Homossexualidade e genetização dos discursos

May 24, 2017 | Autor: Teresa Levy | Categoria: Science and Technology Studies
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Homossexualidade e genetização dos discursos

Haverá, pelo menos, alguns que se lembram do célebre motto da Simone de
Beauvoir – on ne nait pas femme, on le devient – transformado em bandeira
da corrente feminista que nasce no meio do século vinte.
Para uma feminista que viveu ou tem memória desses tempos idos da década de
sessenta, a relação que os homossexuais têm com a biologia e, em
particular, com a noção biológica da homossexualidade só pode causar
perplexidade e mesmo suspeição. Ao contrário do que aconteceu com as
feministas que, para lutarem contra a dominação masculina, forjaram todo um
discurso e uma prática onde é bem explícita a rejeição do 'destino
biológico' desde sempre atribuído às mulheres, o movimento gay, em geral, e
muitos homossexuais, em particular, mantêm com a biologia uma relação muito
particular de ambivalência. São muitos os que acolhem bem a noção expressa
pelo slogan 'nascemos assim', achando que ele traduz no discurso
ideológico público o que muitas vezes se vive no privado.
A procura de uma relação entre homossexualidade e biologia tem raízes
antigas , mas hoje os desenvolvimentos das ciências da vida, nomeadamente
da biologia molecular, vieram dar nova visibilidade e novos contornos à
percepção de uma identidade gay.
Esta reformulação enquadra-se num movimento mais vasto de biologização dos
comportamentos sociais e individuais. Apropriando-se daquele conhecimento,
muitos e variados ideólogos apareceram a proclamar, de modo certo e seguro,
explicações biológicas para toda uma série de condições desde o alcoolismo
até à pobreza. Entre estes e, para ajudar à credibilidade, encontramos
cientistas que, saídos dos seus laboratórios, passam à cena pública.
Não é pois surpreendente que encontremos nesta onda redutivista, noções
como o 'cérebro gay' ou o 'gene gay' que, por razões que merecem ser
analisadas, são muito bem aceites e apropriadas pelo grande público. Mais
paradoxal talvez, é verificarmos que, entre esses, se encontram biólogos
homossexuais e que as conclusões dos seus trabalhos encontram uma aceitação
entusiasta dentro da comunidade gay. Parecendo esquecer usos de
investigações anteriores do mesmo tipo para efeitos racistas e sexistas,
emerge a ideia de que, o inatismo é 'pro-gay, ' enquanto que a
homossexualidade vista como escolha seria uma posição anti-gay.
A definição biológica da identidade gay, no sentido de uma ideologia que vê
a biologia ao seu serviço, sobrepôs-se à auto- representação social e,
depois de um período de retraímento mental, reemergiu, talvez com novas
roupagens, mas seguindo um padrão com mais de um século. É uma ideia que se
exprime a vários níveis, desde o nível de uma consciência espontânea pre-
ideológica, através da sua função social como ideologia, até ao nível das
teses e resultados da investigação científica contemporânea.
Ora se a promoção dos direitos dos homossexuais permanece uma acção
importante e urgente, ela não se pode fazer à custa do esquecimento dos
resultados do uso do determinismo biológico já apontado onde as diferenças
são utilizadas para estabelecer valores hierárquicos de superioridade e
inferioridade, justificando vantagens e dominação de uns sobre os outros
assim como da ignorância do rasto de má ciência associada às proposições
biológicas deterministas (Gould Gould; Lewontin, Rose, Kamin, etc.(1984)).
É difícil delinear as fronteiras entre o biológico e o cultural, para
usarmos de modo um pouco expeditivo a dicotomia usada por Levi-Strauss.
Difícil, equívoco e de questionável utilidade, não fossem as repercursões
generalizadas das afirmações repetidas de um determinismo biológico. É a
quase obsessão científica que os media nos passam e a sua recepção por
diferentes grupos que nos conduz aqui a analisar o significado de
investigações sobre a determinação biológica da orientação sexual. Estas
investigações alimentam debates geralmente enquadrados por dicotomias como
natureza (bio) vs cultura, características e comportamentos inatos vs
aprendidos. Este dispositivo favorece a crença de que a descoberta da
existência de uma componente biológica na expressão de determinadas
características da vida faz desta a causa e o motor praticamente automático
dessa expressão particular que não seria, portanto, nem escolhida nem
aprendida. Sandra Witelson, especialista em anatomia do cérebro e
orientação sexual na Escola de Medicina Michael G. DeGroote na McMaster
University de Ontario, Canada, expressa bem a confusão terminológica
presente na dicotomia entre base biológica e aprendizagem quando diz que as
provas de diferenças biológicas mostram que a orientação sexual não se
aprende Não se aprende, faz-se[1]. E faz-se, diria, porque ... se tem que
fazer: é biológico.
Não podemos cair no logro das discussões enquadradas por perguntas tão
limitativas como: A homossexualidade é biológica ou vem da educação? Sendo
os homossexuais diferentes dos heterossexuais, onde se localiza a
diferença, na biologia ou no meio ambiente? Uma vez aceites, ficamos atados
a uma certa definição dos termos, a determinados esquemas de compreensão e
modalidades de discussão. Por muito científica que pareça ser a sua
formulação, os implícitos dos seus enunciados não o são. No entanto, como
sabemos, não é fácil deslocar as questões para que os implícitos se tornem
objecto explícito de análise. Só assim se compreende que, depois de terem
sido desacreditados por várias vezes, eles se repitam continuadamente, sem
terem sofrido grandes abalos.
No que diz respeito aos próprios homossexuais podemos perguntar se a
aceitação do inatismo gay não se enraíza na sensação de mal-estar ou mesmo
de revolta face às regras de género impostas desde muito cedo, muito antes
de se poder falar da consciência de uma orientação sexual particular e,
nesse sentido, se a noção ideológica de que se nasce assim não tem mais a
ver com essa consciência espontânea do que com um inatismo biológico. Por
muito que se regrida na memória, o desfasamento, a diferença sentida é
sobretudo uma diferença psicológica relativa a certos padrões socio-
culturais e mentais. Por muito profunda que seja a marca que esta diferença
inscreve no próprio sentido que um sujeito tem de si, a sua representação
como algo de biológico pode ser mais ideológica que biológica. Em segundo
lugar, a identidade biológica elide a diferença de género na infância e a
orientação sexual em adulto. O referente da expressão 'nasci assim' é a
criança e não o adulto. Não há nenhuma correspondência unívoca entre o
sentimento infantil e o que seria a base biológica da orientação sexual,
embora a ideologia da identidade biológica procure apresentar os dois como
uma e mesma coisa. Para além disso, a confusão generalizada entre sexo e
género e a crença arreigada no dimorfismo quer sexual quer de género são co-
adjuvantes importantíssimos na acção do biologismo.

1.

Não cabe aqui traçar em detalhe as várias etapas do conceito de identidade
biológica homossexual e da sua recepção pela sociedade, mas vale talvez a
pena chamar a atenção para alguns momentos desse percurso.
O movimento gay aparece nas sociedades ocidentais num contexto de uma
condenação bíblica, reforçada pelo Estado Cristão. Por outro lado, sabemos
que, desde a Renascença pelo menos, existem pensadores que vão contrapõem à
doutrina religiosa, a razão e a ciência. É, no entanto, apenas no século 19
que se torna possível desafiar o taboo imposto pela moral cristã sobre a
homossexualidade e tentar a sua discussão racional no espaço público.
Ironicamente, ou talvez não, a solução biologista até convém parcialmente à
Igreja, pelo menos às Igrejas mais reformistas. Se, por um lado, ela obriga
à retirada, mais ou menos explícita, da ideia de depravação dos homens e da
consequente condenação divina, ela permite acomodar a existência de uma
minoria dentro de uma ordem social que permanece a mesma. Quer do ponto de
vista das tendências religiosas que sabem adaptar-se aos tempos, quer do
ponto de vista social, a homossexualidade aparece como algo que só diz
respeito a um grupo minoritário e identificável e não como uma grande
ameaça ao status quo. Enquanto diferença biológica, o perigo que a
homossexualidade representa é difuso já que ela como ser tratada como uma
anomalia tal como a dislexia, o albinismo ou outras condições do mesmo
género.
O primeiro ele do novo nexo ideológico que associa o discurso dos direitos
de uma minoria a uma identidade biológica homossexual foi formulado em 1860
por Karl Heinrich Ulrichs[2] que escolheu o termo uranismo (de Platão –
eros uranos) para designar a minoria homossexual moderna. Já no seu
primeiro livro, escrito entre 1864 e 1879, podemos ler um dos pontos
cruciais do seu argumento. Segundo ele, o uranismo não se aplicaria apenas
aos sentimentos sexuais mas a toda a parte não física do organismo. Porque
inata, a homossexualidade seria tão natural para uma minoria de
homossexuais como a heterosexualidade o é para a maioria. Não há pois razão
para a condenação social e legal. Sem ter ainda o apoio de uma ciência
positiva, Ulrich não pode definir nesses termos a natureza inata singular
do homossexual, embora tenha chegado a avançar com a possibilidade de
existência de um 'terceiro sexo' biológico distinto. É, no entanto, a
proposta de uma alma feminina num corpo de homem que vai caracterizar a
singularidade destacada por Ulrich. Mesmo em termos tão vagos, o
pensamento de Ulrich vai ter influência sobre cientistas mais nossos
contemporâneos, como o reconhece Simon LeVay, figura proeminente do
movimento gay nos Estados Unidos, e conhecido pelos seus trabalhos sobre o
"cérebro gay". Ele próprio diz que as ideias de Ulrich estão na base do
seu pensamento e investigação no campo da biologia. Mesmo antes de as
ciências biológicas terem algo de importante a dizer sobre o assunto, os
trabalhos de Ulrich vieram contribuir para o alargamento da discussão
académica sobre a homossexualidade e abrem o caminho às primeiras obras
etnográficas e aos estudos no campo de uma psicologia com pretensões
científicas. Estava quebrado o taboo.
Ulrich não foi actor único no seu tempo, claro. Já em 1897 se começara a
esboçar um movimento gay com uma campanha pública sobre os seus direitos
dos homossexuais. Fundado por Magnus Hirschfeld [3](1868-1935) que,
enquanto cientista, gostava de falar sobre o 'terceiro sexo' em nome de
uma ciência, por definição, neutra, o movimento acabou por ter um fim
abrupto com a chegada de Hitler em 1933.
Hirschfeld também não se baseava no que hoje se consideram estudos
científicos mas em estudos proto-científicos com afirmações que hoje
aparecem como rídiculas. O que é um facto é que vamos encontrar,
recontextualizadas em discursos científicos subsequentes, algumas das
variáveis por ele introduzidas. Por exemplo, o endocrinologista Eugen
Steinach mostrou que os testículos e os ovários segregam químicos que
entram na circulação sanguínea com níveis que vão influenciar o
desenvolvimento físico e o comportamento sexual dos animais. Steinach
chegou mesmo a publicar em 1917 o resultado de um trabalho experimental
que, embora não saibamos se foi, de facto, realizado, hoje nada tem de
surpreendente. Essa experiência fala explicitamente de um transplante de um
testículo de um homem heterossexual para um homem 'homossexual, efeminado e
passivo'. O resultado descrito foi o de uma mudança drástica na orientação
sexual. Convencido por este trabalho, Hirschfeld vai afirmar que ' o factor
decisivo na atracção sexual contrária não está, como Ulrichs acreditava, na
mente ou alma (anima inclusa) mas nas glândulas (glandula inclusa). Pela
primeira vez, a identidade biológica gay podia fazer apelo não a asserções
metafísicas de uma 'alma feminina', não apenas a sentimentos da consciência
espontânea, mas à ciência experimental.

Este tipo de estudo sobre as hormonas sexuais veio dar força à ideia que a
orientação sexual é governada pela química do corpo que governava a
orientação sexual. O tipo de intervenção de que aqui se fala materializa um
dos meios médicos utilizados nas tentativas normalizadoras e como que
anuncia as experiências levadas a cabo não só pelos Nazis, mas também na
Alemanha pós-Nazi, por médicos americanos e, em menor grau, ingleses. Alan
Turing[4] foi uma das vítimas conhecidas deste tipo de intervenção
cirúrgica já em 1953.
O ensinamento maior retirado desta experimentação de manipulação hormonal
veio, no entanto, das razões do seu insucesso generalizado. Descobriu-se
que as mudanças de comportamento animal não estavam relacionadas com os
níveis hormonais dos indivíduos adultos mas com as variações hormonais
durante o desenvolvimento fetal. O custo foi talvez demasiadamente alto.
Apesar dos seus vários antecessores e ser continuador desta linhagem, cabe
a Simon Le Vay, com trabalhos na década de 50 do século XX, servir para
marcar o início de um ciência gay.
Os seus trabalhos têm, com certeza, maior grau de sofistificação
tecnocientífica mas não deixam de corresponder à visão clássica e simplista
mais disseminada. LeVay não só relaciona todos os dimorfimos somáticos
sexuais, incluindo os do cérebro e do comportamento, com a produção
hormonal nas gonadas desde o início da diferenciação das mesmas, como
estabelece uma relação causal entre diferenças de níveis hormonais e de
comportamentos sexuais.
O trabalho de Le Vay é emblemático da dinâmica que se estabelece entre
ciência e política. É o próprio que estabelece uma ligação entre o seu
trabalho sobre os determinantes biológicos da homossexualidade e o estatuto
legal, psicopatológico e político dos homossexuais. É uma pessoa influente
no espaço gay e um cientista de renome entre os seus pares. Era
neurobiólogo no Salk Institute, na California e publicava na revista
Science (revista científica de referência).
O seu trabalho mais conhecido tinha como objectivo o estudo das variações
no hipotalamo verificadas entre homens heterossexuais, por um lado, e
outros seres humanos – gays e mulheres. A hipótese previa uma diferença
significativa do tamanho médio de algum ou alguns grupos celulares
presentes nesse órgão para os dois grupos.
Le Vay justificou a sua hipótese baseando-se nas conclusões de estudos
realizados com macacos rhesus no quadro de investigações sobre diferenças
sexuais entre machos e fêmeas e que mostraram uma diferença de tamanho numa
microestrutura do hipotálamo, mais precisamente, no Núcleo Sexualmente
dimorfico, entre uns e outros. Com estes estudos chegou-se ainda à
conclusão de que a parte anterior do hipotálamo está implicada na geração
de comportamentos sexuais tipicamente masculinos, uma vez que a modificação
dessa zona leva a que os macacos em que se fez a intervenção não percam o
seu 'sexual drive'(medido pelos intervalos de masturbação) mas deixem de
exibir um comportamento masculino típico, avaliado pelo número de vezes que
montavam as fêmeas e efectuavam a penetração.[5]
Fez também uma meta-análise dos estudos comparativos do tamanho dos grupos
INAH-1, 2, 3, 4 em homens e mulheres que mostraram que dois desses grupos,
INAH2 e INAH 3, eram maiores, em média, nos homens que nas mulheres. (Allen
et al.)
Estes resultados apareceram no fim da década de oitenta, levando os
biólogos a dar como provada a existência de um substracto biológico da
heterosexualidade humana, apesar da grande variabilidade dentro de cada
grupo sexual e da grande zona de coincidências. Tendo estes resultados como
base, Le Vay partiu na sua busca do 'cérebro gay' e da verificação da sua
hipótese de que "há centros separados dentro do hipotálamo que geram
comportamentos e sentimentos tipicamente masculinos e femininos." A
originalidade da sua proposta está em correlacionar a diferença de tamanho
de INAH 2 e INAH 3 com a orientação sexual – não com o género.
Uma vez que o binarismo é prevalecente em praticamente todo o tipo de
estudos sobre diferenças sexuais não é de admirar que se tenha posto a
hipótese de que heterossexuais e homossexuais tenham substratos biológicos
diferentes e, uma vez que se concebem apenas duas possibilidades, o
substracto biológico dos gay deverá ser semelhante ao das mulheres.
Le Vay simultaneamente resume e postula que "esse núcleos estão implicados
na geração de orientações sexuais típicas" afirmando que as estruturas do
cérebro causam determinados comportamentos. Na explicação da sua hipótese
podemos ler:


I tested the idea that one or both of these nuclei exhibit a size
dimorphism, not with sex, but with sexual orientation. Specifically, I
hypothesized that INAH 2 or INAH 3 is large in individuals sexually
oriented toward women (heterosexual men and homossexual women) and small
in individuals sexually oriented toward men (heterosexual women and
homossexual men)( (Allen 1989 ):1035).

LeVay não só assume que a diferença de tamanho se deve a uma diferença de
género e a uma diferença de orientação sexual, como ainda afirma que essa
diferença de tamanho prova a base biológica da homossexualidade masculina.
Na apresentação dos resultados científicos, LeVay mostra alguma cautela,
afirmando que ' a orientação sexual ... pode não ser a única determinante
do tamanho do inah-3", mas o seu interesse em avançar com esta
interpretação tão descaradamente redutora e o interesse demonstrado pelos
editores da revista Science, levaram-no não só a essa publicação como à sua
publicitação em conferências de imprensa em termos bastante bombásticos.
Fora do laboratório, quer os cientistas quer os media se juntaram para
afrimar que se tinha encontrado um indicador biológico fiável da
homossexualidade. Ora mesmo que se assuma que os resultados deste estudo
possam ser replicados, e que se observe uma diferença média no tamanho do
inah-3 entre grupos gay e hetero assim como entre machos e fémeas, a
questão de saber se a experiência social que difere já nas idades
formativas, não provoca, por feedback, uma mudança nessas formações
microanatómicas, permanece.
Uma análise da investigação de LeVay mostra uma série de distorções e erros
bastante significativos. Muitos passam desapercebidos pois fazem parte do
quadro conceptual comum da investigação sobre diferenças sexuais: a
determinação do que conta como diferença significativa para explicação de
diferenças de comportamentos; a definição do que conta como comportamento
tipicamente masculino e comportamento tipicamente feminino a que se
associam hormonas que recebem o nome de hormonas masculinas e hormonas
femininas embora elas apareçam em todos os indivíduos e possam influenciar
muitas coisas para além das características sexuais secundárias; o
consequente círculo tautológico entre a 'masculinidade' do cérebro e os
comportamentos tipicamente masculinos, já que se assume que as hormonas
'masculinas' no feto criam um cérebro 'masculino' e que o seu deficit cria
um cérebro 'feminino'; o realce quase exclusivo de resultados que mostram
essas diferenças em detrimento da publicitação de resultados em que se
confirma a 'hipótese nula'; etc.
LeVay aceita o pressuposto que há um 'comportamento sexual típico
masculino' nos humanos que difere de um outro tipo comportamento e que esse
tipo é o mesmo que a "orientação sexual, ..., a direcção dos sentimentos ou
comportamento em relação a um membro do mesmo sexo ou do sexo oposto"
(1034). Como se vê, a introdução do conceito de 'comportamento sexual
tipicamente masculino', permite a determinação de um comportamento não
especificado baseado no género da pessoa para quem o indivíduo se orienta
sexualmente. Orientação sexual e género rebatem-se um sobre o outro já a
orientação sexual assenta em características biológicas específicas das
identidades masculinas e femininas.
Na 'década do cérebro', embora os modelos neuronais se tenham tornado um
pouco menos rígidos e deterministas, procurando dar conta da influência da
da experiência na organização e função no cérebro, o pre-conceito da
feminização do homossexual permanece.
Repare-se que o quadro de referência geral aceita uma primeira dicotomia e
hierarquia entre comportamentos de homens e mulheres e é nesse contexto que
introduz a dicotomia entre comportamentos sexuais típicos masculinos – os
orientados para as mulheres – e outros não típicos – os orientados para
homens. É, posteriormente, que refere os papéis mais 'femininos' (o lado
receptivo do ser penetrado) entre homossexuais, o que me parece inevitável,
independentemente da existência de práticas concretas muito diversas e de
práticas semelhantes com parceiros de sexos diferentes , uma vez a lógica
do seu quadro conceptual depende fortemente da bipolaridade das categorias
de género.
Numa entrevista na revista Discover, LeVay afirma:

I am saying that gay men have a woman's INAH 3 -- they've got a woman's
brain in that particular part. In a brain region regulating sexual
attraction, it would make sense that what you see in gay men is like what
you see in heterosexual women. But people get nervous, as if I'm painting
gay men as women in disguise. (Nimmons 66)

Lembremo-nos que LeVay escolhe, em parte, esta área do cérebro para o
estudo das causas das diferenças sexuais nos humanos porque, diz , os
estudos com outros animais nos dão garantias de resultados mais fiáveis do
que os obtidos noutras áreas, fora (psicologia) e dentro da biologia
(estudos cromossómicos, de estruturas do cérebro, etc.) Ora se olharmos
para esses estudos, o que se nota é que o comportamento sexual masculino
típico, leia-se, o comportamento heterossexual, se define pelo montar das
fêmeas pelos machos. Ora o 'montar' não é, em qualquer caso, característico
do sexo, nem do que monta nem do que é montado, pois todas as combinações
são possíveis e podem ser observadas (Bleir 87, 174). Para todos, as
fronteiras entre categorias de comportamento masculino e feminino são
fluidas. Mas se ninguém contesta estas observações, a análise do seu
significado é a maioria das vezes omitida ou mesmo reprimida. Nesses
estudos vimos também que o 'drive' sexual é equacionado com a masturbação.
Por tudo isto podemos perguntar o que é finalmente esse tal comportamento
tipicamente masculino gerado pela variabilidade de tamanho de uma dada
região do cérebro. A atracção pelas fêmeas? A penetração? Estas
características não são boas candidatas, pois não sabemos em relação a quê
ou a quem se está a falar quando se fala de semelhanças e diferenças.
Outro problema de que LeVay não consegue libertar-se é o do determinismo
biológico com que ele opera, embora reconheça, por vezes, o seu carácter
restritivo, como no caso em que discute as limitações do estudo que temos
vindo a analisar. Aí, ele explicita que os seus resultados não permitem
dizer se o tamanho dos grupos celulares cerebrais estudados são causa ou
consequência de um certo comportamento sexual ou mesmo se existem variáveis
mediadoras.
Parece-lhe, no entanto, mais provável que seja no substracto biológico que
se aloje a causa e, de qualquer maneira, esta limitação não apareceu como
suficientemente importante para acautelar as proposições do estudo nem
impedir a sua publicação e publicitação.
Na lógica argumentativa dos artigos científicos aceites pela comunidade, as
limitações do estudo, são, de certo modo, exteriores à validade do mesmo,
sobretudo se ele vai no sentido das crenças dominantes e que estão longe de
serem meramente científicas. Por vezes, é o próprio LeVay que afirma a
necessidade de proceder a algumas 'simplificações' para que a ciência
avance, ou seja, nuns casos, mais do que noutros, é necessário esticar as
fronteiras da validade científica.

Até onde, perguntamos. Quem e como se decide?
Fará o determinismo parte dessas 'simplificações' necessárias para que a
ciência avance? É por isso que ele é tão recorrente? A sua 'eficácia'
pesará muito mais que as 'limitações' que impõe e que ficam
convenientemente esquecidas na hora da proclamação dos enunciados e do seu
uso em contextos sociais?





2. O gene gay e a sociobiologia

A problemática do 'gene gay' entra no campo dos estudos sobre a sexualidade
humana pela mão de geneticistas como Dean Hamer e pela mão de especialistas
de um certo tipo de evolucionistas, nomeadamente, Wilson e Dawkins – os
arautos da sociobiologia.
Dean Hamer, em particular, procurou, no estudo do DNA, encontrar algumas
respostas às dificuldades encontradas nos estudos sobre as relações entre a
fisiologia do cérebro e os comportamentos sexuais.
Muda-se de campo, procura-se novo substracto biológico mas continua a
procurar-se encontrar algo de biológico que explique não apenas, não
sobretudo, um problema científico, mas um fenómeno social que continua a
ser problemático. Por razões que, como vimos, até podem ser opostas, a
naturalização aparece simultaneamente como um caminho promissor para o
apaziguamento e controlo sociais relativamente a uma minoria no mínimo
incómoda.

E hoje, de facto, o gene aparece como o melhor candidato onde enraizar
esse problema. Dadas as orientações dominantes no estudo da genética
molecular e biomedicina, temos aqui um terreno credível que dá uma
expressão aparentemente nova ao inatismo e ao essencialismo, uma nova força
àquilo que a ideologia dominante e o senso comum, no fundo, já sabem. O
resultado ideal seria, pois, a identificação de um gene, ou mais
precisamente, de um alelo, um de entre um conjunto de alternativas
possíveis, encontrado num sítio específico do genoma de homossexuais
certificados. [6]

A problemática do 'gene gay' entra no campo dos estudos sobre a sexualidade
humana pela mão de geneticistas como Dean Hamer e pela mão de especialistas
de um certo tipo de evolucionistas, nomeadamente, Wilson e Dawkins – os
arautos da sociobiologia.
Dean Hamer, em particular, procurou, no estudo do DNA, encontrar algumas
respostas para dificuldades encontradas nos estudos sobre as relações entre
a fisiologia do cérebro e os comportamentos sexuais.
Muda-se de campo, procura-se novo substracto biológico mas continua a
procurar-se encontrar algo de biológico que explique não apenas, não
sobretudo, um problema científico mas um fenómeno social que continua a ser
problemático. Por razões que, como vimos, até podem ser opostas, a
naturalização aparece simultaneamente como um caminho promissor para o
apaziguamento e controlo sociais relativamente a uma minoria no mínimo
incómoda.
E hoje, de facto, o gene aparece como o melhor candidato onde enraizar
esse problema. Dadas as orientações dominantes no estudo da genética
molecular e biomedicina, temos aqui um terreno credível que dá uma
expressão aparentemente nova ao inatismo e ao essencialismo, uma nova força
àquilo que a ideologia dominante e o senso comum, no fundo, já sabem. O
resultado ideal seria, pois a identificação de um gene, ou mais
precisamente, de um alelo, um de entre um conjunto de alternativas
possíveis, encontrado num sítio específico do genoma de homossexuais
certificados. [7]
Bem à maneira do geneticista, o bébé teórico de Hamer tem uma dupla
ascendência. Tem, por um lado, uma linhagem que se situal ao nível
molecular e se relaciona com uma característica funcional singular do
cromossoma x. Como se sabe, o homem tem um único cromossoma x, enquanto que
a mulher tem um par. Na formação de um macho vamos pois encontrar um
cromossoma x, herdado da mãe, que se acopula com um cromossoma y herdado do
pai. Acontece que este cromossoma X tem várias anomalias que não se
expressam no caso da fêmea devido à presença de uma contra-parte natural
situada no sítio genómico em questão e que é inexistente no macho. Não será
ele então o lugar natural para procurar variações possíveis e,
nomeadamente, o 'gene da homossexualidade masculina'?
Do outro lado, a linha de parentesco situa-se no plano dos estudos sobre
populações que mostraram, em particular, haver uma certa marca hereditária
associada à homossexualidade.
Com base neste conhecimento, Hamer realizou estudos com grupos de elementos
ligados entre si por parentesco, incluindo gémeos, verdadeiros e não
verdadeiros e outros por parentescos mais remotos, pertencentes e não
pertencentes à linhagem maternal, para tentar ver se o factor genético que
predispõe para a homossexualidade é transmitida pela mãe no cromossoma X,
como previa.
Num desses estudos com 40 pares de irmãos homossexuais, Hamer e seus
colaboradores conseguiram identificar um marcador na região q28 do
cromossoma X comum em 83% dos casos (33 casos). [8]
Embora este tipo de estudo não tenha dado resultados semelhantes no caso de
mulheres homossexuais e a sua replicação no caso dos homens não tenha dado
resultados positivos, este caso foi visto como o necessário e suficiente
para se poder afirmar a base genética da homossexualidade. Repare-se que,
mesmo que se considere esta experiência como suficiente, ela nada nos diz
sobre a influência de um suposto 'gene gay' nos homossexuais em geral. A
sua existência dirá quanto muito que, para alguns homens, a probablidade de
uma predisposição para crescer homossexual é maior. Isto para já não falar
na inexistência nesta, como noutras experiências, de um indicador fiável da
homossexualidade.
Nada disto impediu que a recepção ao trabalho de Hamer fosse ainda mais
positiva que ao trabalho de LeVay quer por parte da comunidade homossexual
quer por parte da sociedade em geral.

Mesmo antes de Hamer aparecer em cena o conceito de gene gay já tinha
aparecido nos debates da sociobiologia. Esta, com aparecimento público
desde a publicação do livro Sociobiology de Edward O. Wilson em 1975, nunca
deixou de gerar enorme concrovérsia. Os seus anos de ouro situam-se, no
entanto, na década de noventa, extremamente receptiva ao seu revivalismo
de um Darwinismo social e retomar e à re-introdução do conceito de natureza
humana, agora inscrita na biologia e sujeita aos processos evolutivos.

Como não pode deixar de ser, a homosexualidade sempre apareceu como uma
peça incómoda no puzzle da sociobiologia, dada a dificuldade em explicar a
persistência na população humana de um gene com uma função reduz a
propensão reprodutiva dos seus descendentes. A melhor resposta encontrada
até agora tem pouco a ver com a realidade mas permite manter intocável a
lei reprodutiva, ao mesmo tempo que 'descobre' a funcionalidade de um gene
à partida condenado ao desaparecimento. Sem dúvida influenciada pelos
estudos de Wilson com insectos, a sociobiologia continua a afirmar a
existência de um traço genético da homossexualidade em ambos os sexo e
explica a possibilidade da sua permanência e, portanto, dos homossexuais
pela sua função coadjuvante na criação das gerações seguintes. No entanto,
mesmo que esta explicação tivesse alguma credibilidade real, ela sugere,
pelo menos, que em famílias com elementos homosessuais, haverá outros
membros que se encarregarão de uma maior procriação por forma a assegurar a
eficácia reprodutora, o que nenhuma observação veio corroborar. ela não vem
responder à questão da necessidade de maior procriação em famílias com
membros homossexuais para cobrir o deficit dos nascimentos que estes
provocam. Os próprios sociobiólogos não se sentem muito à vontade com este
tipo de resposta e preferem passar ao lado da consideração deste e doutros
comportamentos[9] que resistem à explicação evolutiva funcionalista, onde a
função reprodutiva aparece como motor exclusivo.

3. Naturalização e moralização

Podíamos multiplicar os exemplos de estudos desta procura de explicações
biológicas para a homossexualidade. Procurámos com estas mostrar que a sua
análise dá muitas vezes conta de premissas e enquadramento conceptual
questionáveis, de planeamento de experiências frágeis e de erros na
manipulação e interpretação dos dados. Este tipo de análise é sempre um
trabalho moroso mas que se nos afigura necessário para questionar a própria
ciência sobre afirmações, para mostrar como ela distorce e viola as suas
próprias regras por razões que têm pouco de científico
Não o tomemos, no entanto, como uma validação da relevância e do interesse
deste tipo de trabalhos para a compreensão de algo construído como fenómeno
biológico e interpretado como um problema social que a ciência poderia vir
ajudar a resolver, servindo como base de regras normativas de acção, por
muito positivas que ela nos pareçam ser.
A própria importância da correcção dos erros científicos e da reposição da
verdade, no domínio que é o seu, necessita de ser justificada. Fomos
dando pistas para essa justificação sem que ela aparecesse explicitada.
Apesar das implicações legais e politicas que a descoberta de uma base
biológica para a orientação sexual levanta, há outras questões sociais que
não se podem ignorar. Entre elas, juatamente, a que nos leva a pensar que
a homossexualidade precisa de uma explicação biológica. Se uns vêem na
'naturalização' uma base para a não descriminação, outros lêem nela a forma
de mais uma patologização da homossexualidade e, em particular, um defeito
(erro?) genético (Kevle). A heterossexualidade não precisa de ser
explicada. Um heterosexual pode ter muitos erros genéticos mas não esse.
Mesmo que não reproduza, mesmo se existem expressões comportamentais suas
sem fiz reprodutivos.
Por questionar fica também o dimorfismo. Ora é neste quadro, como vimos,
que se definem os traços típicos da masculinidade em homens com cérebros
programados para serem atraídos por mulheres, tendo as mulheres, por
arrasto, cérebros programados para sentirem atracão por homens. É dentro da
mesma lógica os homossexuais masculinos não podem senão ter uma programação
errada, a feminina e, por arrasto, as lésbicas uma programação masculina.
(Byne). Temos, pois, à partida, uma categorização binária sexista onde
estão inscritas pressupostos sobre a sexualidade assente em atitudes
socializadas e heterocêntricas sobre a polaridade de géneros. Ora, como
diz Byne,

Sexual orientation is not dimorphic; it has many forms. Different people
could be sexually attracted to men for different reasons. The conscious
and unconscious motivations associated with sexual attraction are diverse
even among people of the same sex and orientation. . . . Indeed, the
notion that gay men are feminized and lesbians masculinized may tell us
more about our culture than about the biology of erotic responsiveness.

Se alargamos agora o campo das inferências possíveis deste modelo de
sexualidade, não podemos senão concluir que, nos actos sexuais entre
parceiros homossexuais só um deles pode ser homossexual. De facto, se todos
estes actos reproduzem o modelo heterossexual com dois elementos dimórficos
– proverbialmente, o homem assertivo e a mulher passiva, o penetrador e o
penetrado, o que fica por cima e o que fica por baixo, só um pode ser do
sexo errado. E não será por acaso que geralmente se escolhe aquele que toma
a posição da mulher para parceiros masculinos e a que usurpa o lugar do
macho no caso da homosexualidade feminina. No fundo, imaginando que tudo
se passa sempre assim (o que, em qualquer caso, é mais do que duvidoso),
são esses que não ocupam o lugar próprio. Mesmo para biólogos, esta
conclusão não deve fazer muito sentido.
O geneticista Walter Bodmer, que não deixa de trabalhar de uma perspectiva
heterocêntrica, prefere considerar como hipótese que, "as preferências
sexuais cobrem um largo espectro" e que entre o exclusivamente homossexual
e aquele que só acha atraentes membros do sexo oposto, existem várias
possibilidades. " [A] ideia de termos um único gene que controla reacções
que podem variar tão amplamente é ridícula" diz ele. Repare-se que a sua
descrição da bissexualidade assenta no modelo dimórfico heterossexual. Um
bissexual é um heterossexual com episódios homossexuais. Não fala em
homossexuais com episódios heterossexuais. A orientação sexual, diz ele,
referindo-se aos homens, é um identidade polarizada entre opostos bem
definidos.
Byne, por seu lado, no debate sobre as influências da biologia na
orientação sexual, formula uma questão que já aqui ecoou e que gostaria de
citar, uma vez que se trata de um biólogo:

Perhaps more important, we should also be asking ourselves why we as a
society are so emotionally invested in this research. Will it--or should
it--make any difference in the way we perceive ourselves and others or
how we live our lives and allow others to live theirs? Perhaps the
answers to the most salient questions in this debate lie not within the
biology of human brains but rather in the cultures those brains have
created.

Apesar da insistência Darwiniana no acaso dos processos evolutivos, os
discursos evolutivos estão longe de terem erradicado a teleologia e a
crença de que a evolução individual e colectiva tende para perfectibilidade
assim como as sociedades modernas tendem para o progresso.
Apesar de a maioria dos biólogos ter abandonado o vitalismo, há alguns,
nomeadamente os influenciados pelo trabalho de Prigogine, insistem na
existência de processos naturais auto-organizadores e pressupõem que o
avanço para a complexidade organizativa é uma tendência universal muito
próxima de uma lei. Não é esta uma expressão moderna que justifica a
superior dos homens sobre os outros animais?
Com esta visão teleológica aparece a tendência para a moralização da
natureza como o mostram as tendências dominantes da chamada ciência
sexologia
Num processo paradoxalmente semelhante ao teologia cristã, a biologia tem
tendência a identificar normas e hierárquicas. Mesmo antes da sexologia, a
orientação sexual já fazia parte da agenda escondida da biologia. O plano
cósmico já não seria religioso mas a dualidade, a hierarquia, a norma
permaneceram. Não há Deus, não há uma finalidade cósmica mas o imperativo
da procriação mantém-se como uma parte essencial da lei natural.

Quer emanando de uma lei divina, quer de uma lei natural, o sexo marital é,
pelo menos até ao século 17, visto como expressão de um 'estado da natureza
original'. Posteriormente, com a industrialização e urbanização das
sociedades, este tipo de leis torna-se extremamente frágil dando margem ao
aparecimento de um novo cepticismo em relação à moralidade e à lei. A
sexualidade tornou-se um aspecto mais visível do mundo social. A esta maior
visibilidade veio corresponder uma necessidade de encontrar novas formas de
controlo da ordem social. Aparecem então os profissionais da investigação
da sexualidade com uma nova abordagem categórica do sexo. Se já não é
possível fazer apelo a uma instância transcendente para justificar a
justeza da lei humana é necessário manter os grandes pilares que sustentam
a ordem social e encontrar outras formas de legitimação. A biologia e a
medicina, em particular, a psiquiatria trespassada pelos avanços a
bioquímica, tornam-se fontes priveligiadas de autoridade legitimadora. Por
métodos cada vez mais tecnológicos, vão levar-nos, de regresso, à
normatividade do natural de que descobrem os segredos. Certas das normas,
têm agora também modos mais eficazes e benignos de intervenção e tratamento
dos desvios, não provocados pela maldade ou extravio dos indivíduos mas
pelos erros de uma natureza não perfeita. Ou então pela ignorância dos
homens que os leva a pensar que podem inventar-se fora desse substrato
natural, sem atender ao que ele dita. Porque este já não se deixa ver nem
compreender directamente, é necessária a mediação dos que têm modos de a
saber e mais ainda de a aperfeiçoar.
A ciência reclama ter a ver com o que é, para além da aparências e
emancipada da imaginação mitológica e da autoridade religiosa. A
modernidade rejeita narrativas que interpretamos como representações de um
eterno presente. Contra tempos, tradições e culturas que se nos afiguram
estáticas, prezamos a mudança, sinal onde lemos o progresso e o caminho da
perfectibilidade humana. Esquecemo-nos, convenientemente, da multiplicidade
de possibilidades abertas nesses tempos que nós congelamos na memória da
história. Partidários da criatividade, suspeitamos da imaginação, da sua
fuga da realidade, da invenção de seres do extra-ordinário que hoje
relegamos para os sonhadores, poetas, seres fora da sociabilidade,
potencialmente nocivos pela sua inutilidade positiva. O progresso, a
mudança de que fala a modernidade, emerge da descrença da durabilidade do
que construímos, da consciência de que coisas e acontecimentos, à medida
que avançamos no conhecimento e no seu controlo, vão sempre à nossa frente
e que irão inevitavelmente refutar o que pensávamos significar a verdade.
Mudamos os factos, mudamos os significados e por isso pensamos que
abandonámos vellhas verdades e avançámos para novos paradigmas. No entanto,
muitas vezes, apenas mudaram os narradores e os modos de contar que
reconstroem uma mesma história do que chamamos realidade – a verdadeira
realidade.
Gostaríamos de poder dizer que vencemos todos os demónios e tudo o que
tomamos como empecilho para o trabalho da razão objectiva. E não podemos
senão ficar frustrados quando se continua a demonizar pessoas com
categorias limitativas e taxonomias reguladoras. Mas onde procurar a norma
quando o ideal já não está nem para lá de nós, nem atrás de nós mas vai à
nossa frente?
Se voltarmos à questão que nos ocupa aqui, encontramos mesmo uma entidade
que vai, no fundo, ser tão imutável, como aquelas que pensávamos ter
deixado para trás e que é um sintoma que a história que agora se conta em
regime discursvo científico é assustadoramente parecida com as que se
contavam em tempos antigos. De facto, para lá da diferença do modo como é
dita, de que se quer falar quando se vai buscar o termo de natureza humana,
tão caro à psicologia evolutiva? Não está esta entidade regulada sempre
pelas mesmas leis, atravessando tempos e culturas?
Relendo, de novo, os trabalhos de Levay, Hamer, Wilson, etc. não é no que
escolhem como representativo no presente que lêem o que sempre foi, em
qualquer lugar?
Ao inferir de observações actuais aquilo que identifica como o
'comportamento tipico' dos machos, Levay não pretende limitar-se a uma mera
descrição particularista mas encontrar a norma da masculinidade em geral.
De modo semlhante, e com todas as limitações já apontadas, Hamer procura a
localização que desde sempre terá estado na base genética da
homossexualidade.

A ciência não se dá bem com ambiguidades e o determinismo e o
heterocentrismo são geralmente apresentadas como simplificações necessárias
e válidas para o seu desenvolvimento, descartando o que se diz serem
variações anómalas sem relevância estatística. Isso não a inibe, por outro
lado, de construir categorias de que se serve para delimitar grupos a que
atribuí características, por defeito, geralmente. O que não é normal, não
natural, é outro e, mesmo, o Outro. E este outro, assim definido, que
começou por ser descartado, torna-se objecto de fascinío que a ciência, bio-
ou psi-, quase compulsivamente disseca. Entretanto, acolhe, sob a sua
bandeira, os mais diversos aliados que acorrem por razões morais,
religiosas e ideológicas que os cientistas não ignoram. Estranhamente, o
estudo dessas razões geralmente não os atrai. Preferem especular sobre
modos 'não-naturais' de levar os anómalos à normalidade

'If we have the gene and the protein it makes, it would be only logical
to think about a biochemical intervention that could return a person to
the 'standard' [heterosexual] orientation." (Burr, 1995 )


Fora de outro qualquer tipo de considerações, não se trata de rejeitar a
ciência e as relações existentes entre o bios e a homosessualidade. Não
aceitar o debate dentro desta lógica significa sobretudo não aceitar a
atribuição e/ou identificação com um termo – homossexualidade – que vai
cobrir uma enorme variedade de comportamentos e identidades sobre os quais
ele é mudo e tão ambíguo como foi (e persiste) o mal fadado termo 'raça'. O
que é que se trata de explicar, justificar ou condenar? O que é que os
movimentos gay pedem que a 'sociedade' aceite? O que é que é problemático:
a homossexualidade ou a homofobia?

A ciência explica, intervém. Nós limitamo-nos a viver ... uns com os
outros. Mas não somos os objectos/sujeitos da sua construção, um problema a
ser tratado e resolvido.



Referências
Allen, L. S., M. Hines, J. E. Shryne, and R. A. Gorski (1989). "Two
Sexually Dimorphic Cell Groups in the Human Brain." Journal of Neuroscience
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Bauer, J. E. (2004). Hirschfeld, Magnus (2006) glbtq: An Encyclopedia of
Gay, Lesbian, Bisexual, Transgender, and Queer Culture. May 22, 2006.

Bodmer, W., McKie , Robin (1994). The Book of Man: The Human Genome Project
and the Quest to Discover Our Genetic Heritage. NY, Scribner.
Byne, W. (1994). "The Biological Evidence Challenged." Scientific
American(May 1994).
Chandler, B. (1995). "The Destiny of You: Once a Gay Gene Is Found, Can
Gene Therapy Be Far Behind?" The Advocate(December 26, 1995).
Ellis, H. (1929). Sex in Relation to Society. 1929. Filadelfia, Davis. 6:
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Fausto-Sterling, A. (1985). Myths of Gender: Biological Theories about
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Hamer, H, P. C. (1998). "Living With Our Genes." NATURE MEDICINE 4(11):
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Hubbard, R., Lewontin, RC (1996). "Pitfalls of Genetic Testing." N Engl J
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Kennedy, H. (1988). Ulrichs: The life and works of Karl Heinrich Ulrichs,
pioneer of modern gay movement. : . Boston, Alyson.
Kevles, D. (1995). "The Gay Brain." New Yorker(April 3, 1995).
LeVay, S. "A Difference in Hypothalamic Structure betweeen Heterosexual and
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Lewontin, R., Gould S.J., Kamin, Leon J., Ed. (1984). Not In Our Genes.
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Spanier, B. (1995). "Biological Determinism and Homosexuality." NWSA
Journal 7.









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[1] Ver "Researchers find a biological explanation for biology" (2005),
blog Bobvis (http://bobvis.blogspot.com/2005_05_01_bobvis_archive.html) .
Não se percebe bem então o que é a aprendizagem já que esta está também
associada a modificações cerebrais.

[2] Ver Kennedy, H. (1988). Ulrichs: The life and works of Karl Heinrich
Ulrichs, pioneer of modern gay movement. : . Boston, Alyson.
[3] Ver Bauer, J. Edgar sobre Magnus Hirschfeld em glbtq: An Encyclopedia
of Gay, Lesbian, Bisexual, Transgender, and Queer Culture
(http://www.glbtq.com/social-sciences/hirschfeld_m,3.html#bibliography


[4] ver Turing, A in http://www.glbtq.com/social-sciences/turing_a.html

[5] Como se sabe o hipotálamo é um orgão localizado no cérebro inferior,
comum a todos os mamíferos, estreitamenteo associado à glândula pituitária
e com uma. função chave no controlo da secreção hormonal que governa o
ciclo dos esteroides.
[6] O modo de certificação não se explicita, claro. É certificado como se
certifica a cor dos olhos? Como se determina a existência de um cancro? Da
esquizofrenia? Do sexo?
[7] O modo de certificação não se explicita, claro. É certificado como se
certifica a cor dos olhos? Como se determina a existência de um cancro? Da
esquizofrenia? Do sexo?
[8] A hipótese nula seria correspondente a 50% dos casos.
[9] Entre estes podemos incluir o suicídio, o riso, a experiência
estética, a contemplação.
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