Honra, rito, injúria e solidariedade em questão

June 5, 2017 | Autor: M. Cândido da Silva | Categoria: Medieval Studies, Johan Huizinga
Share Embed


Descrição do Produto

Honra, rito, injúria e solidariedade em questão

Marcelo Cândido da Silva

Professor de História Medieval da Universidade de São Paulo (USP); Pesquisador do CNPq; Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME).

A chama do ódio e da violência arde vigorosamente, a injustiça reina, o demônio cobre com asas negras a terra em trevas. Todos esperam o fim iminente do mundo” (J. Huizinga, O Outono da Idade Média).

O tema da decadência da Idade Média e do despertar do mundo moderno é a matriz de uma produção bibliográfica abundante desde o século XIX. Seguramente, O Outono da Idade Média - que a Editora Cosacnaify publicou no Brasil em sua versão original e integral - não é um desses livros, por mais que as frases em epígrafe deixem transparecer o contrário. E apesar também do título da obra sugerir, a uma primeira vista, senão o declínio de uma “civilização” (para usar um termo ao qual o autor recorre várias vezes), pelo menos o prenúncio desse declínio. A primeira tradução francesa, aliás, insiste nessas ideias de declínio e decadência [Le déclin du Moyen Âge (Paris: Payot, 1932)] que não estavam no horizonte do autor; o equívoco é corrigido na edição de 1975, precedida de uma entrevista com Jacques Le Goff (Paris: Payot, 1975). As duas frases aqui citadas em epígrafe são menos uma constatação a respeito daquilo que os séculos XIV e XV “realmente foram” do que uma descrição do clima de pessimismo que, embora presente naqueles tempos, não os definem inteiramente. Pois a história, na perspectiva de Johan Huizinga († 1945), consiste na compreensão, não apenas das condições reais de vida, mas também da maneira como elas são sentidas e expressadas pelos indivíduos, o que faz dele, para alguns, uma espécie de precursor da "história das mentalidades". A atribuição é, certamente, exagerada, e está muito aquém da pluralidade temática e conceitual de sua obra. Ainda que ele se dedique neste livro às formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV, não atribui uma importância menor à "vida" e à "realidade": esses também são temas recorrentes em O Outono da Idade Média. Ele se preocupa com as consequências sociais dos ideais de vida, com o mundo que se oculta atrás das formas e, mais curioso ainda, dentro delas. É capaz de constatar que as glórias cavaleirescas, seu estilo e cerimônias, não passam de vã ilusão, de um teatro esplêndido e, no entanto, sincero; e, ao mesmo tempo, afirmar que a história tem a ver tanto com os sonhos de beleza e com a ilusão de uma vida nobre como com o 1

recenseamento e os impostos. Em suma, é um autor prolífico, que se interessa pela função social do jogo, pelo problema da paz na época contemporânea, pela história social da arte, pela crise da civilização, ou ainda, pela biografia de Erasmo de Roterdam. Seria igualmente redutor ver em Huizinga um herdeiro do Romantismo, em que pese a sua admiração por Jules Michelet († 1874), a sua visão acerca de uma Idade Média marcada pela exuberância cavaleiresca ou o seu estilo de escrita repleto de efeitos retóricos. Em O Outono da Idade Média, vemos que a vida e as emoções e formas a ela ligadas nem sempre estão em compasso, e, por vezes, entram em conflito. Apenas essa ideia já seria suficiente para afastar o seu autor de um Michelet e da tradição romântica. Huizinga se distancia do historiador francês também por outra razão: em 1855, este último escrevia sobre o “estado estranho e monstruoso, prodigiosamente artificial, que foi a Idade Média…”. A definição é categórica e sem nuanças. Em sua História da França, mais precisamente no prefácio ao volume sobre o Renascimento, Michelet descreve os séculos XIV e XV como uma época na qual “o dia se põe horrivelmente”. Trata-se, aliás, de um pessimismo que contrasta com a visão do mesmo autor no volume sobre a Idade Média da História da França. Nesse prefácio, Michelet explica as razões de sua mudança de opinião. Em primeiro lugar, as esperanças dos séculos XII e XIII teriam se transformado em desilusões ao longo dos séculos XIV e XV. Ele resume esse sentimento através de algumas fórmulas de impacto: o terrorismo entra na Igreja, e a fecundidade se retira; as comunas fracassam, o indivíduo se enfraquece; a matemática, séria no século XII, torna-se uma vã astrologia; a química, ainda sensata em Roger Bacon, torna-se uma louca alquimia. A segunda razão apontada pelo historiador francês para explicar sua mudança de perspectiva é que, através do estudo do Renascimento, ele teria compreendido da verdadeira natureza da Idade Média. Esse confronto entre a Idade Média e o Renascimento também está no cerne das preocupações do autor de O Outono da Idade Média, mas sua descrição tanto dos séculos XIV e XV quanto da relação do mesmo com o Renascimento são um misto de pessimismo e de esperança. Para ele, o final da Idade Média é um período no qual antigas formas de civilização morrem, enquanto, ao mesmo tempo, e no mesmo solo, o novo encontra alimento para florescer: afinal, teria sido em meio ao jardim do pensamento medieval, entre o crescimento exuberante das sementes antigas, que o classicismo desenvolveu-se gradualmente. Essa coexistência entre o novo e o antigo em um mesmo período e, sobretudo, em um mesmo espaço (a França e os Países Baixos), resulta numa descrição dos séculos XIV e XV que em nada lembra as

2

numerosas obras dedicadas à “decadência da Idade Média”, e isso torna difícil tentar classificar Huizinga como um adepto da “continuidade” ou como um partidário da “ruptura” entre Idade Média e Renascimento. Há em seu texto um movimento pendular entre o otimismo e a resignação que talvez reflita as suas próprias angústias face aos dilaceramentos da segunda década do século XX. Quaisquer que tenham sido essas angústias, o choque da Primeira Guerra não parece ter criado nele alguma espectativa em relação ao fim iminente do mundo, ou em relação à decrepitude do mesmo. Ele certamente não é um "decadentista", e isso fica claro quando afirma, em um ensaio autobiográfico publicado postumamente, em 1947, que a firme convicção de Spengler quanto ao declínio da civilização convenceu-o de que ele próprio tinha alguma esperança. Seu pouco apreço pelo tema da decadência transparece nessa avaliação da civilização do final da Idade Média como uma árvore com frutos muito maduros, completamente desenvolvida ou, em outras palavras, como o fervilhar de formas de pensamento antigas e coercivas em lugar do germe vivo do período histórico seguinte, o fenecimento e o enrijecimento de uma civilização. O Outono da Idade Média é um livro difícil de ser avaliado segundo essas duas categorias - “continuidade” e “ruptura” - que povoaram e ainda povoam os escritos de inúmeros historiadores do final da Idade Média, da mesma forma que o próprio debate historiográfico acerca do período. Nesses escritos, só há espaço para a crença na continuidade (bastante minoritária, diga-se de passagem, até o triunfo historiográfico da "Longa Idade Média"), ou na sua antítese, que, sob a influência de especialistas de história da arte ou de história econômica, viam no século XVI uma época radicalmente distinta daquela que a precedeu (o tão longo quanto árido debate entre Maurice Dobb e Paul Sweezy é uma das melhores ilustrações desse ponto de vista). Havia ainda os partidários de uma espécie de via media, na qual a Modernidade era o fruto de graus semelhantes de recuperação do legado medieval e de inovação em relação a ele, como se as sociedades se comportassem como compostos químicos com um equilíbrio mais ou menos perfeito entre os seus componentes. Não há nada disso em O Outono da Idade Média. O historiador holandês vê a sede de glória e de honra do Renascimento como resultante das aspirações cavaleirescas de origem francesa, da honra estamental levada ao máximo, despojada do elemento feudal e fecundada pelo elemento clássico; e nas próprias mentes renascentistas, ele crê que os traços medievais estão sulcados muito mais profundamente do que se normalmente se acredita. No entanto, em O Outono da Idade Média, encontramos

igualmente uma distinção entre o “medieval” e o

“moderno”. Há uma oposição entre o profundo pessimismo em relação às coisas

3

terrenas dos séculos XIV e XV e o otimismo do século XVI, o ânimo fundamental do Renascimento e do Humanismo. Huizinga também identifica na avareza do final da Idade Média um caráter imediato, passional e exasperado que, segundo ele, teria se perdido nos tempos posteriores, quando o Protestantismo e o Renascimento deramlhe um conteúdo ético: ela teria sido a partir de então legalizada como fator de prosperidade, perdendo seu estigma na mesma medida em que perdeu prestígio o desdém pelos bens terrenos. De um modo geral, predomina acerca dos séculos XIV e XV uma visão repleta de nuanças, onde o elemento "medieval" e o elemento "moderno" convivem lado a lado, sem que o autor se preocupe em definir muito claramente . Assim, apesar da caça às bruxas, por exemplo, o final da Idade Média não estaria entregue de forma tão desamparada a toda magia e paranóia, considerando a credulidade geral e a falta de pensamento crítico. As superstições coexistiriam com as manifestações de dúvida e as opiniões racionais. O historiadores estão pouco habituados a lidar com os contrastes e com os paradoxos, em suma, com tudo o que foge ou parece fugir aos modelos explicativos consagrados. Tudo no horizonte de visão do historiador (e às vezes o que está também além dele!) é frequentemente o objeto de tentativas de homogeneização, resumo e explicação, restando pouco espaço para os elementos que escapam à regra, ao entendimento e a uma explicação minimamente racional, o que torna às vezes esses elementos ainda mais paradoxais do que jamais seriam se não tivéssemos projetado sobre eles os nossos instrumentos de análise. Embora utilize a ideia do "espírito de uma época", Huzinga lida muito bem com as discrepâncias, com as contradições, com os limites de compreensão do objeto do conhecimento. Ele sabe que as ideias podem ter consequências sociais ativas, como também podem ser nada mais do que um espelho moral (é tentador escolher de maneira exclusiva uma ou outra possibilidade, é bem mais difícil reconhecer que os limites que as separam são bem mais tênues do que imaginamos); que o anseio por uma vida mais bela é também uma máscara atrás da qual um mundo de ganância e violência podia se ocultar. Se há um pessimismo em O Outono da Idade Média, ele se encontra na constatação de seu autor de que somente um reflexo causal pode fazer com que vejamos novamente com toda clareza o significado apaixonado de algumas das formas culturais que estudamos: "De que adianta ler os poemas de amor e as descrições de torneios em busca do conhecimento e da representação vivida de detalhes históricos, se não pudermos ver os olhos, a luz e a sombra, sob as sobrancelhas como asas de gaivotas e as delicadas testas,

4

agora poeira por séculos, mas que uma vez foram mais importantes do que toda aquela literatura, que ficou amontoada como entulho?"

É notadamente através do foco que ele dá ao final da Idade Média como uma época de contrastes que Huizinga escapa de uma abordagem demasiadamente presa aos marcos cronológicos tradicionais ou ao imperativo teleológico: se não é uma ruptura em relação às formas de vida e de pensamento medievais, o Renascimento também não é a sua evolução natural. Nos séculos XIV e XV, tudo o que acontecia na vida seria dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Os exemplos são múltiplos ao longo do livro. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós. O pensamento religioso que, no que se refere à morte, só conheceria os dois extremos: o lamento pela perecibilidade, pelo fim do poder, da honra e do prazer, pela decadência da beleza; e, por outro lado, o júbilo da alma que foi salva. As agitações de ressentimento e rejeição contra as mais altas expressões da fé medieval estavam lado a lado com a devoção e o entusiasmo ilimitados. Os mecanismos de administração e governo já haviam assumido formas complexas, mas, no espírito popular a política ainda se materializava numas poucas figuras, simples e fixas; o imaginário político vigente era o da canção popular e do romance de cavalaria, os reis da época eram rotulados de acordo com um certo número de tipos, cada qual mais ou menos correspondente a um motivo das canções ou das histórias de aventura (o príncipe nobre e justo, o príncipe enganado por conselhos maldosos, o príncipe vingador da honra de sua linhagem, o príncipe amparado no infortúnio pela fidelidade de seus servos). Huizinga menciona a ausência dos sentimentos que tornaram nossa noção de justiça mais tímida e hesitante, ou seja, a noção de atenuantes, a noção de falibilidade, a responsabilidade social, a ideia de emendar em vez de punir: “Em vez de penas menos severas, baseadas na noção de culpa parcial, a justiça medieval só reconhece dois extremos: a punição e o perdão”.

Em um movimento pendular, os súbitos impulsos de compaixão e perdão refreariam, por vezes, a aplicação cruel da justiça. Havia também o contraste entre a vida cultural dos círculos mais altos, que quase ter-se-ia transformado completamente em teatro social, e a realidade violenta, dura e cruel. Finalmente, o contraste entre o sonho belo do ideal cavaleiresco e a realidade, que nega continuamente esse ideal; o contraste entre uma profunda religiosidade e a forte tendência para ridicularizar a devoção e os devotos. 5

Dessa ênfase no contraste, cuja raiz estaria no descompasso entre as formas de vida e a realidade, não resultou uma separação entre “ideal” e “realidade”, tal como frequentemente se viu nos estudos sobre a Idade Média. Tornou-se um lugar comum da historiografia ao longo do século XX pontuar o abismo que existia entre, por um lado, as regras de vida, as formulações teológicas, os ideais de ordenamento social e, por outro lado, os comportamentos e as reais condições de existência na Idade Média. Marcel Pacaut, por exemplo, em um livro sobre as estruturas políticas do Ocidente medieval, refere-se ao período carolíngio, graças às tentativas de ordenamento empreendidas por Carlos Magno e por seus herdeiros, como "o tempo das ilusões". É como se estivéssemos diante de dois mundos, com a diferença que o último - o do "ideal" - jamais teria "concretamente" existido. O autor de O Outono da Idade Média não enxerga dois mundos distintos: ele crê que a história da civilização tem a ver tanto com a esfera da arte quanto com os sermões, a literatura erudita, as crônicas e os documentos oficiais. O que está em jogo aqui é menos a defesa de uma “história total” do que a convicção de que as formas não são um mero adereço ou um simples verniz ideológico desconectado da vida real: captar o conteúdo essencial que repousa na forma, eis o desafio que Huizinga se impõe. Ele menciona, por exemplo, a descrição feita pelo bispo de Châlons, Jean Germain, do Congresso de Paz de Arras, em 1435: durante os discursos dos enviados as pessoas caíam no chão, sem palavras, suspirando, soluçando e chorando. E conclui: “As coisas com certeza não devem ter sido assim, mas deste modo o bispo de Châlons pensava que deviam ser: no exagero, via-se um fundo de verdade”.

Assim, o exagero da forma, tanto quanto um recurso estilístico, retrataria a exuberância desses tempos. Sua insistência na dimensão formal e estilística do exagero e da violência impõe uma reavaliação da "rudeza" dos tempos medievais, tradicionalmente vista em oposição à civilidade e à normatização da sociedade de corte. Nesse sentido, a história do "processo civilizatório" não poderia mais ser escrita como um movimento progressivo de controle das pulsões, de triunfo da regra e de cerceamento da espontaneidade, tal como acreditava Norbert Elias. Huizinga percebeu muito bem que a "espontaneidade" e a "rudeza" dos tempos medievais são também "formas" por meio das quais a vida social era constantemente encenada. Esta constatação está na raiz dos estudos sobre as emoções na Idade Média, que, a partir do final dos anos 1990, e da publicação de Anger's Past: The Social Uses of an Emotion in the Middle Ages, organizado por Barbara Rosenwein, marcaria consideravelmente os estudos medievais. Esse estudo é um claro contraponto a Elias 6

e à distinção feita por ele entre a expressão “violenta” das emoções na Idade Média e a delicada, embaraçada e vergonhosa expressão dos sentimentos na época contemporânea. O desenvolvimento do Estado monárquico e a imposição do Estado absoluto no século XVI explicariam, segundo Elias, essa transformação. Para os autores do livro organizado por B. Rosenwein, o papel importante da cólera na sociedade medieval não resultaria do fato de que seria “incivilizada”, mas, ao contrário, porque era sensitiva, adaptável e atenta às possibilidades de reajustamento. O mesmo caráter precursor pode ser observado na análise de Huizinga sobre a vingança. A propósito do assassinato, em 1407, de Luís de Orléans, irmão do rei da França, por ordem de João Sem Medo, e do assassinato deste, doze anos mais tarde, Huizinga menciona uma infindável sequela de vinganças e combates que teriam conferido a um século de história francesa um tom geral de ódio sombrio. Para ele, uma sede de vingança revestida de formas tão minuciosas era também uma manifestação da ritualização dos comportamentos: “Muitas vezes, nesses casos de vingança, não é uma ira enfurecida ou um ódio implacável que leva a tal impulso; mas o derramamento de sangue antes serve para salvar a honra da família humilhada: às vezes decidem não matar alguém e, em vez disso, trata-se de ferir deliberadamente a pessoas nas coxas, braços e rosto; adotamse medidas para evitar o peso da responsabilidade de matar o oponente em estado de pecado”.

Nessa análise da vingança há algo novo. Desde o século XVIII, e pelo menos até a primeira metade do século XX, os historiadores viram a Idade Média como um período dominado por uma violência endêmica e sem limites: é o que lemos na História da Civilização na Europa, de F. Guizot, nos Relatos dos tempos merovíngios, de A. Thierry, ou ainda no clássico O Fim do Mundo Antigo e o Início da Idade Média, de F. Lot. O longo processo de revisão do significado da violência na Idade Média começou no final dos anos 1950, graças aos trabalhos de J.M. Wallace-Hadrill, mas foi nos últimos vinte anos que esse movimento assumiu toda a sua amplitude. Os historiadores contemporâneos consideram que a violência daquele período não era necessariamente desagregadora, tampouco um sintoma da “decadência da civilização”. A Antropologia Jurídica anglo-saxã, bem como os estudos realizados na França desde a década de 1990, demonstraram que a violência também podia ser um instrumento de manutenção e mesmo de reforço dos laços sociais. Não menos importante é a constatação de que há uma dimensão ritual e

7

ordenada dos atos violentos nesse período que ficou obscurecida pela exuberância dos relatos, ou ainda pela exuberância das interpretações dos mesmos. Esse é o caminho seguido pelos estudos sobre a resolução de conflitos na Idade Média nas últimas décadas. Neles, a vingança não é mais vista como a realização de uma pulsão violenta e irracional, e sim como o resultado de códigos e normas que presidem a organização de uma sociedade. O Outono da Idade Média antecipa a importância das questões de injúria, honra, rito e solidariedade que os estudos recentes sobre a história da justiça recentemente situaram no coração do entendimento dos conflitos na Idade Média. Huizinga é, nesse sentido, um precursor, pois percebe que o espírito apaixonado e violento do final da Idade Média não era o real pressionando constantemente a forma, mas também um tipo de forma, numa época em que, para utilizar uma expressão do próprio autor, “a quebra da forma já havia se tornado uma forma”. Ao mencionar o relato de Chastellain sobre o luto de Carlos, o Temerário pela morte de Filipe da Borgonha, em 1467, Huizinga afirma: “É difícil distinguir até que ponto nesse e em relatos semelhantes estamos diante do estilo da corte, que considera adequada e elegante uma demonstração ruidosa da dor; ou de uma intensa e verdadeira emotividade própria da época”.

A rudeza dos séculos XIV e XV não significou na perspectiva de Huizinga o simples malogro do ideal. Assim como ocorria com o amor enobrecido e com a pacificação, a licenciosidade e a violência também tinham os seus próprios estilos. É diferente da abordagem que seria, alguns anos mais tarde, consagrada por Marc Bloch em seu livro Os Reis Taumaturgos. O historiador francês enxergava, pelo menos desde o início da Idade Média, uma dissociação entre as formas oficiais de representação da realeza e a “consciência popular”. Não encontramos em O Outono da Idade Média essa dicotomia tão marcada entre o "oficial" e o "popular". Pode-se dizer o mesmo dessa idealização da “cultura popular”, resquício da tradição romântica do século XIX e pedra angular do “retorno às culturas do povo” da historiografia cultural da segunda metade do século XX. No que se refere à estilização do amor, por exemplo, para Huizinga, a realidade sempre foi pior e mais crua do que a visão do refinado ideal amoroso literário, mas também era mais pura e mais reservada do que imaginava o erotismo popular, permeado pelo naturalismo. Na obra do historiador holandês, a imaginação popular está longe de ser a depositária dos verdadeiros sentimentos, da verdadeira história, tal como vemos na tradição romântica. 8

Huizinga é um desses autores cuja obra torna difícil esta operação tão corriqueira quanto artificial e que consiste em separar as velhas práticas e os velhos objetos dos historiadores ditos tradicionais dos adeptos de uma “Nova História”, com seus novos métodos, seus novos temas de pesquisa e sua nova sensibilidade face aos documentos. O autor de O Outono da Idade Média não se presta a um tal exercício, e é difícil enquadrá-lo precisamente em história da historiografia linear: ele acredita que, por mais que as formas de viver da nobreza não passassem de um verniz aplicado sobre a vida, ainda assim seria necessário que o historiador soubesse “enxergar a vida no brilho desse verniz”; ocupa-se do indivíduo, quando muitos historiadores se preocupavam unicamente dos sujeitos coletivos; concentra-se no estudo dos sentimentos e das formas, mas não considera esses sentimentos e essas formas como meros reflexos “superestruturais” da sociedade, construções ideológicas que escamoteariam o problema central das relações materiais; vê nos conflitos entre as linhagens reais do final da Idade Média não uma oposição criada a partir de diferenças econômicas entre elas, mas como o resultado de conceitos de solidariedade e honra comuns. Ele não está sozinho na crítica ao "economicismo" e à sua chave únivoca de leitura para o processo de transformação social: alguns anos antes, o sociólogo alemão Max Weber havia proposto em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo uma interpretação para a origem do moderno capitalismo ocidental, centrada não na acumulação de capital, mas no desenvolvimento de uma ética puritana do trabalho. Paradoxalmente, como um historiador do século XIX teria feito, Huizinga usa a noção de “civilização” para enquadrar o seu objeto, as formas de vida e de pensamento; opõe o “espírito de partido” ao “patriotismo”; utiliza o conceito de “primitivo” para explicar fenômenos como o pranto presente no luto das cortes francesa e borguinhã, ou ainda o realismo medieval; não deixa de manifestar certa condescendência com a “insensibilidade” daqueles tempos, que ele qualifica de “ingênua”, como ingênua também seria a “intimidade com a religião”; tampouco se furta a certos juízos de valor quando afirma: “esse é um mundo mau”. Seria redutor explicar essas afirmações apenas pela busca de um efeito literário. Há em Huizinga uma firme recusa em idealizar os séculos XIV e XV, em abordá-los em toda a sua crueza, e por mais que essa recusa tenha se expressado através de um vocabulário ancorado no século XIX ("civilização", "patriotismo", "primitivo", "espírito de uma época", etc.) e em juízos de valor que podem parecer excessivos ao historiador contemporâneo ("ingenuidade", "insensibilidade", "pueril", "superstição", etc.), ela possui o mérito de rasgar o véu da construção romântica de uma Idade Média

9

povoada pelos heróis e pelos mitos cavaleirescos. O que não é pouco neste início de século XX, e nem nos dias de hoje, tão marcados pelas tentações reconstrucionistas e pelos mitos nostálgicos construídos em torno da Idade Média. Em seu livro sobre Erasmo de Roterdam, Huizinga louva esse "grande personagem" cuja compreensão para o espírito moderno seria dificultada por dois fatores: sua influência seria mais extensiva do que intensiva; em segundo lugar, essa influência teria cessado. A análise que ele faz das formas da vida nos séculos XIV e XV é curiosamente semelhante: o tom geral de amarga melancolia que caracterizaria esse período teria cessado e dado lugar à expressão pura do otimismo do século XVI. O novo esforço consciente da arte de viver, apesar das fomas rígidas e ingênuas, seria totalmente renascentista, e nada teria de propriamente medieval. O seu objeto, os séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos, tem isso de comum com o nosso - a Idade Média -, ele é original e sua influência é cronologicamente circunscrita. Este talvez seja um dos grandes desafios dos especialistas contemporâneos da Idade Média: justificar o estudo de um período que, apesar das tentativas de recuperação genealógica ou identitária, permanece distante, definitiva e irremediavelmente morto. Este parece ser um ponto de partida mais correto do que aquele que consiste em salientar a "atualidade", seja ela positiva ou negativa, do passado medieval. As referências à Idade Média no discurso político e no discurso historiográfico contemporâneo variam desde um lugar no qual se situam todas as práticas cruéis e irracionais que superamos, ou que temos dificuldade em superar, até a caracterização de um período no qual nasceu o mundo moderno. Embora esta última ideia seja a mais tentadora, ambas se sustentam em uma abstração, a Idade Média, que ganhou a forma que conhecemos no discurso historiográfico do século XIX. Em uma entrevista de 1975, e em um artigo de 1986, transcritos no final desta edição brasileira, Jacques Le Goff e Peter Burke trazem à tona dois Huizingas. O Huizinga de Le Goff, da metade da década de 1970, é o autor que teria intuído “da necessidade de procurar o sentido de uma sociedade em seu sistema de representações e no lugar que esse sistema ocupa nas estruturas sociais e na ‘realidade’”; é também alguém cujo tema fundamental em O Outono da Idade Média seria “a íntima imbricação entre a Idade Média e o Renascimento”, e que “sabe muito bem que o problema não reside nessa divisão abstrata do tempo”; em suma, um defensor da “Longa Idade Média” avant la lettre! O Huizinga de Peter Burke é um autor cuja “obra historiográfica foi escrita para o leitor comum, tanto quanto para seus colegas de ofício”, “um homem de amplos interesses, tão largos que achou difícil assentá-los para se especializar em história, muito menos em um

10

período determinado”. P. Burke acha que não seria difícil imaginá-lo escrevendo para o History Today (poderíamos acrescentar: como o próprio Peter Burke no artigo em questão!). Esses dois Huizingas se assemelham curiosamente às perspectivas teóricas ou ao enfoque temático que Le Goff e Burke pretendiam ou ainda pretendem encarnar através de suas obras. Seria um exercício complicado saber se o historiador holandês se reconheceria nessas definições (ou seriam recuperações?). Mas isso importa pouco. Afinal de contas, poderíamos igualmente supor que o Huizinga deste artigo é alguém que toma suas distâncias em relação ao Romantismo, ao Marxismo e (aprioristicamente) à própria História das Mentalidades - e haveria nesta suposição uma certa dose de verdade. De que vale identificar as subjetividades dos outros se somos incapazes de enxergar as nossas? De qualquer maneira, a identificação dos diversos Huizingas que povoam a imaginação dos historiadores contemporâneos ilustra bem a posteridade desse autor e, mais importante ainda, sua capacidade de abordar temas e questões que se tornariam centrais para a historiografia nas décadas seguintes à sua morte. É instigante imaginar em que medida a atribuição à Huizinga da marca de “pioneiro da história cultural” pode ter aprisionado a leitura de sua obra dentro de alguns parâmetros que pertencem claramente a uma tradição historiográfica inaugurada depois de sua morte. O autor de O Outono da Idade Média era mais do que isso. Ao se centrarem unicamente no pioneiro da história cultural, os comentadores contemporâneos deixaram de lado algumas questões essenciais propostas por Huizinga. Destaque-se, por exemplo, o problema da articulação entre o simbólico e as práticas sociais. A capacidade criativa das formas é mais do que nunca um tema atual, em um momento em que antropólogos, sociólogos, teóricos do direito e historiadores questionam as fronteiras tradicionais entre as normas de vida e a construção da sociedade.

Publicado em: http://brasileiros.com.br/2010/12/honra-rito-injuria-e-solidariedade-em-questao/

11

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.