Horácio e o elogio da família de Augusto (século I a.C.). In: VI Simpósio Internacional de História: Culturas e Identidades, 2013, Goiânia. Anais Eletrônicos do VI Simpósio Internacional de História: Culturas e Identidades, 2013. p. 1-16.

May 28, 2017 | Autor: Erick Otto | Categoria: Augustan Poetry, Horace, Augustan Principate, Roman family
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HORÁCIO E O ELOGIO DA FAMÍLIA DE AUGUSTO (SÉCULO I A.C.)

Mestrando Erick Messias Costa Otto Gomes [email protected] Faculdade de História - UFG Bolsista CNPq Resumo Na obra do poeta romano Horácio (século I a.C.), encontramos uma variedade de temas, em especial o elogio aos seus patronos, Mecenas e Augusto. E seus últimos poemas, sobretudo no livro IV das Odes, o poeta possui um tom mais laudatório em relação a Augusto, elogiando o princeps de diversas formas, dentre as quais dois poemas dedicados a seus enteados, Druso e Tibério, de modo que tal elogio se estende a própria pessoa de Augusto. Sendo a poesia uma das formas de se exaltar os líderes políticos e legitimar sua posição e suas ações, analisaremos ambos os poemas para compreender as imagens formadas em torno de Augusto e sua família no contexto do início do Principado. Palavras-chave: Família, Augusto, Legitimação.

1. Introdução Nosso texto se dividirá em duas partes: primeiro, uma breve caracterização da domus romana, enfocando a domus augustana e a questão da sucessão; por fim, serão abordados dois poemas horacianos que tratam do tema da família imperial, quais sejam, a Ode 4,4 e 4,14, ambas publicadas em 13 a.C., as quais exaltam os feitos militares dos enteados do imperador, Druso e Tibério. Mas antes de adentrarmos no desenvolvimento desses temas, abordemos brevemente a importância da poesia como meio de construir e difundir uma memória política no contexto da elite de Roma. Para tanto, usaremos os próprios poemas de

Horácio para desenvolver essa questão. Na ode 3,30, Horácio escreve, sobre sua própria poesia: "Erigi monumento mais perene do que o bronze e mais alto do que a real construção das pirâmides, que nem as chuvas erosivas, nem o forte Aquilão, nem a série inumerável dos anos, nem a dos tempos corrida poderão, algum dia, destruir. Não morrerei, de todo; parte minha à própria morte não estará sujeita: eu, sempre jovem, crescerei, enquanto, com virgem silenciosa, o Capitólio suba o pontífice"1

Nessa passagem fica clara, para o poeta, a importância da poesia para a perpetuação de uma memória, haja vista que ela é um "monumento" que resiste à passagem do tempo, resiste à sua própria morte, sendo um meio pelo qual a memória dos acontecimentos e feitos seriam relegados às gerações posteriores. Afinal, a recitação e celebração de atos nobres, particularmente aqueles dos principais membros da sociedade romana, pode ser uma maneira de permanecer na memória de público. Entretanto, os textos literários realmente tinham esse efeito? Os poemas eram meios eficazes para transmitir a memória? Como eles transmitiam essa memória? É novamente em Horácio que encontramos a resposta. Vejamos o que o poeta diz na Epístola I, do livro II: "Ainda que sem vigor e sem coragem no trato com as armas, o poeta é útil à cidade, se tu concorda que as pequenas coisas podem ajudar as grandes. O poeta modela a boca tenra e gaguejante das crianças, ele afasta desde então suas orelhas de propósitos desonestos; mais tarde ele forma também o seu coração por preceitos amigos, o curando da indocilidade, da inveja e da cólera. Ele narra as belas canções, supre de exemplos ilustres as gerações que chegam, consola a pobreza do pesar" (v. 125-131).2

1

Tradição de Bento Prado de Almeida Ferraz, 2003.

2

Tradução de Gilvan Ventura da Silva, 2001.

Nota-se, nesse fragmento do poema, pelo menos dois aspectos importantes: primeiro, a importância da poesia para a formação dos jovens, que aprendem "preceitos amigos", afastando assim os vícios "da indocilidade, da inveja e da cólera"; segundo, ao cantar os grandes feitos dos antepassados, a poesia oferece exemplos ilustres, isto é, a poesia propaga uma série de ações as quais constituem um conjunto de virtudes que são caras aos romanos. Nesse sentido, podemos notar a importância da poesia para construir um conjunto de valores e propagar os mesmos através da declamação de poemas entre os jovens e entre os aristocratas, formando assim uma memória social que traz exemplos de virtudes consideradas importantes pelos romanos. Tais virtudes foram amplamente usadas por Augusto para legitimar seu governo, conforme veremos. 2. A domus augustana e a questão da sucessão imperial Uma das preocupações de Augusto foi reivindicar o papel de restaurador das antigas virtudes3, dentre elas as relacionadas à família, o que pode ser notado pela legislação referente ao casamento. A família era, na sociedade romana, tanto em reputação quanto na realidade, a unidade social mais básica. Era também a base das obrigações sociais, o meio pelo através do qual tanto o status e a riqueza eram transmitidos. Como um microcosmo da sociedade, ela também foi considerada fundamental para a sobrevivência de toda a sociedade, e não apenas em termos demográficos (PARKIN, POMEROY, 2007, p. 72). Mas antes de prosseguirmos, faz-se necessário uma distinção importante entre familia e domus. Família significava, geralmente, um grupo de pessoas sujeitas ao poder (potestas) de um membro masculino de um grupo, o paterfamilias, ou seja, mulher, filhos, escravos, etc. Não significava necessariamente parentes, embora pudessem 3

A ideia de restaurar os costumes dos antepassados era uma constante na política, como o próprio imperador afirma em suas Res Gestae, que “nenhum cargo concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei” (AUGUSTO, Res Gestae, VI).

coincidir (como nas famílias pobres, que não tinham escravos). Já a domus significava a casa, mas era usado também para se referir à unidade familiar básica, pai mãe e filhos, ou seja, uma unidade de linhagem e parentesco (PARKIN, POMEROY, 2007, p. 72). Para Richard Saller, a palavra familia é frequentemente usado para o grupo de escravos sob um dominus, com a exclusão dos membros livres da casa, domus é muitas vezes mais amplo, incluindo a esposa, filhos e outras pessoas na casa. (SALLER, 1984, p. 343). Dessa forma, quando analisamos a problemática da sucessão de Augusto e seus enteados, estaremos nos referindo antes à sua domus do que a sua familia4. O significado da domus para status social não se limita a seus significados familiares. Na visão romana, domus como casa e família teve uma influência direta sobre a legitimidade e prestígio de um homem. Na sociedade romana, na qual a riqueza e respeitabilidade social estão intimamente relacionadas, as domus eram um símbolo central da honra. Fatores religiosos, políticos e sociais contribuíram para o valor das domus como um símbolo para os romanos. A casa romana tinha uma aura sagrada, devido a importância dos cultos familiares (SALLER, 1984, p. 350). Para todos os romanos, a domus estava intimamente associado com esposas, filhos e outros parentes, e para os aristocratas também foi associada de forma concreta com a linhagem, para o qual ela poderia ficar como um símbolo de poder familiar. (SALLER, 1984, p. 351). Entretanto, quando o paterfamilias não tinha herdeiros surgia o problema da sucessão. A solução seria a adoção, amplamente usada para o fim de preservar a domus.

4

Em suma, todos os significados de domus e familia estão relacionados e são difíceis de serem distinguidos. Quando um romano falava sobre os prazeres de sua domus, muitas vezes é impossível descobrir se ele se referia a sua casa física ou a família e os servos, sobre os quais exerceu potestas ou dominium. Além disso, a distinção entre domus como a família estendida e domus como o grupo de descendentes muitas vezes é complicada de se fazer. Quando as mortes de Caio e Lúcio deixaram Augusto com uma "domus deserta", o leitor se destina a entender que eles deixaram de pertencer à domus como o círculo dos parentes, mas também, e mais importante, que não eram mais os potenciais sucessores domus de Augustus, no sentido de dinastia (SALLER, 1984, p. 347-348).

A adoção em Roma assumiu uma importância especial em relação à perpetuação da sacra família, bem como proporcionar uma continuidade artificial da linhagem para fins de herança da propriedade. A preocupação com a continuidade do sacra poderia ter tido ligações com a fase em que o culto dos antepassados era importante em Roma. Além disso, um romano sem filhos legítimos tentaria criar um herdeiro por outros meios, e pode adotar um filho ainda sob o poder paternal de uma outra família, ou revogar aquele que era legalmente independente (LYNDSAY, 2009, p. 21-22) O pai tinha o poder de adoção. A adoção, como a emancipação, eram vistas como um dos dispositivos abertos a um pai de família para planejar o futuro de sua família e sua propriedade: assim como a emancipação pode ser usada para reduzir o número de quem está no poder paternal, a adoção poderia ser utilizada para aumentá-lo. Em cada caso, o ponto principal da adoção era criar uma nova fonte para a continuidade do poder paterno (JOHNSTON, 2004, p. 33) O paterfamilias também teve o poder de nomear um herdeiro ou herdeiros. O herdeiro foi responsável pela continuação da família do falecido e pelas observâncias religiosas. O herdeiro conseguiu não só todos os bens e direitos do falecido, mas também às suas obrigações. Isso se aplica em especial para as dívidas (JOHNSTON, 2004, p. 45). O regime político fundado por Augusto, como dissemos, configurou uma nova forma de governar baseada na união de diversos cargos nas mãos de um único homem. E o imperador, com o passar dos anos, começou a se preocupar com a questão da sucessão, em especial depois de haver se estabelecido. E novamente vemos aqui a propaganda feita ao redor dos possíveis herdeiros imperiais, em especial Druso e Tibério, que tiveram suas vitórias militares cantadas pelos poemas de Horácio, conforme nos informa Suetônio: "Realmente [Augusto], a tal ponto sempre louvou os escritos dele [Horácio] e acreditou que eternamente assim haveriam de permanecer, que impôs que ele compusesse não só o Hino Secular, mas também

sobre a vitória Vindélica de Tibério e Drúsio, seus enteados; e incitouo, por causa disso a acrescentar aos três livros de Odes um quarto, depois de longo intervalo." (Suetônio. Vita Hotari)5.

Vemos aqui que os poemas escritos por Horácio sobre a vitória militar de seus enteados foi um pedido de Augusto e, segundo nossa hipótese, seu objetivo seria enaltecer a figura de seus possíveis herdeiros, em especial sobre suas vitórias militares, aspecto tão caro a um governante romano. Aliás, seus enteados se destacaram em campanhas militares pelos Alpes em 15 a.C., e divulgar essa imagem seria importante para mostrar que ambos estariam preparados para assegurar a segurança do império. Mas antes de analisarmos os referidos poemas horacianos (Odes 4.4 e 4.14), faremos uma reflexão das relações estabelecidas entre o poeta e Augusto, afinal, Horácio não era um propagandista do regime estabelecido, que agia em obediência ao imperador, como a passagem de Suetônio sugere. Dessa forma, torna-se necessário uma reflexão dessa relação entre ambos de modo a explicar melhor as imagens da domus augustana nos poemas. 3. A domus de Augusto nos poemas horacianos Nero Cláudio Druso e Tibério Cláudio Nero são filhos de Tibério Cláudio Nero e Lívia Drusa, nascidos respectivamente em 38 e 42 a.C. Esta se separou de seu marido em 38 a.C., casando-se logo em seguida com Otávio, o futuro imperador Augusto. A relação estabelecida entre as domus Iulia e Claudia permitiram aos jovens cargos no exército romano, tendo ambos encabeçado campanhas militares nos Alpes, as quais foram cantadas por Horácio nos poemas 4 e 14 de seu quarto livro das Odes. Vejamos detalhadamente os poemas para compreender as imagens que o poeta transmitiu sobre as vitórias dos jovens. Primeiro, o poema 4,4 na íntegra:

5

Para uma análise crítica dessa passagem de Suetônio, ver: NOGUEIRA, 2006, p. 5-10.

Assim como ao alado ministro do relâmpago – a quem Júpiter, o rei dos deuses, concedeu o domínio das errantes aves ao constatar que foi fiel no caso do louro Ganimedes – outrora a juventude e o vigor paterno arrebataram do ninho, a ele que era ínscio dos trabalhos, e os ventos primaveris, tendo já afastado as nuvens, ensinaramlhe, temeroso, insólitos esforços e então logo um vívido ímpeto lançou-o, inimigo, contra redis e agora o amor do banquete e da luta levou-o contra as serpentes relutantes. Ou assim como ao leão, já afastado das mamas úberes da mãe, uma cabrita, ocupada nos férteis prados, viu, prestes a morrer pelas presas recém-nascidas, assim também a Druso a comandar a guerra sob os Alpes viram os réticos; os Vindélicos (a cujo respeito desisti de indagar de onde lhes veio por todo o tempo o costume de armar as destras com o machado das Amazonas: não se pode saber tudo), ora, seus batalhões por largo tempo e espaço vencedores, mas vencidos pela estratégia do jovem, perceberam o que pode o espírito e o que pode a índole, piamente educados sob faustosos interiores, o que pode o paterno ânimo de Augusto sobre os filhos de Nero. Os fortes vêm de fortes e bons: há nos novilhos, há nos potros a coragem dos pais e ferozes águias não geram pomba imbele; a educação, porém, fomenta o vigor inato, e o cultivo do que é correto reforça o peito; toda vez que decaem os costumes, as culpas desdouram as qualidades naturais. Do que deves, ó Roma, à estirpe de Nero, é testemunha o rio Metauro e Asdrúbal vencido e aquele belo dia em que, afugentadas as trevas do Lácio, pela primeira vez sorriu a alentadora vitória desde que o Africano terrível, qual flama nos abetos ou qual o Euro pelas ondas da Sicília, cavalgou pelas cidades da Itália. Depois disso com trabalhos sempre bem logrados cresceu a juventude Romana, e os templos devastados pelo ímpio assalto dos Cartagineses tiveram seus deuses restaurados; e disse enfim o pérfido Aníbal: “Como cervos, presa dos rapaces lobos, nós perseguimos, além dos que devemos, aqueles a quem enganar ou evitar é já copioso triunfo.

A gente que, lançada de Tróia em chamas às ondas Tirrenas, trouxe, corajosa, os Penates, os filhos e os pais anciães às cidades da Ausônia, tal como o carvalho podado por dura bipene no Álgido fértil de folhas negras, essa gente consegue tirar – em meio a danos e em meio à matança – do próprio ferro suas forças e seu ânimo. Nem a Hidra, tendo sido mutilado o corpo, cresceu mais forte contra Hércules que sofria por ser vencido, nem os Colcos ou Tebas de Equião submeteram monstro maior. Imerge-a no profundo: ela emerge mais vistosa; combata-a: ela prostrará com grande glória o incólume vencedor e moverá batalhas de que suas esposas falarão. Eu não mais enviarei a Cartago soberbos núncios: morreu, morreu toda a esperança e a fortuna do nosso nome com a morte de Asdrúbal. Nada há o que as mãos da gente Cláudia não executem, as quais Júpiter com benigno assentimento defende e sagazes decisões conduzem em meio às agruras da guerra”.6

Este poema se divide em duas partes: na primeira, faz-se uma comparação entre Druso e um leão, pois assim como um leão é visto por suas presas, Druso é visto pelos Vindélicos; na segunda, um longo discurso de Aníbal, no qual se compara a vitória do enteado de Augusto com a vitória sobre os catarginenses. É interessante notar o elogio à habilidade militar de Druso, haja vista que "seus batalhões [dos vindélicos] por largo tempo e espaço vencedores, mas vencidos pela estratégia do jovem". Mas qual explicação Horácio dá a essa habilidade? Continuando a leitura da ode, vemos: "perceberam [os vindélicos] o que pode o espírito e o que pode a índole, piamente educados sob faustosos interiores, o que pode o paterno ânimo de Augusto sobre os filhos de Nero. Os fortes vêm de fortes e bons: há nos novilhos, há nos potros a coragem dos pais e ferozes águias não geram pomba imbele; a educação, porém, fomenta o vigor inato, e o cultivo do que é correto reforça o peito; toda vez que decaem os costumes, as culpas desdouram as qualidades naturais."

6

Tradução de NOGUEIRA, 2006, p. 52-53.

Aqui, nota-se que é graças à educação de Augusto que o jovem consegue vencer as batalhas; é Augusto quem é elogiado no poema, através de seu enteado. Mas só se pode desenvolver as virtudes onde elas já são inatas, isto é, o imperador apenas cultiva o que já veio com o jovem Druso. A esse respeito, as últimas estrofes do fragmento supracitado são significativas: as qualidades naturais só se desenvolvem em tempos em que os costumes dos antepassados são respeitados, e nesta ocasião notamos novamente um louvor ao estado atual da cidade de Roma, vista como afastada da decadência das décadas anteriores de guerra civil. Segundo Erico Nogueira (2006, p. 54), o principal assunto do poema não é o elogio da glória militar de Druso senão, mais abstratamente, o elogio da educação, doctrina, a que se imputa o aperfeiçoamento dos dotes naturais, indoles. Educação essa, como dissemos, dada por Augusto. Na segunda parte da ode, notamos um recurso retórico importante usado por Horácio para enaltecer o sucesso militar: a comparação da vitória de Druso à vitória de Caio Cláudio Nero, durante o seu consulado em 207, sobre o irmão de Aníbal em Sena, no rio Metauro Úmbria, foi um ponto de viragem na Segunda Guerra Púnica. (PUTNAM, 1996, p. 91 apud NOGUEIRA, 2006, p. 57). Nesse momento, Horácio recorre às experiências do passado para enaltecer as vitórias atuais. Devemos também observar que nesse momento é a gens claudia quem é elogiada, pois "nada há o que as mãos da gente Cláudia não executem", e é o próprio Júpiter que conduz suas ações nas batalhas. Mas não podemos nos esquecer que é Augusto quem cultiva os valores inatos de seus enteados, Tibério e Druso, suas virtudes são alimentadas pela casa imperial. Como dissemos, nesse poema o tom laudatório é bem claro, sendo a vitória de Druso elogiada, comparada às vitórias sobre os catarginenses, episódio tão importante da história romana, e é Augusto, por trás de tudo, que torna os sucessos militares de

seus enteados possível7. Nesse mesmo tom é escrita a ode 4,14, conforme observaremos. Para tanto, vejamos o poema 4,14 na íntegra:

Que zelo dos Pais da Pátria ou dos Quirites com dádivas plenas de honra poderia eternizar nos séculos, mediante inscrições e fastos mêmores, tuas virtudes, ó Augusto, tu, o maior entre os primeiros onde quer que o sol ilumine habitáveis regiões? A ti os Vindélicos isentos da lei Latina há pouco aprenderam o que podes com Marte. Pois com teu exército o agro Druso em dobro abateu os Genaunos, gênero indomável, e os velozes Breunos e as cidadelas incrustadas nos terríveis Alpes. O mais velho dos Neros logo moveu dura batalha e com auspícios favoráveis rechaçou os Retos bestiais, digno de ver, no certame marcial, com quanta ruína fatigava peitos devotados a morrer livres – quase como o Austro acossa as indômitas ondas, quando a turba das Plêiades dilacera as nuvens –,intrépido em assaltar os exércitos dos inimigos e em dirigir o corcel fremente em meio ao ardor do tumulto. Tal como o tauriforme Áufido, que banha os reinos da Dáunia Apúlia, se revolve quando se encoleriza e prepara horrenda enchente para os campos cultivados, assim também Cláudio as férreas fileiras dos bárbaros desbaratou com ímpeto monstruoso, e, ceifando os primeiros e os últimos, prostrou-os ao chão, vencedor sem baixas, porque tu lhe forneceste as tropas, o plano e teus deuses. Pois no mesmo dia em que Alexandria te escancarou, súplice, os portos e o palácio vazio, a próspera Fortuna no terceiro lustro te trouxe bons sucessos de guerra e atribuiu louvor e cobiçada glória às batalhas concluídas sob teu comando. 7

De acordo com Nogueira (2006, p. 59), "se é que esta ode possui um destinatário, é nada menos que a própria cidade de Roma, apostrofada na décima estrofe. Este fato liga-a estritamente às odes chamadas romanas – as seis primeiras do terceiro livro –, em que, aliás, se trata de assunto semelhante: as causas da suposta decadência da Urbe. Deste modo, ao tom “pessimista”das odes romanas Horácio responde, alguns anos mais tarde, com esta ode marcadamente “otimista” em que, sob os auspícios do paternus animus Augusti, nil Claudiae non perficient manus. Como veremos ao estudar a ode 4, 14 mais adiante, estreitamente ligada a esta não só pelo assunto senão também pelo metro, o elogio de Augusto, aqui como indivíduo educador de indivíduos, passará, em 4, 14, a elogio de Roma como civilizadora dos povos."

A ti o Cântabro antes indomável e o Medo e o Indo, a ti o prófugo Cita te admiram, ó atuante proteção da Itália e de Roma senhoril. A ti o Nilo, que esconde as origens das nascente se o Istro, a ti o arrebatado Tigre, a ti o Oceano pleno de monstros que ruge aos remotos Britanos, a ti a terra da Gália, que não teme funerais, e da Ibéria, dura, te obedecem, a ti os Sigambros, que se alegram com a matança, depostas as armas, te veneram. 8

Horácio inicia a ode9 com um questionamento: o que poderia eternizar as virtudes de Augusto? O poeta responde a essa pergunta listando uma série de conquistas romanas realizadas graças ao imperador, dentre as quais se destacam as vitórias de Tibério e Druso, novamente por intermédio de Augusto, como notamos na passagem: "assim também Cláudio as férreas fileiras dos bárbaros desbaratou com ímpeto monstruoso, e, ceifando os primeiros e os últimos, prostrou-os ao chão, vencedor sem baixas, porque tu lhe forneceste as tropas, o plano e teus deuses." É Augusto o responsável pela vitória sem baixas, sendo Tibério apenas seu intermediário. Na segunda metade do poema, destaca os povos submetidos a Augusto, e mais importante, "veneram" o imperador, aclamado como o responsável pela "proteção da Itália e de Roma senhoril." As duas odes (4,4 e 4,14) são semelhantes em alguns aspectos: ambas tratam de vitórias militares sobre os vindélicos, nos Alpes; em ambos os casos são os enteados de Augusto quem batalham; os dois submetem os inimigos, sendo a vitória de Druso comparada à batalha contra os catarginenses; e é graças a Augusto que conseguem as vitórias, no primeiro caso pela influência da casa imperial, e no segundo graças ao apoio 8 9

Tradução de NOGUEIRA, 2006, p. 90.

Para Erico Nogueira (2006, p. 91), a ode "divide-se em três partes. A primeira, que compreende as seis estrofes iniciais, trata respectivamente, depois de um elogio a Augusto nas duas primeiras estrofes, da vitória de Druso (a mesma de 4, 4) na seguinte e da vitória de Tibério nas demais. A segunda parte estende-se da sétima à décima estrofe e é o centro do poema: compara-se aí a ação de Tibério à do rio Áufido, que acabamos de ver nomeado em 4, 9, e procede-se a um elogio das virtudes do princeps. Na terceira parte, que ocupa as três últimas estrofes, continua-se, de maneira só aparentemente protocolar, o elogio a Augusto da seção anterior."

de Augusto com tropas, planos a até mesmo as divindades. Nesses poemas, é Augusto quem é elogiado por intermédio das conquistas de seus enteados, haja vista que em ambos os casos as vitórias só são possíveis graças ao imperador.

4. Considerações finais De acordo com S. Thom, (2004, p. 70), no poema 4,4, parece que o momento em que Augusto é descrito como um presente dos deuses para a humanidade a necessidade de sua substituição imediata é evidente. Nesta segunda referência a Augusto a ode 4,4 é impressionante que Augusto é mencionado apenas em termos de sua relação com possíveis sucessores e, especialmente, em termos de sua devoção paternal para o jovem Druso. Além disso, ainda mais surpreendentemente, o poema termina com um panegírico sobre as realizações de Tibério, ressaltando que a mão de Tibério (não a de Augusto) vai realizar todos os feitos. Além disso, é Júpiter, o pai dos deuses, que com o poder benigno garante posição de Tibério. Para o autor, parece, então, como se Augusto é descrito como o "maior presente para a humanidade" é um presente fugaz e um presente passageiro. Isto parece sugerir que Horácio apoie o sistema, mas não para o homem a sua frente (THOM, 2004, p. 70). Entretanto, esquece-se o autor de que tais ações só são possíveis graças a educação dada por Augusto. E aqui a questão da sucessão fica evidente, haja vista que o imperador investe nas virtudes inatas de seu enteado para trazer vitórias militares à Roma. Na última referência à Augusto nas Odes 4,14, o imperador é nomeado diretamente. Novamente, há louvor extravagante para Augusto implícita na necessidade sentida pelos cidadãos e senadores de Roma para imortalizar seus feitos (THOM, 2004, p. 70). Augusto é chamado de o maior dos príncipes, mas esta referência à sua grandeza não é devido à suas próprias ações, mas para as realizações de Druso e Tibério. Seus atos são especificamente mencionados e são descritos em grandes detalhes. Novamente

S. Thom deixa de mencionar que as vitórias só são possíveis porque Augusto "forneceste as tropas, o plano e teus deuses" aos enteados. Nesse sentido, ambas as hipóteses estão corretas: Horácio elogia tanto Augusto quanto seus enteados Druso e Tibério, mas acreditamos que a questão maior se encontra no fato de que tais conquistas militares são efetivadas graças ao apoio da domus imperial. Dessa forma, para terem suas glórias lembradas, assim como seus antepassados vencedores dos catarginenses, Tibério e Druso devem dar continuidade à casa imperial, devem suceder a domus augustana.

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