trata de um instrumento prático que proporciona a ruptura com a totalidade ontológica. A conexão feita segue aportes teóricos do cooperativismo, que afirmam a possibilidade de uma postura crítica dos cooperados em razão das atividades autogestionárias exercidas: tomar a frente do seu negócio impõe às pessoas posicionamentos, que apenas são concretizados a partir da compreensão e reflexão das informações inerentes ao assunto tratado. Nessa atividade, pessoas até então vistas e a si próprias reconhecidas como não possuidoras de conhecimentos, descobrem-se capazes. Capazes de utilizar os saberes acumulados por sua experiência. Capazes de aprender novos saberes. Capazes de se manifestar e se fazerem entendidas. Ao se colocarem diante desses desafios em sua própria subjetividade, bem como de outros que envolvem conhecer, compreender e opinar sobre a estrutura externa em que está situada a organização em que atua, os cooperados têm seus horizontes de conhecimentos ampliados. Ultrapassam fronteira a fronteira, sem mesmo perceber as alterações em sua forma de compreender e agir. Esse é um movimento dialético. As condições oferecidas pela gestão compartilhada – ainda que de difícil realização em razão dos dilemas anteriormente apontados – possibilitam o ambiente à ação crítica, a partir das mediações do compreender, refletir, discutir e agir que estão dispersas no cotidiano da autogestão. Subsumindo a reflexão heideggeriana, consideramos que o pensar surge do mundo da cotidianidade. A concretude das relações autogestionárias cooperativistas conferem os elementos de facticidade e efetividade, a estrutura concreta própria e histórica, substrato com o qual os cooperados terão que compreender, refletir e agir. Para que surja a reflexão (para que surja o novo, que decorre do pensar), é necessário o questionamento da cotidianidade, é preciso pensála. A prática autogestionária dá condições para que o cooperado desenvolva uma compreensão existenciária, a partir da qual, conhecendo o fundamento das relações e condições que compõe o mundo em que está inserido, possa romper com o mundo da cotidianidade. Nessa leitura, a autogestão se demonstra como dialética ontológica, que permite a ampliação de horizontes de conhecimento, rumo ao desvelamento do fundamento do mundo. Para além da ontologia, o espaço da cooperativa é lugar onde o outro se revela. O outro desde a exterioridade, pois os participantes do cooperativismo popular são, como se disse, pessoas submetidas a vários tipos de exclusão e invisibilidade na totalidade ontológica. No diálogo propiciado pela autogestão ocorre o encontro com o outro. Inicia-se o desafio de falar e, principalmente, ouvir, buscando a compreender, a si e ao outro. Pretende-se olhar o cooperativismo, em sua prática autogestionária, em busca do novo. A cooperativa não é válida em si. Não se basta a si própria como forma institucional. Trata-se do

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 lugar – e tem a autogestão como o modo – que possibilita a construção de novos conhecimentos, novos valores, novas soluções (ainda que para problemas antigos – opressão, exclusão, vitimação), através da intersubjetividade dos atores cooperativos, descobertos como construtores de suas próprias histórias. Ao refletir sobre as relações produtivas, entre os seres humanos e estes com a natureza, Lia Tiriba (2012) indica que: “(...) as experiências de trabalho associado podem se constituir como palco de produção de saberes e práticas sociais que, de alguma maneira, se contraponham à lógica do sistema capital.” No trabalho associado, propiciado pela cooperativa, por meio da práxis de constante questionamento e atitude, os atores relacionam entre si e entre a comunidade, identificando e transformando as estruturas vigentes, alcançando a cada passo a libertação diante das (novas) negatividades. Portanto, o cooperativismo, nas bases acima determinadas, revela-se como práxis de libertação: “A práxis de libertação é a ação possível que transforma a realidade (subjetiva e social) tendo como última referência sempre alguma vítima ou comunidade de vítimas [...].” (DUSSEL, 2002, p. 558). É a práxis de libertação que traz em si a possibilidade do novo: A nova sociedade surgirá a partir das experiências, a partir dos momentos, a partir da cultura do “pleno nada”, a partir do “não-ser”, a partir do trabalho improdutivo, a partir do trabalho vivo, a partir dos “pobres”, a partir da afirmação da afirmação da exterioridade, e por orgânica conjunção com a negação da negação do capital. (DUSSEL, 1986, p. 285) A possibilidade de construção de algo novo revela a potencialidade política da cooperativa, ainda que localizado em seu microespaço. Ressalte-se que não se está a afirmar o cooperativismo como, em si, um projeto político, cuja garantia e consequência inevitável é a construção de uma nova totalidade. Entendemos, com Coraggio, que a transformação social ocorre lenta, trabalhosa e historicamente: Como megaestruturas tão complexas não se modificam pela pura ação decidida de uns poucos (a ideia da “tomada do poder” para revolucionar a sociedade não goza de legitimidade, ou em todo caso se reconhece que o poder social se constrói lenta e trabalhosamente), e como não existe um paradigma plausível dessa outra sociedade, de suas instituições, de suas subjetividades, de suas formas de sociabilidade na diversidade, de seu modo de atuar o político, de sua vinculação com outras sociedades em um mundo global, estamos em um momento de reação, experimentação, aprendizagem, de lenta recuperação da memória, da perspectiva histórica e de um olhar com um horizonte do longo período, de reflexão sobre as práticas, de articulação desde o micro e o local em processos de coalescência em nível mesosocial de projetos, grupos, comunidades, redes, movimentos que atinam a saltar as fronteiras nacionais [...]. (CORAGGIO, 2010, sem grifos no original). Entretanto, o agir que se desenvolve internamente na cooperativa (atuando, inclusive, na subjetividade do cooperado) é experimentação e aprendizagem. O que será o novo a surgir é razão imaginativa. Porém, apoiar meios que possibilitem a reflexão, ainda que no micro espaço cooperativo, é parte da responsabilidade da crítica, ao menos em bases teórico-instrumentais. Conclusões A proposta inquietante do presente trabalho é a reflexão sobre as condições atuais e concretas da sociedade brasileira. Inseridos na realidade de periferia do sistema-mundo, cuja ideologia

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 hegemônica neoliberal é promotora de negatividades e exclusões, cabe a responsabilidade da reflexão questionando pelo novo, pelas possibilidades e caminhos para a transformação social, que se dá inicialmente na transformação do próprio ator social. Os aportes filosóficos conferem subsídios à reflexão por uma postura crítica, consciente das estruturas e fundamentos que dão à atual sociedade globalizada os valores que possui. A discussão teórica quanto ao método para a produção de novos conhecimentos e saberes foi articulada, ao longo do presente trabalho, com o objetivo de aliar-se à reflexão quanto às práticas econômico-sociais. Tendo o cooperativismo como objeto, depois de tecidas considerações quanto a sua complexidade e desafios críticos, conclui-se que há virtualidades a serem afirmadas, porém, estritamente relacionadas à efetiva prática autogestionária. Apenas como opção de geração de renda e condições mínimas de reprodução do viver (ou sobreviver), o cooperativismo se assemelha às condições (alienantes) do trabalho assalariado, subsumido ao capital. Com a ressalva, porém, de que a cooperativa abre espaço a muitas pessoas que, em razão da baixa instrução formal, idade avançada, exclusão digital (entre outros), não teriam inserção no atual mercado de trabalho. No lugar do trabalho alienante exercido em empresas capitalistas, a cooperativa pode possibilitar o fomento da consciência ético-crítica, da conscientização. Enquanto perspectiva, a interação cooperativa abre novos horizontes que podem transcender à mera reprodução da totalidade. No sentido contrário de um determinismo, que aprisiona as experiências cooperativas unicamente aos seus elementos negativos, promover espaços em que se possibilite a criatividade dos atores sociais consiste em dar prevalência do sujeito atuante. Nas lições de Franz Hinkelammert (2013, p. 332), anterior ao sujeito cognoscente (teorizador, formulador da ciência) está a realidade e o sujeito vivo (atuante, o sujeito da práxis). Não se está a desconsiderar a análise crítica do atual momento por que passa o cooperativismo, mas a afirmar a possibilidade primeira – transcendente – da atuação, da práxis. A prioridade do sujeito atuante. E a ele devem ser possibilitadas condições para, refletindo e atuando, desenhar os rumos das possibilidades. A virtualidade apontada ao cooperativismo corresponde à análise da autogestão como caminho (método, prática) à libertação. Essa característica (que não é garantida unicamente pela designação ‘cooperativa’) é o elemento que faz frente às críticas dirigidas à cooperativa e justifica a manutenção desse ideário como possibilidade de transformação da sociedade. Não em si, mas por abrir espaço ao encontro dos atores sociais, conhecedores de si e do outro, possibilitando-se, nessa interação – mediada pelo mundo em que estão inseridos e atuando – o surgimento do novo, a ser criado e desenvolvido. Assim, a cooperativa – que tem a autogestão em todos os âmbitos (produção, execução, partilha) – mostra-se mais que o produto conveniente à realidade externa (econômica), pois favorece a construção de novos conhecimentos e novos valores, desde a sua dinâmica política interna. Concluindo o presente trabalho, ainda que se aponte para uma abertura e não para um fechamento, o agir cooperativo, que ocorre no espaço localizado da cooperativa, por sua potencialidade transformadora dos próprios cooperados em atores conscientizados (éticocriticamente), permite que tais aprendizados sejam levados para a vida. Teríamos, portanto, o protótipo da ação e da conscientização política que, transpondo os microlimites cooperativos, espraia-se na vida política de seus cooperados, enquanto atores cívicos. Referências BORDA, Orlando Fals. Formación y deformación de la politica cooperativa en América Latina. In: Boletín, n. 7, Ginebra: Instituto de Estudos Laborales, 1970. Disponível em: . Acesso em: 30.01.2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 BRASIL. Lei n. 5764, de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1971. BRASIL. Lei n. 12690, de 19 de julho de 2012. Dispõe sobre a organização e o funcionamento das Cooperativas de Trabalho. Diário Oficial da União, 2012. CARLEIAL, Liana; PAULISTA, Adriane. Economia solidária: utopia transformadora ou política pública de controle social? . In: GEDIEL, José Antônio Peres (org.). Estudos de Direito Cooperativo e Cidadania. Curitiba: Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, n.2, 2008. CARNEIRO, Palmyos Paixão. Cooperativismo: o princípio cooperativo e a força existencialsocial do trabalho. Belo Horizonte: FUNDEC, 1981. CORAGGIO, José Luis. América Latina: necessidade e possibilidades de outra economia. Disponível em: . Acesso em: 25.01.2014. DECLARAÇÃO: posicionamento sobre a Lei 12.690/2012. Disponível em: . Acesso em 27.01.2014. DUSSEL, Enrique. Introdução à filosofia da libertação latino-americana. Trad. Hugo Allan Matos. Livro eletrônico. São Paulo, 2008. p. 53. Disponível em: http://nefilam.files.wordpress.com/2011/09/uma-introduc3a7c3a3o-c3a0-filosofia-dalibertac3a7c3a3o.pdf. Acesso em: 08.01.2014. DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação. Na idade da globalização e da exclusão. Trad. Epharim Ferreira Alves; Jaime A. Clasen; Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. DUSSEL, Enrique. Introducción a la Filosofía de la Liberación. Bogotá: Editorial Nueva América, 1995. DUSSEL, Enrique. Método para uma filosofia da libertação. Trad. Jandir João Zanotelli. São Paulo: Edições Loyola, 1986. DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação. Trad. Luiz João Gaio, São Paulo-Piracicaba: LoyolaUnimep, 1977. FARIA, José Ricardo Vargas de. Autogestão. In GEDIEL, José Antônio Peres (Org.). Estudos de direito cooperativo e cidadania. Curitiba: Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR, 2005. p. 122 FISCHER, Maria Clara; TIRIBA, Lia. Saberes do Trabalho Associado. In: HESPANHA; Pedro; CATTANI, Antonio David [et al]. (coord.). Dicionário Internacional da Outra Economia. Almedina, 2009. FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de; LAVILLE, Jean-Louis. A Economia Solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O PLURALISMO JURÍDICO E AS RELAÇÕES DE PODER: CONSTRUÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA DO DIREITO ERIKA JULIANA DMITRUK1 RODOLFO CARVALHO NEVES DOS SANTOS2 Resumo: Busca realizar um delineamento da construção teórica do chamado Pluralismo Jurídico, em oposição ao monismo jurídico, entendendo que a legitimidade buscada pelas formas não centralizadas de produção do Direito reforçam a construção de uma legalidade contrahegemônica, calcada na experiência e necessidade daqueles que se encontram alijados do sistema oficial. Palavras Chave: Pluralismo Jurídico; Relações de Poder; Emancipação O Pluralismo Jurídico enquanto um fenômeno social A reflexão acerca do que vem a ser pluralismo jurídico possui como núcleo a discussão a respeito da fonte de produção e validade do Direito e normas jurídicas de um determinado lugar. Para buscarmos essas respostas nas teorias pluralistas, é imprescindível resgatar os trabalhos de Eugen Ehrlich e Georges Gurvitch, teóricos do início do século XX; não ignorando desenvolvimentos mais recentes da teoria presentes nos textos de Manuel Hespanha e Boaventura de Sousa Santos; com repercussão na teoria do direito pátrio na obra de Antonio Carlos Wolkmer. Eugen Ehrlich, em um exercício de definir as fontes do direito, relata que este é produzido pelas relações humanas desenvolvidas dentro de uma associação social, termo utilizado pelo sociólogo para definir determinados “conjuntos de pessoas que em seu relacionamento mútuo reconhecem algumas regras como determinantes para seu agir e em geral, de fato, agem de acordo com elas” (EHRLICH, 1986, p. 37). O autor austríaco propõe o estudo das fontes do direito a partir da análise da ciência jurídica de sua época, a qual tinha como orientação, método e objeto de estudo apenas a jurisprudência, consistente em uma doutrina prática do Direito “cujo conteúdo pode ser resumido quase por completo como consistindo em indicações práticas de como o juiz deve exercer seu cargo”.(EHRLICH, 1986, p. 12). A pesquisa de Ehrlich se desenvolveu ao fim de se propor uma nova ciência do Direito, distante de toda a técnica da racionalidade jurisprudencial, sendo que, ao contrário desta, teria como 1

Professora do departamento de direito público da Universidade Estadual de Londrina. Publicação recente: DMITRUK, E.J. Soberania Estatal e Monismo Jurídico: a exclusão dos pobres no Estado Civil. In: Congresso Direito Vivo (1 : 2013 : Londrina, PR). Anais do I Congresso Direito Vivo: projeto integrado nº 1680 – PROEX/UEL Lutas Londrina, 03 a 05 de abril, Londrina, PR / coordenação: Érika Juliana Dmitruk e Miguel Etinger de Araújo Junior. Londrina: UEL, 2013. p. 29-48. Interesses: teoria e filosofia do Direito. 2 Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista do Projeto Lutas: Formação e Assessoria em Direitos Humanos. Publicação recente: SANTOS, R. C. N. . Uma análise da práxis emancipatória dos moradores do bairro Jd. Igapó na cidade de Londrina e da Assessoria Jurídica Popular do projeto LUTAS. In: XXXIV ENED - Encontro Nacional dos Estudantes de Direito, 2013, Pelotas/RS. Anais do XXXIV ENED, 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 objeto de estudo a realidade espontânea do direito, encontrada na própria sociedade. Esta nova ciência seria a sociologia do Direito. Verifica-se que esta era a mesma preocupação das pesquisas desenvolvidas por Gurvitch (1894 – 1965). Para o autor, a Sociologia do Direito adotaria como fonte do direito (centro de desarrollo) as relações que se desenvolviam nas associações humanas, estando tal relação situada anteriormente às proposições abstratas do direito estatal e abaixo das regras determinantes de solução dos conflitos, sendo, portanto, fundamentos desta. (GURVITCH, 1945, p. 162). Existiria, portanto, uma dicotomia entre o direito do Estado, como produtor do “Direito Oficial”, que se origina de um processo legislativo, representado dentro do contrato social da modernidade; e, o direito das associações e grupos sociais que produzem de uma maneira menos complexa (fora do contrato social), seus próprios direitos, não exatamente voltados apenas paras as normas jurídicas, mas a todas as relações que surgem como regras e costume. Este conceito de associações sociais também é explorado por Ehrlich, que aponta a origem das normas jurídicas produzidas pela associação. Estas regras são realidades sociais, resultado das forças que agem numa sociedade e elas não podem ser abordadas fora do contexto da sociedade em que são vigentes. [...] são normas, isto é, ordens e proibições abstratas, referentes à convivência na associação e destinadas aos integrantes da associação. Além deste tipo de regras do agir também há regras que não são normas, pois não se referem à convivência dos homens: por exemplo, as regras linguísticas, as regras de gosto e higiene.(EHRLICH, 1986, p. 164) Portanto, este direito produzido fora do Estado, criado a partir das próprias relações humanas de determinado grupo, enseja o advento de um fenômeno conhecido como pluralismo jurídico, uma vez que não existirá mais apenas uma fonte de norma jurídica (monismo jurídico estatal) regulando as regras de agir de uma sociedade. Gurvitch aponta que os direitos oriundos destas associações humanas podem ser classificados como direito sociais, sendo estes baseados na confiança e na integração dos sujeitos. A fim de analisar a validade3 da normatividade (hechos normativos) criada pelo direito social, Gurvitch o classificou em três distintas categorias: direito social de massa; direito social de comunhão; e, direito social de comunidade. O direito social das massas foi considerado pelo autor como o “menos social”, uma vez que imputa firme validade das prescrições jurídicas (direito objetivo), garantidas através da utilização de elevada violência, e, justamente, por compreender uma integração superficial dos sujeitos, principalmente no que se refere aos direitos subjetivos. (GURVITCH, 1945, pp. 232–233). O direito social de comunhão, ao contrário possui os graus mais baixo de pressão (coerção e coação) e mais fortes de integração social, entretanto, o direito social advindo desta relação “es 3

Sobre a validade do direito para Gurvitch: Para o autor, a condição de validade de determinada expressão normativa se fundamenta na coação e coerção. “En efecto, como la va validez de todo derecho depende de la medida de su garantía básica, es decir, de la firmeza e estabilidad del derecho normativo en que se basa su fuerza obligatoria […]” (GURVITCH, 1945, p. 232).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 con frecuencia debilitada por la corta duración de la comunión, por la inestabilidad de las interpenetraciones de profundidad; se realizan sólo en circunstancias excepcionales y declinan rápidamente.” (GURVITCH, 1945, p. 243). Por fim, apresenta o direito de comunidade, onde a validade do direito é intensa devido a dois fatores: a comunidade se expressaria na forma mais equilibrada de associação e sua crença jurídica se diferenciaria das crenças morais e religiosas (predominante no direito social de comunhão), sendo mais favoráveis, portanto, a generalização do direito. (GURVITCH, 1945, p. 233). Uma vez identificadas as diversas maneiras em que o direito social criado pelas associações humanas se desenvolve, Gurvitch passou a estudar o conflito destas diferentes formas de normatividade com o direito estatal. Para isso, analisou este conflito sob a ótica da soberania. Resgatando a conceituação de associação humana de Ehrlich, o autor leciona que é necessário afirmar que as classes sociais que produzem o direito social aqui relacionado e o Estado são ambos considerados como espécies dentro do gênero associações sociais, equiparando-se, epistemologicamente, portanto. Toda ordem jurídica em seus primórdios consiste, portanto, na ordem interna das associações humanas, entre as quais também está o Estado. (EHRLICH, 1986, p. 31).

Neste sentido, uma análise das associações sociais (Estado + classes sociais), não poderia ser realizada através de um prisma de verticalidade, ou seja, onde a soberania se expressasse através de uma atividade dirigida pelo Estado com o fim de atingir o “predominio de la unidad sobre la multiplicidad, de las tendencias centrípetas sobre las centrífugas, e toda unidad o grupo colectivo real, deberíamos reconocer que todo grupo posee soberanía sobre las formas de sociabilidad que lo componen”. (GURVITCH, 1945, p. 272). O que Gurvitch vai concluir ao final de seu trabalho é que, por mais que exista um choque histórico na tentativa do Estado afirmar sua soberania para o fim de atingir sua independência externa de todas as organizações que pretendiam o caráter de Estado e sua supremacia interna sobre os grupos sociais que tinha a mesma pretensão (1945, p. 275), há uma coexistência não necessariamente conflituosa entre o direito das organizações sociais e o direito estatal, em que pese o Estado possuir uma preponderância jurídica em determinadas situações em que há choque de normatividades. Para resumir, podemos concluir que el principio de la soberanía, dependiendo des de los puntos de vista sociológico o jurídico de la armonía de las diferentes estructuras jurídicas en lucha, así como desde el punto de vista político de lo específico de Estado, no implica una jerarquía pre establecida de grupos y de correspondientes ordenes jurídicos. Por el contrario, tiene una puerta siempre abierta a cambios variaciones perpetuas en sus relaciones. (GURVITCH, 1945, p. 276).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Por mais que possa parecer difícil enxergar práticas jurídicas que não sejam oriundas do processo legislativo estatal como sendo uma válida fonte normativa, Antônio Manuel Hespanha já salienta que o pluralismo normativo é, assim, “um facto, antes mesmo de ser ou um ideal ou um perigo; ele já existe e já é reconhecido como o atual modelo de manifestação do direito.” (HESPANHA, 2013, p. 61). Ou seja, não se pode fechar os olhos para práticas jurídicas plurais, não as reconhecendo como Direito, pois estas já possuem caráter de juridicidade para aqueles que a ela sem submetem: os destinatários da norma que, simultaneamente, são os produtores dela. Há, portanto, uma quebra de paradigmas especialmente no que tange à fonte e validade do Direito, não se adotando mais o Estado como única fonte normativa, nem mesmo o seu sistema de prova de validade de normas jurídicas. Segundo Hespanha: Há muitas formas de definir quais sejam estas fontes de direito: [...] Porém, parece que o mais sensato, realista e não arbitrário é partir do princípio de que a identificação destas várias formas de manifestação do direito há-de decorrer de uma observação empírica de que elas efetivamente vigoram no tecido social e dos sentidos com que vigoram. (HESPANHA, 2013, p. 77). Para quem continue a pensar em termos estadualistas, a tal questão da validade das normas vigentes resolve-se pelo seu confronto com a ordem jurídica democrática estabelecida pelo Estado democrático [...] Numa perspectiva pós estadualista – a que corresponde um conceito mais complexo de democracia -, a validade das normas jurídicas não pode ser estabelecida de forma tão mecânica e limitada. Há modalidades de consenso comunitário, diferentes das do Estado representativo, que têm que ser tidas em conta, nos termos que antes descrevemos. (HESPANHA, 2013, p. 81) Em 1970, Boaventura de Sousa Santos realiza um estudo junto a favelas da cidade do Rio de Janeiro, as quais denominou de Pasárgada, na tentativa de entender esta relação - conflituosa ou harmoniosa - existente entre o direito estatal e o direito social criado pelas comunidades e associações humanas, que coloca em xeque o paradigma da fonte e validade do Direito. Em Pasárgada verificava-se a existência de um direito interno e informal adotado pelos próprios moradores e que era gerido pela associação de moradores da comunidade. Segundo Boaventura, “este direito não oficial – o direito de Pasárgada como lhe poderei chamar – vigora em paralelo (ou em conflito) com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica em Pasárgada.” (SANTOS, 1973, p. 2) A partir do estudo sociológico nesta comunidade, Boaventura de Sousa Santos definiu pluralismo jurídico sob a seguinte ótica: Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica. Esta pluralidade normativa pode

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 ter uma fundamentação econômica, rácica, profissional ou outra; pode corresponder a um período de ruptura social como, por exemplo, um período de transformação revolucionária; ou pode ainda resultar, como no caso de Pasárgada, da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social - neste caso, a habitação. (SANTOS, 1973, p. 1). Consegue-se, portanto, descrever o cenário conceitual ao qual o pluralismo jurídico se molda, qual seja: o reconhecimento da coexistência de um direito oficial, produzido pelo Estado, e de um direito “alternativo” produzido pelas bases das associações sociais, que nasce fora do campo da legalidade estatal. Salientando-se, sempre, que não necessariamente a coexistência destas duas fontes de normatividade irão implicar em preterição ou exclusão de uma em detrimento da outra, pelo contrário, apesar de conflituosa, a relação de ambas é de validade simultânea. Atualmente, no campo da ciência jurídica brasileira, o grande expoente do estudo do pluralismo jurídico é o professor Antônio Carlos Wolkmer, que define o pluralismo jurídico como sendo uma “multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” (WOLKMER, 2012, p. 238). Tomaremos por base para este trabalho a delimitação conceitual trazida por Wolkmer, uma vez que esta compreende todas as construções históricas já relacionadas nesta pesquisa, tendo como pontos chave: multiplicidade de práticas jurídicas; interagidas por conflitos ou consensos; sendo oficiais ou não; fundamentadas em necessidades existenciais, materiais e culturais. Assim, alcançando a proposta deste tópico – delimitação conceitual do fenômeno -, faz-se necessário entender as origens desta pluralidade normativa na história, entendendo o contexto social e político que despertou a necessidade de reconhecimento desta coexistência de direitos

Os Fundamentos Históricos, Políticos e Sociais do Pluralismo Jurídico A lapidação histórica das origens do pluralismo jurídico pode ser remontada de diversas formas. Wolkmer resgata indícios de práticas pluralistas na história da humanidade desde a época da Grécia Antiga4. Para efeitos desta pesquisa, utilizou-se a modernidade (séc. XVIII) como marco inicial de estudo. Assim, a análise desta legalidade pluralista será feita sobre dois vieses: as condições político sociais da época - abarcando, para tanto, fatos históricos -, e os seus os fenômenos jurídico sociais. Esta análise se faz necessária, pois – arriscando adiantar uma conclusão a ser obtida da análise histórica proposta – se verá que a relação de “direito oficial” x “direito alternativo / não oficial” é fruto de um processo dialético de luta entre classes e grupos sociais oprimidos que não se 4

Quando Antígona é levada a julgamento sendo acusada de ter infringido a lei positiva que proibia dar sepultura a seu irmão Polinice, replica e desafia a ordem secular do ditador Creonte, observando que obedecia a uma outra lei ditada pelos deuses. É a constatação de um confronto que chamou a atenção dos teóricos do Direito em todos os tempos, ou seja, o dualismo que procura obter, para cada qual, a obediência irrestrita do homem. (WOLKMER, 2012, p. 226)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 identificavam, ou, até mesmo, se viam excluídos do direito oficial moderno, ou seja, “o direito alternativo - enquanto inconformismo, crítica e superação das leis positivas injustas e opressoras - tem seus antecedentes históricos na tradição ocidental de resistência e lutas de indivíduos, grupos e povos marginalizados”. (WOLKMER, 2012, p. 220). O estudo ontológico do Direito a partir do marco teórico crítico marxista nos revela que o seu surgimento está estritamente ligado ao conflito das lutas de classe no que tange às relações de poder da sociedade, implicando em uma concepção dialética do próprio Direito. Ou seja, o Direito é fruto de um processo de luta emancipatória da classe oprimida em determinado momento histórico, contra a regulação daqueles que detém o poder e se utilizam do Estado (logo, do Direito) na legitimação de seus próprios interesses. Roberto Lyra Filho aponta: A luta de classes e grupos, que cinde o bloco demográfico (da população), as oposições de espoliados e espoliadores, de oprimidos e opressores, movimenta a dialética social e, nela, a vertente jurídica, incompreensível e inexplicável fora deste contexto. [...] A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizer justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo, à dialética da realização do Direito, que é uma luta constante entre progressistas e reacionários, entre grupos e classes espoliadores e opressores. Esta luta faz parte do Direito, porque o Direito não é uma “coisa” fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente. (FILHO, 1982, p. 09-15). Assim o direito positivo moderno enquanto projeto monista de normatividade deve ser estudado a partir do contexto social em que surge, “identificando a que tipo de organização social está vinculado e que espécie de relações estruturais de poder, de valores e de interesses reproduz”. (WOLKMER, 2001, p. 26). A burguesia, frente à decadência do Estado Absolutista Feudal, aproveita-se de sua condição de “segmento insurgente, dinâmico e implementador de mudanças das estruturas feudais em crise”.(WOLKMER, 2001, p. 35), e toma o poder da nobreza feudal em meados do século XVIII, voltando-se o Estado (agora burguês), contra a cultura feudal, utilizando-se dos aparatos legais para resguardar a sua condição como nova classe dominante. Isto pois, segundo Wolkmer “[...] a nascente burguesia necessitava de forte autoridade central que protegesse seus bens, favorecesse seu progresso material e resguardasse sua sobrevivência como classe dominante, reconhecendo o caráter imperioso dessa autoridade”.(WOLKMER, 2001, p. 40). Neste contexto se revela o Direito burguês da modernidade, legitimando os interesses iluministas da burguesia, quais sejam: “modo de produção material (economia capitalista), com hegemonia ideológica (liberal-individualista) e com a forma de organização institucional de poder (Estado Soberano)”. (WOLKMER, 2001, p. 25). Segundo HESPANHA (2010, p. 1), “as formas políticas surgidas da Revolução Francesa mantiveram este ideal de um poder unificado e absoluto, ainda que agora a cabeça desse poder não fosse um rei soberano, mas o povo soberano”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em que pese o marco histórico da Revolução Francesa ter sintetizado o fenômeno jurídico no contrato social, Wolkmer aponta que foram justamente as consequências desta Revolução que serviram como estopim para uma reação da ciência jurídica crítica plural. A consolidação da sociedade burguesa, a plena expansão do Capitalismo Industrial, o amplo domínio do individualismo filosófico, do liberalismo político econômico e do dogma do centralismo jurídico estatal favorecem uma forte reação por parte das doutrinas pluralistas em fins do século XIX e meados do século XX. (WOLKMER, 2012, p. 237;238)

Isto porque o projeto monista, desde seu primórdio, apresentou-se em crise, ensejando o ganho de força da concepção plural do direito. Para Jaques Vanderlinden, uma “das principais causas genéricas do pluralismo referem-se à injustiça e a ineficácia do modelo de unicidade do Direito” (VANDERLINDEN apud WOLKMER, 2012, p. 239) Semelhante fundamento apresenta Joaquim A. Falcão, no sentido de que “a asserção de que a causa direta do pluralismo jurídico deve ser encontrada na própria crise de legalidade política”. (FALCÃO apud WOLKMER, 2012, p. 239). Boaventura de Sousa Santos apresenta duas situações concretas sobre o surgimento explícito do pluralismo jurídico na modernidade, sendo uma de origem colonial e outra não colonial. Para o autor, a origem colonial do pluralismo ocorre nos países em que houve a ação de dominação política e econômica por uma metrópole, de maneira que gerou-se a coexistência de dois sistemas jurídicos (como também culturais, políticos, econômicos e sociais), quais sejam: o direito do estado colonizador e o do estado colônia, em um mesmo território. A exemplo temos o colonialismo inglês. […] impõe-se, forçosamente, uma unificação e administração da colônia, possibilitando a coexistência, num mesmo espaço, do “Direito do Estado colonizador e dos Direitos tradicionais”, autóctones, convivência que se tornou, em alguns momentos, fato de “conflitos e de acomodações precárias”. (SANTOS apud WOLKMER, 2012, p. 238). Boaventura de Sousa Santos ainda apresenta outra origem sociológica na modernidade para o fenômeno, sendo esta de origem não colonial, a qual perpassa por três momentos: Em primeiro lugar, o caso dos países com tradições culturais dominante ou exclusivamente não europeias, que adoptam o direito europeu como instrumento de “modernização” e de consolidação do poder do estado. É o caso, entre outros, da Turquia, Tailândia e Etiópia. Nestes casos a situação de pluralismo jurídico resultou do facto do direito tradicional não ter sido eliminado, no plano sociológico, pelo novo direito oficial […] O segundo contexto de origem não colonial teve lugar quando, em virtude de uma revolução social, o direito tradicional entrou em conflito com a nova legalidade, o direito revolucionário, tendo sido, por isso, proscrito, sem, no

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 entanto, ter deixado de continuar a vigorar, em termos sociológicos, durante largo tempo. O caso mais conhecido é o das repúblicas da Ásia Central, de tradição jurídica islâmica, no seio da U.R.S.S depois da revolução de outubro. Por último, há que se considerar situações de pluralismo jurídico nos casos em que populações autóctones, “nativas” ou “indígenas”, quando não totalmente exterminadas, foram submetidas ao direito do conquistador com a permissão, expressa ou implícita, de em certos domínios continuarem a seguir seu direito tradicional. É o caso das populações índias dos países da América do Norte, América Latina e dos povos autóctones da Nova Zelândia e Austrália. (SANTOS, 1988, p. 74;75). (g.n) Percebe-se que o avanço do Capitalismo, fundado na hegemonia burguesa, fez entrar em crise o próprio sistema jurídico, uma vez que trouxe novas situações que imprimiam direto conflito com o caráter abstrato, universal e racional do direito ocidental. [...] a Dogmática Jurídica concebida enquanto saber começa a vivenciar uma profunda crise, por permanecer rigorosamente presa à legalidade formal escrita, ao tecnicismo de um conhecimento abstrato estático e ao monopólio da produção normativa estatal, afastando-se das práticas sociais cotidianas, desconsiderando a pluralidade de novos conflitos coletivos de massas, desprezando as emergentes manifestações extralegislativas [...] (WOLKMER, 2001, p. 75).

Esta crise fez com que a imersão de uma alternativa à normatividade imposta pela ética legitimadora burguesa se tornasse uma necessidade. Esta alternatividade deveria reconhecer a sociedade em sua forma “descentralizada, pluralista e participativa” (WOLKMER, 2001, p. 78), tornando-se um projeto contra hegemônico que potencializasse o processo em que os sujeitos marginalizados pelo direito burguês se tornariam verdadeiros protagonistas sociais na legitimação do Direito. Este é o projeto descrito por Wolkmer: Afirma-se, deste modo, a proposta de um novo pluralismo jurídico (designado de comunitário participativo) configurado através de um espaço público aberto e compartilhado democraticamente, privilegiando a participação direta de agentes sociais na regulação das instituições-chave da Sociedade e possibilitando que o processo histórico se encaminhe por vontade e controle das bases comunitárias. (WOLKMER, 2001, p. 78). Em síntese, resume-se que o movimento dialético da construção histórico social do direito moderno, que se inicia com a tomada do poder da nobreza pela burguesia, não se estanca. Pelo contrário, se apresenta de diferenciada forma, uma vez que destaca a crise do paradigma monista da dogmática jurídica e ressalta a emergência da criação de um novo paradigma fundado nos movimentos insurgentes de base comunitária, democrático, participativa.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A PERSPECTIVA EMANCIPATÓRIA DO PLURALISMO JURÍDICO Anteriormente foram expostos os fundamentos históricos sociais e científicos que afirmaram a emergência deste novo paradigma jurídico, qual seja, o pluralismo jurídico. Assumiu-se que, considerando a sua fonte, o Direito tanto pode surgir a partir do Estado, como produtor oficial do direito, como, também, das associações humanas, produtoras do direito social – assim chamado por Gurvitch. O direito oficial, estatal e monista, pautará as novas regras normativas dentro de seu sistema legal e tecnicista, considerando como válidas as normas que congruem premissas de validade dentro da dogmática jurídica num sistema de hierarquia das normas; já o direito social considerará como válidas as normas aceitas por determinado grupo social ainda que não se expressem em linguagem escrita, técnica e formal. Falta-nos analisar a perspectiva do pluralismo jurídico enquanto fenômeno, uma vez que este possui uma carga ideológica dentro da relação dialética de construção do Direito (seja do direito enquanto ciência, ou enquanto em sua materialidade). Ou seja, através do pluralismo jurídico forja-se um Direito enquanto instrumento de luta, de defesa e de libertação contra as formas de dominação impostas. (WOLKMER, 2012, p. 217). Conforme já se destacou, o Direito moderno se consagrou como um “instrumental sociopolítico normativo, assentado na institucionalização centralizadora de poder estatal, que [...] se impõe obrigatoriamente, materializando e legitimando coercitivamente, as condições de ação dos estratos e dos segmentos sociais.” (SANTOS, 2003, p. 4). Este Direito se funda na ideia de contrato social revelada pela concepção liberal burguesa, que, conforme DMITRUK (2005, p.33-50) tem o mito da soberania estatal como principal alicerce. Pode-se verificar que, apesar de Hobbes, Locke e Rousseau partirem de diferentes estados de natureza, todos chegam à prerrogativa monopolista do Estado na elaboração das leis e na aplicação de punições aos súditos que a elas não se submetem. O contrato social, que “presidiu à organização da vida econômica, política e cultural das sociedades modernas.” (SANTOS, 2003, p. 12), se desenvolvia através de um movimento de inclusão e exclusão dos segmentos sociais, criando, na visão de Boaventura de Sousa Santos, três diferenciados estratos sociais que se distinguiam pelo nível de proximidade e acesso aos privilégios deste contrato (direito), são eles: a sociedade civil intima, a sociedade civil estranha e a sociedade civil incivil. Ilustrativamente, colocando o Estado no centro de uma sociedade, a sociedade civil íntima será o círculo interior feito à volta do Estado, e comportará a classe social dominante com maior poder de influência social. Consiste em indivíduos e grupos sociais caracterizados pela hiperinclusão, ou seja, que gozam de um nível elevado de inclusão social. [...] Eles pertencem à comunidade dominante que mantém vínculos estreitos com o mercado e com as forças económicas que o governam. (SANTOS, 2003, p. 25)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em segundo nível estaria a sociedade civil estranha, sendo o círculo intermédio ao redor do Estado, com grau de inclusão e exclusão medianos aos privilégios do contrato social. A sociedade civil estranha é o círculo intermédio em redor do Estado. As experiências de vida das classes ou grupos sociais nela incluídos são um misto de inclusão e exclusão social. [...] pode afirmar-se que quem integra a sociedade civil estranha pode exercer de uma maneira mais ou menos livre os seus direitos cívicos e políticos, mas tem um acesso escasso aos direitos sociais e econômicos, para não falar dos direitos culturais ou “pós materialistas”. (SANTOS, 2003, p. 25). Por último e menos importante – aos olhos do Estado – estaria a sociedade civil incivil, que não possui qualquer perspectiva de direitos firmados no contrato social por estarem em relação de exclusão a este. A sociedade civil incivil corresponde ao círculo exterior habitado pelos totalmente excluídos. Socialmente, são quase por completo invisíveis. Este é o círculo do fascismo social e, em rigor, os que o habitam não pertencem à sociedade civil, uma vez que são atirados para o novo estado natural. (SANTOS, 2003, p. 25). Outros estudos de Boaventura comprovaram a ocorrência desta estratificação. Verifica-se, por exemplo, nos estudos de campo realizados em Pasárgada, que a sociedade civil que ali habitava está claramente em situação de incivilidade, uma vez que se encontra totalmente excluída do contrato social. Na expressão perspicaz de um deles [moradores de Pasárgada], “nós éramos e somos ilegais”. Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitações não só era inútil como perigoso. Era inútil porque “os tribunais têm que seguir o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito”. Era perigoso porque trazer a situação ilegal da comunidade à atenção dos serviços do Estado poderia levá-los a “nos jogar na cadeia.” (SANTOS, 1973, p. 8). (g.n). Este testemunho revela também outra consideração feita por Boaventura, a de que, uma vez assumido o monopólio de produção direito pelo Estado, a tensão entre regulação e emancipação se inseriu dentro do contexto jurídico, ou seja, a luta legítima para emancipação desta classe incivil, oprimida, também deveria se dar pelos trâmites legais previstos no contrato social. Assim que o Estado liberal assumiu o monopólio da criação e adjudicação do direito – e este ficou, assim, reduzido ao direito estatal -, a tensão entre regulação social e a emancipação social passou a ser um objecto mais da regulação jurídica. (SANTOS, 2003, p. 4). Pergunta que cabe ser feita é como pessoas que participam diferentemente do contrato social (aceitando-se a figura dos círculos proposta por Boaventura), criadas em comunidades absolutamente distintas, com conjunto de valores que ora se aproximam e ora se afastam, podem se submeter em pé de igualdade ao mesmo conjunto de normas jurídicas, ditadas por aqueles que estão incluídos no contrato social? (DMITRUK, 2013, p.41) É neste ponto que surge o pluralismo jurídico enquanto fenômeno destinado a quebrar o paradigma monista, uma vez que a tensão “regulação x emancipação”, pende claramente para a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 regulação social, privilegiando a classe civil íntima; despistando a classe civil estranha; e excluindo a classe civil incivil. À medida que a trajectória da modernidade se identificou com a trajectória do capitalismo, o pilar da regulação veio a fortalecer-se à custa do pilar da emancipação num processo histórico não linear e contraditório, com oscilações recorrentes entre um e outro, nos mais diversos campos da vida coletiva e sob diversas formas: entre cientificismo e utopismo, entre liberalismo e marxismo, entre modernismo e vanguarda, entre reforma e revolução, entre corporativismo e luta de classes, entre capitalismo e socialismo, entre fascismo e democracia participativa, entre doutrina social da igreja e teologia da libertação. (SANTOS, 1999, p. 204) [...] para confrontar com êxito o fascismo social e dar resposta às necessidades da sociedade civil incivil é preciso um outro direito e uma outra política: o direito e a política da globalização contra hegemônica e do cosmopolitismo subalterno. (SANTOS, 2003, p. 27) Assim, compete ao pluralismo jurídico “não só romper e superar o fetichismo legalista, mas, sobretudo, reconhecer, declarar e aplicar o Direito proveniente da sociedade”. (WOLKMER, 2012, p. 230). Para continuar a caracterização do pluralismo jurídico enquanto fenômeno se faz necessário classificar a categoria a qual este estará estritamente vinculado: a da emancipação. O marco teórico adotado para definição da categoria emancipação será novamente o apresentado pelo sociólogo jurídico Boaventura de Sousa Santos em seu livro “Poderá o direito ser emancipatório?” (2003). O autor distingue o conceito de emancipação social em emancipação fina e emancipação espessa, “de acordo com o grau e a qualidade de libertação ou de inclusão social que encerram.” (SANTOS, 2003, p. 42). Neste sentido: [...] a concepção fina de emancipação social está subjacente às lutas através das quais as formas de opressão ou de exclusão mais duras e extremas são substituídas por formas de opressão mais brandas ou por formas de exclusão social de tipo não-fascista. [...] Destacam-se, no conceito de emancipação social fina as lutas emancipatórias de urgência, por exemplo, em situações de violência arbitrária e negativa de direitos; por outro lado, a concepção espessa de emancipação implica, não apenas a sobrevivência humana, mas, também, uma prosperidade guiada por necessidades radicais. [...] Segundo esta autora, as necessidades radicais são de tipo qualitativo e permanecem inquantificáveis; não podem ser satisfeitas num mundo baseado na subordinação e na sobre-ordenação; e impelem as pessoas para as ideias e práticas que abolem a subordinação e a sobre-ordenação (Heller apud SANTOS, 2003, p.42). Verificado o cenário de regulação e emancipação, e a necessidade de preponderância deste núcleo sobre aquele, Boaventura de Sousa Santos identifica a necessidade de uma luta guiada

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 visando a emancipação. Para tanto, fundamenta esta categoria em duas: a globalização contrahegemônica e o cosmopolitismo subalterno. A globalização contra-hegemônica seria a articulação de variadas lutas frente à regulação, “tratase de lutas sociais conjuntas que, não obstante terem uma incidência local ou nacional, revelam estar conectadas de diferentes modos com lutas paralelas travadas noutros lugares.” (SANTOS, 2003, p. 27). O cosmopolitismo subalterno, em acréscimo, seria a “forma político-social de globalização contra hegemónica (sic).” (SANTOS, 2003, p. 29), onde, no âmbito do fenômeno jurídico, a possibilidade emancipatória do Direito se revelaria através da categoria legalidade cosmopolita. A legalidade cosmopolita aprofunda a globalização contra-hegemônica. E uma vez que, nas nossas condições actuais, esta é uma condição necessária para a emancipação social, a reflexão em torno da legalidade cosmopolita é o meu modo de responder a questão por onde comecei: poderá o direito ser emancipatório? (SANTOS, 2003, p. 36) [...] Impõe-se, por isso, substituir a justiça restauradora – que é a concepção de justiça demoliberal por excelência – por uma justiça transformadora, quer dizer, por um projecto de justiça social que vá além do horizonte do capitalismo global. É nisto que reside o caráter opositivo e contra-hegemônico da legalidade cosmopolita. (SANTOS, 2003, p. 40) A legalidade cosmopolita desenvolve-se, segundo Boaventura de Sousa Santos, em oito teses, onde se destacam5: (i) “uma coisa é utilizar um instrumento hegemónico num dado combate político. Outra coisa é utilizá-lo de uma maneira hegemónica”; (ii) “as formas não hegemónicas de direito não favorecem nem promovem necessariamente o cosmopolitismo subalterno”; (iii) a legalidade cosmopolita é uma legalidade subalterna apontada à sociedade civil incivil e à sociedade civil estranha; (iv) “não obstante as diferenças profundas entre a legalidade demoliberal e a legalidade cosmopolita, as relações entre ambas são dinâmicas e complexas”. (SANTOS, 2003, pp. 36–41). A construção de todas as categorias apontadas por Boaventura de Sousa Santos (emancipação; globalização contra-hegemônica; cosmopolitismo subalterno; legalidade cosmopolita), nos permitem agrupar todos estes conceitos ao fenômeno do pluralismo jurídico, entendendo a manifestação de sua atuação nas linhas de expressão indicadas por estes conceitos. Em outra linha, mas desenvolvendo concepções também contra hegemônicas, Wolkmer postula que o pluralismo jurídico se manifesta fenomenologicamente através do positivismo jurídico de combate, da hermenêutica judicial alternativa; e, no direito insurgente. (WOLKMER, 2012, p. 224). Segundo o autor, o positivismo jurídico de combate compreenderia o “uso de certos mecanismos do próprio Direito Positivo para dar efetivação às normas ou textos legais já conquistados e elaborados formalmente, provenientes do interesse coletivo, mas que não são aplicados em favor dos segmentos populares.” (WOLKMER, 2012, p. 224). Veja, o Pluralismo Jurídico é um fenômeno social jurídico que prevê uma coparticipação de legalidades, não excluindo, portanto, o Direito Positivo, mas enxergando pela frente do Positivismo jurídico de combate a difícil tarefa dos operadores do Direito em efetivar a norma 5

Para efeitos deste trabalho serão destacadas apenas 4 dentre as oito linhas de atuação da legalidade cosmopolita.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 geral abstrata aos segmentos populares, trata-se da premissa da legalidade cosmopolita de utilizar os meios hegemônicos de maneira contra hegemônica. A hermenêutica judicial alternativa se resume em “explorar de forma crítica e democrática, as contradições, as ambiguidades e as crises do Direito legislado em benefício das camadas sociais menos favorecidas, injustiçadas e excluídas.” (WOLKMER, 2012, p. 224). Trata-se de apontar à sociedade civil estranha e à sociedade civil incivil os privilégios e pretensões firmadas no contrato social do qual estão excluídas, isto através de um exercício hermenêutico. É o trabalho dos juízes, doutrinadores, cientistas e demais intérpretes do Direito. E, por fim - mas não menos importante aos olhos do pluralismo jurídico – tem-se o reconhecimento do direito paralelo, vivo e comunitário que emerge permanentemente dos interesses e necessidades da sociedade, denominado de direito insurgente. (WOLKMER, 2012, p. 224). É o choque propriamente dito entre os paradigmas jurídicos no que tange à fonte e validade do Direito.

É a criação e o reconhecimento de interesses de direitos fundamentais (direito à vida, à liberdade, à sobrevivência, etc..) distintamente das normas positivas oficiais, engendrando nos conflitos e nas lutas de grupos sociais, podendo coexistir ou opor-se às leis elaboradas pela atividade estatal. . (WOLKMER, 2012, p. 224). Ocorre, entretanto, que o projeto do pluralismo jurídico também está à mercê de sua utilização de maneira hegemônica, conforme ressaltado por Boaventura de Sousa Santos, quando mencionou que “as formas não hegemónicas de direito não favorecem nem promovem necessariamente o cosmopolitismo subalterno” (SANTOS, 2003, p. 38). (g.n). Cabe advertir, entretanto, que essa opção é por um pluralismo progressista, de base democrático participativa. Exclui-se, assim, qualquer aproximação com a tendência de pluralismo político e jurídico, advogada pela proposta neoliberal corporativista, muito adequada aos objetivos e às condições criadas e impostas pelo Capitalismo monopolista globalizado, engendrado pelos países ricos do centro e exportado técnica, econômica e culturalmente para a periferia. Interessa aos blocos hegemônicos defender e propagar tal pluralismo de teor conservador, pois a liberalização, privatização e livre mercado, em contextos periféricos dominados por elites selvagens e egocêntricas (que estão a serviço do capital internacional), é o sintoma trágico do desajuste, do conflito globalizado e da crise permanente. (WOLKMER, 2001, p. 77). No mesmo sentido, Antonio Manuel Hespanha acentua: [...] não podemos restringir-nos ao direito do Estado, porque é claro que há mais normas que, em algum setor da sociedade, funcionam para alguns como se fossem normas jurídicas; mas também não podemos aceitar todas estas como direito, sem mais averiguações, pois existe uma série de dúvidas a carecer de esclarecimento, quer quanto à sua juridicidade, quer quanto às hierarquias entre elas, em caso de contradição. (HESPANHA, 2013, p. 61)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Portanto, a concepção do fenômeno pluralismo jurídico enquanto instrumento de legalidade cosmopolita expressa-se mediante seu caráter emancipatório, entretanto, deve sempre passar por um teste para averiguação dos efeitos da prática pluralista quanto à diminuição da exclusão social e potencialização da emancipação. O pluralismo jurídico desempenha um papel fulcral na legalidade cosmopolita, contudo, deve ser sempre sujeito a uma espécie de teste de Litmus, para ver quais as formas de pluralismo jurídico que conduzem à legalidade cosmopolita e quais as que não permite. O teste consiste em avaliar se o pluralismo jurídico contribui para a redução da desigualdade nas relações de poder, assim reduzindo a exclusão social ou elevando a qualidade da inclusão, ou se, pelo contrário, torna ainda mais rígidas as trocas desiguais e reproduz a exclusão. (SANTOS, 2003, p. 39) Trata-se de teste fundamental, tendo em vista que outros autores (como José Eduardo Faria e o próprio Boaventura de Sousa Santos) já denunciaram o pluralismo que ocorre àqueles que não acessam ao Poder Judiciário por estarem acima deste, levando suas demandas para outras instâncias tais como Poder Legislativo, Executivo e organismos internacionais. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo desta pesquisa foi demonstrar como as relações de poder interferem na produção do Direito a partir do marco teórico pluralismo jurídico. Foi percorrido o caminho de produção das principais categorias e teóricos, bem como funções e testes de legitimação, para entendermos de que forma as manifestações de pluralismo refletem o embate das forças em campo na sociedade. Neste último tópico, várias categorias foram apresentadas. A partir da leitura de Boaventura, houve a reflexão acerca do contrato social e dos níveis de inclusão ou exclusão nas promessas da modernidade, sendo possível identificar a sociedade civil íntima com a classe dominante; a estranha a clássica classe média, que, sem gozar das benesses da classe dominante procura reproduzir e legitimar seu modo de vida; e a incivil que são os excluídos das promessas. Outra categoria indispensável – a emancipação – foi apresentada de maneira desdobrada em emancipação social fina, consistente nas lutas emancipatórias de urgência, que não podem ser adiadas, direitos imprescindíveis a própria existência do homem; e a espessa, relacionada com a prosperidade, para além da mera sobrevivência. E para entendermos o papel do direito nesta tarefa de promoção da emancipação humana, optouse , por fim, por manifestações de pluralismo jurídico compatíveis com a legalidade cosmopolita, aquela que aprofunda a globalização contra-hegemônica e sua forma político-social consistente no cosmopolitismo subalterno. Entendendo, ainda, a possibilidade de coexistência entre o direito estatal e as manifestações não centralizadas de produção do direito do pluralismo jurídico, apresentou-se como formas de buscar a emancipação dentro do próprio direito hegemônico através do positivismo jurídico de combate e a hermenêutica judicial alternativa.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Importante frisar, conforme alertado por Boaventura de Sousa Santos, o pluralismo não é necessariamente emancipatório, e estarmos do lado da sociedade civil incivil nos faz, necessariamente, tomar partido por manifestações de normatividade não estatais que sejam contra-hegemônicas e que promovam a emancipação social em sua forma fina e espessa.

REFERENCIAS DMITRUK, E.J. AS IMPLICAÇÕES DO CONCEITO MODERNO DE SOBERANIA NO DIREITO. In: Crítica Revista de Filosofia, v. 10, n. 31. CEFIL/UEL. Londrina: 2005. p. 33-50. _____________. SOBERANIA ESTATAL E MONISMO JURÍDICO:a exclusão dos pbres no estado civil. Anais do I Congresso Direito Vivo: projeto integrado nº 1680 – PROEX/UEL Lutas Londrina, 03 a 05 de abril, Londrina, PR / coordenação: Érika Juliana Dmitruk e Miguel Etinger de Araújo Junior. Londrina: UEL, 2013. p. 29-48. EHRLICH, E. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: UNB, 1986. FALCÃO, J. DE A. Conflitos de propriedade - invasões urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. FILHO, R. L. O que é Direito. Disponível em: . Acesso em: 26/2/2014. GURVITCH, G. Sociologia del derecho. Argentina: [s.n.], 1945. HESPANHA, A. M. Estadualismo, pluralismo e neo-republicanismo - Perplexidades dos nossos dias. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2014. HESPANHA, A. M. Pluralismo Jurídico e Direito Democrático. São Paulo: Annablume, 2013. JÚNIOR, A. F. C. Direito Social. São Paulo: EDUSP/LTr, 1980.SANTOS, B. D. S. Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada. Disponível em: . Acesso em: 26/2/2014. SANTOS, B. D. S. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retorica jurídica. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2014. SANTOS, B. D. S. Pela mão de alice: o social e o político na pós modernidade. 7. ed. Porto: Afrontamento, 1999. SANTOS, B. D. S. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 65, p. 03–76, doi:10.4000/rccs.1180, 2003. WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico - Wolkmer. 3. ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 WOLKMER, A. C. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A TEORIA CRÍTICA DO VALOR E O DIREITO – UMA BREVE REFLEXÃO

Victor Vicente Barau1

RESUMO: A teoria crítica do valor se funda na compreensão de que o valor somente se constitui em razão do trabalho social, decorrendo a mais-valia da exploração da mercadoria trabalho, para além da equidade na relação de troca de valores de uso. A desigualdade é elemento estrutural que se encontra na essência da forma-valor em que se dá a forma da sociabilidade capitalista. A sociedade capitalista é marcada pelo antagonismo de classe e, em sua forma elementar, é constituída por contradição fundamental estrutural havida em função do constante incremento das técnicas de produção. A forma política e a forma jurídica no qual se funda o Estado de Direito contemporâneo são derivados da forma-valor e, deste modo, sujeitos a sua dinâmica, não se constituindo com forma de se estabelecer a justiça social e a efetiva igualdade material entre os indivíduos.

ABSTRACT: The critical theory of value is based on the understanding that the value is constituted due to the social work, elapsing the surplus value by the exploitation of work assumed as a commodity, beyond equity in respect of an exchange of use values. The inequality is a structural element that is the essence of the value-form in which the way that capitalist society is established. Capitalist society is marked by class antagonism, and in its elementary form, is composed by a fundamental structural contradiction regarded due to the constant increase of production techniques. The political form and legal form on which is founded the contemporary state of law are derived from the value-form and thus subject to its dynamics, don´t constituted with as a path to establish social justice and effective substantive equality between individuals.

PALAVRAS CHAVE: ESTADO DE DIREITO, CAPITALISMO, FORMA-VALOR, TEORIA CRITICA

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Advogado, Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie, Bolsista do Programa MACKPESQUISA da Universidade Presbiteriana Mackenzie. http://lattes.cnpq.br/5262397381548515

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 1. Introdução O advento do Estado de Direito, enquanto forma política e jurídica especifica do período histórico contemporâneo, se traduz teoricamente, no arcabouço político necessário ao modo de produção capitalista, que se estabelece em contraposição aos regimes políticos que lhe precedem. Se no momento histórico anterior, a escravidão e/ou a servidão constituíam no modo de organização do trabalho social vigente, com a ascensão da prática mercantil burguesa, aquele regime de organização do trabalho social haveria de ser substituído por outro que estivesse estritamente relacionado com sua praxis. A organização social constituída em torno da escravidão e da servidão se deslocam para o plano da relação contratual que se estabelece entre sujeito de direito em torno da mercadoria. Fundado sob o império da lei, o Estado de Direito contemporâneo é tido como forma essencial em que se, a principio se alcançaria a justiça social, a segurança, o equilíbrio e o bem comum a partir do império das leis. Entretanto, a forma de organização social em que se funda o Estado de Direito contemporâneo em sua realidade material é marcada pela reprodução de uma desigualdade material entre indivíduos e uma liberdade deverás limitada pela subsunção de cada individuo à lei adstrita a uma forma de sociabilidade especifica do modo de produção capitalista. De modo que, sem prejuízo do desenvolvimento tecnológico dos meios de produção havidos a partir da revolução industrial e da constituição da sociedade capitalista a partir do Estado de Direito Contemporâneo, as injustiças sociais, no que diz respeito a materialidade das relações sociais, persistem no seio social e são reproduzidas em larga escala. E, sem prejuízo da hiperinflação de leis e direitos positivadas no bojo do no sistema de estados mundial, há um abismo entre o horizonte do ideário das revoluções burguesas do século XVIII, em que se assume como valor de um dever ser em que se funda o Direito Positivo e a realidade material concreta. A resposta a esta injustiça material histórica não reside meramente numa vontade do individuo em seu agir social e político, tampouco se estabelece em razão de uma maior positivação de direitos ou de uma melhoria na técnica jurídica. O ponto nevrálgico reside na forma de organização do trabalho social para a produção das necessidades materiais de existência e reprodução social. De todo o conjunto teórico produzido ao longo dos últimos dois séculos de história da sociedade capitalista, a Teoria do Valor de Marx - cujo ápice de sua reflexão se encontra ao longo de “O Capital” - ainda se estabelece como a teoria que alcança uma compreensão mais próxima a explicar não só as desigualdades materiais ainda verificadas na contemporaneidade. Trata-se de um marco fundamental para a compreensão da essência da forma em que se organiza a totalidade das relações sociais, em sua dinâmica dialética a partir da organização o trabalho social. Das diversas correntes que se estabelecem a partir da obra de Marx – especialmente a Teoria da Derivação e da Regulação que, na atualidade, representam o que há de mais avançado na compreensão da forma política estatal e da forma jurídica – o presente artigo busca refletir sobre a atualidade da Teoria Crítica do Valor propugnada por Marx, para a partir de sua compreensão apontar sua implicação ao Direito contemporâneo, trazendo com isso as críticas necessárias para uma melhor reflexão do estudo jurídico. 2. Fundamentos da Teoria Crítica do Valor

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Como bem observa ENGELS2, a forma de organização de determinada sociedade se estabelece a partir da realidade em que se dá a organização da produção e da reprodução social, guardando direta correlação com as categorias nas quais se organizam a totalidade das relações sociais a partir de uma determinada realidade concreta. Ou seja, quando tratamos de uma determinada forma social, tratamos das categorias pelas quais se estabelecem um determinado relacionamento social. 3 Não se pode afastar a compreensão do Direito e do Estado do modo em que se organiza a economia, ou melhor, da forma pela qual se organiza o trabalho social e, portanto, como se constitui a forma de sociabilidade de um determinado período histórico para a satisfação das necessidades materiais da sociedade. Tal como apontam a teoria da derivação e a teoria da regulação a partir do conjunto teórico da Teoria Critica do Valor, a forma política estatal e a forma jurídica são derivadas diretamente da forma em que se organiza o trabalho e sua reprodução social, que na dinâmica e nos ciclos econômicos permanecem, cujo conteúdo, porém, varia em razão das categorias específicas em que se estabelecem, num dado momento histórico, o regime de produção e de trocas. O capital, a partir da forma-valor, se constitui numa relação social4, no qual se erige o Estado e o Direito. É imprescindível, portanto, estabelecer as relações entre Direito, Estado a partir da forma de sociabilidade capitalista até mesmo para se compreender melhor seus limites de atuação. Se num dado momento histórico o poder advinha de uma vontade divina abstrata, influindo na organização e exploração do trabalho social por esse desígnio divino, na sociedade capitalista, a riqueza é expressa pela capacidade de acumulação de mercadorias. O poder na sociedade capitalista é representando pela riqueza em função do “valor” que se extrai na materialização das mercadorias produzidas. A Teoria Crítica do Valor objetiva o estudo das formas de sociabilidade da sociedade capitalista a partir da análise da forma-mercadoria e da forma-valor, formas pelas quais as relações sociais são mediadas exatamente por se constituírem em fonte da riqueza da sociedade capitalista. Não a toa que tanto Marx ao iniciar “O Capital” afirma que a sociedade capitalista é, antes de mais nada, uma sociedade portadora de mercadorias. A forma-mercadoria é a forma essencial em que, consoante aponta PACHUKANIS 5, a relação objetiva se estabelece entre indivíduos, 2

“o fator determinante, em ultima instância, na história é a produção e a reprodução da vida imediata que, no entanto, se apresentam sob duas formas. De um lado, a produção dos meios de subsistência, de produtos alimentícios, habitação e instrumentos necessários para isso. De outro lado, a produção do mesmo homem, a reprodução da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época histórica e de determinado país está condicionada por esses dois tipos de produção: de um lado, pelo grau de desenvolvimento do trabalho e, de outro, pela família.”. ENGELS, 2012, pg 13 3 “Formas sociais caracterizam relações objetivas exteriores e reificadas face aos indivíduos, em que a sua ligação social manifesta-se disfarçada, não transparente. Sob as condições capitalistas, a sociabilidade não pode ser gerada de outro modo. As relações entre os indivíduos devem assumir o aspecto de relações objetivadas, ou seja, a própria existência social aparece para o individuo como coisa, como ‘fetiche’ difícil de ser visualizada” HIRSCH, 2010, pg. 30 4 “O capital é uma relação social, uma relação de produção burguesa, acrescenta Marx, ressaltando que é precisamente ‘o caráter social determinado o que converte em capital os produtos que servem para uma nova produção. Se o capital é uma relação social, isso significa que os meios de produção só se convertem em capital quando são combinados com a força de trabalho assalariada, portanto só há capital quando o proprietário das condições materiais da produção encontra disponível no mercado a força de trabalho e a consome no processo de produção. É justamente a relação entre essas duas classes, a burguesia e o operariado, mediada pelos meios de trabalho, que constitui a relação de capital ou capitalismo.” NAVES, 2008, pg. 87 5 A esse respeito Pachukanis entende que “A sociedade capitalista é, antes de tudo, uma sociedade de proprietários de mercadorias. Isto que dizer que as relações sociais dos homens no processo de produção tomam uma forma coisificada nos produtos do trabalho que aparecem, uns em relação aos outros, como valores. A mercadoria é um objeto mediante o qual a diversidade concreta das propriedades úteis se torna simplesmente a embalagem coisificada da propriedade abstrata do valor, que se exprime como capacidade de ser trocada numa determinada

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 sujeitos de direito, que se relacionam objetivamente através de um objeto especifico e necessário à sua existência. Mais importante que isso, a forma-mercadoria é a forma pela qual se estabelece a medida da produção da riqueza em razão da oposição de seu valor de uso por seu valor de troca. A dominação do valor de uso em razão da concentração e da organização dos meios de produção voltados a constante reprodução, valorização e acumulação de capital, ensejam uma dada reprodução social que se estabelece a partir da mercantilização de todos os aspectos sociais, especialmente a força de trabalho dos indivíduos. Por assim dizer, a teoria do valor, no âmbito da dialética materialista marxista, se funda na compreensão de que, na sociedade capitalista, a forma de sua sociabilidade está diretamente vinculada à forma-mercadoria pois é a partir de sua produção que se permite a produção da materialização da riqueza e em seu entorno que se organiza o trabalho social. A quantificação e a qualidade da forma-mercadoria se expressa na forma-dinheiro, o capital em si que, no bojo das relações mercantis, assume primordialmente a qualidade de mediador universal da qualidade e quantidade do trabalho-mercadoria, permitindo assim não somente sua ampla circularidade, mas também sua acumulação para além das propriedades físicas da mercadoria. Não a toa que na sociedade capitalista, o valor e a riqueza da sociedade, mediado pelo capital, em verdade assumem a forma-mercadoria. É o mesmo que dizer que na sociedade capitalista, todas as relações sociais estão, direta ou indiretamente, atreladas e assemelhadas à mercadoria, assumindo a forma jurídica de contrato. “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas próprias propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estomago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção. Cada coisa útil, (...) pode ser considerada sob duplo aspecto, segundo a qualidade e quantidade. Cada um desses objetos é um conjunto de muitas propriedades e pode ser útil de diferentes modos.” 6. A importância que a forma mercadoria assume na organização das relações sociais pode ser compreendida tanto em sua função de indução de uma determinada conduta social – que assumem tal forma como expressão natural de existência, determinando inconscientemente a ação a ser tomada, tornando-os sujeitos autômatos7 - quanto a sua sujeição aos aparelhos ideológicos que se derivam da forma mercadoria para garanti-la, notadamente o Estado de Direito constituindo à orbita das relações sociais capitalistas. O Estado de Direito não é algo natural, já dado na natureza das relações sociais, mas sim uma construção social que constitui a totalidade das relações sociais e, muito embora não se possa estabelecer uma relação causal direta, é derivada da forma mercadoria. Pois como afirma proporção por outras mercadorias. Esta propriedade é a expressão de uma qualidade inerente às próprias coisas em virtude de uma espécie de lei natural que age sobre os homens de maneira totalmente alheia à sua vontade” PACHUKANIS, 1988, p. 70 6 MARX, 2013, pg. 57 7 “Marx não descreve o capitalismo como um conjunto de relações pessoais de dominação, em que os dominantes, para melhor enganarem os explorados e dominados, se escondessem por trás de uma aparência de circunstâncias objetivas, como o valor, fazendo passar as suas manobras subjetivas pelo resultado de um processo natural. (...) Mas bem pelo contrário, a teoria marxiana da inversão afirma que o verdadeiro sujeito é a mercadoria e que o homem mais não é do que o executor da lógica da mercadoria. Aos homens, a sua própria socialidade e a sua subjetividade, surgem-lhes submetidas ao automovimento automático de uma coisa. Marx exprime este facto na formulação segundo a qual o valor é um sujeito autômato, sendo que como escreve já nos Grundrisse: ‘o valor apresenta-se como sujeito.’” JAPPE, 2013, pg. 92

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 MASCARO, o Estado “não é apenas um aparato de repressão, mas sim de constituição social. (...) O Estado é, na verdade, um momento de condensação de relações sociais especificas, a partir das próprias formas dessa sociabilidade” que se constitui e funciona ”em uma relação necessária com as estruturas de valorização do capital.”8. A forma-mercadoria, enquanto forma essencial da forma-valor é comumente compreendida por ser natural, designando por sua naturalidade a razão maior de ser do Estado e do Direito para além de outras possíveis construções sociais. A partir de suas formas, o individuo deixa de ser protagonista de si mesmo, para ser induzido, inconscientemente, a agir através e sob a regência das formas pelas quais o valor se estabelece. As categorias da forma-mercadoria e a forma-valor se apresentam enquanto dever ser na ação concreta de cada individuo. “A sociedade capitalista é caracterizada pelo fato de que a relação social dos indivíduos não é estabelecida por eles mesmos de maneira direta e consciente, mas por processos que se operam atrás deles, exatamente através da produção privada e parcelizada e da troca de mercadorias”9 Exatamente por isso a importância de se compreender a dinâmica da forma-mercadoria e da forma-valor no bojo do modo de produção capitalista, pois somente a partir dela é possível se compreender a essência celular da totalidade das relações sociais da sociedade capitalista e, consequentemente, suas implicações para o aprofundamento do estudo do Direito. 3. O “valor” na sociedade capitalista. A sociedade capitalista, conforme afirma Marx, é uma sociedade na qual a riqueza se estabelece em razão da “imensa acumulação de mercadorias”10. O valor, ou melhor a forma-valor, não se constitui em algo já dado por sua natureza. O valor somente existe enquanto construção social vinculada à ação humana, na mediação do trabalho na extração de recursos naturais para fins de da satisfação das necessidades materiais da sociedade humana. A produção de mercadorias ao gerar valores de uso, como denomina Marx já no capitulo primeiro de “O Capital”, tem sua utilidade desviada, se vinculando à lógica do valor, voltada a produção da mais valia, na sua realização concreta na forma de capital acumulado por sua circularidade mercantil. E tal somente pode existir a partir da exploração do trabalho social, assumido enquanto mercadoria, cujo excedente se constitui na fonte da produção da mais-valia11. Pois ao assumir a forma de mercadoria, o trabalho se torna abstrato, independentemente de suas características concretas12. Com isso passa a ser inserido no âmbito do modo de produção como

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MASCARO, 2013, Pg. 19 HIRSCH, 2010, pg. 26/27 10 MARX, 2013, pg. 57 11 Segundo Marx (2008, p. 49) “A mais-valia é antes de mais nada, um excedente do valor da mercadoria sobreposto ao custo dela. Mas, se o preço de custo é igual ao valor do capital despendido, revertendo continuadamente aos elementos materiais deste, passa o excedente de valor a ser acrescimento de valor do capital despendido para produzir a mercadoria e que reflui da circulação dela. (...) Aliás, a mais-valia constitui acréscimo não só à parte do capital adiantado, absorvida pelo processo de valorização, mas também à parte não absorvida; incremento de valor, portanto, do capital despendido no processo, a ser reposto pelo preço de custo, e ainda do capital todo de qualquer modo utilizado.” MARX, 2008, p. 49 12 “Em suma, no capitalismo o trabalho geralmente tem uma dupla determinação: ele é concreto e também abstrato. Enquanto trabalho concreto, ele é uma atividade transformadora; enquanto trabalho abstrato, ele é subordinado por uma forma social especifica, ou ele existe através dessa forma. O trabalho abstrato predomina sobre o trabalho concreto porque a performance do ultimo geralmente depende da extração de mais-valia, em vez de, por exemplo, depender da necessidade do produto.” SAAD FILHO, 2011, Pgs 23/24 9

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 mais um elemento necessário não só a produção de mercadorias em si, mas também com fulcro a produção do valor13. A diferença de abordagem da economia politica clássica e da critica da economia política em que se funda a Teoria do Valor de Marx reside na divergência de como se constitui o “valor”. Enquanto na economia politica clássica o valor é resultado da relação de troca de mercadorias entre indivíduos – ou seja, meramente, a partir da circulação mercantil – a Teoria Crítica do Valor parte de uma compreensão dialética entre as relações concretas e abstratas, reconhecendo a priori que o valor surge endogenamente no processo de produção e se realiza, exogenamente, quando a mercadoria é posta em circulação. De um modo simplificado, o valor de uso inerente à mercadoria é criado a partir do trabalho abstrato inserido no processo de produção, valor este que é mediado por seu valor de troca na circulação mercantil. A forma valor decorre da forma mercadoria, na qual o trabalho abstrato é inserido nela e, a partir dai, se estabelece um complexo conjunto de funções derivadas dessa forma especifica que mediam o conjunto de relações sociais objetivas, concretizando a abstração do trabalho social necessário à produção. O valor do trabalho abstrato se adere à forma mercadoria pela multiplicidade de funções inerentes à forma mercadoria 14, na qual reside tanto o antagonismo das relações sociais – entre trabalhador e capitalista – quanto a contradição fundamental na produção de valor que se estabelece pelo processo de ampliação das técnicas de produção para a produção de mais mercadorias. Não a toa, Marx inicia sua obra fundamental tratando sobre a produção no Livro 1 do “O Capital”, para somente após tratar da Circulação Mercantil no Livro 2. É na produção, e não no trabalho organizado meramente para as relações mercantis e sujeitos às leis da competição e da concorrência de mercado, que se origina a produção do valor e nela reside a essência da desigualdade material entre os indivíduos portadores da mercadoria trabalho. A competição é consequência da forma em que se organiza o trabalho social na sociedade capitalista, refletindo seus antagonismos e contradições tendentes à realização e a concentração de valor na forma dinheiro que assume, dentre as inúmeras funções de sua forma, o papel principal de quantificador do trabalho e mediação geral do processo de trocas decorrente da praxis burguesa. Ou como afirma Rubin, assume o papel de mediação na realização das relações sociais que se estabelecem através da mercadoria 15. O trabalhador, refém dos meios de produção do capital, somente pode agir – por indução ou coação – através da forma do trabalho abstrato, de modo a se inserir na forma-valor. Para tanto, cada individuo de per-si, assume a forma sujeito de direito, forma jurídica elementar que estabelece um estatuto de pertença ao Estado de Direito. Forma política na qual é reconhecido e 13

“A esta forma do trabalho, na qual se abstrai de todas as formas concretas que lhe digam respeito, Marx chamou de ‘trabalho abstrato’. Os valores das mercadorias não são então outra coisa senão ‘cristalizações’ dessa ‘geleia’ que é o ‘trabalho humano indiferenciado’. O valor – que não deverá confundir-se com o valor de troca – é uma quantidade determinada de trabalho abstrato contido numa mercadoria. A mercadoria é assim uma unidade do valor de uso e do valor, bem como do trabalho concreto e do trabalho abstrato que a criaram.” JAPPE, 2013, pg. 26/27 14 “A presença de uma coisa com uma determinada forma social nas mãos de uma dada pessoa, a induz a manter determinadas relações de produção e lhe infunde seu caráter social especifico. (...) A forma social do produto do trabalho, sendo resultado de incontáveis transações entre os produtores mercantis, torna-se um poderoso meio de exercer pressão sobre a motivação dos produtores individuais de mercadorias, forçando-os a ajustar seu comportamento aos tipos dominantes de relações de produção entre as pessoas nessa dada sociedade. O impacto da sociedade sobre o individuo é levado adiante mediante a forma social das coisas. Esta objetivação, ou ´reificação´ das relações de produção entre as pessoas sob a forma social de coisas, dá ao sistema econômico maior durabilidade, estabilidade e regularidade. O resultado é a cristalização das relações de produção entre as pessoas.” RUBIN, 1980, pg. 37 15 “A coisa adquire as propriedades de valor, dinheiro, capital, etc., não por suas propriedades naturais, mas por causa das relações sociais de produção às quais está vinculada na economia mercantil. Assim, as relações sociais de produção não são apenas simbolizadas por coisas, mas realizam-se através de coisas.” RUBIN, 1980, pg. 26

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 garantido enquanto proprietário de sua mercadoria trabalho. Sob a forma jurídica das leis garantidas pela forma política estatal derivadas da praxis das relações mercantis, o proprietário da força de trabalho é obrigado a sujeitar-se a uma relação contratual oriunda da forma-valor que rege o modo de produção capitalista voltado exclusivamente a produção de mais valor, ou maisvalia.16 Ou seja, e como bem aponta Silvio Luis de Almeida “Sob a égide do capitalismo o trabalho perderá seu caráter ontológico e passará a ser abstrato (produtivo ou improdutivo), o que significa dizer que será uma atividade voltada unicamente para a produção da mais-valia.”17. O trabalho abstrato da sociedade capitalista impõe um modo de alienação aos indivíduos que encontram-se apartados da totalidade da relação social e desta para com a natureza a partir do antagonismo dialético que se estabelece pela organização do trabalho social para a produção da mais-valia a partir de sua exploração pelo capital 18. Da clássica formula marxiana M-D-M e D-M-D’, se denota que a mais valia somente pode existir a partir da desigualdade entre sujeitos de direito, havida na exploração do trabalho-mercadoria no bojo do modo de produção. A mais-valia, como já visto, é resultado da contraposição que se estabelece entre sujeitos de direito distintamente opostos – Trabalhador e Capitalista – onde o excedente de trabalho-mercadoria na produção de outras mercadorias resulta a produção da mais valia que será realizado na forma de lucro a partir de uma relação de competição e concorrência de mercado. Exatamente por isso que o conjunto teórico produzido pela política economia clássica, desde Adam Smith e Ricardo, até os dias atuais se revela extremamente limitado e equivocado. A análise do valor meramente a partir das relações concretas havidas no “mercado” esconde a verdadeira natureza da origem do valor expresso na forma dinheiro, do capital. E se presta a preservar a reprodução de uma forma de sociabilidade tal que somente reproduz a pobreza e as iniquidades de uma sociedade falida, cujos limites já se encontram estabelecidos pelos antagonismos e, principalmente, pela contradição fundamental que se insere na essência de sua origem: o constante desenvolvimento das técnicas de produção. 4. A Contradição Fundamental – O Avanço das Técnicas de Produção Não se pode perder de vista que a sociedade capitalista se constitui como resultado histórico do incremento das técnicas de produção que remontam ao final da Idade Média tal como apontado por Marx em “A Ideologia Alemã”. O crescimento dos burgos, em sua importância econômica e política decorrente da especialização e das técnicas de ofícios e da necessidade de incrementos na produção para além da mera extração de recursos existentes na natureza modificam 16

“O processo de trabalho, quando ocorre como processo de consumo da força de trabalho pelo capitalista, apresenta dois fenômenos característicos. O trabalhador trabalha sob o controle capitalista, a quem pertence seu trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realiza de maneira apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção, não se desperdiçando matéria-prima e poupando-se o instrumental de trabalho, de modo que só se gaste deles o que for imprescindível à execução do trabalho. Além disso, o produto do trabalho é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor diário da força de trabalho. Sua utilização, como a de qualquer outra mercadoria (...) pertence-lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que vendeu, ao ceder seu trabalho. (...) O capitalista compra a força de trabalho e incorpora o trabalho, fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, os quais também lhe pertencem.” MARX, 2012, p.219 17 ALMEIDA (2006, p.33) 18 “O verdadeiro homem – a verdadeira pessoa humana – não existe realmente na sociedade capitalista salvo em uma forma alienada e reificada na qual encontramos ele como ‘trabalho’ e ‘capital’ (propriedade privada) opondo-se antagonicamente.” MESZAROS, 2006, PG 106.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 significativamente as estruturas sociais e de poder ao longo da Idade Moderna, culminando com a Revolução Industrial no século XVII. Já nas obras de sua “juventude”, especialmente no “Manifesto Comunista”, Marx compreendia que a desigualdade material entre os indivíduos como fenômeno decorrente da reprodução histórica de um processo de luta de classes, organizado a partir de um determinado modo de produção e organização do trabalho social. Resultado deste processo histórico, Marx aponta a burguesia como reflexo do “desenvolvimento de uma série e de revoluções no modo de produção e de troca”19. A exploração do trabalho - pela escravidão, servidão ou pelo contrato de trabalho assalariado – é a fronteira a ser superada na busca de uma justiça social que permita a vida em comunidade e garanta a todos os indivíduos a realização de sua virtude. Ao estabelecer o desenvolvimento tecnológico como a medida do surgimento da sociedade capitalista, Marx indica que esta é a condição fundamental de sua existência, se constituindo como desígnio maior que garante a reprodução do valor para além de quaisquer outras formas de sociabilidade existentes, determinando a dinâmica das modificações das relações sociais 20. Ao mesmo tempo que o desenvolvimento tecnológico se constituiu como a “arma” para a superação do feudalismo e do absolutismo, essa é “arma” que Marx aponta como o calcanhar de Aquiles da sociedade capitalista. Pois, o desenvolvimento tecnológico se volta contra a lógica do capital, na medida em que impede a reprodução da lógica do valor. Da capacidade de se produzir mais mercadorias, resulta uma aparência de maior riqueza acumulada a partir da imbricação da produção à lógica mercantil. A riqueza, o valor contido na mercadoria, decorrente da exponenciação das técnicas de produção permitem um maior acumulo de capital numa relação direta entre produção X consumo. Mas ao mesmo tempo os limites de uma determinada técnica produção – sejam eles os limites físicos/biológicos dos trabalhadores, ou da competição entre produtores de mercadorias – ensejam uma constante modificação das técnicas de produção e da incorporação de maquinário para a ampliação de produção e mercadorias21. Está é a contradição fundamental da forma-valor e da forma de sociabilidade capitalista apontada por Marx já no Manifesto Comunista que perpassou toda sua reflexão até ‘O Capital’. Conforme visto o valor decorre do excedente da mercadoria trabalho inserido nos meios de produção. Na construção teoria de “O Capital” Marx tal se expressa na razão existente entre o capital constante e o capital variável havido no processo de produção e corporificado enquanto capital na forma-dinheiro. 19

MARX, 2003, pg. 27 “A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção, com isso, todas as relações sociais. A conservação inalterada do antigo modo de produção, constituía, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Essa revolução continua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.” MARX, 2003, pg. 29 21 “A existência das necessidades e do excedente, e a divisão do tempo de trabalho social entre trabalho necessário e trabalho excedente, é uma consequência da exploração em qualquer modo de produção. Entretanto, os conceitos de valor da força de trabalho e mais-valia, e sua manifestação como salários e lucros (incluindo os lucros industriais e comerciais, juros e rendas), são típicos do capitalismo, porque apenas nesse modo de produção a exploração é mediada por relações mercantis ou de valor, e pela forma mercadoria.” SAAD FILHO, 2010, pgs 81/82 20

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O capital constante se estabelece como o capital necessário para garantir a agregação dos diversos fatores, ou melhor, mercadorias, inerentes ao processo de produção em si, inclusive para a reprodução de sua principal mercadoria, o trabalho assalariado. Capital constante, portanto é a soma de todas as mercadorias – seja o trabalho diretamente empregado naquela unidade de produção, seja o trabalho já corporificado em mercadorias previamente produzidas – que são necessárias à produção de nova mercadoria. Já o excedente do trabalho se constitui no capital variável, que é resultado exclusivo do excedente de tempo do trabalho socialmente necessário para a sua reprodução. A mais valia se produz, assim, pela diferença positiva entre o capital necessário a produção de seu equivalente geral e o excedente do trabalho-mercadoria diretamente empregado na produção. “A parte do capital, portanto, que se converte em meios de produção, isto é, em matéria-prima, materiais acessórios e meios de trabalho não muda a magnitude do seu valor no processo de produção. Chamo-a, por isso, parte constante do capital, ou simplesmente capital constante. A parte do capital convertida em força de trabalho, ao contrário, muda de valor no processo de produção. Reproduz o próprio equivalente e, além disso, proporciona um excedente, a mais-valia, que pode variar, ser maior ou menor. Esta parte do capital transforma-se continuamente de magnitude constante em magnitude variável. Por isso, chamo-a parte variável do capital, ou simplesmente capital variável.”22 A mais-valia, enquanto razão havida entre capital constante e capital variável tem sua composição definida por tais termos, cuja produtividade se estabelece à razão da técnica de produção que a compõe. Ao introduzir modificações no modo de produção, pelo aprimoramento das técnicas e, principalmente, pela substituição de mão de obra por máquinas e equipamentos, a composição do valor a partir de um determinado modo de produção se altera, diminuindo a quantidade de valor vivo empregado na produção das mercadorias. É neste passo que Marx busca compreender a Composição do Capital para a produção da maisvalia centrando sua reflexão na dinâmica em que a Composição Técnica do Capital (CTC) afeta tanto a Composição Orgânica do Capital (COC) quanto na Composição do Valor do Capital (CVC). Na análise marxiana a COC representa a composição necessária para a produção de determinada mercadoria, demonstrando a relação entre capital constante e variável empregada a partir dos elementos necessários à produção do valor, especialmente no que tange às técnicas de produção. Em sua análise, quanto maior a técnica de produção, quanto maior a mecanização empregada, menor será a COC pois menor será a dependência de trabalho vivo e maior será a quantidade de mercadorias produzidas. Ao serem postas ao mercado, se possibilita uma maior possibilidade de realização de capital, na forma de lucro, eis que haverá um menor impacto no capital constante efetivamente empregado em sua razão frente ao capital variável. Porém o reflexo desse incremento da CTC se dá numa diminuição da mais-valia produzida que, ao longo dos ciclos de reprodução do capital ensejarão uma superprodução de valores de uso que não serão efetivados no bojo das relações de troca havidas no mercado 23. Pois no ciclo que 22

MARX, 2012, p.244 “Disto deriva um descenso do investimento produtivo que provoca uma diminuição de emprego e a consequente redução dos salários pagos pelo capital. Ao diminuir os salários, cai, paralelamente a procura, provocando uma crise na venda das mercadorias previamente armazenadas. Produz-se, assim, uma crise de superprodução, já que a capacidade produtiva não pode ser absorvida pela procura solvente existente, resultado das restrições à procura derivadas do descenso dos investimentos. A incapacidade para realizar suas mercadorias faz com que o capital 23

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 se estabelece na cadeia entre a produção e o consumo final da mercadoria, o valor de troca não é definido meramente na produção, mas sim no mercado. A diminuição da COC na produção enseja um aumento da COC no processo de sua circulação, em função do aumento do capital constante empregado para tanto. Se a forma valor depende do trabalho vivo, quanto menor sua participação na produção, menor será a mais valia produzida. Ou seja, enquanto a COC reflete a mais-valia produzida ao longo da produção das mercadorias, a CVC reflete a realização da mais-valia na forma-dinheiro, ao longo do processo de circulação, como bem aponta SAAD FILHO: ““Em resumo, apesar de a COC e a CVC serem reflexos da CTC em valor, elas são distintas devido à diferente forma de avaliação dos meios de produção e força do trabalho. Uma comparação das tecnologias de produção adotadas em dois setores com base na COC independe das diferenças nos valores do componente do capital, porque a COC é definida na produção. Em contraste, diferenças (ou variações) nos valores dos capitais constante ou variável são detectadas pela CVC, um conceito da circulação. Apenas nesse caso é possível compreender por completo a definição de Marx: ‘A composição do capital deve ser entendida num duplo sentido. Como valor, ela é determinada pela proporção na qual ele se divide em capital constante (...) e capital variável (...). Como material, na forma como ele funciona no processo de produção, todo capital se divide em meios de produção e força de trabalho viva. Essa última composição é determinada pela retração entre a massa de meios de produção empregada, por um lado, e a massa de trabalho necessária para seu emprego, por outro. Eu chamo a primeira de composição de valor e a ultima de composição técnica do capital. Existe uma relação muito próxima entre elas. Para expressa-las, eu chamo a composição de valor do capital, até o ponto em que ela é determinada por sua composição técnica e reflete as mudanças dessa ultima, de composição orgânica do capital.” 24 A forma-valor não se altera, mas a quantidade e a qualidade de valor tende a cair – tal qual Marx propugna ao discutir a Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro - à razão do incremento da CTC na COC e posteriormente da CTC na COC da CVC. Melhor dizendo, segundo Marx, a forma valor é afetada pelo o desenvolvimento das técnicas de produção numa relação dúplice e contraditória. Pois quanto maior a CTC na COC, menor será a mais-valia produzida e realizada em lucro a partir da CVC. A queda da acumulação de capital enseja uma série de contratendências, tais como: (i) o aumento do grau de exploração do trabalho; (ii) redução de preços das mercadorias; (iii) redução de salários; (iv) expansão de mercado consumidor; (v) a criação de novas mercadorias com novos valores de uso; (vi) a rearticulação do trabalho social; (vii) (i) a desvalorização do valor (por sua depreciação nominal direta ou pela sua supervalorização. Enfim, muito embora Marx tenha enumerado uma série de fatores contrários ao final do Livro 3 de ‘O Capital’, em momento algum Marx foi taxativo quanto as contratendências possíveis à efetivação da contradição fundamental da forma-valor a partir do fenômeno da queda da taxa de lucro. Até mesmo a corrupção, tão debatida na sociedade capitalista, pode e deve ser compreendida como fenômeno detenha sua produção, generalizando-se a paralização e a depressão dos mercados. Dado que a produção capitalista somente está interessada na criação de valores de uso na medida em que sejam o suporte do valor de troca, a economia somente se reativará quando a paralização em massa originar salários muito baixos, quando a falência de muitas empresas tiver desvalorizado o capital fixo e quando o Estado intervier ou se produzir um acontecimento inesperado (uma guerra por exemplo) que incremente substancialmente os mercados e permita o investimento rentável de capital.” CASTELSS, 1979, p. 25/26 24 SAAD FILHO, 2011, pg. 128

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 social que se estabelece, direta ou indiretamente, enquanto contratendência à diminuição da produção da mais-valia na concorrência da forma de sociabilidade capitalista. Muito embora não seja possível se estabelecer uma medida de econometria exata (tal como, por exemplo pretendeu GILLMAN em sua dissertação de doutorado na década de 5025), a tendência da queda da lucratividade refletida pela análise da composição do valor do capital é resultado da diminuição da produção da mais-valia pela substituição de trabalho vivo em trabalho morto, ensejando um processo fenomenológico de constante desvalorização do trabalho e, consequentemente, do valor do capital. Sem prejuízo das correntes que interpretam a teoria do valor na atualidade – das quais se destacam a Teoria da Regulação (tais como Aglietta, Boyer, entre outros) ou a Teoria Radical do Valor (que tem como representantes maiores JAPP e KURSZ) – a teoria do valor de Marx deixa extreme de dúvidas de que a contradição fundamental da forma valor em que se estabelece forma de sociabilidade capitalista, enseja um constante desequilíbrio das relações sociais, que resultam num processo cíclico de crises, ou como afirma Mascaro, “capitalismo é crise”. As crises, enquanto fenômenos da forma de sociabilidade capitalista e, independentemente de sua extensão temporal e territorial, denotam o fenômeno do declínio cíclico da produção de mais-valia em razão de um determinado modo de produção. 5. O Desequilibro do Direito e da sociedade capitalista enquanto estrutura da forma valor

Enquanto forma essencial da totalidade das relações sociais, a forma-mercadoria articula a significação das relações sociais para a satisfação das necessidades subjetivas numa pretensa equalização do trabalho social. Porém, como visto, é exatamente nesse processo de produção e equalização é que se funda a produção social da mais-valia, e na qual se estabelece o antagonismo inerente às relações sociais de cunho capitalista e a contradição fundamental que se funda no constante desenvolvimento tecnológico decorrente das leis de concorrência do mercado. Pois se o trabalho social pretensamente se funda numa equalização a partir da divisão social do trabalho, é a partir da exploração deste pelo contrato mercantil que se estabelece a mais-valia. A garantia desta forma de sociabilidade especifica enseja uma relação terceira e impessoal que enseja a concepção do Estado e do Direito. Se o Estado é o aparato que garante a mercadoria, o Direito é a ciência especifica e apartada da realidade social por meio da qual se estabelece a forma da mercadoria, de maneira ampliada a todo corpo social26. É o direito, portanto, a ciência instrumental na qual se consolidam os mecanismos necessários à própria objetivação da mercadoria, em todas as suas formas e qualidades. A instrumentalidade da ciência do direito é derivada, portanto, do modo de produção da mercadoria em si a qual se estabelece em função de uma razão cartesiana sem compreender a dinâmica social e, principalmente, seus antagonismos e contradições.

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GILLMAN, 1958, pg 148 “The Falling Rate of Profit – Marx’s Law and its Significance to Twentieth Century Capitalism” Camero Associates Publisher 1958 26 “ A sistematização axiomática do direito como quadro de coesão formal recobre uma função estratégica: o capitalismo apresenta uma reprodução ampliada. (...) Esse cálculo exige, por sua vez, a possibilidade de uma determinada previsão fundada num mínimo de estabilidade das regras do jogo. É isso que permite a axiomatização do direito: seu caráter sistemático, com base em normas abstratas, gerais, formais e estritamente regulamentarizadas, consiste entre outras coisas em comportar suas próprias regras de transformação, fazendo assim com que suas modificações se tornem transformações reguladas no seio de seu sistema (papel notadamente da Constituição).” POULANTZAS, 2010, pg. 89

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O Direito, enquanto forma jurídica especifica da forma de sociabilidade capitalista tem sua origem e deriva diretamente da práxis mercantil onde os indivíduos se relacionam objetivamente por meio da mercadoria. É somente e pela forma jurídica que se permite a expressão da subjetividade de cada individuo na busca por uma relação de equivalência em que se estabelece a relação de troca. Ademais, na forma jurídica reside o reconhecimento da autonomia de cada individuo para além seu papel social. A forma jurídica é, portanto, a pré-condição do desenvolvimento e da reprodução da forma-valor27. Enquanto sujeitos de direito, abstratamente tomados por iguais na forma perante a lei, na materialidade das relações contratuais, dada a sua construção estabelecida num dever ser distante da dinâmica da realidade material, a forma jurídica capitalista é tomada como garantia do desequilíbrio entre sujeitos de direito que fazem parte da essência da forma-valor. O desequilíbrio do contrato de trabalho assalariado é sua característica fundamental. Seu resultado se dá na luta de classes que se estabelece fenômeno social capitalista inerente e consequente à forma-valor, se articulando em razão da contraposição do valor abstrato do equilíbrio frente ao desequilibro inerente a sua forma de sociabilidade, sem com isso esgarçar, ou quiçá, superar, a forma mercadoria. O antagonismo de classes está na essência da forma de sociabilidade capitalista sem a qual esta não se reproduz. A luta de classes tem sua função adstrita à reprodução da forma valor, quando esta, a partir de sua dinâmica antagônica e contraditória, não pode mais se reproduzir. Na sua essência a forma-valor não se reproduz mais-valia sem o desequilíbrio decorrente do antagonismo de classes. A luta de classes se revela, enquanto fenômeno da forma de sociabilidade capitalista, como limite para a retomada da produção da mais valia quando sua lógica de produção se esgota, implicando a retomada da produção do valor pelo reestabelecimento de um equilíbrio parcial e limitado às relações sociais sem que haja um rompimento com sua forma essencial, tida por natural. Os direitos humanos socioeconômicos, o Estado de Bem Estar Social juntamente da Social Democracia, a forma política democrática são em si mesmo fenômenos sociais que não esgarçaram a forma-valor, a forma-mercadoria e a forma sujeito de direito capitalista. Se tornaram possíveis não em função de uma vontade política coletiva, mas sim enquanto fenômenos sociais estabelecidos no processo de luta de classes, tendentes ao estabelecimento de um equilíbrio e equidade social parcial que, porém, só se efetivaram em função do esgotamento de um determinado regime de acumulação de capital, sem contudo implicar na superação nas categorias em que se fundam a forma de sociabilidade capitalista. A reprodução da forma-valor depende de uma relação entre desiguais, a desigualdade não reside na mera relação de trocas, mas sim em seu fundamento. A forma jurídica, ao tratar especificamente da relação de trocas, irradiando sua lógica para a totalidade da norma e do direito, estanque e congelada a um determinado tempo e local pré-estabelecido, assume a função primordial de se garantir a desigualdade material entre os sujeitos de direito que se relacionam a partir da forma mercadoria. Não obstante fundar-se num valor abstrato de equivalência, a forma jurídica assume o papel de garantir a desigualdade na dinâmica das relações sociais capitalistas ao longo do tempo e do espaço geográfico. Por meio de princípios dogmáticos normatizados, tal como pacta sunt servanda, valor supremo no qual se estabelecem os contratos de forma geral, a 27

A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da divisão do trabalho, em uma sociedade na qual os trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a intervenção de um equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito das trocas exige a mediação jurídica, pois o valor de troca das mercadorias só se realiza se uma operação jurídica – o acordo de vontades equivalentes – for introduzida. Ao estabelecer um vinculo entre a forma do direito e a forma da mercadoria, Pachukanis mostra que o direito é uma forma que reproduz a equivalência, essa ´primeira idéia puramente juridica’ a que ele se refere. NAVES, 2008, pg; 57

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 forma jurídica sujeita ao portador original da mercadoria trabalho a subsunção a uma situação de desigualdade do valor de uso de sua mercadoria fundamental ao longo da reprodução cíclica dos meios de produção. Se a forma jurídica tem sua explicação a partir da Teoria da Derivação, a Teoria da Regulação descreve a reprodução da forma de sociabilidade capitalista em razão de seus antagonismos e contradições. Pois conforme Hirsch: “A teoria da regulação enfatiza as descontinuidades na história do capitalismo”28 de acordo com as modificações nos regimes de acumulação que se modificam em função das crises do modo de produção capitalista. Ou como afirma Mascaro: “As teorias da regulação, buscando consolidar a análise de categorias intermediárias da economia capitalista, almejam encontrar modos de estabilidade parcial numa dinâmica histórica geral de instabilidade, assentando-se assim, sobre a perspectiva de que o capitalismo é portador de crises. (...) As mudanças internas das fases do capitalismo devem-se tanto à superfície de suas alterações quanto, principalmente, à sua própria natureza – oculta no primeiro momento a uma visão imediata economicista e policista – portadora de crise estrutural.”29 Por meio da regulação da economia pelo Estado de Direito, a forma jurídica traz a conformação necessária às especificidades da mercadoria em sua relação ao seu modo de produção e ao regime de acumulação de capital correspondendo ao processo de luta de classes e do desenvolvimento das técnicas de produção, para cada tipo mercadoria produzida. A modificação qualitativa e quantitativa do conteúdo inserido na forma jurídica se traduz na dinâmica do ciclo de produção e circulação da forma valor, forçando ao reestabelecimento de novas relações contratuais, em detrimento das relações jurídicas pretéritas, protegidas sob o palio do ato jurídico perfeito e da pacta sunt servanda, numa relação de constante conflito e desequilibro entre atores isolados e não vinculados diretamente às modificações. O Direito, na forma-jurídica derivada do capital, se presta a garantir as categorias essenciais forma-valor ao mesmo tempo em que, em seu conteúdo, tem seu conteúdo modificado e pactos sociais nele inseridos em razão das contratendências que decorrem do esgotamento reprodução social do valor, notadamente em função da tendência à queda da acumulação lucros, ante a contradição estrutural inserida em sua forma primaz.

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6. Conclusão O desenvolvimento tecnológico enquanto contradição fundamental da forma-mercadoria e da forma-valor, não deve ser tomado como o vilão a ser combatido, até mesmo porque isso ensejaria um reacionarismo histórico sem precedentes. Pois de fato, no processo histórico mas sem adentrar na discussão de suas implicações para a questão ambiental, o desenvolvimento tecnológico a partir do aprofundamento do conhecimento da natureza das coisas alçou a sociedade humana a um estágio que permite a cada individuo uma condição de vida para além da natureza selvagem. A questão fundamental que a teoria critica do valor demonstra é que o desenvolvimento tecnológico, enquanto visceralmente vinculado à reprodução da forma valor para a produção da mais-valia, é ao mesmo tempo um processo de dominação e controle social, como também se constitui na barreira última da reprodução da mais-valia. Também é a fronteira ultima das injustiças sociais e do, implicando em constantes e, cada vez mais velozes, rearticulações sociais 28

In “Globalização e mudança social: o conceito da teoria materialista do Estado e a Teoria da Regulação Ensaios FEE, 1998 Porto Alegre, v.19, nº 1, pg 12 29 MASCARO, 2013, pg. 114

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 a partir das constantes modificações da mercadoria trabalho explorada pela dinâmica da forma valor. É a dialética que rege as relações materiais posta em evidência. O Estado de Direito não se constitui, por conseguinte, enquanto agente de transformação social indutor da justiça social, da segurança, do equilíbrio e do bem comum. Ao revés, o Estado de Direito, forma política e jurídica derivada da forma, está imbricalmente vinculado à reprodução do capital, a partir do desequilíbrio inserido em sua essência, que se estabelece através dos indivíduos que tem suas relações sociais por ele materializadas. Não há Estado de Direito sem crise, crises essas que são meros constructos sociais, para além da dinâmica e disponibilidade dos recursos extraídos da natureza. Cada cidadão, sujeito de direito assim reconhecido pela forma politica Estatal e portador de direitos positivados na leis, se encontra sob a sujeição de uma constante desigualdade material que se legitima e se opera pela forma jurídica do capitalismo, garantindo e perpetuando a reprodução do valor pelo desequilíbrio e desigualdade material que lhe é fundamento. “A lei garante um mundo cuja transação é formalizada pela aparência de equivalência social e, ao sacralizar a igualdade legal, guarda nos porões escondidos da sociedade aquilo que o altar das leis não vê: a injustiça real, a coerção econômica, a desigualdade que se mantém e a brutal diferença que o sistema social mantém e agrava. Ao olhar para o altar das leis, o caleidoscópio social se inebria daquilo que sob seus pés não é imediatamente percebido: a igualdade jurídica não é a igualdade real, a legalidade não é a justiça.”30 A luta pelo fim das desigualdades materiais entre os seres humanos não se alcança, portanto, através do Estado de Direito.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 MARX, DURKHEIM E A MUDANÇA SOCIAL NA SOCIEDADE PÓS-REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: ENTRE A REALIDADE INEXORAVEL DA DISPUTA PELA RIQUEZA SOCIAL E A UTOPIA DA SOLIDARIEDADE Maurin Almeida Falcão1 RESUMO A mudança social ocorrida na sociedade pós-Revolução industrial se constituiria em um elemento central para a sociologia. Por isso, se constituiu em objeto de interesse da plêiade de pensadores sociais que se debruçaram sobre o tema na tentativa de compreender a passagem da sociedade tradicional à sociedade moderna. A transformação das estruturas sociais marcaria um novo tempo para a democracia, para a mobilidade social e para o processo de redistribuição da riqueza social. Era estabelecido, portanto, a escala vertical nas relações sociais. Durkheim esboçou os valores da solidariedade social a partir deste conceito. Contudo, Marx alertou sobre o acirramento da luta de classes que viria no bojo da democracia industrial. O tempo se encarregaria de confirmar o acerto das previsões de Marx. A disputa pela riqueza social se constituiria na pedra angular da luta de classes, fato esse presente de forma ainda mais intensa no cenário sociopolítico contemporâneo. Palavras-chave: Sociedade pós-Revolução Industrial; Mudança social; Riqueza social. Introdução Enquanto Durkheim tecia loas à mudança social ocorrida no pós-Revolução Industrial, Marx esboçava uma reação mais pragmática afirmando que a mesma levaria a um novo conflito de classes, o que abalaria os alicerces da incipiente democracia industrial. Na mesma linha de Durkheim, Tocqueville pregava um Estado social capaz de garantir a igualdade de oportunidades. Essas manifestações levaram ao surgimento da sociologia com o intuito de explicar as transformações das estruturas sociais clássicas do Século XIX. Os paradoxos e conflitos da sociedade industrial lançaram bases doutrinárias e ideológicas muito bem explicadas por gerações de sociólogos, economistas e cientistas sociais, tendo deflagrado embates que marcaram gerações com tendências sociopolíticas provenientes dos horizontes os mais diversos. A mudança social, conceito de importância transcendental para a sociologia, decorreu do descontentamento com os paradigmas da sociedade tradicional e de um conjunto de fatos sociais que marcariam diversas gerações. Da construção do Estado social com supedâneo no intervencionismo, ao estabelecimento de novos valores democráticos, o modelo social emergido da mudança social trouxe esperança para o proletariado e descartou o medo da amanhã. O socialismo de cátedra expunha o papel do Estado como ator imprescindível à eliminação da precariedade e dos males sociais que pesavam sobre os indivíduos. Os meios para o financiamento da ação estatal foram identificados com base no estabelecimento da grande sociedade solidária onde a redistribuição vertical permitiria a obtenção do equilíbrio social. Assim, as bases do progresso social foram lançadas e o tempo se encarregaria de materializá-las, de uma forma ou de outra. Entretanto, Marx destoou dos demais ao afirmar que a mudança social se constituiria em uma nova luta de classes. Esta manifestação não se harmonizava com a construção do pensamento social da época. Passados mais de um século, constata-se a efetividade da disputa pela obtenção da riqueza social que hoje ocorre sob novas formas mas que na sua essência, permanece a mesma. Da redistribuição vertical veio a disputa pela riqueza social, escassa e obtida por poucos. Todavia, se não resolveu definitivamente o problema da desigualdade, a implantação da grande sociedade solidária atenuou a fratura social. 1

Professor-adjunto do Mestrado em Direito, dos cursos de Relações Internacionais e de Direito da Universidade Católica de Brasília. Pós-doutorado na Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne e doutorado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Paris XI-Sud. Processo CAPES nº 9571/11-6.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Na atualidade, a disputa pela riqueza social gerou a falta ilusão de um sistema social quase perfeito em consequência de inúmeras iniciativas políticas tendentes a reduzir as desigualdades sociais. Entretanto, tal situação se constitui em um paradoxo no qual a elite autoriza o Estado criar programas sociais na medida em que isso não represente uma ameaça ao seu status quo. Por outro lado, essas mesmas medidas ocultam a obtenção de exonerações fiscais concedidas a segmentos sociopolíticos bem posicionados que, por meio do controle do sistema legal, tem um maior acesso à riqueza social em números bem mais elevados que os setores carentes da sociedade. Tendo em vista, pois, a constatação de clivagens no seio da construção do pensamento social no período pós-Revolução Industrial, esse trabalho se propõe a apresentar a posição dissonante de Marx em relação ao pensamento clássico acerca da solidariedade social de Durkheim. O fenômeno que, visto em perspectivas diferentes por pensadores pertencentes a uma mesma época, constitui-se ainda hoje, em inesgotável fonte de controvérsias. Em consequência, o confronto entre a ideia de sociedade solidária e de luta de classes conduz a argumentação central do presente trabalho que afinal, demonstrará que a busca pelo controle da riqueza social se constitui no cerne das percepções de Durkheim e Marx acerca da mudança social. I – AS REPERCUSSÕES DA MUDANCA SOCIAL NA SOCIEDADE PÓS-REVOLUCÃO INDUSTRIAL E A EMERGENCIA DE UM PARADOXO A sequencia de fatos sociais ocorridos no período seguinte à Revolução Industrial culminaria na transformação das estruturas sociopolíticas e seria considerada a pedra angular da sociologia. A partir de então, uma vigorosa teoria em torno da questão social emergiria para se constituir no núcleo do pensamento de Durkheim e do próprio Marx e, ainda, de outros cientistas sociais que não permaneceriam alheios à construção da democracia industrial. Na ânsia de explicar o processo em curso, esses notáveis observadores do quotidiano social passaram a analisar a mudança social, o que os levou à construção de conceitos e valores ainda hoje largamente aplicados. Aliás, Aron(1962, p. 33) já havia observado essa contribuição em suas antológicas lições sobre a sociedade industrial, onde confrontou as lições expendidas pelos teóricos da mudança social: La plupart de nos idéologies politiques et socialistes datent de la première moitié du XIXe siècle. Nous vivons encore aujourd’hui sur le stock d’idées développées par les penseurs de cette époque et rien n’est plus utile, pour fixer l’originalité de notre situation actuelle, que de nous reporter à la situation du siècle dernier. Durkheim por exemplo, forjou a noção de solidariedade mecânica e orgânica, tendo contribuído na edificação dos alicerces das novas relações sociais a partir do seu conceito sobre divisão social do trabalho. Tocqueville, considerado o precursor da sociologia e antevendo os novos tempos, percebeu a mudança social como sendo o meio a partir do qual seria possível construir um Estado social e não político, bastando para isso que todos tivessem igualdade de condições. A partir dessa dinâmica social, ocorreria uma maior circulação entre as classes. Assim, a mudança social ocorrida na fase pós-Revolução Industrial se constituiria em um paradoxo. De um lado, o conjunto de fatos sociais responsáveis pela sua formação teria levado os cientistas sociais a analisá-los, dando origem, assim, à sociologia. Pelo outro, seria a sociologia que procuraria entender a transformação das estruturas sociais e dos seus novos valores. Conforme Tremoulinas (2006, p. 09), os cientistas sociais tinham como escopo a interpretação das mudanças sociais da época e este foi o leitmotif que os conduziu à formulação das bases teóricas destinadas à compreensão do progresso e do comportamento social em curso. Dessa forma, para entender melhor a repercussão da mudança social, faz-se necessária, preliminarmente, a definição do seu conceito a partir da obra de Rocher (1968, p. 22), considerada uma referência quando se analisa a mudança social: […] toute transformation observable dans le temps, qui affecte, d’une manière qui qui ne soit pas que provisoire ou éphémère, la structure ou le

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 fonctionnement de l’organisation sociale d’une collectivité donnée et modifie le cours de son histoire. Tem-se como questão acabada que o lócus da mudança social ocorrida na sociedade pósRevolução Industrial se deu no âmbito do desequilíbrio entre o capital e o trabalho, estando este na origem dos movimentos sociais e no surgimento de novas classes. A elaboração do direito social, resultante do Estado protetor, viria a transformar radicalmente as relações sociais. A instauração da sociedade solidária, estabelecida a partir verticalidade das relações sociais, permitiria a mobilidade das classes, tudo de acordo com o que fora estimado por Tocqueville e sedimentado nas lições de Durkheim. Os anseios por democracia e pela elevação dos níveis de bem-estar se constituíam nos novos valores da sociedade industrial. A positivação dos direitos sociais decorreu do movimento social lógico que conduziria à transformação profunda do Estado e de suas instituições. Buscava-se assim eliminar o medo e as incertezas do amanhã por meio de um sistema de redistribuição das riquezas concebido justamente na relação vertical imposta ao corpo social. A eliminação da precariedade passaria a ser um problema de toda a sociedade e para isso seria preciso dotar o Estado dos recursos indispensáveis à intervenção social. Essa perspectiva levaria ao aparecimento da sociologia fiscal, a qual passou a ressaltar o papel do Estado na coesão social. Todo o inconformismo verificado na sociedade pós-Revolução Industrial decorria da persistência de estruturas sociopolíticas arcaicas, formadas ao tempo da economia agrícola e das corporações de ofício. O progresso social que se impunha era decorrente dos movimentos do proletariado que, organizado em fábricas, se fortaleceu politicamente, vindo a ter um papel significativo na transformação social. Nesse aspecto, não apenas a mobilidade social viria a influenciar na disputa de classes mas também a reticencia dos segmentos conservadores em aceitar a evolução social em curso. Por isso, é importante observar que dessas diferentes percepções da mudança social surgiram novas abordagens teóricas destinadas a explicar não somente o fenômeno da mudança social mas também o domínio exercido pelas minorias organizadas sobre a massa. Dentre as contribuições observadas nesse campo, devem ser destacadas as de Mosca e Pareto, responsáveis pela formulação da teoria das elites, a qual teria uma incidência importante com vistas ao melhor entendimento sobre a estratificação do corpo social. Aliada a essa perspectiva, talvez até pelas similaridades de suas posturas políticas, a inestimável contribuição surgida nas hostes liberais contra os excessos intervencionistas do Estado se revelava como um contraponto ao otimismo exagerado dos adeptos de primeira hora, do progresso social. Essa corrente levaria a uma profusão de escolas do pensamento econômico as quais prevaleceram ao longo de todo o Século XX, particularmente a partir da construção da ordem internacional do pós-guerra. Breve, pode-se afirmar que a mudança social ocorrida na sociedade pós-Revolução Industrial favoreceu o surgimento de diversas vertentes ideológicas. Em consequência, o estofo teórico destinado a explicar o comportamento do corpo social se mostraria como uma decorrência natural do olhar crítico da plêiade de pensadores que se debruçou sobre a matéria. Em síntese, as transformações sociais seriam responsáveis por uma profusão de ideologias, teorias e paradigmas que forneceriam a matéria-prima necessária ao impulso das ciências sociais. Das controvérsias sobre o papel do Estado e do mercado no âmbito das novas relações sociais, adveio um rico debate que ressaltaria a divergência entre as classes e a disputa pela riqueza social escassa. A existência de grupos em posições privilegiadas despertaria reações e por isso, se fortaleceu politicamente a partir da maciça adesão surgida a partir das bases do proletário agrupado nas fabricas. A conquista obtida com a instauração da sociedade solidaria reduziram a margem de manobra dos sindicatos uma vez que as forças conservadoras acreditavam estar no seu limite. Por isso, era necessário impedir os avanços da solidariedade vertical sobre os seus valores mais caros. Tudo tinha ido longe demais. A mudança social já havia alterado a paisagem sociopolítica no período pós-Revolução Industrial, tendo favorecido inclusive certo grau de mobilidade e igualdade de oportunidades na passagem de uma estrutura social à outra. No bojo dessa metamorfose, o corpo social foi submetido a novos padrões de comportamento. Nesse momento, todos estavam imbuídos do espírito inaugurador de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 novos tempos e oportunidades na escala social. O consciente coletivo pugnava por uma sociedade melhor, o que seria o desdobramento natural do processo social. Conforme observou Rocher (1968, p. 08), para os pensadores dos séculos XVIII e XIX o homem buscava se liberar do passado opressor e ainda ameaçador. Rosanvallon (1985, p. 07), notou que o desenvolvimento do Estado-providência estava prestes a vencer a velha insegurança e o medo do amanhã. A implicação de todos na sociedade solidaria, não apenas em função dos comportamentos individuais, seria um traço marcante dos efeitos operados sobre o consciente coletivo e decorria, ainda, da materialização da sociedade vertical, onde a redistribuição da riqueza social se constituiria na pedra angular do intervencionismo. Além disso, as novas estruturas sociais foram responsáveis pela mudança de consciência de todos, conforme assinado por Brasseul (2001, p. 121): L’aspiration à la dignité humaine, à la justice sociale, à la fraternité et à légalité, par la partie la plus faible, ignorante, et exploitée de la population est l’aspect les plus frappant de cette époque, aspect qu’on peut comparer aux lumières du siècle précédent, la recherche de la connaissance, de la liberté et de la tolérance. Não obstante a contribuição da mudança social na formação de um consciente coletivo constituído sobre os novos valores democráticos, a luta entre classes foi revigorada. Era latente a distinção entre o proletariado e a burguesia, fato esse agravado pelos novos modos de produção da Revolução Industrial, causador de desequilíbrios no binômio clássico capital/trabalho. Mesmo diante de um processo ainda lento de redistribuição, o operariado se insurgiria com vistas à obtenção de uma maior fatia da riqueza social. Sem dúvida, a elaboração de uma legislação social se impunha como forma de reduzir as misérias próprias das relações sociais criadas pela Revolução Industrial, o que justificaria o intervencionismo do Estado, conforme lecionava Sismondi (LAJUGIE, 1994, p. 29). De imediato, vê-se que a redistribuição seria parte integrante do equilíbrio social das nações, como bem ressaltou Sormann (1984, p. 125). Entretanto, essa afirmativa merece reparos como se verá ao longo desse trabalho. Sem dúvida, a redistribuição favoreceu a coesão social, contudo, na medida autorizada por determinadas classes sociais a fim de assegurar uma relativa paz social e evitar, assim, o acirramento da luta entre as classes. Era a estratégia conduzida pela minoria organizada. Isso posto, a sociedade almejada por todos e corroborada por cientistas sociais do naipe de Durkheim e Comte, ganhava seus contornos. A passagem da sociedade tradicional à sociedade moderna impôs aos indivíduos novos padrões de comportamento próprios de uma sociedade industrial e, por isso, a mudança social estaria relacionada intrinsicamente aos efeitos dos novos modos de produção. A recente paisagem social se constituiria então « em um fato central para a sociologia » (Tremoulinas, 2006, p. 07), permitindo, dessa forma, a abordagem científica dos novos valores e normas da sociedade pós-Revolução Industrial. As formas da justiça social, baseadas na redistribuição e na mobilidade das classes, se constituiriam nos fundamentos da democracia social de Tocqueville, próprio da igualde de oportunidades. Entretanto, Marx pensava de forma diferente. Em seu inconformismo latente, o pensador Para o contestador da unanimidade social dos seus contemporâneos, a mudança social em curso se constituiria em um revigoramento da luta de classes. II – A CRITICA DE MARX SOBRE A MUDANCA SOCIAL SE OPÕE A ABORDAGEM CLASSICA DE DURKHEIM Embora a emergência da forma moderna de sociedade tenha se constituído no principal fundamento do conjunto dos escritos de Durkheim (Giddens, 1972, p. 65), seria Marx quem lançaria uma luz sobre a nova luta de classes que viria no bojo da democracia industrial. Na perspectiva durkheimiana (Donzelot, 1994, p. 85), percebe-se que os fatos que aconteceram por detrás da cena sociopolítica da democracia industrial denotaram a eclosão de uma luta de classes com vistas à apropriação privada da riqueza social apesar de consolidada a ideia de que a liberdade moderna do indivíduo e a manutenção da solidariedade da sociedade caminhariam juntas. Aron (1962, p. 45) ao se referir à construção da sociedade moderna recorreu a Tocqueville para destacar que estas lutas são essencialmente econômicas, havendo uma obsessão pela

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 riqueza, o que justificaria a disputa pela riqueza social encontrada de forma escassa na sociedade. A despeito da unanimidade que se criou em torno do fenômeno da mudança social, Marx notou logo de inicio que os desdobramentos da sociedade pós-Revolução Industrial levaria a um novo conflito de classes, opondo proletariado e burguesia. Este seria o moto contínuo da pregação marxista. Todavia, apesar de a luta de classes ter-se constituído no centro da pregação marxista, Aron (1964, p. 38) notou que em nenhuma obra de Marx há um tratamento sistemático sobre a noção de classes, o que configuraria segundo o sociólogo francês, « [.....] um caso singular no qual o conceito mais importante de uma doutrina permanece relativamente indeterminado ». Não obstante esta constatação, não se pode menosprezar a ideia de que « [...] o marxismo marca uma revolução teórica fundamental » conforme destacado por Bouvier-Ajam, Ibarrola e Pasquarelli (1975, p. 422), ao se referirem ao sistema de ideias da doutrina marxista. Os novos valores e normas da democracia industrial trariam, em realidade, novas formas de alienação e de dominação. As estruturas sociais seriam compostas, inexoravelmente, por uma sociedade de classes em conflito permanente. Se Durkheim apontava para uma solidariedade orgânica e mecânica como princípio integrador do processo social, Marx por sua vez pregava a organização dos trabalhadores, refutando assim a visão de Comte sobre a ordem social baseada no consenso entre os membros da coletividade. Cairiam por terra então as concepções sociopolíticas corretas de Durkheim e Tocqueville? O dilema estabelecido pelos legados de Marx e Durkheim, decorrentes da diferente percepção de ambos das transformações das estruturas sociais na sociedade pós-Revolução Industrial, induziu à tomada de posições não desprovidas de análises apaixonadas e que colocou em campos opostos, diversas gerações. Sobre esse conflito de ideias, Giddens (1972, p. 243) observou que « [….] expressed by Marxists and holds that the works of this subsequent generation of social thinkers represent nothing more than a bourgeois response to Marx ». O sociólogo inglês colocou nesta vala Durkheim e Weber, reforçando com isso a percepção do « politicamente correto » do primeiro sobre os fatos próprios da mudança social. Esse dilema foi confirmado por Aron (1962, p. 37) ao notar que o acirramento do conflito de classes, justamente em função do confronto entre esses intelectuais, o que o levaria a questionar os seus desdobramentos sobre a ordem econômica e social: La lutte de classes est installée au cœur de la sociéété industrielle à cause du conflit fondamental qui oppose les ouvrier et les possesseurs de moyens de production ; à quelle conditions est-il possible de reconstituer une unité dans l’ordre économique et social ? Donzelot(1994, p. 76), ao se referir ao esboço de uma « théorie durkheimienne », enfatizou que «De la naissance de la sociologie comme discipline constituée avec Durkheim, de la mise en évidence par celui-ci d’un plan de consistance spécifique du social – avec les notions de solidarité et d’anomie – on parle classiquement comme d’une étape de la science[...] ». Por outro lado, Giddens(1973, p. 243), ao se referir à contribuição de Durkheim, coloca também Weber nessa perspectiva, ao ressaltar que os sociologistas ocidentais situam Marx na « pre-history of social thougth » e que « [...]the history of sociology proper only begins with the generation of writers to which Durkheim and Weber belonged ». Contudo, para a corrente de sociólogos marxistas, esta seria uma resposta burguesa a Marx. Ora, mesmo diante da incontestável contribuição de Durkheim à nova ciência social que, ao estabelecer os parâmetros da solidariedade como lei constitutiva da sociedade, refletiu de forma correta os anseios e as transformações da sociedade pós-Revolução Industrial, há que se evidenciar a percepção marxista na análise desta sociedade. De forma inegável, a solidariedade se instalara, dando início a um processo de acumulação de riqueza social por parte do Estado, o que não passaria despercebido pelas novas classes. Por isso, Donzelot(1994, p. 77) colocou de um lado os liberais, aliados aos conservadores em decorrência da hostilidade comum em relação ao intervencionismo estatal, e do outro, os marxistas com tendências revolucionáias. Para estes, o Estado seria um aparelho de dominação de uma classe sobre a outra e que somente por meio da apropriação do poder poderiam reorganizar o conjunto da sociedade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Marx ressaltou a nova luta de classes e que seria iminente a organização do proletariado com vistas a neutralizar as forças desencadeadas pelo capital. De fato, a reunião dos operários em fabricas permitiu uma maior unidade politica a qual foi devidamente catalisada nos movimentos sindicais. Esse processo, aliado à mobilidade das classes, em um sistema onde já havia ocorrido a intervenção do Estado, notadamente no campo da redistribuição da riqueza social reacenderia a luta das classes. Assis (2010) confirma as percepções acima e acrescenta ainda que « A história da sociedade capitalista envolve, absolutamente, uma decisiva luta de classes." Enquanto os comerciantes organizam-se através do Estado Liberal, os proletários constituem-se em sindicatos e associações profissionais». O progresso social em curso era incompatível com os valores de determinadas grupos, os quais se organizaram com o intuito de conter os avanços do intervencionismo estatal. Aliás, Donzelot (1994, p. 74) ressaltou o temor das classes situadas nos patamares mais altos da escala social ao reparar que « La hantise du socialisme d’État dans les classes aisées se nourit de cette absence de frein apporté au pouvoir de l’État par sa nouvelle légitimité politique ». Todavia, tinham também interesse na repartição da riqueza social, embora negassem de forma veemente. Sem dúvida, os liberais contestavam a democracia industrial, o que refletia a nova reacomodação das estruturas sociais e o litígio instaurado. Entretanto, de forma velada, agiam no sentido de influenciar a redistribuição da riqueza social. Por outro lado, uma teoria sobre a divisão das classes em governantes e governados começava a ganhar corpo ao final do Século XIX, inaugurando assim a teoria das elites. Mosca, Pareto e Mills, a partir do consenso de que em toda sociedade haverá sempre uma minoria organizada que controla uma maioria desorganizada, passaram a explicar a dinâmica do corpo social, o que promoveria uma circulação até mesmo no seio das elites, confirmando os processos de alternância de poder. Contudo, Tocqueville havia idealizado uma dinâmica social calcada na igualdade de oportunidades, essa situação favoreceria o esboço de uma sociedade democrática firmada em um Estado social e não politico. Tudo era permitido pelo progresso social. Assim, se de um lado ocorria um movimento de classes, do outro se trabalhava no sentido de identificar as estruturas dessas classes na forma disposta pelos sociólogos italianos ocupados com a teoria das elites. Foram juntados, portanto, os ingredientes necessários ao acirramento da disputa entre as classes decorrentes do processo da mudança social. Haveria lugar para a solidariedade esboçada por Durkheim? A coercibilidade do solidarismo social, responsável pela acumulação de parte da riqueza social pelo Estado, agravaria a disputa pela sua obtenção por parte de setores mais organizados da sociedade. III – A REDISTRIBUICÃO DA RIQUEZA SOCIAL CONTRIBUIU PARA O ACIRRAMENTO DA LUTA DE CLASSES PREVISTO POR MARX De forma inquestionável, infere-se que da mudança social sairia uma nova estrutura destinada a sustentar a grande sociedade solidaria. A participação de todos no processo social foi responsável pela emergência do Estado intervencionista e da progressividade do tributo que se constituiria na principal fonte de redistribuição da riqueza social. Conforme acentuou Rosanvallon (2011, 228), a progressividade a partir daí estaria relacionada à redistribuição entre categorias sociais. Pode-se afirmar sem receios então que esta perspectiva seria responsável pelo litígio social instaurado desde então em face do ambiente da disputa pela obtenção dos recursos acumulados pelo Estado. Mesmo assim, a partir desses meios seria possível implementar a igualdade de condições idealizada por Tocqueville e capaz de permitir a mobilidade social. Contudo, a redistribuição vertical da riqueza social não se daria de forma pacífica, o que confirmou o acirramento da luta de classes anunciado por Marx. Estabelecidas as bases da grande sociedade solidaria, a qual teve em Durkheim um dos seus principais inspiradores por força da sua obra sobre o método sociológico, a redistribuição vertical se constituiria em um dos cânones da justiça social. Embora a redistribuição fosse uma forma de implicar todos no processo social, pode-se verificar que nos desdobramentos da ação do Estado intervencionista, conflitos ideológicos de toda ordem ditaram o tom do processo social. Em realidade, a disputa pela escassa riqueza social se constituiria no ponto de divergência entre as classes, levando ao florescimento de diversas ideologias voltadas para a questão. Portanto, o que

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 seria o amálgama da coesão social se consistiria justamente na pedra angular da discórdia que se instaurava a partir daquele momento. Esse contexto marcou a nova luta de classes. Conforme asseverado por Walras (1952, p. 38), « desde que existe a riqueza social e homens em sociedade, a questão sobre a repartição da riqueza social entre os homens em sociedade é debatida ». Assim, o ponto da discórdia social, no contexto aqui abordado, deve ser visto não pela intervenção do Estado no mercado, onde o sacrifício fiscal feriria a noção de propriedade mas a disputa pela riqueza social. A questão sobre o que o Estado poderia oferecer reforçou o discurso de Marx no sentido de que esse mesmo Estado seria uma grande ficção. A riqueza social auferida parcialmente pelo Estado tornar-se-ia, em consequência, o objeto de cobiça das novas classes sociais. Não apenas os movimentos sociais mas também a minoria organizada, composta pelo segmento político e pela burguesia, passariam a influenciar a modelagem dos sistemas jurídicos com o intuito de obter uma maior participação na redistribuição em curso. Como asseverado, a democracia Industrial estabeleceu uma nova luta de classes tendo permitido a circulação entre as classes. Por um lado, a minoria organizada, pelo outro, as lutas sociais patrocinadas pelo incipiente proletariado criado pelos novos modos de produção, todos envolvidos pela mudança social. A divisão social do trabalho segundo a formulação de Durkheim, também contribuiria para a percepção a partir da qual a riqueza social seria redistribuída de forma justa e equânime. Nesse aspecto, tem-se mais uma divergência entre a visão de Marx e Durkheim acerca da mudança social. A redistribuição equânime jamais aconteceria e tal distorção ainda se arrasta pois sempre foi e será submetida à vontade dos grupos dominantes existentes em todas as sociedades, tudo como haviam previsto os formuladores da teoria das elites. Embora para aqueles que atuem no campo da sociologia fiscal a redistribuição continua sendo um notável instrumento de coesão social, e sem dúvida o é, a incidência dos setores organizados da sociedade, composto por uma elite conservadora, tem tido uma proeminência sobre as decisões da política fiscal e monetária. Acrescente-se de passagem, o domínio exercido por este segmento social sobre a elaboração do aparato legal que rege a sociedade. Nesse aspecto, Meynaud (1960, p. 05), em irreparável observação sobre a atuação de grupos de pressão junto ao Estado definiu de forma lapidar que estes atuam « com vistas a tornar as decisões dos poderes públicos de acordo com os interesses ou ideias de determinada categoria social ». Todavia, essa observação não se restringe ao poder de grupos de pressão. Sem dúvidas, tal assertiva pode ser aplicada também aos movimentos sociais. IV - A ATUAL ESTRUTURA JURÍDICO-TRIBUTÁRIA DA REDISTRIBUICÃO DA RIQUEZA SOCIAL ASSEGURA O STATUS QUO DAS CLASSES DOMINANTES A redistribuição que poderia ser considerado como o meio excepcional de coesão social dentro dos ideais da grande sociedade solidária esboçada no momento da passagem do Estado mínimo para o Estado intervencionista, ou melhor, do liberalismo para a socialdemocracia, se tornou um instrumento de manipulação de determinadas classes com vistas à preservação do status sociopolítico. Nos albores do Século XXI pode-se constar ainda que a atuação do braço social do Estado se dá na medida autorizada pela minoria organizada. Dessa forma, a condução do processo democrático ocorre de forma a dar impressão a todos de uma falsa liberdade, além de reafirmar aquilo que foi pregado por Hayek em sua antológica obra « O caminho da servidão », onde foi firmada a noção de que um dia todos estariam sob o manto protetor do Estado, inibindo assim a livre iniciativa. Todavia, esse manto protetor é mantido sob o controle da minoria organizada que o utiliza para justificar o gozo dos seus privilégios. A renúncia de receita por parte do Estado, em benefício de determinados segmentos sejam eles sociais ou empresariais, se consiste na materialização da disputa de classes. Depreende-se, portanto, que esta renúncia permite o acesso de grupos de interesse à riqueza social acumulada pelo Estado, o que promove a resulta na apropriação privada desta riqueza. Com efeito, «[...] les institutions sont soutenues et mises au service de telles ou telles classes dominantes »(BOUVIER-AJAM, IBARROLA, PASQUARELLI, 1975, p. 426). Em consequencia, grupos organizados influenciam o processo democrático por meio do financiamento de campanhas políticas e assim, organizam bancadas legislativas que possam agender aos seus interesses. O processo de barganha leva à necessidade de se expor um aparente modelo social

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 redistribuidor destinado a manter a paz social, dando a todos a impressão de se conviver em plenitude democrática e em um mundo caracterizado pela justiça redistributiva. Seria então um paradoxo o fato de que o Estado redistribui por meio de seus programas sociais, redistribui parte da riqueza social, pondo fim então à disputa de classe, criando uma aparente paz social ou a apropriação privada da riqueza social prosseguiria de forma velada? A realidade dos números dos privilégios fiscais concedidos a diferentes segmentos, notadamente nas economias desenvolvidas e em transição, evidencia mais uma vez a persistência da disputa pela riqueza social. Por isso, diversos estudos sobre desigualdades tem evidenciado que, apesar dos « esforços » dos programas sociais de redistribuição de renda e de outras inciativas tomadas em diversos países, verifica-se a perenidade das diferenças sociais. Ora, a resposta é simples. A condução dos processos sociais ocorre sob a vigilância permanente da elite, o que levaria à conclusão precipitada de que seria esta quem financiaria a redistribuição em razão direta da progressividade do tributo. Trata-se, em realidade, de um equívoco. Uma releitura da teoria do tributo leva inexoravelmente à conclusão de que o ônus tributário recai sobre quem não tem como evitá-lo. Nesses tempos de globalização, sobretudo, onde a mobilidade da riqueza e o nomadismo de certas categorias de contribuinte justificam esse pressuposto. A sofisticada engenharia tributária que tem sido colocada à disposição de categorias privilegiadas de contribuintes concorre para a geração de externalidades negativas advindas das múltiplas possibilidades de evasão fiscal legal. De fato, o perfil atual dos sistemas tributários por si só confirma essa afirmativa. De natureza regressiva e dando ênfase às modalidades tributárias voltadas para o consumo e a renda assalariada, o aparato legal-tributário tem sido magnânimo para com a tributação do capital e de partes expressivas do patrimônio. Diante deste contexto, desponta uma constatação que, por mais óbvia que seja, merece ser algumas linhas. O sistema jurídico-legal promove uma « redistribuição ao inverso, dos pobres para os ricos », conforme notou Tremoulinas (2011, p. 65). Trata-se de uma inversão lógica da solidariedade estimada por Durkheim. Por conseguinte, se o Estado renuncia às receitas, essa prática se constitui em uma forma de redistribuição da riqueza social geradora de externalidades negativas responsáveis por parte do déficit social conhecido nos dias atuais. A lógica predominante extrapola a simples análise feita por diversos segmentos acadêmicos. Do ponto de vista legal, a situação se encontra irretocável. Contudo, se a análise for realizada a partir da ótica da legitimidade, verificar-se-ia de imediato que tudo se trata de uma ficção. As classes menos favorecidas, por suportarem o ônus tributário sem qualquer possiblidade de fuga, elas mesmos alimentam as fontes que lhe garantem o acesso às políticas sociais. Nesse aspecto, referindo-se ao exemplo brasileiro, Salvador (2012, p. 81), notou que « Os efeitos redistributivos buscados pelas políticas sociais acabam sendo limitados pela forma como se dá o financiamento tributário regressivo do orçamento público brasileiro). Dessa forma, não haveria qualquer redistribuição da riqueza social ou talvez essa fosse apenas um arremedo do que se divulga. Há, em realidade, um processo de entesouramento, ou melhor, uma apropriação privada da riqueza social. O Estado tem por missão promover a arbitragem de conflitos como ocorreu por ocasião do desequilíbrio capital/trabalho durante a Revolução Industrial. Entretanto, na definição das estratégias de politicas públicas voltada para o cumprimento da missão do Estado, tudo como previsto na teoria normativa, tem havido uma ingerência significativa dos grupos de pressão. Como bem observou Bozio e Grenet (2010, p. 31), « Os homens políticos não são os únicos a orientar a intervenção pública de forma a satisfazer seus próprios interesses." Existe ainda uma miríade de atores que buscam modificar a ação do Estado para obter vantagens pessoais. Os grupos de pressão, ou lobbies, têm por objetivo influenciar os homens políticos para que esses ajam em seu favor. CONCLUSÃO Não obstante os esforços dirigidos à construção de uma nova sociedade e os esforços dos adeptos da nova ciência social que procuravam explicar as transformações em curso, dando início à sociologia, o conflito de classes permaneceu ainda de forma mais acirrada. A esperança por democracia e liberdade foi atingida de forma parcial uma vez que em toda sociedade sempre

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 haverá uma minoria organizada que controlará a maioria desorganizada. Durkheim estabeleceu os seus valores sociais baseados na solidariedade e na divisão do trabalho. Sem dúvida, ao se juntar a Tocqueville, esboçaram os parâmetros de uma sociedade melhor. Os contornos da sociedade solidária, calcados na redistribuição da riqueza social e na mobilidade das classes, se constituíam em uma utopia mesmo em face dos métodos científicos de investigação social utilizado por eles. Contudo, seria Marx, que de forma pragmática, enxergaria uma nova disputa de classes em face da mudança social. Em consequência, o movimento da sociedade pósRevolução Industrial produzia os seus paradoxos. Pelo o que se verificou durante o presente trabalho, Marx ainda continua a ter razão. Com efeito, a mudança social ocorrida na sociedade pós-Revolução Industrial levou a uma nova luta de classes, a qual foi acirrada em decorrência da disputa pela riqueza social. Nada mudou. A disputa de classes pela riqueza social apenas se adaptou aos tempos modernos e explica a fricção social decorrente da disputa política com vistas ao controle do processo de redistribuição. REFERÊNCIAS ARON, Raymond. Dix-huit leçons sur la société industrielle. Paris: Galimard, 1962. (Collection Idées). ARON, Raymond. La lutte de classes – nouvelles leçons sur les sociétés industrielles. Paris: Galimard, 1964. (Collection Idées). BOUVIER-AJAM, Maurice, IBARROLA, Jésus, PASQUARELLI, Nicolas. Dictionnaire économique et social. Paris : Éditions Sociales, 1975. ASSIS, Marselha Silvério de. Direito, Estado e sociedade sob a óptica de Karl Marx. Disponível em . Acessado em 20 de abril de 2014. BOZIO, Antoine, Julien GRENET. Economie des politiques publiques. Paris: La Découverte, 2010. BRASSEUL, Jacques. Petite histoire des faits économiques et sociaux. Paris: Armand Colin, 2001. DONZELOT, Jacques. L’invention du social – Essai sur le déclin des passions politiques. Paris: Éditions du Seuil, 1994. GIDDENS, Anthony. Capitalism & modern social theory : an analysis of the writings of Marx, Durkheim and Max Weber. Cambridge: Cambridge University Press, 1971. LAJUGIE, Joseph. Les doctrines économiques. 15º ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1994. MEYNAUD, Jean. (1960). Les groupes de pression. Paris: Presses Universitaires de France. ROCHER, Guy. Le changement social. Paris: Editions HMN, 1968. ROSANVALLON, Pierre. La société des égaux. Paris: Editions du Seuil, 2011. ROSANVALLON, Pierre. La nouvelle question sociale – repenser l’Etat-providence. Paris: Editions du Seuil, 1985. SALVADOR, Evilásio. A injustiça fiscal no financiamento das políticas sociais. In: CATTANI, Antonio David, OLIVEIRA, Marcelo Ramos. A sociedade justa e seus inimigos. Porto Algre, 2012, pp. 81/95. TREMOULINAS, Alexis. Comprendre la fiscalité. Paris: Bréal, 2011. TREMOULINAS, Alexis. Sociologie des changements sociaux. Paris: Editions La Découverte, 2006. WALRAS, Léon. Éléments d’économie politique. Paris: Librairie Général de Droit et de Jurisprudence, 1952.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O “ESTADO SOCIAL”, SEUS AFAZERES DOMÉSTICOS E OS INSTRUMENTOS JUDICIAIS DE CONTROLE1 Marcelo Barros Jobim2

RESUMO: O texto temo como escopo a análise das deficiências do denominado “Estado social” no Brasil, discutindo o papel do Judiciário nesse contexto. Apresenta a tese de que, mesmo um poder definido como “contramajoritário” tem relevância democrática quando o assunto é o controle das omissões do poder público. PALAVRAS-CHAVE: Estado social. Omissões. Judiciário.

Introdução A cada vez maior presença do Estado representa, na pertinente observação de Ivo Dantas, “uma segunda fase na evolução dos direitos individuais que passa de uma visão clássica absenteísta, para uma visão positivista, de ação” (DANTAS, 2007, p. 51). Essa presença estatal, típica do constitucionalismo contemporâneo, inaugura uma integração entre o econômico e a “Ideologia do Direito Constitucional enquanto processo” (DANTAS, ibidem – itálicos do autor). Isso significa dizer que o Direito Constitucional não vê na Constituição um mero objeto de aplicação, mas de concretização, o que, em razão da dimensão programática (e pragmática) do constitucionalismo social, implica um verdadeiro processo de conformação político-jurídica. Nesse contexto, a posição dos destinatários das decisões políticas é de uma expectativa quanto à atuação do Estado, de quem se espera que cumpra seus deveres e funções, utilizando-se do poder como um instrumento para se atingir os respectivos fins, e não necessariamente como um fim em si mesmo. Por essa razão, as inações estatais vão ser encaradas sempre sobre uma perspectiva negativa, sempre como um desvalor político, demonstrando os vícios institucionais na sua forma mais clara: a omissão. Para que se entenda melhor o sentido negativo de omissão, consulte-se, mesmo, o dicionário, onde se pode encontrar a seguinte definição a partir do correspondente verbo no infinitivo: “Omitir v.t.d. 1. Deixar de fazer, dizer ou prescrever; não mencionar: omitir um fato. 2. 1

Este texto faz parte do segundo capítulo do livro Existem omissões constitucionais? – Um ensaio crítico sobre a relevância da função jurisdicional em face das omissões do poder público. Maceió: Viva, 2013. 2 Advogado em Alagoas. Mestre em Direito Público pela UFPE. Professor de Teoria da Constituição e de Direito Constitucional do Centro Universitário CESMAC. Autor do livro Existem omissões constitucionais? – Um ensaio crítico sobre a relevância da função jurisdicional em face das omissões do poder público. Maceió: Viva, 2013. Site pessoal: http://espirito-politico.webnode.com/. Assuntos de interesse: Filosofia do Direito, Teoria da Constituição, Direito Constitucional e Ciência Política. Currículo lattes.cnpq.br/031771715409122

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Descuidar-se de fazer: Não omitiu nenhuma providência. 3. Deixar em esquecimento. 4. Não agir quando se esperaria que o fizesse” (FERREIRA, 2008, p.592). Assim, como bem observado por Nelson Saldanha, embora passível de diversas acepções, o termo omissão, principalmente quando relacionado às prementes atividades estatais, funciona num sentido específico: “[...] à ideia de omitir-se, ou não fazer, agrega-se outro componente. Ou seja, trata-se de deixar de fazer algo devido, algo constitucionalmente prefigurado como exigível” (SALDANHA, 2011).

Visando à superação do formalismo do Estado liberal, o Estado social promoveu a substituição de uma concepção neutra pela de um intervencionismo estatal, o que resultou, como já salientado, não só em uma suspeita concepção de “capitalismo moderado”, mas também em alguns modelos políticos totalitários. Os totalitarismos stalinista e hitlerista, nas precisas análises, como a de Hannah Arendt (Origens do totalitarismo) e a de Eric Hobsbawm (A era dos extremos), proporcionaram um encontro entre os extremismos tanto de esquerda quanto de direita na curva realizada pelo peso dos opostos. Em reação principalmente a estes últimos, começaram a surgir no pensamento político os discursos humanista e solidarista, o que se refletiu em teorias jurídicas de feições menos formais e mais próximas da realidade social. Assim, a perspectiva de um Estado democrático e pluralista, a partir de uma visão substancial da igualdade e da solidariedade, exige uma reformulação dos conceitos clássicos do positivismo jurídico. A abordagem tradicional sobre a passagem do Estado liberal para um modelo de Estado dito “social” geralmente identifica alguns contrastes, não só com relação ao papel do Estado frente à ordem econômica e social, mas também com relação à própria sociedade frente aos problemas surgidos em seu meio. Os ideais de igualdade e liberdade, variando, respectivamente, nos seus sentidos formal e material, bem como de indiferença e de participação política, delinearam uma posterior e definitiva compreensão da necessidade de participação de todos para a consecução de objetivos comuns. Neste ponto, é importante destacar que a participação da sociedade, representada num conceito de responsabilidade social, não retira, por óbvio, a noção de dever do Estado em cumprir suas metas políticas. O esforço de realização da Constituição O constitucionalismo social se caracteriza, em termos normativos, pela inclusão nas Constituições de normas ditas programáticas relacionadas principalmente aos direitos sociais. Tais normas, na maioria das vezes, se apresentam na forma de princípios, cuja abrangência e maior grau de generalidade, fizeram com que, no início, não fossem consideradas como normas propriamente jurídicas. Atrelado a uma perspectiva tradicional do Direito, de feição privatista e patrimonialista, o pensamento jurídico, em meados do século XX, ainda não conseguia de desvencilhar de uma ideia de direito positivo vinculada a regras jurídicas com uma definição um tanto quanto precisa de seu suporte fático.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Mas ninguém pode deixar de reconhecer que foi o surgimento dos princípios na sistemática constitucional que fez o Direito Constitucional dar uma verdadeira guinada epistemológica. A combinação de elementos jurídicos e políticos, a positivação de valores humanos, o estabelecimento de metas para o Estado etc., como características de uma nova ordem, de base constitucional, impulsionaram a ciência jurídica para descoberta de métodos cada vez mais arrojados de interpretação e aplicação do direito. Em que pesem as discordâncias de boa parte da doutrina com a intromissão dos princípios na sistemática jurídica, muitas delas pertinentes, em face dos abusos mesmos provocados por um modismo principiológico, o que se observa é que a aplicação dos valores e objetivos constitucionais não parece prescindir de uma análise do alcance dos princípios. Mesmo numa crítica ao que chama de “fascínio pelos princípios constitucionais e a ponderação entre eles”, Marcelo Neves observa que mesmo juristas que não aceitam ser rotulados de “neoconstitucionalistas” têm destacado o papel dos princípios e do sopesamento (NEVES, 2013, p. 175). É que o objetivo principal de se interpretar uma Constituição é buscar o máximo de sua efetividade. A maioria das normas constitucionais não pode ser vista pela óptica de um formalismo que limite o seu campo de compreensão, o que pode vir a comprometer os esforços de uma realização eficaz da Constituição. Diz bem Canotilho (1998, p. 1126) que realizar a Constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas constitucionais, uma vez que toda Constituição tem uma pretensão de eficácia. Mais ainda quando essas normas trazem matérias consideradas imutáveis pelo Poder Constituinte ou que exigem a adoção de medidas que instrumentalizem essa eficácia. Para uma melhor compreensão do problema, pode-se fazer uma distinção entre “realizar” e “concretizar” a Constituição. A primeira expressão indica a noção proposta pelo jurista português, acima mencionada, de adotar providências que tornem efetivas ou juridicamente eficazes as normas constitucionais. Nesse caso, é de se reconhecer que os preceitos da Constituição estão carentes tanto de complementação legal quanto administrativa, sendo exigível do poder competente a adoção das providências necessárias. A segunda expressão implica a ideia de aplicação da Constituição naquilo que ela já traz como possibilidade jurídica de eficácia, ou seja, quando as matérias ali previstas possuem em si mesmas a força de produzir efeitos. E mais: é importante observar que, dentre estas normas com possibilidade jurídica de eficácia, estão as normas constitucionais que receberam as devidas complementações por meio das medidas prontamente adotadas pelo poder público. Uma vez realizada a Constituição por meio, por exemplo, de uma lei elaborada pelo Legislativo que complementa o sentido da norma constitucional, é vez agora de concretizar a respectiva matéria. Veja que a ideia de concretização relacionada à aplicação da Constituição envolve o nível de abstração e a alta carga axiológica de suas normas, que se apresentam na forma de princípios e regras. No âmbito de uma eficácia jurídica reforçada, no plano da normatividade constitucional, os direitos fundamentais possuem uma posição privilegiada frente às demais normas constitucionais, pois se alargam os sentidos da norma, buscando não só a harmonização

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 com os valores do sistema, como também a realização fática dos preceitos e ideais nela descobertos.

A superação de um modelo de Estado Pois bem. Como dito linhas atrás, a responsabilidade social, ideia que pode, inclusive, ser extraída do princípio constitucional da solidariedade, não exime o Estado de cumprir seus deveres, principalmente na sistemática de um constitucionalismo social. É aqui que surge a necessidade de se observar a relação entre poderes, funções e deveres estatais. Se a desconcentração do poder político foi a marca registrada do surgimento do Estado de Direito, a transformação desse poder em meras funções ou mesmo deveres pode ser nitidamente observada a partir do reconhecimento da necessidade de o Estado cumprir determinadas tarefas e alcançar certos objetivos.

Tanto essas tarefas quanto esses objetivos vêm agora previstos na Constituição, por meio, principalmente, de normas-princípios que delineiam toda a dimensão social do processo político. A injunção do Estado, ou do poder político, a uma perspectiva intervencionista e provedora, no sentido de realizar os anseios de uma sociedade plural, o que sempre caracterizou uma ideologia socialista, é que justifica a expressão, um tanto quanto inapropriada, “Estado social”. Paradoxalmente, a perspectiva marxista de superação do Estado para a consolidação de um socialismo futuro vem sendo desafiada por seu extremo oposto, ou seja, cada vez mais Estado que, agora, em contraste com sua versão absenteísta liberal, se apresenta como um aliado poderoso das questões sociais. Não que esse pretenso “socialismo de Estado” se equipare às teses de Marx. Longe disso. Mas o que se impõe nesta fase do constitucionalismo contemporâneo é não exatamente a superação do Estado, mas, sim, ante o reconhecimento da irreversibilidade do fenômeno, a busca de mecanismos que incrementem as metas estatais por meio de uma maior participação popular e de uma revisão do conceito de “poderes” aplicado ao universo político democrático. O que se questiona é se a superação do Estado pelas vias revolucionárias, como a proposta por um marxismo mais ortodoxo, iria conseguir superar também os deslizes éticos próprios da natureza humana. Aquilo que se convencionou chamar de “pessimismo antropológico” está expresso na precisa e sempre atual leitura de Montesquieu:

A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude precisa de limites. (MONTESQUIEU, 1996, p. 166).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A lição de Montesquieu, no sentido de que “tudo estaria perdido se o mesmo homem exercesse os três poderes” (MONTESQUIEU, 1996, p. 168), não pode ser desconsiderada. Ela sugere que todos os problemas do poder político têm origem no homem e sua tendência ao abuso do poder, o que lança a discussão para o terreno árido das teorias psicológicas, ou mesmo antropológicas, que eventualmente possam trazer subsídios para a compreensão do ato de governar. Assim, quando o pensamento marxista parte da tese de que a comunidade solidária primitiva, onde não existia a ideia de propriedade privada, foi suplantada pelo egoísmo capitalista, que é a base do Estado moderno, parece esquecer as fases pré-capitalistas que, mesmo muito além de uma comunidade primitiva, já apresentava a noção de certo “egoísmo político”. Basta citar os senhores feudais da Idade Média, a nobreza indiferente das monarquias absolutas etc. O que se quer dizer é que o capitalismo não criou o egoísmo, embora tenha proporcionado um campo de manifestação mais evidente ante as investidas em busca do lucro pelo lucro, ou a exploração do homem pelo homem, o individualismo e até o consumismo estéril da época contemporânea. Na experiência brasileira, e recordando mais uma vez Faoro, é preciso observar que sempre o patrimonialismo estatal esteve incentivando o setor especulativo da economia, predominantemente voltado ao lucro como jogo e aventura. Sempre, este nosso patrimonialismo esteve interessado no desenvolvimento econômico sob o comando político, satisfazendo imperativos ditados pelo quadro administrativo, com seu componente civil e militar (FAORO, 2000, p. 363 e 364). Mas, quando se trata especificamente das críticas marxistas ao “Estado burguês capitalista”, o que se observa, algumas vezes, é que elas tendem a apresentar elementos que não demonstram com clareza como esses vícios seriam superados com a mera extinção do Estado, ideia que corre o risco de se tornar uma espécie de dogma ideológico, olvidando a natureza dialética do pensamento desenvolvido, de forma insuperável, pelo próprio filósofo e economista alemão. Uma questão difícil de resolver é se o sistema de controle adotado num modelo socialista, inspirado numa leitura talvez apressada de Marx, após uma eventual extinção do Estado, seria diferente do modelo político até então existente, e como, ainda, esse modelo suplantaria os deslizes éticos da classe dirigente e mesmo dos membros da comunidade. Na verdade, as teses de Marx devem ser encaradas mais pelo seu preciso olhar crítico sobre o processo político, o que é diametralmente oposto a dogmatismos. Em sua Carta a Arnold Ruge, Marx mostra explicitamente que sua ideia era no sentido de uma “reforma da consciência”, mas sem qualquer espírito doutrinário:

Nada nos impede, portanto, de vincular nossa crítica à crítica da política, ao ato de tomar partido na política, ou seja, às lutas reais, e de identificar-se com elas. Nesse caso, não vamos ao encontro do mundo de modo doutrinário com um novo princípio: “Aqui está a verdade, todos de joelhos!” Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 princípios do mundo. Não dizemos a ele: “Deixa de lado essas tuas batalhas, pois é tudo bobagem; nós é que proferiremos o verdadeiro mote para a luta”. Nós apenas lhe mostramos o porquê de ele estar lutando, e a consciência é algo de que ele terá de apropriar-se, mesmo que não queira (MARX, 2010, p. 72). Da citação acima, pode-se sugerir que Marx não criou o marxismo, não pelo menos o que este se tornou na pena de algumas mentes mais “inovadoras”. Na perspectiva de um marxismo dogmático, a superação do Estado e a vinda do Reino se confundem numa lógica abstrata que combina ideologia com utopia, comprometendo o desenvolvimento de novos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo. Na atualidade, dentre as “lutas reais” com as quais devemos nos identificar, como sugere Marx, está a luta pela consolidação de um Estado legítimo, onde a legitimidade se caracteriza não apenas pelo respaldo popular do poder político, mas também pela participação ativa da sociedade nas várias formas de decisão de caráter geral. Como esboçado mais acima, o que se impõe nesta fase do constitucionalismo contemporâneo, ante o reconhecimento da irreversibilidade do fenômeno da presença cada vez maior do Estado, é a busca de mecanismos que incrementem as metas estatais, num esforço de torná-las não só legítimas, mas, sobretudo, exequíveis. O que se sugere é uma maior participação popular e uma revisão do conceito de “poderes” na perspectiva de um Estado constitucional assoberbado de afazeres domésticos, numa sociedade pluralista e, acima de tudo, carente, como a brasileira.

A “superação” dos poderes

Talvez a melhor releitura da ideia de “separação dos poderes”, típica do Estado de Direito liberal, atualizando-a para a realidade do Estado (social) constitucional, deva partir da tese elaborada por Karl Loewenstein. Para o constitucionalista alemão, a revisão do conceito deve iniciar com a substituição da expressão separação dos poderes por separação das funções do Estado, identificando um critério funcional para a organização do poder estatal. Transcreve-se abaixo um trecho da importante obra de Loewenstein, de grande interesse para o presente trabalho, e que traz uma perspectiva bastante discutida, embora muitas vezes não fielmente creditada ao seu autor:

Lo que en realidad significa la así llamada “separación de poderes” no es, ni más ni menos, que el reconocimiento de que por una parte el Estado tiene que cumplir determinadas funciones – el problema técnico de la división del trabajo – y que, por otra, los destinatarios del poder salen beneficiados si estas funciones son realizadas por diferentes órganos: la libertad es el telos ideológico de la teoría de la separación de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 poderes. La separación de poderes no es sino la forma clásica de expresar la necesidad de distribuir y controlar respectivamente el ejercicio del poder político. Lo que corrientemente, aunque erróneamente, se suele designar como la separación de los poderes estatales, es en realidad la distribución de determinadas funciones estatales a diferentes órganos del Estado. El concepto de “poderes”, pese a lo profundamente enraizado que está, debe ser entendido en este contexto de una manera meramente figurativa. En la siguiente exposición se preferirá la expresión “separación de funciones” a la “separación de poderes” (LOEWENSTEIN, 1979, p. 55 – negritos nossos).

A noção de que o conceito de “poderes” deve ser entendido de uma maneira “meramente figurativa” parece combinar com a perspectiva do processo constitucional como uma ficção jurídica, nas lições de Serra Rad, citado por Ivo Dantas, uma vez que “todas manifestaciones especialmente de los órganos constitucionales, son manifestaciones de um único, em esencia inseparable, poder del Estado” (DANTAS, 2010, p. 60). A ideia de processo constitucional como ficção jurídica parte do pressuposto de que “não é possível um conflito do Estado consigo mesmo”, o que leva ao entendimento de que o exercício da função jurisdicional em matéria que envolve a aplicação da Constituição nada mais é do que um mero efeito instrumental referente à atuação do próprio Estado em uma de suas respectivas manifestações. Essa atuação ocorre como se existissem diversos titulares com direitos próprios e como se estas “partes” estivessem frente ao Estado enquanto titular da jurisdição, “pero en realidad es la única persona jurídica Estado y el único poder del Estado que demanda, es demandada y juzga” (Serra Rad apud DANTAS, idem). Essa múltipla face do Estado não significa que exista mais de um poder, muito menos que exista mais de um Estado numa mesma organização política, o que seria uma aberração teórica, mas apenas representa um mecanismo de ordenação das atribuições do poder político em um modelo democrático, com pretensões de legitimidade. O modelo clássico de separação dos poderes, inspirado em Montesquieu, já não se ajusta à realidade atual, pois na configuração do processo político em um Estado constitucional, do qual se exigem prestações positivas, nem há separação nem há poderes. Não há separação, pois a relação entre os órgãos que exercem os deveres políticos é de colaboração (SILVA, 2007, p. 109), implicando uma combinação entre independência e harmonia entre eles. Não há poderes, pois, na esteira do pensamento de Loewenstein, a ordenação do poder político, em sua unidade, se dá pela distribuição de determinadas funções estatais a diferentes órgãos do Estado. A primeira concepção, representada no conceito de separação, teve inicialmente um papel relevante de desconcentração do poder político, em oposição ao modelo do denominado Ancien Régime que se caracterizava não só pela concentração do poder nas mãos de um

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 monarca absoluto, como também pela personificação deste poder na figura do soberano3. Entretanto, em Estados ainda presos a uma vertente patrimonialista de poder como o Brasil, essa ideia de “separação” resultou hoje na construção de suntuosas fortalezas institucionais, onde a ideia de “poder” se cristaliza em cada um dos órgãos encarregados das funções estatais. Essas verdadeiras trincheiras, travestidas de poderes políticos, podem ser observadas pela forma algumas vezes hostis na relação entre as instituições ou, e o que é mais grave, pela completa falta de sintonia entre as funções estatais. Em matéria de política criminal, por exemplo, os “poderes” Executivo e Judiciário atuam como se vivessem em mundos apartados: de um lado, as decisões judiciais determinando medidas privativas de liberdade, cuja demanda atropela, de outro lado, os órgãos administrativos encarregados de executar e gerenciar tais medidas. Resultado: uma superlotação carcerária que transforma os presídios brasileiros em verdadeiros depósitos de seres humanos, pessoas que não foram incluídas no sistema de políticas sociais, inexistentes de fato, e terminaram colhidas pelo sistema repressivo. Uma forma grotesca de marginalização oficial que veio acrescer-se ao já preocupante processo de marginalização social, causado pelas crônicas omissões do poder público. A perspectiva ativa (e proativa) do Estado constitucional atual exige a colaboração entre os órgãos políticos para uma maior otimização quando do exercício de suas respectivas funções, todas elas, em última análise, provenientes de uma mesma fonte de poder legítimo, objetivada na Constituição e subjetivada na soberania popular. Por outro lado, e quanto à segunda concepção, a ideia de poderes associada a cada um dos órgãos encarregados da função política, cria uma autoimagem aristocrática ou elitista dos representantes da sociedade. Essa representação, seja por meio de escolha pelo voto, seja por nomeação, tem de ser encarada sempre sob o prisma democrático, devendo ser vista com reservas a tese de que o aspecto “contramajoritário” inerente ao processo de investidura de membros de tribunais, por exemplo, comprometeria a legitimidade democrática destes órgãos (BARROSO, 2009, p. 384). Em todo caso, se o processo segue os critérios estabelecidos constitucionalmente, a forma de investidura é democrática, e a função exercida sempre estará condicionada à titularidade do poder político definida na figura normativa do “todo poder emana do povo”.

Muito além de um direito de escolher representantes Como bem observado por Luís Roberto Barroso, expressões concretas da atuação da função judicial no Brasil já têm sido objeto de debate mais profundo nos últimos anos, a exemplo do próprio controle de constitucionalidade e a possibilidade de invalidação de leis e atos

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Atente-se para o fato de que soberano não era exatamente o monarca, mas a qualidade do poder que ele detinha, ou seja, um poder super omnes, que quer dizer sobre todos. Tal característica de poder soberano, que surgiu com o Estado Moderno, poderia ter a representação em um monarca, como queria Hobbes, ou em uma assembleia, como sustentava Locke.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 emanados do legislativo. O professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro completa, ainda, afirmando: Outro domínio polêmico, relacionado ao controle de políticas públicas – i.e., o exame de adequação e suficiência de determinadas ações administrativas e o suprimento de omissões – vem ganhando atenção crescente. São amplos os espaços de intersecção e fricção entre o Judiciário e os outros dois Poderes, potencializando a necessidade de se demarcar o âmbito de atuação legítima de cada um. Como intuitivo, não existem fronteiras fixas e rígidas, havendo uma dinâmica própria e pendular nessas interações (BARROSO, 2009, p. 385). O que se evidencia é que o caráter democrático da representação não está exclusivamente na sua origem, mas também, e principalmente, no processo da representação ou na forma como os agentes políticos exercem suas respectivas funções. De que adianta, por exemplo, reconhecer a representação política como democrática apenas nos agentes eleitos diretamente pelo povo, se estes agem distanciados dos anseios da coletividade, quando não visando apenas aos próprios interesses? Um dos grandes intelectuais brasileiros na passagem do século XIX para o século XX, Oliveira Viana, já possuía uma concepção bastante crítica do modelo democrático exclusivamente vinculado ao fenômeno eleitoral: O principal numa democracia [...] é a existência de uma opinião organizada, de que o voto seja apenas uma manifestação espaçada: periódica e não principal. O modo principal, mais significativo, mais efficiente, de manifestação da opinião organizada é essa sorte de pressão moral exercida pelas agitações populares, quando racionalmente conduzidas, como no caso da campanha abolicionista, em que vemos a opinião do povo dominar a opinião do Parlamento recalcitrante pela força exclusiva de uma pressão moral – e não por meio de qualquer manifestação eleitoral (VIANNA, 1927, p. 93 e 94). O autor de O Idealismo da Constituição era, na visão de Francisco Weffort, “um conservador, mas também um inovador” (WEFFORT, 2006, p. 257), pois, ao mesmo tempo em que tinha um pensamento progressista como o expressado na citação acima, era a favor de uma centralização do poder, muito próxima da teoria do “elitismo democrático”, que pretendeu sustentar teoricamente a ditadura de 1964-1985. Assim como para esta teoria, o poder, para Oliveira Viana, ainda segundo Weffort, era visto “mais como um meio necessário para que o povo fosse educado e organizado para o exercício da democracia” (WEFFORT, 2006, p. 259). Para Francisco Weffort, esse “autoritarismo instrumental”, que se propunha como provisório, desaparecendo quando atingisse seu objetivo, sobreviveu não apenas ao Império, mas “também à Primeira e à Segunda Repúblicas, estabelecendo-se como parte da cultura política brasileira” (WEFFORT, 2006, p. 259).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 De qualquer forma, o foco da representação democrática especificamente na escolha popular de seus representantes, de uma maneira ou de outra, reflete a doutrina da duplicidade, “alicerce do antigo sistema representativo na época liberal” (BONAVIDES, 2007, p. 219). Desta doutrina, como bem leciona Paulo Bonavides, “se extraem com invejável perfeição lógica todos os corolários do sistema representativo que tem acompanhado as formas políticas consagradas ou chanceladas pelo velho constitucionalismo liberal”, dentre eles “a total independência do representante” (BONAVIDES, 2007, p. 218). Sim, porque, se por um lado, enaltece-se o caráter democrático da escolha, por outro lado, negligencia-se a responsabilidade do representante para com os interesses dos representados, o que se observa por meio do exercício mesmo da função política. Em contraste com essa doutrina da duplicidade, surgiram no século XX tendências que “têm apoio teórico nos fundamentos da representação concebida segundo a regra da ‘identidade’, que em boa lógica retira ao representante todo o poder próprio da intervenção política animada pelos estímulos de sua vontade autônoma” (BONAVIDES, 2007, p. 218). Este modelo seria caracterizado pela reprodução fiel da vontade dos mandantes pela vontade do representante, “como se fora fita magnética ou simples folha de papel carbono”. Embora reconhecendo a impossibilidade dessa “identidade”, Paulo Bonavides, com apoio teórico em Rousseau, observa que ela todavia pode ser tomada como um símbolo ou juízo de valor, “já para autorizar e autenticar e legitimar as mudanças que se vão operando no âmago das instituições representativas, desde a sua implementação” (BONAVIDES, 2007, p. 219). Como um dos elementos plausíveis dessas mudanças, pode-se apontar a ideia de que a legitimidade de um cargo político não está apenas na forma de investidura, mas também na forma de seu exercício. O condicionamento da natureza democrática de um cargo político ao primeiro aspecto parece ser uma distorção ainda bastante arraigada no próprio meio acadêmico. Tal compreensão entrava a formação de um conceito mais amplo de representação democrática, relacionando-a sempre ao processo de condução de alguém ao “poder”, mas esquecendo de vincular o elemento democrático também ao exercício das funções políticas. O “contramajoritário” pode ser democrático

É neste ponto que, mesmo um órgão de representação democrática, em termos eletivos, como o Legislativo, se torna antidemocrático quando, por exemplo, se encontra numa situação de inconstitucionalidade por omissão. O caráter ilegítimo da omissão de um órgão legitima por sua vez a atuação de outro órgão no sentido de compeli-lo à ação, sempre na forma constitucionalmente prevista, tudo em nome da efetividade da própria Constituição, o que jamais caracterizaria qualquer ofensa a ela. Se o Estado constitucional é marcado pelo intervencionismo que atinge as relações sociais, visando superar os desequilíbrios socioeconômicos, como deixar de reconhecer a legitimidade de uma intervenção entre os órgãos estatais para controlar as próprias distorções institucionais? Ainda mais quando essa intervenção esteja prevista na própria Constituição,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 criando mecanismos legítimos de relação entre os órgãos políticos, no aspecto da responsabilidade de atuação judicial, executiva ou legislativa, para fins de conformação das metas constitucionais. Tal intervenção não pode ser minada por uma pretensa observância a um ideal ultrapassado de separação de poderes, o que se caracteriza mais como uma tibieza institucional, travestida plasticamente de um processo hermenêutico realizado em nome da “defesa” da Constituição, mas que, na verdade, apenas perverte toda a sistemática nela mesma prevista no sentido de sua própria efetividade. O respeito ao clássico princípio da separação de poderes não pode se converter em uma espécie de indiferença institucionalizada, típica das ideologias liberais baseadas numa perspectiva de neutralidade política4. A tese de que o ativismo judicial é incompatível com o regime democrático, sob o argumento de que aqueles que não foram escolhidos pelo voto não têm legitimidade, tem uma consistência apenas aparente. É que, embora os juízes não tenham legitimidade de origem, “de certa maneira tem-na adquirida com a aprovação social de seu comportamento” (MENDES; COELHO; BRANCO, 2002, p. 95 – itálicos no original). Mais do que uma mera “aprovação social”, é preciso reconhecer o papel do Judiciário numa época em que o princípio da separação de poderes tem de se adaptar às exigências de uma sociedade aberta, a qual é marcada por uma participação social ativa no processo político. Noutras palavras, impõe-se re-interpretar esse velho dogma para adaptá-lo ao moderno Estado constitucional, que sem deixar de ser liberal, tornou-se igualmente social e democrático, e isso não apenas pela ação legislativa dos Parlamentos, ou pelo intervencionismo igualitarista do Poder Executivo, mas também pela atuação do Poder Judiciário e das Cortes Constitucionais, politicamente engajadas no alargamento da cidadania e na realização dos direitos fundamentais (MENDES; COELHO; BRANCO, 2002, p. 95 – itálicos no original). Em matéria de função judicial, a ideia de neutralidade é compartilhada com a de neutralidade que caracterizou, em sua origem, o Estado (Liberal) de Direito, o qual se baseou no princípio da igualdade formal de todos perante a lei. Tal perspectiva de poder político inaugurou um modelo de sociedade extremamente individualista e patrimonialista, culminando na ênfase de uma sociedade de consumo combinada com as fragilidades ideológicas do mundo “pósmoderno”.

Essa indiferença institucional em face da realidade e a própria gênese formalista do direito moderno se refletem na construção de mentalidades sobre o papel da função jurisdicional, que vão desde a definição de Montesquieu, que vê o juiz como a “boca da lei”, até a noção do juiz como “escravo da lei”, dentre outros limitados pontos de vista. 4

Curiosamente, a ideia de neutralidade política do liberalismo só tem validade para as questões sociais, mas não para “salvar” uma instituição bancária com dificuldades financeiras. A regra, nesses casos, é simplesmente de socialização dos prejuízos.

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Por sua vez, o Estado social visou superar essa neutralidade conservada ainda hoje no modelo político-econômico neoliberal, substituindo-a por uma igualdade material ou substancial, onde a deusa Justiça tira as vendas dos olhos para enxergar as flagrantes desigualdades sociais. Assim, o individualismo é substituído por um estímulo político a um ainda novel conceito de solidarismo social, o qual se reflete na própria atuação dos poderes, principalmente o Judiciário, fazendo surgir correntes que sustentam teses mais condizentes com um realismo jurídico, desde o direito alternativo até os mais recentes conceitos de ativismo judicial. Tais correntes, na precisa observação de Adeodato, “propugnam exatamente por uma politização do poder judiciário, entendendo-o como criador de direito e realizador de demandas sociais em defesa dos cidadãos e minorias menos privilegiadas economicamente” (ADEODATO, 2010, p. 214). No Estado constitucional, evidencia-se a relevância da função jurisdicional em uma sociedade pluralista e, ao mesmo tempo, carente de representações democráticas genuinamente legítimas, pelo menos no aspecto do exercício mesmo das atividades estatais. No fim, a maior dificuldade está não só em representar o pluralismo, o que já compromete as concepções clássicas de democracia, mas também em intervir de forma legítima nos problemas sociais, visando a uma solução justa e adequada aos casos concretos. De longe, a função legislativa perdeu aquela proeminência em matéria de processo político do Estado de Direito, passando a exigir, o Estado constitucional contemporâneo, uma noção de equilíbrio entre os “poderes”, ou melhor, entre as funções estatais, para uma melhor desincumbência de suas tarefas internas. Analisando a questão sob o prisma da função executiva, Andreas Krell observa que “o princípio da separação dos poderes deve se adequar ao Estado Social moderno”, para “assumir uma ‘noção menos mitificadora e mais pragmática’, pois convive com outros princípios com os quais pode colidir” (KRELL, 2008, p. 72). Para o autor, que atribui essa nova configuração da função executiva ao “aumento da legitimidade democrática do Executivo pelo voto popular”, o poder regulamentar não deve ser visto como um mal em si. E, ao ressaltar que “sempre devem ser respeitados os seus limites e efetivadas as formas de seu controle” (KRELL, idem), parece já sugerir que a tão desejada legitimidade democrática não se limita ao “voto popular”, mas se vincula também, e principalmente, aos mecanismos institucionais que permitam um maior controle democrático do exercício da respectiva função, inclusive por meios que instrumentalizem a participação da sociedade.

Relevância sem preponderância

O equilíbrio entre as funções não é afetado pela interferência de um órgão no outro, desde que seja para garantir o cumprimento das obrigações constitucionalmente previstas. Não há que se falar, aqui, em preponderância de um “poder” em detrimento dos demais, mas, sim, numa otimização das deficiências institucionais pelas próprias instituições que,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 constitucionalmente, estejam legitimadas a exercer esse papel ou essa função. Não existindo fronteiras fixas e rígidas, como na observação de Barroso, anteriormente citada, apenas se potencializa “a necessidade de se demarcar o âmbito de atuação legítima de cada um”.

Num certo nível de maturidade democrática, o patrimônio político mais importante é a abertura, pois é isso que possibilita o controle externo do ato de decidir (AARNIO, 1997, p. 193).

A independência das cortes de justiça não significa que elas estão completamente fora do controle democrático. A divisão de poder garante a independências das cortes apenas em relação aos outros centros de poder, especialmente do poder executivo. Por outro lado, as cortes de justiça são uma parte da sociedade e de sua ordem democrática. Além disso, as cortes de justiça devem, portanto, em uma sociedade aberta, estar sob um controle social realizado pelo povo (AARNIO, idem). Em alguns Estados5, a figura do Tribunal Constitucional se apresenta como que exercendo um papel de realização da justiça constitucional, de forma a “controlar atos e normas oriundas do Legislativo, do Executivo e do Judiciário” (DANTAS, 2007, p. 223), principalmente no que toca ao controle de constitucionalidade. Para poder realizar esse papel, o órgão da justiça constitucional precisa estar acima dos demais “poderes” políticos. Sendo assim, nesses Estados, a figura do Tribunal Constitucional se assemelha um tanto quanto ao Poder Moderador, inspirado em Benjamim Constant, pois se apresenta como um órgão distinto dos três poderes, mas com uma função de exercer um controle sobre eles. Em vez da perspectiva de Montesquieu, onde a ideia do poder limitar o poder se dava com uma fiscalização recíproca, na proposta de Constant, o Poder Moderador é que exercia essa função de “órgão censor”, estando mesmo acima dos demais poderes. No Brasil, a figura do Poder Moderador foi usada (e abusada) no início da história constitucional brasileira, quando a Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, previa, em seu art. 98, que o Poder Moderador era “a chave de toda a organização política” e era delegado privativamente ao imperador, “Chefe Supremo da Nação”. Ainda na sistemática da Constituição do Brasil Império, ao Poder Moderador cabia velar “sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais Poderes Políticos”. Pois bem. Mas, no Brasil República, sob a vigência da Constituição de 1988, não existe tal Poder nem a figura de um Tribunal Constitucional como órgão à parte dos três poderes. O Supremo Tribunal Federal, que exerce uma função mais próxima desta justiça constitucional, está entre os órgãos do Judiciário, e o sistema de controle entre os poderes se aproxima mais 5

Ivo Dantas apresenta em seu livro uma citação de Pérez Royo onde o autor espanhol informa que “el Tribunal Constitucional no existe em todos los países europeus, sino unicamente en aquellos que tuvieron excepcionales dificultades para transitar del Estado Liberal del siglo XIX al Estado Democrático del siglo XX: Austria, Alemanha, Itália, Portugal y España” (DANTAS, 2007, p. 228).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 da doutrina de Montesquieu e seu conceito de “freios e contrapesos”. Assim, ao mesmo tempo em que ao STF não cabe uma postura de “chave de toda a organização política”, também não se lhe permite uma posição de neutralidade diante das ofensas à Constituição, eventualmente praticadas pelos demais órgãos políticos, seja por meio de ações ou omissões. Após analisar algumas teses sobre a natureza do Tribunal Constitucional, Ivo Dantas apresenta uma síntese conclusiva, no sentido de que “em relação ao Legislativo como intérprete final da Constituição, ficamos à mercê de uma momentânea maioria parlamentar, o que já ocorre, aliás, no exercício do Poder de Reforma” (DANTAS, 2007, p. 229). Dantas observa, ainda, que

em não havendo um órgão próprio encarregado do Controle e Defesa da Constituição, independentemente dos demais poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), qualquer deles que seja competente para fazê-lo ocupará um posição de superioridade frente aos demais, o que se torna mais negativo ainda, em relação ao próprio Judiciário que passa a ser o julgador de seus próprios atos decisórios (DANTAS, 2007, p. 230 – itálico do autor). A preocupação do professor da Faculdade de Direito de Recife é bastante pertinente, principalmente quando o assunto é a defesa da Constituição. Colocando-se esse importante papel nas mãos do Legislativo, corre-se o risco de submetê-lo a uma fragilidade democrática, inerente aos sabores de uma mera técnica de decisão, que é a regra da maioria (SILVA, 2007, p. 130), e aos inconvenientes de uma onda político-partidária. Por outro lado, ao passar para o Judiciário esse mister constitucional, pode-se levar à formação de uma ideia equivocada de superioridade da função jurisdicional, ainda mais forte quando se trata de seu órgão de cúpula. Entretanto, como já foi observado, tal papel, atribuído precipuamente ao Supremo Tribunal Federal, não dá a esse órgão a condição de um “chefe supremo da nação”, mas apenas delimita o seu específico grau de relevância em comparação com a importância, também, das demais funções estatais, em suas respectivas áreas de atuação. Em matéria de defesa da Constituição, foi evidente a intenção do Poder Constituinte de supri-la com instrumentos judiciais com esse objetivo. Não só as garantias fundamentais, tais como a ação popular, o mandado de segurança, habeas corpus etc, como também as ações de controle de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Principalmente no que toca à criação de mecanismos que possibilitem a sua efetividade, superando-se as inércias ilegítimas do poder público, deve-se destacar a garantia fundamental do mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Em todo caso, os instrumentos acima se dirigem aos órgãos do Judiciário, tanto inferiores quanto superiores, demonstrando o objetivo de se efetivar os esforço de realização da Constituição por meio da função jurisdicional ou, mais precisamente, do alcance da eficácia ou dos efeitos práticos das decisões judiciais.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 É nesse ponto que os afazeres domésticos do “Estado social”, uma vez não consolidados de forma espontânea por um processo político eficiente, devem ser exigidos não pelo Judiciário propriamente dito, mas pelos cidadãos brasileiros, por meio da função jurisdicional. É que o cumprimento de metas políticas ou programas sociais a serem efetivados através de políticas públicas, conforme exigência constitucional, quando determinado por decisões judiciais nesse sentido, não é, a rigor, uma resposta do poder competente omisso ao poder exigente, mas uma resposta do órgão omisso ao próprio cidadão que, numa atitude cívica, busca, por meio do Judiciário, os seus legítimos direitos.

As reservas à “reserva do possível”

Tanto a questão da “reserva do possível”, que porventura possa comprometer, muitas vezes de forma compreensível, a adoção das metas e programas já estabelecidos pelo Executivo, quanto, e o que é pior, o mais grave problema da inexistência de qualquer projeto político, podem e devem ser debatidos judicialmente, visando a soluções concretas. O que é preciso levar em conta é que tal debate judicial é promovido pelo jurisdicionado, que se encontra prejudicado pelas omissões do poder público e vê nas ações judiciais, previstas na própria Constituição, eficientes mecanismos de pressão política. Não uma pressão política arriscada e clandestina, mas uma forma legítima de resistência a um exercício ilegítimo do poder, tendo na função jurisdicional um instrumento institucional de cobrança da efetividade constitucional. Mesmo nas ações de controle de constitucionalidade, a reposta do poder competente no sentido de adotar as medidas necessárias não se dirige, necessariamente, ao Supremo Tribunal, nem mesmo a quaisquer de seus legitimados que tenham, eventualmente, ajuizado a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Também nesses casos, a resposta é endereçada a toda a sociedade, de forma a se promover um processo de transformação democrática que se baseia em uma democracia social, participativa e pluralista, para a qual os constituintes optaram por um modelo de democracia representativa “com temperos de princípios e institutos de participação direta dos cidadãos no processo decisório governamental” (SILVA, 2007, p. 145). Na era do “neoprocessualismo” (CAMBI, 2011) ou do “formalismo-valorativo” (MITIDIERO, 2011), essa participação dos cidadãos no processo decisório governamental inclui a interferência no próprio processo judicial, permitindo um diálogo entre a autoridade jurisdicional e os destinatários da decisão, num modelo de processo cooperativo. Assim, outra não deve ser a concepção senão a de que os instrumentos judiciais de controle das ilegitimidades do poder público, com destaque para a defesa da Constituição, na qual se inclui o controle das omissões estatais, são verdadeiros mecanismos democráticos de produção de decisão governamental. E a participação cada vez mais ativa da sociedade civil organizada na busca de uma prestação jurisdicional mais efetiva vem pôr em xeque as críticas ao caráter “contramajoritário” dos órgãos encarregados dessa relevante função estatal.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 No Estado Democrático de Direito, em termos de efetividade de direitos fundamentais, devese promover ao máximo a sistemática do sim, em oposição aos modelos políticos autoritários, ou mesmo os democráticos de feição neoliberal, os quais parecem sempre governar com a técnica do não. A “reserva do possível”, por exemplo, às vezes se apresenta como um eufemismo para se dizer que “não é possível”, visando talvez desestimular a democratização de todas as ferramentas jurídico-institucionais que já podem ser vistas com uma verdadeira versão social do importante princípio do acesso à Justiça. Observe-se, ainda, que a própria expressão “defesa da Constituição” guarda também um eufemismo que esconde, em si, a ideia final de defesa da própria sociedade, visando, em última análise, à superação das deficiências e vulnerabilidades, principalmente dos grupos e setores sociais mais desprivilegiados. Tem-se consciência de que a promoção dessa defesa da sociedade, via defesa da Constituição, não se traduz numa estéril programaticidade constitucional reduzida a uma mera “narratividade emancipatória” (CANOTILHO, 2008, p. 31). Como reconhecido pelo próprio autor, J. J. Gomes Canotilho, seu principal teórico, “a Constituição dirigente pressupunha uma indiscutida autossuficiência normativa, parecendo indicar que bastavam as suas imposições legiferantes e as suas ordens de legislar para que os seus comandos programáticos adquirissem automaticamente força normativa” (CANOTILHO, 2008, p. 31 e 32 – itálicos no original). Entretanto, o constitucionalista português não perdeu de vez o encanto “com o dirigismo normativo-constitucional”, continuando a defender a “Constituição como lei-quadro fundamental condensadora de premissas materialmente políticas, econômicas e sociais” (CANOTILHO, 2008, p. 35). Em tempos de revisionismo da teoria de uma Constituiçãoprograma, promovendo-se a formação teórica de uma Constituição-processo, ainda segundo o autor, “é razoável admitir que o conhecimento emancipatório do Estado auxilie a articulação do pensamento de realidade com o pensamento de possibilidade” (CANOTILHO, 2008, p. 35 – sem itálicos no original). Como bem observou Bruno Galindo, embora tenha realizado uma mudança no pensamento sobre a ideia de “constituição dirigente”, o que Canotilho “tem afirmado é a insuficiência dos esquemas meramente normativos em relação à necessidade de transformações que realizem o constitucionalismo social” (GALINDO, 2006, p. 4). No entanto, o constitucionalista português continua a defender, ainda segundo Galindo, a “permanência de muitos dos postulados dirigistas que, no espaço normativo da União Europeia, tem se deslocado do direito constitucional para o direito comunitário”. Concretamente, o que Canotilho propõe é uma espécie de “constitucionalismo moralmente reflexivo”, que traz como desafio a “substituição de um direito autoritariamente dirigente, mas ineficaz, através de outras fórmulas que permitam completar o projeto da modernidade” (CANOTILHO, 2008, p. 127). É preciso que o direito possa se adequar às “condições complexas da pós-modernidade”, que, partindo da visão de Canotilho, esta inovação parece sinalizar no sentido da dimensão jurídica do princípio constitucional da solidariedade, o que implica uma noção de responsabilidade social. Eis a proposta do mestre português:

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Nesta perspectiva, certas formas já apontadas de “eficácia reflexiva” ou de “direcção indirecta” – subsidiariedade, neocorporativismo, delegação – podem apontar para o desenvolvimento de instrumentos cooperativos que, reforçando a eficácia, recuperem as dimensões justas do princípio da responsabilidade, apoiando e encorajando também a dinâmica da sociedade civil (CANOTILHO, 2008, p. 128).

Assim, à unilateralidade da atuação institucional, por meio, principalmente, de medidas administrativas ou legislativas, deve vir acrescentada uma maior participação da sociedade no processo político de realização da Constituição, a qual será proporcionada por uma função jurisdicional mais democrática. Essa participação se dá por intermédio de um modelo processual que garanta a abertura procedimental, submetendo os argumentos dos representantes dos órgãos públicos ao crivo não só da apreciação judicial, mas também, e principalmente, da análise devidamente qualificada de membros ou de instituições da comunidade.

Os tradicionais argumentos da reserva do possível, por exemplo, uma vez sem fundamento, não podem sustentar um atraso desmedido na elaboração das tarefas estatais, principalmente em matéria de direitos fundamentais. Instituições da sociedade civil organizada, com base em estudos sociológicos e afins, e em dados estatísticos, poderiam, por exemplo, participar do processo judicial para contra-argumentar de forma eficaz e legítima, identificando as eventuais fragilidades nos posicionamentos dos órgãos públicos. Dessa forma, estar-se-ia compatibilizando a “dinâmica da sociedade civil” com a nova configuração do direito em uma democracia pluralista.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA APLICADA AOS GRUPOS ECONÔMICOS DE FATO À LUZ DO DIREITO TRIBUTÁRIO NACIONAL. Maria da Conceição Silva da Fonseca 1 Hélio Silvio Ourem Campos2

RESUMO

O presente trabalho possui por finalidade analisar a Teoria da desconsideração da personalidade jurídica sob o enfoque das teorias maior e menor da desconsideração, tendo em vista a pertinência dessas correntes no contexto da autonomia da pessoa jurídica. De igual modo, estudar-se-á a formação dos grupos econômicos, em especial os grupos econômicos de fato, a fim de demonstrar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no momento em que houver o desvirtuamento de suas finalidades. Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica, teorias maior e menor da desconsideração, grupos econômicos de fato.

ABSTRACT

This work has aimed at analyze the theory of legal personality disregard in the form of higher and lower theorization considering the relevance of these currents in the context of legal personality autonomy. Similarly, the formation of economic groups will be studied, in special the economic fact group, in order to demonstrate the application of the theory of legal personality disregard at the moment there is the distortion of its purposes.

Keywords: Disregard of Legal Entity, higher and lower theorization, economic fact groups.

1

Bacharela em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected] Juiz Federal; Líder de Grupo de Pesquisa - CNPq: "Processo tributário: sonegação fiscal e direitos humanos"; Professor da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco; Professor Titular e Membro do Conselho Superior da Universidade Católica de Pernambuco (Graduação e Mestrado); Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutorado pela Faculdade Clássica de Direito de Lisboa; Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Faculdade Clássica de Direito de Lisboa - (Equivalência); Ex-Procurador do Estado de Pernambuco; Ex-Procurador do Município do Recife; Ex-Procurador Federal; Pós-doutorado pela Universidade Clássica de Lisboa. E-mail: [email protected] / www.ourem.web44.net / http://lattes.cnpq.br/1508584545879443. 2

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

1 INTRODUÇÃO No ordenamento jurídico brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicada como meio de repressão à prática de atos ilícitos cometidos pela sociedade empresária, não buscando anular a personalidade jurídica em si, mas, apenas, relativizar a autonomia empresarial.Nesse sentido, iremos abordar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica aplicada aos grupos econômicos de fato, diferenciando as teorias maior e menor da desconsideração, com o propósito de demonstrar o momento em que tais grupos se desvirtuam da finalidade para a qual foram criados, tornando-se grupos de caráter fraudulentos. Será abordado um breve estudo sobre a desconsideração da personalidade jurídica, contendo uma análise acerca do seu contexto histórico, a sua nova perspectiva de incidência prevista no projeto do novo Código de Processo Civil, sob o enfoque do direito tributário. Em seguida, apresentar-se-á um estudo sobre os grupos econômicos, conceituando os grupos de direito unidos mediante uma convenção legal, devidamente formalizada no Registro Público de Empresas Mercantis, porém, dando ênfase aos grupos de fato quando utilizados, especialmente, para burlar os credores, aplicando meios ardis para fazê-lo, cabendo ao judiciário levantar o véu que paira sobre a pessoa jurídica utilizada para tanto.

2 DAS TEORIAS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, expressão cuja tradução advém do termo norte-americano “disregard of legal entity”, originou-se no Direito Anglo-Americano a partir de dois precedentes consolidados pela doutrina, uma vez que foram os primeiros casos a se aplicar a teoria da desconsideração. Um deles é o caso Salomon vs Salomon & Co., julgado na Câmara dos Lordes no ano de 1897 (SILVA, 2002 , p. 95-96). No direito brasileiro, a teoria da desconsideração foi difundida apenas em 1969, através do doutrinador e comercialista Rubens Requião. A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica encontra-se prevista em algumas passagens do ordenamento jurídico nacional, como se afigura o caso específico do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, através da Lei nº 8.078, de 11 de setembro 1990, ou ainda, no artigo 4 da Lei nº 9.605/98 e, atualmente, no artigo 50 do Código Civil através da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Através da desconsideração da personalidade jurídica, é permitido ao juiz ir além da autonomia jurídica da sociedade, com vistas a atingir o patrimônio pessoal do sócio nas hipóteses em que a pessoa jurídica for utilizada para fins ilícitos ou que acarretem prejuízo a seus credores. Note-se que, em primeiro lugar, é a pessoa jurídica quem responde pelos atos praticados pelos seus sócios, podendo essa personalidade ser desconsiderada, nos casos previstos em lei, permitindo, assim, a responsabilização dos mesmos. A personalidade jurídica não pode ser vista como absoluta, pois o juiz pode e deve coibir os abusos ou condenar as fraudes. Nesse sentido, existem duas teorias distintas de importante relevância para que haja a efetiva desconsideração da personalidade jurídica, que são as teorias maior e menor, que serão estudadas a seguir. A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, também denominada de teoria subjetiva, é considerada a regra geral no sistema jurídico brasileiro e teve como seu maior idealizador, na doutrina estrangeira, o Alemão Rolf Serick, que forneceu regras básicas a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 serem seguidas e defendidas em sua tese de doutorado perante a Universidade de Tübigen, em 1953 (COELHO, 2005, p. 261). Já no Brasil, a teoria maior foi inserida no final do ano de 1960, pelo doutrinador Rubens Requião, como meio de superar a autonomia da pessoa jurídica, mostrando-se plenamente possível sua utilização sem que haja previsão legal específica. Afim de que seja utilizada a teoria maior da desconsideração, exige-se, além da prova de insolvência, a demonstração de desvio de finalidade ou a demonstração de confusão patrimonial, que é a regra adotada pelo artigo 50 do Código Civil.Na hipótese de desvio de finalidade e confusão patrimonial, o que se busca é, simplesmente, prejudicar terceiros. Sobre o desvio de finalidade, há mau uso da finalidade social a que se presta a pessoa jurídica. Já em relação à confusão patrimonial, os bens da pessoa jurídica e dos sócios se misturam de tal forma que se faz necessária à desconsideração da personalidade jurídica. Além do mais, o abuso de direito e a fraude devem ser observados como requisitos para que haja a desconsideração ou não da personalidade jurídica. Note-se que não há, no abuso de direito, hipóteses de incidência delimitada, como acontece na fraude, mas há um amplo campo de atuação, cabendo ao magistrado identificar o abuso cometido e penalizar o seu titular. Vale ressaltar que a teoria maior da desconsideração é a mais aceita pela doutrina e jurisprudência, visando proteger a personalidade jurídica em si. Entretanto, nada irá impedir que seja tolhida essa proteção quando verificada que o objeto está sendo utilizado como instrumento de fins ilícitos. Em contrapartida, a teoria menor irá incidir com a simples demonstração da insolvência da pessoa jurídica, independendo que haja o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, ou seja, pressupõe o simples inadimplemento em relação aos credores. Com efeito, para aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, independe se a pessoa jurídica não possui patrimônio em seu nome, bastando que alguns de seus sócios se mostrem solventes. Assim, a teoria menor é aplicada levando-se em conta apenas a simples insolvência, ou a falência da sociedade, e não a fraude exigida na teoria maior, as quais ensejam a ruptura da autonomia patrimonial visando atingir o patrimônio particular do sócio. Nesta senda, a Teoria menor é menos aplicada, tendo em vista que causa certa insegurança jurídica na proporção em que torna a pessoa jurídica mais frágil, não demonstrando preocupação em distinguir a utilização fraudulenta ou não. Segundo o doutrinador Vieira da Silva (SILVA. 2002, p. 102), “a teoria maior da desconsideração condiciona o afastamento temporário da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas diante da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto”, e a teoria menor da desconsideração “condiciona o afastamento da autonomia à simples insatisfação do crédito”. Nesse sentido, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser considerada como uma superação temporária da autonomia patrimonial da pessoa jurídica com o intuito de, mediante a constrição do patrimônio de seus sócios ou administradores, alcançar o adimplemento de dívidas assumidas pela sociedade.

3 DA PREVISÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica não tem previsão legal específica em nosso ordenamento, exceto em alguns artigos constantes no código de defesa do consumidor e código civil, sendo sua aplicação, na maioria das vezes, limitada às decisões jurisprudenciais.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Vale ressaltar que o Projeto do Novo Código de Processo Civil (PNCPC nº 166/2010), inova ao disciplinar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica dedicando um capítulo exclusivo sobre o tema que prevê a instauração, por exemplo, de um incidente a pedido da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo. De igual modo, constará no projeto do novo CPC, que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica deverá observar os pressupostos específicos previstos em lei de modo que seja clara a opção do legislador em exigir uma análise mais apurada e criteriosa, para efeitos de aplicação da teoria. Nesse caminho, tanto com relação ao instituto da desconsideração aplicada com base nas teorias maior e menor, como aos novos aspectos que serão incorporados pelo projeto do novo CPC, a desconsideração não busca invalidar a sociedade, tendo em vista que os atos são devidamente reputados válidos e eficazes. Entretanto, é repassada para o sócio a responsabilidade pelos atos ilícitos por ele praticados. 4 DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO Na seara do Direito Tributário, a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica é aplicada, principalmente, em razão do grande número de sociedades que deixam de recolher os tributos devidos, contribuindo com a deficiência na arrecadação. Sobre o tema em debate, existe divergência doutrinaria acerca da utilização da desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária, tendo em vista que o direito tributário faz valer a aplicação do principio da legalidade. A primeira corrente defende que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser aplicada nas relações tributárias quando estiver diante de uma Lei especial ou de uma regra de cunho geral que a autorize (TORRES, 2005, p. 57). A corrente oposta defende a ideia de que a desconsideração poderá ser adotada independente de lei especifica, sendo suficiente apenas o entendimento jurisprudencial. Com efeito, em respeito ao principio da legalidade, não pode ocorrer à desconsideração da pessoa jurídica sem que haja lei especifica que institua uma regra geral como meio de coibir a conduta lesiva praticada. Entretanto, deve-se haver o maior cuidado com a utilização da desconsideração da personalidade jurídica para evitar sua aplicação com o propósito de atribuir aos sócios os efeitos que deverão recair diretamente na pessoa jurídica, tanto em sede de lei especial ou em razão de um regramento que o autorize (TORRES, 2005, p. 189). Nesse sentido, aplica-se o disposto no artigo 135, inciso III do CTN, no qual o principio da separação entre a pessoa jurídica e seus sócios é relativizado. Diante do artigo supracitado, no caso de, por exemplo, haver uma Execução Fiscal, o Fisco está autorizado a incluir no polo passivo da lide os sócios com poderes administrativos, independentemente se consta na Certidão de Dívida Ativa o nome dos corresponsáveis tributários, desde que estes tenham agido com excesso de poderes ou infração de lei. No direito tributário, a desconsideração da personalidade jurídica é aplicada quando, por exemplo, ocorre a constatação dos indícios da dissolução irregular que se equipara à infração à lei, e não a fraude prevista no artigo 135 do Código Tributário Nacional. Com efeito, um dos fatos que demonstram a dissolução irregular da empresa é o encerramento das atividades empresariais, presumida diante da certidão do Oficial de Justiça atestando que a empresa não funciona mais no endereço de seu registro, sem, contudo, efetuar o pagamento de suas obrigações caracterizando, assim, infração à lei suficiente para autorizar o redirecionamento da execução fiscal. Neste sentido, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento sobre a dissolução irregular da empresa que deixa de funcionar em seu domicílio fiscal, editando a súmula nº 435, a qual confirma a assertiva posta anteriormente – “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sóciogerente”. Dessa forma, para que haja a desconsideração da personalidade jurídica na esfera tributária pressupõe a demonstração fática constantes nos autos de que a empresa, por exemplo, dissolveu irregularmente. Essa situação é considerada abusiva, autorizando a desconsideração para alcançar os sócios e os seus respectivos patrimônios.

5 DOS GRUPOS ECONÔMICOS DE FATO No direito brasileiro, o instituto dos grupos econômicos foi introduzido pela primeira vez através da Consolidação das Leis Trabalhistas, Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943, o qual dispõe sobre a conceituação de tal instituto. Posteriormente, a Lei das Sociedades Anônimas, Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, aprofundou o estudo sobre os grupos econômicos, especificando suas características, sua natureza, constituição, registro, publicidade e administração. A caracterização dos grupos econômicos prescinde a existência de atividades idênticas, ou até mesmo próximas, tendo em vista que o agrupamento empresarial não existe apenas na linha vertical, com a nítida superioridade de direção e controle, ou horizontal, em que se visualiza a propriedade comum de capital, possuindo qualidades especificas, conhecidas como “sui generis”. Sobre o tema, o Projeto de Grandes Devedores no âmbito da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional editou a Portaria nº 320/2008, de relatoria do Procurador Luiz Inácio Lucena Adams, na qual definiu os grupos econômicos como sendo: O conjunto de empresas que, ainda quando juridicamente independentes, estejam interligadas por relações contratuais ou pelo capital, e cuja propriedade de ativos específicos, em especial do capital, pertença a indivíduos ou instituições que exercem o controle efetivo do conjunto de empresas; ou pessoas jurídicas que estejam de alguma forma relacionadas, implicando em responsabilidade de direito ou de fato; ou as pessoas jurídicas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal, considerada a responsabilidade solidária na forma prevista no art. 124, inciso I, do Código Tributário Nacional(Portaria PGFN nº 320, de 30 de abril de 2008) Por seu turno, a doutrina define grupo econômico como um conjunto de pessoas jurídicas e físicas que se organizam para a produção, circulação de riquezas e prestação de serviços. Enfim, sempre que houver a participação de mais de uma pessoa jurídica e física com interesses econômicos comuns, dirigidos à consecução dos mesmos objetivos e participantes do mesmo empreendimento, haverá o Grupo Econômico. Nesse sentido, os grupos econômicos se formam em decorrência da união de várias empresas que são juridicamente independentes, as quais detêm personalidade jurídica e patrimônio próprios, contudo, economicamente dependentes mediante o controle unitário da “empresa-mãe” que é a controladora, tudo aliado à demonstração fático-probatória de sua formação.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Os grupos econômicos podem ser definidos, no mundo jurídico, como grupos de direito ou grupos de fato. Os grupos econômicos de direito se constituem através de uma convenção especifica entre as empresas integrantes de um grupo, formalizada no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, para que seja reconhecida legalmente. Em contrapartida, os grupos econômicos de fato existem independentemente de uma convenção grupal, relacionando-se sob a forma de coligadas, controladoras e controladas. Verifica-se, então, que a autonomia de cada empresa integrante do grupo societário não é comprometida, pelo contrário, a individualidade é totalmente preservada. Dessa forma, a constituição dos grupos econômicos não é vedada pelo nosso ordenamento jurídico quando tal fato se destina à melhor organização dos empreendimentos empresariais promovidos pelos participantes do grupo. Nesse sentido, iremos nos deter ao estudo dos grupos econômicos de fato. Os grupos econômicos de fato são resultantes da união de mais de uma empresa, sem que haja a formalidade exigida nos grupos de direito, tendo em vista a ausência de organização jurídica. No que pesa a possibilidade de constituição formal de grupos econômicos, através de uma convenção específica, como demonstrada anteriormente, percebe-se que os grupos econômicos de fato se tornaram a regra, por motivos diversos. Três deles são: a ausência de interesse em uma cooperação de longo prazo; divergências no quadro societário, visto que alguns sócios não querem uma união formal aceitando uma cooperação fática; bem como a possibilidade de reunir várias empresas sem que haja uma burocracia a ser seguida. Como não há um regramento especial, a formação dos grupos econômicos de fato não é vedada em nosso ordenamento jurídico. Entretanto, uma futura indicação das empresas integrantes de tal grupo não é uma tarefa das mais fáceis. Vale ressaltar que a ausência de convenção grupal não atribui aos integrantes do grupo econômico de fato um caráter fraudulento. Como dito anteriormente, a existência do grupo econômico de fato não está diretamente associada ao caráter fraudulento, levando-se em conta que as empresas unidas entre si, mesmo diante da ausência da formalização legal, podem agir licitamente. No entanto, a partir do momento em que tais empresas se unem com o escopo de praticar atividades ilícitas, passará a deter o caráter fraudulento, devendo, nesses casos, ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica. Atualmente, os grupos econômicos buscam a diversidade de atividades, a fim de dificultar ainda mais a imputação de responsabilidade aos seus componentes, uma vez que a maioria dos processos envolvendo os grupos econômicos é milionária. Atribuir a responsabilidade aos integrantes dos grupos econômicos de fato não é uma tarefa das mais fáceis, uma vez que são inúmeras as formas que se materializam dificultando a individualização de patrimônio. Nesse sentido, as normas acerca da desconsideração da personalidade jurídica encontram espaço para atuar nos chamados grupos econômicos formados por sociedades interligadas entre si com o objetivo principal de fraude. Conforme ocorre em qualquer área do direito, a formação dos grupos econômicos não pode ter por norte objetos escusos, fraudulentos, com o único propósito de prejudicar credores, principalmente quando a tal fato se junta à confusão patrimonial, unicidade de comando e utilização das mesmas estruturas físicas, aliados a uma possível dissolução irregular e à frustração da satisfação dos créditos públicos. Nessas hipóteses, dá-se o que a doutrina e jurisprudência chamam de grupo econômico fraudulento, instituto que deve ser tratado à luz da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O poder de controle presente nos grupos econômicos se revela como um elemento essencial, tendo em vista a implicação no poder de tomar as decisões, importando num poder sobre toda a empresa agrupada. O reconhecimento dos grupos fraudulentos é realizado a partir dos elementos fáticoprobatórios, quando, por exemplo, tais empresas desenvolvem suas atividades no mesmo endereço, possuem mesmo objeto social, mesmos sócios, mas tudo em prol de uma finalidade fraudulenta. Na verdade, trata-se de fraude engendrada com o intuito de prejudicar os credores, o que se caracteriza como gravíssimo abuso da personalidade jurídica da empresa devedora.

6 DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA AOS GRUPOS ECONÔMICOS DE FATO Com o desvirtuamento do grupo econômico para a prática de atos fraudulentos, a doutrina e a jurisprudência autorizam a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. De acordo com o Parecer nº 1499, de 06 de agosto de 2012, emitido pela Coordenação de Grandes Devedores no âmbito da procuradoria Geral da Fazenda Nacional, elaborado pelo Coordenador Geral dos Grandes Devedores, Wellington Viturino de Oliveira. um caso de vultuosa relevância foi tratado pela Unidade Seccional da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional de Bento Gonçalves/RS, acerca da aplicação da desconsideração da pessoa jurídica nos grupos econômicos de fato, onde restou demonstrado que sete empresas de um grupo econômico eram o mesmo ente empresarial, distinguidas apenas pela existência de um contrato social individual para cada empresa, uma vez que praticavam conjuntamente os atos destinados à produção e comercialização de produtos derivados de couro, nos mesmos endereços, com os mesmos funcionários e o mesmo objeto social. Nesse sentido, havia, na verdade, uma única pessoa jurídica que se revestia de diversas empresas para distorcer quem realizava o fato gerador dos tributos. Ora, a pessoa jurídica deve ser vista como um estímulo ao empresariado, não podendo sofrer deturpações, visto que ninguém pode se beneficiar com a própria torpeza. É sabido que a desconsideração da pessoa jurídica deve ser reconhecida em situações excepcionais, em casos que há confusão patrimonial, fraudes, abuso de direito e má-fé com prejuízo a credores e não a todo e qualquer caso. A solidariedade passiva, em especial a tributária, é configurada no momento em que várias pessoas jurídicas formadoras de um grupo econômico de fato, com o propósito fraudulento, se beneficiam de ativos empresariais decorrentes da atividade empresarial. Nesse sentido, caso uma das empresas componentes de um determinado grupo econômico pratique atos com excesso de poderes e/ou infração de lei, seja ou não com o objetivo único de fraude, atrai-se, assim, a responsabilidade solidária afim de que haja o pagamento das dívidas tributárias, nos termos do art. 135, III, do Código Tributário Nacional. Desta forma, aos grupos econômicos de fato deve ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica sempre que restar comprovada a formação de tais grupos criados com objetivo de fraudar credores, devendo recair sobre os integrantes destes grupos, a solidariedade passiva, em razão da aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 7 CONCLUSÃO Através do instituto da pessoa jurídica, a coletividade passou a ser reconhecida como entes que detinham atuação autônoma, não se confundindo com as pessoas físicas que a compunham. Atualmente, a desconsideração da pessoa jurídica é expressa através das Teorias Maior e Menor da Desconsideração. De acordo com a teoria maior, para que haja a desconsideração da personalidade jurídica, se exige a demonstração de desvio de finalidade ou a demonstração de confusão patrimonial, aliada a prova de insolvência. No que tange a teoria menor, por ser menos elaborada, a desconsideração da personalidade jurídica ocorrerá em razão da simples demonstração da insolvência da pessoa jurídica, independendo que haja o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Na verdade, trata-se o instituto da desconsideração da personalidade jurídica de uma medida excepcional que, antes de ser autorizada, deve haver uma séria análise acerca de sua ocorrência. No que tange a formação de grupos econômicos, observa-se que há os chamados grupos econômicos de direito e de fato. Com relação aos grupos de direito, observa-se que estes se constituem através de uma convenção realizada entre as empresas integrantes do conglomerado. Já os grupos econômicos de fato são constituídos pelo mero exercício do poder de controle realizado pela “empresa-mãe”. O reconhecimento dos grupos econômicos de fato não é uma tarefa das mais fáceis, tendo em vista que demanda uma análise fática de grande porte, a fim de não cometer nenhuma injustiça na indicação de empresas que não possuem responsabilidade solidária. A caracterização é reconhecida, juridicamente, quando, por exemplo, um grupo concentra o débito tributário, enquanto as demais pessoas, jurídicas e físicas, concentram a riqueza e o patrimônio adquiridos com a prática dos atos ilícitos. Nesse sentido, uma vez demonstrada a atuação fraudulenta de um grupo econômico de empresas, nada mais justo do que lhes aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, a fim de que os verdadeiros responsáveis respondam pelo ilícito praticado. Ir de encontro à desconsideração da personalidade jurídica das empresas integrantes de grupos econômicos de fato, seria como aceitar a prática de fraudes realizadas com o objetivo de prejudicar credores, servindo até como apoio as demais empresas que também poderiam utilizar o instituto de grupos econômicos, a fim de, exclusivamente, burlar leis. Por outro lado, a ausência de doutrina especifica sobre o tema não é causa de empecilho a desconsiderar a pessoa jurídica, uma vez que o que importa é a análise dos elementos fáticos encontrados em desfavor da empresa. Nesta senda, apesar da dificuldade de imputar a responsabilidade aos integrantes de grupos econômicos de fato, visto que não há uma formalidade legal a regê-los, não deverá o judiciário abster-se de aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, quando constatar que determinados grupos societários vem buscando aferir mais lucros praticando atos ilícitos, principalmente, em desfavor do fisco, a fim de que seja possibilitado penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos cometidos. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Brasilia, DF: Senado Federal, 09 ago. 1943. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 ______. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Senado Federal, 31 out. 1966. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2013. ______. Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Senado Federal, 17 dez. 1976. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2014. ______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Senado Federal, 12 set. 1990. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2013. ______. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Senado Federal, 13 fev. 1998. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2014. ______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF: Senado Federal, 11 jan. 2002. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2013. ______. Senado Federal. Projeto de Lei: PLS nº 166/2010. Altera a redação do Código de Processo Civil em vigor - CPC/1973. Relator geral Senador Valter Pereira. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2014. ______. Portaria PGFN nº 320, de 30 de abril de 2008. Dispõe sobre o Projeto Grandes Devedores – PROGRAN. Diário Oficial da União, Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, Brasília, DF, 02 maio 2008. ______. Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Do parecer no tocante a viabilidade jurídica de se propor uma única medida cautelar fiscal para garantir dívidas executadas ou a executar, contraídas por um ou mais devedores domiciliados em localidades diversas. Parecer normativo nº 1499, de 06 de agosto de 2012. Relator: Wellington Viturino de Oliveira. Diário Oficial da União, Brasília, 06 ago. 2012. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18 ed. São Paulo: Sariava, v. 2, 2014. COELHO, Fábio Ulhoa. O regime de direito privado na desconsideração da personalidade juridica. In: QUEIROZ, M. E. ; TÔRRES, H. T. Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2005. FILHO, Edmar Oliveira Andrade. Planejamento Tributário. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. NETO, Alfredo de Assis Gonçalves. Manual das companhias ou sociedades anônimas. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 NETO, Alfredo Sérgio Lazzareschi. Lei das sociedades por ações anotada. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. OLIVEIRA, Thiago Ricci de. A pessoa jurídica no âmbito legal. Faculdade Marechal Rondon: Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar, out. 2010. Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2014. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 31 ed. São Paulo: Saraiva 2014. SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da personalidade jurídica: Aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. TARTUCE, Flávio. Direito Civil 1: Lei de introdução e Parte Geral. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense; São paulo: Método, 2014. TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe. Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2005

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A MODERNIDADE COMO FATOR GERADOR DA EXCLUSÃO: UM DIÁLOGO COM ENRIQUE DUSSEL Rafael Fávero Farias1 Aloísio Krohling2

RESUMO: O tema proposto no presente artigo é tema do qual a sociedade, de modo geral, além de filósofos e pensadores, consideram muito caro. No presente artigo pretende-se tratar o tema modernidade por meio de dois paradigmas: o primeiro, através da lente da sociedade ocidental dominante (eurocentrismo) e, segundo, pelo paradigma apresentado pelo filósofo e historiador argentino Enrique Dussel, (mito da modernidade). O artigo tem como objetivo analisar, através de uma pesquisa bibliográfica qualitativa, como o pensamento dusseliano pode contribuir para superação da negação do outro, imposto pelo paradigma da modernidade ocidental, eurocêntrica, e responder ao seguinte problema: como superar a negação do outro no paradigma dominante. PALAVRAS - CHAVE: modernidade, mito, Dussel. ABSTRACT: The theme proposed in this article is a subject which the society in general, as well as philosophers and thinkers, consider very important. This article intends to approach the issue modernity through two paradigms: the first one, through the lens of the dominant Western society (Eurocentrism) and, the second, by the paradigm presented by philosopher and Argentine historian Enrique Dussel (myth of modernity). The article aims to analyze, through a qualitative literature, how dusselian thinking can contribute to overcoming the denial of the other, imposed by the paradigm of western modernity, Eurocentric, and respond to the following problem: how to overcome the denial of the other in the dominant paradigm. KEY WORDS: modernity, myth, Dussel. APRESENTAÇÃO O tema proposto no presente artigo é uma temática da qual a sociedade de modo geral, além de filósofos e pensadores, consideram muito caro. Muito se tem discutido sobre a modernidade, seu marco histórico, suas características, seus malefícios e benefícios e também o seu término. No corpus deste artigo pretendemos tratar o tema modernidade por meio de dois paradigmas, o primeiro, será abordado pela lente da sociedade ocidental, abordando a construção da modernidade, apresentando suas características, seu conceito, bem como quais foram suas principais consequências.

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Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. e-mail: [email protected] 2 Aloísio Krohling- Ph.D. em Filosofia e M.A. em Ciências Sociais. Pós-Doutorado em Ciências Sociais. Professor permanente de Filosofia do Direito no Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos e Garantias Fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória. Professor colaborador no Mestrado em Sociologia Política na UVV. e-mail: [email protected]

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em um segundo momento trataremos do segundo paradigma, por meio da lente do filósofo e historiador argentino Enrique Dussel, de onde poderemos extrair que a modernidade pode ser vista por um prisma diverso, de dominação e conquista de negação do outro. E, por fim, abordaremos a filosofia da libertação proposta pelo filósofo Enrique Dussel, que nos direciona a um novo caminho de superação das consequências da modernidade eurocêntrica, sendo que a libertação das pessoas e dos povos oprimidos poderia ser alcançada através de categorizações filosóficas propostas pelo autor. Assim, o presente artigo, por meio de pesquisa bibliográfica qualitativa, objetiva analisar como o pensamento Dusseliano pode contribuir para superação de negação do outro imposto pelo paradigma da modernidade ocidental eurocêntrica. Com Dussel pretendemos responder o seguinte questionamento: Como superar a negação do outro no paradigma de modernidade eurocêntrica por meio do pensamento Dusseliano? 1 A CONSTRUÇÃO DA MODERNIDADE Não é fácil definir o sentido de modernidade, uma vez que se encontra em uma linha tênue entre passado e presente que em determinados momentos se entrecruzam, não nos permitindo objetivar o período histórico de que se está a tratar. De maneira geral, a modernidade é um caminhar transformador do modo de pensar ocidental com início no século XVI momento em que se observa uma ruptura com a tradição medieval. Em “O que é o iluminismo’’ Michel Focault (1984, p. 35-39) assevera que o tempo moderno é “tudo isso, a filosofia como problematização de uma atualidade e com interrogação para o filosofo dessa atualidade da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade’’. Em uma visão ocidental, duas concepções são fundamentais para se compreender a ideia do que vem a ser moderno: A ideia de progresso, que faz com que o novo seja considerado melhor ou mais avançado do que o antigo e a valorização do indivíduo, ou da subjetividade como lugar da certeza e da verdade e origem dos valores, em oposição à tradição, isto é, ao saber adquirido, às instruções, à autoridade externa. (MARCONES, 2004, P. 140). Por meio do surgimento da modernidade, a razão humana passa a constituir o ponto central, a coluna vertical, sendo que é a racionalidade o elo de ligação de todo o conhecimento. Apresenta-se como principal função e objetivo de se compreender a modernidade, a fim de entender o surgimento da ideia de sujeito, e de sujeito a dominação. O contato com novas culturas, o renascentismo, bem como a reforma protestante, as grandes navegações, direcionam-nos para uma nova concepção do mundo, fazendo surgir mudanças principalmente nos âmbitos sociais, políticos e religiosos. Pode-se considerar o renascimento como período crucial nas emergentes transformações do mundo ocidental, sendo a visão de mundo homem caracterizada pela “obsessão pelas descobertas”.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 De acordo com AMÉRICO (2004, p. 07) “Eruditos redescobrem as antigas doutrinas filosóficas e cientificas, forjados pelos gregos e em nome das quais torna-se possível constituir uma sabedoria nova aposta às concepções que prevaleceram na Idade Média”. A modernidade é a época em que a alma se retira do mundo das coisas e recolhe-se no mundo dos homens se acreditam suficientemente fortes e poderosos, qual um novo, qual um novo prometeu, se não para elevarem-se contra a divindade e se imporem aos deuses, ao menos para prescindirem de sua proteção e dispensarem seus serviços. (DOMINGUES, 1991 p. 32) Diante dessas mudanças, o mundo tomou a aparência de um lugar desajustado, dividido e sem sustentáculo, prestes a ruir, de modo que se fazia necessário o encontro de um norte, uma referência ou método no intuito de centralizar o mundo. Assim, é a razão que surge para resgatar e centralizar a unidade ora desordenada, estando ela acima das culturas existentes, se fazendo universal. A razão é de fato, o elemento comum a todos os seres humanos e por isso, assume condição de fundamento a partir do qual o mundo deve ser organizado. É ela quem deve a partir de agora, dar unidade e sentido a todas as esferas que compõem a existência humana. Tudo quanto pretenda ter legitimidade para existir necessita, pois de submeter-se ao crivo da razão. (HANSEN, 1999, p. 37). Na esteira de Cassier (1992, p. 32-33) a razão: (...) Desliza o espírito de todos os fatos simples, de todos, de todos os dados simples, de todas as crenças baseadas no testemunho da revelação, da tradição, da autoridade; Só descansa depois que desmontou peça por peça(...) Mas, após esse trabalho impõe de novo uma tarefa construtiva(...); Deverá construir um novo edifício, uma verdadeira totalidade. Descartada está a intenção divina que defendia o sentido da ação humana, cabendo ao próprio homem dar sentido à sua existência. A responsabilidade recai sobre o indivíduo que deve dirigir sua vida para o bem ou para o mal. Se a modernidade surgiu na época do Renascimento e foi moldada pela racionalidade cartesiana e pelo cientificismo de Francis Bacon, o Iluminismo foi a popularização do racionalismo cartesiano e do cientificismo baconiano. Neste sentido, Krohling (2007) afirma, que os seguidores do racionalismo cartesiano e do seu método matemático-dedutivo e os defensores do empirismo baconiano e do seu método experimental-indutivo, aparentemente bifurcados, se encontram na unidade gnosiológica da razão que tudo sabe e da ciência que tudo pode. Também o direito europeu seguiu o paradigma da modernidade, pois o positivismo jurídico é uma clara afirmação da racionalidade moderna. O direito europeu segue a perspectiva arbórea e vertical de Descartes que busca colocar todas as ciências dentro de uma Árvore. O direito ocidental fundamentado no eurocentrismo é um direito estatalista, liberal, kantiano, positivista, individualista e masculino.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O “século das Luzes”, como ficou marcado o século XVII, foi o maior precursor do intento moderno. O Iluminismo propagou cega e ilimitadamente razão. De acordo com Touraine (1994), a diferença entre a filosofia iluminista e a subsequente está na sua motivação de estender a todos os homens aquilo que poucos possuíam, diga-se, a razão condutora de sua existência. Neste linear, o homem moderno procura dominar os fenômenos sociais e naturais tomando por base o método matemático-dedutivo, cujo precursor foi René Descartes. O jurista, e por seu turno, o Direito, veem a realidade a partir de uma distância que possam enxergar o seu objeto de forma “neutra”, como o cientista, ao analisar uma lâmina em seu microscópio, cabendo-os elaborar, promulgar e aplicar normas que dêem conta dessa realidade, ou seja, que ordenem o comportamento humano de forma eficaz, deixando de se atentar no momento de sua aplicação, se determinadas normas são justas ou injustas, uma vez que o interesse está na puramente na eficácia da norma. O ideal moderno está ancorado em um sistema natural, despido de religiosidade ou de qualquer outro costume que não o aprovado “universalmente” e o indivíduo só está submetido às leis naturais” (TOURAINE 1994, p.20). Já não mais indaga por aquilo que é a realidade, mas por suas possibilidades. Se na Antiguidade e na Idade Média, o homem considerava verdadeiro o pensar de acordo com o que existe na realidade, nos tempos modernos inverte sua postura dizendo que aquilo que pode pensar, poderá realizar. O homem passa a interessar-se não tanto por aquilo que já é, mas por aquilo que ainda poderá ser. (ZILLES, 1993, p. 10) Com o passar dos anos, a modernidade edificou um personagem, sendo que os materiais de construção utilizados não foram cimento e água, como na construção de um prédio, nem mesmo barro ou parte da costela de Adão como na Bíblia, mas sim duas “figuras da modernidade: a racionalização e a subjetivação” (TOURAINE, 1994, p. 218) Contudo, se retrocedermos um pouco na história, principalmente no século XX, poderemos constatar que o uso da razão pelo homem, em muitos casos não legitimou o ideal e humanista, uma vez que ela foi usada para o mal. Para Chauí, (2003) a sociologia, que prometia conseguir o equilíbrio nas relações sociais, presenciou contraditoriamente o caos contemporâneo produzido pelo perverso e desumano uso da razão. Podemos nos perguntar, quais as implicações de uma razão que desprestigia tudo a sua volta? Foram incontáveis as ações maléficas causadas pelo uso da razão, dentre eles: massacres totalitários, bombas atômicas, guerras mundiais, além da dominação e conquista de povos e imposição de determinada cultura, dentre outros. Assim: A nova filosofia põe tudo em dúvida, o elemento do fogo está extinto, o sol está perdido e também a terra, e nenhum espírito humano tem com o que se orientar para a procura. E os homens confessam livremente que este mundo está em ruinas, quando entre os planetas e firmamento eles procuram tantos mundos novos; Eles veem então que tudo está em pedaços, toda a coerência perdida (...) (DONNE, 1949, p. 202)

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Para Touraine (2009), a modernidade é de modo conclusivo um arquétipo que destrói as raízes do homem, distancia-os uns dos outros, com o intuito de manter o Estado em pleno funcionamento. Todavia, esse processo “corrosivo” se aprimorou com a chancela de busca do progresso do conhecimento. Em uma análise detida pode-se verificar que a modernidade se forma com a Reforma, o distanciamento da identidade religiosa, a implantação do capitalismo, a fim de tornar o homem um escravo do progresso da sociedade, bem como a importância da Revolução Industrial e Cientifica para o caminhar do conhecimento. Desta feita, sobre o capitalismo, afirma-se: O capitalista é aquele que sacrifica tudo, não seu dinheiro mas à sua vocação - Berruf -, ao seu trabalho, pelo qual ele não assegurava de forma alguma sua salvação, como pensava a Igreja Católica, mas pode descobrir sinais de sua eleição – a certitudo selutis – ou pelo menos realizar o desprendimento do mundo que sua fé exige. (TOURAINE, 2009, p. 32). O capitalismo obriga o sujeito a se adaptar ao novo modelo social imposto, impondo ao mesmo sujeito a adoção de uma ideologia universal, não lhe concedendo margens para que se dirija para o lado que sua consciência determinar. O sujeito moderno diante do capitalismo da racionalidade exacerbada e do individualismo que caracterizam a modernidade se apresenta frágil, uma vez que seus olhos e pensamentos estão fechados diante do outro e voltados para si. Como podemos observar da narrativa até aqui apresentada, a modernidade, defendida como uma verdade irrefutável pela altura eurocêntrica caracterizou-se principalmente pela racionalidade, pelo capitalismo que nos leva a uma sociedade economicista, consumista e pelo individualismo que faria com que o mundo se redimira dos pecados passados e se tornaria uma sociedade e mundo ideal. Contudo, podemos verificar que tal verdade não se constatou e se transformou apenas em mais uma hipótese. Por meio dos ensinamentos do filósofo e historiador argentino Enrique Dussel, passaremos a analisar a modernidade sobre um outro viés, a fim de mostrar que a modernidade como nas palavras do autor não passou de um mito, que gerou e foi causador e exclusão e dominação. 2 DESCORTINANDO A MODERNIDADE: O MITO NA VISÃO DUSSELIANA Na visão do filósofo argentino Enrique Dussel, o surgimento da modernidade se dá com o descobrimento da Ameríndia, ou seja, com a colonização europeia da América, que posteriormente à implantação das ideias e bases ocidentais como centro, adquire poder politico, econômico e se impõe como sociedade superior. (DUSSEL, 1992, p. 29) Com isso, Dussel nos leva a outra afirmação, assinalando que a localização da Europa, anteriormente habitada por povos em sua maioria bárbaros, faz com que haja conflito entre a modernidade e a “barbárie” encontrada com a descoberta. A Grécia no hay que confundirla com la futura Europa. Esta Europa futura se situaba al norte de la Macedonia, y al norte de la Magna Grecia em Italia. El lugar de la Europa futura (la “moderna”) era ocupado por lo “bárbaro” por excelência (de maneira que posteriormente, en cuerta

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 forma, usurpará um nombre em el Império romano: Sólo la actual Turquía) o el África (el Egipto) son las culturas más desarrolhadas, y los griegos tienen clara consciência de ello. (DUSSEL, 2000, p. 41) Diante desta vertente que passa a se concretizar, bem como diante da concretização do poder econômico e principalmente ideológico que se afirma com a exploração e dominação da América, poderia se dizer que o poder europeu se edificou por meio das “descobertas” e “conquistas” e diante disso com a dominação, exploração das terras na América, se valendo da escravidão indígena e posteriormente negra africana para manutenção das riquezas. Segundo Dussel, o conceito de modernidade é ambíguo e se divide em dois paradigmas: El primero es eurocêntrico, provinciano, regional. As Modernidade es uma emancipación, uma “salida” de la imandurez por um esfuerzo de la razón como processo crítico, que abre a la humanidade humanidade a um nuevo desarrollo del ser humano. Este processo se cumliría em Europa, essencialmente em el siglo XVII (...) Para muchos en Galileo (condenado em 1616), Bacon (Norum Organum, 1620) o Descartes (El discurso del método, 1636) serían los iniciadores do processo moderno em el siglo XVII. (DUSSEL, 2000, p.45) Do conceito exposto, assevera-se que a modernidade é tratada como um progresso do racionalismo humano, acobertado pelo processo de desenvolvimento da cultura europeia, de onde se extrai que “a Europa teve características excepcionais internas que permitiram que ela superasse, essencialmente por sua racionalidade, todas as outras culturas.” (DUSSEL, 2000, p.51) Ademais, de acordo com o pensamento hegeliano, a Europa, “nada tem que apreender de outros mundos, outras culturas. Tem um princípio em si mesma e é sua plena realização”. (DUSSEL, 1992, p. 26) No conceito primeiro, Dussel nos apresenta a ideia de modernidade alicerçada no Renascimento ocorrido na Itália, no Iluminismo, na Reforma e na Revolução Francesa, já citada neste estudo, e nos chama atenção para a sequência temporal em que os fatos ocorreram, começando na Itália no século XVI-XVIII, se seguindo a Inglaterra no século XVII, bem como a França no século XVIII, demonstrando que em um primeiro momento a modernidade está afeta a quatro países europeus. O segundo conceito exposto pelo filósofo e historiador argentino se molda por outro viés, o de que foi século XV que a modernidade toma um sentido expansivo no mundo, com a “descoberta” da América Hispânica. Proponemos uma segunda visión de la “modernideal”, em um sentido mundial, y consistiria em definir como determinación fundamental del mundo moderno el hecho de ser (sus Estados, ejércitos, economia, filosofia, etc.)”centro de la Historia Mundial. Es decir, nunca hubo empiricamente História Mundial hasta el 1492 (como fecha de iniciación del despliegue del “Sistema-mundo”). (DUSSEL, 2000, p. 46). Por meio deste viés, podemos observar que a Espanha é o primeiro país a se tornar moderno. De acordo com Dussel a “Europa Latina” foi de extrema importância para o basilar da

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 modernidade, não se descartando o primeiro paradigma que define a modernidade, mas complementando-o. Conseguimos compreender a visão Dusseliana a partir do instante em que pensamos que se a colonização é o meio fundamental para que uma nação se conceba superior e moderna, então, uma outra nação também é fundamental, a fim de ser explorada e inferiorizada, devido as suas características racionais e ideológicas, elevando a Europa a um patamar moderno superior ao restante do mundo. Proponemos entonces dos paradigmas contradictórios: el de la mera “Modernidad” eurocénbrica, y el de la Modernidad subaumida desde um horizonte mundial, donde complió uma funcion ambrigua (por uma parte, como emancipación; y, por outra, como mítica cultura de la violência). La realización del segundo paradigma es um processo de “TransModernidad”. Sólo el segundo paradigma incluye a la “Modernidad/Alteridad” mundial. Em la obra de Tzetan Todorov, Nosotros y los otros, el “nosotros” son los europeus, y “los otros” somes nosotros, los pueblos del mundo periférico. Da Modernidad se dfinió como “emancipación” com respecto al “nosotros”, pero no advertió su carácter mítico-sacrificial com respecto a “los otros”. (DUSSEL, 2000, p. 51) A partir da crítica de Dussel à visão eurocêntrica de modernidade, percebemos que essa sociedade dita “moderna” se formou assim, por meio da subjugação de outra, da dominação, da interiorização racial, étnica, de gênero, a partir da exploração, foi desta forma que a Europa se fez para Dussel. 3 TUDO NÃO PASSA DE UM MITO! O primeiro paradigma dissecado no capítulo anterior e combatido no segundo, por uma visão Dusseliana, está basilado de modo dual no corpo e ego humanos com a valorização do indivíduo (EU) e da razão. Para Enrique Dussel, trata-se de um pensamento eurocêntrico e falacioso, uma vez que o mito poderia ser assim descrito: 1.

2. 3.

4.

5.

A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica). A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à européia o que determina, novamente de modo inconsciente, a “falência desenvolvimentista”). Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador, a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial). Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase ritual do sacrifício, o herói civilizador reveste as suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera). 6. Para o moderno, o bárbaro tem uma culpa (por opor-se ao processo civilizador) que permite à “Modernidade” apresentar-se não apenas como inocente, mas como “emancipadora” dessa “culpa” de suas próprias vítimas. 7. Por último e pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretamse como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera. (Dussel, 2005, p. 55-70). Os argumentos propostos por Dussel são observados por uma lente inversa, onde se pode enxergar a modernidade como um mito, haja vista que a vítima passa a ser o culpado e o culpado se transforma no inocente, sendo esta uma forma de irracionalismo e não de racionalismo. De acordo com Dussel (1992, p. 86) “É um vitimar o inocente (o outro) declarando-o causa culpável de sua própria vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno, plena inocência em relação ao ato de vitimá-lo”. O mito da modernidade é a negação do outro e de sua cultura, atribuindo a ele a culpa e ao verdadeiro culpado a inocência, além de legitimar a violência como instrumento de coerção do outro, a fim de que este faça parte da “civilização”. Nega-se a cultura do outro porque esta e vista como inferior, devendo ser sobrepujada. Nesta perspectiva, para Dussel só há uma maneira de superação da “Modernidade”, sendo que para isso: Será necessário negar a negação do mito da Modernidade. Para tanto, a “outra-face” negada e vitimada da “Modernidade” deve primeiramente descobrir-se “inocente”, é a “vítima inocente” do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a “Modernidade” como culpada da violência sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, essencial. Ao negar a inocência da “Modernidade” e ao afirmar a Alteridade do “outro”, negado antes como vítima culpada, permite “des-cobrir” pela primeira vez a “outra-face” oculta e essencial à “Modernidade” (...) (DUSSEL, 2005, p. 55-70). É por meio da negação do mito moderno e da legitimação da violência moderna que na visão de Enrique Dussel (2005, p. 55-70) “se reconhece a injustiça da práxis sacrificial fora da Europa (e mesmo na própria Europa) e, então, pode-se igualmente superar a limitação essencial da razão emancipadora. Supera-se a razão emancipadora como razão ‘libertadora’ quando se descobre o ‘eurocentrismo’ da razão ilustrada, quando se define a “falência desenvolvimentista” do processo de modernização hegemônico (...)”. Com o descortinar do discurso da modernidade, é possível se superar a razão emancipadora por uma razão libertadora.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 4. A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO EUROCÊNTRICO DE MODERNIDADE

COMO

SUPERAÇÃO

DO

PARADGIMA

A Filosofia da Libertação se molda, na atualidade, em uma filosofia que cristaliza a contextualização de uma historicidade e cultua na América Latina, haja vista que é ela que se envolve diante nossos problemas sociais e se preocupa com as mazelas enfrentadas e vivenciadas em nosso espaço-tempo, é ela que se dispõe a contribuir na solução do problema dos destinos da América Latina. Para Enrique Dussel, a possibilidade de se fazer uma Filosofia Latino-americana, estaria na Filosofia da Libertação, cujo intuito seria o de superação da dependência do campo filosófico e político. De acordo com o filósofo: Toda esta metafísica do sujeito, expressão temática da experiência fatídica do domínio imperial europeu sobre as colônias, se concretiza primeiro como mera vontade universal de domínio, mas real e historicamente como dialética de dominador-dominado. Se há vontade de poder, há alguém que deve sofrer seu poderio (...) e por isso sua filosofia universalizou sua posição de dominador, conquistador, metrópole imperial e o fez por uma pedagogia inconsciente, mas praticamente infalível, que as elites ilustradas sejam nas colônias os sub-opressores que mantenham os oprimidos em uma cultura de silêncio, e que, sem saber pensar e falar por si, os oprimidos só escutem por suas elites ilustradas, por seus filósofos europeizados uma palavra que os aliena: os faz outros (...). A tarefa da Filosofia latino - americana que tenta superar a modernidade, o sujeito, deverá propor-se a detectar todos os rastros deste sujeito dominador nordatlântico em nosso oculto ser Latinoamericano dependente e oprimido. Deste ponto de vista, toda simples repetição entre nós do pensado e dito no nordatlântico não significará a inocente vocação de um intelectual só ocupado com o acadêmico, o teórico. Esta mera repetição não crítica é agora, uma culpável adesão, com vida, pensar e palavras, a uma auto-domesticação para que outros aproveitem os benefícios da opressão. (DUSSEL, 1971) De tal maneira, não se trata apenas de um raciocínio intelectual, um jogo intelectual onde o pensamento puramente é quem vence, nem mesmo uma vocação pela razão. É sim, uma atitude filosófica, explique-se, uma práxis que se propõe capaz de modificar a realidade de subdesenvolvimento, dependência e opressão. Assim, a filosofia da libertação se propõe a uma atuação filosófica-reflexiva em relação a situação de dominação, dependência e opressão das pessoas e povos, não só da América Latina, mas do mundo, bem como se coloca a pensar em práticas que conduzam tais pessoas e povos a libertação. “Trata-se da libertação neocolonial do último e mais avançado grau de imperialismo. O imperialismo norte americano. O imperialismo que pesa sobre parte da Ásia, sobre quase toda a África e América Latina”. (DUSSEL, 1986, p. 20) Edificar uma filosofia da práxis, ou seja, uma filosofia que traz à luz os problemas enfrentados pela realidade cotidiana da sociedade e, por meio de uma atitude filosófica-reflexiva, encontrar caminhos para resolvê-los, é sem dívida uma das bases centrais da filosofia da libertação. Para Dussel (1986, p. 18-19):

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 (...) Práxis é um “ato” que uma pessoa, um sujeito humano realiza, mas que se dirige diretamente a outra pessoa (um aperto de mão, um beijo, um diálogo, um golpe) ou indiretamente (por intermédio de algo: por exemplo, repartir um pedaço de pão; o pão não é pessoa, mas se reparte para a outra pessoa). (...). A práxis é a maneira atual de estar em nosso mundo frente ao outro; é a presença real de uma pessoa ante outra (...). A práxis, então, na atualização da proximidade, da experiência de ser próximo para o próximo, de construir o outro como pessoa, como fim de minha ação e não como meio: respeito infinito. A filosofia da libertação parte da perspectiva inicial do negado pelo sistema, o oprimido, “o outro que olha a imagem por um espelho”, aquele que não está margeado apenas pelo Ser. A filosofia da libertação Dusseliana é esta tentativa de explicitação desse alcance que se mostra transcendente ao Ser, que se mostra como um reflexo do Outro, a que Dussel chama de alteridade. Por este motivo se apresenta como uma “metafísica da alteridade”. O filósofo e historiador argentino invoca o vocábulo “alteridade” para afirmar que o “Outro” também é possuidor de uma natureza constitutiva que lhe é própria. Aduz: O rosto do homem se revela como outro quando se apresenta em nosso sistema de instrumentos como exterior, como alguém, como uma liberdade que interpela, que provoca, que aparece como aquele que resiste à totalização instrumental. Não é algo; é alguém. (DUSSEL, 1986, p. 47) A abordagem primeira da filosofia da libertação deve ser por meio do discurso da periferia, a partir dos povos e pessoas oprimidas, diz Dussel. Seria essa abordagem um novo caminhar histórico-filosófico mundial. Para que isso seja possível, é necessário que nos voltemos para a realidade histórica, uma vez que ela nos é nova e em sua maioria desconhecida. A esta nova realidade histórica a qual nos voltamos, Dussel categoriza como “exterioridade”. O outro é exterioridade de toda totalidade porque é livre. Liberdade aqui não é somente uma certa possibilidade de escolher entre diversas mediações que dependem do projeto cotidiano. Liberdade agora é a incondicionalidade do outro com relação ao mundo no qual sempre sou centro. O outro como outro, isto é, como de seu próprio mundo (embora seja um dominado ou oprimido), pode dizer o impossível, o inesperado, o inédito em meu mundo, no sistema. (DUSSEL, 1986, p. 50-51) Na visão de Dussel, o meio adotado para se alcançar a libertação está em parar para ouvir a voz do outro, um outro que se constitui de respeito e que exige responsabilidade, que se apresenta, assim, além do sistema. O alcance da libertação se descortina ao ouvir o grito do outro, do oprimido, do povo que sofre as mazelas e consequências impostas pela modernidade. O libertar é um processo de desmitologização da modernidade. Através de categorizações, a Filosofia da Libertação descortina, desconstrói o mito moderno e eurocêntrico e apresenta uma nova realidade histórica a partir do olhar do oprimido. Nesta pesquisa apresentaremos três das seis categorias formuladas por Dussel para se chegar à libertação, são elas: a) proximidade; b) totalização e; c) exterioridade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 a) Proximidade Nesta categoria filosófica libertadora, o ponto fundante é o olhar que Dussel dimensiona ao Ser, a realidade, as experiências, as percepções, as relações, as lutas e a contraposição do povo latino-americano. Proximidade é a categoria que demonstra o embrião da relação humana, sua verdadeira essência. A aproximação é o desabrochar não limitado do surgimento do mundo como descrito pela modernidade hegemônica. Trata-se a proximidade de categoria genuína, raiz da práxis. É diante desta categorização que se inicia a responsabilidade pelo outro. Colocar tal responsabilidade à prova não é tarefa fácil, pois não é impossível de ser vivenciada, mas para aquele que presenciou a proximidade na igualdade e naquele que concebe como justo, torna-se mais fácil afirmar sua responsabilidade pelo oprimido, a quem acredita ser o seu semelhante. De acordo com Dussel: Proximidade é a palavra que exprime a essência do homem, sua plenitude primeira (arqueológica) e última (escatológica), experiência cuja memória mobiliza o homem em suas mais profundas entranhas e seus projetos mais amplos, magnânimos. (DUSSEL, 1986, p.25) A proximidade na visão de Dussel é fraterna entre homem e homem, o que nos faz acreditar em tal categoria como uma relação fraterna, trazendo o Outro para perto de si, estreitando os laços entre aquele que pode querer aproximar-se ou distanciar-se. Para Dussel esta aproximação esta demonstrada no estar face a face o filho e mãe no mamar, sexo a sexo o homem e a mulher no amor, ombro a ombro os irmãos na assembleia onde se decide o destino da pátria, palavra e ouvido do mestre discípulo na aprendizagem do viver. (DUSSEL, 1986, p. 25) Essa prática cotidiana de relacionar-se uns com os outros revela-se inventiva e multívoca, podendo-se percebê-la quando a mesma se direciona às pessoas ou no instante em que se volta aos outros. Para o filósofo e historiador o homem é um Ser ativo, sendo primordial que a práxis se mantenha sempre um ato que se dirija ao outro ou no interesse do outro, um ser em sua essência e na prática de sua alteridade. Veremos a seguir outra categoria considerada de imensa importância para Enrique Dussel, a totalidade. b) totalidade A totalidade é a segunda categoria a ser aqui analisada como responsável pela desmitologização da modernidade. Ela representa o todo de nosso cotidiano, representa a nossa realidade cotidiana, o mundo em que vivemos, podemos considerar aqui o trabalho, a escola, a sociedade e também a família. Na esteira de Dussel: Mundo é então uma totalidade instrumental, de sentido. Não é uma pura soma exterior de entes, mas é a totalidade dos entes com sentido. Não se trata do cosmos como totalidade de coisas reais; mas é a totalidade de entes com sentido. O mundo, poderíamos dizer, se vai desdobrando lentamente desde o momento de nossa concepção. Não é princípio,

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 como pensa a ontologia. A proximidade é o primeiro, anterioridade anterior a todo mundo. (DUSSEL, 1986, p. 28) Ao falarmos em totalidade, nos dirigimos ao mundo. Colocamos o mundo como um sistema que engloba todos os demais e que têm o ser humano como seu alicerce. Valer-se do mundo é voltar-se para um projeto histórico que se faz passado e futuro. Significa olhar para uma realidade que é historicamente centro, mas que pode ser também periférica. Dussel, por meio da filosofia da libertação, se dirige ao passado, com o intuito de encontrar a origem de uma dominação e dependência que remontam a 1492, época dos grandes descobrimentos, conforme já foi aqui tratado. De tal maneira: O homem compreende e abarca o mundo como totalidade. Tal totalidade está presente em todo ato humano concreto. Descobrir que esta coisasentido é uma mesa, é possível porque aquele que descobre pode relacionar ‘isso’ com todo o resto e interpretar ‘isso’ como mesa. Sem o todo a priori é impossível construir o sentido de algo. (DUSSEL, 1986, p. 33) Desta forma, compreender o mundo é compreendê-lo através de um método e matriz dialética, uma vez que o mundo está em constante movimento e a totalidade do mundo o segue histórica e espacialmente. Tal fato ocorre, devido a natureza do próprio homem que cotidianamente absorve fatos, informações, pensamentos, desejos, ambições, ou seja, o que lhe é apresentado e tudo está em constante movimento a fim de que possamos absorvê-los.

c) Exterioridade Por fim, e de suma importância para se alcançar uma libertação, temos como categoria a exterioridade. É ela a verdadeira e desejada libertação, que transmuta-se da totalidade encarcerada do sistema centro e fim, para uma totalidade que não é só centro, mas periferia, revelando neste descortinar o que se apresenta como exterior à ordem dominante estabelecida. O ser é exterioridade. Esta fórmula não equivale apenas a denunciar as ilusões do subjetivo e a pretender que só as formas objetivas, opostas às areias em que se enterra e se perde o pensamento arbitrário, merecem o nome de ser. Uma tal concepção demoliria no fim de contas a exterioridade, dado que a própria subjetividade se diluiria na exterioridade, revelando-se como um momento de um jogo panorâmico. Exterioridade já nada significaria então, pois englobaria a própria interioridade que justifica essa denominação. (LEVINAS, 1994, p. 270) Ao afirmarmos a exterioridade, o Outro revela sua face e passamos a respeitá-lo como Outro, não nos fechando a sua singularidade. Edifica-se a partir daí uma relação de respeito e que na verdade é mais que isso, é uma relação de Alteridade. No instante em que se pensa o mundo através da exterioridade do Ser abre-se caminho para um novo Ser. Entretanto, para que tal objetivo seja alcançado, se faz necessário um retorno ao passado, à origem do mundo, a fim de não permitir que este mesmo Ser seja vítima da opressão e sim que este ser trilhe um novo caminho histórico.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Também o direito que se pretenda libertador deve ser rizomático, contemplando uma dimensão de múltiplas raízes, de pluralidade e construído a partir da interculturalidade. Hoje em dia então, o paradigma de pesquisa precisa estar relacionado com a multiplicidade e redes de conhecimento. CONSIDERAÇÕES FINAIS No presente artigo, apresentou-se a modernidade, primeiramente, como construção da sociedade civilizatória, demonstrando seus principais elementos: a razão humana, o capitalismo e o individualismo, dentre outros que direta ou indiretamente estão relacionados e ajudaram na construção da “sociedade moderna”. Pudemos perceber que o uso exacerbado da razão, bem como o capitalismo e o individualismo, trouxeram inúmeras implicações como os massacres totalitários, as bombas atômicas, as guerras mundiais e, principalmente, a dominação e conquista de povos e culturas consideradas inferiores, a fim de transformar e livrar estas sociedades da barbárie. Em um segundo momento, no intuito de responder ao problema e alcançar o objetivo proposto da apresentação do artigo, fizemos uma imersão no pensamento do filósofo e historiador Enrique Dussel que, com sofisticada simplicidade, nos apresenta uma outra visão da modernidade, demonstrando que seu surgimento se deu com as “grandes navegações” e a descoberta da Ameríndia. O filósofo também nos apresenta um segundo paradigma que não o ocidental, eurocêntrico, que apresentamos na primeira parte deste artigo. Ele tece argumentos, a fim de demonstrar que a modernidade na visão ocidental, eurocêntrica, é um mito, uma vez que enxerga o outro (a vítima) como o culpado e o vitimador como inocente. Na visão ocidental, a sociedade europeizada se determina superior e inferioriza os outros povos e culturas. Por fim, respondemos e cumprimos nosso objetivo delineando os argumentos expostos por Enrique Dussel, no que tange à superação do mito da modernidade, onde povos e culturas (o outro) são negados, inferiorizados, sendo a filosofia da libertação a possibilidade apresentada como superação do paradigma vigente. Para o filósofo argentino é necessário negar a negação do mito, reconhecendo a injustiça à exclusão social. É com o descortinar do discurso da modernidade que será possível se superar a razão emancipadora por uma razão libertadora. REFERÊNCIAS AMÉRICO, José Motta Pessanha. Vida e Obra. In: DESCARTES, René. Descartes – Vida e Obra. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. CHAUÍ, Marilena. Filosofia Ensino Médio: Volume Único. São Paulo, Ática, 2003. CASSIER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Campinas SP: Editora da UNICAMP, 1992. DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento. O problema da fundamentação das ciências humanas. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

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VALIDADE DAS LICENÇAS AMBIENTAIS: NECESSÁRIO APRIMORAMENTO EM FACE DA DINÂMICA DA ECONOMIA Vinicius Diniz e Almeida Ramos1 José Cláudio Junqueira Ribeiro

RESUMO

O processo de licenciamento ambiental, suscitado primitivamente pela Lei n. 6.938/1981, foi regulamentado pela Resolução CONAMA n. 237/1997, que disciplina, no art. 18, as questões relativas à validade das licenças ambientais. A mencionada norma, no caput e em seus incisos I, II e III, cuida de estabelecer os prazos mínimos e máximos das licenças prévias (LP), licenças de instalação (LI) e licenças de operação (LO). No §1º, trata da possibilidade de prorrogação da vigência das licenças prévias e das licenças de instalação para, em seguida, no §2º, aduzir acerca do estabelecimento de prazo específico para a licença de operação (diferente daquele indicado no inciso III). No §3º são estabelecidas as condições para que, na renovação da licença de operação, fixe-se validade diversa daquela fixada originalmente. Por fim, no §4º, a norma presta orientações quanto à antecedência a ser observada pelo empreendedor no pedido de renovação da LO. Apesar de se reconhecer a importância do licenciamento ambiental, nota-se a necessidade de aprimorar-se o procedimento, com vistas a oferecer, ao empreendedor, as condições imprescindíveis para o aproveitamento das oportunidades oferecidas pelo mercado. Como subsídio, expõe-se parte do estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) que, apontando os entraves burocráticos do processo de licenciamento, apresenta sugestões de aprimoramento. Ao final, conclui-se que as medidas propostas pela CNI são viáveis e, se implementadas, proporcionarão ganhos significativos à atividade empresarial, tornando mais célere a obtenção e a renovação das licenças ambientais, especialmente no que tange à licença de operação.

Palavras-chave: Licenças ambientais. Validade. Processo. Aprimoramento.

1

Vinicius Diniz e Almeida Ramos, Mestrando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC) e José Cláudio Junqueira Ribeiro, Doutor em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais; Professor do Mestrado em Direito Ambiental da Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC).

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RESUMEN

El proceso de licenciamiento ambiental, originalmente planteado por la Ley n. 6938/1981, fue regulada por la Resolución CONAMA n. 237/1997 que la disciplina en el arte. 18, las cuestiones relativas a la validez de las licencias ambientales. La norma mencionada en el caput y sus secciones I, II y III, se encarga de establecer los períodos máximos y mínimos la licencias previas (LP), licencias de instalación (LI) y licencias de operación (LO). En el §1º se refiere a la posibilidad de prórroga de la validez de los permisos previos y las licencias para la instalación, a continuación, en el §2º, aducen en el establecimiento de tiempo específico para una licencia de explotación (distinta de la indicada en la sección III). En §3º establecieron las condiciones para que la renovación de la licencia de explotación, fija diferente a la validez originalmente se establecen. Por último, en el §4º, la norma proporciona orientación sobre la notificación para ser observado por el empresario en la solicitud de renovación de la LO. Sin dejar de reconocer la importancia de las licencias ambientales, tenga en cuenta la necesidad de mejorar el procedimiento, con el fin de ofrecer al empresario las condiciones para aprovechar las oportunidades que ofrece el mercado. Cómo subsidio expone una parte del estudio realizado por la Confederación Nacional de la Industria (CNI) que indica los obstáculos burocráticos en el proceso de concesión de licencias, que oferta sugerencias de mejora. Al final, se concluye que las medidas propuestas por CNI son factibles y, de aplicarse, brindará importantes beneficios de la actividad empresarial, haciendo más rápida la obtención y renovación de las licencias ambientales, especialmente en lo que respecta a la licencia de operación. Palabras clave: Licencias ambientales. Validez. Proceso. Mejora.

1 INTRODUÇÃO

A Resolução CONAMA n. 237, de 19 de dezembro de 1997, teve o condão de disciplinar as regras e os procedimentos pertinentes ao licenciamento ambiental. Nesse bojo, incluem-se as normas pertinentes aos prazos de validade das licenças ambientais, que se encontram concentradas no art. 18 da citada Resolução.

Tais normas – inobstante representarem um importante marco na legislação brasileira no que tange à preservação do meio ambiente – necessitam de aprimoramento, com vistas a atender não só aos aspectos ambientais propriamente ditos, mas propiciar o desenvolvimento sustentável de forma efetiva.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Buscando contribuir para o aperfeiçoamento do processo de licenciamento ambiental, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a partir de pesquisa realizada junto às vinte e sete Federações a ela vinculadas, elaborou, em 2013, trabalho através do qual aponta algumas das deficiências dos procedimentos atuais e oferece importantes sugestões no sentido de aprimorarem-se as regras, de modo que os empreendedores possam usufruir dos custos de oportunidade decorrentes da dinâmica da economia atual.

Procurar-se-á, neste trabalho, (re)interpretar os termos do art. 18 da Resolução CONAMA n. 237/1997, a partir de entendimentos doutrinários e, em seguida, apontar os posicionamentos da Confederação Nacional da Indústria (CNI) acerca do tema.

Na elaboração deste artigo utilizar-se-á o método hipotético-dedutivo, partindo da premissa de que o atual cenário econômico exige, do empreendedor, agilidade na tomada de decisão e, especialmente, nos investimentos voltados à implementação de suas atividades empresariais, o que torna o processo de licenciamento ambiental inadequado e excessivamente burocrático.

Este trabalho é especialmente importante, em razão de que o processo de licenciamento ambiental é imprescindível para a instalação de uma gama considerável de empreendimentos. Por sua vez, tal processo é moroso e intrincado, causando óbices (às vezes insuperáveis) aos empreendedores.

No capítulo dois, analisar-se-ão as regras que disciplinam a validade das licenças ambientais, as possibilidades e condições para sua prorrogação, o estabelecimento das circunstâncias que autorizam a emissão da licença de operação por prazo específico, a questão atinente à renovação da LO e, por fim, a antecedência que o empreendedor deve observar na referida renovação.

No capítulo três, abordar-se-á o posicionamento da Confederação Nacional da Indústria em face das regras pertinentes ao licenciamento, especialmente no que se refere aos prazos de validade das licenças. Nesse espeque, serão apresentadas, ainda que de modo sucinto, as sugestões que a CNI oferece para o aprimoramento das mencionadas normas.

No quarto e último capítulo, procurar-se-á conjugar os temas tratados neste artigo à luz do desenvolvimento sustentável, por meio do qual se reconhece a importância da preservação do meio ambiente e, também, do crescimento econômico, sendo ambos valores irrenunciáveis da sociedade.

2 ASPECTOS DA VALIDADE DAS LICENÇAS AMBIENTAIS

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A Resolução CONAMA n. 237/1997 cuidou de disciplinar os procedimentos atinentes à obtenção de licenças ambientais, determinando os prazos de validade de cada tipo de licença (Licença Prévia, LP; Licença de Instalação, LI; e Licença de Operação, LO).

Esses períodos de vigência são de significativa relevância, haja vista que, em relação à LO, por exemplo, acabam por delimitar temporalmente a operação regular do empreendimento ou da atividade.

Neste capítulo, objetiva-se realizar o estudo do art. 18 da Resolução CONAMA n. 237/1997, que regulamenta especificamente a questão da validade das licenças, sua eventual prorrogação, o estabelecimento de prazos específicos para a LO e a renovação da Licença de Operação.

Para efeito meramente didático, será estudado, inicialmente, o caput do artigo e os três incisos que o sucedem para, em seguida, abordar-se cada um dos quatro parágrafos que integram o dispositivo.

2.1 Prazos de validade das licenças ambientais

De modo a delimitar-se precisamente o campo de estudo da presente seção, imprescindível transcrevermos o art. 18, caput e incisos I, II e III, da Resolução CONAMA n. 237/1997:

Art. 18 - O órgão ambiental competente estabelecerá os prazos de validade de cada tipo de licença, especificando-os no respectivo documento, levando em consideração os seguintes aspectos:

I - O prazo de validade da Licença Prévia (LP) deverá ser, no mínimo, o estabelecido pelo cronograma de elaboração dos planos, programas e projetos relativos ao empreendimento ou atividade, não podendo ser superior a 5 (cinco) anos.

II - O prazo de validade da Licença de Instalação (LI) deverá ser, no mínimo, o estabelecido pelo cronograma de instalação do empreendimento ou atividade, não podendo ser superior a 6 (seis) anos.

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III - O prazo de validade da Licença de Operação (LO) deverá considerar os planos de controle ambiental e será de, no mínimo, 4 (quatro) anos e, no máximo, 10 (dez) anos.

O caput do art. 18 estabelece que o prazo de validade de cada tipo de licença será definido pelo órgão ambiental. Já de antemão conclui-se, portanto, que as licenças ambientais concedidas ao empreendedor têm prazo de vida pré-determinado, não se perpetuando no tempo. Sobre o tema, leciona Bechara (2009, p.98):

As licenças ambientais não subsistem ad eternum. Todas elas – LP, LI e LO – têm prazo de validade estabelecido na legislação correspondente. O intuito é evitar que se perpetuem situações que à época da concessão ambiental são adequadas mas que, alguns anos e novos conhecimentos depois, afiguram-se ambientalmente defasadas, de modo a merecer atualização ou, simplesmente, não execução.

Farias (2011, p.83) também discorre sobre a validade limitada das licenças, aduzindo que “a garantia de segurança jurídica na proteção do meio ambiente, em face das inovações tecnológicas e da dinâmica das condições ambientais, é a razão de ser dos prazos de vigência das licenças ambientais.”

Trata-se de sopesar a proteção ambiental à liberdade de empreender sob o aspecto da proporcionalidade, que Winter (2013, p.57) explica como sendo o norte para as relações entre o Poder Público e os particulares, no sentido de propiciar ao primeiro a intervenção no direito dos segundos, com vistas a garantir o interesse público.

O inciso I trata da validade da Licença Prévia (LP), determinando que seu prazo máximo admissível é de 5(cinco) anos. Quanto ao prazo mínimo, disciplina que este “deverá ser, no mínimo, o estabelecido pelo cronograma de elaboração dos planos, programas e projetos relativos ao empreendimento ou atividade”.

Significa dizer que o prazo de vigência da LP não poderá ser inferior àquele que o empreendedor indicou em seu cronograma como sendo o necessário para a elaboração dos planos, dos programas e dos projetos vinculados ao empreendimento (observando-se, contudo, a limitação de cinco anos). Questão das mais óbvias. Ora, se o empreendedor indica que para a elaboração dessa documentação necessitará, digamos, de dois anos, não poderá o órgão ambiental emitir a LP com prazo de validade inferior a dois anos, simplesmente

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 porque, o fazendo, estaria tornando a própria licença inócua, ou seja, a licença prévia nasceria fadada a extinguir-se sem que o empreendedor tivesse conseguido cumprir seu encargo.

De toda forma, o dispositivo estabelece um prazo de validade máximo para a LP: cinco anos. Resta claro que, dentro do prazo de validade fixado pelo órgão ambiental, o empreendedor deverá elaborar os planos, programas e projetos relativos ao empreendimento ou atividade.

Poder-se-ia questionar o porquê do prazo ter sido fixado em cinco anos (e não em três, ou seis, ou oito). Na realidade, inobstante não haver um estudo científico sobre o assunto, o CONAMA entendeu que cinco anos é um prazo razoável para que o empreendedor adote as medidas e desenvolva seus planos, programas e projetos relativos ao empreendimento, de modo que estes ainda se mostrem alinhados com as metodologias e tecnologias que assegurem a proteção ambiental pretendida.

Situação semelhante ocorre com a Licença de Instalação (LI), tratada no inciso II do art. 18. O prazo de validade dessa licença deve corresponder, pelo menos, àquele estabelecido no cronograma para a instalação do empreendimento ou atividade. O raciocínio aplicado, neste caso, é o mesmo empregado em relação à LP. Se o cronograma estabelecido pelo empreendedor indica que a instalação será realizada no prazo de três anos, não faria o menor sentido o órgão ambiental emitir uma licença de instalação com validade inferior a este período.

Contudo, a norma cuida de fixar um prazo de vigência máximo para a LI, qual seja, seis anos. Desse modo, pelas mesmas razões já indicadas alhures, quando tratamos da LP, a licença de instalação não pode ter validade superior ao estabelecido na norma, devendo o cronograma do empreendedor – para a instalação do empreendimento ou atividade – amoldar-se para que seja concluído, no máximo, nesse prazo.

Comentando acerca da fixação de prazos de validade para a licença prévia e para a licença de instalação, Bechara (2009, p.99) aduz:

A existência de prazo na Licença Prévia e na Licença de Instalação impõe para o empreendedor o ônus de atender todas as exigências e condicionantes estabelecidas pelo órgão ambiental no lapso temporal informado, sob pena de ele ficar impedido de seguir para a fase posterior e, consequentemente, de concluir o licenciamento. Aliás, esta é a única “sanção” que lhe será imposta: impedimento de instalar ou de operar o empreendimento, o que nos permite entender que o atendimento das condicionantes, nestas duas fases, é mais um ônus do que um dever.

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Em relação à Licença de Operação (LO), o comando disposto no inciso III fixa o prazo mínimo de quatro anos e o prazo máximo de dez anos. Ensina Bechara (2009, p.99) que a fixação de prazo para a licença de operação autoriza o funcionamento da atividade por determinado tempo, condicionando a sua manutenção à “comprovação de que o empreendimento continua cumprindo as condicionantes impostas para a sua operação”.

Também aqui pode surgir uma dúvida sobre o critério utilizado pelo órgão ambiental para definir o prazo de validade da licença. A norma permite que esse prazo seja fixado no intervalo entre quatro e dez anos, mas o que faz com que o licenciador emita a LO com vigência de quatro, ou de seis, ou de oito, ou de dez anos?

As Resoluções CONAMA não nos oferecem resposta a essa questão, razão pela qual – apenas exemplificadamente – vamos nos socorrer da norma instituída pelo COPAM no Estado de Minas Gerais. Estabelece o art. 1º, inciso III e §§ 1º e 2º da Deliberação Normativa COPAM n.º 17, de 17 de dezembro de 1996, alterada pela Deliberação Normativa COPAM n.º 23, de 21 de outubro de 1997:

Art. 1º - As licenças ambientais outorgadas pelo Conselho Estadual de Política Ambiental – COPAM são: Licença Prévia – LP, Licença de Instalação – LI e Licença de Operação – LO, com validade pelos seguintes prazos:

[...]

III – Licença de Operação – LO: 8 (oito), 6 (seis) ou 4 (quatro) anos para as atividades enquadradas no Anexo I à Deliberação Normativa COPAM n.º 1, de 22 de março de 1990, respectivamente, nas classes I, II e III, salvo para atividade de pesquisa mineral referida no art. 2º da Deliberação Normativa COPAM n.º 4, de 20 de dezembro de 1990, hipótese em que o prazo será fixado em conformidade com aquele estabelecido para o alvará de pesquisa mineral.

§1º - Caso o empreendimento ou atividade tenha incorrido em penalidade prevista na legislação ambiental, transitada em julgado até a data do requerimento de revalidação da Licença de Operação, o prazo de validade subsequente será reduzido de 2 (dois) anos, até o limite mínimo de 4 (quatro) anos, assegurado àquele que não sofrer

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 penalidade o acréscimo de 2 (dois) anos ao respectivo prazo, até o limite máximo de 8 (oito) anos.

§2º - A redução do prazo de validade ocorrerá caso o empreendimento ou atividade tenha atingido 6 (seis) ou mais pontos, de acordo com a seguinte escala: 1 – infração leve: 2 (dois) pontos; 2 – infração grave: 3 (três) pontos; 3 – infração gravíssima: 6 (seis) pontos.

De plano, percebe-se que a norma do COPAM – Minas Gerais fixa o prazo máximo da licença de operação em 8(oito) anos; prazo este inferior àquele indicado na Resolução CONAMA n.º 237/1997, art. 18, inciso III. Por sua vez, nota-se que a norma mineira é objetiva quanto aos critérios adotados para fixação do prazo de validade da LO, estabelecendo que o citado prazo será de 8(oito), ou de 6(seis) ou de 4(quatro) anos, a depender da atividade a ser desenvolvida e de seu consequente enquadramento na classe I, II ou III, nos termos do Anexo Único da Deliberação Normativa COPAM n.º 74, de 2004 2.

O enquadramento ora mencionado leva em conta inúmeros fatores, como, por exemplo, o porte do empreendimento, o impacto da operação em relação aos recursos ambientais “ar/água/solo”, ao tipo de atividade desenvolvida (minerária, infraestrutura, serviços/comércio, etc.), dentre outros.

Os §§ 1º e 2º, do art. 1º, da Deliberação Normativa COPAM n.º 17/1996, por outro lado, delimitam os critérios que serão utilizados para a redução ou ampliação do prazo de validade original, quando da renovação da LO, tendo como lastro eventuais penalidades aplicadas ao empreendedor pelo cometimento de infrações ambientais.

Percebe-se que a norma do COPAM, em razão de sua objetividade, sobressai em relação à Resolução CONAMA n. 237/1997 que, conforme visto anteriormente, é vaga quanto aos critérios a serem utilizados na definição do prazo de validade das licenças ambientais.

2

Apesar do art. 1º, inciso III, da Deliberação Normativa COPAM n.º 17/1996 referir-se ao Anexo I da Deliberação Normativa COPAM n.º 1/1990, esta última norma foi revogada e substituída pela Deliberação Normativa COPAM n.º 74/2004, que, em seu Anexo Único, fixa os critérios para classificação das atividades e empreendimentos nas classes I, II ou III.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 2.2 Prorrogação da validade da LP e da LI

O §1º, do art. 18, da Resolução CONAMA n. 237/1997, cuida da possibilidade de prorrogação do prazo de vigência da Licença Prévia e da Licença de Instalação, aduzindo:

§ 1º - A Licença Prévia (LP) e a Licença de Instalação (LI) poderão ter os prazos de validade prorrogados, desde que não ultrapassem os prazos máximos estabelecidos nos incisos I e II.

O dispositivo autoriza que o prazo de validade da licença prévia e da licença de instalação seja prorrogado, desde que não ultrapasse o prazo máximo fixado para cada uma dessas licenças, nos termos do inciso I e inciso II, do mesmo art. 18.

A interpretação da norma é bastante simples. Sendo o prazo máximo de vigência da LP de cinco anos, caso o órgão ambiental tenha expedido a licença com prazo de validade inferior a esse, poderá prorroga-lo até o limite de cinco anos. No caso da LI o raciocínio é idêntico: se a licença tiver sido expedida com prazo de validade inferior a seis anos, poderá sua vigência ser prorrogada até este limite. Do dispositivo normativo ora em exame, exsurgem inevitavelmente três constatações.

A primeira, a falta de previsão acerca da possibilidade de prorrogação do prazo de validade da licença de operação3. A norma é incisiva e taxativa ao mencionar especificamente a licença prévia e a licença de instalação, donde se conclui que é terminantemente vedada a prorrogação do prazo de vigência da licença de operação (LO). Não há possibilidade legal para que a validade dessa licença seja postergada.

Não é o que entende a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (FIRJAN), para quem o prazo de validade da licença de operação pode ser ampliado até o limite de dez anos, desde que a LO tenha sido expedida com prazo de vigência inferior ao máximo estabelecido no inciso III, do art. 18. Deverá o empreendedor, neste caso, comprovar que mantém as condições ambientais existentes quando da concessão da licença primitiva, dentre outras exigências.

Inobstante poder-se concluir que o melhor – e mais razoável – seja a possibilidade de prorrogação da validade da licença de operação, conforme entende a FIRJAN, a norma do §1º, do art. 18, é incisiva ao firmar esta possibilidade apenas para a licença prévia e para a licença de instalação. 3

Observe-se que o §1º, do art. 18, da Resolução CONAMA n.º 237/1997, faz menção apenas à licença prévia e à licença de instalação.

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Assim, entende-se que, ainda que a LO tenha sido originalmente expedida com prazo de validade inferior ao máximo (dez anos), não há qualquer mecanismo para que essa validade seja prorrogada, mesmo que tal prorrogação, somada ao prazo original, encontre limite nos dez anos fixados pelo inciso III, do art. 18.

A segunda constatação diz respeito à impossibilidade de qualquer prorrogação ampliar a validade além dos prazos máximos fixados nos incisos I e II. Desse modo, se a licença prévia e ou a licença de instalação tiverem sido expedidas, originalmente, já com os prazos máximos fixados pela norma (cinco anos para a LP e seis anos para a LI), a validade dessas licenças será improrrogável.

Em outros termos, pode-se dizer que eventual prorrogação da vigência da licença prévia e ou da licença de instalação somente será cabível se tais licenças, originalmente, tiverem sido expedidas com prazo de validade inferior ao máximo fixado nos incisos I e II, do art. 18, da Resolução CONAMA n.º 237/1997 e, nesse caso, a prorrogação, somada ao prazo originalmente fixado, encontra limite nos prazos máximos determinados pelos mesmos incisos I e II.

A terceira constatação, por fim, refere-se ao fato de que o pedido de prorrogação é um ato praticado pelo empreendedor. Fixado o prazo de validade original, somente ao empreendedor interessaria sua prorrogação, motivada, a princípio, pela impossibilidade de cumprir o cronograma para elaboração dos planos, programas e projetos vinculados ao empreendimento – no caso da licença prévia – ou pela impossibilidade de efetivamente instalar o empreendimento ou atividade – no caso da licença de instalação.

2.3 Possibilidade de prazo específico para a LO

Nesta seção, examinar-se-á o comando constante do §2º, do art. 18, da Resolução CONAMA n. 237/1997, que trata da possibilidade de expedir-se Licença de Operação com prazo de validade diferente daquele indicado no inciso III do mesmo art. 18. Dispõe a norma:

§ 2º - O órgão ambiental competente poderá estabelecer prazos de validade específicos para a Licença de Operação (LO) de empreendimentos ou atividades que, por sua natureza e peculiaridades, estejam sujeitos a encerramento ou modificação em prazos inferiores.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Inobstante o dispositivo autorizar o órgão ambiental competente a expedir licença de operação com prazo de validade específico, fica claro que a norma refere-se à fixação da vigência da LO por prazo inferior ao mínimo estabelecido no inciso III; jamais em prazo superior ao máximo fixado. É o que se pode concluir com a leitura da parte final do §2º (“estejam sujeitos a encerramento ou modificação em prazos inferiores”).

Assim, deduz-se que é absolutamente vedada a expedição de licença de operação com prazo de validade superior a dez anos (prazo máximo admitido pela Resolução), ainda que o empreendimento tenha natureza e peculiaridades que façam supor serem os dez anos um período demasiadamente curto para sua operação.

Conclui-se que a norma se destina a atender aquelas situações em que a atividade ou o empreendimento não permanecerão ativos e em funcionamento nem mesmo pelos quatro anos indicados como prazo mínimo para a LO. Tratar-se-á, certamente, do caso de atividades temporárias ou de empreendimentos que, por sua natureza e segmento, esgotarão sua atuação em menos de quatro anos. Nesse caso, de fato, não faria sentido expedir uma LO nem mesmo com o prazo mínimo de validade, se já se sabe de antemão que a atividade será realizada por período inferior a este.

Dúvida surge se, expedida a LO com prazo inferior a quatro anos (mínimo previsto no inciso III), com fulcro no §2º, do art. 18, da Resolução CONAMA n.º 237/1997, seria cabível a renovação dessa licença de operação, nos termos do §3º, do mesmo art. 18.

Ora, se a licença de operação foi expedida com prazo de validade inferior ao mínimo legal – em razão da atividade ou empreendimento, a priori, não perdurar nem mesmo por este período mínimo – poder-se-ia entender como incabível a renovação da licença. Essa não é a melhor interpretação. Mesmo as licenças expedidas sob a hipótese do §2º estão sujeitas à possibilidade de renovação prevista no §3º e no §4º, do art. 18. Até porque é preciso ser prático. Suponha-se que determinada atividade esteja prevista para ocorrer apenas durante dois anos e, dessa forma, o empreendimento tenha sido licenciado (LO) apenas por este período. Agora considere que, passados os dois anos, seja constatada a viabilidade de continuação da atividade – digamos – por mais dois anos: nada mais lógico e razoável do que o empreendedor requerer a renovação da licença de operação, com supedâneo no §3º e §4º, do art. 18. E nada mais lógico e razoável do que o órgão competente, avaliando o desempenho ambiental do empreendimento, conceder a renovação pretendida pelo empreendedor.

2.4 Renovação da LO

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Determina o §3º, do art. 18, da Resolução CONAMA n.º 237/1997:

§ 3º - Na renovação da Licença de Operação (LO) de uma atividade ou empreendimento, o órgão ambiental competente poderá, mediante decisão motivada, aumentar ou diminuir o seu prazo de validade, após avaliação do desempenho ambiental da atividade ou empreendimento no período de vigência anterior, respeitados os limites estabelecidos no inciso III.

Já de início, pode-se afirmar que a “renovação da licença ambiental” – expressão presente em alguns dispositivos na Resolução CONAMA n.º 237/1997 – não se confunde com a “revisão do licenciamento”. Farias (2011, p.163) ensina a diferença entre os dois institutos:

A respeito do tema, não se pode confundir revisão com renovação. Falar em revisão do licenciamento implica adequar, anular, cassar, revogar ou suspender a licença concedida em pleno prazo de validade. Por outro lado, falar em renovar implica em requerer uma nova licença ao órgão ambiental, tendo em vista que o prazo da licença vigente está perto de se esgotar.

A renovação, portanto, decorre da iminente expiração da data de validade da licença de operação, devendo ser requerida pelo empreendedor junto ao órgão ambiental competente, com a antecedência indicada no §4º estudado adiante.

A questão aduzida pelo §3º, ora analisado, é que, na renovação da LO, o órgão ambiental poderá fixar um prazo de validade diferente daquele que houvera fixado no período de vigência anterior. Suponha-se que, na expedição de determinada licença de operação, o órgão ambiental estabeleça uma validade de seis anos. Quando da renovação dessa licença, esse mesmo órgão ambiental pode decidir por alterar o prazo de validade da LO, fixando-o, por exemplo, em quatro anos (prazo mínimo) ou, até mesmo, em dez anos (prazo máximo); tudo a depender do desempenho ambiental da atividade ou empreendimento.

Todavia, caberá ao órgão responsável pelo licenciamento justificar sua decisão, o que se vincula ao princípio da motivação dos atos administrativos, que Mello (2007, p.384-385) tão bem explica, lecionando que:

É a exposição dos motivos, a fundamentação na qual são enunciados (a) a regra de Direito habilitante, (b) os fatos em que o agente se estribou para decidir e, muitas vezes, obrigatoriamente, (c) a enunciação

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 da relação de pertinência lógica entre os fatos ocorridos e o ato praticado. Não basta, pois, em uma imensa variedade de hipóteses, apenas aludir ao dispositivo legal que o agente tomou como base para editar o ato.

Assim, se o órgão ambiental decide renovar a licença de operação por prazo diferente daquele que fora fixado no período de vigência anterior, deverá, necessariamente, motivar sua decisão, indicando a regra jurídica aplicada, os fatos que levaram o órgão à tomada dessa decisão e a relação entre esses fatos e o ato praticado.

Além disso, a decisão pela modificação do prazo de validade da LO deve decorrer da avaliação do desempenho ambiental da atividade ou do empreendimento. Este é o “fato” a que se refere Mello. Por óbvio, quanto melhor esse desempenho, mais viável se torna a ampliação da vigência da licença de operação, ao passo que um desempenho ambiental ruim pode acarretar na redução do prazo de validade da LO. De toda forma, vale repisar que, seja o caso de ampliação do prazo de validade, seja o caso de redução desse prazo, a regra e as limitações do art. 18, inciso III, devem ser rigorosamente observadas.

2.5 Renovação da LO: antecedência do requerimento

Concluindo o estudo acerca do art. 18, da Resolução CONAMA n.º 237/1997, abordar-se-á os ditames aduzidos pelo §4º:

§ 4º - A renovação da Licença de Operação (LO) de uma atividade ou empreendimento deverá ser requerida com antecedência mínima de 120 (cento e vinte) dias da expiração de seu prazo de validade, fixado na respectiva licença, ficando este automaticamente prorrogado até a manifestação definitiva do órgão ambiental competente.

Conforme mencionado alhures, cada tipo de licença tem um prazo de validade pré-fixado. No caso da licença de operação, este prazo pode variar entre quatro e dez anos. A norma do §4º estabelece que o empreendedor deve requerer a renovação da LO, pelo menos, 120 (cento e vinte) dias antes da perda de sua vigência, ou seja, 120(cento e vinte) dias antes da data de validade expirar-se.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Adotando esta medida, o empreendedor garante a continuidade regular de sua atividade, até que o órgão ambiental se manifeste acerca do pedido de renovação, ainda que tal manifestação somente ocorra quando a LO já tiver perdido sua validade. Bechara (2009, p.99) explica que:

O pedido de renovação da Licença de Operação deve ser apresentado até 120 (cento e vinte) dias antes de seu termo final, para que haja tempo hábil de o órgão ambiental analisa-lo com toda diligência. Caso, porém, o órgão ambiental não consiga decidir sobre a renovação até a data de sua expiração, a LO será prorrogada automaticamente até manifestação do licenciador, deferindo ou indeferindo a renovação.

Machado (2014, p.328), discorrendo sobre a renovação das licenças ambientais, leciona que, durante o processo de renovação poderá o órgão ambiental requerer, do empreendedor, o fornecimento de informações, documentos e estudos, fixando prazo para o atendimento de sua requisição. O não atendimento das exigências pelo empreendedor poderá acarretar o indeferimento da renovação da licença. É interessante observar que a norma do §4º, do art. 18, impõe um ônus ao empreendedor, qual seja, o de requerer a renovação da licença de operação pelo menos 120(cento e vinte) dias antes da data prevista para a extinção de sua validade. Todavia, a norma é absolutamente omissa quanto à sanção aplicável ou quanto aos efeitos do não cumprimento desse prazo pelo empreendedor. Parece que a solução para a querela ora suscitada é simples. Se a norma ambiental impõe que o pedido de renovação da licença deve ocorrer com 120 (cento e vinte) dias de antecedência de seu vencimento, se tal comando é descumprido a conclusão a que se chega é que, não ocorrendo a renovação antes da expiração do prazo de validade, o empreendimento estará irregular, sujeitando-se o empreendedor a todas as sanções e penalidades previstas na legislação para atividades irregulares, inclusive aquelas da Lei n.º 9.605/19984. Tal conclusão decorre, por dedução, do próprio texto do dispositivo, quando expressa que, cumprindo o empreendedor o prazo ali fixado para o pedido de renovação da licença, esta estará automaticamente prorrogada se o órgão ambiental não deferir ou indeferir a renovação até o término da validade da LO. Dessa forma, descumprindo o prazo indicado no §4º, não haverá prorrogação automática da vigência da licença e, não havendo tal prorrogação, o empreendedor estará irregular caso permaneça operando após a expiração do prazo de validade da Licença de Operação.

3 PROCESSO DE LICENCIAMENTO ATUAL E SEU NECESSÁRIO APRIMORAMENTO 4

Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

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Antecedendo a Constituição da República de 1988 na tutela do meio ambiente, a Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), determinando no art. 8º, inciso I, que o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA é competente para “estabelecer, mediante proposta do IBAMA, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo IBAMA;”5.

No art. 10, a mesma Lei fixou:

“a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.”6

Coube, dessa forma, à Resolução CONAMA n.º 237, de 19 de dezembro de 1997, disciplinar os procedimentos para o licenciamento ambiental, distribuindo as competências dos entes federados nos arts. 4º, 5º e 6º, indicando os tipos de licença no art. 8º, fixando no art. 14 o prazo para a análise dos pedidos de licença pelo órgão ambiental competente, estabelecendo o prazo de validade de cada tipo de licença no art. 18, bem como dando tratamento às demais questões relativas ao assunto.

Destarte, no que tange à legislação federal, a Lei n.º 6.938/1981, a Resolução CONAMA n.º 237/1997 e a Lei Complementar n.º 140/2011 7, formam o arcabouço atinente ao licenciamento ambiental.

Como antecedentes inspiradores da normatização atual, Bechara (2009, p.13) destaca que o pós-guerra experimentou um “surto de desenvolvimento acelerado”, implicando em consequências nefastas para o meio ambiente e propiciando a dilapidação dos recursos naturais. Porém, a preocupação com o futuro do planeta fez surgir, na década de 1970, duas correntes: uma, a dos defensores do crescimento econômico a todo custo; outra, a dos catastrofistas, que previam um colapso dentro de aproximadamente cem anos.

5

Redação dada pela Lei n.º 7.804/1989. Redação dada pela Lei Complementar n.º 140/2011. 7 Fixou normas para a cooperação entre os entes federados nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção do meio ambiente. 6

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A Conferência de Estocolmo, de 1972, não adotou nenhuma dessas duas correntes radicais, preferindo uma postura intermediária, em que o crescimento não seria repudiado, mas assumiria um perfil mais equilibrado. A partir de Estocolmo o desenvolvimento assentou-se em uma nova ótica, alinhada a um novo contexto social, cultural e ambiental, impulsionando um novo paradigma de crescimento.

Os Princípios 4, 12, 13 e 18, da Conferência de Estocolmo, fazem referência clara à necessidade de se equilibrar o desenvolvimento e a preservação ambiental.

Por sua vez, a Declaração do Rio sobre Desenvolvimento Humano (Rio-92), produziu vários princípios que mencionam expressamente a imprescindibilidade do desenvolvimento sustentável. É o caso do Princípio 1 (“Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável”), Princípio 4 (“Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento, e não pode ser considerada isoladamente deste”), Princípio 8 (“Para atingir o desenvolvimento sustentável e mais alta qualidade de vida para todos, os Estados devem reduzir e eliminar padrões insustentáveis de produção e consumo e promover políticas demográficas adequadas”), dentre outros.

Conjugando o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente, Bechara (2009, p.21) apresenta a seguinte lição:

O desenvolvimento sustentável traz em si duas premissas principais: uma, a de que o desenvolvimento econômico e social não pode se dar em prejuízo da qualidade ambiental, sem adotar medidas eficazes que reduzam o potencial degradador das atividades – é o meio ambiente condicionando o desenvolvimento. Outra, a de que a sociedade tem necessidade do desenvolvimento econômico e social e, quando faltar tecnologia e conhecimento suficiente para eliminar ou reduzir o impacto das atividades, terá que suportar uma variação negativa da qualidade do ambiente – pelo menos nas hipóteses em que abrir mão da atividade possa ser mais sacrificante do que realiza-la.

Ao tratar do conflito ideológico entre crescimento econômico e preservação do meio ambiente, Krishna Kumari (2014, p.4-5) alerta que o poder e as ideologias das classes dominantes interferem nas políticas, de modo que as decisões concentram-se nas mãos de poucos. A consequência disso é que os recursos disponíveis no mundo (inclusive os recursos ambientais) são alocados para atender somente as necessidades de alguns (e não de todos, como seria o ideal). 8 8

Texto original: “Economics is meant to be about efficient allocation of resources to meet everyone’s needs. However, international power politics and ideologies have continued to influence policies in such a way that

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No contexto do desafio para a implementação do “desenvolvimento sustentável”, o licenciamento ambiental assume relevante papel, eis que é um dos instrumentos voltados à promoção do equilíbrio entre a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento econômico. Nesse espeque, leciona Farias (2011, p.34-35):

O objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente é viabilizar a compatibilização do desenvolvimento socioeconômico com a utilização racional dos recursos ambientais, fazendo com que a exploração do meio ambiente ocorra em condições propicias à vida e à qualidade de vida. Logo, o licenciamento ambiental deve ser compreendido como um instrumento que se propõe a atingir o objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente, até porque o inciso IV do art. 9º da citada lei o classifica como um dos seus instrumentos.

Entretanto, percebe-se que a ideologia ambientalista acabou por transformar o processo de licenciamento ambiental em verdadeiro martírio. O excesso de burocracia e a morosidade têm criado sérios obstáculos ao empreendedor, especialmente ao considerar-se o cenário econômico globalizado e altamente competitivo, como o atual, em que se exige tomadas de decisão rápidas, com vistas ao aproveitamento dos custos de oportunidade.

3.1 O processo de licenciamento na visão do empreendedor

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) desenvolveu importante trabalho no ano de 2013, elaborando o documento denominado “Proposta da Indústria para o Aprimoramento do Licenciamento Ambiental”, resultado de ampla pesquisa realizada junto às vinte e sete Federações das Indústrias brasileiras, sindicatos, associações e empresas associadas. Destaca a CNI (2013):

Muitas são as oportunidades de crescimento para a indústria, mas muitos também são os obstáculos que precisam ser ultrapassados. Entre eles está a necessidade de ambientes regulatórios e institucionais mais estáveis, que proporcionem maior segurança jurídica e menor burocracia, favoráveis à atuação da indústria e à demanda crescente por investimento em todos os setores da economia.

decision-making remains concentrated in the hands of a few narrow interests. The result is that the world’s resources are allocated to meet a few people’s wants, not everyone’s needs.”

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Aduz a entidade (que representa o segmento industrial nacional) que o aperfeiçoamento do sistema de licenciamento ambiental, dando-lhe maior eficiência e agilidade, é condição fundamental para que a indústria brasileira possa usufruir das várias oportunidades que se apresentam, tanto no mercado nacional quanto internacional.

Segundo a Confederação Nacional da Indústria, os maiores problemas enfrentados pelos empreendedores industriais são os altos custos envolvidos na obtenção das licenças ambientais, a morosidade na sua concessão e a excessiva burocracia.

O estudo salienta que falta homogeneidade nos parâmetros utilizados para a classificação dos empreendimentos e atividades, propiciando, com isso, interpretações das mais variadas, a depender das resoluções expedidas pelos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente.

Um dos pontos de maior destaque no estudo refere-se aos prazos de obtenção das licenças ambientais. Ressalta a CNI (2013) que “o prazo para finalizar o processo de licenciamento de empreendimento ou atividade que dependa das três licenças ambientais para operar (LP, LI e LO) pode demorar sete anos para ser concluído”.

O documento da CNI também refuta as interpretações muitas vezes equivocadas do Ministério Público que, em razão da dispensa do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) pelo órgão licenciador estadual – que entende ser o empreendimento de baixo impacto – insurge com o ajuizamento de ações, obtendo liminares judiciais que acabam por anular ou suspender o ato estatal.

A CNI considera imprescindível reconhecer a autonomia do órgão licenciador na condução do processo, cabendo aos demais órgãos envolvidos a manifestação não vinculante, nos termos previstos pela Lei Complementar n.º 140/2011, art. 13, caput e §1º.

Outro tema suscitado pela Confederação Nacional da Indústria é a necessidade dos entes federados atuarem alinhados à compatibilização das regras e dos procedimentos de caráter geral, garantindo a coerência e assegurando a previsibilidade ao empreendedor, haja vista que, atualmente, mais de vinte e sete mil normas (federais e estaduais) tratam do tema; normas estas que, não raro, são incompatíveis entre si.

Ponto de destaque mencionado pela CNI é, também, a necessidade de direcionar o foco do órgão licenciador para as atividades de planejamento, monitoramento e fiscalização, com a adoção de procedimentos mais céleres, que envolvem a implementação de um sistema de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 autodeclaração9, racionalizando o processo de emissão das licenças ambientais; a criação de incentivos para as atividades e empreendimentos que adotem, de forma voluntária, medidas que possibilitem melhor desempenho ambiental; e a renovação automática da Licença de Operação, desde que haja constante monitoramento da atividade do empreendedor pelo órgão ambiental competente ou pelo próprio empreendedor, por meio do chamado automonitoramento10.

A adequação das normas estaduais e municipais ao que prescreve a Lei n.º 9.985/2000 11 é tratada pela CNI como questão das mais relevantes, cuja finalidade é evitar distorções nos valores exigidos para a compensação ambiental, garantindo a observância do valor de até meio por cento estabelecido no art. 36, §1º da Lei, a exigência de compensação ambiental apenas para empreendimentos e atividades causadores de significativo impacto ambiental (art. 36, caput) e, por fim, a exclusão, no cálculo da compensação, dos investimentos referentes aos planos, projetos e programas destinados à mitigação de impactos, bem como os encargos e demais custos incidentes sobre o financiamento da atividade ou empreendimento12.

Por fim, cabe citar a proposta – não menos importante – para que as condicionantes do licenciamento guardem relação direta com os impactos ambientais identificados, ao invés de fixarem-se em ações que nenhuma relação têm com tais impactos.

Acerca dos obstáculos enfrentados pelos empreendedores no transcurso do processo de licenciamento ambiental, interessante observar a contribuição de Braga Filho (2007, p.49-50):

É imperativo o fato de que temos que remover no processo de licenciamento ambiental quatro gargalos, que são a intransigência do Ministério Público (já citada anteriormente) com relação a uma interpretação legal que por várias vezes está completamente dissociada da nossa realidade e do nosso cotidiano; o temor dos técnicos e dirigentes das entidades responsáveis pelo licenciamento ambiental quanto à possibilidade de responderem por crime ambiental, devido a parecer técnico/consignado no bojo administrativo do licenciamento; o total desaparelhamento das entidades de foco ambiental e por fim o rito do processo em todas as esferas, longo, com excesso de consultas

9

Por meio desse sistema, o empreendedor prestaria informações ambientais ao órgão licenciador através de uma plataforma informatizada de monitoramento, reportando seus resultados e assumindo a responsabilidade legal por eventuais irregularidades. 10 O automonitoramento é consequência da autodeclaração, caracterizando-se pelo acompanhamento e monitoramento dos resultados ambientais pelo próprio empreendedor. 11 Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. 12 Conforme ADIN n.º 3.378/2008. Supremo Tribunal Federal. Rel. Min. Carlos Britto. Julgado em 20 jun 2008.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 públicas, inclusive em empreendimentos de iniciativa do próprio poder público. Observa-se que não só a Confederação Nacional da Indústria, mas também uma parte da doutrina, tem se inclinado no sentido de destacar os óbices que o processo de licenciamento atual vem provocando na atividade econômica, especialmente industrial, prejudicando a competitividade e acarretando a perda de oportunidades. A Confederação Nacional da Indústria, visando o aperfeiçoamento do processo de licenciamento ambiental, propõe um enfoque diferente para a questão do prazo de validade da Licença de Operação:

A pesquisa da CNI indica que o monitoramento após a emissão das licenças é um instrumento pouco utilizado pelos órgãos ambientais, que acabam se apoiando na imposição excessiva de condicionantes, muitas vezes inviáveis ou que não guardam qualquer relação com os impactos identificados nos estudos ambientais. [...] O monitoramento eficiente das atividades exercidas pelo empreendimento pode ser uma solução mais adequada e eficaz, diminuindo custos para ambos os lados, além de permitir a ampliação do prazo de validade da LO e possibilitar a sua renovação automática.

Nesse contexto, defende a CNI que a verificação das questões tecnológicas e seu ajustamento à dinâmica ambiental deve ocorrer continuamente, através de monitoramento, o que propiciaria não a expiração da validade da licença de operação, mas sua renovação automática.

A vigência da licença de operação (LO) pode chegar a 10(dez) anos, nos termos do inciso III, do art. 18, sendo impensável que somente às vésperas da expiração do prazo o órgão ambiental voltaria a avaliar as condições do empreendimento, renovando (ou não) a LO. Pois bem: se essa avaliação ocorre – e deve ocorrer – continuamente, por meio da fiscalização e monitoramento, deduz-se ser contraproducente limitar a validade da LO a 10(dez) anos.

A Confederação Nacional da Indústria defende, portanto, uma profunda revisão e aprimoramento do processo de licenciamento ambiental, de modo que se privilegie a preservação do meio ambiente, mas com estreito alinhamento ao desenvolvimento econômico.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Indiscutivelmente, as normas para o licenciamento ambiental estabelecidas pela Resolução CONAMA n. 237/1997, representaram (e, podemos dizer, ainda representam) um importante avanço no que concerne à proteção e preservação ambiental, preconizadas inicialmente pela Lei n. 6.938/1981 e consolidadas em seguida pela Constituição da República de 1988. Ocorre, todavia, que as normas ambientais – dentro das quais encontra-se a Resolução mencionada – devem almejar o alcance de dois objetivos: a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento, cuja conjugação dá origem ao que se convencionou chamar de desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento anda ao lado (e não a reboque) da preservação ambiental. Parte da doutrina entende, inclusive, que o desenvolvimento sustentável requer a presença de três elementos, quais sejam, o crescimento econômico, a preservação ambiental e a equidade social. E mais: que o desenvolvimento somente poderá ser classificado como sustentável se os três fatores mencionados forem efetiva e simultaneamente respeitados. As normas ambientais devem vislumbrar, desse modo, a conciliação entre os fatores “meio ambiente” e “desenvolvimento socioeconômico”. Para tanto, deve-se buscar o aprimoramento de regras que, na prática, têm apenas o condão de criar obstáculos ao empreendedor, carecendo de racionalidade e razoabilidade. Tal é o caso das normas integrantes do art. 18 da Resolução CONAMA n. 237/1997, que cuidam de disciplinar as nuances e condições que permeiam a validade das licenças ambientais. Especialmente quanto às licenças de operação, é preciso que a legislação avance para um modelo menos burocrático. Um dos meios apontados pela Confederação Nacional da Indústria para o aperfeiçoamento da validade da LO é a instituição da autodeclaração e do automonitoramento, permitindo que a citada licença renove-se de forma automática. Assim, ao se verificar as regras atinentes à validade das licenças ambientais (o que envolve aspectos como prazos mínimos e máximos de vigência das licenças, condições para sua prorrogação ou renovação e demais aspectos que circundam o tema), é preciso reconhecer que devemos aprimorar o atual modelo, de modo a tornar menos burocrático o sistema de licenciamento ambiental, alterando o modo como a legislação pátria trata a questão da validade das licenças. É induvidoso que deve-se reconhecer a imprescindibilidade do sistema ambiental e a necessidade de sua proteção e preservação. Entretanto, também é preciso ter em mente que a atividade empresarial e o desenvolvimento econômico são irrenunciáveis. Desse modo, conciliar meio ambiente e desenvolvimento é o desafio a ser enfrentado, cujo primeiro passo é a eliminação de burocracias desnecessárias, como é o caso das regras que permeiam a validade das licenças e a renovação especificamente da licença de operação. Abandonar velhos conceitos e se afastar de antigos estigmas é condição fundamental para o avanço dos procedimentos, em busca de valores essenciais da sociedade: preservação ambiental aliada ao crescimento econômico.

REFERÊNCIAS

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A LEI GERAL DA COPA E A NEGAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – INTERESSES ECONÔMICOS COMO FUNDAMENTOS DA CRIMINALIZAÇÃO1

Ronaldo Félix Moreira Júnior2 Thiago Fabres de Carvalho3

RESUMO: O trabalho em questão realiza um estudo da Lei 12.663/12 em seu aspecto criminal para demonstrar como suas normas servem apenas para atender aos interesses da FIFA em detrimento do próprio interesse público e da população mais pobre da sociedade, como os alvos principais das tipificações penais existentes na lei. Outrossim, o artigo aponta também para a lei analisada como mais um instrumento para compor a hipertrofia legislativa existente que prega por uma redução da criminalidade quando, em verdade, atua como um instrumento repressivo da camada mais desfavorecida da sociedade. Palavras chave: Lei Geral da Copa; Criminologia Radical; Criminalização da pobreza. ABSTRACT: The work in question is conducting a study of the Law 12,663/12 in its criminal aspect in order to demonstrate how its rules serve only to meet FIFA's interests over the public interest itself and over the poorest people in society, the main targets of the law’s criminal typification. Furthermore, the article also points to the mentioned law as an additional instrument to compose the existing legislative hypertrophy that proclaims by a reduction in crime when, in fact, acts as a repressive instrument of the most disadvantaged layer of society. Keywords: World Cup General Law; Radical Criminology; Criminalization of poverty.

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Artigo desenvolvido nas atividades do Grupo de Pesquisa: Direito Sociedade e Cultura, ministrado pelos professores André Felipe e Thiago Fabres. 2 Graduado em Direito e mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), participante do grupo de pesquisa: Direito, Sociedade e Cultura, da FDV e bolsista pela FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo). Áreas de interesse: Direito Penal; Criminologia; Direitos e garantias fundamentais. 3 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Realizou Estágio de Doutoramento pela Universidade de Coimbra (2006). Docente no curso de Mestrado no Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 INTRODUÇÃO O fato de o Brasil sediar a Copa do Mundo no ano de 2014 gerou um debate desde a oficialização de tal decisão em 2007 em Zurique, na Suíça. No que pese a apresentação de propostas e a demonstração da viabilidade para a ocorrência desse grande evento esportivo, muito foi dito a respeito de questões como gastos excessivos e sobre a prática de ilícitos econômicos, bem como a aplicação para uma finalidade privada de valores que deveriam ser investidos em setores como saúde e educação. Para que a Copa do Mundo pudesse efetivamente ser realizada seria imprescindível que o país sede realizasse determinadas concessões propostas pela sua organizadora, FIFA – Fédération Internationale de Football Association. Essas concessões geraram, em eventos passados, demasiado desconforto para os países sede, como em 2010, na África do Sul: os ingressos foram colocados à venda em websites, muito embora grande parte da população daquele país tivesse dificuldade para acessar até mesmo os próprios e-mails devido ao alto índice de exclusão digital existente (BBC, 2012) . Nota-se, portanto, uma clara segregação em um evento de proporções globais, no qual a população do próprio país sede se viu, em grande parte, impossibilitada de presenciar os jogos. Tais concessões e conflitos em relação aos países sede não ocorreram apenas em Estados considerados subdesenvolvidos, haja vista que em 2006, na Copa sediada pela Alemanha, a FIFA proibiu que fosse vendida qualquer tipo de cerveja diferente da considerada oficial, o que causou grande impacto na realização do evento, de forma que em um acordo firmado por iniciativa do Parlamento do Estado da Baviera foi permitido que parte das bebidas alcóolicas vendidas nos estádios fossem de fabricação nacional, mas era necessário que estivessem servidas em copos transparentes para que não houvesse identificação da marca (BBC, 2012). Seguramente tais conflitos não poderiam deixar de existir em território brasileiro, mas a dimensão alcançada no país foi, de certa forma, mais ampla por ter se somado ao descontentamento já existente com o próprio governo brasileiro desde o período inicial de escolha do país sede. Entretanto, pode-se afirmar que determinados acordos ocorridos em outros países anteriormente devido a tal descontentamento não chegaram sequer a ocorrer no Brasil. Como se pode perceber, com a criação da Lei temporária 12.663/12, foi concedida ampla proteção a um interesse inerentemente privado em detrimento do interesse público e até mesmo da própria soberania nacional. Com efeito, o presente trabalho trata da já existente hipertrofia legislativa (devido a edição de várias normas de caráter emergencial) e de como a Lei Penal da Copa veio a se somar a esse conjunto de normas que permitem a ocorrência de uma série de violações a direitos e garantias constitucionalmente concedidos por meio da tipificação de diversas condutas realizadas principalmente pelos mais deserdados economicamente como delitos, favorecendo sempre interesses de grupos de poder em detrimento a uma população pobre que já vem sofrendo gradativamente com a violência e o encarceramento em massa, demonstrando não só a clara punição dos pobres, mas também a manutenção da miséria.

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1 DOS INTERESSES À HIPERTROFIA LEGISLATIVA Em um primeiro momento, se faz necessário analisar a legislação penal brasileira e de que forma ela é cada vez mais ampliada por leis repressivas e ineficazes ao combate à criminalidade. Quando se fala em uma legislação movida por interesses, é preciso ressaltar que a pressão popular e a influência midiática exercem um importante papel nessa criação legislativa devido ao caráter da emergência, que surge para justificar uma maior atuação do poder punitivo contra uma determinada categoria de indivíduos tomados como os “outros”. Nesse contexto, a pressão midiática e popular requer uma atuação por parte do poder político que não pode se mostrar incapaz de responder a esse anseio. Observa-se que essa coerção exercida pelo povo age em benefício desse próprio poder político que, em troca de benefícios eleitorais, edita uma determinada norma incapaz de reduzir a criminalidade, mas que responde aos pedidos incessantes da população que a recebe como se fosse uma resposta à altura dos atos a serem repreendidos. Diversos são os casos a serem mencionados no que tange à criação de normas movidas por interesses políticos que se valem do anseio popular, como a elaboração da Lei 9.677/98, responsável por modificar os artigos 272 a 277 do Código Penal que tratavam da falsificação de produtos alimentícios e medicinais. A pena para a adulteração da primeira categoria passou a ser de 04 a 08 anos de reclusão enquanto para a segunda passou para 10 a 15 anos, além da previsão de multa. Talvez o caso mais interessante e conhecido de influência midiática e edição política de legislação penal foi a criação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) que além de aumentar a pena de uma série de delitos, tipificou condutas consideradas hediondas e restringiu diversos direitos e garantias fundamentais, como pode ser visto no artigo mencionado: Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; II - fiança. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007) § 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007) § 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007) § 3o Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007) Esses exemplos demonstram uma clara predileção legislativa por determinados grupos pobres e marginalizados, cujos atos estão mais próximos da sociedade em geral. De forma a corroborar com esse entendimento é importante mencionar que em se tratando de propostas legislativas, no período de 2003 a 2007, de todas os projetos legislativos criminais

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 apresentados, apenas dois deles versavam a respeito de “crimes de colarinho branco”, enquanto uma quantidade massiva se relaciona apenas à criminalidade de grupos excluídos e de periferia (GOMES, 2014). Para colaborar com os atuais discursos de emergência, o poder punitivo é mantido por um estado de exceção, no qual a lei poderá ser manipulada (GOMES, 2014), engendrando normalmente um subsistema penal e processual administrativo no intuito de fazer valer determinados interesses enquanto é passado à população uma ideia de proteção contra a efígie do terrorismo e do crime organizado. Com a proximidade da realização da Copa do Mundo (ocorrida em meados de 2014) e das Olimpíadas (ainda em 2016), além de outros eventos, a preocupação com os interesses das organizadoras desses espetáculos culminou na edição de uma legislação repressiva responsável pela contenção dos atos praticados não só pela população de indivíduos marginalizados, mas também por condutas de pequenos comerciantes para favorecer o lucro da corporação responsável pela organização de um desses eventos. É o caso claro da Lei 12.663/12, chamada de Lei Geral da Copa.

2 LEGISLAÇÃO DE EXCEÇÃO PARA EVENTOS ESPORTIVOS Eventos como a Copa das Confederações ou a Copa do Mundo (realizados respectivamente nos anos de 2013 e 2014) são situações que provocam uma verdadeira alteração nos acontecimentos do cotidiano no país onde são realizados. Não obstante, geram um impacto até mesmo no ordenamento jurídico do país em questão. Não foi diferente no Brasil com a edição da Lei 12.663/12. Muito embora a legislação trate de assuntos como a concessão de auxílio mensal a jogadores das seleções que foram campeãs do mundo no período de 1958, 1962 e 1970, o abalo que a norma trouxe ao ordenamento jurídico pátrio vai além da simples doação de benefícios, pois a lei se esconde atrás de dois escopos negativos a um Estado Democrático de Direito (LESSA, 2013), quais sejam: 1) a proteção de interesses intrínsecos da FIFA tocantes a marcas que sejam relacionadas com os jogadores, como a fonte artística de nome “pagode”(El País, 2014); 2) a criminalização de condutas que contrariem os interesses da pessoa jurídica, voltada principalmente aos grupos já estigmatizados pelo ordenamento normativo criminal. Nota-se que a proteção (até mesmo criminal) de determinadas marcas não foram os únicos interesses da companhia que foram protegidos. Para que um país seja “autorizado” a sediar um evento com essas proporções, é necessário que haja uma série de garantias a serem dadas à empresa responsável e para tanto o Estado nacional deve abrir mão de sua própria soberania, responsabilizando-se por danos sofridos pela entidade e, como ocorreu no Brasil, garantir a ela também isenção fiscal (Contas abertas, 2014), algo não realizados pelos últimos países a sediar a Copa do Mundo. A promulgação de uma lei especial para esses episódios é algo corriqueiro nos países-sede dos eventos e, conforme mencionado, os conflitos entre a entidade em questão e os paísessede são também comuns, tal como ocorreu na Alemanha e antes na África do Sul. Ocorre que normalmente essas leis editadas esbarram não somente em normas preexistentes, como a previsão de necessidade de celeridade do registro de marcas no INPI –

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Instituto Nacional de Propriedade Industrial – que entra em conflito com o procedimento estabelecido pela Lei 9.279/96 e os próprios crimes relacionados à proteção da propriedade industrial, já existentes no ordenamento pátrio (LESSA, 2013), mas também na própria Constituição Federal, principalmente no que tange à soberania do interesse público ao privado, claramente violada pela Lei Geral da Copa. Não obstante, para que esses interesses privados sejam atendidos há uma série de violações de direitos fundamentais pertencentes à própria população nacional, mais especificamente a camada mais economicamente desprotegida. Importante mencionar que esse impacto na sociedade marginalizada não ocorre apenas pela criminalização de condutas usualmente praticadas por essa parte desses indivíduos, mas também nas medidas realizadas pelo Poder Público para possibilitar a promoção dos eventos. Por exemplo, as desapropriações ocorridas para reforma ou construção dos estádios atingiu diversas áreas povoadas por uma população de baixa renda. Muitos não chegaram a receber quaisquer valores pelo abandono de suas casas e os que receberam indenizações conseguiram um valor muito abaixo do valor de mercado dos seus imóveis, fazendo-os morar posteriormente de aluguel ou favor de familiares (BBC, 2014). Já no tocante aos crimes previstos, verifica-se que além de atingir o comércio irregular (modo de subsistência de inúmeros indivíduos), o poder restritivo dessas tipificações é tanto que é possível vislumbrar suas consequências até mesmo no mercado regular, conforme podem ser vistos no Capítulo VIII da legislação em questão: Art. 30. Reproduzir, imitar, falsificar ou modificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa. Art. 31. Importar, exportar, vender, distribuir, oferecer ou expor à venda, ocultar ou manter em estoque Símbolos Oficiais ou produtos resultantes da reprodução, imitação, falsificação ou modificação não autorizadas de Símbolos Oficiais para fins comerciais ou de publicidade: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses ou multa. Marketing de Emboscada por Associação Art. 32. Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de Ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 ações de publicidade ou atividade comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica. Marketing de Emboscada por Intrusão Art. 33. Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional, não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos locais da ocorrência dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa. Art. 34. Nos crimes previstos neste Capítulo, somente se procede mediante representação da FIFA. Art. 35. Na fixação da pena de multa prevista neste Capítulo e nos arts. 41-B a 41-G da Lei no 10.671, de 15 de maio de 2003, quando os delitos forem relacionados às Competições, o limite a que se refere o § 1o do art. 49 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), pode ser acrescido ou reduzido em até 10 (dez) vezes, de acordo com as condições financeiras do autor da infração e da vantagem indevidamente auferida. Art. 36. Os tipos penais previstos neste Capítulo terão vigência até o dia 31 de dezembro de 2014. Nota-se, por exemplo, que o art. 31 estipula a proibição de venda, distribuição e outras condutas dos chamados Símbolos Oficiais, que incluem as bandeiras dos países participantes e siglas, o que vai de encontro direto com a já mencionada lei 9.279/96, em seu art. 124 que prevê a impossibilidade de registro como marcas de figuras tais como: brasões, armas, bandeiras, emblemas, monumentos oficiais públicos, nacionais, estrangeiros ou mesmo internacionais. Tais previsões legais revelam a iminente tentativa de maximizar o lucro obtido pela FIFA em detrimento da própria dignidade humana dos indivíduos marginalizados que, além de serem removidos de seus lares, são impossibilitados de exercerem suas atividades de subsistência, como a venda informal de bandeiras nas proximidades dos estádios durante os jogos. Verifica-se, assim, uma verdadeira tentativa de inutilização de todo um grupo social incapaz de se tornar consumidor de eventos como a Copa do Mundo, havendo o favorecimento dos grupos capazes de consumir esses produtos por meio do uso do Direito como principal ferramenta (LESSA, 2014). Na época atual, em que prevalece o consumo descomedido e a fragilidade dos bens cada vez mais descartáveis, há um crescente desbalanceamento econômico na sociedade. Para essas grandes corporações, com poder capaz de influenciar a atividade legislativa em si de inúmeras nações, os meios utilizados pela camada mais pobre da sociedade para aderir à lógica do consumo, tais como a “pirataria” e falsificação desses bens, são empecilho ao alcance do lucro desenfreado.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Portanto, há uma espécie de união entre essas pessoas jurídicas e Estados que se dizem democráticos para a elaboração de leis que ferem cada vez mais diversos membros da sociedade que são estigmatizados e tratados como “inimigos” ou “outros”, mas que são passadas para a população como medidas protetivas, quando em verdade só protegem os interesses mencionados.

3 A LEI CONTRA OS POBRES Não se trata de uma informação nova o fato de que o Brasil, da mesma forma que países como os Estados Unidos, deixaram de lado a característica de um Estado engajado na luta contra a pobreza (existente apenas como uma máscara) para se mostrar como um verdadeiro Estado de repressão penal, que luta, em verdade, contra os pobres. Conforme mencionado, a chamada Lei Geral da Copa serviria a esse fim real. O que pode ser verificado é uma nova experiência ocorrida na América pioneira entre os países ocidentais do pós-guerra, pois o surgimento desse Estado penal e policial fez com que a criminalização da marginalidade e o gerenciamento de grupos excluídos tomasse o lugar de políticas sociais (WACQUANT, 2003). Não obstante, nos Estados Unidos, segundo Loïc Wacquant (2003), o Estado-providência existente era, de forma clara, abaixo dos padrões existentes entre os estados europeus e no decorrer da história do país a cidadania era tida como uma particularidade restrita e o poder de voz dos dominados era constantemente dificultado. O mesmo pode se dizer a respeito do Brasil que, mesmo com um discurso sobre soberania popular, historicamente foi construído com base em interesses diversos da população (pobre em sua maioria). Dois claros exemplos dessa situação na história brasileira são: a ocorrência do Ato Institucional nº. 1 em 1964 que se justificou por uma falsa representação do povo brasileiro pelos militares; e as próprias 63 emendas constitucionais realizadas após 1988. Em nenhuma delas houve sequer consulta ao chamado povo soberano (COMPARATO, 2009). Assim, em ambos os países é possível observar uma série de políticas voltadas não para a população – principalmente em relação aos deserdados economicamente – mas para a satisfação dos próprios interesses políticos e de interesses de grandes corporações nacionais ou internacionais de atuação sempre ligadas ao Estado. Torna-se assim claramente visível a adoção de práticas repressivas (seja na forma da atuação policial ou na forma de criação legislativa) contra grupos que os próprios Estados são responsáveis em criar. Ainda segundo Wacquant (2003), o desdobramento da política estatal criminalizadora dos resultados da miséria do Estado ocorre de duas maneiras: 1 – Pela transformação de serviços sociais em instrumentos de vigilância e controle sobre as classes perigosas. O que pode ser verificado pelo condicionamento do acesso à assistência social à aceitação de uma série de normas de condutas e também ao cumprimento de determinadas obrigações de cunho burocrático com consequências humilhantes e(ou) onerosas. 2 – Pela adoção maciça e sistemática do encarceramento e ampliação de leis penais (como a Lei 12.663/12). Nos Estados Unidos, o autor aponta um crescimento exacerbado da

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 população carcerária norte-americana de 314% do período de 1970 a 1991. O número de detentos passou de 200 mil detentos a quase 825 mil. No Brasil, a realidade não difere tanto. Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) (Agência CNJ de Notícias, 2014), o país hoje conta com cerca de 711.463 presos (incluindo aqueles em prisão domiciliar), o que faz com que o país esteja em 3º lugar no ranking mundial de encarceramento e demonstra a clara predileção pela punição seletiva das classes desfavorecidas economicamente. Interessante mencionar que entre os detentos em âmbito nacional, no ano de 2013, 191.000 deles eram presos provisórios (Conectas Direitos Humanos, 2013), motivo pelo qual o país recebeu uma denúncia na Organização das Nações Unidas a respeito da condição na qual esses indivíduos se encontravam. Conforme mencionado, é passível de observação que esse encarceramento em massa em países como o Brasil ou Estados Unidos “recruta” seus membros dos setores mais desfavorecidos da classe operária e principalmente de um grupo étnico: os negros, que são os mais afetados por essas políticas repressivas. Assim, trazendo à discussão o antigo conceito do panóptico conforme as ideias de Bentham e Foucault, como um modelo disciplinar com o objetivo de regulamentar toda uma sociedade, é possível afirmar que seu escopo sofreu uma grave alteração na atualidade. Para o sociólogo Zygmunt Bauman (2013), a sociedade hoje é pós-panóptica, já que o panóptico seria, em verdade, uma parte da história do passado, enquanto o presente é formado pelo que ele denomina modernidade líquida. Contudo, essa figura panóptica da forma como Foucault demonstrava não chegou a se extinguir. Muito embora não seja mais o padrão universal de dominação social, o modelo sofreu um processo de isolamento para certas camadas sociais. Para Bauman (2013), o panóptico hoje se encontra em instituições totais, mantendo-se principalmente em prisões com o objetivo não mais de criar indivíduos disciplinados, mas meramente excluir grupos indesejados. Tudo isso aponta para algo além do escopo de punição e encarceramento dos pobres, pois conforme mencionado por Wacquant (2003), direciona também para uma série de políticas voltadas à regulação da miséria, sua perpetuação e ao armazenamento de refugos do mercado.

4 INTERESSES CONTRARIADOS E CONDUTAS CRIMINOSAS Consoante as informações apresentadas no presente trabalho, foi possível notar a predileção em criminalizar as camadas menos favorecidas da sociedade, mas se faz necessário entender de forma clara como ocorrem esses processos de criminalização nas sociedades capitalistas e como é possível que entidades como a FIFA consigam influir na atuação legislativa estatal. Segundo a definição tradicional, crime nada mais é do que uma conduta definida como tal pela lei ou justiça criminal, mas a definição clássica peca por ignorar diversos aspectos que deveriam ser levados em consideração, tais como aponta Juarez Cirino dos Santos (2006) em

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 relação aos comportamentos danosos que não são tipificados legalmente como crimes – por exemplo o imperialismo; exploração do trabalho; etc. – ou aqueles comportamentos que apesar de terem sido definidos legalmente como delitos não são reprimidos, como é o caso dos crimes de “colarinho branco” – evasão de impostos, corrupção governamental, fraudes ao consumidor, etc. São condutas que apesar de constarem no Código Penal ou leis especiais, não o fazem nas estatísticas criminais. Consoante Juarez Cirino dos Santos (2006): [..] a grande criminalidade das classes dominantes (burguesia financeira, industrial e comercial), definida como abuso de poder econômico e político, a típica criminalidade de “colarinho branco” (especialmente das corporações transnacionais), produtora do mais intenso dano à vida e à saúde da coletividade, bem como ao patrimônio social e estatal, está excluída das estatísticas criminais: a origem estrutural dessa criminalidade, característica do modo de produção capitalista, e o lugar de classe dos autores, em posição de poder econômico e político, explicam essa exclusão. O que surge de verdade nessas estatísticas criminais são crimes vinculados ao patrimônio em sua grande maioria, o que representa uma tentativa consciente dos mais desfavorecidos em suprir a carência econômica existente (SANTOS, 2006). Essa tentativa também se faz presente na chamada Lei Geral da Copa na forma de condutas criminalizadas, como o art. 31 que estipula pena para a importação, venda, distribuição, etc. de símbolos oficiais ou produtos que resultam da reprodução, imitação, não autorizadas desses símbolos. Esses atos nada mais são que um esforço para que essa camada social seja inserida dentro de um contexto de consumo, pois ainda que não faça parte do grande grupo de consumidores, não deseja ser excluída. Além de, obviamente, ser a forma de sustento (muitas vezes a única) de uma grande quantidade de indivíduos. Ocorre que tais condutas contrariam determinados interesses (no caso em tela, os interesses da FIFA) e, portanto, acabam sendo criminalizadas. Para se esconder essas vantagens a esses grupos econômicos, seus atos são encobertos por uma “indignação moral” que é promovida por meio da ação oficial e da comunicação massiva contra o delinquente pobre, considerado o “bode expiatório” servente para ocultar e também justificar os verdadeiros problemas sociais que são produzidos por desigualdades pertencentes ao sistema de relações sociais (SANTOS, 2006). Nesse sentido, uma das propostas da Criminologia Radical (SANTOS, 2006) é demonstrar que a criminalidade do poder econômico e político não se trata de um fenômeno acidental, mas institucionalizado e aceito. Ele está vinculado à uma posição estrutural de classe na sociedade capitalista. Se o acúmulo de riqueza ocorre por meio da expropriação de mais-valia na relação de salário na produção capitalista, será algo válido, mas não o será se ela ocorrer de outras maneiras, como a venda de cópias baratas de bandeiras dos países participantes da Copa do Mundo por indivíduos ligado ao trabalho informal. Nesse caso, essa apropriação de riqueza será vista como criminosa e, por conseguinte, punida com os rigores de uma lei feita para atender interesses econômicos durante um evento esportivo. Cai por terra o

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 discurso do direito penal como protetor dos bens jurídicos mais importantes da sociedade, salvo se esses bens jurídicos forem, em verdade, não da sociedade, mas de grupos específicos e com poder suficiente para influenciarem a criação legislativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A legislação criminal pátria desde sua essência jamais se preocupou com questões tão aclamadas como ressocialização ou proteção exclusiva aos bens jurídicos mais relevantes (personificado pelo princípio da ultima ratio). Pelo contrário, suas tipificações apenas serviram aos interesses de grupos de poder e encarceraram uma considerável quantidade de indivíduos marginalizados. O discurso do medo e da violência leva a população a crer que apenas medidas mais violentas e repressoras seriam capazes de solucionar o problema da criminalidade, mas pelo contrário, esse discurso apenas corrobora com uma produção legislativa feita com base em interesses políticos e que servem apenas para agravar ainda mais o já sério problema de hipertrofia legislativa, mas nunca para diminuir a criminalidade. Em um contexto de globalização, verifica-se ainda ocorrência de fenômenos tais como desestruturação do federalismo, com efeitos nos campos políticos e sociais (TORRES, 2009), o que possibilita a ingerência de grandes organizações de renome internacional na gestão das próprias políticas públicas nacionais. No caso em questão, permite-se que instituições externas ao Estado (que também desejam ter seus interesses protegidos) também ajudem com o aumento do aparato legislativo repressivo. Nesse contexto, António-Enrique Perez Luño (2011) salienta que em uma realidade globalizada é preciso, de modo a evitar tais ingerências, haver a prevalência e efetivação dos direitos universais do homem: La erosión de la soberania de los Estados em la era de la globalización há favorecido la defensa del valor de la universalidade de los derechos humanos, que há tenido, las más de las veces, uma de sus quiebras e limites más implacables em el ejercício de la soberania estatal. Contudo, tal prevalência de direitos humanos encontra uma forte barreira nas políticas públicas que surgem com tais influências, principalmente no que diz respeito às políticas criminais, que há muito vem impossibilitando a efetivação dessas garantias por meio do encarceramento e práticas violentas contra grupos considerados indesejáveis. Políticas essas que, além de proteger os interesses mercantis da FIFA (no caso da lei 12.663/12), demonstram claramente um mecanismo atuante sobre uma determinada camada da sociedade, o que as tornam, conforme dito, políticas eminentemente excludentes e que servem para agravar ainda mais a situação dos menos favorecidos economicamente no país, já perseguidos pelas tipificações do próprio Código Penal e de outras leis extravagantes.

REFERÊNCIAS

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O ABSTRATO E O CONCRETO NA TEORIA DO DIREITO: A QUESTÃO DO MÉTODO EM KELSEN E PACHUKANIS Rubens Bordinhão Neto1 1. Introdução A questão do método é um tema muito caro à teoria do direito. Com a missão de dizer “o que é o direto” se debruçaram muitos juristas a fim de desvendar o fenômeno jurídico. A cada escola de interpretação do direito, seguiu-se uma forma abordagem e estruturação do problema “direito”. Os jusnaturalistas pugnavam por um direito fundamentado na metafísica permeado por um debate axiológico de veracidade e falsidade dos postulados jurídicos, sendo central a questão da justiça. Em prol da cientificidade, a perspectiva do positivismo jurídico representou uma superação e um avanço da teoria do direito. Alicerçada na clara intenção de desvendar o direito “como ele é”, os positivistas preconizam as normas e o debate da validade e invalidade do direito dentro da ordem jurídica. Neste toar, a teoria marxista do direito também traz grandes contribuições para o debate da teoria do direito, especialmente no que diz respeito ao método de estudo do objeto jurídico. Emprestando ao direito uma origem histórica e social, o âmbito jurídico é compreendido a partir das relações sociais que o fundam. Apesar de não gozar de uma aceitação inequívoca, a vertente marxista representa também uma evolução da teoria do direito em direção ao empreendimento de cientificização da problemática jurídica, muito embora ainda predomine, na prática judiciária e na academia, a forma positivista de apreensão da realidade jurídica. Tendo este contexto como pano de fundo, o presente artigo busca inserir o leitor no debate a respeito do método tido entre Hans Kelsen, fundador do positivismo jurídico, e Evgeny Pachukanis, notadamente o mais proeminente jurista marxista. Para tanto, buscar-se-á, primeiramente, delinear, de forma despretensiosa, o método utilizado por Kelsen e as principais conclusões a que chegou a partir dele. Em seguida, se perseguirá esboçar os principais conceitos jurídicos e o caminho traçado por Pachukanis. Por fim, serão colocadas em xeque as abordagens positivistas e marxistas, sobretudo o poder que tem cada uma delas de apreender cientificamente o direito, e a capacidade de cada uma em construir uma teoria do direito verdadeiramente científica. Tem-se como hipótese que apenas o referencial teórico marxista é capaz de desvelar o direito “como ele é”. Neste sentido, os esforços deste trabalho têm como norte a preocupação de se conceber o direito a partir de uma perspectiva ontológica, ao modo esposado por Roberto Lyra Filho, para quem a resposta ao “o que é direito” passa necessariamente pelo que “ele [o direito] vem a ser, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social.” (1988). Pureza metodológica de Hans Kelsen 1

Mestrando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). Pesquisador do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do grupo de pesquisa Trabalho Vivo (UFPR).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O jurista e filósofo Hans Kelsen, de origem austríaca, escreveu sua principal obra jurídica “Teoria pura do direito” em 1934, justamente no período em que estava exilado em Genebra, em razão da ascensão do partido nazista na Alemanha, onde foi professor catedrático na Universidade de Colônia. Antes disso, porém, Kelsen já gozava de prestígio dentro e fora da academia, pois fora o principal nome a elaborar a constituição federal da Áustria, em 1920. Junto com sua família, emigrou para os Estados Unidos em 1940, tornando-se professor da Universidade Berkeley em 1945, ano em que também adquiriu a cidadania estadunidense. Foi professor honorário em três universidades e doutor honorário em outras doze. Morreu em 1973, nos Estados Unidos. As obras de Kelsen representam, sem dúvida alguma, um dos mais importantes legados para o direito na contemporaneidade tamanha é a difusão de seu pensamento jurídico pelo mundo, sobretudo no Brasil. 2 Mais do que o prestígio que goza na academia, o mérito da teoria kelseniana reside também na inauguração de um modelo epistemológico da teoria do direito: o positivismo jurídico. O jurista austríaco propõe como método central de estudo do direito a restrição absoluta de seu objeto, afastando dele todas as determinações estranhas à ciência jurídica, o que lhe conferiria, a partir daí, uma pureza metodológica. Argumenta Kelsen que somente por meio de uma teoria imaculada, que estude o direito em si, afastando outros ramos do conhecimento, como a psicologia, sociologia, ética e política, é que se poderia se garantir uma “genuína” ciência do direito. Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (KELSEN, 1998, p.1). A preocupação kelseniana tem um sentido histórico. Opondo uma ciência jurídica que descreva o que é e como é o direito, Kelsen buscava superar a concepção deontológica promovida pela doutrina do direito natural, que tinha como fundamento do direito uma ordem transcendental, distinta das normas escritas, que julgavam a ordem estabelecida de acordo com critérios de justiça. Não é por outro motivo que Kelsen, em a “Teoria Pura do Direito”, não tem preocupação com o conteúdo da norma, mas de estabelecer um método rigorosamente científico que pudesse descrever com precisão o fenômeno jurídico. A pureza no método objetiva justamente afastar o diálogo do campo do direito com outras áreas do conhecimento, que, segundo Kelsen, não são desimportantes ou inexistentes, mas que “obscurecem” o conhecimento do direito. O rigor da epistemologia jurídica kelseniana avança a partir da pretensão de alcançar uma neutralidade axiológica, pela qual entende que o conhecimento científico deve 2

Luiz Fernando Coelho sustenta que a influência de Kelsen na academia brasileira é “inegável” e que a “‘Teoria Pura do Direito’ é o mais sugestivo divisor da história contemporânea da reflexão jurídica: antes e depois de Kelsen” (1983, p. 165).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 necessariamente isentar-se de qualquer juízo de valor. Novamente, aqui, busca o jurista austríaco afirmar uma autêntica ciência jurídica rompendo com a tradição jusnaturalista, que tinha firmes alicerces nos debates axiológicos, notadamente a questão da justiça. Kelsen, porém, não desconsidera a relevância do tema, apenas julga que tal debate não é pertinente ao conhecimento científico do direito (COELHO, p. 2). É a partir destes pressupostos metodológicos que Hans Kelsen desenvolve sua teoria pura, separando criteriosamente aquilo que faz parte da ciência do direito e aquilo que não; daí fazer sentido a conceituação dicotômica kelseniana entre fato natural e ato jurídico, proposição e norma jurídica, sentido subjetivo e objetivo do ato, e assim por diante. Nesta esteira só poderia se intitular ciência jurídica aquela ciência que tem o compromisso de estudar exclusivamente as normas jurídicas, seja a norma em si, o conteúdo delas ou os fatos determinados por elas. A ciência jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica. (KELSEN, 1998, p. 79). A norma jurídica restringe-se às normas positivadas, cuidando a Teoria Pura tão somente ao direito posto. 3 Explica Kelsen que a norma representa um ato de vontade que intencionalmente visa a conduta do outro, retratando, por isso, um postulado de dever ser que prescreve, permite ou confere competência. 4 Assim, a norma imputa ao interlocutor uma conduta que deve ser seguida; se a norma é respeitada, ou não, é indiferente à ciência do direito, bastando que a norma seja válida. A violação do preceito legal, não é fundamento de invalidade da norma, haja vista que, repita-se, a norma apenas imputa uma conduta. Aliás, o princípio da imputação norteia e dá sentido à ciência jurídica, diferenciando-a de outros ramos do conhecimento. Explica Kelsen que a ciência natural é regida pela causalidade, segundo a qual, à uma causa há necessariamente um efeito, pelo que não seria verdadeira a fórmula caso não se observe o termo consequente. Assim é que enquanto caberia um julgamento de verdadeiro/falso nas ciências causais, à ciência jurídica somente é possível auferir a validade e invalidade das normas. Importante asseverar que, no pensamento kelseniano, também as ciências sociais são regidas pelo princípio da causalidade, uma vez que a conduta humana, ao modo da natureza, é explicada por uma relação de causa e efeito.5 Nestes termos, por pautar-se no princípio da imputação, a ciência jurídica, à diferença das outras ciências, é classificada como “ciência normativa”, e não causal. Aqui, fica evidente, como aprofundaremos nos tópicos seguintes, a limitação metodológica de Hans Kelsen, sobretudo no que diz respeito à percepção das ciências sociais 3

“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais.” (KELSEN, 1998, p. 1). 4 “‘Norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém” (KELSEN, 1998, p. 6). 5 “(...) Mas não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito.” (Kelsen, 1998, p. 85).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 como meramente explicadas a partir da relação mecânica causa-efeito. À luz dessa percepção é que Kelsen diferencia o mundo natural do jurídico. Para Kelsen, o conteúdo de uma norma e o conteúdo do fato a qual se refere o postulado legal são idênticos, sendo que o que os distingue é a interpretação emprestada a cada um deles. Os fatos da natureza, argumenta Kelsen, regidos pela causalidade, são apreendidos da realidade a partir de uma interpretação causal, pelo que não são objeto, em si, da ciência jurídica. Contudo, se esse mesmo fato estiver ligado à ordem objetiva, sendo dotado, por intermédio de uma norma, de um sentido jurídico, a percepção deste fenômeno necessariamente seria mediado por uma interpretação normativa. Somente por meio dessa interpretação seria possível sopesar um fato da natureza, como a morte de uma pessoa, como um fato jurídico, a exemplo de uma condenação de réu à pena capital ou a um homicídio (KELSEN, 1998, p. 45). Avançando nas teorizações de Kelsen, tem-se que uma norma encontra o fundamento de sua validade em uma norma anterior que lhe conferiu justamente esta posição válida. Não existe norma sem fundamento de validade em outra norma, ou com fundamento em uma ordem jurídica diversa. Isto porque o Direito, como um sistema de normas, encerra em sua totalidade todas as normas jurídicas válidas e logicamente encadeadas de forma a imprimir um sentido à ordem jurídica. Portanto, em prol da coesão do sistema, a norma jurídica deve necessariamente ter fundamento de validade em outra norma jurídica, para que assim não se perca o lastro da legalidade. Contudo, qual seria o último fundamento de validade de uma ordem jurídica? Isto é, sobre qual alicerce jurídico-científico se justifica, por exemplo, uma constituição de determinado Estado? A este questionamento, Kelsen recorre a criação de um recurso abstrato: a grundnorm, ou norma hipotética fundamental, que corresponde a uma norma pensada (não positivada) responsável pelo sentido originário da ordem jurídica. Este talvez seja o ponto da teoria kelseniana alvo de maior crítica, já que a ciência jurídica que tem justamente a norma positivada e concreta, como objeto único de estudo, tem como seu fundamento último uma norma pensada, fictícia e abstrata. Além desta flagrante contradição, a norma fundamental kelseniana, porque preocupada tão somente com a validade, acaba por legitimar qualquer ordem jurídica positiva, justa ou injusta, não importando o conteúdo das normas postas (COELHO, 2001). Por sua própria pretensão de pureza, afastado do debate axiológico, é que existe uma dissociação entre forma e conteúdo, conforme reconhece o próprio Kelsen: De acordo com a Teoria Pura do Direito, como teoria jurídica positivista, nenhuma ordem jurídica positiva pode ser considerada como não conforme à sua norma fundamental, e, portanto, como não válida. O conteúdo de uma ordem jurídica positiva é completamente independente da sua norma fundamental. Na verdade – tem de acentuar-se bem – da norma fundamental apenas pode ser derivada a validade e não o conteúdo da ordem jurídica. Toda ordem coercitiva globalmente eficaz pode ser pensada como ordem normativa objetivamente válida. A nenhuma ordem jurídica positiva pode recusar-se a validade por causa do conteúdo das suas normas. É este um elemento essencial do positivismo jurídico. (KELSEN, 1998, p. 242).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Entendido o direito como “(...) uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano” (KELSEN, 1998, p. 5), e, sendo a norma jurídica somente aquela positivada pela ordem jurídica e validada pela norma fundamental, observa-se em Kelsen uma redução do Direito às normas derivadas da produção legiferante do Estado. Mais do que isso, o positivismo jurídico, que tem Kelsen como seu maior representante, “canoniza a ordem social estabelecida, que só poderia ser alterada dentro das regras do jogo que esta própria estabelece... para que não haja alteração fundamental.” (LYRA FILHO, 1988, p. 44). Assim é que a ciência jurídica kelseniana, detida sobre o conhecimento da norma válida, compreende, por completo, o fenômeno “direito”. Contudo, não é possível avançar sem antes realizarmos alguns questionamentos: consegue esse método de teoria do direito realmente dizer o que é o direito? Mesmo que adstrito ao seu propósito relativamente simples – descrever o direito positivado –, logrou Kelsen esse objetivo, sem se distanciar da realidade? Em que medida o positivismo jurídico se presta, como método científico, a explicar o direito em sua forma concreta? Temos como hipótese que o positivismo jurídico, aqui personificado em Kelsen, distancia-se, à revelia do que propõe, de um método rigorosamente científico no sentido de ser uma epistemologia apta a captar a realidade concreta. Ao tentar romper com o debate axiológico promovido pela doutrina do direito natural, que recai numa explicação pensada, o positivismo jurídico constrói soluções justamente sobre o abstrato, que não correspondem a ordem concreta dos fatos, e, por assim dizer, vazia de sentido para uma resposta ontológica do direito. Juntamos-nos à Roberto Lyra Filho quando assevera que “quando o positivista fala em Direito, refere-se a este último – e único – sistema de normas, para ele, válidas, como se ao pensamento e prática jurídicas interessasse apenas o que certos órgãos do poder social (a classe e grupos dominantes ou, por elas, o Estado) impõem e rotulam como Direito” (1988, p. 40). Por óbvio que o direito não se resume às normas produzidas pela ordem legítima do Estado. Pelo contrário, existe um pluralismo jurídico, à margem da “legalidade”, que não pode ser ignorado quando o propósito é justamente desvelar o fenômeno jurídico. Por tais razões é que um método verdadeiramente científico de teoria do direito deve encarar a realidade como uma totalidade complexa, determinada por inúmeros fatores e cuja explicação exige uma epistemologia que não se desprendida dos fatos reais, ao modo do qual, acreditamos, é possível notar no método adotado pelo jurista abordado a seguir. 2. O método marxista e a forma jurídica em Evgeny Pachukanis Nascido na Rússia, em 1891, Evgeny Bronislavovitch Pachukanis participou ativamente do processo revolucionário bolchevique desempenhando o papel de “juiz popular” junto ao Comitê Militar-Revolucionário de Moscou. Já era membro da Academia Socialista, integrando a seção de Teoria do Estado e do Direito quando publicou sua mais influente e conhecida obra “Teoria geral do direito e marxismo”, em 1924. O jurista soviético participou

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 também das comissões que redigiram a Constituição Soviética de 1936, bem como o projeto de Código Penal russo (NAVES, 2009). Contudo, diferentemente do destino glorioso e perene de Kelsen e de suas obras, Pachukanis sofreu violenta repressão do governo de Stálin, sendo forçado a mudar seus posicionamentos teóricos, que pugnavam pelo desaparecimento gradual da forma jurídica, a fim de conformar à linha oficial stalinista de fortalecimento do Estado e do Direito. “Sob a ameaça permanente da prisão, da tortura e da morte, sua e de seus familiares, Pachukanis vai procurando se acomodar à nova situação, cooperando com a direção stalinista e ajustando as suas antigas concepções às novas orientações teóricas (...).” (NAVES, 2009, p. 17). Não obstante as “autocríticas” que realizou sobre suas próprias teses, Pachukanis foi preso pela polícia política e executado em data incerta no ano de 1937. Seu legado teórico permaneceu ignorado até 1968, quando passou a ser reinserido na academia soviética, sendo sua principal obra reeditada apenas em 1982. (NAVES, 2009). As idéias desenvolvidas por Pachukanis em “Teoria geral do direito e marxismo” (as quais balizaram este trabalho) utilizam-se, por óbvio, do método marxista; no entanto, mais do que isso, partem de algumas constatações elaboradas pelo próprio Karl Marx acerca do fenômeno jurídico.6 Por esta razão é que antes de adentramos nas teses pachukanianas, passaremos em breve revista sobre os principais entendimentos de Marx acerca do Direito. Talvez a maior contribuição de Marx à teoria do direito seja a leitura de classe que realizou no “Manifesto do Partido Comunista” (1848). Denunciando o Estado, a racionalidade e a exploração da classe burguesa, assevera que as ideias desta classe são “produto das relações burguesas de produção e de propriedade, assim como o direito não é nada mais que a vontade de sua classe erigida em lei, uma vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vida de sua própria classe.” (MARX; ENGELS, 2008, p. 37). Daqui deriva a concepção do direito enquanto instrumento social que, eivado de um caráter classista, expressaria o interesse das forças produtivas e das relações materiais hegemônicas. Outra digressão paradigmática, para os fins deste trabalho, que revela um pouco mais da concepção marxiana de direito, pode ser extraída da “Crítica ao Programa de Gotha” (1875), na qual é colocada em xeque a igualdade consagrada na “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” da Revolução Francesa. Aqui, assevera Marx que a igualdade da ordem jurídica burguesa é apenas formal, isto é, ela nivela todos os indivíduos de forma uniforme, abstraindo todas as determinações concretas, ignorando, inclusive, as diferenças de classe. Assim é que, almejando a igualdade, diz Marx, a ordem jurídica burguesa significa, em verdade, direito baseado na desigualdade. Não por outro motivo que Marx, em favor de um “direito desigual” (e não da desigualdade), que consubstancie uma igualdade material (não apenas perante a lei), cunha o princípio regente de uma sociedade futura mais elevada: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!”.7 6

Pachukanis afirma por diversas oportunidades que sua obra não representa um trabalho inovador, justamente porque, segundo diz, apenas sistematizou o assunto a partir do que escreveram Marx, Engels e Lenin (NAVES, 2009, p. 15). Neste sentido, escreveu Pachukanis no prefácio de “Teoria geral do direito e marxismo”: “Para esse empreendimento servi-me, essencialmente, das idéias que encontrei em Marx.” (1988, p. 14). 7 “Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal; depois de o trabalho se ter tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de, com o

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 A fictícia condição de igualdade jurídica, porém, é um mecanismo fundamental ao desenvolvimento do capital, pois, se reconhecendo como proprietários privados – iguais sujeitos de direitos –, os indivíduos, através de um ato de vontade, intercambiam suas mercadorias, engendrando o processo da troca capitalista. Esta ideia marxiana encontra-se na obra “O capital” (1867): Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria. Temos, portanto, de procurar seus responsáveis, seus donos. As mercadorias são coisas; portanto, inermes diante do homem. Se não é dócil, pode o homem empregar força, em outras palavras, apoderar-se dela. Para relacionar essas coisas, umas com as outras, como mercadorias, têm seus responsáveis de comportar-se, reciprocamente, como pessoas cuja vontade reside nessas coisas, de modo que um só se aposse da mercadoria do outro, alienando a sua, mediante o consentimento do outro, através, portanto, de um ato voluntário comum. É mister, por isso, que reconheçam um no outro, a qualidade de proprietário privado. Essa relação de direito, que tem o contrato por forma, legalmente desenvolvida ou não é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. (MARX, 2006, p. 109-110). Isto é, a mercadoria não vai ao encontro de outra mercadoria para intercambiarem-se entre si, por si mesmas; para que o processo de troca se realize faz-se necessário que os seus proprietários (“seus donos”) relacionem-se entre si, através de um “ato voluntário comum”, para que realizem reciprocamente o intercâmbio. A relação que representa um momento econômico de troca de produtos no mercado (circulação de capital), significa, igualmente, um momento jurídico em que os proprietários intercambiam direitos (de propriedade). Logo, a relação jurídica estabelecida entre os possuidores de mercadorias é, antes de tudo, uma relação entre sujeitos. De tal sorte que para Pachukanis, tomando essa lição de Marx, o “sujeito é o átomo da teoria jurídica, o seu elemento mais simples, que não se pode decompor.” (1988, p. 68). Isto porque é a partir da relação social estabelecida no mercado, explica o jurista soviético, que os produtos do trabalho tornam-se mercadoria e adquirem valor, e as pessoas tornam-se sujeitos jurídicos e portadores de direitos, pelo que é possível diferenciar, na totalidade, um plano de relações coisificadas (apreendidas como relações econômicas); e outro de interação entre pessoas, quando opostas uma mercadoria (que denotam justamente as relações jurídicas) (1988, p. 71). “Assim o vínculo social, enraizado na produção, apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas; por um lado, como valor de mercadoria e, por outro, como capacidade do homem de ser sujeito de direito.” (PACHUKANIS, 1988, p. 71-72). Em outras palavras, Pachukanis enxerga duas formas do vínculo social: de um lado, as relações de troca de mercadorias equivalentes, que dão luz à “forma mercadoria”; do outro,

desenvolvimento omnilateral dos indivíduos, as suas forças produtivas terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza co-operativa jorrarem com abundância — só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!” (MARX, 2014).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 as relações jurídicas entre sujeitos de direito equivalentes, que expressam a “forma jurídica”.8 Além disso, fica estabelecida a origem do fenômeno social “direito” como derivada da circulação mercantil. Avança Pachukanis afirmando que com o desenvolvimento das forças produtivas e das categorias jurídicas, a capacidade de realizar atos de troca torna-se apenas uma das inúmeras manifestações da capacidade jurídica do sujeito. Mais do que isso, com o aprofundamento das relações de troca perpetrado pelo capitalismo, a partir do desenvolvimento da burguesia, é que o direito passou a ter um caráter abstrato, onde as pretensões jurídicas concretas são substituídas pela capacidade geral de ser titular de direitos: “Cada homem torna-se homem em geral, cada trabalho torna-se um trabalho social útil em geral e cada sujeito torna-se um sujeito jurídico abstrato. Ao mesmo tempo, também a norma reveste-se da forma lógica acabada de lei geral e abstrata.” (PACHUKANIS, 1988, p. 78). Justamente por este motivo que Pachukanis entende que o direito da sociedade burguesa representa a forma mais desenvolvida e acabada da mediação jurídica. E é justamente por estar alicerçada na forma jurídica abstrata que o direito burguês, explica Pachukanis, entoa direitos de maneira meramente formal, ignorando, como escreveu Marx em “Crítica ao programa de Gotha”, a divisão da sociedade em classes. A igualdade da ordem jurídica se revela como “igual oportunidade de aceder à desigualdade” (1988, p. 80), haja vista que “(...) a qualidade de ser sujeito jurídico é uma qualidade puramente formal. Ele define todas as pessoas como igualmente ‘dignas’ de serem proprietárias, mas não as torna, por isso, proprietários” (1988, p. 84). Em termos de método, é possível verificar aqui uma distância muito grande entre Kelsen e Pachukanis. Em oposição absoluta às premissas kelsenianas, o jurista soviético busca compreender o fenômeno jurídico a partir da apreensão da totalidade, levando em consideração determinantes concretos, e não de um recorte epistemológico que prima pelo estudo do objeto em si. Além disso, Pachukanis ao estabelecer, a partir de Marx, um vínculo entre direito e a forma mercantil, explicita que da mesma forma que a atribuição de valor à mercadoria é um fenômeno construído socialmente, também o é a imputação de propriedade sobre os produtos do trabalho ao sujeito jurídico, evidenciando a historicidade do fenômeno jurídico,9 e não a sua universalidade. Por outro lado, ao modo da obra de Kelsen, a teoria pachukaniana também se preocupou em criticar a doutrina do direito natural, especialmente quanto ao método de apreensão da realidade e construção científica da ciência jurídica, já que para ele a outorga do Dever-ser a um plano transcendental significa uma ruptura com a faticidade do direito. Ademais, Pachukanis ocupou-se em realizar uma importante autocrítica da teoria marxista do direito, a qual considerava que se detinha exclusivamente no estudo do conteúdo das normas jurídicas, e, logo, se limitava a concluir pela denúncia do seu caráter classista. Afirma o jurista soviético que uma verdadeira análise materialista do direito importa no estudo da regulamentação jurídica como forma histórica determinada, pois somente desta maneira se poderia colocar o direito como um fenômeno complexo e de múltiplas 8

“Ao lado da propriedade mística do valor aparece um fenômeno não menos enigmático: o direito.” (PACHUKANIS, 1988, p. 75). 9 “A esfera de domínio, que envolve a forma do direito subjetivo, é um fenômeno social que é atribuído ao indivíduo do mesmo modo que o valor, outro fenômeno social, é atribuído à coisa, enquanto produto do trabalho. O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico.” (PACHUKANIS, 1988, p. 75).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 determinações, podendo-se apreender cientificamente a esfera jurídica sem recair em uma explicação extrajurídica. (PACHUKANIS, 1988, p. 21). Não obstante, como será abordado na sessão seguinte, as críticas mais contundentes de Pachukanis são direcionadas ao positivismo jurídico, sobretudo as de ordem metodológicas, pois o jurista soviético não consegue conceber uma teoria que se intitula científica trate “unicamente de definições formais, convencionais e de construções artificiais.” (1988, p. 25) e que proponha uma ciência do direito cujas “abstrações que lhe servem de fundamento [sejam] unicamente adequadas ao direito burguês.” (1988, p. 26). 3. A teoria do direito entre o abstrato e o concreto: o debate entre Kelsen e Pachukanis Os juristas austríaco e soviético produziram um frutuoso debate acadêmico acerca de suas concepções de ciência jurídica, inclusive – o que nos importa – a respeito do método científico para a teoria do direito. A querela entre Kelsen e Pachukanis (e os teóricos marxistas em geral) rendeu, pelo lado do austríaco, as obras “Socialismo e Estado”, de 1920, “A teoria geral do direito e o materialismo histórico”, de 1931, “Teoria comunista do direito e do Estado”, de 1955, “A teoria política do bolchevismo”, de 1957. De forma mais modesta (tanto porque morreu jovem), pelo lado de Pachukanis existem duas resenhas realizadas às obras kelsenianas intituladas “O conceito sociológico e legal de Estado” e “O problema da soberania e da teoria do direito internacional”, as quais, infelizmente, somente se têm notícia,10 por vez que não tivemos acesso a estes trabalhos (não havendo sequer indícios de sua existência em português), remanescendo a sua “Teoria geral do direito e marxismo”, de 1924, como a principal referência da crítica pachukaniana à Kelsen. Apesar de se dedicarem à construção de uma teoria do direito, os autores partem de definições completamente distintas do que entendem por direito. Como já mencionamos, Pachukanis enxerga o direito como relação social imbricada nas trocas mercantis, o que, por óbvio, vai encontro ao do objeto kelseniano, que entende a ciência jurídica como o estudo do sistema de normas. De acordo com Kelsen: A fim de injetar na teoria do direito a dose mais forte possível de marxismo, Pachukanis imita a interpretação econômica dos fenômenos políticos feita por Marx, generalizando os fenômenos jurídicos, no campo doutrinário, à fenômenos econômicos, em particular a fenômenos econômicos que somente podem existir em um sistema capitalista de economia baseada na propriedade privada dos meios de produção. Rechaça, por “ideológica”, a definição do direito como sistema de norma, e trata de captar o direito como parte da realidade social. (KELSEN, 1957, p. 132). A intenção de Pachukanis, empreendida dentro do verdadeiro espírito do marxismo, de interpretar economicamente os fenômenos jurídicos, resulta, não em uma nova definição, senão em uma total negação do conceito de direito. (KELSEN, 1957, p. 149). O pano de fundo desta crítica é sem dúvida o método de análise do direito. Acredita 10

C.f. NAVES, 2009, p. 15.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Kelsen não ser possível alcançar uma genuína ciência jurídica tendo como norte a esfera econômica, como propõe Pachukanis, uma vez que somente um estudo puro do direito o poderia revelar. Por lado, para o jurista soviético, a apreensão do fenômeno jurídico passa necessariamente pela adoção de uma postura histórica, que encara o direito como relações sociais, implicando necessariamente no estudo dos diversos vetores que determinam a esfera jurídica, pois somente assim é que se chegaria a uma explicação verdadeiramente científica do direito. Assim, rebate Pachukanis: Com efeito torna-se evidente que a categoria científica ‘pura’ do Dever-Ser, libertada de todas as aluviões do Ente, da faticidade, de todas as ‘escórias’ psicológicas e sociológicas, não tem e não pode de nenhum modo ter determinações de natureza racional. (...) Uma tal teoria geral do direito, que nada explica, que a priori volta as costas às realidades concretas, ou seja, à vida social, e que se preocupa com normas sem se importar com sua origem (o que é uma questão metajurídica!) ou com suas relações com quaisquer interesses materiais, não pode ter pretensões ao título de teoria senão unicamente no mesmo sentido em que, por exemplo, se fala popularmente de uma teoria do jogo de xadrez. Uma tal teoria nada tem a ver com a ciência. Esta “teoria” não pretende de nenhum modo examinar o direito, a forma jurídica, como forma histórica, porque não visa absolutamente estudar a realidade. Eis porque, para empregar uma expressão vulgar, não podemos tirar dela grandes coisas. (PACHUKANIS, 1988, p. 19). No prefácio de sua obra magna, reconhece Kelsen a crítica pachukaniana: “Como se mantém completamente alheia a toda a política, a Teoria Pura do Direito afasta-se da vida real e, por isso, fica sem qualquer valor científico. É esta uma das objeções mais frequentemente levantadas contra ela.” (KELSEN, 1998, p. XIII). Apesar disso, o jurista austríaco aproveita-se, não para responder a “objeção”, mas para reafirmar, ao que nos parece, de forma tautológica, a pureza metodológica de sua teoria, para quem obteve um patamar de cientificidade ainda não alcançado por qualquer ciência social, sobretudo quando comparada com as ciências naturais: Se é lícito dizer-se que a ciência natural pôde ir até o ponto de levar a cabo a sua independência da política, isso sucedeu porque existia nesta vitória um interesse social ainda mais poderoso: o interesse no progresso da técnica que só uma investigação livre pode garantir. (...). Relativamente às ciências sociais falta ainda – e o seu estado pouco evoluído não é das razões que menos concorrem para tal – uma força social que possa contrabalançar os interesses poderosos que, tanto aqueles que detêm o poder como também aqueles que ainda aspiram ao poder, têm numa teoria à medida dos seus desejos, quer dizer, numa ideologia social. (KELSEN, 1998, p. XIV). A teoria do direito kelseniana está assentada nos pressupostos metodológicos positivistas, tributários de Augusto Comte, segundo os quais a realidade é apreendida a partir da mera descrição do seu objeto de estudo. A descrição dos fatos significa coletar os dados apreensíveis, da maneira como eles são, uma vez que eles representam, por assim dizer, a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 própria realidade. Assim como as categorias e conceitos jurídicos elaborados a partir da apreensão nua da realidade constituem, elas mesmas, a realidade em si. (...) seu ideal de ciência coincidia com a tendência antimetafísica e os critérios de verdade do positivismo lógico, a verificação empírica, fundada na correspondência dos enunciados científicos com os fatos, e a verificação analítica, fundada no princípio da identidade. (COELHO, 1983, p. 172). Somado a uma pretensa neutralidade do sujeito que pesquisa, o positivismo kelseniano constrói uma abstração teórica (modelos explicativos, hipóteses, relações de causalidade etc.) que fundamenta e dá vida ao problema científico em análise. Contudo, tal abordagem acaba por afastar-se da realidade, justamente porque não se propõe a estudar as determinações que dão corpo às abstrações, tornado-as esvaziadas de conteúdo real, e, por isso, sem cientificidade. Neste sentido, muito mais próximo da “verdade” está o método proposto por Karl Marx, utilizado por Pachukanis, que preconiza a construção teórica da totalidade do objeto. Preso aos pressupostos científicos, para Marx, uma teoria se presta a reproduzir, no plano das idéias, o movimento real do objeto, razão pela qual tanto mais correta e verdadeira serão as formulações teóricas quanto mais fiel for o sujeito que pesquisa à reprodução e interpretação em seu pensamento da estrutura e dinâmica do objeto de pesquisa (PAULO NETTO, 2011, p. 20-21). O melhor caminho para se alcançar tal objetivo, elucida Marx, é começar pela análise do concreto e do real, pelos quais se alcançaria, por meio da análise, a conceitos abstratos e determinações simples: Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. (MARX, 2011, p. 54). Em seguida, Karl Marx propõe, após a ida do concreto ao abstrato simples, o retorno do abstrato ao concreto, sendo este não mais uma totalidade caótica, mas, a partir de então, um concreto complexo, dotado de múltiplas determinações: “Daí teria início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações.” (MARX, 2011, p. 54). Assim, o conhecimento teórico, segundo Marx, representa o

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 conhecimento do concreto, que significa não a apreensão da realidade como ela se oferece imediatamente ao pensamento, mas como é construída a partir do retorno ao concreto (PAULO NETTO, 2011, p. 44), pois neste “curso do pensamento abstrato, que se eleva do mais simples ao combinado, corresponderia ao processo histórico efetivo” (MARX, 2011, p. 56). “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em conseqüência, também o ponto de partida da intuição e da representação.” (MARX, 2011, p. 54) Diante disso, é possível asseverar que o método de Kelsen se atém à primeira parte do método marxiano, deduzindo da realidade abstrações simples, pelas quais estabelece as relações de causalidade, que, no caso específico do direito, ele denomina de interpretação normativa, como notamos anteriormente. Aqui, a representação da realidade é frágil, pouco científica, pois desconexa do concreto. Ao contrário, Pachukanis, ao realizar a “viagem de retorno” deduz o fenômeno jurídico das relações sociais, pelo que a “forma jurídica, expressa por abstrações lógicas, é um produto da forma jurídica real ou concreta, um produto da mediação real das relações de produção” (PACHUKANIS, 1988, p. 12). Daí é possível asseverar, de forma convicta, que a ciência jurídica de Kelsen representa não a construção de um conhecimento científico propriamente dito, como almejava o jurista austríaco, pelo contrário, importa a teoria kelseniana em uma sistematização do senso comum. Aqui, juntamo-nos ao argumento de Michel Miaille: Como escrevia um sociólogo no princípio deste século, usamos noções nascidas da prática e conferimos-lhes um valor que elas não tem acreditando que, por serem habituais e estarem largamente difundidas, são verdadeiras. Daí a utilizá-las numa investigação dita científica, vai um grande passo. Ele é alegremente dado pelos positivistas. No fundo, estes, tomando as coisas tal qual elas são – ou como elas parecem ser – constroem, ainda que o neguem, todo o seu edifício sobre o conhecimento vulgar e acabam por lhe dar estatuto científico. (2005, p. 45). Certamente, o apego à técnica, em detrimento da epistemologia jurídica, condena a teoria kelseniana ao mero estudo da lógica peculiar do seu objeto (COELHO, 1983, p. 173), pelo que parece adequada a percepção de Pachukanis que aproximou a teoria pura do direito à uma “teoria do jogo de xadrez” (PACHUKANIS, 1988, p. 19). 4. Considerações finais É fato notório que o positivismo de matiz kelseniana é hegemônico nas teorizações do direito (LYRA FILHO, MIAILLE), sendo, por esta razão, conforme buscamos demonstrar aqui, um obstáculo a uma verdadeira apreensão científica do fenômeno jurídico. Isto quando levado

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 para à seara do ensino jurídico ganha especial significância tamanha é a difusão e reprodução do pensamento kelseniano. Assiste-se um espaço cada vez maior para dogmática em desfavor da ciência do direito. “(...) a teoria pura atingiu duas metas: fundou uma ciência jurídica positiva, isto é, preocupada com o direito histórico real e factual; mas o direito histórico sem imiscuir-se na historicidade do direito real, sem manifestar-se sobre essa realidade; e do direito factual sem intrometer-se na facticidade. E a segunda meta, a construção de um paradigma de ciência do direito identificado com o modelo do senso comum, superando de vez o ceticismo epistemológico.” (COELHO, 1983, p. 174). Neste contexto é extremamente relevante a contribuição da teoria marxista para o direito, aqui dada voz por meio de Pachukanis. A sua concepção de que o direito é, antes de tudo, uma relação social representa uma insurgência teórica ao normativismo formalista reinante. O “principal mérito” deste ponto de vista “consiste em colocar, pela primeira vez, o problema do direito em geral sobre uma base científica, renunciando a uma visão puramente formal e vendo no direito um fenômeno social, que muda com a luta de classes, e não uma categoria eterna”. (STUCKA, 1988, p. 16-17). Assim, direito não se resume ao texto legal da atividade legiferante ou à interpretação dada pela jurisprudência, é um fenômeno complexo determinado por inúmeros fatores, assim como é a realidade concreta, sendo, antes de tudo relação entre os homens. É por intermédio deste referencial teórico que acreditamos ser possível aproximar a teoria do direito à realidade específica da América Latina, que é notadamente peculiar. Não parece razoável as aproximações, adaptações e analogias tão comumente realizadas pela teoria do direito no continente que acabam, frequentemente, por distanciar-se do concreto. Neste sentido, ao que tudo indica, parece inevitável para esta epistemologia jurídica a aproximação com a teoria da dependência, em sua vertente marxista. Esta escola latinoamericana que vem interpretando a peculiaridade do continente e fornecendo subsídios analíticos úteis e perenes para desvendar o capitalismo periférico parece ser a munição que falta à uma teoria do direito periférico. Ainda há uma grande lacuna teórica no que diz respeito a uma teoria latino-americana do direito que busque apreender a estrutura e evolução histórica da forma jurídica dependente.

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COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. COELHO, Luiz Fernando. Introdução à crítica do direito. Curitiba: Editora HDV, 1983. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. _______. Teoría comunista del derecho y del Estado. Buenos Aires: Emecé Editores, 1957. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 9. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Disponível em: . Data de Acesso: 15/07/2014. _______. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011. _______. O capital: crítica da economia política: livro I. Tradução de Reginaldo Sant’Ana. 23 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. 3. ed. Lisboa: Editorial Estampa: 2005. NAVES, Márcio Bilharinho. Evgeni Bronislavovitch Pachukanis (1891-1937). In: NAVES, Márcio Bilharinho (org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas: Unicamp, 2009. PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovich. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988. PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011. STUCKA, Petr Ivanovich. Editora

Direito e luta de classes: teoria geral do direito. São Paulo: Acadêmica, 1988.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

O PRELÚDIO PARA A CRIMINALIZAÇÃO DAS CULTURAS PERIFÉRICAS

Saulo Ramos Furquim1

Resumo: O presente trabalho tem por objeto o estudo da criminalização das culturas periféricas, partindo-se da hipótese de determinadas práticas culturais produzidas e/ou consumidas das quais, identidades, símbolos e significados são objetos entendidos como crime de uma política penal, em detrimento de uma política cultural. Estas manifestações culturais, que particularmente sofreram (ou sofrem) repressão penal, aplicando-se os subsídios teóricos da criminologia principalmente da criminologia cultural - buscam compreender os mecanismos que legitimam e explicam o seu tratamento penal. Entre outros tópicos, serão abordados: a influência punitiva pela mídia e a fabricação de pânicos e panaceias morais em relação às culturas dos marginalizados. Palavras-chave: Crime; Cultura; Repressão Penal; Mídia. Abstract:. This work aims to study of the criminalization of peripheral cultures, considering the hypothesis that certain cultural practices produced and/or consumed, such as, identities, symbols and meanings are objects understood as a crime of criminal policy to the detriment a cultural policy. These cultural manifestation, that particularly have suffered (or suffer) criminal repression, applying the theoretical subsides of criminology – especially cultural criminology- seek to understand the mechanisms that legitimize and explain their criminal treatment. Among other issues will be addressed: the punitive influence of media and the making of moral panic and panaceas with to the cultures of the marginalized. Keywords: Crime; Culture; Criminal Repression; Media.

1 – INTRODUÇÃO Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade2.

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Mestrando em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra (conclusão 12/2014). Especialista em Ciências Criminais. Membro da The International Society for Criminology (ISC), Roma - Itália. Advogado. E-mail: [email protected] 2 COUTO, Mia. Murar o Medo. Conferência de Estoril, Portugal, 2011.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em uma criminologia atuária, marcada pelo dualismo social científico das intersecções das esferas entre o saber penal e o saber criminológico, torna-se indispensável a necessidade de estudos nos campos culturais e sociológicos, para, somente assim, entender o além do crime e do seu controle. De igual forma, compreender as intersecções entre delito e cultura. Seguindo a perspectiva criminológica atual, observa-se a necessidade de uma fragmentarização da criminologia crítica, pela qual a versatilidade dos comportamentos humanos é constante, pois, novos paradigmas poderiam servir como uma abertura às novas alternativas no estudo do cenário criminal atual, onde “crime e cultura”, caminham lado a lado. Sob esse novo paradigma intitulado Criminologia Cultural, emerge uma nova forma do pensamento pós-criminologia crítica. Contudo, observa-se a indispensabilidade do estudo de algumas teorias, entre elas: teoria da subcultura, do labelling approach e teoria crítica. Ademais, na procura por um breve conceito, a abordagem cultural consiste no “entendimento que a transgressão e a criminalidade, inegavelmente, incorporam contestados significados e identidades” (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2012, p. 41), buscando, antes de qualquer limitação metodológica, manter-se exposta às novas possibilidades. Neste aspecto, o contexto cultural permite uma abordagem ampla acerca dos fatores que influenciam interações sociais, seja sob forma de arte, música, tradições e ritos ancestrais, ou ainda, quaisquer outros símbolos passíveis de estruturar, adequar ou mesmo influenciar comportamentos sociais. Para tanto, busca-se aqui pelo entendimento dos fatores que levam ao clamor da criminalização das culturas marginalizadas, referenciando para tanto, as consequências criminais negativas trazidas pelo Labelling Approach e da Teoria Crítica, como a delinquência secundária, a estigmatização e a seletividade do direito penal quando trata casos semelhantes de maneira desigual. Derradeiramente, cumpre analisar o ethos do criminalizado e a histórica da repressão penal no Brasil ante as manifestações artísticas tidas como marginais. Completa-se a pesquisa com a influência punitiva da mídia dos empresários morais, a clamar pela criação de novas regras, haja vista a não satisfação daquelas já existentes.

2 – A HERANÇA DO LABELLING APPROACH E DA TEORIA CRÍTICA Um dos aspectos significativos trazidos pela da Teoria do Labelling Approach, trata-se da delinquência secundária3 4, ou seja, aquela delinquência que surge do procedimento causal 3

O termo delinquência secundária foi introduzido por LEMERT, no artigo intitulado Primary and Secondary Deviance, publicado em 1951. LEMERT, Edwin. Primary and Secondary Deviance. In Encyclopedia of Criminological Theory. Thousand Oaks. Sage Publication. 1951. Segundo ZAFFARONI e BATISTA, o processo seletivo de criminalização se desenvolve em duas etapas denominadas, respectivamente, primária e secundária. “Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. Já a criminalização secundária, trata-se da “ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que ocorre quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente”. ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; SLOKAN, Alejandro; ALAGIA, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. 4ª Edição, Editora Revan, Rio de Janeiro, 2011. p. 43. 4 “Isto é a delinquência que resulta do processo causal desencadeado pela estigmatização”. SHECAIRA, Sergio. Criminologia. 5ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013. . 2013. p. 251. A pessoa que tem um estigma particular, conforme menciona GOFFMAN, “tende a passar pelas mesmas experiências de aprendizagem social relativa à sua condição e pelas mesmas modificações em concepção do “eu” – uma carreira moral similar que é, ao mesmo tempo, causa e efeito do compromisso com uma sequencia semelhante de ajustamentos pessoais”. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Tradução Márcia Bandeira M. L. Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988., p. 45. Na realidade, a experiência imaginada por este paradigma não se propôs a estudar especificamente o problema etiológico da criminalidade – ainda que dele não tenha se esquecido-, mas, no dizer de Becker, a “alargar área tomada em

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 resultante da estigmatização do indivíduo. Conforme o princípio da profecia autorrealizadora (selffulfilling prophecy), termo nomeado por Robert Merton5, nas palavras de Alessandro Baratta “a expectativa do ambiente circunstante determina, em grande medida, o comportamento do indivíduo, a vítima do estigma passa a se comportar de modo como os outros esperam que ela se comporte” (BARATTA, 2013, p. 174). Sendo assim, na medida em que se criam pelas autoridades e por setores dominantes da sociedade, muitas vezes até pela mídia, termos pejorativos a indivíduos que aderem a um estilo de vida ligado às culturas periféricas, tais como: funkeiros, pichadores entre outros, designam-se como ameaçadores e perigosos, com conotações degradantes. A Teoria do Labelling contribuiu significativamente para o modo de demonstrar como a reação social ou a punição de um primeiro comportamento desviante tem, amiúde, um papel para o comprometimento com o desvio, a suscitar, através de uma mudança de identidade social do agente6. De outra banda, cabe destacar que os paradigmas da reação social foram divididos em três direções da sociologia contemporânea: (i) o interacionismo simbólico 7, corrente que destaca Becker8, Goffman9 e Lemert10; (ii) a fenomenologia e a etnometodologia 11, representadas por autores como, Berger, Luckmann12 e Garfinkel13; (iii) a sociologia do conflito14 com Dahrendorf 15 e Coser16.

consideração, introduzindo nos cálculos dos estudiosos novas fontes de variabilidade”. BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução, Maria Luiza Borges. Editora Zahar. Rio de Janeiro, 2008, p. 46. 5 “The self-fulfilling prophecy is, in the beginning, a false definition of the situation evoking a new behavior which makes the original false conception come true”. MERTON, Robert K. Social Theory and Social Structure. New York: Free Press, 1968. p. 477. 6 Ibidem. 2013. p. 89 e ss. 7 Segundo FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, “toda investigação internacionalista gravita em torno da problematização da estigmatização, assumida quer como variável dependente (quais os critérios em nome dos quais certas pessoas e só elas são estigmatizadas como delinquentes?) quer como variável independente (quais as consequências desta estigmatização?)”. DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. 2013, p. 343. 8 BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução, Maria Luiza Borges. Editora Zahar. Rio de Janeiro, 2008. 9 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed. Tradução Márcia Bandeira M. L. Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. E GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Tradução: Dante Moreira. São Paulo. Editora Perspectiva, 1974. 10 LEMERT, Edwin. Human deviance, social problems and social control, New Jersey. Prentice-Hall. 1967. 11 Nas palavras de GARFINKEL, “the term "ethnomethodology" to refer to the investigation of the rational properties of indexical expressions and other practical actions as contingent ongoing accomplishments of organized artful practices of everyday life. The papers of this volume treat that accomplishment as the phenomenon of interest. They seek to specify its problematic features, to recommend methods for its study, but above all to consider what we might learn definitely about it. My purpose in the remainder of this chapter is to characterize ethnomethodology, which I have done by presenting three studies of the work of that accomplishment together with a concluding recitation of study policies”. GARFINKEL, Harold. Studies in ethnomethodology. New Jersey, Prentice-Hall, 1968, p. 11. 12 BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. The social construction of reality, New York. Penguin Books. 1966. 13 GARFINKEL, Harold. Studies in ethnomethodology. New Jersey. Prentice-Hall, 1968. E GARFINKEL, Harold. Condition of successful degradation ceremonies. In American Journal of Sociology, LXI, Chicago, The University Chicago Press. 1956. 14 Para a teoria de conflito, as ordens na sociedade são fundamentadas na força e na coerção , no intuito da dominação de alguns sujeitos por outros, tudo em prol da estabilidade da sociedade. Em igual sentido, sobre a criminologia do conflito, BARATTA completa: “con el enfoque de la reacción social, que tienen en común con las teorías interaccionistas, otro grupo de teorías sobre la criminalidad, de las cuales queremos ocupamos, ha desarrollado, en cambio, desde una perspectiva declarada- mente macrosociológica, el elemento del conflicto como principio explicativo fundamental de los procesos de criminalización, entendidos como procesos de definición y atribución de estatus criminales. Se designan, por ello, con el nombre de teorías del conflicto o teorías conflictuales de la criminalidad”. BARATTA, Alessandro. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal. Traducción de: ÁIvaro Búnster 1ª imp.- Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004. p. 125 e ss. 15 DAHRENDORF, Ralf. O conflito social moderno: um ensaio sobre a política da liberdade. Tradução Renato Aguiar e Marco Antônio Esteves da Rocha. Zahar, Rio de Janeiro, 1992. 16 COSER, Lewis. Nuevos aportes a la teoría del conflito social. Amorrotu, Buenos Aires, 1970.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Todavia, a herança maior do Labelling na questão criminológica cultural é como o processo sequencial dos atos da reação social pode advir nos indivíduos adeptos das culturas ditas marginalizadas, conforme os modelos explicativos de Shecaira, (SHECAIRA, 2013, p. 264) e de Figueiredo Dias e Costa Andrade (DIAS; ANDRADE, 2013, p. 353), as condutas desviantes advindas desta criminalização tomam forma da seguinte maneira: delinquência primária – resposta ritualizada e estigmatização – distancia social e redução de oportunidades – surgimento de uma subcultura delinquente com reflexo na autoimagem e role engulfment17 – estigma decorrente da institucionalização – delinquência secundária. Tal contribuição criminológica pode ser atribuída às subculturas de grafiteiros e pichadores. Para os críticos, o Labelling se limitou a embasamentos subjetivos e idealistas; sua crítica não ultrapassou os limites do modelo de sociedade capitalista 18. De igual modo, não calcando os limites das razões financeiras da desigualdade, nem os limites da seletividade nos processos de criminalização, tampouco suscitar as causas mediatas do desvio e da reação social (BARATTA, 2013, p. 211). De tal forma, coube a Teoria Crítica, também denominada por Juarez Cirino dos Santos como criminologia radical19, à inovação em relação a reação social, que esta se contrapõe no fato do labelling não ter interpretado melhor as desigualdades sintéticas, e não as referenciado na seletividade, além do caráter classista do Direito Penal 20. Os alicerces desta linha de pensamento estão centralizados nas posturas da criminologia de conflito em aversão ao modelo de consenso, criticado por não atender a totalidade do fenômeno criminológico. A premissa de fundamento estava aportada na concepção marxista, pois neste viés marxista, o crime é tratado como um fenômeno decorrente do modelo capitalista21. No paradigma crítico, o amadurecimento da criminologia só pode ser atingido quando esta aborda o enfoque macrossociológico, deslocando o comportamento delinquente para mecanismos de controle social e, em particular, para o processo de criminalização. Dentro desta crítica, o Direito Penal é considerado, além de um sistema ornamentado de sanções e normas, um sistema dinâmico de funções seletivas e segregadoras no processo de criminalização. Contudo, cria-se o mito que este direito é igualitário, do qual protege igualmente seus cidadãos contra as ofensas aos bens essenciais, ou seja, todos os infratores que tenha comportamentos desviantes e reprováveis têm iguais chances de torna-se sujeitos e com as mesmas consequências do processo de criminalização22. 17

Role-engulfment significa que a “conduta do delinquente assumiu um papel de primado na carreira criminal, de forma que toda a sua experiência – designadamente a interação e a autoimagem – tendem a polarizar-se em torno desta figura”. DIAS, Jorge de Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. op. cit. 2013, p. 351. 18 Cf. CYMROT, Danilo. A criminalização do Funk sob a perspectiva da teoria crítica. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 154. 19 Um dos maiores expoentes da teoria crítica no Brasil foi Juarez CIRINO, um dos tradutores da obra Criminologia crítica de TAYLOR, WALTON e YOUNG, é o responsável no Brasil pela inserção da expressão radical no contexto da criminologia. SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3ª edição. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2008. 20 BARATTA explica que sob a ótica da teoria crítica a criminalidade não é mais qualidade ontológica de determinadas condutas desviantes e de determinados agentes, mas se mostra, na forma de um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: “(i) a seleção de bens protegidos para o Direito Penal, e comportamentos reprováveis a esse bem; (ii) a seleção dos indivíduos estigmatizados entre os demais que realizam delitos criminalmente sancionados”. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2013, p. 161. 21 “MARX é quem cria a Crítica como uma ciência nova, não se contentando em descrever o sistema capitalista de produção, perfurando a superfície econômica do sistema. Verifica que por detrás dela se encontra uma essência anti humana e anti-social”. CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação. Tradução Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro. ICC/Revan, 2005, p. 58. 22 Acerca do mito do princípio da isonomia nas ciências criminais, e a fim de evidenciar sua seletividade nos processos de criminalização, MANTOVANI assegura: “o Direito Penal, ao abandonar o ideal iluminista de leis simples, claras e estáveis, pela realidade de leis complexas, obscuras e instáveis, adentrou na era irracional da descodificação e das legislações esparsas: isto é, a era nebulosa das leis criminais utilizadas como instrumento de governabilidade e não como tutela de bens; das leis de compromisso, de formulação indeterminada e estimativa; das

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 No contraponto destas questionadas assertivas, Baratta resume com resultado da teoria crítica: (i) o Direito Penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados a todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz intensamente desigual e de modo fragmentário; (ii) a lei penal não é igual para todos, o ethos do criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; (iii) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade (BARATTA, 2013, p. 162). Para tanto, a crítica do Direito Penal dirige-se para o mito clássico que, “todos são iguais perante a lei”23, a referida teoria tenta evidenciar que o Direito Criminal não é menos desigual do que os outros ramos do direito burguês (BARATTA, 2013, p. 162-163), contrariamente ao que as Constituições e os Códigos Penais se referem como o princípio da igualdade, na realidade é desigual por excelência. Devido a este caráter fragmentado e parcial, o mesmo é incapaz de superar contradições no interior do sistema penal, pois se torna estático nos aperfeiçoamentos ideológicos e nos aditamentos das políticas criminais. Todavia, a crítica trouxe contributos de grande relevância, de tal passo Juarez Cirino sugere que a Criminologia crítica tem um programa alternativo de política criminal, concebido para reduzir o Direito Penal e para humanizar o sistema penal, estruturado conforme a ideia de Direito Penal Mínimo, e Garantismo de Ferrajoli 24. No entanto, Ferrajoli entende que o Direito Penal Mínimo e o Garantismo tem o fim em si mesmo, não como um meio para o projeto abolicionista. De maneira adversa do pensamento de autores como Louk Hulsman e Elena Larrauri25, que entendem o minimalismo regulado pelo objetivo final de abolição do sistema penal 26. Já Shecaira cita como contributos desta teoria o fato de que o fundamento mais geral do ato desviado deve ser investigado junto às bases estruturais econômicas e sociais que caracterizam a sociedade, na leis que garantem privilégios para poderosos grupos dominantes; das leis vazias, simbólicas, destinadas somente a colocar em prática a diligência na luta contra determinadas formas de criminalidade; das leis “hermafroditas” com forma de lei, mas vigor de ato administrativo; das leis cultivadoras do corporativismo, servindo de cabresto, para negociações do voto por favorecimentos particulares; das leis desalinhadas e ilógicas, inspiradas na liberdade de expressão, de cada vez mais difícil compreensão; das leis-expediente, da conformidade passiva das ideias dominantes, para sobreviver diariamente e quase sempre mal; das leis burocráticas, meramente sancionadoras de genéricos preceitos extrapenais. Portanto, o princípio da isonomia tão-somente é um fundamento romanticamente recitável nos bancos da academia, no entanto, sua aplicação é praticamente nula”. Tradução nossa. MANTOVANI, Ferrando. Valori e principi della Codificazione penale: le esperienze italiana, francese e spagnola a confronto. In Archivio Giuridico, Volume CCXIV, Fascicolo 3-4, 1994, p. 263. 23 Parafraseando o célebre artigo 5º caput da Constituição Federal brasileira: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. 24 Nas suas próprias palavras, “según una primera acepción, garantismo designa un modelo normativo de derecho: precisamente, por lo que respecta al derecho penal, el modelo de estricta legalidad. Según, propio del estado de derecho, que en el plano epistemológico se caracteriza como un sistema cognoscitivo o de poder mínimo, en el plano político como una técnica de tutela capaz de minimizar la violencia y de maximizar la libertad y en el plano jurídico como un sistema de vínculos impuestos a la potestad punitiva del estado en garantía de los derechos de los ciudadanos. En consecuencia, es garantista. todo sistema penal que se ajusta normativamente a tal modelo y lo satisface de manera efectiva”. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal. Prológo Norberto Bobbio. Editorial Trotta. Madrid. 1995, p. 851 e ss 25 HULSMAN, Louk; CELIS, Bernat J de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro, Luam, 1993. HULSMAN, Louk. Pensar em clave abolicionista. Tradução por Alejandra Vallespir. Buenos Aires, Cinap, 1997. LARRAURI, Elena. Abolicionismo del derecho penal: las propuestas del movimiento aboliconista. Poder y Control. Barcelona, n.3, p.95-116, l987. LARRAURI, Elena. El surgimento de las alternativas a la cárcel: un nuevo triunfo del humanitarismo? Papers. Barcelona, n.4, p.53-65, 1988. 26 SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. Artigo apresentado na XIX Conferência Nacional dos Advogados, Florianópolis, 2005, p. 5.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 qual vive o autor do delito. Além disso, afirma que a proposta da crítica para o processo criminalizador objetiva reduzir as desigualdades de classe e sociais (SHECAIRA, 2013, p. 315). 3 – O ETHOS DO MARGINALIZADO E REAÇÃO SOCIAL Um dos fatores que sempre tem chamado à atenção da sociedade são as manifestações culturais periféricas, ou seja, as manifestações artísticas e as novas formas culturais advindas das classes mais pobres e sua criminalização. Tal problemática não é exclusiva dos dias atuais, Nilo Batista ensina que já no século XIX a capoeira e os batuques africanos eram considerados pelas autoridades com uma forma obscena de insurgência à ordem, um mau exemplo de incitação ao crime (BATISTA, 2013, p. 188). No início do século XX, o samba sofria perseguições similares às dos batuques anteriores27. Como não existia uma legislação específica, no caso dos sambistas, por exemplo, era usada a tipificação de vadiagem28. Para além da criminalização da capoeira e do samba com expressão dos tipos penais de vadiagem e mendicância, o Código Penal de 1880 também criminalizou o charlatanismo, o curandeirismo e o espiritismo, visando às religiões afrobrasileiras29. Nos anos 90 o Hip Hop era constantemente recriminado por letras que referenciavam o crime e as drogas, culminou no episódio da prisão da banda Planet Hemp, sob alegação de que o refrão da música fazia apologia e incitava a associação ao uso de drogas. Com base nestes indícios, os integrantes da banda foram presos, tendo como fundamento de suas prisões os artigos 12 (apologia) e 18 (associação de pessoas para uso de drogas) da antiga Lei de Entorpecentes Brasileira (6.368/76). Posteriormente a banda impetrou pedidos de habeas corpus preventivo para as suas apresentações. Reacendendo a discussão sobre liberdade de expressão e a criminalização de movimentos periféricos. Senão vejamos: “Trata-se de Habeas Corpus preventivo impetrado pelo Advogado Mauro Márcio Seadi Filho e outro, em favor de Marcelo Sayão Lobato, Marcelo 27

No Rio de Janeiro as manifestações artísticas – especialmente as musicais – sempre foram vistas com maus olhos e criminalizadas desde os primórdios da República. BATISTA descreve que no século XIX, “um famoso major, e o primeiro chefe da polícia republicana (compactuando do recíproco ódio à capoeira), lançaram sobre os batuques africanos um olhar que retém alguns componentes das fantasias nas quais os inquisidores viajavam perante a descrição de um sabá orgíaco por uma desventurada bruxa confessa. Mas ao lado do obsceno fulguram a insurgência à ordem, o mau exemplo, a incitação ao crime”. BATISTA, Nilo. Sobre a criminalização do Funk carioca. In: BATISTA, Carlos Bruce (org) Tamborzão, olhares sobre a Criminalização do Funk: Criminologia de Cordel 2. Rio de Janeiro. Editora Revan/ICC. 2013, p. 188. Já na cidade São Paulo, “no período de 1892 a 1916, com interrupção nos anos de 1899 a 1901, dentre 178.120 pessoas encarceradas na cidade, 149.245 (83,8%) foram detidas pela prática de contravenções ou para averiguações, evidenciando uma particular preocupação com a ordem pública, aparentemente lesada por infratores das normas do trabalho, do bem viver ou por suspeitos”. FAUSTO, Boris. Crime e cotidano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2ª edição. São Paulo. EDUSP, 2001, p. 44 e ss. 28 Completando essa lógica histórica seletiva, BATISTA aduz “quando alguém fala que o Brasil é o país da impunidade, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que os pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais. Porém essa punição permeia principalmente o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica, os brasileiros pobres conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem emprego rápido e desfrutem do salário mínimo (punidos e mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para discutir salário, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos)”. BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos. Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro, editora Revan, 1990, p. 38 e ss. 29 CYMROT explica que tal criminalização é advinda dos republicanos tenham tido a intenção de transformar os pobres urbanos da cidade negra, arredia, solidária e alternativa em trabalhadores assalariados disciplinados, civilizados moralmente e higienizados. “Reprimindo a vadiagem e opções indesejáveis de sobrevivência, os administradores republicanos procuravam anular os movimentos daqueles que solaparam a instituição da escravidão sem apoiar, contudo, nenhum projeto político autoritário e totalizante”. CYMROT, Danilo. A criminalização do Funk sob a perspectiva da teoria crítica. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da USP, São Paulo. 2011. p. 175.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Maldonado Peixoto, Joel de Oliveira Júnior, Rafael Crespo Lopes, Bernardo Ferreira Gomes dos Santos e Pedro Reis Garcia, integrantes do conjunto musical PLANET HEMP, contra ato da MM. Juíza Substituta em exercício na 6ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária de Brasília, do Diretor Geral da Polícia Civil do Distrito Federal, do Delegado Chefe da Coordenação de Polícia Especializada, Delegado Chefe da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes I e do Delegado Chefe da Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes II, aduzindo que referido grupo estaria na iminência de sofrer coação à liberdade de locomoção, pela possibilidade de seus integrantes serem presos em flagrante, em virtude do show realizado no dia 09 de novembro próximo passado. Sustenta o impetrante que tal medida se justifica, em virtude do fato de que, em apresentações anteriores na cidade realizadas nos anos de 1997 e 2000, o grupo teve alguns de seus integrantes presos em flagrante e ameaçados de prisão, respectivamente, sob a alegação de estarem fazendo apologia ao consumo de drogas. Alega não ser admissível que tal situação se repita, uma vez que o trabalho realizado pela Banda tem aceitação em todo o território nacional, e que procura apenas discutir o direito garantido constitucionalmente atinente à liberdade de expressão, bem como à descriminação do uso da substância entorpecente conhecida por maconha, assunto debatido amplamente nos dias de hoje. Postula, por fim, a expedição de Salvo-Conduto em favor dos pacientes, para que entre os dias 08 e 10 de novembro do ano em curso não sejam presos por executarem sua produção artística, bem como para que não sofram qualquer tipo de constrangimento, sendo-lhes garantido o direito de tocar livremente as músicas já gravadas em seus discos. No mérito, requerem a concessão da ordem, objetivando a confirmação do pleito. Com o deferimento do pedido liminar e a consequente expedição de salvo-conduto em favor dos integrantes do grupo musical, o impetrante alcançou o intento patrocinado pela presente via judicial, qual seja, a realização do evento ocorrido no dia 09 de novembro próximo passado, sem que houvesse qualquer tipo de coação ou constrangimento à liberdade de expressão. Os pacientes produziram a sua arte sem que tenha havido registro de excesso que pudesse caracterizar a prática de delito, tornando desnecessário o julgamento de mérito da presente impetração, eis que seu objeto já fora atendido” (Habeas Corpus: 2002002008413-2 Des. Pedro Aurélio Rosa de Farias. 1ª Turma Criminal TJDFT). De outra banda, o Hip Hop brasileiro desde os anos 1980 já se expressava como forma de manifestação cultural, demonstrando a denúncia em variadas letras, de forma a mostrar o que é vivenciado por determinada cultura e o que rege e perdura em certas comunidades. Expressam através das canções aquilo que a sociedade temerosa procura não ver ou esquecer, trazendo o ethos de prévia rotulação a grupos de sujeitos marginalizados, por estes fazerem parte de determinada cultura, sendo constantemente denunciada nas suas canções 30. Hoje o exemplo mais referenciado da interação entre crime e cultura está intrínseco na cultura funk no Brasil, por se tratar de uma cultura periférica, marginalizada. Os grupos de indivíduos 30

[...] “A noite chega e o clima estranho no ar, e ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente, mas na calada caguentaram seus antecedentes, como se fosse uma doença incurável, no seu braço a tatuagem, DVC, uma passagem, 157 na lei. No seu lado não tem mais ninguém. A Justiça Criminal é implacável, tiram sua liberdade, família e moral, mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão para sempre de ex presidiário”. MC‟S, Racionais. Homem na estrada Disponível em . Acesso em 23 de julho de 2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 que são adeptos a esta cultura tornam-se estigmatizados e associados à gangues e quadrilhas de criminosos31, devido à música funk brasileira e suas diferentes vertentes serem associadas ao tráfico de drogas, violência e outros crimes. De tal passo, houve uma severa criminalização das músicas de funk com letras que supostamente tinha conotações de apologia à facções criminosas. Levando-se a questão para apreciação dos tribunais superiores: “Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que denegou a ordem ali impetrada em favor de Pedro Jorge Lopes, visando a anular a ação penal contra ele instaurada. O paciente foi denunciado pela prática, em tese, dos delitos previstos nos arts. 12 , 2 , incisos I e III, c/c art. 18 , inciso III , e art. 14 , todos da Lei 6.368 /76, tendo sido decretada a sua prisão preventiva. Irresignada, a defesa impetrou writ perante a Corte de origem, pugnando pelo reconhecimento da inépcia da denúncia, bem como pela expedição de alvará de soltura em favor do réu. O Tribunal a quo denegou a ordem, conforme se infere a seguinte ementa: O paciente, vulgo Colibri ou MC Colibri, foi denunciado por incentivar e difundir o uso indevido de substância entorpecentes, se valendo de suas músicas para enaltecer a facção criminosa conhecida como Terceiro Comando Puro (TCP), alardeando a sua superioridade em relação as demais. A prisão preventiva foi decretada pela gravidade do delito, equiparados a hediondo, tendo sido acolhidos os argumentos ministeriais, visando a garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal. Além disso, o processo está com trâmite normal, já tendo, inclusive, ocorrido a Audiência de Instrução e Julgamento, onde foram inquiridas três testemunhas da acusação, sendo que as da defesa serão ouvidas por Carta Precatória. Não há qualquer ilegalidade na manutenção da prisão do paciente. Ausência de constrangimento ilegal”. (Habeas Corpus Nº 63.966 - STJ 2006/0169575-0 Ministro Gilson Dipp Relator). Muitas letras de músicas de hip hop, quanto funk servem como resistência contra a sociedade dominante, na medida em que relatam sem pudores nem verniz pacificador a dura realidade das favelas e periferias, abordando contextos como a desigualdade, exclusão, racismo, pobreza, rivalidades de território, cárcere, drogas, criminalidade, desemprego e violência policial, músicas essas conhecidas como proibidões32. Com base nas letras de algumas dessas melodias, nota-se que o perfil traçado do subversivo, a basear no caráter saudosista, idealizado e romantizado,

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Segundo CYMROT, “a expressão “gangue” é, em geral evitada pelos chefes de galeras de funkeiros por trazer a conotação pejorativa de ligação com o narcotráfico. CYMROT, Danilo. A criminalização do Funk sob a perspectiva da teoria crítica. Dissertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 48. Por outro lado, o DJ Marlboro relata que a associação do termo galera a pancadaria, fez com que ele passasse a adotar o termo “bonde” como sinônimo para aglomeração de pessoas MACEDO, Suzana. DJ Marlboro na terra do funk: bailes, bondes, galeras e MCs. Dantes Livraria e Editora. Rio de Janeiro. 2003, p. 114. Ocorre que a palavra “bonde” também ficou estigmatizada, associada aos “bondes sinistros” dos traficantes. Hoje, a palavra “galera” não designa apenas grupos que se reúnem nos bailes, mas também uma multidão. HERSCHAMANN, Micael. Linguagens da Violência. Rio de Janeiro, Rocco. 2000. p. 78. 32 “Esta postura de chocar a sociedade com o caráter agressivo das letras, muitas vezes retratando as facções criminosas e as guerras travadas no cotidiano das favelas, são conhecidos como proibidões. Defensores desta vertente de funk sustentam que não é a descrição da realidade que deve ser combatida, mas a realidade em si que deve ser mudada. O proibidão incomoda porque joga na cara da sociedade uma realidade que ela prefere esconder”. CYMROT, Danilo. Proibidão de colarinho-branco. In: BATISTA, Carlos Bruce (org) Tamborzão, olhares sobre a Criminalização do Funk: Criminologia de Cordel 2. Rio de Janeiro. Editora Revan/ICC. 2013, p. 78 e ss.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 associadas às características da comunidade onde nasceu e cresceu e fiel ao ethos dos indivíduos pobres de periferia. Em tal passo, na medida em que funkeiro – termo eleito pela mídia e setores conservadores da sociedade para designar estes jovens ameaçadores, com uma conotação claramente pejorativa – tem a identidade assumida com orgulho, já que é própria das subculturas delinquentes a polaridade negativa de suas ações, ou seja, assumir os valores da sociedade, mas com o sinal invertido, de maneira que o que é visto como repulsivo pela sociedade, passa a ser motivo de status para o membro da subcultura (CYMROT, 2012, p. 173). Destaca-se aqui este ethos marginalizado, com um caráter de resistência, de confronto, conflito, ou até mesmo, de somente chocar, irritar a sociedade dominante, da qual Jeff Ferrell, Keith Hayward e Jock Young lançam como premissas da Criminologia Cultural33. Em contrapartida, esse ethos dos indivíduos associados ao funk é visto com receio pela sociedade dominante e pelas autoridades, pois, são as consequências da reação social se manifestando em aversão ao ethos do marginalizado. Neste ponto, segundo Vera Malaguti Batista: “o estereótipo do bandido vai se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador da favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda” (BATISTA, 1998, p. 28). 4 – A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA CRIMINALIZAÇÃO DE CULTURAS PERIFÉRICAS A fim de descrever a influência punitivista midiática ante as culturas tidas como marginais, ou também chamadas de culturas periféricas, utilizaremos os paradigmas da Criminologia Cultural – uma vertente da pós Criminologia Crítica – buscando analisar as interações entre “crime e cultura”. Conforme Salo de Carvalho: “a criminologia cultural procura, observar os grupos e interagir com as subculturas ou as tribos desviantes, sobretudo com aquelas que integram a urbe, de forma a compreender as suas praticas e os seus rituais nos seus espaços de realização. O resgate da teoria do etiquetamento (etnometodologia e interacionismo simbólico) induz, de igual forma, a adaptação das metodologias à complexidade da vida contemporânea, tarefa que implica, sobretudo na pesquisa europeia e latino-americana, a superação da racionalidade jurídica instrumental e a imersão na inconstância do real” (CARVALHO, 2011, p. 163). Vê-se, desde logo, a existência de símbolos que se adequam e, consequentemente, diferem a cultura dominante da subcultura, bem como a dinamicidade de transformação dessas simbologias, que se modificam conforme a forma como são transmitidas, pelo meio para o qual são oferecidas e seus receptores. 33

“It’s probably the case that we and other cultural criminologists do take special pleasure in moments of subversive resistance. But maybe it’s also the case that illicit cultural practices like “subversive symbol” and “creative recording” do now constitute significant opposition to capitalism’s suffocations”. FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith; YOUNG, Jock. Cultural Criminology. Editora Sage London: 2012, p. 16.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Também nestes símbolos a criminologia cultural tem seu objeto de estudo. A partir da observação da estética dos grupos, verifica-se a existência de padrões e opções comportamentais, os quais podem caracterizar um crime face à cultura dominante. A mídia, neste caso, é fator importante, pois sua estrutura facilita a exposição de informações carregadas de simbologias e acaba por difundir elementos culturais, influenciando o receptor. Ocorre que a mensagem transmitida, por vezes, é carregada com interesses que não excluem os do próprio expositor. Todo este processo mobiliza empreendimentos morais, movimentos de indivíduos ou grupos sociais, para redefinir o que surge na cultura como crime, os quais, no entanto, ocupam os mesmo espaços da mídia (especialmente a televisão), pelo qual se veiculam os conteúdos considerados indutores da criminalidade34. Entretanto, com o fim de coibir espetáculos públicos de violências, libertinagem, e na iminência de existirem crimes relacionados a um determinado grupo subcultural, as autoridades públicas, preocupadas com a aplicação e eficácia da justiça criminal, embasada pelas imagens reiteradamente exposta pela mídia, das intervenções policiais a determinados subgrupos, vendendo informações que as intervenções são benéficas, no sentido de agir preventivamente contra o prenúncio de crimes atrelados àquela subcultura, dão forma ao repúdio público e às políticas públicas de repressão. Tais imagens são expostas em seriados e filmes sobre as ações policiais, os filmes de ação, que oferecem, com frequência, imagens manipuladas de violência, impondo-se como ponto de referência para a população no que alude ao crime e à justiça criminal, dinâmica que afeta mundialmente o aprofundamento da divisão social (BÖES, 2011, p. 61). Nesta medida, o verdadeiro entendimento acerca de crime e criminalização, para além dos estudos de grupos subculturais, deve considerar também a dinâmica dos meios de comunicação de massa (FERRELL, 2011, p. 61), nos obrigando a esclarecer alguns dos principais pontos de contato entre mídia e criminologia cultural, em especial a relação entre o individuo (ou grupo de indivíduos) e o consumo; e a relação da mídia e o poder, no que tange a criminalização de condutas. No que diz respeito à cultura como crime, remete-nos aos agentes ligados à criação e fruição desse ambiente cultural midiático, sejam eles, músicos, artísticas, fotógrafos e cineastas, por exemplo. A maioria destes formadores de manifestação cultural produz e se relaciona com o que podemos chamar de “cultura dominante”, a título exemplificativo, músicas e filmes, que é apreciada pelas classes elitizadas, os quais surgem nas rádios, no cinema, nos museus, nas galerias de artes, entre outros meios de comunicação. Outros formadores de cultura se dedicam às chamadas formas populares da cultura, que são encaradas como formas periféricas de cultura, difundida pelas músicas populares, programas de televisão, e principalmente pela internet. Em geral, elas são referidas como “cultura marginal” ou “cultura periférica”. Contudo, não importando em que nível midiático atuam, pois, conforme Álvaro Oxley da Rocha suscita: “nunca eles estão livres de terem seus produtos redefinidos como criminosos, e serem, conforme a época, acusados de disseminar obscenidades, pornografia, violência, estimulando o comportamento social 34

Neste sentido, o autor se propõe um caso, como pergunta: “se num processo judicial alguém é acusado por um crime, e a defesa alega ter sido o mesmo provocado por excessiva exposição a imagens violentas, transmitidas pela mídia, quer dizer, que o acusado simplesmente imitou o que viu, e desse modo não seria pessoalmente responsável, que tipo de prova se poderia usar para apoiar essa alegação? E que prova se poderia apresentar em contrário? Ao mesmo tempo, que diretrizes poderiam ser desenvolvidas para amenizar o potencial dano decorrente de imagens violentas transmitidas pela mídia, contrariando valores humanísticos de liberdade de expressão? A mídia deveria ser limitada, a partir das preocupações sobre danos sociais em potencial?” ROCHA, Álvaro Oxley. As novas perspectivas e abordagens da Criminologia Cultural. In: Crime e Controle da Criminalidade: Revista Eletrônica da Faculdade de Direito – PUC/RS. nº 4,. 2012, p. 189.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 criminoso, influenciando, especialmente os jovens, a cometer estupros, consumir drogas, cometer assaltos, homicídios ou suicídios, ou, ainda, a cometer crimes, copiando ou imitando os conteúdos disseminados pela mídia” (ROCHA, 2012, p. 188). Essa difusão - cada vez maior da cultura periférica -, em grande parte das vezes, vem associada às imagens de violência, que são vendidas conforme a vontade dessas empresas, tendo em vista suas escolhas de (novos) mercados. Como exemplo, Hayward faz alusão à utilização do gangster rap, o qual simultaneamente diverte musicalmente e exibe sua imagem associada ao poder, drogas e violência. Ainda que não se possa afirmar que o rap seja um causador direto e concreto de violência, mediatamente, entretanto, influencia pessoas, principalmente aquelas possuidoras de menor renda35, vez que se identificam com esse estilo musical e vêm nele à imagem da pessoa também pobre que obteve sucesso. A ideia é de que para esse grupo, a mensagem de violência e crime reproduzida pelo rapper significaria algo necessário ao seu próprio sucesso, passando a reproduzir as condutas criminosas (SOTO; SOUZA, 2012, 14-15). Tal exemplo de Hayward pode ser incorporado ao estilo musical brasileiro, como Funk Ostentação36, essa vertente expressa em suas letras temas de ostentação, símbolos sociais, tais como dinheiro, luxo, poder, roupas de grife. Decorrente disto, a sociedade elitizada questiona como pessoas de classes mais baixas podem alcançar bens de consumo que antes eram de exclusividade das elites? Desta forma, intrinsecamente, surge uma associação deste estilo musical ligada à criminalidade, pois, somente por meio dela, pessoas ligadas a esta cultura marginalizada teriam acesso a estes bens de consumo. Ao procurar relacionar crime, cultura e exibição pública, pode-se dizer que a mídia produz e expõe um número agigantado de imagens relacionadas ao controle da criminalidade para consumo público, porém o que nos chama a atenção é a observação de como a mídia é utilizada para criminalizar determinados comportamentos em razão dos interesses daqueles que detém o poder, sejam políticos, religiosos ou mesmo possuidores de grandes capitais econômicos ou os chamados empreendedores morais, como Howard Becker os classificou (BECKER, 2008, p. 153). Trata-se de um jogo de interesses travado no plano de uma “estética de poder”. Ou seja, aqueles que detêm o poder definem dentro de sua preferência estética aquilo que é tido como apropriado (FERRELL, 1995, p. 32), criminalizando e marginalizando qualquer ordem ou estilo que se contraponha37. Obviamente, para que tenha sucesso em sua busca criminalizadora, os “detentores de poder” se utilizam de suas respectivas zonas de influência para obter sucesso. Consequentemente, a criminalização de uma cultura periférica pode dar azo às arbitrariedades policiais, ensejando abuso de autoridade, conforme evidencia-se nesse julgado.

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Ao reproduzir as palavras de HAYWARD na conferencia de 27.09.2011, à PUC-RS, SOUZA e SOTO explicam que a propensão dos pobres em serem influenciados se deve pelo fato de que passam mais tempo assistindo a televisão e porque na grande maioria não tem muitas outras ocupações (trabalho ou estudo). AZEVEDO, Bernardo de; SOTO, Rafael Eduardo de Andrade. Criminologia cultural, marketing e mídia. In Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, ano 20, n. 234, p. 14-15, mai., 2012. 36 “Nascida em meados de 2011 e disseminada através da internet, especificamente através do youtube, os Mc’s do funk de ostentação se tornaram conhecidos através de seus discursos de “preços altos”: motos e carros de luxo, joias, roupas e tênis de grife e bebidas importadas. Os Mc’s afirmam que o funk de ostentação é inspirado nos rappers americanos, que protagonizam seus clipes a bordo de carros de luxo, bebidas de alto custo e muitas joias de ouro, onde se destacam correntes e relógios. Na cena paulistana, podemos notar referências ao kit do Mc e do público de ostentação”. FREIRE. Libny Silva. Nem luxo, nem lixo: Um olhar sobre o funk da ostentação. Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio, 2012. p. 3. 37 FERRELL nos explica que essas autoridades morais escolhem determinados estilos porque eles minam a certeza estética vigente, sendo que um senso comum de precisão estética é necessário para o funcionamento do controle social. Ibidem. 1995, p. 33.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Pacientes denunciados por infração comportamental ao artigo 242, § 2º, inciso II, com a agravante do artigo 70, II, letras “g” e “l”, do Código Penal Militar (roubo simples com concurso de agentes, com abuso de poder e estando em serviço), objetiva através do presente “writ” seja concedida sua liberdade provisória, ao argumento de ser primário, bons antecedentes, atividade laborativa regular, policiais militares que são, bem com residência fixa no distrito da culpa. O decreto de prisão preventiva se baseia no fato de terem as vítimas se dirigido diretamente ao Comando do Batalhão de Policiamento em Vias Especiais, BPVE, e ali denunciado que foram roubados pelos ora pacientes, a quantia de R$ 340,00, ao terem os mesmos parado seu veículo, utilitário de transporte coletivo, com 15 passageiros, em plena Av. Brasil, ao argumento de que estariam ouvindo música de apologia ao crime. Determinaram os pacientes que as vítimas os acompanhassem a Delegacia de Policia mais próxima para registro da ocorrência, sendo certo que no meio do caminho interromperam a trajetória, subtraindo das vítimas e passageiros a quantia acima citada. Ressalte-se que foi encontrada com os pacientes a referida quantia, sendo certo que também foram reconhecidos pelas vítimas, quando afirmaram que os pacientes haviam anotado seus dados pessoais, com o intuito de coagi-los a não denunciar tal prática. (Habeas Corpus - TJRJ nº 0039445-16.2006.8.19.0000: Des. Elizabeth Gregory – julgamento 21/11/2006 – Sétima Câmara Criminal). Curiosamente, por vezes passam a restabelecer o significado de determinada estética, e assim o fazem ou porque o referido símbolo se tornou suficientemente grande para não ser combatido, ou porque os convém que determinado comportamento passe a ser visto como parte do estilo “apropriado”. Neste sentido, o “estilo” tem significado flutuante, conforme a vontade dessas autoridades morais em negar ou não determinada conduta. Assim, a Criminologia Cultural cuida especialmente da análise da cultura, da juventude, da identidade cultural do indivíduo e de seu estilo de vida, assumindo a responsabilidade de investigar e tentar entender a dinâmica do comportamento contemporâneo. 5 – EMPREENDEDORES MORAIS E AS CRUZADAS MORAIS A mídia não é o único fator relevante para condenação de certas culturas periféricas, existe também uma forte corrente moralista que prega a condenação de culturas que tem valores divergentes da cultura dominante. Esta corrente moralista é o que se chama de empreendedores morais38. Estes empreendedores estão interessados na criação de novas regras, a fim de moralizar, apropriar as manifestações culturais que são tidas como extravagantes e nãoconvencionais. Os empreendedores morais, na maioria das vezes, clamam pela criação de novas regras, pois, as normas existentes não os satisfazem, devido há existência de algum incomodo em outros grupos e culturas que os incomodam profundamente, no caso, os valores, os símbolos e significados de outros grupos e culturas não condizem com a moralidade e os valores dominantes. Destarte, julgam necessária a criação de novas normas penais para corrigir tais distúrbios morais, que consequentemente acarretam em crimes. Nas palavras de Becker:

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As regras são produtos da iniciativa de alguém e podemos pensar nas pessoas que exibem essa iniciativa como empreendedores morais. Duas espécies relacionadas – criadores de regras e impositores de regras – ocupam a nossa atenção. Cf. BECKER, Howard. op. cit. 2008, p. 153.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 “apesar de parecerem serem intrometidos, interessados em impor sua própria moral aos outros, muitos cruzados morais têm fortes motivações humanitárias, pois, acreditem que se as outras pessoas fizerem o que é certo, será bom para elas. Elas acrescentam ao poder que extraem da legitimidade de sua posição moral o poder que extraem da legitimidade de sua posição moral o poder que extraem de sua posição superior na sociedade” (BECKER, 2008, p. 153-154). Estas cruzadas morais se preocupam mais com os fins do que com os meios, no entanto, a finalidade destas cruzadas é redigir normas específicas para extirpar um determinado problema social. Estes empresários morais muitas vezes são pessoas influentes da sociedade os quais figuram como formadores de opinião e deliberadamente expressam sua opinião sobre o repúdio a determinadas subculturas, grupos sociais, entre outros. Retomando ao cenário brasileiro, cita-se um conhecido e recente episódio de empreendedorismo moral contra determinada cultura periférica, a criminalização do “Rolezinho” 39. Nestes eventos, jovens de classes mais baixas, na maioria negros, que aderem à cultura do “funk ostentação”, marcam encontros pela internet em locais como parques públicos, clubes e principalmente centros comerciais. Ocorre que em um destes encontros em um shopping center ocorreram tumultos e roubos, o que levou estes eventos a grandes discussões. Nesta oportunidade, uma famosa jornalista brasileira, expos opiniões públicas acerca da incitação a criminalização deste evento, fundamentando, que foi justamente a violência, o caos urbano, que forçou o consumidor a abandonar o comércio de rua, as praças públicas, os cinemas, teatros, restaurantes e obrigando-os a migrar para espaços fechados e vigiados, mas segundo seu discurso, até este refúgio fora violado. Questionou a legitimidade deste evento da seguinte forma: “Devemos defender o direito dos arruaceiros de se reunir em locais privados, sem prévia autorização, tumultuando a ordem pública, espalhando o medo, afastando as famílias, intimidando os frequentadores? Ou só vamos tomar providência quando os arrastões migrarem das periferias para os shoppings de luxo?”40. Tal discurso moralista se embasa na necessidade de que autoridades públicas precisam criar regras especificas para frearem um possível caos insurgente, pois este movimento cultural marginalizado pode acarretar danos patrimoniais e morais aos verdadeiros indivíduos que são legítimos de desfrutar dos centros comerciais. Ainda a respeito deste tema, a gestão de um Shopping Center de São Paulo, obteve uma liminar na justiça estadual, proibindo a realização do

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“Os rolezinhos são eventos marcados por jovens fãs do Funk Ostentação em locais como parques de diversão, parques públicos, clubes e shoppings centers. Nesses eventos, os jovens se conhecem, paqueram, cantam músicas de seus MCs preferidos enquanto transitam pelos corredores do shopping. Como os “rolezinhos” em shoppings começaram a atrair centenas de jovens, ocorreram tumultos, confusões e pânico dos demais frequentadores dos shoppings, o que levou os eventos à grande mídia e surtiu discussões nas redes sociais, surgindo um interesse da opinião pública pelo Funk Ostentação e o que pretendem esses jovens”. ABDALLA, Carla Caires. Rolezinho pelo Funk Ostentação: um retrato da identidade do jovem da periferia paulistana. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2014. p. 19. 40 Nas palavras de Rachel Sheherazade: “os Shopping Centers no Brasil, se popularizaram por serem uma alternativa para quem procuram uma alternativa de compras e lazer por serem motivos de segurança, foi justamente a violência, o caos urbano, que forçou o consumidor a abandonar o comércio de rua, as praças públicas, os cinemas, teatros, restaurantes e migrar para espaços fechados e vigiados. Mas, agora, até esse refúgio foi violado! O que fazer? Fechar os olhos? Fingir que não há perigo nos “rolezinhos”, como fizeram os shoppings para ofuscar a propaganda negativa? Devemos defender o direito dos arruaceiros de se reunir em locais privados, sem prévia autorização, tumultuando a ordem pública, espalhando o medo, afastando as famílias, intimidando os frequentadores? Ou só vamos tomar providência quando os arrastões migrarem das periferias para os shoppings de luxo?” Jornal do SBT, disponível em: >. Acesso em 24/04/2014.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 evento “rolezinho” em seus domínios, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada manifestante. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu diversas garantias fundamentais em seu art. 5º. Entre elas a da livre manifestação, o direito de propriedade, a liberdade do trabalho. O art. 6º garante, ainda, como direito social, a segurança pública, o lazer, dentre outros. O direito a livre manifestação está previsto na Constituição Federal. Contudo, essa prerrogativa deve ser exercida com limites. Explico o exercício de um direito sem limites importa na ineficácia de outras garantias. De fato, se o poder de manifestação for exercido de maneira ilimitada a ponto de interromper importantes vias públicas, estar-se-á impedido o direito de locomoção dos demais; manifestação em Shopping Center, espaço privado e destinado à comercialização de produtos e serviços impede o exercício de profissão daqueles que ali estão sediados. De outro lado, é certo que além de o espaço ser impróprio para manifestação contra questão que envolve Baile Funk, mesmo que legítima seja, é cediço que pequenos grupos se infiltram nestas reuniões com finalidades ilícitas e transformam movimento pacífico em ato de depredação, subtração, violando o direito do dono da propriedade, do comerciante e do cliente do Shopping. A imprensa tem noticiado reiteradamente os abusos cometidos por alguns manifestantes. Ressalta-se que não se pretende impedir o direito de manifestação, mas este deve ser exercido dentro de limites que facilmente se extraem da interpretação sistemática do arcabouço constitucional. A Constituição Federal estabeleceu direitos fundamentais a todos. Esses direitos importam também em obrigações a cada um, que tem o dever de olhar a sua volta para avaliar se a sua conduta não invade a esfera jurídica alheia. O Estado não pode garantir o direito de manifestações e olvidar-se do direito de propriedade, do livre exercício da profissão e da segurança pública. Todas as garantias tem a mesma importância e relevância social e jurídica. Neste contexto, DEFIRO A LIMINAR, para determinar que o movimento requerido se abstenha de se manifestar nos limites da propriedade do autor, quer em sua parte interna ou externa, sob pena de incorrer cada manifestante identificado na multa cominatória de R$ 10.000,00 por dia. Comunique-se às autoridades policiais para que tomem todas as medidas necessárias para impedir a concretização do movimento no espaço pertencente ao autor e garantir a segurança pública e patrimonial dos clientes, comerciantes e proprietários do centro de comércio autor. A intervenção da Vara da Infância e Juventude, por ora, não se mostra necessária. Citem-se para resposta no prazo de quinze dias, sob pena de presumirem-se verdadeiros os fatos alegados na inicial. Cumpra-se a liminar por não menos do que dois oficiais de justiça plantonistas, que deverão estar no local e horário designado para as manifestações, identificando os participantes para citação pessoal. Regularize-se a parte autora sua representação processual em 48 horas, sob pena de extinção e revogação da liminar. Expeça-se o necessário de imediato. Autoriza-se a afixação desta decisão na sede do Shopping para conhecimento público. Int. São Paulo, 09 de janeiro de 2014. (Interdito Proibitório, Processo: 1001597-90.2014.8.26.0100. Requerente: WTorre Iguatemi Empreendimentos Imobiliários S/A. Requerido: Movimento "rolezaum no shoppim" e outro. Juiz de Direito: Alberto Gibin Villela).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Tal decisão foi fundamentada no sentido de que os centros de compras além de ter o espaço ser impróprio para manifestação contra questão que envolve Baile Funk, mesmo que legítima seja, é cediço que pequenos grupos se infiltram nestas reuniões com finalidades ilícitas e transformam movimento pacífico em ato de depredação, subtração, violando o direito do dono da propriedade, do comerciante e do cliente do Shopping. Escusando-se que a insurgência está presente em qualquer aglomeração de jovens, sejam eles das classes mais abastada, como nas classes menos favorecidas. Neste contraponto Jock Young relata: “pânicos e panaceias morais andam lado a lado constituem o estoque diário das coberturas noticiosas, assim como as histórias trágicas dos que estão aflitos pelo câncer e as descobertas revolucionárias regulares no seu tratamento” (YOUNG, 2008, p. 189). No que pese, tais pânicos e panaceias estão intrínsecos no avanço dos movimentos minoritários da sociedade, movimentos periféricos, negros, gays, feministas, esta maior interação destes movimentos na sociedade, causam uma espécie de crise de identidade. Derradeiramente, surge uma insegurança ontológica que resulta em tentativas repetidas de criar uma base segura, reafirmar valores como absolutos morais, declarar que outros grupos não têm valores, estabelecer limites distintos em relação ao que é virtude ou vício, ser rígido em vez de flexível ao julgar, ser punitivo e excludente em vez de permeável e assimilativo, o mote das campanhas é a volta dos valores da família41. A fim de atingir tais objetivos, como a moralidade, os regastes dos valores familiares, os empreendedores morais, pregam a criação de normas específicas para evitar essas condutas tidas como desviantes, pois o fundamento para o cerceamento de manifestações culturais periféricas está no sentido do entrelaçamento do crime com a cultura. No exemplo supracitado, a legitimidade para a proibição e a criminalização dos ditos “rolezinhos”, está na ideia geral de que estes eventos são uma espécie de incitação ao caos insurgente, acarretando em furtos, roubos e violência nos espaços urbanos privados (shopping centers) tidos como espaços urbanos prioritários das classes mais abastadas. Portanto, em tal passo, o Direito Penal com base na criminologia conflitiva, torna-se o monopólio das classes dominantes detentoras do poder, movimentando as cruzadas morais, a fim de sancionar grupos opostos aos valores fundamentais, que tornam a sociedade estável e integrada. Entretanto, o Direito Criminal para as teorias criminológicas do conflito nas palavras de Figueiredo Dias e Costa Andrade: “não passa de um instrumento de que os grupos detentores do poder se armam para assegurar e sancionar o triunfo das suas posições face aos grupos conflitantes. Daí a tendência, historicamente comprovada, para a criminalização sistemática das condutas típicas das classes inferiores, ou, noutros termos, das condutas susceptíveis de pôr em causa os interesses dos grupos dominantes” (ANDRADE; DIAS, 2013, p. 257-258).

6 – REFLEXÕES FINAIS 41

Ademais, esse movimento que pode explicar a busca das classes médias e altas por novas formas de segregação em resposta aos avanços dos movimentos sociais após a abertura política. CALDEIRA, Tereza. Cidade dos Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p. 327.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

A criminalização das culturas periféricas não é uma figura “sem significado e supérflua”. Encontra respaldo no seio da sociedade atuária, onde de forma sucinta se expande pelas políticas criminais que ainda tendem a interpretar manifestações periféricas como inapropriadas, entendendo tratar-se de uma semente para o crime. Tampouco, a atual política criminal pautada no “proibicionismo cultural” clamada pelos membros punitivistas da sociedade atual, de que a subversão deve ser combatida a todo custo, merece procedência. Contudo, este discurso é vendido aos incautos pela mídia e pelos empresários morais, defendendo a presença de um Estado vigilante em contraposição a insegurança (sociedade do risco). A consequência deste pensamento é o defasado clamor social pelo expansionismo penal, da qual Silva Sánchez já alertava (SÁNCHEZ, 2013, p. 165). Consequentemente, tais medidas embasam o discurso clássico populista de “Lei e Ordem”, pautado na criação de novas normas penais mais repressivas para a resolução destes problemas, que surgem junto a expressões culturais periféricas. Derradeiramente, criando novos grupos tidos como outsiders, a todo momento se esquece de analisar a estética cultural do grupo ou de procurar regulamentar tais manifestações culturais, a fim de evitar alguns atos de transgressão. Cremos que um novo discurso - mais sensato - seria retirar os problemas suscitados do embate sobre “crime e cultura”, que certamente será solucionado pela Secretária de Segurança Pública, e levá-lo para ser solucionado pela Secretária de Cultura, pois, conforme Ferrell, Hayward e Young dispõem: “O que não pode ser estudado diretamente pode, contudo, deve ser levantado com base nos registros ou talvez nas percepções pessoais daqueles cujo trabalho é exatamente erradicar o que não podem definir com precisão” (FERRELL; HAYWARD e YOUNG, 2012, p. 174). 7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Manuel da Costa; DIAS, Jorge de Figueiredo. Criminologia: O Homem Delinqüente e a Sociedade Criminógena. 1. Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2013. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2002. __________. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal. Traducción de: Álvaro Búnster 1ª imp.- Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004. BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: Violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Editora Revan. 1990. __________. Sobre a criminalização do Funk carioca. In: BATISTA, Carlos Bruce (org) Tamborzão, olhares sobre a Criminalização do Funk: Criminologia de Cordel 2. Rio de Janeiro: Editora Revan. 2013. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora. 1998. BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução, Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Editora Zahar. 2008. BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. The social construction of reality, New York. Penguin Books. 1966.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 AS INSUFICIÊNCIAS DEMOCRÁTICAS E A RESPONSABILIDADE POLÍTICA COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DO PODER Alexandre Sanson1

Resumo: O presente artigo apresenta considerações acerca da responsabilidade política e as possibilidades de aprimoramento da funcionalidade representativa, que é um sistema até o momento insuperável das democracias ocidentais eleitorais. Trata-se de um instituto relevante, dotado de autonomia, com características próprias, como a inexistência normativa de rol exaustivo de condutas reprováveis - diante da dinamicidade das relações políticas - e a possibilidade de análise preventiva ex ante e não apenas post factum. Contudo, habitualmente é confundido com outras modalidades de responsabilidade - como a penal - e, por vezes, tem a sua importância minimizada, enfatizandose que as suas ineficiências na prática decorrem, em parte, da ausência de um estudo sistematizado do assunto. Subsistem, portanto, questões a serem dirimidas, como quem pode figurar como sujeito ativo ou passivo dessa modalidade de responsabilidade, quais os instrumentos de controle (horizontal, vertical e social) e quais sanções podem ser aplicadas. Enfatize-se que a responsabilidade política não se reduz a mecanismos de perda de mandato (e.g. impeachment, recall), insere-se como elemento da denominada “democracia qualitativa” e ainda permite um campo amplo a ser explorado, visando à melhoria das instituições públicas. Palavras-chave: Representação. Legitimidade. Democracia Qualitativa. Responsabilidade Política. Title: The democratic weaknesses and the political responsibility as a condition for the exercise of power. Abstract: The present article presents considerations about political responsibility and possibilities to improve the representative functioning, which is until now an impassable system in occidental and electoral democracies. It´s an relevant institute with autonomy and proper features as the legal absence of a whole list of reproachable behaviours because the vigorous political relations – and the possibility of a previous analysis (ex ante) and not only post factum. However, the “political responsibility” is frequently confounded with the others models of responsibility (e.g. criminal) and sometimes has its importance minimised, although its practical weaknesses are partially consequences of a lack of systematic researches on this area. There are many questions that should be answered as who can be the active and passive subject of political responsibility, what are the instruments (horizontal, vertical and social) and what are the sanctions that can be applied. Moreover, it must be emphasized that political responsibility is not only instruments of mandate revocation (e.g. impeachment, recall). It´s also an element of “qualitative democracy” and a theme with a large field to be explored, in order to meliorate public institutions. Keywords: Representation. Legitimacy. Qualitative Democracy. Political Responsibility.

1. Introdução A análise acerca das condições, limites e perspectivas do regime democrático reveste-se, hodiernamente, com contornos de tarefa hercúlea, tanto pelas imprecisão e dinamicidade inerentes a temas políticos quanto pelas profundas incertezas da contemporaneidade, marcada por graves violações a direitos humanos. Entre o idealismo no discurso fúnebre de Péricles e o realismo na lição de Churchill, a única assertiva plausível é a de que o termo “democracia”, entre progressos e retrocessos no curso da história, alcançou conotação positiva e múltiplos significados, possibilitando, ante o obscurantismo conceitual, que, com frequência, governos, mesmo sem observarem seus valores basilares, se autoproclamem democráticos. 1

Especialista em Direito Constitucional pelo Centro de Extensão Universitária. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected]. Integrante na Universidade Presbiteriana Mackenzie do Grupo de Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania e na Universidade de São Paulo do Grupo de Reforma Política.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Em seu nome, aliás, distintas arbitrariedades já foram perpetradas, de invasão territorial à supressão de liberdades, razão pela qual a correta percepção desta forma governativa exige a adequada definição de seus elementos identificadores. A discussão atual, no entanto, sobrepõe uma visão meramente procedimental, alicerçada em requisitos mínimos para o funcionamento da democracia, buscando-se alternativas e soluções para a melhora do sistema existente, que, em parte, não foi capaz de oferecer respostas satisfatórias para os notórios e perseverantes problemas sociais. As opções dos governantes tornaram-se, pois, alvos constantes de críticas, derivadas da erosão da confiança nas instituições e da inaptidão governamental em atender as mais diversificadas e complexas demandas da sociedade industrial. A engenharia representativa precisa, destarte, ser redimensionada, em virtude das suas insuficiências, por instrumentos complementares - tendentes à máxima aproximação entre as vontades de eleitores e eleitos -, conjugados sob os mantos da legalidade e, principalmente, da legitimidade na tomada das decisões avaliada empiricamente. A “qualidade” da democracia exsurge como uma preocupação a ser depreendida através de variados planos de um processo, que não se exaure nas escolhas periódicas no pleito, e avança sobre a ampliação do espectro participativo, de modo que os outputs estatais sejam efetivos reflexos da correspondência com os anseios populares. A responsabilidade política, neste contexto, simboliza um axioma com o desígnio de restabelecimento da harmonia relacional governante e governado. O tema - habitualmente esquecido, mas evidenciado a cada nova crise - suscita dúvidas, desde a definição de quem se submete à responsabilização e quem pode promover este tipo de controle até quais atos/omissões são passíveis de sindicância - inexistindo imunidade irrestrita - e que penalidades poderiam ser aplicadas não adstritas a medidas de destituição do cargo. O objetivo do presente artigo é indicar os pilares teóricos desta espécie de responsabilidade - justificada pelo mau desempenho da função pública -, considerados as suas peculiaridades e os obstáculos à sua concreção, iniciando-se, para tanto, pelas características da representação liberal, a qual, não obstante os seus déficits, permanece como paradigma insuperável. 2. Da representação política A representação politica é uma mecânica deliberativa, no tocante aos assuntos públicos, em que se promove a cisão entre titulares e exercentes do poder, por meio de mandato eletivo estruturado sobre uma relação fiduciária, cujo modelo coevo originou-se, no final do século XVIII, das Revoluções Liberais. Ressalte-se, contudo, que, em que pese se tratar de elemento caracterizador da intitulada “democracia indireta”, nem todo governo representativo pode ser, historicamente, atrelado ao regime democrático e, mesmo na CidadeEstado ateniense clássica (denotativa da “democracia direta”), subsistiam decisões que não eram tomadas pela ekklēsia (assembleia popular), mas por magistrados públicos eleitos (archai) na Ática. Trata-se, inegavelmente, de sistemática necessária em decorrência das impossibilidades práticas da participação imediata dos cidadãos gregos nos negócios estatais, tanto pela própria magnitude

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 territoral/demográfica dos entes políticos modernos em relação à polis quanto pela variedade/especificidade de questões a serem pensadas. O elevado grau de comprometimento helênico com a res publica, ademais, tornou-se, gradualmente, incompatível com a realidade policêntrica humana, precipuamente com a figura do homo economicus, despreendida da seara social. A intervenção do povo no poder, sem intermediações, passou, por sua vez, a exprimir reminiscência do passado (e.g. landsgemeinde e open-town meetings) ressalvados alguns Cantões suíços, como Glarus -, a despeito de se constatar institutos diretos tradicionais, como o referendo e a iniciativa popular, suplementários da representação. A sua consectária duplicidade em esferas autônomas - representantes e representados - ocasiona indagações acerca do nivel de congruência entre vontades, visto que a identidade plena é utópica e subverteria a funcionalidade política, de depurar, no dissenso e pluralismo, quais seriam os anseios nacionais. Salienta, todavia, Meirelles Teixeira que este ideal repousa em certas ficções, afinal os cidadãos não são homens desprovidos de interesses particulares, absolutamente independentes, isentos de preconceitos e de paixões, incapazes de pensar nos seus próprios interesses, para só cogitarem e procurarem atender aos da coletividade. Conclui que nenhum homem poderia transformar-se em anjo, para ser eleitor ou representante do povo(TEIXEIRA, 1991, p. 488). É, portanto, uma racionalidade sujeita a controvérsias. Recorde-se que o “mandato” não é uma particularidade liberal, tendo sido transposto do campo contratual para o Direito Público. A representação medieval, sob influxos privatísticos, era passível de ser verificada na atuação dos cahiers franceses nos Estados Gerais, cujo poder delegado encontrava-se limitado pelas instruções dos mandantes, o que os tornavam meros executores de ordens, transmissores de posição preexistente acerca de assuntos determinados. O nomeado “mandato imperativo”, eminentemente jurídico, caracterizava-se, outrossim, em razão de sua representatividade estrita, pela remuneração do representante pelo representado, pela sua revogabilidade - com a destituição a qualquer tempo - e pelo dever de prestação de contas do mandatário perante quem o indicou (responsabilidade patrimonial). O Parlamento não era, naquele momento, um locus de debate de opiniões e formação do consenso. A citada representação-expressão deu lugar, ao tempo da Revolução Francesa de 1789, à representaçãoimputação, em torno de um mandato livre, cuja fonte situa-se na idealidade - abstrata e homogênea - da nação, rompendo os laços estamentais do eleito, uma vez que deve refletir, em seus atos, a universitas. A pluralidade de interesses, perceptível na noção concreta de povo, era ocultada, assim, pela ilusória uniformidade do todo - o que explana o repúdio burguês aos partidos, assemelhados a facções, e o seu longo processo de institucionalização -; cabendo aos cidadãos somente a função de escolha - por sufrágio restrito dos representantes e a estes - pretensamente os únicos capazes de discutir os affaires publiques - de construir a vontade nacional. Esclarecedora a ilação de Sartori em relação à intenção dos constituintes revolucionários: absorver a si todo poder, do qual despojavam, ao mesmo tempo, o monarca e o povo - que deveria ser seu beneficiário (SARTORI, 1962, p. 23).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 O exercício impessoal do poder por uma minoria qualificada, a quem competiria tutelar, na Assembleia, unicamente sobre o interesse geral - e não os individuais ou setoriais -, não era uma lógica presente apenas no manifesto sobre o Terceiro Estado - para o qual as pessoas são representadas pelas qualidades comuns (SIEYÈS, 1986, p. 145) -, mas também no célebre discurso aos eleitores de Bristol - com a rejeição do eleito como um embaixador de interesses hostis (BURKE, 1775, p. 28). Se a representação da comunidade impede a mera repetição dos anseios parciais, infere-se que o governante não mais é o representante de quem o escolheu e sim da totalidade, de modo que não se admite sua destituição no curso do mandato, salvo em situações excepcionais - como através dos recall e abberufungsrecht. Render-se-á, em regra, periodicamente, ao juízo popular nas eleições. A desvinculação do eleito (agente político) é, igualmente, corroborada pela ausência de remuneração direta pelos eleitores, que ocorre, de forma mediatizada, pelo Estado (subsídio). A investidura, pelo pleito, no cargo público confere, por conseguinte, ao representante, sem vínculos jurídicos, amplos poderes - com garantias (e.g. imunidades) - e liberdade para decidir segundo a sua consciência, o que define, de um lado, uma manifestação de confiança do eleitorado e, do outro, um compromisso (moral) de atender as aspirações sociais. Na teoria, se os interesses fragmentários não devem guiar os rumos dos órgãos estatais, as pessoas ou as circunscrições, em suas tendenciosidades, devem se reconhecer e se reencontrar nas soluções comuns. Como sintetiza Pitkin, a representação sempre envolve uma tensão continuada entre ideal e real. Não se pode, porém, desistir do ideal - com a mitigação da sua operacionalidade e a aceitação de tudo que o eleito faz - nem abandonar a sua institucionalização e se afastar da realidade - impondo-se posição crítica acerca do “primeiro setor” (PITKIN, 1997, p. 240). O distanciamento das vontades e as deturpações dos preceitos representativos são, pois, inconvenientes reais, que se agravaram com a emergência de interesses de grupos/categorias no Estado Social, exigindo sua intervenção em áreas privadas, e a intelecção de que algumas necessidades não podem ser satisfeitas pela ação cidadã atomizada. O bem geral não estava ao alcance do indivíduo isolado e o voto era insuficiente para classes sociais que não possuíam respaldo na representação oficial; razão pela qual a doutrina demoliberal foi revisitada, no final do século XIX, alargando-se a participação pelos partidos (modelo de massas), pela universalização do sufrágio e pela proporcionalidade, contraposta às maiorias. Amenizaram-se as intempéries pela ampliação democrática das próprias estruturas representativas. Os estudos de Monica Herman Caggiano enfatizam a importância do binômio eleição-representação, formulação intimamente vinculada à expressão da pluralidade de opiniões que, no seio das sociedades democráticas, deve ser assegurada. Expõe, no entanto, que é a questão isonômica que, em sede de representação política, exsurge como de extrema complexidade (CAGGIANO, 1990, p. 11), ainda mais porque no processo decisório - em evidente respeito às minorias - todos deveriam ter igual oportunidade de seus posicionamentos serem, de fato, considerados. É incontestável a hesitação ao se ponderar sobre a

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 legitimidade do representante nesta gama multifacetada de interesses, posto que, mesmo escolhido com a observância das regras democráticas, as suas deliberações não serão indistinta e integralmente aprovadas pelos membros da coletividade. A desvalorização da representação, em parte decorrente da crise do molde estatal, com a persistência de um abismo relacional e de grandes frustrações quanto aos seus resultados, é um dos maiores desafios a ser sobrepujado.

3. A crise da representação política O estudo da crise da representação, por envidar esforços longos e reiterados, pode ser considerado como o trabalho de Sísifo ou o tonel das Danaides da Ciência Política, embora não fadado ao contínuo fracasso da mitologia, pois cada distorção examinada é um passo em direção a uma democracia mais organizada e desejada. Na atualidade de um mundo permeado por incertezas e inseguranças, delineada na concepção baumaniana de “tempos líquidos”, as denúncias que recaem sobre os representantes tornaram-se frequentes e intensas, o que revela um generalizado descontentamento com as instituições políticas - detentoras de baixos índices de confiança popular. A crença em governos justos não resiste aos casos de inverdades. A demonstração recente da citada insatisfação ao redor do mundo, ante circunstâncias diferentes, pode ser detectada na eclosão de movimentos de protesto, comumente pacíficos e conectados pelo ciberespaço, desde a Primavera Árabe aos Indignados espanhol e Occupy norte-americano. Os reclamos eram difusos e, até mesmo, contraditórios, defendiam a clara dissociação de suas vozes de bandeiras político-partidárias e discordavam veementemente das opções governamentais, como os estímulos públicos ao mercado financeiro derivados da força das grandes corporações. A questão da ilegitimidade do Estado tornou-se ponto primordial: os regimes autoritários ansiavam pela democracia e as democracias consolidadas foram instadas a debater as suas ineficiências. Como aduz Castells, num panorama global turvado por aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal, estas mobilizações apenas aconteceram, quando ninguém esperava (CASTELLS, 2013, p. 7). As referidas oposições, as quais distanciam o povo - ainda que transitoriamente - da condição de apatia ou alienação, são corolárias da busca, pelos cidadãos, por uma explicação objetiva dos acontecimentos que os cercam e provocam a decomposição da solidariedade que os unem. Na representação política centralizam-se, destarte, as avaliações negativas - como a de que não resolve os problemas da maior parcela da população e cria-se a esquizofrênia tão bem enunciada por Murilo de Carvalho: os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais (CARVALHO, 2002, pp. 223-224). Se, por um lado, os conceitos originários da representação liberal devem ser revistos - como a inexistência de uma “vontade geral” unívoca, neutra e hierarquicamente superior -, por outro os seus arranjos formais não foram aptos a garantir um agir - inalterável - dos representantes no interesse público, frente à obrigação democrática de conformidade.

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Frise-se que a delegação de poderes, por meio do pleito, aos governantes, pelos seus governados, não implica em renúncia ao julgamento e controle das suas ações, sendo que, apesar do destinatário de suas decisões, em tese, ser o todo e não as suas partes - sem, todavia, rechaçar as individualidades -, é inegável, do mesmo jeito, que as vontades dos polos (eleitos-eleitores) não podem ser discrepantes. A concessão de um cargo ao candidato é o primeiro indício das preferências e expectativas em torno do exercício da função, mas não são raras as vezes em que a classe política se desvia, no curso do mandato, das promessas assumidas em campanha. De acordo com Susan Stokes, a gravidade reside no fato de que: a) o cidadão, no processo eleitoral, não é bem informado - e até conduzido a convicções errôneas - acerca das escolhas políticas a serem tomadas e as suas reais repercussões e b) os políticos, nesta área de incertezas, podem dissimular depois das eleições, quando seguros no cargo, ao optarem por medidas impopulares, sob falsas justificativas (STOKES, 1999, p. 127). Nas democracias ocidentais, reforça-se que a eleição é o sustentáculo da representação, ao estabelecer governos limitados, inclusive temporalmente, e sujeitos a apreciações cíclicas, cuja fonte de poder não está na força ou no sacro; mas dela não se extrai, necessariamente, a representatividade governativa, até porque a atividade do “mandatário” é um continuum, que reage a fatores endógenos (e.g. econômicos, culturais). O voto períodico é instituto tradicional de participação que, devido às suas restrições, não prescinde de canais alternativos, atentando Chevallier que, atualmente, se a autoridade dos governantes deixou de ser uma evidência em si mesma, os cidadãos parecem não se satisfazer com o papel específico que lhes foi atribuído no jogo político (CHEVALLIER, 2009, pp. 190-196). Não se olvide que a própria competição acirrada entre postulantes contém, em si, patologias, que dificultam a sinceridade na conquista de simpatizantes, o que provoca a gênese midiática de personalidades, construídas, através do marketing, por consultores (kingmakers), em detrimento da consistência de ideias. Se a imagem do político sofre crescente descrédito e a representação, consoante a ideia de Parteinstaat kelseniana, depende da função mediadora dos partidos - aglutinando pessoas em torno de programas e canalizando aspirações -, é compreensível que estes agrupamentos encontrem-se no centro dos desagrados. A relevância do seu papel é identificada pelas ações nos âmbitos governamental e comunitário - da preparação de novas lideranças políticas até a organização/fiscalização das eleições e conversão de demandas em policies -, mas o simples exame da sua dinâmica cotidiana desconstrói um perfil “pasteurizado”. Considerados atores de estruturas engessadas e com déficit democrático nos seus encadeamentos internos, majora-se a preocupação no cenário pátrio por deterem os monopólios da candidatura e do mandato. Dentre as possíveis hipóteses de degeneração partidária, a tendência à oligarquização, contida na denominada “lei de bronze” de Michels, é decerto uma das mais notórias e consiste na formação, no âmago do grupo, de classe política profissional, que retira, pouco a pouco, com o seu crescimento, o poder de

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 decisão das massas, concentrando-o nas mãos dos chefes (“caciques”). Haveria, assim, a divisão entre minoria dirigente e maioria dirigida (MICHELS, 1982, pp. 21-22) e a confusão entre as vontades do partido e da elite no seu interior. Na seara da disputa eleitoral, indica-se, outrossim, o despojamento de preceitos e ideologias - o que se reflete na cobertura jornalística horse race -, através de programas abrangentes e similares, visando, com designíos maleáveis, à atração de um número maior de pessoas (catch-all ou big tent parties). A volubilidade principiológica, a título exemplificativo, é patente nas coligações firmadas para determinadas eleições, com alianças inesperadas, até mesmo entre partidos no âmbito local que são tradicionais opositores na esfera federal. O partido pode, portanto, servir de instrumento para a expressão de ambições pessoais e subverter os seus objetivos públicos em favor de vantagens particulares (patrimonialismo), o que se concretiza na “captura” diminuição da sua independência pelos agentes econômicos - e explanaria a vedação judicial às doações de campanha realizadas por pessoas jurídicas. O ponto nevrálgico é a corrupção, que é uma grave - e atemporal - depreciação moral, origem de inestimáveis consequências negativas à sociedade. Com base em Manoel Gonçalves, a luta contra a corrupção é difícil e não raro frustrante, em virtude da sua multiplicidade de formas; tratando-se de ameaça à democracia, na qual se pretende que o eleito aja em vista apenas do interesse geral, sem nada esperar em troca. Questiona se é irrealista e conclui que talvez o seja, mas é o padrão proposto para a conduta política (FERREIRA FILHO, 2001, p. 214). O mencionado desvio é endêmico, ou seja, não é exclusividade do processo eleitoral e avança sobre o exercício do poder, bem como inexiste órgão público imune à sua ocorrência; consistindo, lato sensu, em influência indevida, cuja vantagem nem sempre é material, como o suborno, e pode ser caracterizada pela “troca de favores” (clientelismo). Cita-se o estudo de Meynaud sobre as pressões exercidas pela sociedade civil sobre o Estado (MEYNAUD, 1960, pp. 53-65), dentre as quais a persuasão seria um método regular (e.g. informação) e as demais modalidades perniciosas - como a sabotagem e o emprego de dinheiro. Os intitulados “grupos de pressão”, conquanto atores políticos complementares aos partidos na tarefa de ressonância de vontades, são apontados como causadores da crise representativa pelas ações invisíveis na defesa e promoção de interesses (amplos/setoriais), provocadoras de riscos à governabilidade. O imperio anónimo (FINER, 1966, p. 206), uma referência em relação às atividades, na penumbra, de grupos que sacrificariam - invariavelmente - o interesse geral, é a demonstração da hostilidade emergente da teoria liberal (e.g. sociedades parciais rousseauniana); mas não se deve desconhecer a potencialidade destes consórcios em contribuir para o policy-making. A institucionalização dos lobbies poderia, pela racionalização do poder, trazer a transparência ao seu proceder, a isonomia na sua concorrência e o controle de suas condutas. O escopo deste tópico foi expor algumas dificuldades enfrentadas pela representação política e a necessidade de realinhá-la aos princípios de uma boa governança, com a sensibilidade de se apurar quando e de que modo o povo realmente se sente ou não representado. A questão da

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 responsabilidade, como bem aduz Genoveva Vrabie, faz-se presente quando as escolhas dos representantes vão mal, de uma forma geral ou em atividades determinadas (VRABIE, 2003, p. 48).

4. Considerações acerca da responsabilidade política O espaço ocupado pelos rotineiros casos de escândalo político nos noticiários mundiais é notável e demonstra que a ideia representativa coexiste com imperfeições. No Japão, no ano de 2014, houve uma dupla renúncia, no mesmo dia, das Ministras da Economia e da Justiça, em razão de denúncias de irregularidades. Na Romênia, em 2015, o premiê renunciou após pressão coletiva, ao virar réu em processo de corrupção e ser acusado de negligência em caso de incêndio em boate. Um ex-primeiro-ministro português encontra-se em prisão domiciliar e um ex-presidente francês foi acusado de tráfico de influências. No Brasil, há acusação, quanto ao governo, de melhorar artificialmente as contas federais e operação deflagrada pela Polícia Federal - sobre evasão de divisas e lavagem de dinheiro - que envolve políticos. Trata-se, pois, de situações que evidenciam a importância do estudo da responsabilidade política, carente, na doutrina pátria, de análises sistematizadas e que não se confunde com as responsabilizações penal, administrativa e civil - visto que a conduta comissiva ou omissiva do eleito poder ser juridicamente lícita, mas altamente reprovável. Não há, assim, na avaliação política, um rol prévio, exaustivo e normativamente preciso de quais medidas são condenáveis nem a previsão clara dos mecanismos de controle e as sanções que podem ser aplicadas. Cabe, neste artigo, tecer as considerações iniciais do assunto, contextualizando-o no macroconceito de democracia qualitativa, conferindo-lhe parâmetros conceituais e definindo seus elementos norteadores. Segundo lições de Claudio Lembo, uma sociedade não convive longo tempo com o cinismo, sendo a hipocrisia a pior arma política, de modo que, mais cedo ou mais tarde, o engano é descoberto e o amargor popular explode (LEMBO, 2006, p. 76). O tema apresenta algumas dificuldades naturais, inerentes às ciências humanas, que não permitem soluções pacíficas. Um ponto a ser discutido é como responsabilizar o político cuja decisão, quando tomada, aparentava ser correta, mas que produziu, pós-término do mandato, repercussões ruinosas, ponderando-se acerca da sua previsibilidade. Questiona-se, ainda, se a responsabilização seria somente individualizada, na figura do político, mesmo que o seu agir decorra, diretamente, de instruções partidárias, ou se responderia o partido em solidariedade. Reflita-se, outrossim, qual seria a responsabilidade dos eleitos no caso de inércia violadora de direitos, que resulte na transferência do poder decisório, por provocação, ao Poder Judiciário, o qual passa a absorver demandas e cobranças que, tipicamente, recairiam sobre os Poderes Políticos. Ademais, indaga-se em que situações se responsabilizaria o governante quando, em momentos de crise ou emergência, restaram-lhes apenas opções igualmente precárias. O exame do conteúdo da responsabilidade política faz-se, destarte, indispensável para a adequada explicação sobre as decepções originadas de expectativas frustradas em torno da democracia, derivadas de deformações

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 na sintonia povo-governante e promotoras de decisões desconectadas até mesmo das perspectivas sociais mais amplas. Frise-se que o expansionismo do modelo democrático no século XX não refletiu, na mesma intensidade, o aprofundamento na compreensão da eficiência de suas estruturas e de suas vulnerabilidades funcionais. Propõe Rosanvallon uma democracia de apropiación - diferente do prisma representativo, fixado na identificação - que consiste em corrigir, compensar, organizar a separação entre governantes e governados de modo que estes últimos possam controlar e orientar o poder de outra forma que não seja pela transmissão de mandato (ROSANVALLON, 2009, p. 317). A mera existência de instituições democráticas, no contexto da legitimidade, não diz muito sobre a virtuosidade da sua performance nem se suas práticas são consentâneas com a de um Estado de Direito. O debate passa pela investigação das interações entre sociedade e Estado, sob auspícios da solidariedade e não como instâncias contrárias, em que os agentes públicos e comunitários estão coordenados; com a percepção, de um lado, do grau de participação/influência cidadã e, de outro, da resposta/abertura das autoridades. Não se deve, para tanto, refutar os alicerces de uma democracia, dentro de uma visão minimalista, como o sufrágio universal e a realização de eleições livres e justas, mas a noção de “qualidade” democrática precisa de um passo além, com três focos distintos de pesquisa. Desta forma, uma “boa democracia” apresenta-se, com base em Morlino, por uma estrutura institucional estável que realiza a liberdade e igualdade cidadã pela legitimidade e correto funcionamento de suas instituições e mecanismos. Traduz-se, por isso, em regime amplamente legitimado pela completa satisfação do povo (resultado), no qual cidadãos, associações e comunidades podem gozar de liberdade e de igualdade, ainda que em diferentes formas e graus (conteúdo) (MORLINO, 2013, p. 195). O terceiro enfoque é o do procedimento, pelo qual se deve possibilitar ao cidadão, por ele próprio, ter o poder de controlar e avaliar se o governo persegue os objetivos da liberdade e de igualdade de acordo com a primazia do direito (rule of law). As dimensões de observação da realidade política, decorrentes das três searas citadas (procedure, content, result), auxiliam na constatação se os objetivos propostos para uma democracia qualificada foram alcançados, porquanto a ineficiência na consecução deste ideal dá ensejo a governos ilegítimos, injustos e irresponsáveis. Logo, a concepção mais completa sobre a responsabilidade envolve um exame detalhado acerca da democracia, isto é, da sua funcionalidade e rendimento, com variações em cada país, o que dialoga, inevitavelmente, com a representação. Acentue-se que, sob uma ordem constitucional, na qual se articulam direitos e deveres, a investidura em cargo público, pela eleição, não confere independência irrestrita de atuação ao representante, subsistindo, perante a coletividade, uma obrigação - difusa - de prestar contas. A representação e a responsabilidade, indissociáveis no campo da democracia, são faces da mesma moeda. A afirmação aclara-se com a lição de Sartori ao sustentar que as colocações acerca dos problemas da representação não se satisfazem em presumir, ou seja, em confiar em um idem sentire, mas sim em encontrar

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 um modo de torná-la certa e de garanti-la o máximo possível (SARTORI, 1962, p. 53). Subentende-se que um órgão político não é democrático unicamente porque os seus integrantes foram escolhidos pelos cidadãos para, em seus nomes, tomarem decisões, mas, precipuamente, em razão de sua capacidade de espelhar as múltiplas opiniões do eleitorado e delas extraírem uma medida consensual e socialmente aceita. Atribui-se uma liberdade deliberativa ao eleito e a prerrogativa de julgar as suas opções ao povo. O poder representativo, consoante Urbinati, é, pois, responsável, o que autoriza duas interpretações acerca da responsabilidade. A primeira refere-se à lei, em que o representante precisa ser um agente autônomo para que possa se sujeitar às normas civis ou penais, como qualquer outro cidadão. A segunda, por sua vez, diz respeito à fonte de legitimidade de sua função pública, visto que a sua designação no pleito decorre da vontade popular e não de uma seleção meritocrática (URBINATI, 2006, p. 58). Estes laços, ainda que tênues, persistem e o controle ganha especial relevância, não somente ex post facto - como nas eleições, em que se apreciam atos tomados em um intervalo de tempo - mas, antevistos os seus efeitos, também durante as fases que precedem as decisões estatais. Ressalte-se que a responsabilidade política reside, simultaneamente, na horizontalidade das relações institucionais entre poderes. A responsabilidade governativa - na sua acepção ampla, de órgãos que presidem a vida política, não adstrita ao Executivo - não é uma temática contemporânea e pode ser localizada, dentre outros documentos históricos, na Declaração de 1789, ao prever, no seu artigo 14º, que os cidadãos têm o direito de verificar da necessidade da contribuição pública, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição e duração. Nos anos que a antecederam (1787/1788), Madison, no artigo federalista nº LXIII, advertia, ao versar sobre o Senado, como deficiência, a falta da devida responsabilidade do governo para com o povo em alguns casos importantes. Enfatizava que a responsabilidade, para ser razoável, deveria estar limitada aos assuntos que fossem da competência da parte responsável e, para ser efetiva, deveriam se relacionados com aplicações dessa competência, para que os eleitores pudessem formar um julgamento rápido e adequado (MADISON; HAMILTON; JAY, 1993, p. 405). Se a vontade do Estado - pessoa jurídica - é expressada pelos órgãos que o compõem, formados por agentes humanos com distintas atribuições, a falibilidade lhe é intrínseca e a sua fiscalização é imprescindível, impondo-se aos integrantes do governo uma justificação sobre as suas atividades e condutas. A responsabilidade política, nesse sentido, é essencial - em que pese não ser um ponto abordado com frequência pela doutrina, até mesmo em virtude de suas indefinições - porque se admite que uma intelecção somente normativa dos instrumentos de refreamento do poder, diante do plano fático, é deveras insatisfatória. Dotada de autonomia teórica, esta espécie de responsabilidade tangencia outras searas, como a penal - mas a elas não se reduz -, pois a prática de um crime pelo eleito pode abalar a confiança do eleitor, e não se esgota, conceitualmente, na ideia de revogação de mandato (e.g. impeachment).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Com base em lições de Jorge Miranda, em última análise, a responsabilidade política não se destina apenas a corrigir ou sancionar a atividade governativa desenvolvida até certo momento e os meios de efetivá-la servem tanto para o povo avaliar o exercício do mandato dos governantes cessantes como para traçar um novo rumo para o futuro (MIRANDA, 2007, p. 82). Quanto à abrangência do termo “político”, definidor de seus limites e condições, não obstante a sua conotação mais dilatada abarcar grupos pré-estatais - que exerciam encargos de defesa externa e manutenção da paz - e organizações tanto intraestatais (e.g. partidos) quanto supraestatais (e.g. instituições multilaterais), este será adstrito ao poder institucionalizado. O poder político do Estado - autônomo e centralizado em autoridade superior -, que permeia as relações humanas e se traduz em imposição diretiva de vontade - objetivando materializar os fins comuns da sociedade - é, assim, o ponto de convergência da responsabilidade. O Estado Democrático de Direito é o seu modelo mais apropriado, no qual se conjugam dois fatores inseparáveis (político e jurídico), e deve ser a referência do estudo, pois somente pode ser apreendido por um ordenamento constitucional. Trata-se, igualmente, do resultado da manifestação de vontade da comunidade de se submeter a um poder racionalizado, o qual, por um lado, espelha o modo de ser de uma nação, disciplina as ações estatais e organiza os seus poderes; por outro, regula as relações sociais e atende às aspirações coletivas. Destarte, é indubitável que a responsabilidade política é também uma responsabilidade jurídica. Segundo Lomba, a responsabilidade política é um conceito constitucional, razão pela qual suas funções são as funções da constituição, e recorda que, dentre os escopos do direito constitucional, há, ainda, o de organizar, limitar e controlar o exercício do poder político. Deduz que a ideia de constituição sobrevive sem as ideias de responsabilidade civil do Estado ou responsabilização criminal dos representantes, mas para que um projeto constitucional se realize é obrigatório contar com a responsabilidade dos governantes (LOMBA, 2008, pp. 23-24). Um ponto, contudo, controverso é identificar, na esfera estatal, quais seriam os sujeitos políticos que se submetem a esta forma de responsabilidade, inexistindo consenso sobre a sua extensão, isto é, se restringe seus efeitos aos agentes políticos - titulares de cargos na estrutura de governo - ou avança sobre os servidores administrativos - com vínculo de dependência em relação ao Poder Público. A própria noção de “agente político”, como exercente de função na governança e formador da vontade estatal, não é uníssona. Se, tradicionalmente, são citados, nesta qualificação, os detentores de mandato eletivo e os auxiliares nomeados - do Chefe do Poder Executivo, reconhece-se, outrossim, nesta condição - não pela forma de investidura, mas pela natureza da atuação, ao influir em questões políticas -, os membros do Tribunal de Contas e do Ministério Público. A discussão envolve o Judiciário, que, por vezes, é instado a decidir sobre ações estatais (e.g. políticas públicas), de modo que a responsabilidade política lhe seria imposta pela sua “legitimidade democrática” - não eleitoral - ou lhe caberia apenas, na prática, uma submissão administrativa, de cunho disciplinar (Lei Orgânica).

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 Há dúvidas de compreensão, no tocante a esta relação jurídico-pública, quanto às suas repercussões, como se a responsabilidade política está sempre vinculada a um sancionamento e se punições acarretam, exclusivamente, a cessação de suas funções, o que confinaria a sua aplicação ao exercício do mandato e suscitaria objeções na hipótese de renúncia. Rememore-se que não são frequentes os casos de destituição, pois, das opções políticas, é a mais drástica, e pode gerar instabilidades; tanto que na moção de censura construtiva, além da dissolução do gabinete exige-se a indicação, pela maioria parlamentar, de um novo primeiro-ministro. Não se vislumbraria, deste modo, outras sanções, como a declaração de inelegibilidade, ou em institutos corretivos ou substitutivos da deliberação estatal, como o referendo, mecanismos de responsabilidade política? Carece-se de interpretação assente sobre as suas consequências. Esta responsabilidade, segundo Fariña, talvez seja um dos assuntos mais debatidos e que tem suscitado maiores discussões na história humana, na sua luta para se lograr o império da legalidade e justiça (FERNÁNDEZ FARIÑA, 1987, p. 149), construindo-se por meio de conhecimentos sociais, vez que os atos são avaliados perante a comunidade. Natural, portanto, que os valores e as expectativas dos cidadãos se traduzam nas decisões dos representantes e, visando a assegurar a sintonia e correspondência entre os polos, que se estabeleçam standards para averiguação da eficiência relacional. E a confiança, neste contexto, é um dos elementos motores da responsabilidade - transposta das interações privadas para a pública - para que se possa depreender a existência de deveres específicos aos cargos políticos, a serem observados pelas autoridades, diante das esperanças geradas em torno da atuação institucional. A confiança cidadã, com base em José Álvaro Moisés, não é cega ou automática, mas depende de as instituições estarem organizadas para permitir que eles conheçam, recorram ou interpelem os seus fins últimos - fins aceitos, desejados e considerados legítimos pelo povo (MOISÉS, 2013, p. 44). O descumprimento - ou mesmo o cumprimento insatisfatório - dos intuitos normativos/éticos do Estado gera a desconfiança e, para combatê-la, há, dentre outros instrumentos, os de responsabilidade política, cuja geometria dimensional revela suas distintas faces. A responsiveness, nesse diapasão, concernente aos resultados produzidos na nomeada “boa” democracia, é um dos seus componentes e simboliza, na representação política, o agir em nome de outrem e em benefício de todos, induzindo que os governantes implementem policies coerentes com os anseios sociais. Aliás, segundo Dahl, a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais, é o traço marcante de regimes estritamente democráticos (DAHL, 2005, pp. 25-26). A apreciação desta consonância eleitor/eleito é empírica e aponta para um paradigma pretendido e defendido, uma vez que o governante deve identificar as necessidades coletivas, ponderar acerca da melhor forma de atendê-las e encontrar respaldo de seus destinatários, não podendo, assim, excluir de suas escolhas assuntos importantes aos cidadãos. Trata-se de uma atividade substantiva de resposta, não passível de ser detectada pela simples leitura legal das competências constitucionais, e que demanda um aparelhamento

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 institucional para perceber e acolher os inputs. Como enfatiza Hanna Pitkin, é incompatível com a ideia de representação um governo que frustra e/ou resiste ao anseio popular sem boas razões para fazê-lo, de modo sistemático ou por um longo período de tempo (PITKIN, 1997, p. 233). Interliga-se o ideal de responsabilidade, neste momento, ao conceito de accountability - como procedimento - que implica, em princípio, no dever (regular) de prestar contas - justificativa ou explanação sobre suas ações - aos eleitores e à sociedade (vertical) e às instituições do Estado (horizontal). A accountability engloba, por isso, na sua acepção, uma gama de recursos de controle - bem como um conjunto de requisitos (e.g. transparência e correção das informações) para sua efetivação -; a qual, de acordo com Antonio Nadales, pode se dividir em: a) controle interno (vinculado a um expediente administrativo), b) controle externo (apurado na sistemática de interesses na public policy), c) controle dos resultados (adequada quantificação avaliativa das políticas) e d) possibilidade de imputação (NADALES, 1994, pp. 110-111). Esta última, no entanto, aproximar-se-ia do instituto da liability. A accountability eleitoral, no Brasil, convive com embaraços, em razão, por vezes, da dificuldade de se compreender as consequências advindas das fórmulas de escolha - como a transferência de votos no sistema proporcional - e, na accountability interorgânica, um empecilho era o intitulado “presidencialismo de coalizão” e a composição monocolor Executivo/Legislativo (Cf. CAGGIANO, 2009, pp. 99-123). O estudo da responsabilidade política - que ainda é um conceito inacabado e até mesmo esquecido demonstra a necessidade de se compreender que parâmetros democráticos liberais - como o free and fair elections ou a tradicional separação tripartite do poder estatal - podem, por si só, como mecanismos normativos, ser insuficientes para se certificar que um país é, de fato, uma democracia. Se as suas práticas constitucionais são desvirtuadas e contrariam, na realidade, qualidades referenciais desejadas na funcionalidade institucional, deve-se verificar, nesta conjuntura, a responsabilidade governativa. A preocupação, contudo, é o declínio desse instituto, não medido pelo número de crises ou ineficiência de disposições jurídicas, mas pela emergência de dois fenômenos: a sua substituição por uma responsabilidade penal e o foco apenas nos servidores ou funcionários ministeriais em detrimento dos próprios governantes (BEAUD, 2000, p. 17). O tema merece atenção, exige novas pesquisas e deve ser reavivado. 5. Conclusão A responsabilidade política é um assunto complexo e interdisciplinar, com reflexos na Sociologia, Ciência Política e no Direito, pelo qual se possibilita uma compreensão ampliada das aporias representativas na harmonia relacional entre governantes e governados. Rechaça-se, assim, visões meramente formalistas para se avançar no exame empírico do desempenho institucional, dentro de um contexto de democracia substantiva e de exigência qualitativa do processo de decision-making, que abrange análises como dos índices de participação, da real igualdade na consideração de preferências e o seu grau de influência na

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016 decisão final. Dentre os seus elementos, adotam-se como parâmetros de fidúcia a responsiveness e a accountability, sem previsões legais exaustivas e que observam as ações políticas na sua dinamicidade. Trata-se de modalidade específica, cientificamente autônoma, cujas particularidades não permitem a sua identificação como uma das responsabilidades jurídicas clássicas (e.g. penal, administrativa), não obstante seu alicerce, no Direito, derivar da própria missão constitucional de contenção do exercício do poder. A manutenção do equilíbrio, por esta responsabilidade, é acrescida da função de direcionar a mecânica representativa para uma atuação legítima, razão pela qual reduzi-la às sanções que resultem na perda do mandato ou às formas de fiscalização horizontal entre órgãos é um equívoco. A responsabilidade política insere-se em um agir ético e eficaz, não podendo ser denotativa, unicamente, de distorções governativas, como no caso da corrupção, cabendo-lhe, além da estrita legalidade, a percepção da capacidade do Estado em oferecer respostas apropriadas e oportunas aos membros da sociedade. Há um extenso campo a ser explorado no panorama pátrio, principalmente na precisa definição dos institutos promotores da responsabilidade política e de seu campo de incidência, bem como na fixação de direitos e deveres dos sujeitos ativo e passivo da responsabilização, para conformação de vontades; inexistindo, todavia, sistemas de controle perfeitos. Em uma democracia, recorde-se, não há órgão independente e governante que não responda pelos seus atos. Busca-se a efetivação da representatividade de autoridades públicas e o realinhamento dos rumos estatais em direção a uma boa governança, o que exige a penetração de interesses no processo decisório, o diálogo contínuo entre sociedade e Estado e uma sensibilidade maior da classe política aos impulsos comunitários. A responsabilidade, reitere-se, não é derivada de uma imputação de infração, mas do fato de ser alçado a um cargo com incumbências políticas. Por fim, aponta-se que o tema se faz presente em virtude da autonomia organizativa e de gestão dos governantes, o que, na representação, confere aos governados a prerrogativa de sindicar e avaliar as suas decisões. A responsabilidade política é um instrumento de regulação das interações sociais e não se satisfaz com a presunção liberal ficta de que medidas tomadas pelo Estado serão sempre em favor da totalidade. As considerações nesse artigo objetivaram apresentar, pela responsabilidade, comportamentos políticos que fundamentam sua existência e importância, bem como algumas formas de tratamento que lhe são dispensados e sua aptidão de conservar os governantes nas suas atribuições e de aprimorar as suas soluções.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez. 2015 mar. 2016

O SENTIDO POLÍTICO E ECONÔMICO DA DITADURA MILITAR NO BRASIL Cesar Mangolin1 Paula Mangolin de Barros2

RESUMO: o texto é a tentativa de expor sinteticamente o processo que leva ao golpe e à implantação da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Trata da conjuntura histórica e das tendências do capitalismo brasileiro para poder discutir o sentido político e econômico da ditadura, condição necessária para compreender o aparato repressivo construído no período. PALAVRAS-CHAVE: ditadura militar; desenvolvimento capitalista; Estado.

THE POLITICAL AND ECONOMIC MEANING OF MILITARY DICTATORSHIP IN BRAZIL ABSTRACT: This text is the attempt to expose synthetically the process that takes to the stroke and the implantation of the military dictatorship in Brazil (1964-1985). It treats the historical conjuncture and the tendencies of the brazilian capitalism to discuss the political and economic meaning of the dictatorship, a necessary condition to understand the repressive instrument built in that time. KEYWORDS: dictatorship, capitalist development, State.

INTRODUÇÃO

Recentemente determinados grupos e setores passaram a defender uma intervenção militar e, muitos, um retorno de um regime semelhante à ditadura que tomou o Brasil entre 1964 e 1985. Os argumentos utilizados hoje são semelhantes aos da histeria coletiva que precedeu ao golpe e continuou a servir de base para a propaganda que pretendia justificar a ditadura: uma suposta ameaça comunista, crise das instituições e a corrupção. Ainda que vivamos a farsa ou a comédia dos que pretendem transplantar uma conjuntura totalmente distinta para nosso tempo, compreender o real sentido e propósito da ditadura militar é grande auxílio àqueles que pretendem tomar uma posição política mais coerente diante dessas movimentações recentes.

Grande parte das pesquisas sobre a ditadura militar no Brasil está centrada no seu caráter repressivo, expondo as raízes, o aparato e os métodos utilizados no período para fazer calar qualquer voz opositora. A censura, as torturas, os assassinatos, as versões falaciosas sobre a morte de militantes e a ocultação de cadáveres figuram como resultados dos mais escabrosos desse período nebuloso.

1 2

Sociólogo, mestre em educação e doutorando em filosofia pela Unicamp Pedagoga e mestranda em educação pela USP

Em menor número são as publicações que procuram pensar o processo que leva à vitória o golpe, entender seu sentido e, principalmente, os impactos políticos e econômicos do período ditatorial brasileiro.

Neste texto procuramos indicar determinadas tendências do desenvolvimento capitalista brasileiro na fase que precede ao golpe, compreender seu sentido e também apontar as características determinantes da política econômica dos anos iniciais da ditadura e sua relação com o capital estrangeiro. Não temos dúvida de que compreender esses aspectos do período em questão contribui para a reflexão sobre o significado da ditadura e do seu aparato repressivo, sem que se caia nos argumentos dos próprios golpistas.

1. TRAÇOS ESSENCIAIS DO DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NO BRASIL.

É notória a instabilidade política da república brasileira. A contar da Revolução de 1930 até 1964 temos seis golpes de Estado (1930, 1937, 1945, 1954, 1955, 1964), quatro com a deposição do presidente eleito, somados a mais dois vice-presidentes. Dos cinco presidentes eleitos pelo voto direto no período (Júlio Prestes, que nem assumiu, Dutra, Vargas, Kubitschek e Jânio Quadros), apenas dois terminaram seus mandatos. Os dois vice-presidentes que assumiram (Café Filho, no lugar de Vargas, em 1954 e João Goulart, no lugar de Jânio Quadros, em 1961) não conseguiram completar o tempo restante dos seus respectivos mandatos.

O período de 1945 a 1964 costuma ser identificado por alguns pensadores como o mais democrático da república brasileira antes do golpe de 1964, mas foi muito mais um rápido lapso de liberdades relativas, de tentativas de golpe bem e mal sucedidas, pronunciamentos militares, num momento em que o movimento sindical estava atrelado ao Estado, as liberdades políticas eram bastante restritas e as organizações de esquerda viviam na clandestinidade.

Para explicar a instabilidade política brasileira do período é necessário, ainda que de forma sintética e, mais adiante, esquemática, compreender os traços essenciais do nosso desenvolvimento capitalista, ou seja, as características principais desta formação social em dois sentidos principais: como as relações de produção capitalistas se tornam predominantes na sociedade e de que forma a burguesia se estabelece como classe hegemônica nesse processo. No primeiro caso, reporta-se ao papel do econômico somente; no segundo, entram em cena as questões referentes às contradições presentes na sociedade brasileira, sejam em relação ao imperialismo e ao latifúndio, seja em relação ao campo da luta de classes.

Sobre o econômico propriamente dito, podemos dizer sumariamente que as relações capitalistas de produção são introduzidas no Brasil de forma acelerada, tendo como características próprias e específicas a manutenção de relações não capitalistas no campo, que se transforma mais lentamente, e um caráter centralizado geograficamente, seja por sua dependência em relação ao imperialismo, seja pela manutenção do latifúndio, o que impediu o alargamento do mercado interno e a rápida expansão destas relações para todos os cantos do país. Centralizadas na região sudeste, com maior proeminência em direção ao sul, a industrialização brasileira vai obedecer, num primeiro momento, uma expansão que tem como característica principal a transferência de capital do setor agrário exportador, centralizado na figura dos produtores de café da região sudeste, particularmente de São Paulo, com o objetivo de produzir bens de consumo bloqueados para a importação por causa da situação de guerra que envolvia as potências imperialistas.

A industrialização de fato do Brasil, com a introdução da indústria pesada, vai ocorrer em meados da década de 1940, ressaltando aqui a importante participação do Estado como promotor e dirigente deste processo. Prossegue em sua expansão, porém, mantendo características fundamentais de todo o período, até as vésperas do golpe militar de 1964, que podemos resumir como sendo:

a)

b)

c)

A alta extração de mais-valia: significa que a acumulação necessária para a reprodução ampliada do capital e para resolver seus problemas de financiamento e reinvestimento foi feita sempre sobre uma exploração acentuada da força de trabalho; Um dos problemas chave para esta forma de expansão capitalista baseada na acentuada exploração da força de trabalho reside na manutenção do latifúndio e das relações de produção não capitalistas no campo, que impediu,como já dito, a formação de um mercado interno dinâmico, seja nas relações de troca entre o campo e a cidade, seja no reduzido mercado consumidor brasileiro. Acrescente-se a isto que, quando as relações capitalistas de produção são introduzidas no campo, o seu efeito é a expulsão dos trabalhadores da terra, que vão em direção às áreas urbanas; A crescente dependência em relação ao imperialismo e seus interesses internos, que truncaram a expansão industrial brasileira baseada em capital e tecnologia nacionais. Tal dependência tem relação com o grande endividamento brasileiro para solucionar problemas de financiamento, seja da indústria, seja da agricultura de exportação e também com os interesses imperialistas na exportação de produtos industrializados ao Brasil (obstaculizando o desenvolvimento de tecnologia nacional) e, num segundo momento, na instalação de suas próprias unidades industriais em território brasileiro.

Buscando características gerais do segundo aspecto dessa síntese, a que se refere ao campo das estruturas jurídico-política e ideológica, verifica-se que não é preciso aprofundar-se demais na história brasileira para ressaltar um aspecto permanente do desenvolvimento do capitalismo no país: seu caráter excludente e cerceador da participação popular. Numa palavra: seu caráter antidemocrático. Democracia deve ser entendida aqui não somente como a possibilidade de escolha dos governantes através do voto, como costuma ser invocada pelos apologetas do capitalismo e como a população, de um modo geral, a compreende (eleição dos governantes, direitos e deveres que devem ser seguidos etc.). Aliás, falar de democracia, num sentido mais amplo, é falar, em primeiro lugar, de participação popular efetiva na decisão dos interesses coletivos e na distribuição da riqueza produzida socialmente. Mas não defendemos aqui a tese de que o problema histórico do Brasil seja o da falta ou insuficiência de democracia. Ao contrário: a pretensão é buscar exatamente o motivo pelo qual esta característica está presente, com maior densidade, na formação brasileira. A burguesia e o capitalismo não são, evidentemente, sinônimos de democracia. Os espaços conquistados de representação e participação direta por parte dos trabalhadores em qualquer formação social são resultados de sua organização e de sua luta. O que vale dizer em síntese: é resultado da luta de classes. Como escreveu João Quartim de Moraes,

“é necessário sobretudo determinar o conteúdo político da contradição entre a burguesia e a democracia. Mais precisamente, sabemos que esta contradição pode se exprimir sob a forma de uma separação entre as duas categorias (a burguesia renega a democracia, ela se torna fascista ou autocrítica). Ela pode também se exprimir pela síntese (a democracia burguesa). Mas o que decide pela

síntese ou separação entre democracia e burguesia? A luta de classes, evidentemente.” (MORAES, 1971a: p. 655)

Retornando a questão sobre quais fatores teriam determinado a instabilidade política do período republicano, podemos, agora, responder sumariamente, que:

a) b)

c) d)

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil se dá num momento histórico em que o capitalismo monopolista e o imperialismo já estão desenvolvidos, daí seu caráter retardatário; Esse período é também marcado pela existência de um bloco de países socialistas, que torna o imperialismo mais agressivo e, particularmente depois da II Guerra Mundial e com a eclosão da Guerra Fria, divide o mundo em áreas de influência; O Brasil importou tecnologia desenvolvida pelos países capitalistas centrais, fator determinante de seu caráter dependente; O Brasil, pela importação de tecnologia já pronta dos países centrais, pôde passar mais rapidamente da fase de transição para a fase de reprodução ampliada, o que caracteriza seu caráter acelerado, que provocou redefinições mais rápidas da hegemonia política no seio das classes dominantes (cf. SAES, 2001), o que explica sua instabilidade política.

2. DE JK A JOÃO GOULART: NOVA ORIENTAÇÃO ECONÔMICA, CRISE E GOLPE. Em 1955, Juscelino Kubitschek (PSD/PTB) venceu as eleições presidenciais concorridas com um trio conservador de grande expressão nacional com apenas 3.077.411 votos. Os concorrentes e suas respectivas coligações e votações foram: Juarez Távora (UDN/PR/PL/PDC), com 2.610.462 votos; Ademar de Barros (PSP/PTN/PST), com 2.222.223 votos e Plínio Salgado (PRP), com 714.379 votos. A soma dos votos dos demais candidatos (5.547.464) fica perto do dobro dos votos de JK. Ainda levando em conta apenas os votos dados aos candidatos (deixando brancos e nulos de lado), JK obteve 35,68% dos votos.

A transição para a posse de JK foi conturbada pela sanha golpista. Seguia a crise política que teve seu ponto mais dramático no suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954.O vice-presidente Café Filho ficou no governo até 08 de novembro de 1955, tendo sido afastado. Assumiu, por três dias, Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, deposto por participar do esquema golpista pelos legalistas chefiados pelo Marechal Lott. Assumiu em seu lugar o vice-presidente do senado, Nereu Ramos, que governou até a posse de JK e seu vice, João Goulart, no dia 31 de janeiro de 1956.

Ainda durante o governo de Café Filho, a economia brasileira mudaria de rumo de uma vez por todas, com a publicação da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito - SUMOC (que se tornaria, com novas atribuições, o atual Banco Central) e dava amplos incentivos ao capital estrangeiro para a instalação no Brasil de novas indústrias e importação de equipamentos com liberdade cambial e isentos de taxas, vantagens estas que, aliás, as indústrias nacionais não possuíam.

Houve uma grande diferença entre o modelo de Vargas dos últimos anos de mandato e o de Juscelino: este inauguraria uma fase de grande crescimento econômico, financiado pelo capital estrangeiro e voltado principalmente à produção de bens de consumo duráveis. JK não acabou com a Instrução 113 e ampliou a abertura das portas do país às multinacionais, além de manter intocado o latifúndio. Para o novo presidente,

“a colaboração do capital estrangeiro não era ‘matéria para debate emocional’, mas uma ‘necessidade técnica’. E aceitar esta colaboração era ‘compatível com o mais acendrado nacionalismo, pois o verdadeiro nacionalista é aquele que procura apressar o desenvolvimento econômico, sem o qual a nação continuará fraca e pobre’. Recusar o ‘capital estrangeiro sem a capacidade técnica e econômica de fazer os investimentos rejeitados não é nacionalismo: é fraqueza e timidez’.” (ALMEIDA, 2003: p.110).

De 1930 a 1960 profundas alterações haviam ocorrido na sociedade brasileira. A principal delas: havia passado por grande impulso industrializante e no final da década de 1950 o Brasil já não era um país meramente agro-exportador. As contradições no campo permaneciam mesmo com a larga migração para as cidades e a contradição com o imperialismo avançava com o reforço dos vínculos de dependência que haviam se diversificado e fortalecido nos últimos anos e depois do governo JK.

“a industrialização, em sendo tardia, se dá num momento em que a acumulação é potencializada pelo fato de se dispor, ao nível do sistema mundial como um todo, de uma imensa reserva de ‘trabalho morto’ que, sob a forma de tecnologia, é transferida aos países que recém se estão industrializando. Assim, na verdade o processo de reprodução do capital ’queima’ várias etapas, entre as quais a mais importante é não precisar esperar que o preço da força de trabalho se torne suficientemente alto para induzir as transformações tecnológicas que economizam trabalho.” (OLIVEIRA, 1981: p.42).

O rápido processo de industrialização, com a introdução do capital estrangeiro e das multinacionais, é acompanhado pela ascensão do movimento popular e operário, assim como no campo, os trabalhadores rurais, submetidos a relações semifeudais de trabalho, vítimas primárias do acordo de classes que mantinha a situação do campo em favor das oligarquias agrárias e que foi fundamental para a manutenção do equilíbrio político possível de todo o período, passam das lutas locais às lutas mais gerais e de âmbito nacional, na medida em que, ao mesmo tempo, vão incorporando e percebem que são incorporadas suas reivindicações pelo movimento nacionalista, cuja mais radical bandeira será a da reforma agrária.

Apoiado pela UDN, pela burguesia nacional e associada ao imperialismo e pelos latifundiários, a vitória de Jânio Quadros mostrou-se desastrosa: seu efêmero mandato, seguido da tentativa de golpe que foi sua renúncia, abriram uma imensa crise política.

“Com as crescentes demandas nacionalistas e reformistas pressionando o Executivo e com o Congresso também funcionando como um foco de expressão dos interesses regionais e locais, tornavase imperativo para os interesses multinacionais e associados ter o comando político da administração do Estado. Isto foi parcialmente conseguido com a ascensão de Jânio Quadros ao poder.” (DREIFUSS, 1981: 37).

Do curto mandato, marcado por medidas polêmicas e moralistas, nada tendo ocorrido de substancial, tem-se a impressão de que seu maior feito foi a crise aberta pela renúncia. Até então, nas eleições presidenciais votava-se separadamente no presidente e no vice-presidente, sendo possível a eleição de representantes de chapas diferenciadas, como ocorreu na sucessão de JK. O vice-presidente de Jânio Quadros era Milton Campos, mineiro, jurista e conservador. João Goulart, reconhecido como principal herdeiro do trabalhismo varguista, foi eleito vice-presidente, pelo PTB, numa coalizão de forças pelas quais disputava a presidência o Marechal Lott (PSD), figura central na frustração das tentativas de golpe que sucederam desde o suicídio de Getúlio Vargas até a posse de JK.

Após a renúncia de Jânio, os setores mais progressistas defenderam, desde o primeiro momento, a posse do vice, João Goulart. A tentativa de golpe que se seguiu à renúncia frustrou-se diante da resistência organizada de amplos setores, principalmente a que vinha do Rio Grande do Sul, articulada por Leonel Brizola. A saída parlamentarista, com Tancredo Neves a frente, formando um gabinete conservador, não obteve êxito entre as camadas que vislumbravam a necessidade de algumas reformas importantes. O período parlamentarista, com três gabinetes, pode ser resumido, como uma verdadeira crise parlamentar que possibilitou, impulsionado por greves gerais, a antecipação do plebiscito no qual o povo escolheria entre o parlamentarismo e o presidencialismo. Originalmente marcado para 1965, foi antecipado para 06 de janeiro de 1963, dando larga vitória ao presidencialismo.

O início da década de 1960 e, particularmente, a partir de 1962, o Brasil entrava numa crise econômica causada pelo aumento descontrolado da inflação, pela desaceleração da economia e queda geral no investimento público devido aos constantes déficits e também queda do investimento privado.

Os movimentos sociais avançavam em organização e atuação nas diversas frentes, criando novas entidades ou reforçando as existentes. No campo e na cidade, entre os intelectuais, operários, soldados, marinheiros, estudantes e também em frentes amplas, que congregavam várias entidades ao mesmo tempo, como a Frente de Mobilização Popular - FMP - criada em 1962, a articulação e a pressão exigindo reformas profundas ganhava corpo e também as ruas.

O clima era de polarização e mesmo os diversos agrupamentos e entidades ligadas aos trabalhadores e comprometidos com as reformas dividiam-se em posições das mais tímidas às mais extremadas. Jango lança a Frente Ampla, depois chamada de Frente Popular (23 de março de 1964), com a intenção de estabilizar seu governo e de unir as forças políticas representativas no sentido de encaminhar as reformas de base.

“O empreendimento feito para a constituição de uma ampla frente única já nascia, porém, condenado ao fracasso e à derrota. De um lado, as divergências no interior da frente eram, praticamente, insuperáveis e irreconciliáveis e, por outro, já chegava tarde demais - àquela altura dos acontecimentos, as forças do centro e de direita já estavam com outro projeto em estado adiantado de articulação para barrar as propostas de reformas.” (SEGATTO, 1995: p.145).

No comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, Jango anunciaria as reformas de base e já tinha conhecimento de que

“se esgotara seu crédito junto às forças conservadoras, uma vez que se demonstrara incapaz de conter o descalabro financeiro e subjugar as forças de esquerda. Voltou-se então para o outro lado e se definiu por um rumo favorável às reformas de base, na expectativa de desencadear grande movimento de massas que lhe garantisse um segundo mandato presidencial”.(GORENDER: 1990, p.58).

Ocorrera, porém, uma profunda alteração na correlação de forças políticas dentro da sociedade brasileira. Derrotados em 1961, os golpistas seriam vitoriosos em 1964, pegando desarmados os movimentos populares e partidos de esquerda, alguns que inclusive superestimavam suas próprias forças e a dos movimentos, assim como a capacidade e a disposição de Jango em resistir a um golpe da direita.

“é notável a proximidade cronológica entre o duplo desastre sofrido pela direita em agosto-setembro de 1961 (...) e a fundação do discretamente intitulado Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) a 29 de novembro de 1961, bem como de organizações congêneres, como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), integrantes do “feixe” cripto-fascista que iria assaltar com sucesso o poder em 1964”.(MORAES, 2001: p.111).

Houve de fato a articulação de um poderoso aparato propagandístico e uma teia que unia diversos setores da sociedade, das classes dominantes às massas populares. Jornais, sindicatos patronais, empresariado, clero conservador, partidos de direita, latifundiários, que contavam com apoio dos EUA e de boa parte dos militares, formaram um grande bloco (não sem rachaduras, como ficou evidente depois) financeiro e ideológico. De outro lado, milhares de pessoas do povo e das camadas médias, estimuladas pela Igreja, em grande parte, partícipe da articulação da direita golpista, saíram às ruas em defesa da família e da propriedade privada, temerosas com o avanço das forças populares e de esquerda. Uma suposta ameaça comunista e a crítica à corrupção eram os catalisadores ideológicos que uniam os diferenciados setores, ainda que com motivações e preocupações variadas.

Política e ideologicamente, a decretação das reformas de base tinham um duplo efeito mobilizador sobre os setores mais reacionários e o capital monopolista: primeiro, a lei da reforma agrária rompia a estabilidade que manteve no bloco no poder os grandes proprietários de terra; segundo, a tentativa de recolocar o Brasil no caminho de um desenvolvimento capitalista com fortes bases nacionais e caracterizado pela “inclusão” dos trabalhadores e o alargamento da dinâmica do mercado interno via reforma agrária e distribuição de renda feria frontalmente os interesses do capital monopolista, que se realizariam, depois, como já era corrente e veremos mais adiante, através da sua articulação com a ação do Estado e da contínua acentuação da exploração da força de trabalho.

A saída, tendo em vista a impossibilidade prática de se resolver a questão via substituição do presidente eleitoralmente, como provara a experiência janista e o acirramento da luta de classes, caminhava na direção do golpe (cf. Moraes, 2006: p.138). Isso permite compreender o sentido real da ditadura.

3. O SENTIDO DO GOLPE MILITAR DE 1964

João Quartim de Moraes define a história do regime militar no Brasil como sendo “principalmente a da transformação monopolista do capitalismo no Brasil, tal qual ela pode objetivamente se verificar na nossa época num país capitalista dependente” (1971a: p.669). O golpe militar de 1964 significou a interrupção brusca do processo de incipiente democratização da sociedade brasileira, marcada no período imediatamente anterior pelo grande crescimento da organização e da participação política dos trabalhadores da cidade e do campo nas decisões dos rumos do país e pelo caminho das reformas estruturais, representadas pelas Reformas de Base.

Segundo Décio Saes,

“(...) a militarização do aparelho de Estado brasileiro se define objetivamente como a via pela qual se concretiza a passagem de uma situação de equilíbrio instável no seio do bloco dominante e de ausência de hegemonia à hegemonia política do grande capital monopolista.” (SAES, 1985: p. 157)

Golpe militar, ditadura militar são termos que não devem obscurecer, no entanto, o caráter de classe do movimento que, conforme demonstrado acima, iniciou-se no período anterior a 1964, englobando diversas classes e frações de classes da sociedade brasileira. Classes e frações de classe que, embora tenham participado em conjunto da ação do golpe, não foram partícipes de seus rumos, como um todo, como foi o caso particular das oligarquias agrárias, dos setores médios e da média burguesia. Por que a ação que interessava particularmente ao grande capital estrangeiro e às elites locais da cidade e do campo teve as forças armadas à frente, particularmente o exército? Segundo João Quartim de Moraes,

“A fraqueza relativa das organizações políticas das classes urbanas e notadamente das duas classes principais, burguesia e proletariado, se exprimia pelo ‘baixo nível de institucionalização’ da luta política. Combinado com a aceleração do desenvolvimento industrial e dos fenômenos sociais que ele determina (por exemplo, a ‘urbanização’), o baixo nível de institucionalização aumenta a importância relativa das instituições e forças sociais organizadas ao nível da superestrutura. Nos referimos principalmente às instituições que num artigo recente Althusser designou pela expressão ‘aparelhos ideológicos de Estado’. O próprio aparelho de Estado e ‘seu destacamento especial de homens armados’ aí encontra as condições para tornar-se árbitro da política. Na falta de um partido burguês, o Exército não poderia estar que cada vez mais tentado de ampliar seu papel ‘extramilitar’. (MORAES,1971a: p.672).

Embora inicialmente confuso com relação à transitoriedade dos militares no poder ou sua permanência por longo tempo, como demonstram as primeiras medidas do governo Castelo Branco, o regime foi, aos poucos, demonstrando que o processo de permanência da ditadura seria longo e a defesa da Constituição de 1946, que serviu de argumento inicial e foi, ao mesmo tempo, rasgada pelo golpe, foi substituída pela de 1967: o discurso da defesa da democracia foi substituído rapidamente pelo da Segurança Nacional e pelo fechamento total da ditadura, a partir do AI-5, em dezembro de 1968.

“as classes dominantes em seu conjunto não se reuniram senão na medida em que o governo nacional-burguês parecia incapaz de ‘manter a ordem’. Entretanto, esta ordem que eles pretendiam preservar era inseparável da ‘desordem’ que denunciavam. Foi no respeito absoluto à Constituição de 1946 que Vargas, em 1950, e Goulart, em 1961, chegaram à presidência da República. A República, a ordem burguesarepublicana, se manifestou então, aos próprios olhos da burguesia, como uma desordem. A derrubada do governo nacional-burguês estava então necessariamente ligada à criação de uma ordem burguesa

de tipo novo. As frações, setores e camadas das classes dominantes que haviam participado do golpe de Estado e da contra-revolução, acreditando ingenuamente que a oligarquia rural e o grande capital desejavam efetivamente salvar a democracia , foram os primeiros a ser postos fora da cena política.” (MORAES, 1971 b: p.854).

As medidas tomadas para resolver a crise econômica evidenciam o fim da necessidade dos compromissos que o modelo anterior exigia: atuando com base num forte aparato repressivo, a ditadura vai atacar a crise econômica tendo como bases principais a restrição do crédito, o arrocho salarial (o salário mínimo, por exemplo, chegou em 1968 com poder aquisitivo reduzido em 30% em relação ao de 1961), o aumento da carga tributária e a reorientação dos gastos do Estado, facilitando a entrada de capital internacional e levando à falência diversas empresas nacionais de pequeno e médio porte. Em suma, os primeiros anos da ditadura representaram, no campo econômico a afirmação da parceria entre Estado e capital monopolista, preparando o terreno para o forte crescimento econômico iniciado no final da década de 1960. Mas esse crescimento econômico não estava casado com um desenvolvimento social, ou seja, à melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Pelo contrário: há um processo constante de concentração de renda, mascarado no final da década de 1960 pelo aumento da demanda por trabalhadores com salários reduzidos em termos de poder aquisitivo real em relação a dez anos atrás..

“Tudo leva a pensar que a concentração na cúpula continuou e ainda com maior vigor, desde o significativo crescimento do excedente a partir de 1967, possibilitado por um nível de salários reais rebaixados em quase 30% no caso do salário mínimo (em relação a 1961), em condições de recuperação e expansão aceleradas do nível de atividade econômica urbana. No entanto, a maior incorporação de mão-de-obra, derivada da expansão, permitiu que o número de pessoas que trabalham por família urbana aumentasse significativamente em 1969, em comparação com o decênio anterior, possibilitando que a renda média da família assalariada, em 1970, chegasse mais perto do nível registrado no início da década.” (TAVARES, 1982: p. 201) Na área rural, a reforma agrária da ditadura teria efeitos nefastos sobre os trabalhadores agrícolas. Na verdade, a ditadura manteve o Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado ainda no governo João Goulart, pelo qual a legislação trabalhista que vigorava até então apenas nas áreas urbanas deveria ser estendida aos trabalhadores rurais. Castelo Branco, primeiro general-presidente, fará um duplo movimento em novembro de 1964: com que se aprove no Congresso uma emenda constitucional que alterava o artigo 141, parágrafo 16 da Constituição de 1946, ainda em vigor, segundo o qual deveria haver uma indenização em dinheiro pela desapropriação de terras, pela indenização em títulos da dívida pública; em seguida, aprovou a Lei 4.504, que ficou conhecida como Estatuto da Terra, que visava a concretização de uma reforma agrária baseada na criação de um imposto sobre a propriedade de terra que aumentava ou diminuía em razão da menor ou maior produtividade, o que ocasionaria o investimento na produção ou desestimularia a manutenção de terras improdutivas.

Os efeitos nefastos se deram por dois motivos: primeiro, porque a reforma agrária da ditadura não saiu do papel; segundo, porque a forma como foi mantido, o Estatuto do Trabalhador Rural estimulou a expulsão dos trabalhadores, como os colonos e arrendatários, para não caracterizar o vínculo empregatício. Estimulou também o grande aumento dos boias-frias, que eram contratados por

agentes intermediários, com o mesmo objetivo de não caracterizar vínculo empregatício, e a migração interna de milhares de trabalhadores em direção as á r e a s urbanas, agravada pela política de ‘erradicação dos cafezais’. (cf. MORAES, 2000: p. 178-179)

4. DITADURA E ECONOMIA

A EXPANSÃO DO ESTADO

A intervenção direta do Estado brasileiro no processo de industrialização ocorreu, particularmente, a partir da Revolução de 1930, no processo de centralização política que feriu os interesses das oligarquias agrárias que tinham como marca da manutenção de sua hegemonia o poder descentralizado, o poder local. Com exceção dos seguidores mais empedernidos do laissez faire, ou seja, dos adeptos da teoria clássica liberal, segundo os quais o mercado seria o regulador por excelência da economia, sendo que toda a interferência do Estado apenas geraria desequilíbrios, os pensadores e militantes, da direita à esquerda, sempre requisitaram a intervenção do Estado, na prática ou em seus programas. O maior partido de esquerda na época, o PCB, por exemplo, conferiu um papel primordial ao Estado na formulação do seu programa nacional-desenvolvimentista e identificou, após a decretação das reformas de base de Goulart, que uma sucessão de governos do mesmo perfil seria parte fundamental para a possibilidade de sua realização. O crescimento da intervenção do Estado, por si só, não é ideia apenas dos governos militares.

Mas existe um elemento que diferencia a intervenção do Estado na economia requerida por comunistas e outros setores progressistas daquela que se efetivou, a partir de meados de 1950, mas com intensidade maior (e até como consequência dela, como se viu nos itens anteriores) a partir da instalação da ditadura militar. Sumariamente: se para os comunistas e outros setores progressistas, essa intervenção deveria caminhar no sentido da realização de um desenvolvimento autônomo do capitalismo em bases nacionais, desenvolvendo tecnologia nacional e rompendo com as amarras do latifúndio e da ingerência imperialista, a intervenção proporcionada pela ditadura, que já vinha delineada e posta em prática desde o governo JK, tinha como objetivo o desenvolvimento capitalista associado ao imperialismo, ou, em outras palavras, o Estado interveio em benefício da instalação e dos interesses das grandes corporações multinacionais.

Para o projeto nacionalista, a hegemonia caberia a uma polêmica burguesia nacional; no caso que se concretizou, a hegemonia coube ao capital monopolista, e assim o “conteúdo progressista, antiimperialista e antifeudal da atividade econômica do Estado, no Brasil, foi transformado em seu antípoda” (SODRÉ, 1982: p. 146). O Estado brasileiro tem como objetivo proporcionar as condições para a instalação das multinacionais, através de incentivos fiscais diversos, do fornecimento de matéria-prima barata542, de força de trabalho barata e com salários perdendo, continuamente, seu poder aquisitivo, de investimento em infra- estrutura (rodovias, portos, usinas para a produção de energia etc.) e com um aparato repressivo bastante forte para calar o movimento operário e sindical e eliminar as oposições internas.

Este È o verdadeiro sentido da ditadura militar, escondido por detrás da propaganda anticomunista e moralista que catalisou diversas classes e frações de classe no movimento que derrubou o governo Goulart. 542

Diversas empresas nacionais, como é o caso da CSN, tinham os valores de seus produtos reduzidos para o fornecimento às multinacionais.

“A pretexto de conter a inflação, o novo regime operou a estagnação dos salários pela força, a restrição ao crédito, levando à falência centenas de pequenas e médias indústrias, a concentração da produção e da renda, pela destruição da concorrência e incentivo às fusões. Mas operou também pelo congelamento de preços das matérias-primas produzidas pela área estatal, o aço como a mais destacada delas. A siderurgia foi levada ao limite máximo, subsidiando violentamente as indústrias estrangeiras a que fornecia.” (SODRÉ,1982:p.143).

Embora na fase inicial do regime tenham existido propostas, de dentro e fora do governo, de privatização das empresas estatais, feitas por figuras como Eugênio Gudin, Roberto Campos, Glycon de Paiva, representantes do pensamento liberal que, de muito, já atacavam a presença do Estado na economia, embora tenham visto com bons olhos e apoiado o advento da ditadura, o que se percebe nos planos estratégicos dos governos militares é exatamente a orientação contrária, principalmente no Programa Estratégico de Desenvolvimento, de 1967, e Metas e Bases para a Ação do Governo, de 1970543.

“Considerada a divisão anterior das opiniões, quanto ao problema da intervenção do Estado na economia, da existência de uma área estatal na economia, ficava parecendo que o novo regime era nacionalista e os seus opositores é que estavam ligados aos interesses externos. Os teóricos da economia, defensores da livre iniciativa, não só não haviam vendido as empresas estatais - salvo o caso excepcional da Fábrica Nacional de Motores - como haviam desenvolvido a produção delas, aumentado as suas dimensões, favorecendo a sua expansão. A essência do problema, entretanto, estava em que o Estado pode ser instrumento poderoso, eficaz, insubstituível, no impulso à economia nacional, no caso dos países subdesenvolvidos ou em processo de desenvolvimento, mas o Estado pode ser, também, o instrumento por excelência de 543

“O Estado, que detinha, em 1963, 78% das dez maiores empresas do país, passava, em 1969, a deter 80,6%. (...) O governo responsabilizava-se, segundo o plano estratégico, por nada menos de 68,4% dos investimentos programados para o setor habitacional, no período 1968-70; no setor de energia elétrica, o governo será responsável por 90% do custo total programado que, até 1970, é da ordem de 6,2 bilhões de cruzeiros. Os 10% restantes ficarão por conta do déficit. Nos transportes, em obras destinadas a construir estradas e portos, aumentar a frota marítima e melhoria da estrutura já existente, o governo responsabiliza-se por todo o investimento programado. O quarto setor prioritário a receber investimentos até 1970, segundo o planejamento oficial, será o das indústrias básicas, que inclui empresas de aço, metais não-ferrosos, indústria química, mecânica, mineração e cimento. Visto de maneira global este setor, o governo aparece também como o maior investidor. O quinto setor prioritário é o petróleo. Os investimentos programados até 1970 (excluindo a petroquímica) são estimados em 2.358 milhões de cruzeiros novos. O financiamento total desses investimentos será feito pelo governo.” (RUI ROCHA apud SODRÉ, 1982: p. 141).

desnacionalização da economia, de entrega ao imperialismo dos recursos nacionais e particularmente da renda nacional.” (SODRÉ, 1982: p. 142).

Tal intervenção do Estado gerou, necessariamente, a expansão de suas atividades e, consequentemente, um aumento de pessoal empregado na burocracia estatal e nas empresas estatais. Acrescente-se que Estados e municípios acompanharam e, em certos casos, superaram o governo federal em número de vagas abertas pelo aumento e diversificação de serviços urbanos oferecidos. O crescimento do Estado e sua intervenção na economia, de suas funções e, consequentemente, de seu pessoal, tem, como já dito, a característica principal de criar as condições favoráveis para a acumulação, “transferindo recursos e ganhos para a empresa industrial, fazendo dela o centro do sistema” (OLIVEIRA, 1981: p.19).

Apenas na administração pública verifica-se um crescimento de 75% de pessoal no intervalo 1960/1970, passando de 661.911 para 1.154.954 funcionários (IBGE, 2007). Acrescentando a este número os trabalhadores das empresas estatais, mais os demais setores de serviços públicos (de segurança, educação, saúde etc.), chega-se a números muito maiores. Há um grande crescimento dos empregos abertos pela administração indireta (fundações, autarquias e empresas de economia mista) superando os índices de crescimento da administração direta, passando dos 20% na participação do emprego total, em 1950, para 40%, em 1973 (cf. REZENDE, 1976: p.46).

Conforme Rezende (1976), a tendência de crescimento do emprego público fica mais na esfera de trabalhos não-manuais, sendo que se observa, já em fins dos anos 1960, uma tendência à substituição, baseada em padrões de eficiência, de mão-de-obra braçal por capital nas indústrias e nos serviços urbanos que requeiram operários, como água e esgoto, obras públicas etc. O eixo principal da expansão do serviço público fica, portanto, por conta das chamadas atividades sociais diversas, segurança pública, educação, atividades empresariais e técnicas, pessoal de administração e da burocracia estatal de forma geral, refletindo assim dois aspectos essenciais: por um lado, a necessidade de quadros especializados para ocupar os postos abertos pela expansão do Estado na atividade diretamente econômica; segundo, o aumento de serviços urbanos resultante da constante pressão nas áreas urbanas “pela expansão de programas relacionados à promoção do bem-estar social, além das atividades mais tradicionais de ensino e assistência médica” (cf. REZENDE, 1976: p.73).

A INTERVENÇÃO DO ESTADO E AS EMPRESAS MULTINACIONAIS

Até 1975 estão instaladas no Brasil 707 empresas multinacionais, diretas ou participes de conglomerados, atuando sozinhas ou em parcerias com empresas estatais, em diversos setores da indústria, comércio de importação e varejista, hotelaria, imóveis, serviços, informática, seguros etc., sendo: 244 dos EUA; 83 de origem alemã; 57 do Benelux (Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos); 20 canadenses; 60 francesas; 52 inglesas; 52 italianas; 52 japonesas; 31 dos países escandinavos (Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca); 56 suíças (cf. CEDAL/CEDETIM, 1979: p.181-226). Algumas dessas grandes empresas obtiveram o monopólio de extração de minérios, com licença concedida diretamente pelo Estado ou em parcerias com empresas estatais, particularmente a Cia.

Vale do Rio Doce. Além do monopólio da extração, contavam ainda com incentivos fiscais e subsídios para exportação.

“O Brasil possui 15% das reservas mundiais de ferro, mas apenas 13% das jazidas pertencem a empresas brasileiras; a Bethelhem Steel, através do chamado Grupo Antunes, detém a maior parte, acompanhada pela Hanna; (...) o alumínio pertence em grande parte à Kayser. O bário baiano È controlado por outra empresa norte-americana; o tungstênio é explorado pela Wah Chang; o berilo é dominado pelas empresas norte-americanas Beryllium e Beryllium Brusch; o magnésio, pela Magnesium do Brasil S.A.; o chumbo é explorado pelas empresas norteamericanas Plumbum e Prest-o-lite; o amianto e a crisólita pelas Brasilit e Eternit, que nada têm de brasileiras. As jazidas de manganês estão, na maioria, nas mãos da Companhia Meridional de Mineração, pseudônimo da United States Corp., que explora as jazidas de Minas, de Mato Grosso e da Bahia; as do Amapá pertencem à Bethelhem, em concessão cujo fim contratual é previsto para o ano de 2003. O estanho e o zinco são controlados, igualmente, por monopólios estrangeiros. Operavam no Brasil, até 1967, os grandes consórcios internacionais Bethelhem Steel, United States Steel, Union Carbide, Niobium, Hanna Ore Mining, Republic Steel, Cleveland Cliffs Iron, Wah Chang, e muitos outros menores. O sal-gema nordestino foi entregue à Dow Chemical, cujo renome, em termos mundiais, deriva da produção de napalm, com que vêm sendo devastadas imensas áreas do Vietnã.(SODRÉ, 1982: p.117).

Os dados estatísticos do período demonstram ainda que o crescimento das multinacionais e da produção de bens duráveis voltados para pequeno grupo do mercado interno brasileiro e para a exportação cresce em proporção inversa aos setores da indústria ligados à produção de bens necessários para a maioria da população, e que são, tradicionalmente, de empresas nacionais, como os setores de calçados, roupas, alimentos etc. No decênio 1960/1970, enquanto que o ramo de material para transportes (189%), material elétrico e comunicações (208,2%) cresceram a cifras elevadas, o setor de vestuário, calçados e têxtil cresceu apenas 13,7%. É necessário acrescentar que, se há a quebra de grande parte de empresas nacionais desses ramos tradicionais e voltados para o consumo imediato da população em geral, determinados ramos da indústria de capital nacional vão crescer ou surgir como resultado direto da implantação das multinacionais, ou seja, como fornecedoras de produtos diversos e componentes para montagem, como é o caso da indústria de autopeças.

Com relação ao emprego, como no caso da expansão do Estado, não é preciso estender muito a questão, pois se torna óbvio que a implantação dessas empresas exige a contratação de força de trabalho diversificada, desde operários a executivos, passando pelos técnicos e engenheiros, pessoal de escritório, administrativo e de “serviços” específicos ligados às empresas, oferecidos dentro ou

fora da indústria, como é o caso da assistência social, educação, assistência médica, psicológica etc., além de gerar uma nova gama de prestação de serviços e comércio.

A EXPANSÃO DO SETOR FINANCEIRO.

No mesmo ano do golpe militar, duas leis abriram caminho para a reformulação do sistema bancário e financeiro brasileiro e para o desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil: a lei 4.357/64 instituiu a correção monetária, através da criação da ORTN e a reforma bancária ficou a cargo da lei 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central e o Banco Nacional de Habitação. Tal legislação impulsiona a reformulação e surgimento de novas sociedades corretoras, a reorganização das bolsas de valores e o surgimento dos bancos de investimento, como se pode observar na tabela seguinte:

10. NÚMERO DE INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS EM FUNCIONAMENTO item Bancos comerciais Bancos de desenvolvimento fomento: a)ou federais b) estaduais State Banks Banco Nac. de Habitação Bancos de Investimento

Caixas Econômicas a) federais b) estaduais Financeiras: a) sem carteira imobili·ria b) com carteira imobili·ria Cia. de Seguros Sociedades de crédito Assoc.imobili·rio de poupança e empréstimo Sociedades corretoras Sociedades distribuidoras Sociedades de investimentos**

196 196 196 196 1968 196 197 4 331 5 313 6 261 7 231 9213 195 0 336

1

1

1

1

1

1

1

1 1 -

1 1 -

2 1 7

2 1 21

3 1 21

7 1 29

9 1 30

22 4

22 4

22 4

22 4

22 4

22 4

1* 5

134 202 272 247 235 203 212 3 10 10 9 144 151 157 156 157 158 157 2 22 25 34 44 21 32 32 -

-

-

254 377 394 404 - 556 576 573 9 6 3 -

FONTE: Relatório do Banco Central, 1970. In: TAVARES, 1982: p.223. *Unificação das Caixas Econômicas Federais de acordo com o Decreto-Lei nº 759, de 12-8-1969. **Até 1966 estas entidades foram englobadas no total de financeiras.

Dois aspectos principais são interessantes: primeiro, é necessário observar a redução drástica do número de bancos comerciais no período coberto pela tabela. Acentuando a tendência anterior, pelo menos desde 1958, quando somavam 399 bancos, esse setor passa de 336 instituições em 1964 a 195 em 1970. Esse processo não é de extinção pura e simples dos bancos, mas resultado de um processo de concentração bancária baseada nas fusões de bancos comerciais; segundo, o surgimento e rápido crescimento dos bancos de investimento, que se tornarão responsáveis por parte considerável do financiamento e empréstimo ao capital privado; por fim, a organização e o surgimento de grande número de sociedades corretoras.

11. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O golpe militar de 1964 marca a forma como foi resolvida a crise de hegemonia no bloco no poder entre as frações burguesas com a entrada do capital monopolista e a crise detonada pela ação política dos movimentos sociais. A política econômica da ditadura, sustentada por forte interferência do Estado e também por seu aparato repressivo, teve o sentido de dar forma acabada, num ambiente sem resistência, às condições necessárias para o prosseguimento das transformações iniciadas antes dela, como procuramos demonstrar de forma rápida abordando a expansão do Estado, sua relação com o capital monopolista e a expansão do setor financeiro. A ditadura militar não significou, portanto, uma ruptura econômica com o padrão de desenvolvimento e acumulação aberto em meados da década de 1950: o golpe militar foi uma ruptura política, necessária para que a crise econômica fosse resolvida pelos mesmos mecanismos até então vigentes e no interesse do capital monopolista. Além disso, colocou fim no projeto nacional-desenvolvimentista e na tradição trabalhista e também bloqueou com o terrorismo de Estado a crescente organização dos movimentos populares, que provocou um acirramento da luta de classes, partindo das reivindicações econômicas motivadas pela crise, ampliando para proposições políticas que, levadas a cabo, demarcariam uma ruptura no padrão econômico, além de acabar com o equilíbrio entre as classes dominantes que predominou durante a República. Por fim, ainda que tenhamos tratado de maneira bastante rápida os temas propostos, acreditamos que nosso objetivo inicial foi cumprido: conseguimos demonstrar em síntese que a ditadura militar foi resultado mais direto da etapa à qual chegara o desenvolvimento capitalista em um país periférico como o Brasil e que norteou seus esforços, inclusive aquele da máquina repressiva, de acordo com os interesses do capital monopolista. Vale aos interessados aprofundar os estudos sobre cada um desses pontos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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